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Geografia_do_corpo (1)

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G E O G R A F I A S 
D O C O R P O
© (2009) Livraria Figueirinhas
Geografias do Corpo. Ensaios de Geografia Cultural
Coordenação: Ana Francisca de Azevedo, José Ramiro Pimenta, João Sarmento
 
Autores: Ana Francisca de Azevedo, Benedict Hoff, Chris Philo, Eduardo Bri-
to-Henriques, Joana Lima, João Sarmento, José Ramiro Pimenta, Roberta Gilchrist, 
Teresa Mora
Capa:
Fotografia: árvoremãe, de Jorge Correia Ribeiro ©
Arranjo gráfico: Cisca, Pfeffer & Séan.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob 
qualquer forma sem a permissão do editor e coordenadores.
Depósito legal:
ISBN:
GEOGRAFIAS 
DO
CORPO
Ensaios de Geografia Cultural
Ana Francisca de Azevedo
Benedict Hoff
Chris Philo
Eduardo Brito-Henriques
Joana Lima
João Sarmento
José Ramiro Pimenta
Roberta Gilchrist
Teresa Mora
 
Coordenação 
de
Ana Francisca de Azevedo José Ramiro Pimenta João Sarmento
f i g u e i r i n h a siii
Autores
Ana Francisca de Azevedo 
Universidade do Minho
Benedict Hoff 
University of Liverpool
Chris Philo 
Univerity of Glasgow
Eduardo Brito-Henriques 
Universidade de Lisboa
Joana Lima 
Universidade Lusófona do Porto
João Sarmento 
Universidade do Minho
José Ramiro Pimenta 
Universidade do Porto
Roberta Gilchrist 
University of Reading
Teresa Mora 
Universidade do Minho
Índice
As geografias culturais do corpo
 A. F. de Azevedo, J. R. Pimenta e J. Sarmento 11-30
Desgeografização do corpo. Uma política de lugar
 A. F. de Azevedo 31-80
Fausto entre nós. Geografias pós-humanas
E. Brito-Henriques 81-98
O corpo dessexuado: a vida interior das 
mulheres religiosas da Idade Média
R. Gilchrist 99-122
Uma experiência com a linguagem do cinema: 
objectivos, efeitos e consequências.
B. Hoff 123-144
Corpo, identidade e linguagem nas 
cavernas de ‘Moon Palace’
J. Lima 145-164
O véu territorial da razão e o corpo 
como natureza-morta
T. Mora 165-186
População acumulada: 
corpos, instituições e espaço
C. Philo 187-226
O corpo, lugar do tempo
J. R. Pimenta 227-260
As inescapáveis geografias do corpo: 
mobilidade, escala e lugar
J. Sarmento 261-282
As geografias culturais do corpo
A n a F r a n c i s c a d e A z e v e d o 
J o s é R a m i r o P i m e n t a 
J o ã o S a r m e n t o
A contaminação do corpo pela teoria e pela prática científica implica 
frequentemente o acto de despojamento das emoções e dos afectos, 
implica, tantas vezes, pôr-nos de fora de nós próprios, despir-nos da 
nossa carne, até um ponto em que a experiência material do mundo 
e da existência se encontra ontologicamente truncada. A consciência 
de nós próprios turva-se, o ‘sentimento de si’1 é aplanado, divor-
ciando-se da sua própria biografia e de uma teia de significados que 
permite a organização de cada momento quotidiano. A negligência 
crónica relativamente aos processos de formação da auto-consciên-
cia enviesa não somente a estruturação do Eu mas também a sua 
auto-percepção, o que inevitavelmente enviesa o intuito de aproxi-
mação ao Outro, transformado em objecto de pesquisa. Sobre esta 
base se ergueu uma metageografia dos corpos passivos. O acto de 
abstracção em que se estriba a produção do conhecimento cientifico 
moderno tem subjacente a descorporização do sujeito, a subtracção 
da experiência sensorial no seu conjunto em detrimento da experiên-
cia ocularcêntrica. A mente como palco de representações e o olho, e 
respectivos aparatos e próteses de visualização, como aparelho que 
devolve à mente uma visão objectiva dos fenómenos, legitima um 
sem-número de textos e discursos que partem de um quadro relacio-
nal assente sobre a fractura entre sujeito e objecto de conhecimento. 
Desestabilizando este quadro relacional a presente obra expõe-no. 
De capítulo a capítulo abre-se para os desafios de um conhecimento 
12
Geografias do Corpo
háptico, interceptando um conjunto de geografias liminares que as 
suas autoras e autores vão desvelando.
A atenção que crescentemente tem vindo a ser dedicada ao cor-
po no seio das ciências sociais dividiu-se por variadas formas de 
abordagem das relações que estabelece com as outras instâncias da 
produção da subjectividade. Do mesmo modo, e ainda que a divisão 
que vamos seguir force talvez um pendor analítico que não deve ser 
mais do que o necessário para permitir uma ilustração coerente do 
conjunto de fenómenos e modalidade de pesquisa associadas, tenta-
remos apresentar as características mais importantes de uma pesqui-
sa de espacialidade do corpo e de corporealidade do espaço segundo 
três áreas complementares: poder, representações e práticas. O que 
defendemos neste livro é uma centralidade maior do corpo nas ge-
ografias que fazemos, apreciando o poder, as representações e as 
práticas do corpo no emaranhado das modernas espacialidades.
Poder
São inúmeros os exemplos de debates epistemológicos e tomadas de 
posição intelectuais e políticas em redor das questões do corpo que 
se tornaram disponíveis no seio das ciências humanas sobretudo a 
partir do anos setenta; os estudos das relações entre corpo, espaço e 
poder não são exclusivos da disciplina da Geografia, razão que este-
ve, de resto, na concepção deste mesmo livro, em que pretendemos 
reunir vozes oriundas de diversas áreas de investigação, geográfica, 
arqueológica, literária, sociológica. Como é natural, a Geografia não 
desenvolveu por si mesma a gama variada de teorias sociais, com 
origens muito diversificadas, a que hoje faz recorrentemente uso, 
embora o seu contributo não tenha sido despiciendo no seu enri-
quecimento dialéctico. Não seria ajustado a uma introdução de uma 
reunião de textos que versam o tema comum do corpo e do espaço, 
explorar minuciosamente as diversas fontes intelectuais e políticas 
de estudos sobre as relações entre o poder e o corpo. Ainda assim 
cremos que é importante referir alguns nomes que contribuíram de-
cisivamente para a constituição de uma problemática do corpo nas 
ciências sociais, genericamente e, especialmente, na importância de-
cisiva que vieram a ter para estudos de Geografia e corpo do ponto de 
13
Introdução
vista da organização do poder e das políticas de exclusão e violência 
a elas associadas. Nesse sentido, referiremos alguns nomes que são 
ainda assim perfeitamente incontornáveis e cuja omissão impediria 
de mais bem compreender as dinâmicas recentes da disciplina da 
Geografia. Fá-lo-emos seguindo uma ordem de apresentação que se 
poderia chamar de ‘histórica’, porquanto contempla a eclosão se-
quencial da sua expressão como forma de contestação e afirmação 
de políticas activas de identidade: classe, raça, género e sexualidade, 
contextos que, como referiremos mais à frente, usaremos também 
para a definição dos contributos específicos da geografia do poder e 
do corpo, assim como para a apresentação de algumas passagens dos 
próprios artigos deste livro.
Os estudos das relações entre espaço, corpo e poder não se resu-
mem à disciplina da Geografia. Esperamos que este livro ajude a 
demonstrar que tais estudos assumem as mais diversas formas de 
expressão epistemológica e metodológica, detendo características 
comuns que permitem ser associados numa categoria de pesquisa 
com algum grau de similaridade. Cremos que a principal marca de 
uma relação espacializada da relação entre corpo e poder é certa-
mente a identificação (e contestação) dos ‘dispositivos’ (e usamos 
esta palavra com o sentido que lhe dá Foucault e que remete para o 
carácter claramente instrumental dessa relação) postos em prática no 
sentido de fazer cumprir regras implícitas, explícitas e violentas de 
inclusão, exclusão ou reclusão do corpo individual e concretamente 
considerado. 
A reteorização do corpo é relativamente recente na história da 
Geografia, em consonância com o que sucedeu com inúmeras dis-
ciplinas das ciências sociais. Até à década de setenta, a presença do 
corpo, da sexualidade, do género, reduzia-se a análises de estrutu-
ras demográficas em que as característicasdescritoras de variáveis 
biologistas eram tomadas em consideração numa qualificação mais 
vasta da sociedade encarada pelo seu aspecto exterior. Este ‘instru-
mentalismo’ devia muito ao contexto epistemológico geral positivis-
ta e humanista em que a disciplina se inseriu desde a sua origem, e 
apenas viria a conhecer uma metamorfose radical com as transfor-
mações sociais que acompanharam a sociedade ocidental a partir dos 
14
Geografias do Corpo
finais dos anos sessenta (Brito-Henriques, neste livro). A abordagem 
do corpo como elemento activo de identificação, opressão e contes-
tação social ficou a dever muito aos trabalhos de Foucault sobre a 
história da modernidade, e ao conceito associado de ‘poder sobre a 
vida’ que o autor tentou recolher de vários exemplos historicamente 
concretos e geograficamente situados. Este ‘poder sobre a vida’, que 
consiste num conjunto de dispositivos e técnicas com o objectivo de 
obter a subjugação do corpo individual e do conjunto da população 
expressa-se espacialmente em redutos de exclusão mais ou menos 
opressiva e violenta, sustentada discursivamente como a representa-
ção do próprio funcionamento natural da comunidade (Philo, neste 
livro). Neste sentido, Foucault está especialmente interessado em 
designar e explicitar as qualidades morais e políticas de um poder 
assim estabelecido e o modo como tal processo resulta na criação 
concreta de individualidade, subjectividade e corporealidade, domí-
nios que em muitos autores viriam a ser considerados indispensáveis 
em estudos interseccionais de raça, género e sexualidade. A produ-
ção de subjectividade assim estabelecida seria feita primordialmente 
por redes de intervenção mais ou menos explícita por parte dos cen-
tros de poder, e especialmente o Estado, mas tornando-se eficiente-
mente presente em espaços de alienção da individualidade corpórea 
e de incarnação da própria assimetria das relações de poder – é justa-
mente este o poder ‘geográfico’ das propostas foucaultianas que não 
deixará de ser aproveitado fertilmente em estudos da disciplina da 
Geografia, a que faremos referência um pouco mais à frente.
A concepção foucaultiana de espaços fácticos e discursivos de 
exercício de poder veio a conhecer um enorme sucesso na disciplina 
da Geografia, dando origem a tradições de pesquisa variadas, estando 
presente em todas as propostas intelectuais e políticas críticas como 
o feminismo, neo-marxismo ou pós-colonialismo. Uma vez que se 
fará referência às dimensões da raça, género e sexualidade, bastará 
talvez, neste momento, referir aquelas que mais directamente dizem 
respeito à relação opressiva do Estado e do discurso dominante com 
alguns segmentos que compõem o todo social. A incorporação dos 
pressupostos de teorias localistas-discursivas pode solver-se nas ma-
nifestações de ‘copresença’ que induzem e estruturam relações de 
15
Introdução
poder e nas quais, por exemplo, a time-geography, desenvolvida por 
Hägerstrand, mau grado algumas dúvidas pós-estrutralistas a poste-
riori, parece enunciar a primeira tentativa endógena da Geografia. 
Em todo o caso, a noção de que a biografia espacial de um indivíduo 
é estruturada (reprimida) pela copresença dos diversos actores so-
ciais (e a diversas escalas) com que interage não deve permitir que 
se pense (e essa foi talvez uma das críticas mais prementes ao esque-
matismo da fase inicial da escola de Lund) que existe uma concor-
dância absoluta entre os limites físicos de um espaço e os contornos 
sociais de um ‘locale’ – a este respeito o próprio Foucault deixou 
claro que o efeito ‘capilar’ da organização do poder lhe atribuía uma 
permeabilidade à qual nenhum limite físico podia eficientemente 
opor-se. Assim, podemos ver na Geografia uma multiplicidade de 
estudos que tomam em consideração o poder regulador do espaço na 
formação de subjectividades concretas e corporealizadas e em que 
tomam especial relevo os estudos que contemplam fracções do todo 
social que estão especialmente dependentes das relações assimétri-
cas do poder. A discriminação pela idade levou ao reconhecimento 
de um domínio tradicionalmente invisibilizado na prática geográ-
fica que é o reconhecimento de lugares e espacialidades de discri-
minação, institucionalização e ocultação dos elementos mais idosos 
das comunidades, e o modo como os espaços público e privado são 
especial e dominantemente ‘do adulto’. Esta mesma característica 
permite reconhecer um domínio análogo da prática geográfica que 
diz respeito às crianças e adolescentes. Já presente na expedição de 
Bunge aos bairros desfavorecidos de Detroit, este é um tema que 
tem vindo a ganhar um peso crescente nos estudos de Geografia hu-
mana, que cada vez mais reconhece a produção pré-adulta de es-
paços de resistência, de contestação ou simplesmente alternativos. 
Finalmente, tem vindo a tomar um peso crescente nos estudos de 
‘poder sobre a vida’ aqueles que se debruçam sobre as pessoas com 
deficiência, parte da comunidade em que mais se fazem sentir os 
processos de discriminação espacial; neste contexto, de resto como 
também acontece em alguns estudos sobre a vida em estabelecimen-
tos prisionais (Philo, neste livro), a tendência epistemológica tem 
sido a de fazer substituir os modelos ‘instrumentalistas’ (médicos e 
16
Geografias do Corpo
legais), que caracterizam um fenómeno como algo puramente ‘fun-
cional’ e mensurável, por uma concepção ‘social’ e ‘cultural’ que 
exige a presença discursiva dos dois pólos da relação de poder assim 
mantida – neste sentido, qualquer estudo das espacialidades asso-
ciadas à ideia de deficiência remete não apenas para a vivência dos 
actores sociais portadores de limitações de mobilidade ou sociabili-
dade mas também para as regras públicas de definição dessa mesma 
limitação. A fusão dos dois pontos de vista tem vindo a dar origem a 
propostas que se enquadram já nos limites do activismo académico 
que assim se associam a políticas de identidade com vista não ape-
nas à reabilitação médica (ou legal) dos indivíduos mas também à 
instabilização dos parâmetros de aptinormatividade. 
A representação do corpo é um dos temas centrais da teoria sai-
diana de denúncia e exposição crítica do orientalismo, ou seja a 
representação estereotipada do Oriente na cultural ocidental. A atri-
buição de características binariamente opostas entre os dois pólos 
desta relação, levou Said a reconhecer que o Oriente é apresentado e 
representado como um símile de femininidade, dócil, erotizado, vio-
lável, aos olhos de um Ocidente que a si mesmo se representa como 
masculino, dominador, violento. A teoria orientalista e toda a gama 
de procedimentos de pesquisa dela derivados tiveram um enorme 
sucesso na Geografia e a abordagem pós-colonial culturalista assim 
definida veio mesmo a tornar-se um dos domínios de investigação 
mais importantes das duas últimas décadas,3 embora tenha vindo a 
ser crescentemente posto em causa por justamente favorecer a re-
plicação epistemológica do próprio fenómeno que pretende expor 
e denunciar. Mais radicais são as propostas em torno da abordagem 
psicanalítica levadas a cabo por Frantz Fanon que vieram a conhecer 
um sucesso mais duradouro que as de Said nos espaços que lutaram 
pela independência política e económica de territórios previamente 
colonizados. Não estando isento de críticas por alguns sectores epis-
temológicos, nomeadamente pela ‘queer theory’ que entrelê nos es-
critos de Fanon alguns traços de homofobia e heterosexismo, ainda 
assim é inegável a importância deste autor no contexto da afirmação 
dos movimentos de política identitária pós-colonial, ou a eles asso-
ciados por parte de minorias migrantes em países ocidentais. Não se 
17
Introdução
pode deixar de referir, contudo, que em muitas situações pós-colo-
niais mais consolidadas parece cada vez mais privilegiar-se moda-
lidades de investigação que pretendem visibilizar as comunidades 
concretas de que partem (cujo carácter híbrido é cada vez mais exi-
bido comoidentidade cultural) e assim fugir à oposição estereotipa-
da entre o agressor colonial e o resistente colonizado.
Sendo a Geografia uma ciência historicamente associada, e com 
óbvias implicações funcionais, com a instalação e exploração colo-
nial do mundo não-ocidental, não é de admirar a enorme quantidade 
de trabalhos que a crítica pós-colonial favoreceu no seio da discipli-
na. No contexto do pós-estruturalismo e da teoria cultural saidiana, é 
dada especial atenção às representações racializadas do encontro co-
lonial e ao modo como elas estruturaram a identidade metropolitana; 
neste contexto não pode mesmo deixar de referir-se a ‘antecipação’ 
epistemológica em que consistiu o ‘luso-tropicalismo’, ao erigir o 
carácter híbrido como uma (geo)política de identificação cultural 
(porém, não deve esquecer-se que esta era uma identidade baseada 
numa relação assimétrica do poder, em que o lado imperial e mascu-
lino daquele encontro era especialmente favorecido). Mais especifi-
camente, a Geografia não deixou de fazer referência aos dispositivos 
espaciais de discriminação racial, entre os quais a experiência do 
‘apartheid’ na África do Sul foi a mais ilustrativamente reconhecida 
e politicamente valorizada; posteriormente o mesmo tipo de estu-
dos evoluíram para análise de espacialidades, em que as relações de 
‘raça’/etnicidade sustentam situações particularmente tensas ,como 
no Médio Oriente,ou justificam propósitos de limpeza étnica como 
sucederia na guerra da antiga Jugoslávia. Do ponto de vista do en-
contro pós-colonial em contextos do mundo ocidental, a Geografia 
inclui cada vez mais estudos de política identitária das minorias ét-
nicas nas grandes cidades do mundo ocidental e, sobretudo, numa 
perspectiva ‘interseccionista’, exibir e denunciar o modo como a re-
presentação geopolítica da alteridade tem vindo a favorecer medidas 
de crescente repressão por parte dos estados, sendo a côr da pele e a 
suposta pertença étnica um factor relevante da sua aplicação. 
O corpo sempre foi um tema central na tradição dos estudos ge-
ográficos de género, especialmente os oriundos da tradição dos 
18
Geografias do Corpo
estudos feministas, tradição esta que desde o início desenvolveu es-
peciais ligações com a teoria psicanalítica e tentou integrar o papel 
da identidade ‘feminina’ (entendida também e fulcralmente como 
política de corpo e de sexualidade)4 na definição das relações so-
ciais. Neste contexto tomou particular relevo o estudo do regime 
patriarcal e masculinista de organização social e do papel especial 
que nele toma o corpo como lugar de identidade e prática, especial-
mente na configuração dos papéis atribuídos ao elemento dominante 
(masculino), dominado, (feminino) e ausente (infantil), associado 
intimamente a uma idêntica imposição heteronormativa. A atenção 
dos estudos feministas e a exibição da identidade de corpo e de gé-
nero para o centro das procupações epistemológicas levou a que 
se desenvolvessem linhas de pesquisa directamente orientadas não 
apenas para a denúncia dos mecanismos de determinação do regime 
patriarcal e masculinista mas também para a natureza performativa 
e reiterativa das identidades de género, a anatomia dos mecanismos 
inconscientes de natureza ‘abjectiva’ que os sustentam, bem como a 
exibição e provocação do carácter instável das suas fronteiras, atra-
vés de práticas de subversão e trangressão.
A Geografia acompanhou e desenvolveu as linhas dominantes dos 
estudos de género que se foram desenvolvendo trandisciplinarmen-
te.5 Assim, deu especial atenção ao modo patriarcal de produção, e 
às relações sociais e económicas que visam assegurar a sua reprodu-
ção, bem como as espacialidades directamente associadas com ela e 
que nela tomam um papel de primeira importância, nomeadamente 
a distinção geográfica sócio-cêntrica e sócio-periférica que a moder-
nidade atribui aos papéis de género na divisão social do trabalho. 
Muito especialmente, dedicou muita da sua energia à pesquisa da 
estruturação espacial da violência masculina, nomeadamente atra-
vés dos dispositivos físicos e simbólicos de reclusão ou oclusão da 
mulher em escalas que variam entre o bairro da cidade e lugares 
liminares até à esfera íntima da domesticidade. Finalmente, sem-
pre privilegiou os estudos que procuravam determinar o poder de 
reprodução da estrutura patriarcal nos diversos níveis de organiza-
ção social, desde o funcionamento do aparelho do estado às várias 
19
Introdução
instituições sociais e culturais promotoras da regulação de papéis 
sociais.
Os estudos feministas são também responsáveis pela introdução 
da temática da sexualidade como tema central de investigação em 
ciências sociais e essa será também a via privilegiada por que che-
garão à Geografia.6 Variando nos temas e metodologias, os estudos 
feministas sobre sexualidade contiveram sempre uma marca teóri-
co-metodológica de nítida filiação psicanalítica, por um lado e, por 
outro, uma marca activista política e social acentuada, relacionada 
com a denúncia e exposição do regime patriarcal e maculinista na 
organização dos papéis e relações de género, especialmente na re-
produção mútua das modalidades de exploração e violência social 
e sexual. Para além dos contributos centrais da teoria pós-estrutu-
ralista e feminista, as abordagens da sexualidade e do corpo têm 
vindo recentemente a ser objecto directo de várias teorias não-re-
presentacionais e performativistas, entre as quais se destaca a ‘queer 
theory’.7 Inicialmente originária do activismo das minorias sexuais 
rapidamente se generalizou a uma epistemologia duplamente base-
ada no papel central da sexualidade na identidade social e formação 
da subjectividade, por um lado, e por outro no carácter desafiador de 
normas e limites na atribuição da subjectividade.
A Geografia desenvolveu diversas linhas de estudo que tomam em 
consideração os efeitos recíprocos do espaço e sexualidade. Desde 
logo, em consonância com o trabalho seminal de Castells,8 tentou 
determinar as expressões espaciais dos modos de vida e cultura po-
pular exibidas por comunidades de orientação homossexual, à esca-
la global (turismo) e urbana (residência e gentrification). Também, 
alguns estudos dedicar-se-iam à exposição e denúncia do carácter 
implícita ou explícitamente heteronormativo da vida quotidiana 
e da cultura popular, no seio do qual as expressões de dissidência 
podem ser alvo de uma gama variada de acções, desde a simples 
marginalização à exuberante e violenta opressão.9 Historicamente 
relacionadas com os anteriores, uma série de estudos de geografia 
e sexualidade debruçar-se-iam sobre a difusão de doenças sexual-
mente transmissíveis, especialmente a SIDA, se bem que muitos dos 
estudos levados a cabo sobre a difusão da doença tenha sido alvo 
20
Geografias do Corpo
igualmente de estudos tradicionais, de construção e teste de modelos 
de difusão espacial. O activismo associado a muitos dos estudos de 
geografia e sexualidade podem ainda ser vistos em dois géneros de 
estudos que nos úlitmos anos se vêm tornando dominantes no que 
concerne aos temas de sexualidade e geografia: as expressões com-
plementares das geografias ‘queer’, e dos modos de vida associados 
a uma concepção performativa e propositadamente instabilizada da 
identidade de género e de sexualidade, e, por outro lado, o ordena-
mento moral das paisagens sexualmente normativas do espaço as-
sociados à disrupção cultural das práticas associadas (Hoff, neste 
livro). Finalmente, e tal como sucede nas outras instâncias de classe, 
raça e género, também a Geografia como sistema de prdução cientí-
fica tem vindo reflexivamente a questionar os evntuais dispositivos 
que obstam, do ponto de vista da sexualidade, a uma plena equidade 
de tratamento dos geógrafos em termos de carreiras de investigação 
e temas de publicação.10
Representações
O modo como o corpo, ou os diferentes corpos são representados 
diz muito sobre a sociedade em que se vive (Mora, neste livro). A 
representaçãocultural do corpo pode ser perspectivada de diversas 
formas. Se atendermos à representação do corpo humano, verifica-
mos, por exemplo, que a cultura ocidental moderna estabeleceu uma 
história das representações corporais que remonta à Antiguidade 
Clássica, à arte minóica e à escultórica greco-romana. Encontramos, 
não obstante, diversas ramificações que ligam a representação visual 
do corpo às culturas do Neolítico e mesmo do Paleolítico, deslocan-
do cronologias apriorísticas de linearização do corpo como represen-
tação. Associada ao desenvolvimento das técnicas e tecnologias de 
representação, a representação do corpo encontrou-se desde muito 
cedo ligada a valores espirituais e religiosos que indivíduos e grupos 
desejaram deixar gravados em variados materiais. A variação des-
tas representações no espaço é sobejamente explorada pela História 
da Arte, Estética e Filosofia, entre outros campos do saber que têm 
vindo progressivamente a focar a atenção nas relações entre corpo e 
representação (Lima, neste livro).
21
Introdução
Um olhar diacrónico sobre as representações do corpo na cultura 
ocidental mostra que, entre experiências e variações iconográficas, 
a tendência para a dessacralização do corpo é apanágio do perío-
do moderno. A fronteira entre o sagrado e o profano desvanece e a 
formação social das representações é alterada (a contrario, para a 
Idade Média, cf. Gilchrist, neste livro). A conexão entre a represen-
tação do corpo e a morte é desmitificada e a ênfase na celebração 
dos ‘corpos das elites’ é transferida para a celebração de ‘corpos 
ordinários’, operando no acto quotidiano. A apoteose da imagética 
corporal, durante o século XX, aconteceu num momento muito con-
creto em que a cultura visual tomou conta dos mecanismos de orga-
nização da experiência, um momento em que Heidegger anuncia a 
transformação do próprio corpo da terra em retrato. Diversos autores 
debruçaram-se sobre este fenómeno, desde Merleau-Ponty a Roland 
Barthes, mas a problemática da representação do corpo extravasou 
largamente a componente visual colocando a literatura e a ciência 
como médiuns cruciais a operar no moderno processo de construção 
de imaginários corporais. Como poderemos ignorar o tratamento do 
corpo por Anaïs Nin, Marguerite Duras ou Franz Fanon, e, de outro 
modo, como poderemos deixar de atender ao trabalho antropológico 
de inventariação, classificação e hierarquização dos corpos e respec-
tivas representações? Impossível, se abraçamos a tarefa crítica de 
recolecção dos retratos de que somos herdeiros. 
Os estudos canónicos de Aby Warburg em torno do movimento 
das imagens no tempo, ao serem revistos, proporcionam um valo-
roso contributo para a compreensão do modo como a arte da repre-
sentação se encontra intrinsecamente implicada com a expressão das 
emoções codificadas numa peripatética da paixão e do desejo que as 
figuras enunciam. Ao desvelar o movimento dos corpos no tempo, 
a iconologia possibilita a compreensão do acto de retratar como um 
acto situado num tempo e espaço específicos dependente do autor 
ou autora e da sociedade que os produziu. Porém, o acto de retratar 
condensa em si mesmo uma miríade de associações culturais que se 
organiza em camadas para a produção de uma representação. Muito 
frequentemente, estas fazem ressonância a textos e discursos não 
oficiais operando subliminarmente nas fissuras de significação. 
22
Geografias do Corpo
Cada retrato e cada discurso sobre o corpo é sempre resultado da 
ideologia e política reinantes, ora celebrando-as ora contestando-as. 
Muitas vezes, só a interpretação atenta das fissuras de significação 
possibilita a emancipação do corpo ou corpos representados dado 
o modo como a figuração tem subjacente complexos processos de 
codificação cultural. 
Integrando sistemas simbólicos, a figuração dos corpos tem servi-
do como modo de legitimar políticas hegemónicas de representação 
dentro das quais corpo humano e corpo da terra são apresentados 
como um todo orgânico. Neste percurso, a essencialização dos corpos 
e da paisagem por via das representações funcionou como processo 
de ‘naturalização’ da diferença. A indexação de tipos fisionómicos 
a paisagens ‘naturais’ configura um dos mais graves mal-entendi-
dos da modernidade, tendo aberto caminho para a cristalização no 
espaço e no tempo dos processos de formação de subjectividade. 
Encapsulados em sistemas de signos geográficos, tais processos en-
contram-se ainda enredados na falácia do Eu/Outro forjados pelos 
regimes nacionalistas e imperiais. Uma estética de representação 
está, assim, associada a uma ética de representação. Ao sermos con-
frontados com a representação de um corpo o nosso sistema emocio-
nal e afectivo é activado e, paralelamente, somos transportados para 
uma geografia ‘concreta’. Ao não ser inocente, a arte de cenarização 
dos corpos operou até um limite em que o próprio corpo já dispensa 
o ‘cenário’ por remeter para um imaginário geográfico de que somos 
prisioneiros. Encarada como uma potentíssima arte cenográfica, a 
ciência geográfica moderna escreveu mundos e inscreveu corpos 
nos mundos, ditando as relações entre eles (Azevedo, neste livro). 
A leitura destas geografias foi-nos cautelosa e perseverantemente 
ensinada por forma a que cada um de nós pudesse encontrar (?) o 
‘seu lugar’ num tão ardiloso sistema de signos. Deste modo, foram-
se configurando os corpos, modelados, torcidos, ocultados, oblitera-
dos, disciplinados, os corpos da Lei no espaço da Razão.
Práticas
Se é certo que não podemos aqui traçar uma genealogia completa 
das práticas do corpo na Geografia, queremos pelo menos esboçar 
23
Introdução
uma trajectória de preocupações que conta já algumas décadas, en-
dereçando as formas como as práticas do corpo se articulam com o 
espaço, o produzem e o constituem. A corrente de pensamento da 
time-geography, desenvolvida na Geografia sobretudo por Torsten 
Hägerstrand, incorporava a ideia de que os pulsares da cidade, 
os fluxos das pessoas em rede, os limites do tempo e movimento, 
constroem ritmos corporizados que se deviam tentar cartografar, ul-
trapassando o limite das duas dimensões estáticas dos mapas conven-
cionais. Se é certo que a nossa natureza corpórea nos faz vivenciar 
o espaço a partir de diferentes lugares, a vontade de Hägerstrand 
em ‘transcender o mapa’ resultou em larga medida numa abstrac-
ção, representação e desmaterialização dos movimentos corpóreos 
no tempo, e numa geografia de ‘meras’ trajectórias. Se o facto das 
linhas nos diagramas não estremecerem não significava a ausência e 
consideração da importância da violência na teoria como um todo,11 
a sua visão da corporalidade do sujeito tinha no entanto uma relação 
mais forte com a construção de um sistema de representação objec-
tivo e neutro, do que com o confronto da subjectividade das práticas 
corpóreas.
Enquanto a time-geography frequentemente se confinou a lidar 
com o mensurável e o visível,12 a rhythmanalyse de Lefebvre su-
geriu actividade, e tentou dinamizar e abrir as representações da ci-
dade aos conhecimentos itinerantes e tácteis dos seus participantes. 
Para Lefebvre,13 no contexto da sua trialéctica espacial, o espaço 
vivido pertence à carne, às práticas espaciais, aos gestos corporais, 
à actividade sensual. A diferença entre este espaço vivido e o abs-
tracto reside precisamente em que este último se tenta dissociar das 
práticas, dos ritmos e texturas do corpo, mesmo quando não há uma 
oposição firme entre ambos. Em todo o caso, esta trialéctica perde 
a sua ressonância política e analítica quando tratada meramente em 
abstracto, pois necessita de ser corporizada com os tecidos da vida, 
com as relações da vida real e com eventos.
Mais do que qualquer outro teórico social contemporâneo, Michel 
Foucault dirigiu a sua atenção para o corpo, estudando-o como o 
alvo da operação de formas modernas de poder, entendidas como 
partes integrantes das micro-práticas do quotidiano. Os estudos de 
24
Geografiasdo Corpo
Foucault sobre os regimes da prisão (ver Philo neste livro), do asilo 
e da clínica, bem como a história da sexualidade, foram fundamen-
tais para a compreensão do corpo como um objecto de processos de 
disciplina e normalização. Através da sua obra, ainda que centrado 
sobretudo nas práticas discursivas, o corpo passou a ser entendido 
como uma metáfora para a discussão crítica que liga poder, conheci-
mento, sexualidade e subjectividade (ver Pimenta neste livro).
Numa visão em que o corpo humano não é percebido como uma 
entidade separada do resto do mundo, a sua ontologia reside justa-
mente na forma como co-evolve com outros objectos, incorporando-
os em diferentes partes do corpo biológico. Esta é uma perspectiva 
significativamente diferente da defendida por várias feministas, na 
qual se equaciona a carne com uma espécie de distinção primordial. 
Assim, se por um lado é ingénuo ignorar as características especí-
ficas da carne (ver Haraway14 e Sarmento neste livro), é também 
necessário ultrapassar a noção construtivista de que o corpo é sim-
plesmente uma superfície de inscrições, frequentemente reduzido a 
uma ‘imagem’. Consequentemente, o espaço do corpo pode ser en-
tendido como tendo múltiplas camadas, cada uma das quais conten-
do as relações e práticas do corpo com objectos e outros espaços.
No contexto de um ‘performance turn’ nas ciências sociais, a re-
cente reorientação da geografia cultural em direcção às práticas, 
folgando as amarras do comprometimento às representações, tem 
constituído um exercício entusiasmante que tem implicações pro-
fundas na forma como os geógrafos vêem, percebem e estudam o 
corpo. Há como que um regresso a vários ‘outros’ ‘scapes’ senso-
riais do palato, da audição e do olfacto, relativizando o avassalador 
império da visão (ver Azevedo neste livro). Deste modo, um dos 
mais interessantes desenvolvimentos da Geografia humana na últi-
ma década prende-se com o avanço da ‘teoria não representacional’ 
ou ‘teoria das práticas’,15 que, fortemente inspirada em Michel de 
Certeau e Walter Benjamin, tenta compreender os nossos ‘mais do 
que humanos’ e ‘mais do que textuais’ mundos multi-sensoriais.16 O 
‘representacional’ e a epistemologia construcionista, bem definidos 
pela escola da geografia cultural da paisagem, têm vindo assim a ser 
criticados com base numa suposta fixação, enquadramento e mumi-
25
Introdução
ficação de tudo o que agora se defende que deve transparecer como 
bem vivo. Para Thrift,17 é a acção corporizada, com o seu carácter 
incompleto e em constante transformação, que oferece a mais pode-
rosa fonte para uma poética wittgensteiniana das práticas.
Esta inflexão liga-se fortemente ao movimento das ciências sociais 
que se foram inspirar nas artes performativas e na dança, nos estudos 
de teatro, trazendo não só a ideia de que os imaginários sociais não 
podem ser contidos dentro de explicações científicas rígidas, mas 
também uma nova abordagem do corpo em que, no contexto de um 
‘affective turn’, se procura um equilíbrio entre este desenvolvimento 
e a permanência de um certo humanismo.
Ainda que seja impraticável condensar aqui as ramificações da 
‘teoria não representacional’ na Geografia, no contexto da Geografia 
cultural e da Geografia do corpo em particular, é importante destacar 
o papel de uma certa inflexão metafórica e substancial de ‘texto’, 
‘discurso’ e ‘representação’, para ‘prática’ e ‘performance’, e para 
as micro-geografias do quotidiano. O argumento que defende um 
registo de afastamento da desconstrução das representações (note-se 
no entanto que a teoria não é anti-representacional), e uma explora-
ção próxima do não-representacional baseia-se no facto de o ‘texto’ 
valorizar o escrito e falado em detrimento das práticas e experiên-
cias multissensoriais.18 A metáfora do performativo, hoje uma das 
mais persistentes nas ciências sociais, recupera e robustece análises 
fenomenológicas, e permite uma forma de perceber o significado 
não como residindo em algo, mas como gerado através de processos 
quotidianos.19
No entanto, a entrada da performatividade na geografia e do re-
torno, pelo menos em parte, da fenomenologia, pode implicar um 
possível (e pouco desejável) afastamento da economia política do 
género.20 Esta inflexão inspirou-se mais no trabalho feminista so-
bre o corpo, e sobretudo nas teorias da performance do género e da 
sexualidade de Judith Butler,21 do que em trabalhos sobre estudos 
da dança (a dança usada extensivamente por Thrift como consti-
tuinte de identidade e identificação social através da performance). 
O regresso ao corpo e às práticas do corpo aparece assim em duas 
direcções. Por um lado há uma tentativa de compreensão e desnatu-
26
Geografias do Corpo
ralização da diferenciação social de corpos através de práticas. Por 
outro lado há um ensaio da noção mais genérica e celebradora da 
natureza corpórea da existência humana.
Os artigos deste livro
Ana Francisca de Azevedo cria a ideia de desgeografização do cor-
po como mobile através do qual emergem novas políticas de lugar. 
Enfatizando a enunciação de práticas generativas do espaço assen-
tes sobre quadros relacionais alternativos, este capítulo convoca vo-
zes diferenciais como as de Donna Haraway, Bruno Latour ou Irit 
Rogoff para a construção de um texto que rejeita quadros analíticos 
fundados sobre o binómio primeiro espaço/segundo espaço, ou na-
tureza/cultura. Falando desde o seu próprio corpo, entendido como 
superfície de resistência e negociação, a autora declina uma visão 
da terra ’naturalizada’ pelos sistemas de signos geográficos que sus-
tentam as modernas espacialidades, propondo a ruptura com uma 
geografia do sujeito único.
Eduardo Brito-Henriques apresenta uma reflexão sobre as geogra-
fias particulares que as múltiplas possibilidades do corpo trans ou 
pós-humano geram nas sociedades contemporâneas. Apoiando-se 
no conceito de utopianismo na hipermodernidade, o autor percorre 
as ideias do corpo como objecto de consumo, das novas práticas 
biomédicas e biotecnológicas sobre corpos prontos a esculpir, e do 
papel da intromissão tecnológica no esbater e fragmentar da ontolo-
gia e das fronteiras entre corpos.
Roberta Gilchrist, uma das primeiras investigadoras a desenvolver 
uma abordagem feminsta em estudos de Arqueologia, descreve e 
interpreta documentos arqueológicos e históricos com o intuito de 
penetrar o mundo da afectividade das religiosas da Idade Média; 
uns e outros parecem apontar para a existência de um verdadeiro 
mundo de afectos das mulheres em situações de clausura através da 
personalização e transposição interior do erotismo. 
Resgatando-nos para o mundo das geografias fílmicas, Ben Hoff 
aborda a complexidade de estéticas alternativas postas em jogo por 
filmes como ‘art house’, analisando o caso específico da obra Sexual 
Dependency de Rodrigo Bellott. Aquilo de que se trata é pois de 
27
Introdução
indagar o grau de eficiência de novas técnicas fílmicas usadas para a 
aproximação a problemáticas específicas como o corpo e a sexuali-
dade, manifestadas de modo diferentes em diferentes culturas. Mas 
o grau de problematização proposto pelo autor inclui a relação entre 
as técnicas fílmicas e as técnicas de tradução, na medida em que as 
questões de interpretação e compreensão das temáticas tratadas en-
contram-se em dependência directa com as culturas das audiências e 
a cultura ‘original’ de cada filme.
Em “Corpo, Identidade e Linguagem nas Cavernas de Moon 
Palace”, Joana Lima analisa o plano das representações espaciais 
propostas por Paul Auster, argumentando que perceber o corpo e 
a linguagem em Moon Palace implica, necessariamente, pensar a 
Viagem e o Lugar. A autora sustenta que as viagens físicas prota-
gonizadas por Marco Stanley Fogg e Thomas Effing, na geografia 
urbana e no deserto, e as suas experiências nas cavernas de Central 
Park e do Utah traduzem momentos de exploração individual, tra-
jectos nas coordenadas da história e do mito, percursospela escrita, 
procura de sentidos, ou seja, obrigam ao reconhecimento da con-
dição fragmentária da identidade, propiciam reflexões sobre a ma-
triz mítica e cultural na qual assenta o pensamento norte-americano, 
olham e ensaiam o próprio processo da escrita.
Arriscando avançar com um conjunto de ‘impressões pessoais’ as-
sociadas aos modos recorrentes de expressão territorial do conheci-
mento científico, Teresa Mora revela-nos um percurso de resistência 
aos ‘mandamentos’ que regulam a cultura científica. Juntando-se a 
outras vozes, como a de Judith Schlanger, que entendem a lingua-
gem do conhecimento como uma linguagem inerentemente espacial, 
o vasto caminho abraçado pela autora vai desde uma profunda análi-
se da geografia da razão kantiana a uma contundente aproximação à 
utopia social de Gabriel Foigny, com o propósito de aprofundamen-
to de uma problemática específica; a da articulação do corpo com a 
razão.
Chris Philo apresenta um texto em que analisa a importância para 
a Geografia humana, e para a Geografia da população em particular, 
do que Foucault designa por ‘arte das distribuições’. Começando 
por analisar os textos do sociólogo Krantowitz, o autor debruça-
28
Geografias do Corpo
se no trabalho de Foucault, e em específico nas suas proposições 
biológicas da vida e da morte (‘corpos cheios de vitalidade, triste-
mente decadentes ou prematuramente levados a um termo’), e na 
exposição crítica das múltiplas formas como estas proposições têm 
sido constrangidamente manipuladas por ‘soberanos’ com o poder 
de deixar viver ou fazer morrer. Philo defende que é no escavar as 
minúcias das actuais prisões e instituições similares no passado e 
presente, que os geógrafos devem analisar as marcas sobre corpos 
acumulados em população através do espaço, enquanto exercícios 
de geografia micro-populacional aplicada.
José Ramiro Pimenta defende que pode detectar-se uma configu-
ração opositiva entre Said e Foucault no que diz respeito à prática 
corporeal do tratamento do Tempo nas respectivas teorias históricas; 
se a questão da exibição da sexualidade se revelou central na deter-
minação dos pressupostos existenciais da teoria foucaultiana, vemos 
igualmente que em Said um ponto recorrente da sua argumentação 
passa pela des-sensualização ‘activa’ do estereótipo do ‘oriental’, 
em ambos os casos se pretendendo criar um contexto eficiente de 
afirmação da própria individualidade intelectual e política. 
João Sarmento apresenta um artigo bipartido: numa primeira parte 
centra a discussão na espacialidade e performance do seu próprio 
corpo numa viagem forçada pela América do Norte; na segunda 
parte explora a diferença, inquietação e marginalidade que a cor da 
pele provoca na Lisboa pós-colonial, partindo de um jogo de futebol 
amigável. A ideia principal que o autor tenta destacar é a de que ao 
mesmo tempo que o corpo tem uma geografia histórica a partir da 
qual se pode tentar compreender a produção do poder, do território e 
da desigualdade, a nossa própria tentativa de cartografar estas mes-
mas geografias é corporizada e inescapável.
Notas
1 A. Damásio (2000). 2 G. Valentine (2007). 3 Pimenta, J. R., J. Sarmento 
e A. F. Azevedo (2007). 4 J. Butler (1993). 5 H. Nast (1998). 6 D. Bell e 
G. Valentine (1995). 7 A. Jagose (1996). 8 M. Castells (1983). 9 R. Phillips 
(2007). 10 D. Bell (1995). 11 M. Gren (2001). 12 M. Crang (2001). 13 H. Lefebvre 
(1991). 14 D. Haraway (1991). 15 N. Thrift (2008). 16 H. Lorimer (2005: 83). 
29
Introdução
17 N. Thrift (1997, 2008). 18 C. Nash (2000). 19 N. Thrift (2008). 20 C. Nash 
(2000). 21 J. Butler (1990, 1993).
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Desgeografização do corpo, 
uma política de lugar
A n a F r a n c i s c a d e A z e v e d o
Introdução
Apesar da objectiva conexão, não é simples estudar as relações en-
tre o corpo e o espaço. Muito menos é frequente tal abordagem por 
parte da Geografia. Embora (ou talvez porque) tradicionalmente de-
finida como ciência que se preocupa com as relações entre o Ser 
Humano e o Meio Ambiente, a ciência geográfica tem descurado 
sistematicamente a problemática do corpo e do sujeito. Trago-a aqui 
e agora, por me parecer absolutamente crucial para o movimento 
actual de recolocação do âmbito, práticas, conceitos e problemáticas 
geográficas. 
Pensar o espaço através do corpo, por mais óbvio que seja, foi 
aquilo que a ciência geográfica não fez, pelo menos nos últimos 
dois séculos. Para ser entendida como ciência, a moderna ciência 
geográfica dispensou o corpo, ou, posto de outro modo, aproveitou 
aquilo que dele julgou interessar; essencialmente a mente e a visão 
(o instrumento da Razão e o instrumento usado para confirmação 
da Razão). Tal como aconteceu no conjunto da ciência moderna, o 
desenvolvimento de toda uma parafernália de próteses da visão para 
a legitimação da Razão culminou com uma crise das representações 
a que hoje não sabemos bem o que fazer. Tal acontece também com 
uma metageografia para a qual se esgotaram conceitos como Norte 
ou Sul Global. Tal acontece, de igual modo, com o nosso corpo, 
32
Geografias do Corpo
entre projectos de bioestética e rotas de comercialização. Não por 
acaso, a crise das representações ser frequentemente entendida (e 
designada) como crise do sujeito.Entendido como uma das mais 
poderosas representações produzidas na modernidade pela cultura 
ocidental, o mapa político mundial ‘naturaliza’ esta crise. O mapa 
da diversidade tornou-se (se alguma vez terá sido algo mais) o mapa 
da desigualdade e esta construção panorâmica reflecte-se antes de 
mais no nosso corpo é, por si mesma, uma geografia claramente in-
carnada. 
Como estrutura epistémica, a Geografia foi responsável pela or-
ganização de uma ordem de conhecimento estabelecida nos centros 
de poder, os mundos metropolitanos imperiais. Funcionando parale-
lamente como ‘teoria da cognição e como sistema de classificação, 
como modo de localização e como arena de histórias colectivas na-
cionais, culturais, linguísticas e topográficas’,1 a Geografia é respon-
sável pela produção de um espaço homogéneo que se tornou ordem 
de conhecimento através de medidas universais de indexação da ter-
ra. A teorização crítica de um corpus de conhecimento geográfico, 
dentro do qual a ideia de paisagem detém importância crucial, reme-
te para o repensar dos modos através dos quais se ‘naturalizaram’ 
questões de posicionalidade, de poder e de autoridade para nomear 
ou para submeter ‘outros’ a categorias identitárias hegemónicas. 
Inúmeros autores têm vindo a dedicar-se à revisão do conhecimen-
to disponibilizado pela Geografia por forma a trazer à superfície as 
estruturas de poder que se escondem sob os discursos científicos, e 
que afectam as relações entre os sujeitos e os lugares. Perspectivadas 
neste quadro, noções como paisagem, lugar e espaço constituem 
exemplares riquíssimos de aproximação ao pensamento moderno, 
dentro de um horizonte revisionista. Através delas, operou-se a es-
pacialização de relações sociais e de convenções epistemológicas, 
pela acção de narrativas sócio-culturais geograficamente informa-
das. Ao longo deste capítulo, tentarei abordar este conjunto de pro-
blemáticas, apresentando algumas das mais relevantes abordagens 
que têm contribuído para a recolocação do corpo na actividade de 
construção científica. 
33
Desgeografização do corpo, 
uma política de lugar
1. Das relações entre espaço, visão e produção de um 
conhecimento descorporizado
A análise das estruturas de subjectividade que informam a Geografia 
pode, em grande medida, ser efectuada pela desconstrução do modo 
como conceitos-chave em Geografia participam num processo acti-
vo de espacialização que se encontra associado às práticas de retra-
tar e designar as propriedades físicas dos lugares. Neste sentido, o 
processo de espacialização geográfica desenvolveu-se pelo trabalho 
de estruturas de conhecimento e de imagens situadas circulando sob 
a ilusão de um ‘campo de transparência’.2 Este campo tem vindo 
a ser legitimado pelo trabalho conjunto da ciência, arte e tecnolo-
gia. Como forma de territorialização do conhecimento, o estabele-
cimento de campos disciplinares como o da Geografia permitiu a 
afirmação do domínio lógico-positivista e de um campo de repre-
sentação estruturado em torno da moderna noção de espaço e da 
centralidade da visão. A centralidade da visão para a determinação 
empírica do mundo percebido, é discernível nos discursos filosófi-
cos e científicos que asseguraram continuidade ao projecto ocidental 
do Humanismo. 
Integrando um modelo de subjectividade, a determinação de um 
campo de visão em que um ‘olho objectivo e inocente’3 assegura a 
afirmação de um observador não situado, foi legitimada pelos credos 
de verdade científica e pela posta em prática de um campo ‘neutro’ 
de percepção em torno do qual se organizaram o sujeito conhece-
dor e o objecto conhecido. Neste quadro, o espaço surge como uma 
superfície de representação em que se projectaram identidades de 
lugar e em que se articularam práticas culturais que usaram a ima-
gética como forma de mobilização de discursos ideológicos com-
prometidos com a ilustração da sua própria legitimidade. Activando 
respostas estéticas e científicas, assim como éticas e emotivas, a 
moderna ideia de paisagem activou uma arena de negociação cul-
tural das relações entre ser humano e território promovidas por um 
crescente conjunto de fragmentos representacionais (pictóricos e 
verbais, entre outros)4. Apesar da descontinuidade e da heteroge-
neidade das suas manifestações, tais geografias imaginativas vieram 
robustecer a superfície de visualização que mediava a relação entre 
34
Geografias do Corpo
sujeito e objecto, afirmando a convicção num espaço homogéneo e 
absoluto, a ilusão de um espaço transparente independente dos dife-
rentes corpos e sujeitos. 
Como ‘aparato de investigação, verificação, vigilância e cognição 
que serviu de suporte às tradições de cientificidade ocidental pós-
iluminista e às tecnologias modernas’,5 a superfície de visualização 
que se produziu sob o efeito da ilusão de um espaço transparente 
e unitário integra as práticas espectatoriais responsáveis pela me-
diação entre o mundo material e as subjectividades psíquicas. Ao 
integrarem uma superfície de visualização, a linguagem e a prática 
geográficas recodificaram a paisagem como sistema de significação 
e como experiência, com base nessas mesmas práticas de observa-
ção. Entendidas como imagens credíveis do mundo físico ou como 
relíquias de lugares que pontuam um retrato pitoresco ou sublime 
do mundo,6 as representações espaciais puseram o observador em 
contacto com o território construído forjado pela acção de um ima-
ginário geográfico dominante, um espaço cultural profundo que a 
viagem, o movimento e as tecnologias especializadas na produção 
da ilusão do real nutriram avidamente. Subjacente a este espaço, está 
o desejo de tomar posse implicado nas inúmeras estratégias de visu-
alização e aparatos tecnológicos para reprodução de imagens. Corpo 
do território, corpo do sujeito e corpo do conhecimento viram-se 
unidos por uma peculiar construção de espaço, a qual opera sob o 
efeito mediador de uma superfície de visualização disposta como 
modo de aceder ‘com distância’ à experiência de lugar. 
Engendrada como modo de aceder à distância ao Outro desco-
nhecido e não ocidental e paralelamente como modo de cristalizar 
a territorialização da mesmidade do Eu ocidental, uma superfície 
de observação em que se especializaram as mais diversas técnicas 
e tecnologias colocou a percepção visual como mecanismo central 
para se aceder à Verdade e à Razão. Mas, como se estruturou esta 
superfície de observação gerada pela cultura ocidental moderna? 
Como se interceptaram tecnologias da percepção e mecanismos de 
representação por forma a engendrar tão poderoso aparato episté-
mico? Quais as relações entre uma obsessão cultural pela ‘luz’ e 
pelo sentido de iluminação pela Razão e a construção de um espaço 
35
Desgeografização do corpo, 
uma política de lugar
abstracto cartesiano como elemento estruturante das modernas es-
pacialidades? 
O regime de poder e conhecimento que se preparou com recurso às 
tecnologias como a câmara obscura, encontra-se em íntima ligação 
com a paixão setecentista pela matematização da natureza associa-
da à prática de inventariar o território7. Isto terá levado a uma nor-
malização do espaço transformando-o num plano abstracto, espaço 
em que as relações entre pontos permitiam identificar as posições 
relativas dos lugares e explorar novos modos de representação. Ao 
enfatizar o papel hegemónico da visão na cultura ocidental, Martin 
Jay8 salienta que ‘a chegada deste regime dominante foi preparada 
por uma constelação de inovações sociais, políticas, estéticas e téc-
nicas no princípio da era moderna, que se combinaram para produzir 
o que em retrospectiva veio a chamar-se a racionalização do campo 
de visão’. O autor situa as origens do regime ocularcêntrico moder-
no na ambiguidade criativa da filosofia cartesiana, embora encontre 
antecedentes para esta tendência tanto nos períodos medievais como 
na Antiguidade Clássica. Ao perpetuar a hegemonia da visão (em 
detrimento dos outros sentidos), o código visual definidopelo huma-
nismo renascentista situava a visão humana no centro dos sistemas 
de representação. Tratava-se portanto de desenvolver uma ideologia 
visual que respondesse aos postulados do Humanismo9. 
Esta ideologia visual associada à tradição ocidental centrada 
num ponto de vista privilegiado, é também explorada por Norman 
Denzin10 que sugere que por ser intensamente realista este código vi-
sual teve o efeito de substituir outros sistemas de conhecimento e re-
presentação. Criando uma presença fixa para o sujeito (observador), 
tal forma de perspectivar o mundo veio centrar a ‘verdade da expe-
riência’ no aparelho ocular e tecnologias decorrentes, tornando-a o 
centro daquilo que se pretendia representar. Deste modo reproduzia-
se, segundo Denzin,11 a ideologia do sujeito humanista, um sujeito 
que corporizava o culto renascentista do individual’. De acordo com 
estes autores, tal atitude terá dado lugar a um ‘olho descorporizado’, 
um olho espectatorial mais do que incarnado, ‘o olho não pestane-
jante de uma superfície fixa de contemplação’.12 A celebração da vi-
são como sentido inaugural da percepção foi acompanhada nas artes 
36
Geografias do Corpo
por uma separação do figurativo da sua tarefa textual, por aquilo que 
Jay designa como a ‘desnarrativisação do ocular’. Este facto parece 
ter acarretado uma grande mudança no modo de ler o mundo como 
texto inteligível (o ‘livro da natureza’), passando este a ser encarado 
meramente como objecto observável na lógica de uma ordem visual 
dominante estabelecida pelos sistemas de racionalidade científica. 
Para James Duncan,13 funcionando como mecanismo de ‘naturali-
zação’ das representações, todo este processo veio enfatizar a ênfase 
no visual e nos discursos da mimese, produzindo uma marginaliza-
ção progressiva de outros modos de representação. A este propósito 
Jonathan Crary14 defende que a ‘posição assegurada ao sujeito no 
espaço vazio interior (da câmara obscura) era pré-condição para o 
conhecimento do mundo exterior’. Tal posição era legitimada pela 
distensão de um espaço isotrópico e por um ponto de vista ‘vanta-
joso’ que garantia o controlo da representação pelos grupos autorais 
dominantes. Este tipo de função autoral e jurídica, enfatiza Derek 
Gregory,15 assegurava a possibilidade de uma certo policiamento do 
visual relativamente ao funcionamento da ordem social, funcionan-
do como meio de visualizar espacialmente os objectos e de esta-
belecer a correspondência entre mundo exterior e representação16. 
Donde Duncan17 insistir na importância da evolução das tecnologias 
da visão e da percepção, nomeadamente a perspectiva linear, a câ-
mara lúcida e outros subterfúgios tecnológicos que visavam a repli-
cação fiel da natureza, perspectivados como instrumentos cruciais 
para o desenvolvimento de uma tradição de objectivismo na cultura 
ocidental. 
Entendidas metaforicamente por Duncan como um ‘catálogo de 
documentos da razão’,18 as tropes de ilustrações produzidas com 
o auxílio destas tecnologias funcionavam como testemunhos rigo-
rosos da estética moderna ocidental e das novas políticas de lugar 
subjacentes ao acto de retratar e catalogar o mundo. Entre elas, as 
representações de paisagem como forma de estruturação ideológica 
do território adquiriram papel crucial, tornando-se ‘expressão sig-
nificativa de uma tentativa histórica de associar a imagem visual 
e o mundo material’.19 Implicando o aperfeiçoamento tecnológico 
e sensorial de um determinado ‘modo de ver’20 que veio a tornar-
37
Desgeografização do corpo, 
uma política de lugar
se colectivo pela ‘naturalização’, a ideia de paisagem integrou o 
acto de visualizar o espaço e a relação com uma superfície de ob-
servação-contemplação. Como parte integrante de uma ideologia 
do Humanismo, esta nova relação entre o ser humano e o território 
tinha subjacente um conjunto de acções sociais e culturais que con-
tribuíram para o projecto de representar o mundo numa superfície 
plana. 
Os modos de presença associados à concepção volumétrica 
de espaço proposta por autores como Lock, Newton, Descartes e 
Gassendi, parecem ter vindo legitimar esta ideologia, assim como 
a natureza do logocentrismo ocidental e dos mapas políticos que se 
foram definindo dentro das representações de um espaço universal. 
Neste contexto, a legitimação de um espaço uniforme e isotrópico 
pelo sistema de valores oitocentista teve como resultado a absor-
ção do lugar pelo espaço como categoria analítica fundamental e 
como forma de inventariar o mundo redescoberto.21 A distensão de 
um espaço homogéneo e cartesiano estaria, então, profundamente 
associada àquilo que Gregory22 designa por apropriação visual do 
mundo característica da cultura ocidental, entendida pelo autor como 
uma máquina de representação (e apropriação) do real. Segundo 
Gregory,23 a evolução do regime ocularcêntrico da modernidade 
veio servir os poderes económico e político em consolidação, numa 
era em que os mecanismos imperialistas passaram da colonização 
territorial à colonização generalizada das representações. Neste sen-
tido, a narrativização do espaço através dos cadernos de viagem e 
outras crónicas de lugar, assim como a esteticização da paisagem 
enfatizada pelas mais diversas técnicas de representação, afirma-
ram-se como dois centros performativos cruciais dessa ‘máquina’ 
propagadora do imaginário geográfico europeu sobretudo a partir 
do século XVIII. Profundamente codificada através das artes da pai-
sagem, a experiência de lugar encontrou no espaço matemático da 
geometria euclidiana subterfúgio para a ‘naturalização’ do domínio 
do conhecido, bem como para a formação social que subjaz a ideia 
de paisagem como poderosa construção cultural. 24
Implicada com as ilusões de transparência que encontram nas 
regras da geometria e no ponto de vista descorporizado formas de 
38
Geografias do Corpo
tratar o espaço como objecto rigorosamente inteligível, a ideia de 
paisagem constituiu-se integrando a ‘naturalização’ de estruturas 
epistémicas e respectivas práticas significantes como domínios de 
uma visão totalizadora ou de uma meta-visão que operou, em grande 
medida, pela mobilização de um regime ocular em que se especia-
lizou a cultura ocidental moderna. Neste processo, a normalização 
do espaço pela sua transformação conceptual num plano abstracto, 
um plano geométrico constituído por formas ideais, permitiu a ex-
perimentação e a exibição das novas relações espaciais. Tais formas 
eram por sua vez perspectivadas de acordo com um ponto de vista 
cuja essência era a própria posição abstratizada de um ponto exterior 
ao plano. Neste sentido, Edward Casey25 salienta que a idealização 
transcendental do espaço característica da cultura ocidental e radica-
lizada pelos sistemas racionais de pensamento tornou o espaço num 
sistema universal de coordenação e medida. Transformado numa 
entidade homogénea e planiforme, ‘este espaço é sujeito à estriação 
linear por trajectórias precisas e é projectado como é visto – como 
numa perspectiva monofocal – permitindo a reprodução dos seus 
conteúdos indiferentemente em lado nenhum’.26 Volumétrico e pu-
ramente relacional, este espaço cartesiano alicerçou uma espécie de 
primazia da posição do observador na lógica de uma teoria moderna 
do espaço que estruturou as novas formas de ver o mundo. Uma teo-
ria que tinha subjacente o ponto de vista alegadamente privilegiado 
do observador27. Tal ponto de vista determinava, por sua vez, toda 
a organização do espaço no plano, um espaço cenográfico e volu-
métrico, um espaço de representação. Para Martin Jay verificou-se, 
neste processo, ‘um assalto ao significado substantivo do espaço, 
para este se tornar num sistema uniforme e ordenado de coordena-
das lineares’.28 De acordo com este autor, foi este espaço infinito do 
plano que diferenciou a visão dominante do mundo moderno das 
predecessoras, uma noção congénita não apenas à ciência moderna 
mas também ao sistema económico capitalista emergente. 
Erguida combase na reificação de um espaço descorporizado, 
enquanto característica estruturante das modernas convenções da 
cultura ocidental, uma concepção moderna do espaço unitário apre-
endia separadamente os seus elementos constitutivos, não permitin-
39
Desgeografização do corpo, 
uma política de lugar
do a compreensão profunda das relações entre a componente física 
(natureza), a componente mental (abstracções formais de espaço), 
e a componente social (o espaço de acção e conflito humanos).29 
Tendo subjacente um modo capitalista de produção, as espacialida-
des modernas estruturaram-se com base numa perspectivação do es-
paço como objecto inerte e homogéneo.30 Ao denunciar a tendência 
moderna para espacializar e o modo de pensar em termos de espacia-
lidade, como resultado de uma estratégia capitalista de acumulação, 
Henry Lefebvre31 contesta a ideia de espaço uniforme como superfí-
cie passiva para a acção de reprodução social a qual é veiculada pelo 
trabalho das representações. Para Lefebvre,32 a reconsideração deste 
espaço implica a ‘reconstituição do processo desde a sua génese ao 
desenvolvimento do seu significado’, indo de uma consideração dos 
fenómenos no espaço para uma consideração da própria produção 
do espaço. Assim, as representações de espaço são concebidas como 
o domínio simbólico do espaço do capital. A relação entre este tipo 
de espaço e a formação de uma superfície de visualização em torno 
da qual se estruturam as relações entre o ser humano e o território 
remete para a conexão entre os regimes de poder, verdade e conhe-
cimento que se organizaram durante o período moderno. 
Na sua tese historicista do espaço, Michel Foucault analisa as rela-
ções entre os mecanismos de poder e conhecimento e a constituição 
de superfícies estáticas de visualização. Para o autor, a constituição 
de superfícies ou corpos espaciais como expressão da acção das ins-
tituições sociais dominantes, faria parte dos mecanismos de controlo 
e vigilância accionados pelas convenções de uma ordem racional 
com o objectivo de impor as suas categorias epistémicas. Nesta sen-
da, o aperfeiçoamento dos regimes scópicos modernos respondia a 
esta necessidade e o Panóptico de Bentham (como paradigma das 
superfícies espaciais oitocentistas) é apenas um entre os inúmeros 
mecanismos passíveis de objectivar todo um mundo social constitu-
ído espacialmente através de nódulos e canais de dispersão não hie-
rarquizáveis e mutuamente irredutíveis. De facto, a visão tornou-se 
o modelo ocidental de cognição, encontrando-se absolutamente 
associado ao desenvolvimento da ciência. Dentro deste modelo, 
a observação do mundo ‘natural’ tem papel determinante para um 
40
Geografias do Corpo
quadro de legitimação empírica da verdade perceptiva. Como uma 
série de constructos conceptuais sem verificação ‘real’ a não ser pela 
acção de um Olho transcendental (o olho observador da ciência ba-
coniana), a história da ciência ergueu-se sob o artifício da experiên-
cia visual como ‘percepção natural.’33 Um regime visual específico 
legitimou pois uma série de categorias culturais que posicionaram 
uma noção ocularcêntrica de Razão como verdade universal. A cum-
plicidade entre uma razão ‘iluminada’ (uma fé intensa na evidência 
visual) e o controlo ocular dos indivíduos ou o domínio visual, viria 
a objectivar-se com a passagem para o século dezanove e pela trans-
ferência da ideia de um espectador ideal-transcendental (subjacente 
à superfície transcendental de observação da filosofia cartesiana) 
para a ideia de uma totalidade de observadores (subjacente à super-
fície empírica de observação da ciência moderna).34 
Ao convocar um conjunto de teorias que advogam o papel do-
minante de uma superfície de visualização para a produção de co-
nhecimento científico, tento clarificar as instâncias de produção de 
subjectividade que operaram em consonância com um modelo de 
cognição para a construção do conhecimento descorporizado. Já na 
década de 1970, Foucault chamava à atenção para o facto de que, 
o ‘poder soberano’ da superfície empírica de observação que se ar-
ticulou em torno desta ideia (a de uma totalidade constitutiva de 
observadores), advém da sua capacidade de se sobrepor às super-
fícies ‘sólidas e opacas’ do corpo. Proporcionando um contexto de 
objectividade que suplantava as verdades ideais que compunham a 
‘claridade clássica’ do Iluminismo, esta superfície empírica de ob-
servação é paralelamente a superfície de individualização celebrada 
pelos românticos. Erguida como um poderoso campo epistémico 
dentro do qual através desta superfície uma realidade objectiva se 
abre a um olho inocente, ‘o mito de uma superfície de visualização 
pura como linguagem pura’35 alicerçou um regime de conhecimento 
assente sobre a ideia de um olho absoluto. A complexa interacção 
entre linguagem e visão que estrutura a ciência moderna, estabelece 
assim uma dialéctica entre palavra e imagem como forma de aceder 
‘à mudez dos objectos’.36 De resto, uma dialéctica que legitimou a 
ficção humanista de um sujeito constitutivo. Através dela, justifi-
41
Desgeografização do corpo, 
uma política de lugar
cou-se uma ‘coerência’ espacial que urgia mapear para um supor-
te bidimensional, tarefa que a representação em paisagem com as 
suas qualidades miméticas exponenciava, transformando o espaço 
num trompe l’oeil universal para consumo doméstico. Neste proces-
so, aquilo que um campo anónimo de visão anunciava (a superfície 
empírica de visualização) era a própria descorporização deste Olho 
absoluto da ‘carne do mundo’ e da experiência vivenciada.37
Arreigado à ‘verdade’ da observação, o discurso científico moder-
no encontrou na superfície empírica de visualização recurso para 
alcançar a ‘transparência genuína’ do conhecimento. Como dispo-
sitivo que se dissolve em invisibilidades por forma a revelar uma 
verdade unívoca ou um sentido não ambivalente dos factos analisa-
dos, a superfície empírica de observação estabeleceu um regime de 
conhecimento empenhado com a legitimação da unidade da palavra 
e da imagem.38 Dominado pela fé no poder da observação directa 
assim como da observação mediada pela tecnologia, o discurso cien-
tífico comprometeu-se com a ordenação taxonómica dos fenómenos 
organizados no espaço visível do plano. Tornada num registo trans-
parente da superfície de observação, a linguagem científica integrou 
o conhecimento visual como ordem dominante resgatada a um con-
junto de ‘testemunhas ausentes’; o sujeito observador e soberano 
que apenas pode ser inferido pela representação. 
O campo epistemológico visualmente constituído transformou-se, 
deste modo, no domínio de um meta-sujeito do conhecimento, um 
sujeito alegadamente neutro que percebia o mundo do exterior e 
que perseguia uma visão pura dos fenómenos, a qual ‘deveria ser 
transcrita na materialidade do espaço’.39 Este sujeito da representa-
ção, o meta-sujeito observador característico das Ciências Naturais 
e das Ciências Humanas, encontrou-se implicado na construção de 
um projecto antropocêntrico legitimado pela posição de um sujeito 
sintético e unificado como o proprietário de uma visão universal. A 
ontologia de uma superfície de observação que requeria um sujei-
to observador e um Outro objectualizado (observado), justificava, 
assim, uma metafísica da presença alicerçada sobre uma episteme 
que era nutrida pelo poder de objectificação de um regime ocular 
específico. Neste quadro, o policiamento visual dos corpos e dos es-
42
Geografias do Corpo
paços efectuado por meio de uma superfície de observação, respon-
dia à necessidade de representação de um sistema auto-suficiente. A 
criação de configurações espaciais ‘consistentes’ que sustentavam a 
alegada coerência de um regime visual dominante assegurava, as-
sim, a criação de uma arena de representação passível de albergar os 
contextos de mesmidade do sujeito humanista, protegendo-o da al-
teridade e da ambiguidade criativa de diferentes modos de ver e dos 
desafios dos outrossentidos como o olfacto e o tacto. Espaço, corpo 
e lugar vêm-se portanto enredados num regime de conhecimento de 
que somos herdeiros, regime este alicerçado sobre a primazia de um 
sistema cognitivo e perceptivo responsável pela produção da subjec-
tividade. Detenhamo-nos pois, seguidamente, sobre o modo como 
tem vindo a ser questionado este modelo de conhecimento pela ênfa-
se em modelos alternativos assentes num conhecimento corporizado 
que reclamam diferentes posições de sujeito. 
2. Do corpo como contentor de identidades essencializadas ao 
corpo como lugar de criação de subjectividades 
A revisão dos ‘humanismos’ que percorrem as tradições discursivas 
ocidentais, sendo central para a construção de teorias alternativas, 
promove a construção de discursos passíveis de suplantar as tendên-
cias de apropriação, de totalização e de integração que subjazem o 
conhecimento moderno. Por isso, configura parte significativa dos 
esforços que nas últimas décadas se têm desenvolvido no âmbito 
dos estudos em torno da cultura científica. Efectivamente, se parte 
significativa da teoria cultural das últimas décadas se tem orientado 
para a revisão de conceptualizações drasticamente antropocêntricas, 
isto acontece em grande medida porque o repensar das subjectivida-
des implica ter em conta as relações de poder que permeiam a sua 
própria formação e experiência. A análise da história da subjectivi-
dade, tem mostrado que as posições de sujeito são construídas em 
grande medida através dos discursos do corpo e do lugar, do desejo 
e da sexualidade, os quais alteraram as percepções da subjectividade 
e da sociedade, delimitando a afirmação de ‘outras’ identidades.40 
Perspectivada como arena de conflito e contestação, dada a multi-
plicidade e a natureza mutável das relações que nela são tecidas, a 
43
Desgeografização do corpo, 
uma política de lugar
ideia de lugar tem vindo a ser reconceptualizada como construção 
dinâmica e fluida.
Ligados por específicas formas de habitação, corpo e lugar são 
mobilizados através de construções simbólicas cujos significados 
são frequentemente alvo de narrativas inaugurais que favorecem a 
perpetuação de visões metafísicas ou míticas sobre o mundo e os 
espaços que o constituem.41 Estruturando e simplificando as relações 
entre o ‘aqui’ e o ‘ali’, ‘nós’ e os ‘outros’, tais visões ou perspectivas 
são alicerçadas sobre a ideia de uma estética não opressiva e eviden-
ciam uma coerência aparente. Obscurecendo as particularidades do 
lugar, estas perspectivas são fundadas numa hierarquia social do am-
biente de representação e diferenciais no ‘capital posicional’42 dan-
do origem a agudas contradições e a tensões associadas às fronteiras 
simbólicas, sociais e físicas incorporadas no espaço. 
A contestação da ideia de identidades únicas e permanentes, em-
bora não implique a negação do carácter único de um lugar, fez com 
que se passasse a analisar esse carácter enquanto ‘consequência da 
múltipla intersecção de fluxos generalizados, estruturas de poder, 
discursos e subjectividades’.43 Produto social e dos mais diversos 
imaginários geográficos, o lugar é constantemente criado e recriado 
veiculando forças de inclusão e de exclusão que participam na for-
ma de habitar cada mundo de experiência. Por isso, a ideia de lugar 
constitui frequentemente fonte de paradoxo, ambivalência e contra-
dição. Aliás, a reconceptualização do lugar como área circunscrita 
para um agregado de redes de relações sociais abertas e porosas, 
veio reforçar, de acordo com Doreen Massey,44 a ideia de que as 
identidades de lugar são múltiplas pelo que a imagem dominante 
de qualquer lugar é mutável através do tempo e é sempre alvo de 
contestação. Para a autora, o estudo do lugar encontra-se para além 
das tradicionais polarizações conceptuais a que tem vindo a ser vota-
do, tais como objectividade/subjectividade ou acção/estrutura, pelo 
que não existem características fixas de lugar ou fronteiras espaciais 
fixas, sendo os lugares definidos tanto pelo interior como pelo exte-
rior constitutivo.
Reflectindo a sensibilidade contemporânea das orientações críticas 
humanistas, a tentativa de compreensão do significado de lugar pas-
44
Geografias do Corpo
sou a ter subjacente a preocupação com problemáticas tão diversas 
como a memória individual ou colectiva, a conexão entre imagens, o 
sentido idealizado de lugar e o fabrico de comunidades específicas. 
Mas, tal esforço passa ainda pela busca das complexas relações entre 
o corpo e as instâncias de produção de poder e autoridade, surgindo 
como terreno para a escolha ética e moral. Denunciando as visões 
parciais e incompletas que se escondem sob cada sentido de lugar, 
desvelam-se os silêncios políticos e sociais alojados em cada paisa-
gem material indagando-se as diversas formas em que se cumpriu a 
sua representação. Neste sentido, o debate em torno da fisicalidade 
da paisagem (e as interpretações complacentes de lugar) tem vindo a 
ser incrementado tendo em conta narrativas que denunciam o envol-
vimento com a natureza não como abstracção mas como elemento 
determinante no que respeita à definição das experiências pessoais. 
Como modo de exercer o controlo disciplinar sobre os corpos 
dos sujeitos, decorrente da afirmação do conhecimento científico 
moderno, a descorporização do prazer e do desejo associa-se aos 
processos interligados de identificação e desidentificação que ope-
ram na formação do sujeito (do humanismo). Daqui decorre que os 
processos de construção de identidades que se desenvolveram no 
mundo moderno apresentam uma frágil e contraditória constituição, 
funcionando as categorias engendradas como meio de estigmatiza-
ção do Outro e de ‘outros lugares’ sobre os quais se recolocaram as 
características rejeitadas pelo sujeito do humanismo. Funcionando 
como ‘superfície de inscrição e como fronteira entre o sujeito indi-
vidual e aquilo que é Outro para ele’,45 o corpo funciona ainda como 
fronteira maleável que nos põe em contacto com um exterior auto-
determinado. A ênfase no trabalho de um ‘exterior constitutivo’,46 
remete, nestes termos, para a necessidade de ruptura com a noção de 
identidades puras e de fronteiras rígidas entre os sujeitos47 e com a 
ideia de lugares dos sujeitos. 
Activamente constituídos através de ideologias e de metateorias 
de localização, os corpos e os sujeitos são modelados por forma-
ções discursivas tanto como por contextos materiais e determinantes 
biológicas, possibilitando e delimitando, uns e os outros, as práticas 
sociais. Como salienta Rob Shields,48 ‘(o) acto selvático de ‘fazer 
45
Desgeografização do corpo, 
uma política de lugar
o espaço’ e de pôr em prática códigos espaciais é indicador de uma 
qualidade social mais lata orientada para a codificação espacial, 
para as práticas espaciais, para as nossas representações de espaço e 
para a nossa geografia imaginária, em que tudo tem um lugar e um 
tempo’. Enquanto elemento cultural que legitimou uma lógica de 
identificação ‘natural’ e respectivas hierarquias, o sistema moderno 
de conhecimento assenta, como já foi referido, sobre a ideia de uma 
corporização abstracta do sujeito.49 Esta, dispersa-se em categorias 
espaciais através das quais se organizou uma muito concreta rede de 
poder de uns indivíduos sobre os outros. É que, a formação dos su-
jeitos individuais e colectivos encontra-se na dependência da cons-
trução e ‘naturalização’ de categorias não-inocentes de localização 
que serviram para legitimar uma epistemologia e uma ontologia de 
policiamento da diferença.50 Iludindo as múltiplas realidades cor-
porais, as identidades parciais e os pontos de vista contraditórios, a 
ideologia que subjaz o constructo de identidade universal iludiu a 
constituição histórica geográfica e social de categorias como género, 
raça ou classe, autorizando a apropriação dos corpos e identidades 
como parte de um trabalho político de organização de uma rede de 
poder eurocêntrico. 
O desafio de superação dos dualismos

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