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Autora: Profa. Tânia Sandroni Colaborador: Prof. Roni Everson Muraoka Storytelling Professora conteudista: Tânia Sandroni Doutora em Letras pelo Programa de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP, 2018), mestra em Ciências da Comunicação pela USP (2001) e graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo (1990), pela USP. É professora titular da Universidade Paulista (UNIP). © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S219s Sandroni, Tânia. Storytelling / Tânia Sandroni. – São Paulo: Editora Sol, 2021. 164 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Storytelling. 2. Narrativas. 3; Jornalismo. I. Título. CDU 659 U511.22 – 21 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Vera Saad Willians Calazans Sumário Storytelling APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 STORYTELLING: CONCEITOS E DEFINIÇÕES ..............................................................................................9 1.1 Introdução ao storytelling ...................................................................................................................9 1.2 O que é storytelling? ........................................................................................................................... 14 1.3 Storytelling como ferramenta e técnica ..................................................................................... 16 1.4 Poética de Aristóteles e suas aplicações modernas ............................................................... 20 2 O PODER DAS ESTÓRIAS............................................................................................................................... 24 3 ESTRUTURAS NARRATIVAS.......................................................................................................................... 33 3.1 Estrutura narrativa do mito ............................................................................................................. 33 3.1.1 Jornada do herói ..................................................................................................................................... 37 3.2 Estrutura narrativa dos contos maravilhosos ........................................................................... 51 4 TEXTO NARRATIVO .......................................................................................................................................... 67 4.1 Tipologia textual ................................................................................................................................... 67 4.2 Elementos constitutivos da narrativa .......................................................................................... 71 4.2.1 Enredo ......................................................................................................................................................... 71 4.2.2 Narrador ..................................................................................................................................................... 74 4.2.3 Personagens .............................................................................................................................................. 82 4.2.4 Espaço .......................................................................................................................................................... 85 4.2.5 Tempo .......................................................................................................................................................... 86 Unidade II 5 STORYTELLING E NARRATIVA JORNALÍSTICA ....................................................................................... 94 5.1 Narrativa jornalística e narrativa literária .................................................................................. 94 5.2 Histórias e sensacionalismo ...........................................................................................................102 5.3 Storytelling no jornalismo contemporâneo ............................................................................105 6 STORYTELLING COMO ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO NO MARKETING .............................114 6.1 Marcas e seus significados .............................................................................................................114 6.2 Marcas e arquétipos ..........................................................................................................................120 Unidade III 7 STORYTELLING E OS TEXTOS PUBLICITÁRIOS .....................................................................................129 8 TRANSMÍDIA E STORYTELLING .................................................................................................................140 8.1 Transmídia e crossmídia ...................................................................................................................140 8.2 Narrativa transmidiática e jornalismo .......................................................................................144 7 APRESENTAÇÃO Storytelling é uma palavra “em alta” nos ambientes corporativos e comunicacionais ultimamente. Oficinas, livros, artigos e vídeos dedicam-se a ensinar essa ferramenta a profissionais e a estudantes de marketing, publicidade e jornalismo. Ela tem sido apontada como capaz de agregar valor às marcas e de ter grande poder de persuasão sobre o receptor. Embora a palavra possa ser nova, a ideia é bastante antiga. Em tradução literal, storytelling significa “contação de estória”. Trata-se, em português, da técnica, ou da arte, de se contar bem uma história, de se construir da melhor forma possível uma narrativa. Desde os primórdios da humanidade, as histórias (ou estórias) encantam, informam, formam e entretêm. As narrativas estão presentes nas mais diferentes formas no cotidiano de todas as pessoas. Imaginemos uma rotina nos dias atuais. Você acorda, lê uma reportagem sobre um estudante que superou as dificuldades da infância e ingressou na universidade. Na sequência, ouve de um amigo a história da viagem que ele fez com a namorada. No trabalho, escuta um colega contar sobre um assalto no bairro dele. Ainda no trabalho, ouve uma anedota de um cliente. No ônibus, o passageiro ao seu lado conta como teve que migrar de cidade. Na rua, ouve as pessoas comentando sobre as personagens da novela. À noite, momento bastante aguardado, assiste a três episódios daquela série que você adora. Percebeu que todos os momentos expostos anteriormente envolvem histórias? Em todas as situações, alguém construiuuma narrativa. Agora pense: por quais narrativas nos interessamos? Além de prestarmos mais atenção naquelas que têm conteúdos importantes ou necessários para nós, também somos envolvidos pelas histórias bem contadas. Há pessoas que não sabem contar bem uma piada, e ela perde a graça. Há outras que não dosam adequadamente os elementos da narrativa, e a história fica chata. Isso significa que, além de termos uma boa história, precisamos saber contá-la. Por isso, storytelling é uma junção de duas palavras (story + telling). Não há fórmulas fixas para se construir uma boa narrativa, mas o conhecimento de conceitos e de alguns exemplos é fundamental para que você desenvolva essa técnica. Assim, o objetivo da disciplina Storytelling é fazer com que o aluno desenvolva ferramentas de linguagem em diferentes mídias, tradicionais ou não, e explore recursos de produção de bons textos e conexões em narrativas aplicadas às demandas das diferentes áreas da comunicação. Essa habilidade é essencial para o jornalismo. O jornalismo, afinal, vive de narrativas. Podemos dizer que o jornalista é um contador de histórias da contemporaneidade. E essas histórias precisam ser bem contadas! Bom estudo! 8 INTRODUÇÃO Era uma vez um jovem estudante que sonhava em ser jornalista. Esforço e vontade eram características que não lhe faltavam. Ainda criança, imaginava-se no telejornal, para orgulho da família. Ele desejava ter sucesso profissional, mas também aspirava contribuir, com seu trabalho, para que as pessoas tivessem acesso a informações e a leituras diversas da realidade. Idealista, pensava que deveria lutar por um mundo mais justo. Neste ano, o sonho do nosso personagem começou a se concretizar: foi aprovado no curso que tanto queria. Com a matrícula feita, acessou, no site da instituição, as disciplinas que cursaria e, entre elas, estava Storytelling. O que seria isso? A curiosidade o atiçou... Gostou da estória? Identificou-se com aspectos dela? Este início do nosso livro-texto tem como função mostrar a você, caro aluno, como as narrativas, por mais simples ou comuns que sejam, nos atraem, nos despertam o interesse. Esta disciplina, Storytelling, aborda a arte de contar histórias, tão presentes em nossas vidas. Trata-se de uma técnica que tem ganhado destaque no mundo comunicacional. Para que se aplique a técnica de storytelling como ferramenta de comunicação, é necessário ter alguns conhecimentos básicos de áreas diversas, como teoria literária, marketing, jornalismo, psicologia, sociologia e história. Por quê? Porque as narrativas são textos (orais ou escritos), que envolvem linguagem e são produzidos em determinadas épocas e em determinados lugares, com funções e intencionalidades distintas. Não se restringem a áreas específicas e dependem do bom repertório de quem os produz. Assim, para abordarmos o conteúdo desta disciplina, este livro-texto foi dividido em três unidades (unidade I, unidade II e unidade III). Na primeira unidade, estudamos conceitos e definições do storytelling e abordamos o poder que as histórias/estórias têm sobre os seres humanos desde tempos remotos. Também explicamos, de forma breve, as estruturas clássicas das narrativas, como a narrativa do mito e a narrativa dos contos de fada. Ainda, detalhamos os elementos que constituem uma narrativa. Na segunda unidade, apresentamos o uso da técnica do storytelling nas áreas de jornalismo e marketing. Embora a contação de estórias acompanhe a humanidade desde os primórdios, ela tem ganhado destaque no mundo corporativo apenas nos últimos anos. O novo contexto tecnológico, marcado fortemente pela internet e pelas redes sociais, tem impulsionado novos paradigmas comunicacionais. O excesso de informações a que somos diariamente submetidos tem estimulado a busca por novas formas de atrair a atenção das pessoas. Para facilitar a apreensão de conceitos, mostramos alguns casos de storytelling, bem-sucedidos ou não. Por fim, na terceira unidade, comentamos sobre o uso dessa técnica na publicidade e sobre o fenômeno da narrativa transmídia, especialmente no jornalismo. 9 STORYTELLING Unidade I 1 STORYTELLING: CONCEITOS E DEFINIÇÕES 1.1 Introdução ao storytelling O sociólogo, crítico literário e ensaísta alemão Walter Benjamin escreveu, em 1936, um ensaio intitulado “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, cuja proposta era fornecer uma análise social, cultural, histórica e literária do romance (pós-)moderno. Esse texto tornou-se ponto obrigatório no estudo da literatura e do ato de narrar. Nele, Benjamin afirma que narrar é um componente essencial à experiência; em termos muito simplificados, narrar a vida é viver. Quando narramos nossas experiências, estamos revivendo-as, ressignificando-as e tornando-as coletivas. Em outras palavras, estamos dando sentido ao vivido. Benjamin escreveu sobre o ato de narrar no século XX, e o conceito de storytelling só se tornou um campo de estudos popular em anos ainda mais recentes. No entanto, o ato de contar histórias é algo que acompanha a espécie humana desde tempos muito remotos. As pinturas rupestres, nossos mais comuns indicativos do desenvolvimento de sociedades e culturas, contam histórias, e as mais antigas delas a que temos acesso foram produzidas por volta de 40.000 a.C., no período Paleolítico Superior. O Épico de Gilgamés (ou Gilgamexe) compila uma série de histórias acerca do herói mitológico de mesmo nome, quinto rei da dinastia de Uruque da Suméria, que governou por volta de 2900 a.C. Na China, histórias são contadas sobre a dinastia Xia, Estado que existiu aproximadamente entre 1900 e 1350 a.C. na província de Henan. O Velho Testamento, com todas as histórias nele compiladas, foi escrito entre 1500 e 450 a.C. Recontamos até hoje, ao menos no mundo ocidental, diferentes variantes da história de Cleópatra, faraó do Egito no século I a.C., tão lendária que era considerada uma reencarnação da própria deusa Ísis. Todos esses são apenas exemplos de que temos conhecimento da antiga prática de contar histórias. 10 Unidade I Figura 1 – Pinturas rupestres no Parque Nacional do Catimbau, em Pernambuco Figura 2 – Tábua sobre a epopeia de Gilgamés, também conhecida como a Tábua do Dilúvio 11 STORYTELLING Mas por que contamos histórias, afinal? Por que a prática do storytelling parece estar tão firmemente integrada com a história humana? Se observarmos animais sociais (isto é, animais que vivem em grupos), veremos que eles desenvolvem formas de comunicação próprias. Para animais que vivem e caçam em conjunto, a comunicação é essencial, independentemente do modo como ela seja feita. Não é incomum que os macacos de um mesmo bando revezem-se no papel de vigia, por exemplo, alertando o resto do grupo quanto à presença de predadores e à existência de outras possíveis ameaças; para tanto, eles fazem uso de um sistema predominantemente vocal de comunicação. Em outras palavras, a capacidade do bando de se comunicar interfere diretamente em suas chances de sobrevivência. Como nós, humanos, compartilhamos com os macacos modernos um ancestral comum, é bastante possível, se não provável, que as linguagens humanas tenham surgido a partir da necessidade de nos comunicarmos uns com os outros e, posteriormente, evoluído para o uso de palavras como símbolos. Mas como histórias poderiam ter servido para aumentar nossas chances de sobrevivência? Geralmente, quando tratamos do processo evolutivo da espécie humana, costumamos falar de polegares opositores, de nossa lenta transição para andar em duas “patas” em vez de quatro, da criação de ferramentas, do desenvolvimento da agricultura… Talvez, falemos também do desenvolvimento das linguagens. O que não costumamos explorar com mais profundidade, tanto pela escassez de evidências históricas quanto pela relativa impopularidade do tema na mídia, é a ideia de culturas pré-históricas. Conforme já mencionamos, sabemos que nossos ancestrais paleolíticos já produziam arte,um dos elementos importantes de uma cultura, alguns 40.000 anos atrás. Coincidentemente ou não, estima-se que também nesse período os seres humanos tenham desenvolvido uma linguagem mais semelhante à nossa. Além disso, por volta do período Paleolítico Superior, existem evidências da existência de ao menos uma religião. Para um exemplo mais claro de como as histórias que contamos são ferramentas de cultura, avancemos no tempo para os contos de fadas. Pensemos na história de Chapeuzinho Vermelho, por meio da qual ensinamos nossas crianças que elas devem obedecer aos adultos. Ou na história de Cinderela, por meio da qual ensinamos que nossos sonhos podem se realizar se formos boas pessoas e trabalharmos duro. Histórias nos ensinam valores socioculturais, nos ensinam como “devemos” ser. Não é à toa que elas mudam com o tempo, que variam de lugar para lugar; a Branca de Neve da Disney, por exemplo, tem muito pouco em comum com a sua antecessora nos contos dos irmãos Grimm. A versão dos irmãos Grimm, imaginamos, é em si diferente das versões orais contadas antes deles. E, ainda que a história seja a mesma, as lições que ela contém podem mudar de acordo com a interpretação. Consideremos as muitas histórias acerca de Joana D’Arc, personagem histórica que rapidamente se tornou também mitológica: seu papel central nas batalhas da França contra a Inglaterra pode conter tanto uma lição acerca do poder do divino quanto uma lição acerca da importância da mulher, mesmo em campos tradicionalmente considerados masculinos. Ou, ainda, recordemos as histórias bíblicas e suas muitas possíveis leituras. 12 Unidade I Figura 3 – Joana D’Arc – Arquivos Nacionais (França) – AE-II-2490. Datado entre os séculos XV e XX Figura 4 – Pôster de O martírio de Joana D’Arc (La passion de Jeanne d’Arc), de Carl Theodor Dreyer, 1928 13 STORYTELLING Agora, aplique o mesmo princípio em tempos bem mais remotos. Imagine nossos ancestrais, naquela clássica imagem que criamos em nossas mentes, em volta da fogueira, e a importância dos ensinamentos por histórias. Uma história de caça pode fornecer informações importantes acerca das melhores técnicas e táticas, a história de alguém que morreu depois de ser picado por uma cobra pode nos ensinar que aquele animal é venenoso, a história de alguém que foi curado de uma doença pode nos indicar possíveis práticas de cura. É claro que as informações que tiramos de histórias nem sempre são exatas ou corretas; é sempre possível que o sucesso da caça tenha tido mais a ver com sorte do que com habilidade, que a vítima da cobra tenha na verdade morrido de outra coisa que não veneno, que a recuperação do doente tenha ocorrido independentemente das técnicas de cura. Histórias não são fatos, são experiências. Substitua a fogueira por uma mesa, e nossos ancestrais por nós, humanos modernos. Quase inevitavelmente, compartilhamos histórias e somos afetados por elas. Tem-se falado muito atualmente da propagação de notícias falsas (fake news), principalmente por meio das redes sociais. Esse fenômeno é mais um exemplo do poder de sedução das histórias. Tendemos a tomar por verdade aquilo que, de alguma forma, queremos que seja verdade, aquilo que melhor se encaixa com nossas experiências pessoais, nossas crenças, nossas histórias. A charge a seguir ilustra como temos tendência a acreditar naquilo que confirma nossas crenças. Figura 5 – Fake news As redes sociais são, afinal, espaços de histórias, e, ainda que saibamos que fato e experiência são coisas distintas, nada é tão real ou verdadeiro para nós quanto nossas próprias experiências. É preciso que exercitemos frequentemente nossa compreensão para que sejamos capazes de reconhecer quando nossa experiência não coincide com os fatos, ou mesmo para que reconheçamos que nossa experiência não constitui nenhum tipo de verdade universal. Tendemos a desejar, compreensivelmente, que nossas experiências sejam validadas pelas histórias dos outros e, quando encontramos histórias que cabem em 14 Unidade I nossas identidades, damos a elas caráter de verdade. É clara a armadilha em que nos colocamos com essa expectativa, já que, insistiremos novamente, histórias não são fatos, não são verdades universais e, certamente, não são o que poderíamos chamar de imparciais ou neutras. Histórias são flexíveis, mas raramente acidentais e nunca sem propósito. Elas constroem e destroem pessoas, perpetuam empresas e instituições, apagam culturas, formam e inibem identidades... Mais do que isso, as histórias e suas estruturas variam de cultura para cultura, mas o fato de que existem histórias a serem contadas não, o que parece corroborar a hipótese de que o ato de contar histórias tem algo de primitivo; algo, talvez, das próprias raízes de nossas linguagens. Lembrete Histórias não são fatos, são experiências. O ato de narrar é tão poderoso que Walter Benjamin vê na mudança do papel do narrador na literatura um indício de mudança estrutural da própria experiência humana; tão persistente que lemos até hoje histórias contadas e escritas há milênios; tão sedutor que frequentemente torna nossas vidas mais toleráveis. Quantas pessoas não buscaram escapar para universos de fantasia como os presentes em O Senhor dos Anéis, Harry Potter, Star Wars e outros? O que são os RPGs senão oportunidades de contarmos nossas próprias histórias em outras realidades? Quantas pessoas não sentem alívio em compartilharem suas histórias? Não à toa, o campo da psicologia também dá ênfase à narração como elemento de descobertas e aprendizagens. Quantas pessoas não se sentem confortadas ou inspiradas pelas narrativas de outros? Histórias têm poder. Embora isso só venha a ser propriamente reconhecido nas áreas mais comerciais contemporaneamente, várias formas de estudo decorrem, ao menos em parte, desse princípio. A própria arte – a literatura, o teatro, o cinema e a pintura, por exemplo – provém em parte do poder das histórias. Os estudos religiosos e mitológicos existem porque entendemos que as histórias são indícios e influenciadores culturais. Em outras palavras, não é preciso ir muito longe para compreender por que storytelling se tornou, com tanta velocidade, uma ferramenta potente para certas áreas, como o marketing. 1.2 O que é storytelling? Storytelling é um termo em inglês que pode ser diretamente traduzido para “contação de estórias”. Conforme já discutimos, estórias aparecem nos mais diversos âmbitos da sociedade; filmes e livros, sabemos, contam histórias, mas elas também são contadas por jornais, por marcas, por indivíduos em redes sociais. 15 STORYTELLING Observação Alguns autores preferem usar, em português, o termo “estória”, no lugar de “história”, valendo-se da distinção de sentido entre as duas palavras. História estaria relacionada a fatos reais; estória, por sua vez, estaria ligada à ficção. Trata-se de uma diferença que aparece claramente na língua inglesa: history e story. No Brasil, durante um tempo, usamos os dois termos, respeitando a distinção entre eles. No entanto, isso foi alterado e permaneceu apenas “história”. Mesmo assim, há quem defenda o uso de “estória” para o que se narra em filmes, novelas, séries, romances, contos etc., e “história” para os acontecimentos ocorridos realmente. Neste livro-texto, em vários contextos, usaremos “estórias”. Não queremos com isso estabelecer uma fronteira rígida entre ficção e realidade, mas apenas sinalizar essa distinção. Apontamos, também, que a contação de estórias é uma parte antiga e importante das artes como um todo e que aquilo que cerca nossas histórias e estórias também é de suma importância; não à toa, diversos romances longos podem ter seus enredos resumidos em um ou dois parágrafos, mas perdem aquilo que os torna especiais no processo. Parafraseando Paul Valéry, filósofo e escritor francês dos séculos XIX e XX, resumir uma obra de arte é matá-la, porque como contamos as estórias é mais importante, nas artes, do que as estóriasem si. Exemplo de aplicação Considere a estória a seguir. Um rapaz consegue se casar com o amor de sua adolescência e tem um filho com ela. Um dia, passa a desconfiar de que foi traído pela mulher e por seu melhor amigo. Ele começa a crer que o filho, de fato, não é dele. A partir de então, afasta-se da esposa e da criança e torna-se um homem ensimesmado. Achou interessante? Contada dessa forma, a história de Dom Casmurro não tem nada de genial. O que a torna uma obra-prima da literatura mundial é a forma como Machado de Assis a conta. Assim, nessa perspectiva, uma narrativa literária diferencia-se de outra não literária pelo trabalho estético com a linguagem. Reflita, com base nisso, sobre o quanto ler os resumos de obras literárias o afasta do valor que elas têm. 16 Unidade I Saiba mais Para saber mais sobre a história contada por Machado de Assis em Dom Casmurro, leia: ASSIS, M. Dom Casmurro. 41. ed. São Paulo: Ática, 2019. 1.3 Storytelling como ferramenta e técnica Em seu livro Storytelling: histórias que deixam marcas, Adilson Xavier define o conceito de storytelling como “a tecnarte de elaborar e encadear cenas, dando-lhes um sentido envolvente que capte a atenção das pessoas e enseje a assimilação de uma ideia central” (XAVIER, 2015, p. 11). O autor considera o ato de contar histórias ao mesmo tempo uma técnica e uma arte, daí o neologismo tecnarte. A definição de Adilson Xavier ilustra bem uma reinterpretação moderna baseada na teoria aristotélica das narrativas. Não à toa, ele usa o termo “encadear”, isto é, colocar em cadeia no sentido de sequência, que evoca a ideia aristotélica de começo, meio e fim como elementos sequenciais indissociáveis do todo que formam. Storytelling é, em síntese, a capacidade de contar bem boas estórias. O que torna sua conceituação turbulenta é que ela propõe uma pergunta subsequente, mas não menos importante: o que é, afinal, uma “boa história”? Esse ponto é ainda mais contencioso do que a definição de storytelling em si. A verdade é que é difícil estabelecer regras universais acerca do que constitui uma boa história. Somos influenciados pela cultura dos Estados Unidos, por exemplo; isso ocorre em grande parte do mundo ocidental, de modo que as histórias deles parecem caber bem em nosso repertório. Mas você já assistiu, por exemplo, a um filme de Akira Kurosawa, um dos mais famosos e influentes diretores japoneses? Se sim, é possível que tenha sentido bem mais as diferenças culturais do que com filmes estadunidenses. Talvez até tenha percebido que aquilo que constitui uma história e, principalmente, o que constitui uma boa história, é significativamente diferente na nossa cultura e na cultura japonesa. Embora as culturas ocidentais tendam a um gosto pela linearidade cronológica (algo bastante aristotélico), Sonhos, por exemplo, é um filme que obedece a uma cronologia própria, estranha a nós, mas provavelmente reconhecível, ao menos em alguns aspectos, pelo espectador japonês. 17 STORYTELLING Figura 6 – Cena do filme Sonhos, de Kurosawa Figura 7 – Cena de “Corvos”, episódio de Sonhos, de Kurosawa “Monte Fuji em vermelho” e “O demônio que chora”, respectivamente sexto e sétimo episódios de Sonhos, são geralmente considerados os menos interessantes pelo espectador ocidental, mas, certamente, refletem um aspecto histórico e cultural muito importante no Japão: o marcante trauma social dos efeitos da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki. Em ambos, existe um tom pós-apocalíptico, representando um mundo destruído pela radioatividade, um mundo vazio, em que a própria natureza nos é estranha. Apesar de o medo generalizado de uma guerra nuclear ter infiltrado também a arte ocidental, a experiência japonesa faz com que esse aspecto seja muito mais relevante. Para fazermos uma comparação, tome como exemplos de storytelling ocidental as histórias de super-heróis. Vejamos o caso de Bruce Banner, que, após um acidente que lhe causa envenenamento por radiação, torna-se o Incrível Hulk (lembramos que o primeiro de seus quadrinhos foi publicado em 1962, bem antes de Sonhos, lançado em 1990). O Hulk é geralmente um personagem destrutivo e quase infantil em termos de temperamento, enquanto seu alter ego, Bruce Banner, é um cientista 18 Unidade I racional e considerado brilhante por seus pares. Isto é, existe um aspecto de certa selvageria associado à sua exposição à radiação. Ainda assim, o Hulk é um super-herói, um dos “mocinhos”. Isso diz respeito à experiência estadunidense em relação à Segunda Guerra e ao uso da bomba atômica: o uso de armas radioativas é selvagem e sub-humano como o Hulk, mas, como o Hulk, é também um símbolo do poderio militar dos Estados Unidos, um símbolo de supremacia e força quase ilimitada. Não é preciso ir muito longe para entender por que esse não é o caso na cultura japonesa. Na verdade, as histórias de super-heróis podem fornecer valiosas pistas sobre a cultura e a história dos Estados Unidos. O exemplo mais clássico é o Capitão América, criado em 1941 pela Timely Comics (antecessora da Marvel Comics). Está longe de ser coincidência que, em plena década de 1940, tenha surgido e ganhado popularidade um super-herói estadunidense patriota (também não é nenhum acidente, afinal, que o traje do Capitão América seja direta e claramente baseado na bandeira dos Estados Unidos), que luta contra as forças do Eixo. Observação Alemanha, Itália e Japão eram países do Eixo na Segunda Guerra Mundial. Eles lutaram contra os Aliados, nos quais estavam os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a União Soviética e muitas outras nações. Nessa época, a cultura estadunidense já compreendia e dava muito valor ao poder das imagens, dos símbolos e das histórias; por esse motivo, os Estados Unidos demoraram a se envolver na guerra. Uma vez envolvidos na guerra, era preciso que houvesse uma expressiva e forte imagem do país como um herói que luta contra as forças do mal. Como sugere Xavier em sua definição de storytelling, era preciso que a história do Capitão América despertasse no público um sentimento de heroísmo patriótico; aquilo que o autor chama de “ideia central”. Veja, a seguir, imagens diferentes do super-herói. Observe que, na primeira figura, ele aparece socando um homem que tem no braço um símbolo do nazismo. Na capa, que data de 1941, ele luta sozinho com vários homens e, mesmo assim, temos a indicação de que ele sairá vitorioso. Já na capa da figura seguinte, de 2017, o herói está, obviamente, fora do contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Mas ele aparece forte e destemido a lutar. Atrás da sua imagem, percebemos o mapa dos Estados Unidos. É como se ele protegesse seu país. 19 STORYTELLING Figura 8 – Capa da primeira edição de Capitão América, em março de 1941 Figura 9 – Capa de Capitão América (Steve Rogers, v. 3), em agosto de 2017 20 Unidade I A criação e a divulgação de heróis e de suas histórias como estratégia política, especialmente nos períodos de conflito, no entanto, não era algo novo nem nos anos de 1940. Na verdade, o nosso modelo de herói ainda é, até hoje, muito reminiscente dos heróis gregos clássicos, como Ulisses e Aquiles, mas nos aprofundaremos nos aspectos que dizem respeito à jornada do herói apenas mais adiante. Por enquanto, buscamos apenas evidenciar como o que constitui uma boa história tem muito a ver com questões culturais, políticas e históricas. Listamos todos esses exemplos para que fique claro como storytelling é uma tecnarte, para usar a terminologia de Adilson Xavier, flexível. Como toda técnica e toda arte, a contação de estórias está sujeita ao seu contexto temporal, espacial e cultural. 1.4 Poética de Aristóteles e suas aplicações modernas A narrativa é estudada desde a Antiguidade, com Platão e Aristóteles. Platão, em A República, examina a poesia mais detalhadamente, procurando descrever algumas de suas características. De acordo com o filósofo, temos a seguinte perspectiva tripartida (ZILBERMAN,2012, p. 48): • relato puramente imitativo, como se encontra na tragédia e na comédia, gêneros em que impera o diálogo, sem interferência do narrador; • relato não imitativo, em que fatos são relacionados pelo próprio poeta, que fala em seu nome; • relato que utiliza os dois recursos precedentes, como acontece na epopeia, em que há partes em que o poeta se expressa e outras em que são as personagens que falam. Aristóteles, no campo da literatura, com ênfase na dramaturgia, defende, em sua Poética, que uma história precisa ser estruturada de modo a ter começo, meio e fim – daí, inclusive, a divisão de peças teatrais em atos. Isso não é tão óbvio quanto parece. Aristóteles delineia uma série de critérios para o que constitui começo, meio e fim que não nos são interessantes neste preciso momento; o que nos interessa é saber que a dramaturgia grega de que falava Aristóteles não era constituída por histórias inéditas. Pelo contrário, a tradição literária da época privilegiava aquelas histórias que já eram conhecidas pelo público, que faziam parte do imaginário popular. Hoje, consideramos bastante provável que os frequentadores do teatro no período grego clássico já conhecessem, por exemplo, a história de Édipo. E, se a história já lhes era conhecida, ou ao menos familiar, por que a preocupação de Aristóteles em produzir o que era essencialmente um manual de dramaturgia focada nos aspectos de storytelling? De novo, a resposta parece ter mais a ver com como a história é contada do que com o que ela conta. 21 STORYTELLING Figura 10 – Édipo Rei Figura 11 – Ilustração simulando a apresentação de uma peça teatral na Grécia clássica 22 Unidade I O velho ditado “quem conta um conto aumenta um ponto” diz muito sobre storytelling. Você deve conseguir se lembrar de um exemplo em que duas ou mais pessoas que passaram pela mesma experiência descrevem os eventos de formas totalmente diferentes. Insistiremos que histórias não são fatos, mas construções acerca de fatos, percepções e interpretações. É muito improvável, portanto, que um grupo de pessoas que presenciou o mesmo fato conte a mesma história. Mais do que isso, consideraremos algumas histórias melhores do que outras, ainda que factualmente elas se refiram à mesma coisa. A figura a seguir ilustra que o mesmo fato pode ser visto de perspectivas diferentes, e isso certamente altera o que será contado. Figura 12 – Pontos de vista Lembrete Os primeiros passos de uma teoria da narrativa foram dados por Platão e Aristóteles, na Antiguidade. Com isso em mente, retomemos à Poética de Aristóteles. Segundo o filósofo grego, todos os elementos de uma história devem estar conectados como vemos em uma corrente, em que uma parte leva à outra, dialoga com a outra, e, assim, forma-se um todo coeso, que não pode ser separado de seus elementos constitutivos sem desintegrar-se por completo. É por isso que a arte não pode ser resumida sem perder pelo menos parte de sua essência: porque a construção da história depende do todo, que depende das partes, e, desse modo, estabelece-se um ciclo em que a obra, se produzida com qualidade, torna-se autossustentável, completa e viva. Quando falamos há pouco em começo, meio e fim, nos referíamos a isto: não a partes separadas do texto, como se fossem caixas colocadas em sequência, mas a elementos do todo que estão intrinsecamente ligados. 23 STORYTELLING Anton Tchekhov, escritor russo do século XIX, desenvolveu um princípio que chamamos de “a arma de Tchekhov”. Basicamente, ele dita que, se em algum momento é apresentada ao leitor ou ao espectador uma arma pendurada na parede, aquela arma precisa disparar. Trata-se de uma metáfora usada para dizer essencialmente o mesmo que dizia Aristóteles: todos os elementos, cada uma das partes de uma obra, devem ter algum propósito. Se indiquei ao público de minha peça, por qualquer meio que seja – diálogo e construção de cenário, por exemplo – que há uma arma que fica pendurada na parede, na perspectiva de Tchekhov, estou prometendo aos espectadores que aquela arma tem um propósito para minha história. É aquele antigo elemento narrativo que também podemos chamar de foreshadowing: dicas e momentos implícitos no texto que nos dão pequenos indícios do futuro. Existem teorias que divergem parcial ou totalmente desses conceitos. Para alguns autores e críticos, elementos “sem propósito” podem ser uma estratégia narrativa interessante. Além disso, precisamos levar em conta que nossas narrativas contemporâneas já não seguem, necessariamente, começo, meio e fim como estruturas cronológicas, de modo que, ao menos em seus aspectos literários, a teoria aristotélica encontra-se um tanto quanto defasada. Menos defasada do que se poderia presumir, no entanto, dada a distância geográfica e temporal entre a Grécia clássica e o Brasil contemporâneo, por exemplo. Embora a perspectiva de Aristóteles não dê mais conta da literatura de maneira geral, ela é fundamental em um de seus aspectos: a contação de estórias. Outro ponto essencial apontado por Aristóteles diz respeito à verossimilhança. O filósofo abordou tal conceito no estudo sobre as tragédias encenadas no seu tempo. De acordo com ele, a empatia do público com a peça era possibilitada pela ilusão de verdade do que era narrado. A isso, ele denominou verossimilhança (aparência de verdade). Trata-se da lógica interna do enredo que o torna verdadeiro para o leitor, independentemente da verdade dos fatos. Assim, um herói ter poderes mágicos é verossímil em uma narrativa, mesmo que esse fato não seja verdadeiro no mundo real. Observação Em algumas narrativas, como as narrativas jornalísticas, os fatos, além de verossímeis, devem ser verdadeiros. Saiba mais Para saber mais sobre a poética clássica, leia o capítulo 3 do livro Teoria da literatura, de Regina Zilberman: ZILBERMAN, R. Teoria da literatura I. Curitiba: IESDE Brasil, 2012. 24 Unidade I 2 O PODER DAS ESTÓRIAS Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias. (GALEANO, 2013) Fazemos questão de pontuar que algo comum a todas as nossas culturas conhecidas é a contação de histórias. Culturas diferentes produzem histórias e estórias diferentes, mas storytelling está sempre presente. Afinal, toda mitologia é composta de estórias. A mitologia em torno dos mortos-vivos, como zumbis e vampiros, muito popular contemporaneamente, também se tornou popular historicamente em um período em que a medicina ainda não conseguia nos informar com precisão se alguém estava morto ou não. Como consequência disso, as pessoas eram enterradas vivas com relativa frequência, alimentando as estórias, que, por sua vez, ressignificavam os fatos não como um erro médico, mas como resultado de forças sobrenaturais. Leia o trecho a seguir, extraído do conto “O enterro prematuro”, de Edgar Allan Poe. Nele, o protagonista sofre de catalepsia e tem pavor da possibilidade de ser enterrado vivo. O enterro prematuro Permaneci imóvel alguns minutos, depois que essa imagem se apoderou de mim. E por quê? Eu não podia armar-me de coragem para mover-me. Não ousava fazer o esforço necessário para certificar-me de minha sorte, e, contudo, havia algo no meu coração que me sussurrava que ela era fatal. O desespero – como de nenhuma outra desgraça que jamais salteou o ser humano – só o desespero me impeliu, após longa irresolução, a erguer das pálpebras de meus olhos. Ergui-as. Estava escuro, totalmente escuro. Senti que o ataque tinha passado. Senti que a minha doença há muito desaparecera. Senti que me achava agora completamente, em pleno uso de minhas faculdades visuais. E, contudo, estava escuro, totalmente escuro, daquela escuridão intensa e extrema da noite que dura para sempre. Tentei gritar, e meus lábios e minha língua seca moveram-se convulsivamente, em comum tentativa, mas nenhuma voz saiu dos cavernosos pulmões, que, como oprimidos sob o peso de esmagadora montanha, arfavame palpitavam com o coração a cada trabalhosa e penosa respiração. O movimento das mandíbulas, no esforço de gritar bem, mostrava-me que elas estavam amarradas, como se faz usualmente com os mortos. Senti também que jazia sobre alguma coisa sólida e que a mesma coisa também me comprimia estreitamente em ambos os lados. Até então eu não me atrevera a mover qualquer dos membros; mas agora, violentamente, levantei os braços que tinham estado até então sobre o peito, com as mãos cruzadas. Eles bateram de encontro a uma madeira sólida, que se estendia sobre 25 STORYTELLING uma altura de não mais do que seis polegadas de meu rosto. Não podia mais duvidar de que repousava dentro de um caixão. Fonte: Poe (2009, p. 16). Observação Edgar Allan Poe (1809-1849) é considerado o mestre das obras de horror e suspense. Escreveu inúmeros contos e foi, também, crítico literário. Algo semelhante ocorreu com as histórias de lobisomens; atualmente, acreditamos que o mito do lobisomem tenha surgido de doenças até então pouco explicadas, como a raiva, cujos sintomas incluem salivação excessiva, espasmos musculares e confusão mental, que podem dar ao infectado um aspecto animalesco. Para ilustrar mais uma vez o poder das estórias, aproveitamos o gancho das doenças mentais para tratar das chamadas “síndromes ligadas à cultura” (culture-bound syndromes ou CBS). A licantropia clínica, por exemplo, é a condição em que o afetado acredita ser ou se transformar em um animal. O nome “licantropia” provém da mitologia dos lobisomens, também chamados licantropos. Em países como o Japão, a Coreia e a China, que têm como forte aspecto mitológico a figura da raposa como espírito ou demônio, a depender da tradição, encontramos síndromes em que os afetados acreditam estar possuídos pelo espírito de uma raposa. Muitas doenças de caráter psiquiátrico podem manifestar delírios religiosos, como a crença de que o afetado foi escolhido como mensageiro, profeta ou mártir, ou a interpretação de alucinações como mensagens divinas. Gostaríamos de apontar, no entanto, que isso não quer dizer que os membros de qualquer comunidade religiosa venham a desenvolver transtornos mentais. Essa forma de pensamento nos levaria a conclusões equivocadas, particularmente porque algumas religiões trabalham, de modo direto, com aspectos de comunicação com o divino, visões e possessão. O que buscamos demonstrar é que as estórias que nos constituem são tão fortes, tão intrínsecas e tão enraizadas, que influenciam aspectos que consideraríamos mais distantes do âmbito da cultura, como as patologias. As estórias que constituem nosso repertório, sejam elas mais ou menos factuais, fornecem ensinamentos que moldam nossas visões de mundo, nossas interpretações e nossa própria identidade. A “descoberta” desse campo tão influente pelo marketing foi, como se pode imaginar, absolutamente revolucionária. Para além dos produtos, do relacionamento com o cliente, dos preços e dos eventos, entre outras possibilidades, a marca pode ter um diferencial ainda mais marcante: uma história. Tanto Adilson Xavier quanto Fernando Palacios e Martha Terenzzo listam, em seus respectivos livros acerca de storytelling, numerosos exemplos de marcas que se tornaram populares em função, ao menos em parte, de suas histórias. Trataremos mais detalhadamente desses casos adiante; por ora, nos limitaremos a escolher um exemplo que ilustre bem a influência das histórias. 26 Unidade I Porque acreditamos ser talvez o mais imediatamente reconhecível, começaremos pelo caso da Disney – ela é, afinal, uma empresa que claramente se sustenta no campo das estórias. A princípio, as estórias da Disney giravam em torno do personagem de Mickey Mouse, ratinho simpático criado em 1928. Walt Disney o havia nomeado Mortimer, mas sua esposa, Lillian Bounds, achou o nome muito formal e sugeriu o substituto Mickey. Essa foi só a primeira das mudanças sofridas pelo personagem: em 1929, Mickey tem sua primeira aparição com as luvas brancas que se tornarão parte essencial do personagem, e, em 1930, Mickey, um personagem que inicialmente fumava e bebia, já havia se tornado mais apropriado para crianças. Embora Mickey e seus companheiros, como Minnie e Pluto, tenham feito imenso sucesso, particularmente nos Estados Unidos, e ainda hoje sejam elementos proeminentes da imagem da Disney, eles não foram capazes de sustentar, sozinhos, o sucesso comercial da empresa. Como era de se esperar, concorrentes pela posição da Disney como o mais bem reconhecido estúdio de animação não demoraram a surgir, e o ratinho foi lentamente perdendo seu charme. Em resposta, a Disney lançou uma série de filmes de sucesso, a maioria deles recontações de histórias tradicionais de contos de fadas (Branca de neve, Cinderela e A bela adormecida, por exemplo) ou de livros consagrados (Peter Pan, Mogli, Dumbo, Bambi e Alice no País das Maravilhas, por exemplo). Figura 13 – A Rainha de Copas em ilustração original de Lewis Carroll, 1862-1864 27 STORYTELLING Figura 14 – Alice em Alice no País das Maravilhas. Disney, 1951 Nos anos de 1970, a Disney começava a perder sua popularidade. Nos anos de 1980, a competição se acirrava ainda mais com Don Bluth, ex-animador da Disney, saindo na frente com seu próprio estúdio (para o qual ele levou 11 outros animadores da Disney) e concorrentes internacionais como o Studio Ghibli de Hayao Miyazaki ganhando força. É quando começa o período que costumamos chamar de Renascença da Disney. Esse período inicia-se em 1989, com o lançamento de A pequena sereia, e termina em 1999, com o lançamento de Tarzan. Durante 10 anos, a Disney produziu uma série de sucessos comerciais e de crítica, como Rei Leão, Hércules, Mulan, A bela e a fera e Aladin. Figura 15 – Cena de Mulan, filme da Disney, 1998 28 Unidade I Saiba mais Conheça também o filme de animação japonesa Nausicaä do Vale do Vento, do escritor, diretor e ilustrador Hayao Miyazaki: THAÍS. Nausicaä do Vale do Vento completa hoje 36 anos. O Megascópio, 11 mar. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3l89FUq. Acesso em: 11 mar. 2021. Até hoje, mais de 20 anos após o fim do período de extremo sucesso da Disney, esses filmes e seus personagens persistem no nosso imaginário. Mais do que isso, eles sobrevivem como parte integral da imagem da Disney e sua história. Nos mundos da Disney, os personagens mais populares não são mais Mickey Mouse e seus companheiros, mas as “princesas”. Encaixamos na categoria de princesa essencialmente qualquer mulher que protagonize um filme da Disney, embora as princesas da Disney propriamente ditas sejam aquelas dos contos de fadas. Ser ou não uma princesa no sentido estrito não carrega importância alguma: as “princesas” são um elemento integral da imagem da Disney enquanto produtora. Talvez pelo seu ramo de atuação, diretamente ligado ao storytelling, a Disney percebeu com alguma rapidez que histórias também eram importantes no âmbito da própria marca. Ela investiu em uma imagem baseada na fantasia e nos contos de fadas. Criou o que são essencialmente cidades dedicadas aos seus universos ficcionais, como o Walt Disney World e as Disneylands, presentes em vários lugares do mundo. Construiu histórias acerca de seu criador, Walt Disney, que o colocam em um patamar quase divino. Aproveitaremos este momento para tocar brevemente nas questões de verdade, de ficção e de verossimilhança. Primeiro, insistimos novamente que histórias não são fatos, mas versões e interpretações de fatos, ocorridos ou imaginados. Mesmo a mais factual das histórias apresenta uma das versões possíveis de “verdade”, ou seja, ela é ao menos parcialmente ficcional. Observação O jornalismo trabalha com fatos e tem forte compromisso com a verdade. Mesmo assim, suas narrativas são construções desses fatos. O bom jornalismo sempre apresenta a melhor versão possível do que ocorreu, após a apuração com diversas fontes. Como seres humanos, gostaríamos que existissem verdades universais,imparciais e objetivas, no mínimo porque nossa interpretação de mundo seria mais simples. No entanto, vários âmbitos de estudo, como a linguística, as ciências sociais e a psicologia, indicam que essa é uma visão excessivamente simplista. Muitas “verdades” diferentes podem ser constituídas a partir dos mesmos fatos. O Walt Disney como figura pública é uma possível versão dos fatos de sua vida como pessoa – uma das muitas possíveis verdades. É contado que Disney certa vez disse a um amigo: “Eu não sou o Walt 29 STORYTELLING Disney. Eu faço várias coisas que o Walt Disney não faria. Walt Disney não fuma. Eu fumo. Walt Disney não bebe. Eu bebo”. Ou seja, o próprio Disney tinha ciência de que sua imagem pública não estava ligada diretamente aos fatos, à sua história em sua totalidade, mas, com base nos fatos, criava-se uma nova história. O Walt Disney público não bebe, não fuma, não é uma pessoa difícil de lidar, como descreviam seus funcionários, e não morre. Afinal, o Walt Disney “pessoa” morreu em 1966, mas o nome persiste, sua imagem persiste. Isto é, a história persiste. Trataremos da suposta oposição entre realidade e ficção em mais detalhes adiante, mas citamos a história criada pela marca acerca da figura de Walt Disney como exemplo de sua proeza em storytelling. Ciente de que histórias nos permitem escapar da realidade para universos de fantasia, ela construiu universos de fantasia no mundo real. Até hoje, não é difícil encontrarmos pessoas com algum tipo de vínculo emocional com a Disney enquanto marca, seja esse vínculo baseado em suas histórias mais antigas, seja em histórias mais contemporâneas. Esse vínculo leva as pessoas a visitarem os parques, que, por sua vez, oferecem suas próprias histórias e lembranças, aprofundando o vínculo. Tudo isso é feito quase exclusivamente no âmbito do storytelling. Adilson Xavier trata, na obra já citada, de mais detalhes acerca do caso da Disney e seu uso de storytelling, de modo que não nos estenderemos mais nesse caso específico. Nosso objetivo em descrever, de maneira breve, o processo da Disney é simplesmente o de demonstrar como histórias são importantes na construção de uma marca, e, no mesmo sentido, como são influentes e marcantes em relação ao público. Fica evidente que a influência social, cultural e psicológica das histórias representa uma poderosa ferramenta no campo do marketing, bem como em muitos outros. Mais adiante, exploraremos as funções específicas do storytelling em diferentes áreas. Por ora, buscaremos compreender os elementos e estruturas que compõem uma estória. Por fim, temos que lembrar que, quando falamos no poder das estórias, vem à mente As mil e uma noites, obra em que Xerazade dribla a morte ao contar, todas as noites, uma história para o rei persa. Após descobrir que a mulher era infiel, o rei Xariar decidiu que, a cada noite, desposaria uma virgem, que seria morta na manhã seguinte, para que ele não fosse mais traído. O vizir era quem levava as moças ao sultão. Um dia, uma filha do vizir, Xerazade, pede ao pai para ser ela a nova esposa, pois tem um plano. Depois do casamento, Xerazade pede ao marido para que sua irmã entre no quarto para que possam se despedir. A partir de então, ela começa a contar uma história que é interrompida, em um momento crucial, com o amanhecer. O rei, curioso para saber o final da estória, concede mais um dia de vida de Xerazade e isso se repete por mil e uma noites. Assim, a habilidade em contar histórias não só salvou de Xerazade como também acabou com a matança das jovens do reino. Temos, assim, o importante ponto referente à infinitude das estórias. 30 Unidade I Observação Alguém lhe contava estórias quando você era criança? Além das estórias presentes nos livros, muitos familiares apelam à imaginação para criar estórias para as crianças. Leia, agora, o conto “A quinta história”, de Clarice Lispector. A quinta história Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem. A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de dentro delas. Assim fiz. Morreram. A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranquila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou. A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam 31 STORYTELLING endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompeia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras – subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! – essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de...” – de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo. A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-áuma população lenta e viva em fila-indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? Como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”. A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas. Fonte: Lispector (1999, p. 74-76). Repare que, no início, o texto menciona As mil e uma noites, indicando que as histórias poderiam se desdobrar infinitamente. Perceba, também, que há uma moldura que sustenta as cinco histórias. Cada uma, no entanto, segue um caminho. A primeira é quase um relato banal, factual, que será repetido nas demais. As narrativas, de fato, são desenvolvidas, nas três histórias subsequentes. Na segunda, intitulada “O assassinato”, surgem toques de crueldade, com a satisfação perversa da narradora em matar: “meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte”. Aparece o prazer de matar cada barata, com um “medo excitado”, como se eliminam os males secretos. Observa-se que o verbo “aviar” remete ao preparo medicinal ou ao ofício de uma bruxa. Ocorre, então, uma inversão irônica do mal. As baratas, que representam “naturalmente” o sujo, o mal, passam a ser vítimas da perversidade sádica da dona de casa que cuida da higiene do lar. 32 Unidade I Os requintes de maldade permanecem na terceira e na quarta histórias. Na terceira, intitulada “Estátuas”, há a contemplação do resultado do assassinato, com os corpos espalhados pela área de serviço, cada qual em uma posição, mas todos petrificados pela massa branca. Na quarta, sem título, inicia-se a nova era, com a opção da narradora pela dedetização ante a possibilidade do retorno infinito das baratas e do ritual de morte. Deve haver a escolha entre o “eu” e “a minha alma”, entre a maldade instintiva e a vida construída na civilização. A narradora, na segunda história, havia se referido ao seu “próprio mal secreto”, que a guiava no preparo da receita. A dedetização coloca a “placa de virtude” porque suaviza os instintos cruéis. A quinta narrativa apresenta um título estranho ao restante do conto, “Leibnitz e a transcendência do amor na Polinésia”, e não chega a ser desenvolvida. O contraste entre o título e o início da história soa irônico, uma vez que não parece haver relação entre eles. Com esse exemplo, mostramos que, com o mesmo fato, ou com o mesmo mote, podemos desenvolver inúmeras narrativas distintas. Além disso, vemos que um episódio banal, como o fato de matar baratas, pode render várias estórias. Exemplo de aplicação Observe os quadrinhos da figura a seguir. Veja que as histórias/estórias que lemos mudam nosso modo de ver o mundo, e isso, muitas vezes, exige de nós mais reflexão, mais esforço. Figura 16 – Calvin e os livros Reflita sobre a relação entre a leitura e a formação de uma pessoa. 33 STORYTELLING 3 ESTRUTURAS NARRATIVAS 3.1 Estrutura narrativa do mito No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez. Nele, estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1:1-5) Toda cultura está intimamente ligada às suas narrativas mitológicas. Todo mito, afinal, é recheado de simbolismos que se intercomunicam com a história de um povo. A Guerra de Troia é um fato histórico que foi “mitificado”; o Egito, que nos seus períodos antigo e clássico dependia majoritariamente do rio para sua prosperidade, tem vários mitos que cercam o Nilo; no Japão, em que por muito tempo foi usado óleo de peixe para acender lanternas, existem mitos acerca de demônios na forma de gatos que ficam em pé em duas patas, como os gatos fariam para alcançar as lanternas que cheiravam a peixe. Em outras palavras, os exemplos são muitos e diversos. A palavra mito provém do grego mythós, significando discurso, mensagem, palavra, narrativa ou relato. O mito, verdade seja dita, é tudo isso. Mas gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que o mito está etimologicamente ligado à linguagem: sem palavra, sem discurso, sem narrativa, não há mito. Daí termos escolhido, como epígrafe desta seção, o mito de criação bíblico em que “no princípio era o Verbo” (João 1:1). As narrativas mitológicas têm mais consciência de si do que poderíamos imaginar: não é raro que um mito de origem se refira à origem do próprio mito, por exemplo. Da mesma forma, as narrativas mitológicas têm consciência de que dependem da palavra, da linguagem, da capacidade de comunicação humana. Em outros termos, o mito é um conceito que só pode existir dentro de uma sociedade, um povo, uma cultura. Seres humanos são, como já salientamos, seres narrativos. Precisamos de histórias porque precisamos de sentido – porque precisamos compreender o mundo de alguma forma. O mito existe para suprir aquele doloroso vazio existencial na psique humana: a nossa incapacidade de conhecer tudo. Aquilo que não entendemos precisa, ainda assim, ser explicado, para que tenhamos paz. O não saber é uma tortura para o ser humano e, coincidentemente ou não, é também aquilo que nos move. O desconhecimento, afinal, cria o mito, o simbolismo e a própria ciência. Não à toa, vários de nossos mitos conhecidos, nas mais diversas culturas, tratam de aspectos como a criação da espécie humana, da Terra e do Universo. Em geral, são o que chamamos de “mitos de criação” ou “mitos de origem”. 34 Unidade I Observe, por exemplo, a narrativa a seguir, extraída do livro Nascimentos, do historiador uruguaio Eduardo Galeano. Nessa obra, ele aborda aspectos da América pré-colombiana e o processo dominador da colonização. O fogo As noites eram de gelo e os deuses tinham levado o fogo embora. O frio cortava a carne e as palavras dos homens. Eles suplicavam, tiritando, com a voz quebrada; e os deuses se faziam de surdos. Uma vez lhes devolveram o fogo. Os homens dançaram de alegria e alçaram cânticos de gratidão. Mas de repente os deuses enviaram chuva e granizo e apagaram as fogueiras. Os deuses falaram e exigiram: para merecer o fogo, os homens deveriam abrir peitos com um punhal de pedra e entregar corações. Os índios quichés ofereceram o sangue de seus prisioneiros e se salvaram do frio. Os cakchiqueles não aceitaram o preço. Os cakchiqueles, primos dos quichés e também herdeiros dos maias, deslizaram com pés de pluma através da fumaça e roubaram o fogo e o esconderam nas covas de suas montanhas. Fonte: Galeano (2010, p. 22). Veja que se trata de uma explicação mitológica para o domínio do fogo pelos homens. Outros povos também criaram explicações para esse fenômeno. Na Grécia antiga, por exemplo, contava-se que o titã Prometeu havia roubado o fogo de Zeus para dar aos mortais. Por essa ação, ele foi condenado a um castigo horrível: foi acorrentado a um rochedo, e uma ave todos os dias devorava seu fígado, que se regenerava à noite. Foi salvo muitos anos depois. Leia um trecho da tragédia Prometeu acorrentado, elaborada por Ésquilo. Trata-se de uma peça teatral. O poder Eis-nos chegados aos confins da terra, à longínqua região da Cítia, solitária e inacessível! Cumpre-te agora, ó Vulcano, pensar nas ordens que recebeste de teu pai, e acorrentar este malfeitor, com indestrutíveis cadeias de aço, a estas rochas escarpadas. Ele roubou o fogo – teu atributo, precioso fator das criações do gênio –, para transmiti-lo aos mortais! Terá,pois, que expiar este crime perante os deuses, para que aprenda a respeitar a postetade de Júpiter, e a renunciar a seu amor pela Humanidade. Fonte: Ésquilo (2005, p. 5). 35 STORYTELLING Repare que as duas narrativas, produzidas em épocas e em locais bem distintos, associam o domínio do fogo ao ato de alguém tê-lo roubado dos deuses para doá-lo aos homens. Em seu livro Antropologia estrutural, Claude Lévi-Strauss diz, acerca do mito, o que se reproduz a seguir. É melhor reconhecermos que o estudo dos mitos nos leva a constatações contraditórias. Tudo pode acontecer num mito. A sucessão dos eventos não parece estar aí submetida a nenhuma regra de lógica ou de continuidade, qualquer sujeito pode possuir qualquer predicado, qualquer relação concebível é possível. Contudo, os mitos, aparentemente arbitrários, se reproduzem com as mesmas características e, muitas vezes, os mesmos detalhes, em diversas regiões do mundo. Daí a questão: se o conteúdo do mito é inteiramente contingente, como explicar que, de um extremo a outro da terra, os mitos se pareçam tanto? […] Aproximar o mito da linguagem não resolve nada: o mito faz parte da língua, é pela palavra que o conhecemos, ele pertence ao discurso. Se quisermos dar conta das características específicas do pensamento mítico, devemos, portanto, estabelecer que o mito está ao mesmo tempo na linguagem e além dela (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 223-224). Buscaremos aqui esclarecer alguns pontos da declaração de Lévi-Strauss. Precisamos estabelecer que a linguagem, como a mitologia, é aparentemente arbitrária. Não há nada acerca dos sons da palavra “mesa” que os conecte logicamente à mesa como objeto, por exemplo. Prova disso é que, embora línguas geográfica, etimológica e culturalmente próximas ao português, como o espanhol, usem sons semelhantes, isso está longe de ser verdade para todas as línguas do mundo. Existem algumas semelhanças, por vezes, entre línguas muito diferentes, embora elas sejam menos consistentes do que as semelhanças entre mitos, mas, de maneira geral, a língua é um sistema de signos arbitrários que usamos para designar certas coisas. E é por ser arbitrária e, principalmente, por ser essencial à comunicação humana, que a linguagem nunca é neutra. Não existe “ponto morto” na linguagem, porque ela é toda feita de simbolismos, e símbolos são necessariamente culturais. As linguagens, em particular as linguagens verbais, são tão integralmente ligadas à nossa cultura que se tornam quase indissociáveis de nossa psique. Pensamos em linguagem, imaginamos em linguagem e sentimos em linguagem. Você já pegou raiva de um nome por causa de uma pessoa específica, por exemplo? Já parou para pensar em como xingamentos são diferentes em diferentes línguas? Já percebeu como, na tradução de obras em outras línguas, nomes são frequentemente mudados para evitar más associações na língua-alvo? As linguagens estão sujeitas aos aspectos sociais, culturais e psíquicos. Prova disso é que as línguas mudam de acordo com o tempo, o espaço e o grupo: fossem as línguas formadas de elementos factuais, era de se esperar que a variação fosse mínima, e, no entanto, observamos o contrário. Nenhuma 36 Unidade I linguagem pode, portanto, ser neutra. E, se é pela linguagem que acessamos o mito, ele tampouco pode ser neutro. Como diz Lévi-Strauss, o mito existe no campo do discurso, é parte da língua. Mas por que, então, diz o autor que o mito está também além da linguagem? Ora, se a linguagem se cria, varia e se adapta de acordo com elementos sociais, culturais, temporais e geográficos, o mesmo pode ser dito do mito. E, sendo os simbolismos dos mitos integralmente ligados à sua cultura de origem, esses mesmos simbolismos terão efeito na linguagem, que por sua vez terá efeito no mito, e assim por diante. Linguagem e mito estão intrinsecamente ligados em um processo cíclico de formação cultural. Além disso, Lévi-Strauss também observa que a linguagem exibe comportamentos e especificidades no âmbito narrativo do mito. Embora o autor destaque, para os fins de seu trabalho, os aspectos linguísticos específicos das narrativas mitológicas, gostaríamos de pontuar que esse fenômeno ocorre em todo e qualquer campo discursivo; isto é, todo ambiente discursivo particular, como a esfera jurídica, médica, jornalística ou publicitária, entre muitas outras, apresenta certas estruturas e particularidades linguísticas próprias. Apresentaremos, posteriormente, por exemplo, uma das estruturas típicas de narrativas ficcionais na forma da jornada do herói. A razão pela qual somos capazes de desenvolver essa estrutura é que existem elementos discursivos comuns ao campo das narrativas ficcionais, particularmente as narrativas de fantasia. Lévi-Strauss também apresenta, baseado no que acabamos de discutir, “lições provisórias” acerca do mito, apresentadas a seguir. • Se os mitos têm um sentido, ele não pode decorrer dos elementos isolados que entram em sua composição, mas na maneira como esses elementos estão combinados. • O mito pertence à ordem da linguagem, faz parte dela; entretanto, a linguagem, tal como é utilizada no mito, exibe propriedades específicas. • Tais propriedades só podem ser buscadas acima do nível habitual da expressão linguística; em outras palavras, elas são de natureza mais complexa do que encontramos em uma expressão linguística de um tipo qualquer. Se forem aceitos esses três pontos, ainda que como hipóteses de trabalho, decorrem deles duas consequências muito importantes (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 226): • como todo ser linguístico, o mito é formado por unidades constitutivas; • essas unidades constitutivas implicam a presença de todas aquelas que intervêm normalmente na estrutura da língua, a saber, os fonemas, os morfemas e os semantemas. Cada forma difere da que a precede por um grau mais alto de complexidade. Por essa razão, chamaremos os elementos que são próprios do mito (e que são os mais complexos de todos) de grandes unidades constitutivas (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 226). 37 STORYTELLING Ao tratarmos das estruturas da narrativa segundo Aristóteles, mencionamos sua premissa de que uma história se constitui de partes indissociáveis do todo e de um todo indissociável de suas partes. A ponderação de Lévi-Strauss de que o sentido do mito não pode decorrer das partes isoladas de sua composição, mas da relação entre essas partes segue um caminho semelhante, em que a interligação entre os elementos é mais importante do que os elementos em si. Coincidentemente ou não, nossas línguas também se estruturam da mesma forma. Fonemas, morfemas e semantemas são as unidades constitutivas de uma língua e, no entanto, não nos é possível, salvo como exercício acadêmico, separá-los de seu todo. Não à toa, a fonologia, a morfologia e a sematologia fazem parte do guarda-chuva teórico da linguística. E há, ainda, outro elemento: a sintaxe, que se refere às possíveis relações entre palavras. Isto é, há um reconhecimento parcial ou total de que o estudo linguístico precisa passar não só pelas partes, mas pela relação entre elas. Lévi-Strauss propõe o mesmo para o mito. 3.1.1 Jornada do herói Na tradição grega clássica, os heróis têm linhagens divinas. Vejamos os exemplos a seguir. • Odisseu é um entre muitos bisnetos de Zeus; • Héracles (ou Hércules) é um famoso herói grego, filho de Zeus; • Aquiles é filho de Tétis, uma das nereidas (ninfas filhas de Nereu, antigo deus marinho associado ao mar Egeu); • Peleu é outro dos descendentes de Zeus; • Helena, também conhecida como Helena de Troia, é filha de Zeus. Vemos que heróis são semideuses, ao mesmo tempo humanos e sobre-humanos, mortais e imortais, profanos e divinos. Afinal, que mortal comum poderia interessar tanto aos deuses, ou sobreviver à sua ira? É preciso que se seja um semideus, como Héracles, para sobreviver aos monstros lendários, como a Hidra de Lerna, o Touro de Creta, o Leão de Nemeia; ou, no caso de Odisseu, o ciclope Polifemo, sobreviverà bruxa Circe e aos monstros Cila e Caríbdis. Os heróis gregos têm “superpoderes” diferentes, como os nossos. Enquanto Héracles tem sua força sobre-humana, Aquiles tem sua agilidade e Odisseu, sua inteligência. Observe as figuras a seguir. 38 Unidade I Figura 17 – Héracles (vestindo a pele do Leão de Nemeia) e Iolau lutam contra a Hidra de Lerna. Ânfora produzida entre 540 e 530 a.C., exposta no Museu do Louvre Figura 18 – Hidra no filme Hércules (Disney, 1997) Da mesma forma, que mero mortal poderia ter derrotado o bruxo mais poderoso de todos os tempos, ou derrubado um império galáctico? Mas ainda há algo além: existem estruturas narrativas que permeiam as histórias dos heróis gregos, bem como permearão as histórias dos nossos heróis modernos. São esses elementos comuns às epopeias que chamamos “a jornada do herói”. A figura a seguir esquematiza essa jornada. 39 STORYTELLING Retorno Partida Transformação ATO I – PARTIDA 1. Chamado à aventura 2. Recusa do chamado 3. Intervenção externa 4. 1º limiar ou portal menor 5. Partida 6. Encontro com mentor 7. Experiência ATO III – RETORNO 1. Último limiar ou portal do retorno 2. Recusa do retorno 3. Fuga ou desaparecimento 4. União de dois mundos 5. Liberdade para viver 6. Crise e decadência 7. Morte 8. Consequências ATO II – TRANSFORMAÇÃO 1. Teste 2. Sucesso e fracasso 3. Crise interna e/ou externa 4. Tentação 5. Morte do herói 6. 2º limiar ou portal maior 7. Caminho de volta 8. Metamorfose e ressurreição 9. Retorno vitorioso 10. Recompensa e/ou apoteose Figura 19 – Esquema da jornada do herói A jornada do herói se divide em três partes: partida, transformação e retorno. Nas palavras de Joseph Campbell (2009), temos separação, iniciação e retorno. Campbell também indica o caráter ritualístico dessas três fases, que remetem a estruturas de rito de passagem em diversas culturas. Conforme já discutimos, o ato de contar estórias está intimamente ligado a aspectos ritualísticos; afinal, mitos são estórias, e mitologia e ritual alimentam-se constantemente um do outro. Vejamos como isso se dá a seguir. Dioniso (Baco, em latim), deus grego das festas, da loucura, do teatro e do vinho, particularmente associado à intoxicação como contato com o divino, é filho de Zeus com a mortal Sêmele, neta de Áries e Afrodite. Quando Sêmele estava em seu sexto mês de gestação, ela foi enganada por Hera, que a convenceu a insistir que Zeus lhe mostrasse sua verdadeira forma. Exposta diretamente à divindade dos deuses olímpicos, Sêmele foi fulminada por um raio e morreu. Zeus, então, removeu o feto de seu ventre e o costurou em sua coxa, de onde nasceria Dioniso algum tempo depois. Segundo algumas versões do mito, esse é o segundo nascimento de Dioniso. Seu primeiro nascimento foi de Perséfone, violentada por Zeus antes de ser raptada por (ou, em algumas versões, ir voluntariamente 40 Unidade I com) Hades. Zagreu – outro dos nomes de Dioniso, geralmente usado para se referir a ele nesse período de seu primeiro nascimento – foi criado pelos titãs. Ainda criança, ele foi destroçado por esses mesmos titãs sob a influência de Hera, restando apenas seu coração, resgatado por Atena. É justamente esse coração que Zeus teria implantado no ventre de Sêmele, proporcionando o renascimento de Dioniso. Para tentar esconder o filho da ira de Hera, Zeus entregou-o a Hermes, que, por sua vez, o levou até Ino, irmã de Sêmele, para que fosse criado como sua filha (Zeus ordenou que Dioniso fosse criado como mulher, provavelmente para despistar Hera). Hera fez com que Atamante, marido de Ino, enlouquecesse e matasse seu filho, Learco. Em seguida, Ino, também enlouquecida, matou seu outro filho, Melicertes, e atirou-se ao mar com ele. Porque Hera sabia que o filho de Zeus era um menino, ela achou que ele também tivesse sido morto; Zeus, então, escondeu Dioniso entre as ninfas de Nisa, que, por seu serviço a Zeus, foram transformadas nas estrelas Híades. Como consequência desse mito, Dioniso foi consistentemente associado à loucura, e geralmente punia mortais que o desafiavam com ela. Na tragédia As Bacantes, presenciamos Dioniso (Baco, na cultura romana) fazer a mãe, as tias e as irmãs do rei Penteu de Tebas entrarem em um frenesi em que despedaçam o rei com as próprias mãos. Dioniso era conhecido por produzir uma espécie de transe, particularmente em mulheres. Tendo sido criado inicialmente como uma mulher, e posteriormente entre as ninfas, ele é particularmente ligado à feminilidade. Por vezes, como no caso de As Bacantes, esse transe era irrefreavelmente violento; outras vezes, ele era uma conexão profunda com os deuses, quase como uma ascensão à divindade, e parte de ritos regulares a Dioniso. As Bacantes (chamadas de Mênades, em grego) que dão nome à tragédia de Eurípedes, por sinal, são ninfas que cultuam Dioniso, e delas provêm muitos de seus ritos e cultos, imediatamente reconhecíveis pela expressiva presença de mulheres, estrangeiros e escravos, bem como os transes provocados neles. Figura 20 – Estátua de Dioniso, produzida no século II d.C., exposta no Museu do Louvre 41 STORYTELLING Figura 21 – A morte de Penteu, tigela de cosméticos produzida por volta de 450-425 a.C. exposta no Museu do Louvre A história de Dioniso era formadora dos ritos dedicados a ele, bem como seus ritos eram formadores de sua história. Outro exemplo é o tradicional sacrifício feito a Dioniso, em geral, de cabras e cordeiros. Afinal, o deus aparece frequentemente na forma de um bode e está intimamente ligado – de novo em função de sua história – à morte e ao renascimento. Narramos brevemente a história de Dioniso para que fique claro que a conexão entre storytelling e os processos ritualísticos é antiga e mais íntima do que nos pode parecer a princípio. Não nos parece muito difícil entender por que a jornada do herói tem forte conexão com o mito. Como veremos, as mitologias divinas e a jornada do herói têm muito em comum. Aproveitaremos também este momento para tratar de um aspecto oculto, porém comum da jornada do herói: a ideia de destino. Para exemplificar a ideia grega de destino, narraremos aqui duas famosas histórias da mitologia grega: a história de Édipo e a história de Aquiles. Talvez a mais amplamente conhecida das tragédias gregas, Édipo Rei, de Sófocles, narra a história de um bebê deixado para morrer, com os pés amarrados, no Monte Citerão, entre Tebas e Corinto. Levado por um pastor a Corinto, a criança é adotada por Pólibo. Muitos anos depois, quando o jovem consulta o Oráculo de Delfos acerca de sua origem, ele recebe uma terrível profecia: ele matará seu pai e se casará com sua mãe. Buscando evitar seu destino, Édipo deixa Corinto. No caminho, ele encontra um velho viajante, com quem discute. Enfurecido, Édipo mata o viajante e quase toda sua comitiva. O que Édipo não sabe, é claro, é que o viajante é Laio, rei de Tebas e seu pai biológico. Andando sem rumo, Édipo encontra-se às portas de Tebas, onde a Esfinge lhe propõe um enigma. A resposta correta de Édipo salva sua vida e a cidade. Como recompensa, Creonte, irmão da rainha e até então regente de Tebas, oferece-lhe a rainha Jocasta em casamento e o título de rei. Quinze anos depois, a cidade se vê assolada por uma terrível peste. Creonte aconselha Édipo, dizendo que é preciso que se encontre o assassino de Laio, falecido rei de Tebas e marido de Jocasta, que morrera misteriosamente. Tirésias, o sábio cego que aparece como mentor para alguns heróis, incluindo Odisseu, informa Édipo de que o assassino está mais próximo do se imagina. Nesse meio-tempo, o palácio recebe 42 Unidade I a notícia da morte de Pólibo, pai adotivo de Édipo. Na sequência, aparece o único sobrevivente da comitiva de Laio: o pastor que levara Édipo, ainda criança, ao Monte Citerão para morrer sob comando do rei, que temia uma profecia que recebera acerca do filho. O homem reconhece tanto o bebê que abandonara quanto o assassino de Laio na
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