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FORMICOFILIA: RELATO DE CASO Introdução Apesar de a maioria dos seres humanos manter atividade sexual com adultos, vivos e em situação de consentimento, buscando prazer e/ou procriação, alguns indivíduos têm preferências tidas como não-convencionais. 1 A zoofilia é um Transtorno de Preferência Sexual (ou parafilia) que se caracteriza por fantasias, pensamentos e/ou práticas sexuais com animais 2,3 . Pela Classificação Internacional das Doenças, em sua 10ª edição (CID-10), a zoofilia está incluída em Outros Transtornos da Preferência Sexual (F65.8) 2 , já pelo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, 4ª edição – texto revisado (DSM-IV- TR), faz parte das Parafilias Sem Outra Especificação (302.9) 3 . Popularmente, os zoófilos são provenientes de zonas rurais e possuem níveis de inteligência inferior à média e com educação precária, esse conceito não é referendado cientificamente. 4 Eles costumam ser adaptados ao meio social e dotados de boas habilidades sociais interpessoais. 5 Entretanto, os estudos sobre zoofilia são escassos. 6,7 Por ser considerado um evento pouco prevalente na população ou por desconhecimento médico, geralmente é negligenciado na anamnese psiquiátrica habitual. 5,8 A zoofilia é um fenômeno predominantemente masculino, mas há casos descritos no gênero feminino. Aparece precocemente 9,10 ; parece ser “descoberta”, e não ser “escolhida” por seu portador. Frequentemente, a atração pelos animais precede o envolvimento com práticas sexuais com eles, como um distúrbio do desenvolvimento que pode se antecipar à puberdade, evidenciando a importância das fantasias sexuais prévias na caracterização da zoofilia, assim como das demais parafilias. 9,10 A zoofilia é comumente comórbida a outras parafilias. 10 Objetivo Estudar caso raro de zoofilia (formicofilia). Método Relato de caso do paciente (JCC) com discussão, relacionando teoria e terapêutica administrada. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Bioética do HC- FMUSP. Relato de Caso (13/08/2007) Identificação JCC, 53 anos, masculino, aposentado por invalidez (atua como sacristão de Igreja católica), solteiro (sem relacionamento afetivo e sem filhos), 1º grau incompleto, procedente de zona rural do Estado de São Paulo, Brasil. História clínica Refere que por volta dos 14 anos de idade chamou sua atenção, no chão, um palito de sorvete coberto por formigas, despertando-lhe a curiosidade de como seria a sensação se no lugar do palito, estivesse seu pênis. Passou então a coletar formigas e levá-las para casa, colocando-as sobre o pênis e bolsa escrotal, comportamento este, que o deixava muito excitado e por vezes provocava orgasmo. Relata que a sensação de gratificação sexual adivinha de um misto de dor e prazer pelas picadas dos insetos. Essas primeiras práticas sexuais impulsionaram-no a procurar formigueiros, nos quais introduzia o pênis e depois se masturbava. Nessa época, era ajudante da Igreja Católica da cidade. Considerava-se bem religioso e por isso sentia muita culpa associada a tais práticas. Porém, não conseguia evitar. A partir daí, passou a estudar sobre formigas, as espécies, suas características e quais lhe proporcionariam maior satisfação sexual. Desenvolveu preferência pelas formigas popularmente conhecidas como lavapés (gênero Solenopsis), que constroem grandes formigueiros, e cuja picada é particularmente dolorosa. Em decorrência dessa prática sexual teve infecção na região genital, especialmente no pênis, inclusive com sequelas. Refere receio de que esse comportamento seja descoberto, bem como das complicações urológicas. Fala que em uma consulta, há vinte anos, abordou o tema, mas não seguiu qualquer tratamento específico. Ao longo da vida, picadas de certas espécies de formigas chegaram a lhe causar cefaleias e febre. Refere ser homossexual e ter dificuldade social por esta orientação, seu relacionamento afetivo mais duradouro foi com um homem por 7 anos e nega relações heterossexuais. Com homens, diz ter desejo, excitação e orgasmo; mas se percebe frustrado por necessitar recorrer às práticas sexuais com formigas, mesmo quando tem a oportunidade de se envolver com pessoas. Considera seu relacionamento familiar razoável, mas reside sozinho numa chácara e não tem envolvimento sexual e afetivo no momento. Refere, ainda, atração sexual por cães e bodes, com os quais teve diversas práticas sexuais. Foi lambido e penetrado por cães até 2005. Antecedentes pessoais e familiares: “Crises nervosas” desde os 20 anos. Foi afastado e aposentado por esse motivo. Não sabe especificar o diagnóstico e os tratamentos propostos. Nega epilepsia. Nega comorbidades e cirurgias prévias. Nega tabagismo, etilismo e uso de drogas ilícitas. Exame Psíquico: Bom aspecto geral, fácies e vestes adequadas, consciente, orientado alopsiquicamente, atenção e memória preservadas, eutímico. Curso, conteúdo e forma do pensamento sem alterações. Por meio da fala e comportamento nota-se certa timidez, mas colaborativo durante a entrevista. Apresenta alterações da conação – desejos parafílicos. Crítica, pragmatismo útil e inteligência preservados. Diagnósticos pela CID-10 Transtornos múltiplos de preferência sexual (zoofilia e masoquismo sexual). Orientação sexual egodistônica. Conduta Terapêutica Encaminhado ao ambulatório de Transtornos de Preferência Sexual do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC- FMUSP). Prescrito paroxetina 20mg, 1 comprimido por dia, por tempo indeterminado e indicado psicoterapia individual. Evolução Clínica Após o início do tratamento, em novembro de 2007, o paciente referiu diminuição do desejo e das práticas sexuais com formigas; como efeito colateral da medicação referiu leve sonolência, mas comentou estar satisfeito por ter remitido tal prática. Nessa ocasião foi-lhe sugerido aumentar a dose da para 40mg/dia e iniciar psicoterapia, que o paciente não pode fazer porque reside em outra cidade. Em março de 2008, passou a sentir sonolência exacerbada, retornando, por conta própria, à posologia inicial, ocasião na qual as fantasias com formigas reapareceram, sem prática associada, recomendado elevar a dose a 30mg/dia. Em maio de 2008, não ajustou a dose da medicação como combinado e mencionou práticas sexuais com cabras, passou a apresentar dor testicular, ocasião em que foi encaminhado para avaliação urológica realizada em setembro de 2008, que não evidenciou alterações físicas e laboratoriais, apesar da dor em bolsa escrotal, há 4 meses. Foi indicado ao paciente uso de suspensório escrotal em consequência das infecções. Entre agosto de 2008 a setembro de 2010 houve épocas que não fez uso adequado da medicação, em consequência dos sintomas colaterais, apresentou várias recaídas. Desde então, foi associado divalproato de sódio 500mg/dia, referindo melhor estabilidade emocional, entretanto a sintomatologia não remitiu e o quadro não foi controlado. Discussão Com o advento da internet está sendo possível compreender melhor a prática zoofílica, comunidades de zoófilos estão cada vez mais disseminadas por meio da rede de computadores e pesquisas quantitativas puderam ser realizadas. 4 Até então, a maioria dos estudos voltavam-se para relato de casos 5,6 , por outro lado, casos raros, como aqui descrito, são de difícil acesso por esse meio. A literatura questiona se, como em outras parafilias, a zoofilia envolve prejuízo funcional e ocupacional ao zoófilo e/ou à sociedade. A discussão distingue a situação em que a prática sexual com animal é realizada mesmo tendo a oportunidade de praticá-la com ser humano adulto e vivo 7 , como podemos observar na história de JCC, que apesar de suaparafilia, apresenta boa inserção social e admite a preferência por animais que à humanos. A alternância entre o desejo sexual por animais e humanos pode criar, segundo os estudos, diferentes categorias para essa parafilia: desde indivíduos que se erotizam na presença de animais 7 até outros que afirmam apresentar “disforia de espécie” 6 (como se pertencessem a um corpo da espécie errada), JCC nega desejo de pertencer à outra espécie, mas é notória sua erotização frente às formigas, a sensação de dor associada ao prazer sexual provocado pelas picadas são posteriores ao interesse por elas. Conclusão Paciente portador de pan-zoofilia cujo tratamento exclusivamente medicamentoso não remite a sintomatologia e não trabalha integralmente o desejo parafilico, resultando em cronificação do quadro. Referências 1. Bhugra D, Popelyuk D, McMullen I. Paraphilias across cultures: contexts and controversies. J Sex Res.2010; 47(2): 242-56. 2. Organização Mundial da Saúde. Classificação dos Transtornos Mentais 10a. Edição. 1993. Porto Alegre: Artes Médicas. 3. American. Psichiatry Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders DSM-IV-TR. 4th ed. (text version).2002.Washington: American Psichiatry Association 4. Earls C M, & Lalumie`re M L . A case study of preferential bestiality.Arch Sex Behav. 2009; 38(4): 605-9. 5. Dittert S, Seidl O, Soyka M. Zoophilia between pathology and normality. Presentation of 3 case reports and an internet survey. Nervenarzt. 2005; 76(1): 61- 6. Bhatia M S, Srivastava S, Sharma S. An uncommom case of zoofilia: a case report. Med Sci Law. 2005; 45(2): 174-5. 7. Beetz A M. Bestiality/Zoophilia: A Scarcely Investigated Phenomenon Between Crime, Paraphilia, and Love. Journal of Forensic Psychology Practice. 2004; 4: 1-36. 8. Marsh P J, Odlaug B L, Thomarios N, Davis A A, Buchanan S.N, Meyer C S, Grant J E. Paraphilias in adult psychiatric inpatients. Ann Clin Psychiatry. 2010; 22(2): 129-34. 9. Hensley C, Tallichet S, Singer S D..Exploring the possible link between childhood and adolescent bestiality and interpersonal violence. Journal of Interpersonal Violence. 2006; 21: 910–23. 10. Hensley C, Tallichet S E, Dutkievicz E L. Recurrent Childhood Animal Cruelty. Criminal Justice Review. 2008; 34(2): 248-57.