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O MITO A história que acabamos de narrar tem base em documentos e relatos históricos, mas diversos de seus detalhes são difíceis de serem comprovados com toda a exatidão. Queremos dizer com isso que mesmo o fato histórico está contaminado de incertezas, fruto da deficiente documentação, dos métodos pouco confiáveis dos registros e crônicas, além do que muitas das possíveis fontes para esses eventos se perderam no decorrer do tempo. Dona Inês de Castro [1] No fundo, a própria História se encontra algo mitificada — um processo normal em qualquer cultura e que abre margem para que o mito se fortaleça e expanda. No caso de Pedro e Inês, logo depois de suas mortes, o imaginário popular foi acrescentando detalhes maravilhosos aos acontecimentos. Em Coimbra passou-se a acreditar que Inês fora morta em sua própria casa, o famoso Paço de Santa Clara. Junto a esse palácio havia jardins, bosques e duas fontes, numa destas, depois chamada de fonte das Lágrimas, existem raríssimas algas vermelhas, que a imaginação do povo relaciona com o sangue derramado da bela Inês. A outra fonte, “dos Amores”, teve seu nome dado por Camões num trecho de Os lusíadas dedicado a Inês de Castro: E, por memória eterna, em fonte pura As lágrimas choradas transformaram. O nome lhe puseram, que inda dura, Dos amores de Inês, que ali passaram. (III, 135) E aqui entram em cena os poetas e artistas que, ao se apropriarem da história, foram recriando os fatos, dando ênfase a alguns aspectos e obscurecendo outros. Eles fizeram com que a memória desse sublime amor não fosse perdida, mas também provocaram novos sentidos e funções que os fatos em si não possuíam. Fernando Pessoa sintetiza de forma perfeita esse processo de mitificação: Assim a lenda se escorre A entrar na realidade, E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, morre. (“Ulysses”, in Mensagem) Nesses versos, Pessoa está se referindo ao mito de fundação de Lisboa, atribuída ao herói grego Ulisses, que teria construído a cidade durante sua viagem de retorno da guerra de Tróia. Mas a ideia serve para qualquer mito: um valor ou sentimento fundamental à realidade humana é fecundado pela lenda, que passa a valer mais do que a própria realidade histórica. Tratando- se do mito de Inês de Castro, pode-se dizer que um dos valores que está sendo fecundado é a ideia de superação da morte pela força do amor. Mas não só isso. transforma num cenário de contos de fada: Em um reino distante, havia um rei, um valente príncipe e uma linda princesa... 4