Prévia do material em texto
HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Magnum Eltz A dogmática jurídica Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Diferenciar a teoria dogmática da zetética. Reconhecer a interpretação como uma questão de investigação da zetética. Analisar os métodos e os tipos dogmáticos de interpretação. Introdução A dogmática jurídica é o estudo das normas enquanto produtos de um processo legislativo ou interpretativo que resulta em verdades imutáveis para a construção de determinada tese jurídica. Neste capítulo, estuda- remos a sua relação com a zetética, ou a discussão de pressupostos para obtenção de produtos dogmáticos, a importância da zetética para a hermenêutica jurídica e os métodos e tipos de interpretação dogmática. Dogmática e zetética A principal ferramenta do jurista na sua práxis encontra-se na construção de retóricas. Essa construção lógica pode ser baseada em premissas pré-constituídas e estanques, dadas pelos dogmas jurídicos, ou por uma construção dialética entre normas, princípios e tópicos estabelecidos pelo diálogo fi losófi co-científi co. Segundo Ferraz Junior (1997, p. 88): [...] questões discursivas podem ser classificadas conforme a sua complexidade numérica, o grau de reflexividade e a complexidade qualitativa. Deixemos de lado a complexidade numérica e concentremo-nos nos dois outros critérios. Quanto à qualidade, em se tratando de um discurso dialógico, o discurso ju- dicial, como já salientamos, tem por questão um dubium. Sendo, além disso, uma discussão-contra, esse dubium é também conflitivo. Quanto ao grau de reflexividade, as questões dialógicas são, em regra, infinitas (abertas, gené- ricas e abstratas), tendo a sua manifestação como problema, dilema e aporia. C02_Dogmatica_juridica.indd 1 27/03/2018 14:07:15 junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight Dadas, entretanto, certas peculiaridades do discurso judicial, a reflexividade toma contornos especiais. Essas peculiaridades referem-se ao caráter normativo e interpretativo do discurso. A construção do dubium jurídico em relação a uma norma confere à discussão-contra judicial o caráter normativo. Mas a sua reflexividade nos permite distinguir, aí, dois momentos que estão, porém, intimamente ligados. No primeiro momento, podemos dizer que a norma decide conflitos. Mas a possibilidade de instaurar, reflexivamente, o dubium dentro da própria norma nos autoriza a vê-la, ela mesma, num segundo momento como um novo dubium que se constitui como tal em relação à outra norma. Assim, quando a dúvida que conduz o debate jurídico encontra-se anterior à norma, esse debate possui soluções que se extraem da norma no seu estado literal ou a partir da interpretação da norma para enquadramento no caso concreto. No entanto, quando a dúvida recai sobre a própria admissibilidade da norma em relação ao caso em tela, é necessário maior grau de reflexibilidade em relação ao sistema jurídico. Sem indagar, neste passo, as diferenças entre esses dois níveis, assinalamos, por ora, que a norma aparece, nesses termos, também como o resultado de decisão e, pois, como uma estrutura conflitiva (“tridimensional”, diria Reale). Ora, é exatamente esse duplo aspecto que nos vai permitir uma classificação dos dois tipos básicos de questão judicial. Essa classifica- ção, por sua vez, dado o caráter interpretativo do discurso, não significa uma separação radical, mas momentos de atividade hermenêutica: se- parados pela análise, eles revelam íntima conexão. Na verdade, o grau de ref lexividade manifestado pelas questões judiciais depende do grau de complexidade da própria situação comunicativa social. Ele resulta da capacidade da situação em separar, por necessidade de argumentação, os aspectos de “ser” e de “dever–ser” das premissas da decisão — vale dizer, da sua capacidade de introduzir o terceiro comunicador: este não aparece por causa das relações fáticas (não são fatos “verdadeiros” que dizem o que deve ser o Direito), mas, por outro lado, ao dizer o Direito, ele não vai estabelecer se os fatos são “verdadeiros”. Essa separação dá certa autonomia à discussão judicial, criando-lhe condições para mudar, por necessidade de argumentação, as bases da sua orientação: podemos interpretar normas a partir de fatos do caso em tela ou fatos a partir de normas (FERRAZ JUNIOR, 1997, p. 89-90). Logo, quando a norma é suficiente para a resolução de determinado conflito ou é útil à argumentação de determinada parte do debate jurídico, os aspectos do “ser” são convenientes para a construção de uma solução. Já quando ela não possui qualidades definidas para a solução de ao menos uma das partes, o discurso passa a explorar a dinâmica do “dever–ser” ou, como o autor ressalta, A dogmática jurídica2 C02_Dogmatica_juridica.indd 2 27/03/2018 14:07:15 junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight “[...] podemos interpretar normas a partir de fatos do caso em tela ou fatos a partir de normas” (FERRAZ JUNIOR, 1997, p. 90). No primeiro caso, usando uma terminologia proposta por Viehweg, temos uma questão de pesquisa ou questão zetética; no segundo, uma questão dogmática. Entre elas, como dissemos, não há uma separação radical; ao contrário, na totalidade do discurso jurídico, elas se entremeiam, referem-se mutuamente, às vezes se opõem, outras se colocam paralelamente, estabelecendo um campo de possibilidades bastante diversificado. As questões “dogmáticas” relevam o ato de opinar e ressalvam certas opiniões (dokein), certas ações linguís- ticas. As questões “zetéticas”, ao contrário, desintegram, dissolvem meras opiniões (zetein), pondo-as em dúvida, o que pode ocorrer ainda dentro de certos limites (na perspectiva empírica das ciências: Sociologia, Psicologia, Antropologia Jurídica, etc.) ou de modo a ultrapassar aqueles limites, cons- tituindo uma aporética (na perspectiva da Filosofia do Direito) (FERRAZ JUNIOR, 1997, p. 90). A zetética, portanto, ocorre quando o discurso jurídico depende de maior reflexão sobre opiniões externas à normativa, pondo em dúvida a solução tradicional e buscando uma solução a partir da dialética científica entre diversas fontes do Direito, como a doutrina, a jurisprudência e mesmo outros ramos da ciência. A dogmática, por outro lado, atém-se às possibilidades dadas por soluções normativas postas, tais como se encontram. Questões “dogmáticas” têm uma função diretiva explícita. A situação nelas captada é configurada, pois, como um dever–ser. Questões desse tipo visam a possibilitar uma decisão e a orientar a ação. De modo geral, as questões judiciais são “dogmáticas”, as quais são sempre restritivas ( finitae) e, nesse sentido, “positivas” (de positividade). As questões judiciais não se reduzem, entretanto, às “dogmáticas”, na medida em que as ações linguísticas postas fora de dúvida e que estruturam a alternativa — os dogmas — podem ser submetidas a um processo de questionamento, por meio do qual se exige uma fundamentação e uma justificação deles, procurando-se, com a ampliação do dubium, mediante o estabelecimento de novas conexões, facilitar a orientação da ação. O jurista revela-se, assim, não só como especialista em questões “dogmáticas”, mas também em questões “zetéticas” (FERRAZ JUNIOR, 1997, p. 90). A dogmática, por sua vez, compõe o caminho de entrada da discussão jurídica. Eis que as normas que são precursoras ao dubium jurídico são dogmas em sua origem; à sua vez, o dubium quanto à validade, existência e eficácia da norma, gera questões zetéticas que, por sua vez, criam produtos normativos ou dogmáticos para encerrar o ciclo de arguição de determinada causa. 3A dogmática jurídica C02_Dogmatica_juridica.indd 3 27/03/2018 14:07:15 junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight Emresumo, a dogmática é o ramo do discurso jurídico que é centrado em questões postas sem discutir a sua adequação aos fatos, mas a adequação dos fatos às predições normativas. Já a zetética é o ramo do discurso que se propõe a uma análise de verificação da adequação da própria norma aos fatos propostos, sendo o seu produto uma nova criação dogmática, enquanto objeto da própria ciência jurídica, “a norma”. A zetética trata de discussões “infinitas”, nas quais a relatividade é um meio para o alcance de um sentido diverso daquele posto em dúvida pelo intérprete. Já a dogmá- tica trata do estudo e da construção de normas “dever–ser” restritas no seu sentido construído e dadas ao intérprete como uma verdade imutável. A hermenêutica como problema zetético A hermenêutica é um ramo fi losófi co das ciências responsável pelo desen- volvimento dos métodos de aplicação das suas diferentes regras. No âmbito do Direito, a hermenêutica jurídica é responsável pelo desenvolvimento dos métodos pela Doutrina e a sua utilização pela práxis jurídica, representada pelos diferentes juristas de acordo com as suas posições dentro dos confl itos por eles administrados. Nesse sentido, instrui Ferraz Junior (2003, p. 255) que: [...] ao disciplinar a conduta humana, as normas jurídicas usam palavras, signos linguísticos que devem expressar o sentido daquilo que deve ser. Esse uso oscila entre o aspecto onomasiológico da palavra, isto é, o uso corrente para a designação de um fato, e o aspecto semasiológico, isto é, a sua significação normativa. Os dois aspectos podem coincidir, mas nem sempre isso ocorre. O legislador, nesses termos, usa vocábulos que tira da linguagem cotidiana, mas frequentemente lhes atribui um sentido técnico, apropriado à obtenção da disciplina desejada. Esse sentido técnico não é absolutamente independente, mas está ligado de algum modo ao sentido comum, sendo, por isso, passível de dúvidas que emergem da tensão entre ambos. Assim, por exemplo, o Código Civil Brasileiro de 2002, em seu art. 1.591, ao estabelecer as relações de pa- rentesco, fala de parentes em linha reta como as pessoas que estão umas para as outras numa relação de ascendentes e descendentes. No art. 1.592, fala de parentes em linha colateral como as pessoas que provêm, até o quarto grau, de um só tronco, sem descenderem uma da outra. Observa-se, de início, que o A dogmática jurídica4 C02_Dogmatica_juridica.indd 4 27/03/2018 14:07:16 junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight uso comum da palavra parente não coincide com o legal, pelo menos na medida em que vulgarmente não se faz a limitação do art. 1.592, que considera parente em linha colateral a relação consanguínea até o quarto grau (por exemplo, os tataranetos já não são considerados parentes pela lei, quando um descende de um filho e outro, de outro filho do tataravô, ainda que, vulgarmente, mantenham relações consideradas de parentesco). Assim, o jurista, ao tratar do seu objeto de estudo, as normas, pode inter- pretá-las na sua literalidade, inserindo-se no campo da dogmática. No entanto, como visto, o aspecto semasiológico, que trata da semântica do vocábulo normativo e da sua aplicação no caso a partir do seu sentido técnico, corres- pondendo ou não ao sentido vulgar do vocábulo, depende de interpretação. Isso leva o jurista a uma discussão sobre o sentido da norma, e, portanto, resolvendo um dubium interno ao sistema jurídico pelos métodos interpretativos hermenêuticos. Por se tratar de uma interpretação com finalidade normativa, Ferraz Junior (2003) chama esse fenômeno de dogmática hermenêutica: A determinação do sentido das normas, o correto entendimento do significa- do dos seus textos e intenções, tendo em vista a decidibilidade de conflitos, constitui a tarefa da dogmática hermenêutica. Trata-se de uma finalidade prática, no que se distingue de objetivos semelhantes das demais ciências humanas. Na verdade, o propósito básico do jurista não é simplesmente com- preender um texto, como faz, por exemplo, o historiador ao estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas também de determinar-lhe a força e o alcance, pondo o texto normativo em presença dos dados atuais de um problema. Ou seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base na norma enquanto diretivo para o comportamento (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 256). Em que a dogmática hermenêutica possua um resultado normativo, o seu processo de conhecimento corresponde ao campo da zetética, uma vez que se trata de uma especulação que pode, inclusive, servir-se de outras áreas do conhecimento para a definição do sentido de determinado vocábulo empregado na norma. Segundo Ferraz Junior (2003, p. 44): [...] o campo das investigações zetéticas do fenômeno jurídico é bastante amplo. Zetéticas são, por exemplo, as investigações que têm como objeto o Direito no âmbito da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia, da História, da Filosofia, da Ciência Política, etc. Nenhuma dessas disciplinas é especifica- mente jurídica. Todas elas são disciplinas gerais, que admitem, no âmbito de suas preocupações, um espaço para o fenômeno jurídico. Na medida, porém, em que esse espaço é aberto, elas incorporam-se ao campo das investigações 5A dogmática jurídica C02_Dogmatica_juridica.indd 5 27/03/2018 14:07:16 junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight jurídicas, sob o nome de Sociologia do Direito, Filosofia do Direito, Psicologia Forense, História do Direito, etc. Existem, ademais, investigações que se valem de métodos, técnicas e resultados daquelas disciplinas gerais, compondo, com investigações dogmáticas, outros âmbitos, como é o caso da Criminologia, da Penalogia, da Teoria da Legislação etc. Da perspectiva que por nós é proposta, o ponto comum que distingue e agrupa essas investigações é seu caráter zetético. Como a investigação zetética tem como a sua característica principal a abertura constante para o questionamento dos objetos em todas as direções (questões infinitas), é preciso, a propósito disso, proceder com a sua explicitação. É a partir da abertura semântica da norma que é permitida essa infinidade de questionamentos, pela qual o jurista deve delimitar, segundo métodos inerentes à sua ciência, mesmo que se servindo de fontes de outras ciências, o sentido da norma no caso concreto em que ela deve ser aplicada. Como exemplo, Ferraz Junior (2003, p. 44) traz o caso da própria Constituição Federal: Suponhamos que o objeto de investigação seja a Constituição. Do ângulo zetético, o fenômeno comporta pesquisas de ordem sociológica, política, econômica, filosófica, histórica, etc. Nessa perspectiva, o investigador preocupa-se em ampliar as dimensões do fenômeno, estudando-o em pro- fundidade, sem limitar-se aos problemas relativos à decisão dos conflitos sociais, políticos, econômicos. Ou seja, pode encaminhar a sua investigação para os fatores reais do poder que regem uma comunidade, para as bases econômicas e a sua repercussão na vida sociopolítica, para um levantamento dos valores que informam a ordem constitucional, para uma crítica ideo- lógica, sem preocupar-se em criar condições para a decisão constitucional dos conflitos máximos da comunidade. Esse descompromissamento com a solução dos conflitos torna a investigação infinita, libertando-a para a sua especulação. Como, porém, em toda a investigação zetética alguns pressupostos admiti- dos como verdadeiros passam a orientar os quadros da pesquisa, é possível distinguir limites zetéticos. Assim, uma investigação pode ser realizada no nível empírico, isto é, nos limites da experiência, ou de modo que ultrapasse esses limites, no nível formal da lógica ou da teoria do conhecimento ou da metafísica, por exemplo. Além disso, a investigação pode ter um sentido pu- ramente especulativo oupode produzir resultados que venham a ser tomados como base para uma eventual aplicação técnica à realidade. Tendo em vista esses limites, podemos assim falar em zetérica empírica e zetética analítica. Tendo em vista os resultados da investigação, falamos em zetética pura e aplicada. A dogmática jurídica6 C02_Dogmatica_juridica.indd 6 27/03/2018 14:07:16 junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight É a partir do estudo da zetética que a hermenêutica encontra as suas principais fer- ramentas. No entanto, seja por intermédio do conhecimento empírico (experiência) ou analítico (lógica), a zetética jurídica deve ser aplicada para formar a dogmática hermenêutica que se propõe a normatizar o caso concreto a partir da interpretação da norma pelo jurista. Métodos e tipos de dogmáticos de interpretação A hermenêutica é o ramo da ciência responsável pelo desenvolvimento da interpretação de conceitos. Esses conceitos, por sua vez, são interpretados no campo da investigação zetética a partir de métodos de dialética, entre diferentes conceitos e opiniões, para, no campo jurídico, formar um dever–ser dogmático. Essa chamada dogmática hermenêutica se serve de métodos e tipos de interpretação. Os primeiros são classificados por Ferraz Junior (2003) pela sua amplitude e ferramentais, como: interpretação gramatical, lógica e sistemática; interpretação histórica, sociológica e evolutiva; interpretação teleológica e axiológica. Já os tipos de interpretação se referem ao grau de liberdade da dogmática hermenêutica, sendo eles: a interpretação especificadora; a interpretação restritiva; a interpretação extensiva. 7A dogmática jurídica C02_Dogmatica_juridica.indd 7 27/03/2018 14:07:16 junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight junior.pf Highlight Quanto ao primeiro grupo, instrui Ferraz Junior (2003, p. 286-287): Os problemas sintáticos referem-se a questões de conexão das palavras nas sentenças (questões léxicas), de conexão de uma expressão com outras ex- pressões dentro de um contexto (questões lógicas) e de conexão das sentenças num todo orgânico (questões sistemáticas). No tocante às questões gramaticais, o autor exemplifica (FERRAZ JU- NIOR, 2003, p. 287): Quando se enfrenta uma questão léxica, a doutrina costuma falar em interpreta- ção gramatical. Parte-se do pressuposto de que a ordem das palavras e o modo como elas estão conectadas são importantes para obter-se o correto significado da norma. Assim, dúvidas podem surgir quando a norma conecta substantivos e adjetivos ou usa pronomes relativos. Ao valer-se da língua natural, o legislador está sujeito a equivocidades que, por não existirem nessas línguas regras de rigor (como na ciência), produzem perplexidades. Se a norma prescreve: “a investigação de um delito que ocorreu num país estrangeiro não deve levar-se em consideração pelo juiz brasileiro”, o pronome “que” não deixa claro se se reporta à investigação ou a delito. [...] É óbvio que as exigências gramaticais da língua, por si, não resolvem essas dúvidas. A análise das conexões léxicas, por uma interpretação dita gramatical, não se reduz, pois, a meras regras da concordância, mas exige regras de decidibilidade. Por exemplo, se a norma em tela é a cláusula de um contrato, aparecem regras como a que recomenda que veja antes a intenção dos contraentes e não a letra da prescrição, que se observe a própria conduta dos contraentes, ou seja, o modo como estavam executando o pactuado, que, na dúvida, interprete-se em favor de quem se obriga e não de quem obriga o outro, etc. Assim, quando o método interpretativo é adstrito às questões gramaticais, o uso de ferramentas de linguagem é capaz de identificar problemas de inter- pretação literal da norma. No entanto, a resolução para o problema hermenêu- tico normalmente é heterodoxa, ao remeter-se a regras de interpretação que suplementem a gramática, como é o caso da regra da “vontade das partes” que se depreende do princípio civil da “autonomia da vontade”. Já o método interpretativo lógico ocorre quando enfrentamos problemas de coerência na norma. Da mesma forma que o método gramatical, conforme Ferraz Junior (2003, p. 287), [...] trata-se de um instrumento técnico, inicialmente a serviço da identi- ficação de inconsistências. Parte-se do pressuposto de que a conexão de uma expressão normativa com as demais do contexto é importante para a A dogmática jurídica8 C02_Dogmatica_juridica.indd 8 27/03/2018 14:07:16 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight obtenção do significado correto. [...] Ora, o princípio lógico da identidade (A = A) permite mostrar a questão, mas não resolvê-la. As regras da inter- pretação lógica, recomendações para criar as condições de decidibilidade, são, assim, fórmulas quase-lógicas como “o legislador nunca é redundante”, “se duas expressões estão usadas em sentidos diversos, é porque uma deve disciplinar a generalidade, outra abre uma exceção” ou “deve-se ater aos diferentes contextos em que a expressão ocorre e classificá-los conforme a sua especificidade, etc. Finalmente, o método sistemático é o que considera que “[...] a pressuposição hermenêutica é a da unidade do sistema jurídico do ordenamento” (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 288). Segundo o referido autor: Há aqui um paralelo entre a teoria das fontes e a teoria da interpretação. Correspondentemente à organização hierárquica das fontes, emergem reco- mendações sobre a subordinação e a conexão das normas do ordenamento num todo, que culmina (e principia) pela primeira norma-origem do sistema, a Constituição. Para a identificação dessa relação, são nucleares as noções discutidas de validade, vigência, eficácia e vigor ou força (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 288-289). Logo, o método sistemático remete à teoria de Kelsen (1999) na sua Teoria pura do Direito, em que constrói a hierarquia positiva das normas, devendo todas as normas se subordinarem à Constituição, e as normas de hierarquia inferior, como atos normativos expedidos pelo Executivo e demais normati- vas do cotidiano, reportarem-se a legislações em sentido estrito (que foram promovidas pelo processo legislativo constitucional). Já o segundo grupo, composto pela interpretação histórica, sociológica e evolutiva, nas quais, segundo Ferraz Junior (2003, p. 290-291), [...] podemos distinguir entre a interpretação sociológica e a histórica con- forme se leve em consideração a estrutura momentânea da situação ou a sua gênese no tempo. Na prática, porém, é difícil sustentar a distinção. A busca do sentido efetivo na circunstância atual ou no momento da criação da norma mostra que ambos se interpenetram. Daí que, às vezes, vem a ideia de uma interpretação histórico-evolutiva. É preciso ver as condições específicas do tempo em que a norma incide, mas não podemos desconhecer as condições em que ocorreu a sua gênese. Assim, como defende o autor (FERRAZ JUNIOR, 2003), os três conceitos são passíveis de um amálgama teórico, compondo-se, então, no estudo das circunstâncias da norma na sua gênese e as situações fáticas atuais para 9A dogmática jurídica C02_Dogmatica_juridica.indd 9 27/03/2018 14:07:16 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight verificação do seu sentido, no caso concreto. Segundo o autor (FERRAZ JUNIOR, 2003): Para o levantamento de condições históricas, recomenda-se ao intérprete o re- curso aos precedentes normativos, isto é, de normas que vigoraram no passado e que antecederam à nova disciplina para, por comparação, entender os motivos condicionantes da sua gênese. [...] Já o levantamento das condições atuais deve levar o intérprete a verificar as funções do comportamento e das instituições sociais no contexto existencial em que ocorrem.[...] A hermenêutica entende, assim, que as atividades humanas têm uma razão prática de existir, donde seu sentido em termos de relações numa situação dada. O conceito de função permite-lhe, então, uma análise classificatória de fenômenos, uma orientação eurística, visando à descoberta de novas relações, um relacionamento causal entre eles, o que leva a um desvendamento das estruturas sociais e das suas mudanças em termos de processo. O Direito atua sobre eles como regulação que permite o seu controle. Conceitos abertos, como o exemplificado pelo autor, “mulher honesta”, utilizados no Direito, que variam conforme as transformações históricas e evolutivas da sociedade, podem e devem ser verificados na sua gênese, para que um paralelo seja traçado para a aplicação na norma, nas circunstâncias da ocorrência da incidência da norma, de forma que não sejam cometidas injustiças de aplicação literal da norma ou de acordo com a mens legis à sua época de construção. Finalmente, o terceiro grupo compõe a interpretação teleológica, que busca a finalidade da norma para a sua interpretação e a interpretação valorativa, ou axiológica, ambas com intuito de buscar os valores e fins que compõem o quadro normativo para a extração do sentido do texto. O pressuposto e, ao mesmo tempo, a regra básica dos métodos teleológicos é de que sempre é possível atribuir um propósito às normas. De fato, isso nem sempre é claro e muitas vezes nos levaria a perplexidades. Existem normas costumeiras para as quais é difícil encontrar propósitos e finalidades. O longo uso com o sentimento da obrigatoriedade instaura uma rede de disciplinas sem que possamos encontrar nelas alguma intenção. Apesar disso, para obter a neutralização da carga emocional, é preciso encontrar essas finalidades ou, ao menos, postulá-las. [...] Em suma, a interpretação teleológica e axiológica ativa a participação do intérprete na configuração do sentido. O seu movimento A dogmática jurídica10 C02_Dogmatica_juridica.indd 10 27/03/2018 14:07:16 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight interpretativo, inversamente ao da interpretação sistemática que também postula uma cabal e coerente unidade do sistema, parte das consequências avaliadas das normas e retorna para o interior do sistema. É como se o intér- prete tentasse fazer com que o legislador fosse capaz de mover as suas próprias previsões, pois as decisões dos conflitos parecem basear-se nas previsões das suas próprias consequências. Assim, entende-se que não importa a norma, ela há de ter, para o hermeneuta, sempre um objetivo que serve para controlar até as consequências da previsão legal (a Lei sempre visa aos fins sociais do Direito e às exigências do bem comum, ainda que, de fato, possa parecer que eles não estejam sendo atendidos) (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 292-294). As interpretações teleológica a axiológica, portanto, buscam na previ- sibilidade das consequências em um legislador histórico quanto à norma para que a finalidade hipotética ou clara da norma expressa ou implícita no sistema normativo possa qualificar a sua interpretação em um sentido coeso, diferenciando-se da interpretação sistemática pela possibilidade de verificação da finalidade da norma em relação ao caso concreto (considerando que a primeira é restrita ao conjunto de normas enquanto um sistema fechado em si mesmo). Já quanto aos tipos de interpretação, o autor apresenta três conceitos: a interpretação especificadora; a interpretação restritiva; a interpretação extensiva. Quanto à interpretação especificadora, Ferraz Junior (2003, p. 294) explica que: Uma interpretação especificadora parte do pressuposto de que o sentido da norma cabe na letra de seu enunciado. Tendo em vista a criação de condi- ções para que os conflitos sejam definíveis com um mínimo de perturbação social (questão da decidibilidade), a hermenêutica vê-se pragmaticamente dominada por um princípio de economia de pensamento. Postula, assim, que para elucidar o conteúdo da norma, não é necessário sempre ir até o fim das suas possibilidades significativas, mas até o ponto em que os problemas pareçam razoavelmente decidíveis. Era esse, provavelmente, o propósito de um famoso aforismo jurídico, hoje menos citado, segundo o qual “in claris cessat interpretatio”. A norma, nesse tipo interpretativo, é suficiente nela mesma, isso quando ela é suficientemente clara para extrair o seu sentido, estando em sua litera- lidade todos os elementos necessários para se extrair a solução do problema 11A dogmática jurídica C02_Dogmatica_juridica.indd 11 27/03/2018 14:07:16 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight jurídico apresentado. É o caso, por exemplo, dos tipos penais, nos quais a restrição do sistema à interpretação os leva a uma clareza maior do que em outros ramos do Direito. Por exemplo, o art. 121 do Código Penal (BRASIL, 1940): “Matar alguém — Pena: reclusão, de seis a 20 anos”. A Lei é clara sobre quem pode ser recluso de seis a 20 anos, não sendo necessários outros métodos interpretativos ou, como resgata o autor, in claris cessat interpretatio (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 294). A interpretação restritiva, no mesmo sentido, porém por diferentes motivos: [...] ocorre toda vez que se limita o sentido da norma, não obstante a ampli- tude da sua expressão literal. Em geral, o intérprete vale-se de considerações teleológicas e axiológicas para fundar o raciocínio. Supõe, assim, que a mera interpretação especificadora não atinge os objetivos da norma, pois lhe confere uma amplitude que prejudica os interesses ao invés de protegê-los. Assim, por exemplo, recomenda-se que toda norma que restrinja os direitos e garantias fundamentais reconhecidos e estabelecidos constitucionalmente deva ser interpretada restritivamente. O mesmo se diga para as normas excepcionais: uma exceção deve sofrer interpretação restritiva. No primeiro caso, o telos protegido é postulado como de tal importância para a ordem jurídica na sua totalidade que, se limitado por lei, esta deve conter, em seu espírito (mens legis), antes o objetivo de assegurar o bem-estar geral sem nunca ferir o direito fundamental que a Constituição agasalha. No segundo, argumenta-se que uma exceção é, por si, uma restrição que só deve valer para os casos excepcionais. Ir além é contrariar a sua natureza (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 296). Essa restrição normalmente se dá no âmbito do Direito Público, Admi- nistrativo ou Penal, a fim de restringir a própria ação do Estado em relação aos seus súditos. No entanto, é pouco verificada no âmbito Civil, no qual as partes normalmente devem criar seu próprio direito. Por fim, temos a interpretação extensiva, que é capaz de alargar os efei- tos de determinada norma para irradiar seu conteúdo em outros sistemas normativos, pois [...] trata-se de um modo de interpretação que amplia o sentido da norma para além do contido em sua letra. Isso significa que o intérprete toma a mensa- gem codificada num código forte e a decodifica conforme um código fraco. Argumenta-se, não obstante, que desse modo estará respeitada a ratio legis, A dogmática jurídica12 C02_Dogmatica_juridica.indd 12 27/03/2018 14:07:17 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight pois o legislador (obviamente, o legislador racional) não poderia deixar de prever casos que, aparentemente, por uma interpretação meramente especi- ficadora, não seriam alcançados. Assim, se a mensagem normativa contém denotações e conotações limitadas, o trabalho do intérprete será o de torná-las vagas e ambíguas (ou maisvagas e ambíguas do que são em geral, em face da imprecisão da língua natural de que se vale o legislador) (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 297). Um exemplo moderno de interpretação extensiva é frequentemente observado na aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em relações civis, por ele ser considerado um “microssistema” de proteção de direitos coletivos, como é o caso do Direito Ambiental, Direitos das Minorias e Classes a partir da objetivação da responsabilidade civil, inversão do ônus probatório e outras especificidades da norma, alargadas a casos análogos à proteção do consumidor. Os diferentes métodos e tipos de interpretação da dogmática hermenêutica possuem formas distintas de compreender o sistema normativo, que devem ser utilizadas de acordo com as especificidades do sistema jurídico em questão (público ou privado, forte ou fraco) e de acordo com a estratégia do jurista perante a tese construída. BRASIL. Decreto-lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Brasília, DF, 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 13 mar. 2018. FERRAZ JUNIOR, T. S. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. FERRAZ JUNIOR, T. S. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003. KELSEN, H. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 13A dogmática jurídica C02_Dogmatica_juridica.indd 13 27/03/2018 14:07:17 junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight junior.vaj Highlight