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G E O G R A F I A S D O C O R P O © (2009) Livraria Figueirinhas Geografias do Corpo. Ensaios de Geografia Cultural Coordenação: Ana Francisca de Azevedo, José Ramiro Pimenta, João Sarmento Autores: Ana Francisca de Azevedo, Benedict Hoff, Chris Philo, Eduardo Bri- to-Henriques, Joana Lima, João Sarmento, José Ramiro Pimenta, Roberta Gilchrist, Teresa Mora Capa: Fotografia: árvoremãe, de Jorge Correia Ribeiro © Arranjo gráfico: Cisca, Pfeffer & Séan. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob qualquer forma sem a permissão do editor e coordenadores. Depósito legal: ISBN: GEOGRAFIAS DO CORPO Ensaios de Geografia Cultural Ana Francisca de Azevedo Benedict Hoff Chris Philo Eduardo Brito-Henriques Joana Lima João Sarmento José Ramiro Pimenta Roberta Gilchrist Teresa Mora Coordenação de Ana Francisca de Azevedo José Ramiro Pimenta João Sarmento f i g u e i r i n h a siii Autores Ana Francisca de Azevedo Universidade do Minho Benedict Hoff University of Liverpool Chris Philo Univerity of Glasgow Eduardo Brito-Henriques Universidade de Lisboa Joana Lima Universidade Lusófona do Porto João Sarmento Universidade do Minho José Ramiro Pimenta Universidade do Porto Roberta Gilchrist University of Reading Teresa Mora Universidade do Minho Índice As geografias culturais do corpo A. F. de Azevedo, J. R. Pimenta e J. Sarmento 11-30 Desgeografização do corpo. Uma política de lugar A. F. de Azevedo 31-80 Fausto entre nós. Geografias pós-humanas E. Brito-Henriques 81-98 O corpo dessexuado: a vida interior das mulheres religiosas da Idade Média R. Gilchrist 99-122 Uma experiência com a linguagem do cinema: objectivos, efeitos e consequências. B. Hoff 123-144 Corpo, identidade e linguagem nas cavernas de ‘Moon Palace’ J. Lima 145-164 O véu territorial da razão e o corpo como natureza-morta T. Mora 165-186 População acumulada: corpos, instituições e espaço C. Philo 187-226 O corpo, lugar do tempo J. R. Pimenta 227-260 As inescapáveis geografias do corpo: mobilidade, escala e lugar J. Sarmento 261-282 As geografias culturais do corpo A n a F r a n c i s c a d e A z e v e d o J o s é R a m i r o P i m e n t a J o ã o S a r m e n t o A contaminação do corpo pela teoria e pela prática científica implica frequentemente o acto de despojamento das emoções e dos afectos, implica, tantas vezes, pôr-nos de fora de nós próprios, despir-nos da nossa carne, até um ponto em que a experiência material do mundo e da existência se encontra ontologicamente truncada. A consciência de nós próprios turva-se, o ‘sentimento de si’1 é aplanado, divor- ciando-se da sua própria biografia e de uma teia de significados que permite a organização de cada momento quotidiano. A negligência crónica relativamente aos processos de formação da auto-consciên- cia enviesa não somente a estruturação do Eu mas também a sua auto-percepção, o que inevitavelmente enviesa o intuito de aproxi- mação ao Outro, transformado em objecto de pesquisa. Sobre esta base se ergueu uma metageografia dos corpos passivos. O acto de abstracção em que se estriba a produção do conhecimento cientifico moderno tem subjacente a descorporização do sujeito, a subtracção da experiência sensorial no seu conjunto em detrimento da experiên- cia ocularcêntrica. A mente como palco de representações e o olho, e respectivos aparatos e próteses de visualização, como aparelho que devolve à mente uma visão objectiva dos fenómenos, legitima um sem-número de textos e discursos que partem de um quadro relacio- nal assente sobre a fractura entre sujeito e objecto de conhecimento. Desestabilizando este quadro relacional a presente obra expõe-no. De capítulo a capítulo abre-se para os desafios de um conhecimento 12 Geografias do Corpo háptico, interceptando um conjunto de geografias liminares que as suas autoras e autores vão desvelando. A atenção que crescentemente tem vindo a ser dedicada ao cor- po no seio das ciências sociais dividiu-se por variadas formas de abordagem das relações que estabelece com as outras instâncias da produção da subjectividade. Do mesmo modo, e ainda que a divisão que vamos seguir force talvez um pendor analítico que não deve ser mais do que o necessário para permitir uma ilustração coerente do conjunto de fenómenos e modalidade de pesquisa associadas, tenta- remos apresentar as características mais importantes de uma pesqui- sa de espacialidade do corpo e de corporealidade do espaço segundo três áreas complementares: poder, representações e práticas. O que defendemos neste livro é uma centralidade maior do corpo nas ge- ografias que fazemos, apreciando o poder, as representações e as práticas do corpo no emaranhado das modernas espacialidades. Poder São inúmeros os exemplos de debates epistemológicos e tomadas de posição intelectuais e políticas em redor das questões do corpo que se tornaram disponíveis no seio das ciências humanas sobretudo a partir do anos setenta; os estudos das relações entre corpo, espaço e poder não são exclusivos da disciplina da Geografia, razão que este- ve, de resto, na concepção deste mesmo livro, em que pretendemos reunir vozes oriundas de diversas áreas de investigação, geográfica, arqueológica, literária, sociológica. Como é natural, a Geografia não desenvolveu por si mesma a gama variada de teorias sociais, com origens muito diversificadas, a que hoje faz recorrentemente uso, embora o seu contributo não tenha sido despiciendo no seu enri- quecimento dialéctico. Não seria ajustado a uma introdução de uma reunião de textos que versam o tema comum do corpo e do espaço, explorar minuciosamente as diversas fontes intelectuais e políticas de estudos sobre as relações entre o poder e o corpo. Ainda assim cremos que é importante referir alguns nomes que contribuíram de- cisivamente para a constituição de uma problemática do corpo nas ciências sociais, genericamente e, especialmente, na importância de- cisiva que vieram a ter para estudos de Geografia e corpo do ponto de 13 Introdução vista da organização do poder e das políticas de exclusão e violência a elas associadas. Nesse sentido, referiremos alguns nomes que são ainda assim perfeitamente incontornáveis e cuja omissão impediria de mais bem compreender as dinâmicas recentes da disciplina da Geografia. Fá-lo-emos seguindo uma ordem de apresentação que se poderia chamar de ‘histórica’, porquanto contempla a eclosão se- quencial da sua expressão como forma de contestação e afirmação de políticas activas de identidade: classe, raça, género e sexualidade, contextos que, como referiremos mais à frente, usaremos também para a definição dos contributos específicos da geografia do poder e do corpo, assim como para a apresentação de algumas passagens dos próprios artigos deste livro. Os estudos das relações entre espaço, corpo e poder não se resu- mem à disciplina da Geografia. Esperamos que este livro ajude a demonstrar que tais estudos assumem as mais diversas formas de expressão epistemológica e metodológica, detendo características comuns que permitem ser associados numa categoria de pesquisa com algum grau de similaridade. Cremos que a principal marca de uma relação espacializada da relação entre corpo e poder é certa- mente a identificação (e contestação) dos ‘dispositivos’ (e usamos esta palavra com o sentido que lhe dá Foucault e que remete para o carácter claramente instrumental dessa relação) postos em prática no sentido de fazer cumprir regras implícitas, explícitas e violentas de inclusão, exclusão ou reclusão do corpo individual e concretamente considerado. A reteorização do corpo é relativamente recente na história da Geografia, em consonância com o que sucedeu com inúmeras dis- ciplinas das ciências sociais. Até à década de setenta, a presença do corpo, da sexualidade, do género, reduzia-se a análises de estrutu- ras demográficas em que as característicasdescritoras de variáveis biologistas eram tomadas em consideração numa qualificação mais vasta da sociedade encarada pelo seu aspecto exterior. Este ‘instru- mentalismo’ devia muito ao contexto epistemológico geral positivis- ta e humanista em que a disciplina se inseriu desde a sua origem, e apenas viria a conhecer uma metamorfose radical com as transfor- mações sociais que acompanharam a sociedade ocidental a partir dos 14 Geografias do Corpo finais dos anos sessenta (Brito-Henriques, neste livro). A abordagem do corpo como elemento activo de identificação, opressão e contes- tação social ficou a dever muito aos trabalhos de Foucault sobre a história da modernidade, e ao conceito associado de ‘poder sobre a vida’ que o autor tentou recolher de vários exemplos historicamente concretos e geograficamente situados. Este ‘poder sobre a vida’, que consiste num conjunto de dispositivos e técnicas com o objectivo de obter a subjugação do corpo individual e do conjunto da população expressa-se espacialmente em redutos de exclusão mais ou menos opressiva e violenta, sustentada discursivamente como a representa- ção do próprio funcionamento natural da comunidade (Philo, neste livro). Neste sentido, Foucault está especialmente interessado em designar e explicitar as qualidades morais e políticas de um poder assim estabelecido e o modo como tal processo resulta na criação concreta de individualidade, subjectividade e corporealidade, domí- nios que em muitos autores viriam a ser considerados indispensáveis em estudos interseccionais de raça, género e sexualidade. A produ- ção de subjectividade assim estabelecida seria feita primordialmente por redes de intervenção mais ou menos explícita por parte dos cen- tros de poder, e especialmente o Estado, mas tornando-se eficiente- mente presente em espaços de alienção da individualidade corpórea e de incarnação da própria assimetria das relações de poder – é justa- mente este o poder ‘geográfico’ das propostas foucaultianas que não deixará de ser aproveitado fertilmente em estudos da disciplina da Geografia, a que faremos referência um pouco mais à frente. A concepção foucaultiana de espaços fácticos e discursivos de exercício de poder veio a conhecer um enorme sucesso na disciplina da Geografia, dando origem a tradições de pesquisa variadas, estando presente em todas as propostas intelectuais e políticas críticas como o feminismo, neo-marxismo ou pós-colonialismo. Uma vez que se fará referência às dimensões da raça, género e sexualidade, bastará talvez, neste momento, referir aquelas que mais directamente dizem respeito à relação opressiva do Estado e do discurso dominante com alguns segmentos que compõem o todo social. A incorporação dos pressupostos de teorias localistas-discursivas pode solver-se nas ma- nifestações de ‘copresença’ que induzem e estruturam relações de 15 Introdução poder e nas quais, por exemplo, a time-geography, desenvolvida por Hägerstrand, mau grado algumas dúvidas pós-estrutralistas a poste- riori, parece enunciar a primeira tentativa endógena da Geografia. Em todo o caso, a noção de que a biografia espacial de um indivíduo é estruturada (reprimida) pela copresença dos diversos actores so- ciais (e a diversas escalas) com que interage não deve permitir que se pense (e essa foi talvez uma das críticas mais prementes ao esque- matismo da fase inicial da escola de Lund) que existe uma concor- dância absoluta entre os limites físicos de um espaço e os contornos sociais de um ‘locale’ – a este respeito o próprio Foucault deixou claro que o efeito ‘capilar’ da organização do poder lhe atribuía uma permeabilidade à qual nenhum limite físico podia eficientemente opor-se. Assim, podemos ver na Geografia uma multiplicidade de estudos que tomam em consideração o poder regulador do espaço na formação de subjectividades concretas e corporealizadas e em que tomam especial relevo os estudos que contemplam fracções do todo social que estão especialmente dependentes das relações assimétri- cas do poder. A discriminação pela idade levou ao reconhecimento de um domínio tradicionalmente invisibilizado na prática geográ- fica que é o reconhecimento de lugares e espacialidades de discri- minação, institucionalização e ocultação dos elementos mais idosos das comunidades, e o modo como os espaços público e privado são especial e dominantemente ‘do adulto’. Esta mesma característica permite reconhecer um domínio análogo da prática geográfica que diz respeito às crianças e adolescentes. Já presente na expedição de Bunge aos bairros desfavorecidos de Detroit, este é um tema que tem vindo a ganhar um peso crescente nos estudos de Geografia hu- mana, que cada vez mais reconhece a produção pré-adulta de es- paços de resistência, de contestação ou simplesmente alternativos. Finalmente, tem vindo a tomar um peso crescente nos estudos de ‘poder sobre a vida’ aqueles que se debruçam sobre as pessoas com deficiência, parte da comunidade em que mais se fazem sentir os processos de discriminação espacial; neste contexto, de resto como também acontece em alguns estudos sobre a vida em estabelecimen- tos prisionais (Philo, neste livro), a tendência epistemológica tem sido a de fazer substituir os modelos ‘instrumentalistas’ (médicos e 16 Geografias do Corpo legais), que caracterizam um fenómeno como algo puramente ‘fun- cional’ e mensurável, por uma concepção ‘social’ e ‘cultural’ que exige a presença discursiva dos dois pólos da relação de poder assim mantida – neste sentido, qualquer estudo das espacialidades asso- ciadas à ideia de deficiência remete não apenas para a vivência dos actores sociais portadores de limitações de mobilidade ou sociabili- dade mas também para as regras públicas de definição dessa mesma limitação. A fusão dos dois pontos de vista tem vindo a dar origem a propostas que se enquadram já nos limites do activismo académico que assim se associam a políticas de identidade com vista não ape- nas à reabilitação médica (ou legal) dos indivíduos mas também à instabilização dos parâmetros de aptinormatividade. A representação do corpo é um dos temas centrais da teoria sai- diana de denúncia e exposição crítica do orientalismo, ou seja a representação estereotipada do Oriente na cultural ocidental. A atri- buição de características binariamente opostas entre os dois pólos desta relação, levou Said a reconhecer que o Oriente é apresentado e representado como um símile de femininidade, dócil, erotizado, vio- lável, aos olhos de um Ocidente que a si mesmo se representa como masculino, dominador, violento. A teoria orientalista e toda a gama de procedimentos de pesquisa dela derivados tiveram um enorme sucesso na Geografia e a abordagem pós-colonial culturalista assim definida veio mesmo a tornar-se um dos domínios de investigação mais importantes das duas últimas décadas,3 embora tenha vindo a ser crescentemente posto em causa por justamente favorecer a re- plicação epistemológica do próprio fenómeno que pretende expor e denunciar. Mais radicais são as propostas em torno da abordagem psicanalítica levadas a cabo por Frantz Fanon que vieram a conhecer um sucesso mais duradouro que as de Said nos espaços que lutaram pela independência política e económica de territórios previamente colonizados. Não estando isento de críticas por alguns sectores epis- temológicos, nomeadamente pela ‘queer theory’ que entrelê nos es- critos de Fanon alguns traços de homofobia e heterosexismo, ainda assim é inegável a importância deste autor no contexto da afirmação dos movimentos de política identitária pós-colonial, ou a eles asso- ciados por parte de minorias migrantes em países ocidentais. Não se 17 Introdução pode deixar de referir, contudo, que em muitas situações pós-colo- niais mais consolidadas parece cada vez mais privilegiar-se moda- lidades de investigação que pretendem visibilizar as comunidades concretas de que partem (cujo carácter híbrido é cada vez mais exi- bido comoidentidade cultural) e assim fugir à oposição estereotipa- da entre o agressor colonial e o resistente colonizado. Sendo a Geografia uma ciência historicamente associada, e com óbvias implicações funcionais, com a instalação e exploração colo- nial do mundo não-ocidental, não é de admirar a enorme quantidade de trabalhos que a crítica pós-colonial favoreceu no seio da discipli- na. No contexto do pós-estruturalismo e da teoria cultural saidiana, é dada especial atenção às representações racializadas do encontro co- lonial e ao modo como elas estruturaram a identidade metropolitana; neste contexto não pode mesmo deixar de referir-se a ‘antecipação’ epistemológica em que consistiu o ‘luso-tropicalismo’, ao erigir o carácter híbrido como uma (geo)política de identificação cultural (porém, não deve esquecer-se que esta era uma identidade baseada numa relação assimétrica do poder, em que o lado imperial e mascu- lino daquele encontro era especialmente favorecido). Mais especifi- camente, a Geografia não deixou de fazer referência aos dispositivos espaciais de discriminação racial, entre os quais a experiência do ‘apartheid’ na África do Sul foi a mais ilustrativamente reconhecida e politicamente valorizada; posteriormente o mesmo tipo de estu- dos evoluíram para análise de espacialidades, em que as relações de ‘raça’/etnicidade sustentam situações particularmente tensas ,como no Médio Oriente,ou justificam propósitos de limpeza étnica como sucederia na guerra da antiga Jugoslávia. Do ponto de vista do en- contro pós-colonial em contextos do mundo ocidental, a Geografia inclui cada vez mais estudos de política identitária das minorias ét- nicas nas grandes cidades do mundo ocidental e, sobretudo, numa perspectiva ‘interseccionista’, exibir e denunciar o modo como a re- presentação geopolítica da alteridade tem vindo a favorecer medidas de crescente repressão por parte dos estados, sendo a côr da pele e a suposta pertença étnica um factor relevante da sua aplicação. O corpo sempre foi um tema central na tradição dos estudos ge- ográficos de género, especialmente os oriundos da tradição dos 18 Geografias do Corpo estudos feministas, tradição esta que desde o início desenvolveu es- peciais ligações com a teoria psicanalítica e tentou integrar o papel da identidade ‘feminina’ (entendida também e fulcralmente como política de corpo e de sexualidade)4 na definição das relações so- ciais. Neste contexto tomou particular relevo o estudo do regime patriarcal e masculinista de organização social e do papel especial que nele toma o corpo como lugar de identidade e prática, especial- mente na configuração dos papéis atribuídos ao elemento dominante (masculino), dominado, (feminino) e ausente (infantil), associado intimamente a uma idêntica imposição heteronormativa. A atenção dos estudos feministas e a exibição da identidade de corpo e de gé- nero para o centro das procupações epistemológicas levou a que se desenvolvessem linhas de pesquisa directamente orientadas não apenas para a denúncia dos mecanismos de determinação do regime patriarcal e masculinista mas também para a natureza performativa e reiterativa das identidades de género, a anatomia dos mecanismos inconscientes de natureza ‘abjectiva’ que os sustentam, bem como a exibição e provocação do carácter instável das suas fronteiras, atra- vés de práticas de subversão e trangressão. A Geografia acompanhou e desenvolveu as linhas dominantes dos estudos de género que se foram desenvolvendo trandisciplinarmen- te.5 Assim, deu especial atenção ao modo patriarcal de produção, e às relações sociais e económicas que visam assegurar a sua reprodu- ção, bem como as espacialidades directamente associadas com ela e que nela tomam um papel de primeira importância, nomeadamente a distinção geográfica sócio-cêntrica e sócio-periférica que a moder- nidade atribui aos papéis de género na divisão social do trabalho. Muito especialmente, dedicou muita da sua energia à pesquisa da estruturação espacial da violência masculina, nomeadamente atra- vés dos dispositivos físicos e simbólicos de reclusão ou oclusão da mulher em escalas que variam entre o bairro da cidade e lugares liminares até à esfera íntima da domesticidade. Finalmente, sem- pre privilegiou os estudos que procuravam determinar o poder de reprodução da estrutura patriarcal nos diversos níveis de organiza- ção social, desde o funcionamento do aparelho do estado às várias 19 Introdução instituições sociais e culturais promotoras da regulação de papéis sociais. Os estudos feministas são também responsáveis pela introdução da temática da sexualidade como tema central de investigação em ciências sociais e essa será também a via privilegiada por que che- garão à Geografia.6 Variando nos temas e metodologias, os estudos feministas sobre sexualidade contiveram sempre uma marca teóri- co-metodológica de nítida filiação psicanalítica, por um lado e, por outro, uma marca activista política e social acentuada, relacionada com a denúncia e exposição do regime patriarcal e maculinista na organização dos papéis e relações de género, especialmente na re- produção mútua das modalidades de exploração e violência social e sexual. Para além dos contributos centrais da teoria pós-estrutu- ralista e feminista, as abordagens da sexualidade e do corpo têm vindo recentemente a ser objecto directo de várias teorias não-re- presentacionais e performativistas, entre as quais se destaca a ‘queer theory’.7 Inicialmente originária do activismo das minorias sexuais rapidamente se generalizou a uma epistemologia duplamente base- ada no papel central da sexualidade na identidade social e formação da subjectividade, por um lado, e por outro no carácter desafiador de normas e limites na atribuição da subjectividade. A Geografia desenvolveu diversas linhas de estudo que tomam em consideração os efeitos recíprocos do espaço e sexualidade. Desde logo, em consonância com o trabalho seminal de Castells,8 tentou determinar as expressões espaciais dos modos de vida e cultura po- pular exibidas por comunidades de orientação homossexual, à esca- la global (turismo) e urbana (residência e gentrification). Também, alguns estudos dedicar-se-iam à exposição e denúncia do carácter implícita ou explícitamente heteronormativo da vida quotidiana e da cultura popular, no seio do qual as expressões de dissidência podem ser alvo de uma gama variada de acções, desde a simples marginalização à exuberante e violenta opressão.9 Historicamente relacionadas com os anteriores, uma série de estudos de geografia e sexualidade debruçar-se-iam sobre a difusão de doenças sexual- mente transmissíveis, especialmente a SIDA, se bem que muitos dos estudos levados a cabo sobre a difusão da doença tenha sido alvo 20 Geografias do Corpo igualmente de estudos tradicionais, de construção e teste de modelos de difusão espacial. O activismo associado a muitos dos estudos de geografia e sexualidade podem ainda ser vistos em dois géneros de estudos que nos úlitmos anos se vêm tornando dominantes no que concerne aos temas de sexualidade e geografia: as expressões com- plementares das geografias ‘queer’, e dos modos de vida associados a uma concepção performativa e propositadamente instabilizada da identidade de género e de sexualidade, e, por outro lado, o ordena- mento moral das paisagens sexualmente normativas do espaço as- sociados à disrupção cultural das práticas associadas (Hoff, neste livro). Finalmente, e tal como sucede nas outras instâncias de classe, raça e género, também a Geografia como sistema de prdução cientí- fica tem vindo reflexivamente a questionar os evntuais dispositivos que obstam, do ponto de vista da sexualidade, a uma plena equidade de tratamento dos geógrafos em termos de carreiras de investigação e temas de publicação.10 Representações O modo como o corpo, ou os diferentes corpos são representados diz muito sobre a sociedade em que se vive (Mora, neste livro). A representaçãocultural do corpo pode ser perspectivada de diversas formas. Se atendermos à representação do corpo humano, verifica- mos, por exemplo, que a cultura ocidental moderna estabeleceu uma história das representações corporais que remonta à Antiguidade Clássica, à arte minóica e à escultórica greco-romana. Encontramos, não obstante, diversas ramificações que ligam a representação visual do corpo às culturas do Neolítico e mesmo do Paleolítico, deslocan- do cronologias apriorísticas de linearização do corpo como represen- tação. Associada ao desenvolvimento das técnicas e tecnologias de representação, a representação do corpo encontrou-se desde muito cedo ligada a valores espirituais e religiosos que indivíduos e grupos desejaram deixar gravados em variados materiais. A variação des- tas representações no espaço é sobejamente explorada pela História da Arte, Estética e Filosofia, entre outros campos do saber que têm vindo progressivamente a focar a atenção nas relações entre corpo e representação (Lima, neste livro). 21 Introdução Um olhar diacrónico sobre as representações do corpo na cultura ocidental mostra que, entre experiências e variações iconográficas, a tendência para a dessacralização do corpo é apanágio do perío- do moderno. A fronteira entre o sagrado e o profano desvanece e a formação social das representações é alterada (a contrario, para a Idade Média, cf. Gilchrist, neste livro). A conexão entre a represen- tação do corpo e a morte é desmitificada e a ênfase na celebração dos ‘corpos das elites’ é transferida para a celebração de ‘corpos ordinários’, operando no acto quotidiano. A apoteose da imagética corporal, durante o século XX, aconteceu num momento muito con- creto em que a cultura visual tomou conta dos mecanismos de orga- nização da experiência, um momento em que Heidegger anuncia a transformação do próprio corpo da terra em retrato. Diversos autores debruçaram-se sobre este fenómeno, desde Merleau-Ponty a Roland Barthes, mas a problemática da representação do corpo extravasou largamente a componente visual colocando a literatura e a ciência como médiuns cruciais a operar no moderno processo de construção de imaginários corporais. Como poderemos ignorar o tratamento do corpo por Anaïs Nin, Marguerite Duras ou Franz Fanon, e, de outro modo, como poderemos deixar de atender ao trabalho antropológico de inventariação, classificação e hierarquização dos corpos e respec- tivas representações? Impossível, se abraçamos a tarefa crítica de recolecção dos retratos de que somos herdeiros. Os estudos canónicos de Aby Warburg em torno do movimento das imagens no tempo, ao serem revistos, proporcionam um valo- roso contributo para a compreensão do modo como a arte da repre- sentação se encontra intrinsecamente implicada com a expressão das emoções codificadas numa peripatética da paixão e do desejo que as figuras enunciam. Ao desvelar o movimento dos corpos no tempo, a iconologia possibilita a compreensão do acto de retratar como um acto situado num tempo e espaço específicos dependente do autor ou autora e da sociedade que os produziu. Porém, o acto de retratar condensa em si mesmo uma miríade de associações culturais que se organiza em camadas para a produção de uma representação. Muito frequentemente, estas fazem ressonância a textos e discursos não oficiais operando subliminarmente nas fissuras de significação. 22 Geografias do Corpo Cada retrato e cada discurso sobre o corpo é sempre resultado da ideologia e política reinantes, ora celebrando-as ora contestando-as. Muitas vezes, só a interpretação atenta das fissuras de significação possibilita a emancipação do corpo ou corpos representados dado o modo como a figuração tem subjacente complexos processos de codificação cultural. Integrando sistemas simbólicos, a figuração dos corpos tem servi- do como modo de legitimar políticas hegemónicas de representação dentro das quais corpo humano e corpo da terra são apresentados como um todo orgânico. Neste percurso, a essencialização dos corpos e da paisagem por via das representações funcionou como processo de ‘naturalização’ da diferença. A indexação de tipos fisionómicos a paisagens ‘naturais’ configura um dos mais graves mal-entendi- dos da modernidade, tendo aberto caminho para a cristalização no espaço e no tempo dos processos de formação de subjectividade. Encapsulados em sistemas de signos geográficos, tais processos en- contram-se ainda enredados na falácia do Eu/Outro forjados pelos regimes nacionalistas e imperiais. Uma estética de representação está, assim, associada a uma ética de representação. Ao sermos con- frontados com a representação de um corpo o nosso sistema emocio- nal e afectivo é activado e, paralelamente, somos transportados para uma geografia ‘concreta’. Ao não ser inocente, a arte de cenarização dos corpos operou até um limite em que o próprio corpo já dispensa o ‘cenário’ por remeter para um imaginário geográfico de que somos prisioneiros. Encarada como uma potentíssima arte cenográfica, a ciência geográfica moderna escreveu mundos e inscreveu corpos nos mundos, ditando as relações entre eles (Azevedo, neste livro). A leitura destas geografias foi-nos cautelosa e perseverantemente ensinada por forma a que cada um de nós pudesse encontrar (?) o ‘seu lugar’ num tão ardiloso sistema de signos. Deste modo, foram- se configurando os corpos, modelados, torcidos, ocultados, oblitera- dos, disciplinados, os corpos da Lei no espaço da Razão. Práticas Se é certo que não podemos aqui traçar uma genealogia completa das práticas do corpo na Geografia, queremos pelo menos esboçar 23 Introdução uma trajectória de preocupações que conta já algumas décadas, en- dereçando as formas como as práticas do corpo se articulam com o espaço, o produzem e o constituem. A corrente de pensamento da time-geography, desenvolvida na Geografia sobretudo por Torsten Hägerstrand, incorporava a ideia de que os pulsares da cidade, os fluxos das pessoas em rede, os limites do tempo e movimento, constroem ritmos corporizados que se deviam tentar cartografar, ul- trapassando o limite das duas dimensões estáticas dos mapas conven- cionais. Se é certo que a nossa natureza corpórea nos faz vivenciar o espaço a partir de diferentes lugares, a vontade de Hägerstrand em ‘transcender o mapa’ resultou em larga medida numa abstrac- ção, representação e desmaterialização dos movimentos corpóreos no tempo, e numa geografia de ‘meras’ trajectórias. Se o facto das linhas nos diagramas não estremecerem não significava a ausência e consideração da importância da violência na teoria como um todo,11 a sua visão da corporalidade do sujeito tinha no entanto uma relação mais forte com a construção de um sistema de representação objec- tivo e neutro, do que com o confronto da subjectividade das práticas corpóreas. Enquanto a time-geography frequentemente se confinou a lidar com o mensurável e o visível,12 a rhythmanalyse de Lefebvre su- geriu actividade, e tentou dinamizar e abrir as representações da ci- dade aos conhecimentos itinerantes e tácteis dos seus participantes. Para Lefebvre,13 no contexto da sua trialéctica espacial, o espaço vivido pertence à carne, às práticas espaciais, aos gestos corporais, à actividade sensual. A diferença entre este espaço vivido e o abs- tracto reside precisamente em que este último se tenta dissociar das práticas, dos ritmos e texturas do corpo, mesmo quando não há uma oposição firme entre ambos. Em todo o caso, esta trialéctica perde a sua ressonância política e analítica quando tratada meramente em abstracto, pois necessita de ser corporizada com os tecidos da vida, com as relações da vida real e com eventos. Mais do que qualquer outro teórico social contemporâneo, Michel Foucault dirigiu a sua atenção para o corpo, estudando-o como o alvo da operação de formas modernas de poder, entendidas como partes integrantes das micro-práticas do quotidiano. Os estudos de 24 Geografiasdo Corpo Foucault sobre os regimes da prisão (ver Philo neste livro), do asilo e da clínica, bem como a história da sexualidade, foram fundamen- tais para a compreensão do corpo como um objecto de processos de disciplina e normalização. Através da sua obra, ainda que centrado sobretudo nas práticas discursivas, o corpo passou a ser entendido como uma metáfora para a discussão crítica que liga poder, conheci- mento, sexualidade e subjectividade (ver Pimenta neste livro). Numa visão em que o corpo humano não é percebido como uma entidade separada do resto do mundo, a sua ontologia reside justa- mente na forma como co-evolve com outros objectos, incorporando- os em diferentes partes do corpo biológico. Esta é uma perspectiva significativamente diferente da defendida por várias feministas, na qual se equaciona a carne com uma espécie de distinção primordial. Assim, se por um lado é ingénuo ignorar as características especí- ficas da carne (ver Haraway14 e Sarmento neste livro), é também necessário ultrapassar a noção construtivista de que o corpo é sim- plesmente uma superfície de inscrições, frequentemente reduzido a uma ‘imagem’. Consequentemente, o espaço do corpo pode ser en- tendido como tendo múltiplas camadas, cada uma das quais conten- do as relações e práticas do corpo com objectos e outros espaços. No contexto de um ‘performance turn’ nas ciências sociais, a re- cente reorientação da geografia cultural em direcção às práticas, folgando as amarras do comprometimento às representações, tem constituído um exercício entusiasmante que tem implicações pro- fundas na forma como os geógrafos vêem, percebem e estudam o corpo. Há como que um regresso a vários ‘outros’ ‘scapes’ senso- riais do palato, da audição e do olfacto, relativizando o avassalador império da visão (ver Azevedo neste livro). Deste modo, um dos mais interessantes desenvolvimentos da Geografia humana na últi- ma década prende-se com o avanço da ‘teoria não representacional’ ou ‘teoria das práticas’,15 que, fortemente inspirada em Michel de Certeau e Walter Benjamin, tenta compreender os nossos ‘mais do que humanos’ e ‘mais do que textuais’ mundos multi-sensoriais.16 O ‘representacional’ e a epistemologia construcionista, bem definidos pela escola da geografia cultural da paisagem, têm vindo assim a ser criticados com base numa suposta fixação, enquadramento e mumi- 25 Introdução ficação de tudo o que agora se defende que deve transparecer como bem vivo. Para Thrift,17 é a acção corporizada, com o seu carácter incompleto e em constante transformação, que oferece a mais pode- rosa fonte para uma poética wittgensteiniana das práticas. Esta inflexão liga-se fortemente ao movimento das ciências sociais que se foram inspirar nas artes performativas e na dança, nos estudos de teatro, trazendo não só a ideia de que os imaginários sociais não podem ser contidos dentro de explicações científicas rígidas, mas também uma nova abordagem do corpo em que, no contexto de um ‘affective turn’, se procura um equilíbrio entre este desenvolvimento e a permanência de um certo humanismo. Ainda que seja impraticável condensar aqui as ramificações da ‘teoria não representacional’ na Geografia, no contexto da Geografia cultural e da Geografia do corpo em particular, é importante destacar o papel de uma certa inflexão metafórica e substancial de ‘texto’, ‘discurso’ e ‘representação’, para ‘prática’ e ‘performance’, e para as micro-geografias do quotidiano. O argumento que defende um registo de afastamento da desconstrução das representações (note-se no entanto que a teoria não é anti-representacional), e uma explora- ção próxima do não-representacional baseia-se no facto de o ‘texto’ valorizar o escrito e falado em detrimento das práticas e experiên- cias multissensoriais.18 A metáfora do performativo, hoje uma das mais persistentes nas ciências sociais, recupera e robustece análises fenomenológicas, e permite uma forma de perceber o significado não como residindo em algo, mas como gerado através de processos quotidianos.19 No entanto, a entrada da performatividade na geografia e do re- torno, pelo menos em parte, da fenomenologia, pode implicar um possível (e pouco desejável) afastamento da economia política do género.20 Esta inflexão inspirou-se mais no trabalho feminista so- bre o corpo, e sobretudo nas teorias da performance do género e da sexualidade de Judith Butler,21 do que em trabalhos sobre estudos da dança (a dança usada extensivamente por Thrift como consti- tuinte de identidade e identificação social através da performance). O regresso ao corpo e às práticas do corpo aparece assim em duas direcções. Por um lado há uma tentativa de compreensão e desnatu- 26 Geografias do Corpo ralização da diferenciação social de corpos através de práticas. Por outro lado há um ensaio da noção mais genérica e celebradora da natureza corpórea da existência humana. Os artigos deste livro Ana Francisca de Azevedo cria a ideia de desgeografização do cor- po como mobile através do qual emergem novas políticas de lugar. Enfatizando a enunciação de práticas generativas do espaço assen- tes sobre quadros relacionais alternativos, este capítulo convoca vo- zes diferenciais como as de Donna Haraway, Bruno Latour ou Irit Rogoff para a construção de um texto que rejeita quadros analíticos fundados sobre o binómio primeiro espaço/segundo espaço, ou na- tureza/cultura. Falando desde o seu próprio corpo, entendido como superfície de resistência e negociação, a autora declina uma visão da terra ’naturalizada’ pelos sistemas de signos geográficos que sus- tentam as modernas espacialidades, propondo a ruptura com uma geografia do sujeito único. Eduardo Brito-Henriques apresenta uma reflexão sobre as geogra- fias particulares que as múltiplas possibilidades do corpo trans ou pós-humano geram nas sociedades contemporâneas. Apoiando-se no conceito de utopianismo na hipermodernidade, o autor percorre as ideias do corpo como objecto de consumo, das novas práticas biomédicas e biotecnológicas sobre corpos prontos a esculpir, e do papel da intromissão tecnológica no esbater e fragmentar da ontolo- gia e das fronteiras entre corpos. Roberta Gilchrist, uma das primeiras investigadoras a desenvolver uma abordagem feminsta em estudos de Arqueologia, descreve e interpreta documentos arqueológicos e históricos com o intuito de penetrar o mundo da afectividade das religiosas da Idade Média; uns e outros parecem apontar para a existência de um verdadeiro mundo de afectos das mulheres em situações de clausura através da personalização e transposição interior do erotismo. Resgatando-nos para o mundo das geografias fílmicas, Ben Hoff aborda a complexidade de estéticas alternativas postas em jogo por filmes como ‘art house’, analisando o caso específico da obra Sexual Dependency de Rodrigo Bellott. Aquilo de que se trata é pois de 27 Introdução indagar o grau de eficiência de novas técnicas fílmicas usadas para a aproximação a problemáticas específicas como o corpo e a sexuali- dade, manifestadas de modo diferentes em diferentes culturas. Mas o grau de problematização proposto pelo autor inclui a relação entre as técnicas fílmicas e as técnicas de tradução, na medida em que as questões de interpretação e compreensão das temáticas tratadas en- contram-se em dependência directa com as culturas das audiências e a cultura ‘original’ de cada filme. Em “Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de Moon Palace”, Joana Lima analisa o plano das representações espaciais propostas por Paul Auster, argumentando que perceber o corpo e a linguagem em Moon Palace implica, necessariamente, pensar a Viagem e o Lugar. A autora sustenta que as viagens físicas prota- gonizadas por Marco Stanley Fogg e Thomas Effing, na geografia urbana e no deserto, e as suas experiências nas cavernas de Central Park e do Utah traduzem momentos de exploração individual, tra- jectos nas coordenadas da história e do mito, percursospela escrita, procura de sentidos, ou seja, obrigam ao reconhecimento da con- dição fragmentária da identidade, propiciam reflexões sobre a ma- triz mítica e cultural na qual assenta o pensamento norte-americano, olham e ensaiam o próprio processo da escrita. Arriscando avançar com um conjunto de ‘impressões pessoais’ as- sociadas aos modos recorrentes de expressão territorial do conheci- mento científico, Teresa Mora revela-nos um percurso de resistência aos ‘mandamentos’ que regulam a cultura científica. Juntando-se a outras vozes, como a de Judith Schlanger, que entendem a lingua- gem do conhecimento como uma linguagem inerentemente espacial, o vasto caminho abraçado pela autora vai desde uma profunda análi- se da geografia da razão kantiana a uma contundente aproximação à utopia social de Gabriel Foigny, com o propósito de aprofundamen- to de uma problemática específica; a da articulação do corpo com a razão. Chris Philo apresenta um texto em que analisa a importância para a Geografia humana, e para a Geografia da população em particular, do que Foucault designa por ‘arte das distribuições’. Começando por analisar os textos do sociólogo Krantowitz, o autor debruça- 28 Geografias do Corpo se no trabalho de Foucault, e em específico nas suas proposições biológicas da vida e da morte (‘corpos cheios de vitalidade, triste- mente decadentes ou prematuramente levados a um termo’), e na exposição crítica das múltiplas formas como estas proposições têm sido constrangidamente manipuladas por ‘soberanos’ com o poder de deixar viver ou fazer morrer. Philo defende que é no escavar as minúcias das actuais prisões e instituições similares no passado e presente, que os geógrafos devem analisar as marcas sobre corpos acumulados em população através do espaço, enquanto exercícios de geografia micro-populacional aplicada. José Ramiro Pimenta defende que pode detectar-se uma configu- ração opositiva entre Said e Foucault no que diz respeito à prática corporeal do tratamento do Tempo nas respectivas teorias históricas; se a questão da exibição da sexualidade se revelou central na deter- minação dos pressupostos existenciais da teoria foucaultiana, vemos igualmente que em Said um ponto recorrente da sua argumentação passa pela des-sensualização ‘activa’ do estereótipo do ‘oriental’, em ambos os casos se pretendendo criar um contexto eficiente de afirmação da própria individualidade intelectual e política. João Sarmento apresenta um artigo bipartido: numa primeira parte centra a discussão na espacialidade e performance do seu próprio corpo numa viagem forçada pela América do Norte; na segunda parte explora a diferença, inquietação e marginalidade que a cor da pele provoca na Lisboa pós-colonial, partindo de um jogo de futebol amigável. A ideia principal que o autor tenta destacar é a de que ao mesmo tempo que o corpo tem uma geografia histórica a partir da qual se pode tentar compreender a produção do poder, do território e da desigualdade, a nossa própria tentativa de cartografar estas mes- mas geografias é corporizada e inescapável. Notas 1 A. Damásio (2000). 2 G. Valentine (2007). 3 Pimenta, J. R., J. Sarmento e A. F. Azevedo (2007). 4 J. Butler (1993). 5 H. Nast (1998). 6 D. Bell e G. Valentine (1995). 7 A. Jagose (1996). 8 M. Castells (1983). 9 R. Phillips (2007). 10 D. Bell (1995). 11 M. Gren (2001). 12 M. Crang (2001). 13 H. Lefebvre (1991). 14 D. Haraway (1991). 15 N. Thrift (2008). 16 H. Lorimer (2005: 83). 29 Introdução 17 N. Thrift (1997, 2008). 18 C. Nash (2000). 19 N. Thrift (2008). 20 C. Nash (2000). 21 J. Butler (1990, 1993). Referências bibliográficas Azevedo, A. F. 2008. A Ideia de Paisagem. Porto: Figueirinhas. Bell, D. 1995. [Screw]ING GEOGRAPHY. 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Sarmento e A. F. Azevedo 2007. Geografias pós-coloniais. Porto: Figueirinhas. Rose, G. 2003. Family photographs and domestic spacings: a case study. Transactions of the Institute of British Geographers 28: 5-18. Thrift, N. 1997. The still point: resistance, expressive embodiment and dance. In Pile, S. e Keith, M. (eds.) Geographies of Resistance. Londres: Routledge. Thrift, N. 2008. Non Representational Theory. Space, politics, affect. Londres: Routledge. Valentine, G. 2007. Theorizing and Researching Intersectionality: A Challenge for Feminist Geography. The Professional Geographer 59(1): 10-21. Desgeografização do corpo, uma política de lugar A n a F r a n c i s c a d e A z e v e d o Introdução Apesar da objectiva conexão, não é simples estudar as relações en- tre o corpo e o espaço. Muito menos é frequente tal abordagem por parte da Geografia. Embora (ou talvez porque) tradicionalmente de- finida como ciência que se preocupa com as relações entre o Ser Humano e o Meio Ambiente, a ciência geográfica tem descurado sistematicamente a problemática do corpo e do sujeito. Trago-a aqui e agora, por me parecer absolutamente crucial para o movimento actual de recolocação do âmbito, práticas, conceitos e problemáticas geográficas. Pensar o espaço através do corpo, por mais óbvio que seja, foi aquilo que a ciência geográfica não fez, pelo menos nos últimos dois séculos. Para ser entendida como ciência, a moderna ciência geográfica dispensou o corpo, ou, posto de outro modo, aproveitou aquilo que dele julgou interessar; essencialmente a mente e a visão (o instrumento da Razão e o instrumento usado para confirmação da Razão). Tal como aconteceu no conjunto da ciência moderna, o desenvolvimento de toda uma parafernália de próteses da visão para a legitimação da Razão culminou com uma crise das representações a que hoje não sabemos bem o que fazer. Tal acontece também com uma metageografia para a qual se esgotaram conceitos como Norte ou Sul Global. Tal acontece, de igual modo, com o nosso corpo, 32 Geografias do Corpo entre projectos de bioestética e rotas de comercialização. Não por acaso, a crise das representações ser frequentemente entendida (e designada) como crise do sujeito.Entendido como uma das mais poderosas representações produzidas na modernidade pela cultura ocidental, o mapa político mundial ‘naturaliza’ esta crise. O mapa da diversidade tornou-se (se alguma vez terá sido algo mais) o mapa da desigualdade e esta construção panorâmica reflecte-se antes de mais no nosso corpo é, por si mesma, uma geografia claramente in- carnada. Como estrutura epistémica, a Geografia foi responsável pela or- ganização de uma ordem de conhecimento estabelecida nos centros de poder, os mundos metropolitanos imperiais. Funcionando parale- lamente como ‘teoria da cognição e como sistema de classificação, como modo de localização e como arena de histórias colectivas na- cionais, culturais, linguísticas e topográficas’,1 a Geografia é respon- sável pela produção de um espaço homogéneo que se tornou ordem de conhecimento através de medidas universais de indexação da ter- ra. A teorização crítica de um corpus de conhecimento geográfico, dentro do qual a ideia de paisagem detém importância crucial, reme- te para o repensar dos modos através dos quais se ‘naturalizaram’ questões de posicionalidade, de poder e de autoridade para nomear ou para submeter ‘outros’ a categorias identitárias hegemónicas. Inúmeros autores têm vindo a dedicar-se à revisão do conhecimen- to disponibilizado pela Geografia por forma a trazer à superfície as estruturas de poder que se escondem sob os discursos científicos, e que afectam as relações entre os sujeitos e os lugares. Perspectivadas neste quadro, noções como paisagem, lugar e espaço constituem exemplares riquíssimos de aproximação ao pensamento moderno, dentro de um horizonte revisionista. Através delas, operou-se a es- pacialização de relações sociais e de convenções epistemológicas, pela acção de narrativas sócio-culturais geograficamente informa- das. Ao longo deste capítulo, tentarei abordar este conjunto de pro- blemáticas, apresentando algumas das mais relevantes abordagens que têm contribuído para a recolocação do corpo na actividade de construção científica. 33 Desgeografização do corpo, uma política de lugar 1. Das relações entre espaço, visão e produção de um conhecimento descorporizado A análise das estruturas de subjectividade que informam a Geografia pode, em grande medida, ser efectuada pela desconstrução do modo como conceitos-chave em Geografia participam num processo acti- vo de espacialização que se encontra associado às práticas de retra- tar e designar as propriedades físicas dos lugares. Neste sentido, o processo de espacialização geográfica desenvolveu-se pelo trabalho de estruturas de conhecimento e de imagens situadas circulando sob a ilusão de um ‘campo de transparência’.2 Este campo tem vindo a ser legitimado pelo trabalho conjunto da ciência, arte e tecnolo- gia. Como forma de territorialização do conhecimento, o estabele- cimento de campos disciplinares como o da Geografia permitiu a afirmação do domínio lógico-positivista e de um campo de repre- sentação estruturado em torno da moderna noção de espaço e da centralidade da visão. A centralidade da visão para a determinação empírica do mundo percebido, é discernível nos discursos filosófi- cos e científicos que asseguraram continuidade ao projecto ocidental do Humanismo. Integrando um modelo de subjectividade, a determinação de um campo de visão em que um ‘olho objectivo e inocente’3 assegura a afirmação de um observador não situado, foi legitimada pelos credos de verdade científica e pela posta em prática de um campo ‘neutro’ de percepção em torno do qual se organizaram o sujeito conhece- dor e o objecto conhecido. Neste quadro, o espaço surge como uma superfície de representação em que se projectaram identidades de lugar e em que se articularam práticas culturais que usaram a ima- gética como forma de mobilização de discursos ideológicos com- prometidos com a ilustração da sua própria legitimidade. Activando respostas estéticas e científicas, assim como éticas e emotivas, a moderna ideia de paisagem activou uma arena de negociação cul- tural das relações entre ser humano e território promovidas por um crescente conjunto de fragmentos representacionais (pictóricos e verbais, entre outros)4. Apesar da descontinuidade e da heteroge- neidade das suas manifestações, tais geografias imaginativas vieram robustecer a superfície de visualização que mediava a relação entre 34 Geografias do Corpo sujeito e objecto, afirmando a convicção num espaço homogéneo e absoluto, a ilusão de um espaço transparente independente dos dife- rentes corpos e sujeitos. Como ‘aparato de investigação, verificação, vigilância e cognição que serviu de suporte às tradições de cientificidade ocidental pós- iluminista e às tecnologias modernas’,5 a superfície de visualização que se produziu sob o efeito da ilusão de um espaço transparente e unitário integra as práticas espectatoriais responsáveis pela me- diação entre o mundo material e as subjectividades psíquicas. Ao integrarem uma superfície de visualização, a linguagem e a prática geográficas recodificaram a paisagem como sistema de significação e como experiência, com base nessas mesmas práticas de observa- ção. Entendidas como imagens credíveis do mundo físico ou como relíquias de lugares que pontuam um retrato pitoresco ou sublime do mundo,6 as representações espaciais puseram o observador em contacto com o território construído forjado pela acção de um ima- ginário geográfico dominante, um espaço cultural profundo que a viagem, o movimento e as tecnologias especializadas na produção da ilusão do real nutriram avidamente. Subjacente a este espaço, está o desejo de tomar posse implicado nas inúmeras estratégias de visu- alização e aparatos tecnológicos para reprodução de imagens. Corpo do território, corpo do sujeito e corpo do conhecimento viram-se unidos por uma peculiar construção de espaço, a qual opera sob o efeito mediador de uma superfície de visualização disposta como modo de aceder ‘com distância’ à experiência de lugar. Engendrada como modo de aceder à distância ao Outro desco- nhecido e não ocidental e paralelamente como modo de cristalizar a territorialização da mesmidade do Eu ocidental, uma superfície de observação em que se especializaram as mais diversas técnicas e tecnologias colocou a percepção visual como mecanismo central para se aceder à Verdade e à Razão. Mas, como se estruturou esta superfície de observação gerada pela cultura ocidental moderna? Como se interceptaram tecnologias da percepção e mecanismos de representação por forma a engendrar tão poderoso aparato episté- mico? Quais as relações entre uma obsessão cultural pela ‘luz’ e pelo sentido de iluminação pela Razão e a construção de um espaço 35 Desgeografização do corpo, uma política de lugar abstracto cartesiano como elemento estruturante das modernas es- pacialidades? O regime de poder e conhecimento que se preparou com recurso às tecnologias como a câmara obscura, encontra-se em íntima ligação com a paixão setecentista pela matematização da natureza associa- da à prática de inventariar o território7. Isto terá levado a uma nor- malização do espaço transformando-o num plano abstracto, espaço em que as relações entre pontos permitiam identificar as posições relativas dos lugares e explorar novos modos de representação. Ao enfatizar o papel hegemónico da visão na cultura ocidental, Martin Jay8 salienta que ‘a chegada deste regime dominante foi preparada por uma constelação de inovações sociais, políticas, estéticas e téc- nicas no princípio da era moderna, que se combinaram para produzir o que em retrospectiva veio a chamar-se a racionalização do campo de visão’. O autor situa as origens do regime ocularcêntrico moder- no na ambiguidade criativa da filosofia cartesiana, embora encontre antecedentes para esta tendência tanto nos períodos medievais como na Antiguidade Clássica. Ao perpetuar a hegemonia da visão (em detrimento dos outros sentidos), o código visual definidopelo huma- nismo renascentista situava a visão humana no centro dos sistemas de representação. Tratava-se portanto de desenvolver uma ideologia visual que respondesse aos postulados do Humanismo9. Esta ideologia visual associada à tradição ocidental centrada num ponto de vista privilegiado, é também explorada por Norman Denzin10 que sugere que por ser intensamente realista este código vi- sual teve o efeito de substituir outros sistemas de conhecimento e re- presentação. Criando uma presença fixa para o sujeito (observador), tal forma de perspectivar o mundo veio centrar a ‘verdade da expe- riência’ no aparelho ocular e tecnologias decorrentes, tornando-a o centro daquilo que se pretendia representar. Deste modo reproduzia- se, segundo Denzin,11 a ideologia do sujeito humanista, um sujeito que corporizava o culto renascentista do individual’. De acordo com estes autores, tal atitude terá dado lugar a um ‘olho descorporizado’, um olho espectatorial mais do que incarnado, ‘o olho não pestane- jante de uma superfície fixa de contemplação’.12 A celebração da vi- são como sentido inaugural da percepção foi acompanhada nas artes 36 Geografias do Corpo por uma separação do figurativo da sua tarefa textual, por aquilo que Jay designa como a ‘desnarrativisação do ocular’. Este facto parece ter acarretado uma grande mudança no modo de ler o mundo como texto inteligível (o ‘livro da natureza’), passando este a ser encarado meramente como objecto observável na lógica de uma ordem visual dominante estabelecida pelos sistemas de racionalidade científica. Para James Duncan,13 funcionando como mecanismo de ‘naturali- zação’ das representações, todo este processo veio enfatizar a ênfase no visual e nos discursos da mimese, produzindo uma marginaliza- ção progressiva de outros modos de representação. A este propósito Jonathan Crary14 defende que a ‘posição assegurada ao sujeito no espaço vazio interior (da câmara obscura) era pré-condição para o conhecimento do mundo exterior’. Tal posição era legitimada pela distensão de um espaço isotrópico e por um ponto de vista ‘vanta- joso’ que garantia o controlo da representação pelos grupos autorais dominantes. Este tipo de função autoral e jurídica, enfatiza Derek Gregory,15 assegurava a possibilidade de uma certo policiamento do visual relativamente ao funcionamento da ordem social, funcionan- do como meio de visualizar espacialmente os objectos e de esta- belecer a correspondência entre mundo exterior e representação16. Donde Duncan17 insistir na importância da evolução das tecnologias da visão e da percepção, nomeadamente a perspectiva linear, a câ- mara lúcida e outros subterfúgios tecnológicos que visavam a repli- cação fiel da natureza, perspectivados como instrumentos cruciais para o desenvolvimento de uma tradição de objectivismo na cultura ocidental. Entendidas metaforicamente por Duncan como um ‘catálogo de documentos da razão’,18 as tropes de ilustrações produzidas com o auxílio destas tecnologias funcionavam como testemunhos rigo- rosos da estética moderna ocidental e das novas políticas de lugar subjacentes ao acto de retratar e catalogar o mundo. Entre elas, as representações de paisagem como forma de estruturação ideológica do território adquiriram papel crucial, tornando-se ‘expressão sig- nificativa de uma tentativa histórica de associar a imagem visual e o mundo material’.19 Implicando o aperfeiçoamento tecnológico e sensorial de um determinado ‘modo de ver’20 que veio a tornar- 37 Desgeografização do corpo, uma política de lugar se colectivo pela ‘naturalização’, a ideia de paisagem integrou o acto de visualizar o espaço e a relação com uma superfície de ob- servação-contemplação. Como parte integrante de uma ideologia do Humanismo, esta nova relação entre o ser humano e o território tinha subjacente um conjunto de acções sociais e culturais que con- tribuíram para o projecto de representar o mundo numa superfície plana. Os modos de presença associados à concepção volumétrica de espaço proposta por autores como Lock, Newton, Descartes e Gassendi, parecem ter vindo legitimar esta ideologia, assim como a natureza do logocentrismo ocidental e dos mapas políticos que se foram definindo dentro das representações de um espaço universal. Neste contexto, a legitimação de um espaço uniforme e isotrópico pelo sistema de valores oitocentista teve como resultado a absor- ção do lugar pelo espaço como categoria analítica fundamental e como forma de inventariar o mundo redescoberto.21 A distensão de um espaço homogéneo e cartesiano estaria, então, profundamente associada àquilo que Gregory22 designa por apropriação visual do mundo característica da cultura ocidental, entendida pelo autor como uma máquina de representação (e apropriação) do real. Segundo Gregory,23 a evolução do regime ocularcêntrico da modernidade veio servir os poderes económico e político em consolidação, numa era em que os mecanismos imperialistas passaram da colonização territorial à colonização generalizada das representações. Neste sen- tido, a narrativização do espaço através dos cadernos de viagem e outras crónicas de lugar, assim como a esteticização da paisagem enfatizada pelas mais diversas técnicas de representação, afirma- ram-se como dois centros performativos cruciais dessa ‘máquina’ propagadora do imaginário geográfico europeu sobretudo a partir do século XVIII. Profundamente codificada através das artes da pai- sagem, a experiência de lugar encontrou no espaço matemático da geometria euclidiana subterfúgio para a ‘naturalização’ do domínio do conhecido, bem como para a formação social que subjaz a ideia de paisagem como poderosa construção cultural. 24 Implicada com as ilusões de transparência que encontram nas regras da geometria e no ponto de vista descorporizado formas de 38 Geografias do Corpo tratar o espaço como objecto rigorosamente inteligível, a ideia de paisagem constituiu-se integrando a ‘naturalização’ de estruturas epistémicas e respectivas práticas significantes como domínios de uma visão totalizadora ou de uma meta-visão que operou, em grande medida, pela mobilização de um regime ocular em que se especia- lizou a cultura ocidental moderna. Neste processo, a normalização do espaço pela sua transformação conceptual num plano abstracto, um plano geométrico constituído por formas ideais, permitiu a ex- perimentação e a exibição das novas relações espaciais. Tais formas eram por sua vez perspectivadas de acordo com um ponto de vista cuja essência era a própria posição abstratizada de um ponto exterior ao plano. Neste sentido, Edward Casey25 salienta que a idealização transcendental do espaço característica da cultura ocidental e radica- lizada pelos sistemas racionais de pensamento tornou o espaço num sistema universal de coordenação e medida. Transformado numa entidade homogénea e planiforme, ‘este espaço é sujeito à estriação linear por trajectórias precisas e é projectado como é visto – como numa perspectiva monofocal – permitindo a reprodução dos seus conteúdos indiferentemente em lado nenhum’.26 Volumétrico e pu- ramente relacional, este espaço cartesiano alicerçou uma espécie de primazia da posição do observador na lógica de uma teoria moderna do espaço que estruturou as novas formas de ver o mundo. Uma teo- ria que tinha subjacente o ponto de vista alegadamente privilegiado do observador27. Tal ponto de vista determinava, por sua vez, toda a organização do espaço no plano, um espaço cenográfico e volu- métrico, um espaço de representação. Para Martin Jay verificou-se, neste processo, ‘um assalto ao significado substantivo do espaço, para este se tornar num sistema uniforme e ordenado de coordena- das lineares’.28 De acordo com este autor, foi este espaço infinito do plano que diferenciou a visão dominante do mundo moderno das predecessoras, uma noção congénita não apenas à ciência moderna mas também ao sistema económico capitalista emergente. Erguida combase na reificação de um espaço descorporizado, enquanto característica estruturante das modernas convenções da cultura ocidental, uma concepção moderna do espaço unitário apre- endia separadamente os seus elementos constitutivos, não permitin- 39 Desgeografização do corpo, uma política de lugar do a compreensão profunda das relações entre a componente física (natureza), a componente mental (abstracções formais de espaço), e a componente social (o espaço de acção e conflito humanos).29 Tendo subjacente um modo capitalista de produção, as espacialida- des modernas estruturaram-se com base numa perspectivação do es- paço como objecto inerte e homogéneo.30 Ao denunciar a tendência moderna para espacializar e o modo de pensar em termos de espacia- lidade, como resultado de uma estratégia capitalista de acumulação, Henry Lefebvre31 contesta a ideia de espaço uniforme como superfí- cie passiva para a acção de reprodução social a qual é veiculada pelo trabalho das representações. Para Lefebvre,32 a reconsideração deste espaço implica a ‘reconstituição do processo desde a sua génese ao desenvolvimento do seu significado’, indo de uma consideração dos fenómenos no espaço para uma consideração da própria produção do espaço. Assim, as representações de espaço são concebidas como o domínio simbólico do espaço do capital. A relação entre este tipo de espaço e a formação de uma superfície de visualização em torno da qual se estruturam as relações entre o ser humano e o território remete para a conexão entre os regimes de poder, verdade e conhe- cimento que se organizaram durante o período moderno. Na sua tese historicista do espaço, Michel Foucault analisa as rela- ções entre os mecanismos de poder e conhecimento e a constituição de superfícies estáticas de visualização. Para o autor, a constituição de superfícies ou corpos espaciais como expressão da acção das ins- tituições sociais dominantes, faria parte dos mecanismos de controlo e vigilância accionados pelas convenções de uma ordem racional com o objectivo de impor as suas categorias epistémicas. Nesta sen- da, o aperfeiçoamento dos regimes scópicos modernos respondia a esta necessidade e o Panóptico de Bentham (como paradigma das superfícies espaciais oitocentistas) é apenas um entre os inúmeros mecanismos passíveis de objectivar todo um mundo social constitu- ído espacialmente através de nódulos e canais de dispersão não hie- rarquizáveis e mutuamente irredutíveis. De facto, a visão tornou-se o modelo ocidental de cognição, encontrando-se absolutamente associado ao desenvolvimento da ciência. Dentro deste modelo, a observação do mundo ‘natural’ tem papel determinante para um 40 Geografias do Corpo quadro de legitimação empírica da verdade perceptiva. Como uma série de constructos conceptuais sem verificação ‘real’ a não ser pela acção de um Olho transcendental (o olho observador da ciência ba- coniana), a história da ciência ergueu-se sob o artifício da experiên- cia visual como ‘percepção natural.’33 Um regime visual específico legitimou pois uma série de categorias culturais que posicionaram uma noção ocularcêntrica de Razão como verdade universal. A cum- plicidade entre uma razão ‘iluminada’ (uma fé intensa na evidência visual) e o controlo ocular dos indivíduos ou o domínio visual, viria a objectivar-se com a passagem para o século dezanove e pela trans- ferência da ideia de um espectador ideal-transcendental (subjacente à superfície transcendental de observação da filosofia cartesiana) para a ideia de uma totalidade de observadores (subjacente à super- fície empírica de observação da ciência moderna).34 Ao convocar um conjunto de teorias que advogam o papel do- minante de uma superfície de visualização para a produção de co- nhecimento científico, tento clarificar as instâncias de produção de subjectividade que operaram em consonância com um modelo de cognição para a construção do conhecimento descorporizado. Já na década de 1970, Foucault chamava à atenção para o facto de que, o ‘poder soberano’ da superfície empírica de observação que se ar- ticulou em torno desta ideia (a de uma totalidade constitutiva de observadores), advém da sua capacidade de se sobrepor às super- fícies ‘sólidas e opacas’ do corpo. Proporcionando um contexto de objectividade que suplantava as verdades ideais que compunham a ‘claridade clássica’ do Iluminismo, esta superfície empírica de ob- servação é paralelamente a superfície de individualização celebrada pelos românticos. Erguida como um poderoso campo epistémico dentro do qual através desta superfície uma realidade objectiva se abre a um olho inocente, ‘o mito de uma superfície de visualização pura como linguagem pura’35 alicerçou um regime de conhecimento assente sobre a ideia de um olho absoluto. A complexa interacção entre linguagem e visão que estrutura a ciência moderna, estabelece assim uma dialéctica entre palavra e imagem como forma de aceder ‘à mudez dos objectos’.36 De resto, uma dialéctica que legitimou a ficção humanista de um sujeito constitutivo. Através dela, justifi- 41 Desgeografização do corpo, uma política de lugar cou-se uma ‘coerência’ espacial que urgia mapear para um supor- te bidimensional, tarefa que a representação em paisagem com as suas qualidades miméticas exponenciava, transformando o espaço num trompe l’oeil universal para consumo doméstico. Neste proces- so, aquilo que um campo anónimo de visão anunciava (a superfície empírica de visualização) era a própria descorporização deste Olho absoluto da ‘carne do mundo’ e da experiência vivenciada.37 Arreigado à ‘verdade’ da observação, o discurso científico moder- no encontrou na superfície empírica de visualização recurso para alcançar a ‘transparência genuína’ do conhecimento. Como dispo- sitivo que se dissolve em invisibilidades por forma a revelar uma verdade unívoca ou um sentido não ambivalente dos factos analisa- dos, a superfície empírica de observação estabeleceu um regime de conhecimento empenhado com a legitimação da unidade da palavra e da imagem.38 Dominado pela fé no poder da observação directa assim como da observação mediada pela tecnologia, o discurso cien- tífico comprometeu-se com a ordenação taxonómica dos fenómenos organizados no espaço visível do plano. Tornada num registo trans- parente da superfície de observação, a linguagem científica integrou o conhecimento visual como ordem dominante resgatada a um con- junto de ‘testemunhas ausentes’; o sujeito observador e soberano que apenas pode ser inferido pela representação. O campo epistemológico visualmente constituído transformou-se, deste modo, no domínio de um meta-sujeito do conhecimento, um sujeito alegadamente neutro que percebia o mundo do exterior e que perseguia uma visão pura dos fenómenos, a qual ‘deveria ser transcrita na materialidade do espaço’.39 Este sujeito da representa- ção, o meta-sujeito observador característico das Ciências Naturais e das Ciências Humanas, encontrou-se implicado na construção de um projecto antropocêntrico legitimado pela posição de um sujeito sintético e unificado como o proprietário de uma visão universal. A ontologia de uma superfície de observação que requeria um sujei- to observador e um Outro objectualizado (observado), justificava, assim, uma metafísica da presença alicerçada sobre uma episteme que era nutrida pelo poder de objectificação de um regime ocular específico. Neste quadro, o policiamento visual dos corpos e dos es- 42 Geografias do Corpo paços efectuado por meio de uma superfície de observação, respon- dia à necessidade de representação de um sistema auto-suficiente. A criação de configurações espaciais ‘consistentes’ que sustentavam a alegada coerência de um regime visual dominante assegurava, as- sim, a criação de uma arena de representação passível de albergar os contextos de mesmidade do sujeito humanista, protegendo-o da al- teridade e da ambiguidade criativa de diferentes modos de ver e dos desafios dos outrossentidos como o olfacto e o tacto. Espaço, corpo e lugar vêm-se portanto enredados num regime de conhecimento de que somos herdeiros, regime este alicerçado sobre a primazia de um sistema cognitivo e perceptivo responsável pela produção da subjec- tividade. Detenhamo-nos pois, seguidamente, sobre o modo como tem vindo a ser questionado este modelo de conhecimento pela ênfa- se em modelos alternativos assentes num conhecimento corporizado que reclamam diferentes posições de sujeito. 2. Do corpo como contentor de identidades essencializadas ao corpo como lugar de criação de subjectividades A revisão dos ‘humanismos’ que percorrem as tradições discursivas ocidentais, sendo central para a construção de teorias alternativas, promove a construção de discursos passíveis de suplantar as tendên- cias de apropriação, de totalização e de integração que subjazem o conhecimento moderno. Por isso, configura parte significativa dos esforços que nas últimas décadas se têm desenvolvido no âmbito dos estudos em torno da cultura científica. Efectivamente, se parte significativa da teoria cultural das últimas décadas se tem orientado para a revisão de conceptualizações drasticamente antropocêntricas, isto acontece em grande medida porque o repensar das subjectivida- des implica ter em conta as relações de poder que permeiam a sua própria formação e experiência. A análise da história da subjectivi- dade, tem mostrado que as posições de sujeito são construídas em grande medida através dos discursos do corpo e do lugar, do desejo e da sexualidade, os quais alteraram as percepções da subjectividade e da sociedade, delimitando a afirmação de ‘outras’ identidades.40 Perspectivada como arena de conflito e contestação, dada a multi- plicidade e a natureza mutável das relações que nela são tecidas, a 43 Desgeografização do corpo, uma política de lugar ideia de lugar tem vindo a ser reconceptualizada como construção dinâmica e fluida. Ligados por específicas formas de habitação, corpo e lugar são mobilizados através de construções simbólicas cujos significados são frequentemente alvo de narrativas inaugurais que favorecem a perpetuação de visões metafísicas ou míticas sobre o mundo e os espaços que o constituem.41 Estruturando e simplificando as relações entre o ‘aqui’ e o ‘ali’, ‘nós’ e os ‘outros’, tais visões ou perspectivas são alicerçadas sobre a ideia de uma estética não opressiva e eviden- ciam uma coerência aparente. Obscurecendo as particularidades do lugar, estas perspectivas são fundadas numa hierarquia social do am- biente de representação e diferenciais no ‘capital posicional’42 dan- do origem a agudas contradições e a tensões associadas às fronteiras simbólicas, sociais e físicas incorporadas no espaço. A contestação da ideia de identidades únicas e permanentes, em- bora não implique a negação do carácter único de um lugar, fez com que se passasse a analisar esse carácter enquanto ‘consequência da múltipla intersecção de fluxos generalizados, estruturas de poder, discursos e subjectividades’.43 Produto social e dos mais diversos imaginários geográficos, o lugar é constantemente criado e recriado veiculando forças de inclusão e de exclusão que participam na for- ma de habitar cada mundo de experiência. Por isso, a ideia de lugar constitui frequentemente fonte de paradoxo, ambivalência e contra- dição. Aliás, a reconceptualização do lugar como área circunscrita para um agregado de redes de relações sociais abertas e porosas, veio reforçar, de acordo com Doreen Massey,44 a ideia de que as identidades de lugar são múltiplas pelo que a imagem dominante de qualquer lugar é mutável através do tempo e é sempre alvo de contestação. Para a autora, o estudo do lugar encontra-se para além das tradicionais polarizações conceptuais a que tem vindo a ser vota- do, tais como objectividade/subjectividade ou acção/estrutura, pelo que não existem características fixas de lugar ou fronteiras espaciais fixas, sendo os lugares definidos tanto pelo interior como pelo exte- rior constitutivo. Reflectindo a sensibilidade contemporânea das orientações críticas humanistas, a tentativa de compreensão do significado de lugar pas- 44 Geografias do Corpo sou a ter subjacente a preocupação com problemáticas tão diversas como a memória individual ou colectiva, a conexão entre imagens, o sentido idealizado de lugar e o fabrico de comunidades específicas. Mas, tal esforço passa ainda pela busca das complexas relações entre o corpo e as instâncias de produção de poder e autoridade, surgindo como terreno para a escolha ética e moral. Denunciando as visões parciais e incompletas que se escondem sob cada sentido de lugar, desvelam-se os silêncios políticos e sociais alojados em cada paisa- gem material indagando-se as diversas formas em que se cumpriu a sua representação. Neste sentido, o debate em torno da fisicalidade da paisagem (e as interpretações complacentes de lugar) tem vindo a ser incrementado tendo em conta narrativas que denunciam o envol- vimento com a natureza não como abstracção mas como elemento determinante no que respeita à definição das experiências pessoais. Como modo de exercer o controlo disciplinar sobre os corpos dos sujeitos, decorrente da afirmação do conhecimento científico moderno, a descorporização do prazer e do desejo associa-se aos processos interligados de identificação e desidentificação que ope- ram na formação do sujeito (do humanismo). Daqui decorre que os processos de construção de identidades que se desenvolveram no mundo moderno apresentam uma frágil e contraditória constituição, funcionando as categorias engendradas como meio de estigmatiza- ção do Outro e de ‘outros lugares’ sobre os quais se recolocaram as características rejeitadas pelo sujeito do humanismo. Funcionando como ‘superfície de inscrição e como fronteira entre o sujeito indi- vidual e aquilo que é Outro para ele’,45 o corpo funciona ainda como fronteira maleável que nos põe em contacto com um exterior auto- determinado. A ênfase no trabalho de um ‘exterior constitutivo’,46 remete, nestes termos, para a necessidade de ruptura com a noção de identidades puras e de fronteiras rígidas entre os sujeitos47 e com a ideia de lugares dos sujeitos. Activamente constituídos através de ideologias e de metateorias de localização, os corpos e os sujeitos são modelados por forma- ções discursivas tanto como por contextos materiais e determinantes biológicas, possibilitando e delimitando, uns e os outros, as práticas sociais. Como salienta Rob Shields,48 ‘(o) acto selvático de ‘fazer 45 Desgeografização do corpo, uma política de lugar o espaço’ e de pôr em prática códigos espaciais é indicador de uma qualidade social mais lata orientada para a codificação espacial, para as práticas espaciais, para as nossas representações de espaço e para a nossa geografia imaginária, em que tudo tem um lugar e um tempo’. Enquanto elemento cultural que legitimou uma lógica de identificação ‘natural’ e respectivas hierarquias, o sistema moderno de conhecimento assenta, como já foi referido, sobre a ideia de uma corporização abstracta do sujeito.49 Esta, dispersa-se em categorias espaciais através das quais se organizou uma muito concreta rede de poder de uns indivíduos sobre os outros. É que, a formação dos su- jeitos individuais e colectivos encontra-se na dependência da cons- trução e ‘naturalização’ de categorias não-inocentes de localização que serviram para legitimar uma epistemologia e uma ontologia de policiamento da diferença.50 Iludindo as múltiplas realidades cor- porais, as identidades parciais e os pontos de vista contraditórios, a ideologia que subjaz o constructo de identidade universal iludiu a constituição histórica geográfica e social de categorias como género, raça ou classe, autorizando a apropriação dos corpos e identidades como parte de um trabalho político de organização de uma rede de poder eurocêntrico. O desafio de superação dos dualismos
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