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IANDRA E STEPHANYE UREIA E CREATININA


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100 Hiperglicemias
Rodrigo Antonio Brandão Neto
Rafael Kitayama Shiraiwa
Andrew Araujo Tavares
 PONTOS IMPORTANTES
A cetoacidose diabética (CAD) e o estado hiperosmolar hiperglicêmico (EHH) são
duas complicações associadas à hiperglicemia. A CAD representa de 4-9% das
internações por diabetes mellitus (DM) e o estado hiperosmolar representa < 1% das
internações por DM.
A CAD é definida pela tríade:
– Glicemia maior que 250 mg/dL.
– pH arterial < 7,3.
– Cetonemia positiva.*
O EHH, por sua vez, é definido por:
– Glicemia > 600 mg/dL.
– Osmolaridade > 320 mosm/kg.
– pH arterial > 7,3.
Na CAD temos ausência relativa de insulina e no EHH uma redução importante, mas
com produção suficiente para suprimir a produção de glucagon. Desta forma, apesar
de ambas as situações ocorrerem com alteração do metabolismo de carboidratos,
apenas na CAD ocorre a alteração do metabolismo lipídico com a produção de
corpos cetônicos e acidose.
Infecção é o fator precipitante em 30-50% dos casos de CAD e 30-60% dos casos de
EHH. Em 20-30% dos pacientes com DM tipo 1 a CAD ocorre por descontinuação da
medicação, frequentemente associada a problemas psiquiátricos.
Leucocitose > 25.000 deve levantar suspeita para infecção subjacente.
Dor abdominal, especialmente em jovens e na ausência de acidose grave, pode ser
resultado de fator precipitante (p. ex., apendicite aguda).
Coma ou esturpor, na ausência de osmolaridade efetiva ≥ 320 mOsm/kg, devem abrir
diagnóstico diferencial para outras causas de rebaixamento do nível de consciência.
Pacientes com CAD apresentam frequentemente dor abdominal (30%), náuseas e
vômitos. Esses sintomas melhoram com a hidratação.
* Na indisponibilidade da cetonemia, podemos inferir sua presença por cetonúria
fortemente positiva.
 INTRODUÇÃO E DEFINIÇÕES
A cetoacidose diabética (CAD) e o estado hiperosmolar hiperglicêmico
(EHH) são as duas complicações agudas relacionadas a hiperglicemias mais
relevantes e serão discutidas neste capítulo. Representam de 4 a 9% das
internações hospitalares em pacientes com DM, com o EHH representando
< 1% das internações hospitalares em pacientes com DM, com os outros
casos associados à CAD. Cerca de 4,6 a 8 episódios de CAD ocorrem a
cada 1.000 pacientes diabéticos/ano, e a taxa de mortalidade da CAD é <
3%, enquanto a taxa de mortalidade no EHH varia entre 3 e 20%, sendo
muito relacionado ao fator precipitante. No EHH temos uma importante
hiperglicemia com desidratação e aumento da osmolaridade; já na CAD,
além da alteração do metabolismo temos também alteração do metabolismo
lipídico com produção de cetoácidos e consumo de bicarbonato.
A CAD é definida pela tríade:
Glicemia maior que 250 mg/dL: embora raramente, em pacientes em
jejum prolongado podem ocorrer euglicemia e até hipoglicemia.
pH arterial < 7,3 (excluídas outras causas de acidose).
Cetonemia positiva (na indisponibilidade da cetonemia, podemos inferir
sua presença por cetonúria fortemente positiva).
O EHH, por sua vez, é definido por:
Glicemia > 600 mg/dL.
Osmolaridade > 320 mosm/kg.
pH arterial > 7,3.
Os pacientes podem apresentar concomitantemente CAD e EHH.
Semanticamente nos referimos a esses pacientes como CAD com
hiperosmolares, pois o termo englobaria todas as alterações que os
pacientes apresentam. Os extremos de idade (pacientes muito jovens ou
muito idosos) apresentam maior risco de evolução desfavorável; outras
situações com maior risco de evolução ruim incluem presença de
hipotensão ou choque e os fatores relacionados aos fatores precipitantes. A
Tabela 1 resume as definições de CAD e EHH.
▷ TABELA 1 Definições e apresentação clínica de cetoacidose diabética e estado
hiperosmolar hiperglicêmico
Parâmetros Cetoacidose
leve
Cetoacidose
moderada
Cetoacidose
grave
Estado
hiperosmolar
glicêmico
Glicemia
(mg/dL)
> 250 > 250 > 250 > 600
pH arterial ou
venoso
7,25-7,30 7,00-7,24 < 7,00 > 7,30
Bicarbonato
sérico (mEq/L)
15-18 10-14,9 < 10 > 15
Acetoacetato
sérico ou
urinário
Positivo Positivo Positivo Negativo ou
fracamente
positivo
β-hidroxibutirato
sérico ou
urinário
> 3 > 3 > 3 < 3
Osmolalidade
efetiva
(mOsm/kg)
Variável Variável Variável > 320
Ânion-gap > 3 > 10 > 12 > 12 < 12
Nível de
consciência
Alerta Alerta ou
sonolento
Estupor ou
coma
Estupor ou
coma
 ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA
A fisiopatologia da CAD é mais conhecida que a da EHH. O paciente com
diabetes mellitus devido à diminuição da própria insulina ou resistência à
sua ação tem dificuldade de transportar a glicose para o meio intracelular,
apresentando assim uma glicopenia intracelular. O equilíbrio dos meios
acaba acontecendo, mas com um nível de glicemia muito mais elevado do
que o considerado normal, estabelecendo-se assim uma nova homeostase
glicêmica.
A CAD é precipitada por uma ausência absoluta ou relativa da insulina.
Assim, o quadro é mais esperado em pacientes com DM do tipo 1, mas tem
sido cada vez mais frequente em pacientes com DM tipo 2.
A CAD pode ser precipitada por infecção ou outros fatores estressores.
Neste caso, ocorre uma resistência à ação insulínica extrema causada pelos
hormônios contrarreguladores, como o hormônio do crescimento, cortisol e
catecolaminas, que levam, por sua vez, ao aumento de glucagon e lipólise.
A indisponibilidade da glicose para servir de substrato para produção de
energia intracelular e a alteração da relação insulina/glucagon levam a um
aumento na gliconeogênese (produção de glicose através de outros
substratos como gorduras e proteínas) e glicogenólise (quebra de glicogênio
em glicose). Desta forma, o paciente apresenta-se com glicemias
progressivamente maiores, ocorrendo assim o processo de diurese osmótica
levando a desidratação e aumento da osmolaridade.
A acidose se soma ao quadro quando há alteração do metabolismo dos
lipídios. Isso ocorre quando a ausência relativa de insulina for absoluta ou
quase absoluta, pois mesmo pequenas quantidades de insulina são capazes
de suprimir toda a produção de glucagon por efeito parácrino nas ilhotas
pancreáticas.
Nestas circunstâncias, com o aumento do glucagon, diminui a produção
de uma enzima denominada malonil coenzima A, que tem a função de inibir
a produção da carnitina-palmitil-transferase. Com a diminuição da malonil
coenzima A, ocorre o aumento da já citada carnitina-palmitil-transferase,
que faz o transporte de ácidos graxos para as mitocôndrias hepáticas. Desta
forma, há produção de energia usando como substrato os lípides. O
problema é que esse processo produz ácido aceto-acético, ácido beta-
hidróxibutírico e acetona, estabelecendo o quadro de cetoacidose. Há
consumo da reserva alcalina e diminuição posterior do pH sanguíneo.
Ocorre também uma grande produção de lípides e triglicérides, podendo
inclusive ser desencadeadas complicações da hipertrigliceridemia como a
pancreatite. São frequentes discretas elevações de amilase e lipase na CAD.
Outras alterações encontradas incluem:
Aumento da atividade da lipase hormônio-sensível. Aumenta a
conversão de triglicérides em ácido graxo e glicerol, também
contribuindo para a produção de corpos cetônicos.
Aumento da produção de prostaglandinas vasodilatadoras e
vasoconstritoras pelo tecido adiposo causando hipotensão, náuseas e
vômitos. A produção de prostaglandinas vasoconstritoras em circulação
esplâncnica justifica o quadro de dor abdominal associado a CAD.
Glicemias acima de 180 mg/dL ultrapassam a capacidade de reabsorção
de glicose renal e ocorre glicosúria, com desidratação e perda de
eletrólitos, com aumento da osmolaridade e lesão renal aguda por
desidratação.
Aumento de citocinas e fatores pró-coagulantes como o inibidor do
plasminogênio tecidual (PAI1), aumentando o risco de
tromboembolismo.
No EHH, ao contrário da CAD, a deficiência de insulina é apenas
relativa, de forma que não ocorre uma elevação tão importante do glucagon,
e assim a alteração do metabolismo lipídico não ocorre com produção de
cetoácidos. Entretanto, esses pacientes se apresentam com desidratação
muito maior. A diurese osmótica pela hiperglicemia leva à perda importantede eletrólitos e perda ainda maior de água livre, de forma que a
osmolaridade aumenta significativamente.
▷ TABELA 2 Fatores contribuintes para fisiopatologia de cetoacidose diabética e estado
hiperosmolar hiperglicêmico
↓ Insulina + ↑ hormônios contrarregulatórios
Cetoacidose Produção de ácidos graxos (lipólise) → fígado → produção de
corpos cetônicos (ácido aceto-acético, cetona e beta-
hidroxibutírico)
Cetonemia e acidose metabólica
Estado hiperosmolar Ocorre produção de insulina diminuída, mas suficiente para
inibir a produção de corpos cetônicos
Frequentemente associado a condições que dificultam o
acesso à água, como acidente vascular cerebral (AVC)
Entre os fatores precipitantes da CAD e EHH se destacam os processos
infecciosos, sendo responsáveis por 30-50% dos casos de CAD e 30-60%
dos casos de EHH. Os focos infecciosos mais frequentes incluem
pneumonia, infecção urinária, sepse de origem determinada, infecções
cutâneas e gastroenterites. Em 20-30% dos pacientes com DM tipo 1 a
CAD ocorre por descontinuação da medicação, frequentemente associada a
problemas psiquiátricos. Cada vez mais tem aumentado a incidência de
pacientes que apresentam como primeira manifestação do diabetes a
cetoacidose diabética, mesmo naqueles que depois evoluem clinicamente
como diabéticos do tipo 2. Assim, a CAD pode ser a primeira manifestação
de DM em cerca de 20% dos pacientes. As causas cardiovasculares e
cerebrovasculares, como infarto agudo do miocárdio e acidente vascular
cerebral, são responsáveis por cerca de até 5% das CAD, sendo causa
proeminente desta descompensação em grupos etários acima dos 40 anos de
idade. As causas cardio e cerebrovasculares representam entre 5 e 8% dos
casos de EHH. A Tabela 3 resume os principais fatores precipitantes das
emergências hiperglicêmicas.
▷ TABELA 3 Fatores precipitantes da descompensação
Fator Incidência
CAD EHH
Infecções 30-50% 30-60%
Má-aderência ou descontinuação do tratamento 20-30% 20-30%
Primeira descompensação diabética 15-20% 15-20%
Quadros abdominais: pancreatite, colecistite, apendicite,
isquemia mesentérica
< 5% < 5%
Doenças cardiovasculares e cerebrovasculares (5% dos
casos)
5% 5-8%
Tromboembolismo pulmonar < 2% < 2%
Medicamentos: pentamidina, betabloqueadores,
corticosteroides, catecolaminas
< 2% < 3%
Crise tireotóxica Rara Rara
CAD: cetoacidose diabética; EHH: estado hiperosmolar hiperglicêmico.
 ACHADOS CLÍNICOS
A CAD ocorre principalmente em um subgrupo de população mais jovem
com média etária entre 20-29 anos, embora possa ocorrer nos dois extremos
da idade, com aparecimento por vezes abrupto. Normalmente os pacientes
apresentam pródromos com duração de dias de poliúria, polidipisia,
polifagia e mal-estar indefinido. O paciente apresentará, na maioria das
vezes, desidratação, podendo estar hipotenso e muitas vezes taquicárdico,
embora possa eventualmente estar com extremidades quentes e bem
perfundido, devido ao efeito de prostaglandinas.
Os sinais e sintomas da acidose podem aparecer com taquipneia,
surgindo o ritmo respiratório de Kussmaul quando o pH do paciente se
encontra entre 7,0 7,2, sendo a cetona bastante volátil e, portanto, eliminada
pela respiração, o que leva ao aparecimento do hálito cetônico que também
é útil ao diagnóstico.
O paciente normalmente se encontra alerta, sendo as manifestações
neurológicas e alterações do nível de consciência muito mais
correlacionadas com a osmolaridade do que com a acidose e, portanto,
muito mais prevalentes no doente com EHH em relação ao paciente com
CAD. Menos de 20% dos pacientes com CAD apresentam alteração do
nível de consciência.
O achado de febre não é frequente nos pacientes com cetoacidose,
embora mesmo com sua exclusão não se pode descartar que o fator
precipitante seja infeccioso. Pacientes com CAD apresentam
frequentemente dor abdominal (30%), náuseas e vômitos. Esses sintomas
melhoram com a hidratação; este é um achado raro no EHH e
provavelmente tem correlação com alteração de prostaglandinas na parede
muscular intestinal, e tende a melhorar muito com a hidratação inicial.
Deve-se salientar que o paciente pode ainda apresentar as manifestações
clínicas da doença que for fator precipitante para o episódio de cetoacidose,
como infecção do trato urinário e infarto agudo do miocárdio. A Tabela 4
resume as principais diferenças clínicas entre a CAD e o EHH.
 EXAMES COMPLEMENTARES
O diagnóstico de CAD e EHH é baseado em critérios laboratoriais. Assim,
é necessária a coleta de glicemia, gasometria, corpos cetônicos e sódio para
avaliação da presença de acidose, cetonemia e aumento da osmolaridade.
Outras alterações incluem leucocitose secundária ao episódio de estresse,
embora valores de leucócitos > 25.000 céls./mm3 sugiram a presença de
infecção. Pode ocorrer também o aumento de hematócrito e hemoglobina e
a desidratação, assim como o aumento de ureia e creatinina. O potássio
sérico inicialmente tenderá a estar elevado devido ao quadro de acidose,
mas o potássio corporal total estará diminuído. Com o tratamento da
hipocalemia, talvez seja necessário repor esse eletrólito. Fósforo e outros
elementos também podem ser espoliados devido à diurese osmótica desses
pacientes. Os seguintes exames complementares devem ser solicitados nas
emergências hiperglicêmicas:
▷ TABELA 4 Diferenças entre cetoacidose diabética e estado hiperosmolar
hiperglicêmico
Cetoacidose diabética Estado hiperosmolar hiperglicêmico
Idade 20-29 anos Idade usualmente > 50 anos
Instalação abrupta em horas Instalação insidiosa em dias a semanas
Presença de polis Presença de polis
Sinais de desidratação Desidratação muito intensa
Dor abdominal e vômitos Usualmente sem dor abdominal e vômitos
Sinais de acidose metabólica com
taquipneia e respiração de Kussmaul
Sem sinais de compensação de acidose
Normalmente alerta Geralmente há rebaixamento de nível de
consciência (consciência tem importante
correlação com osmolaridade)
Déficit de água de 6 L Déficit de água de 6-9 L
K pode estar aumentado (acidose) K usualmente normal ou diminuído
pH < 7,30 pH geralmente > 7,30
Gasometria arterial inicialmente e depois venosa (repetir a cada 4 horas).
Glicemia e posteriormente glicemia capilar (de preferência a cada 1/1
hora).
Potássio, sódio, fósforo, cloro e outros eletrólitos (dosagem sérica de K
inicialmente a cada 2 horas. Os outros, inclusive fósforo, a cada 12
horas).
Hemograma completo.
Urina tipo 1.
Cetonemia ou cetonúria: preferencialmente dosar o beta-hidroxibutirato,
pois cerca de 80% da produção de corpos cetônicos é na forma de beta-
hidroxibutirato, mas as fitas reagentes de urina só avaliam o ácido aceto-
acético. Em situações de sepse associada, o beta-hidroxibutirato se torna
100% dos corpos cetônicos, assim as fitas reagentes de urina podem ter
resultados falso-negativos para corpos cetônicos.
Eletrocardiograma.
Radiografia de tórax (procura de foco infeccioso associado).
Outros exames solicitados conforme suspeita clínica.
O eletrocardiograma, além de servir para rastrear isquemia coronariana
como fator precipitante do episódio de cetoacidose diabética, também
permite verificar a presença de complicações da hipercalemia e outros
distúrbios hidroeletrolíticos. Talvez o único paciente que prescinda da
procura ativa por fator precipitante do episódio de cetoacidose seja o
diabético do tipo 1, que apresenta crise correlacionada claramente com a
interrupção do esquema terapêutico.
Ao avaliar pacientes com suspeita de EHH, lembre-se de que é
necessário avaliar a osmolaridade, que é calculada através da seguinte
fórmula:
Osmolaridade efetiva = 2 × (Na+ corrigido) + + glicemia/18 (valores > 320
mosm/kg indicam hiperosmolaridade)
Vale lembrar que a hiperglicemia pode falsear o resultado da
mensuração de sódio, assim o ideal é sempre usar a fórmula do sódio
corrigido para calcular a osmolaridade:
Na+ corrigido = Na+ medido + + 1,6 × [(glicemia medida – 100)/100]
 DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
A CAD entra no diagnóstico diferencial de outras acidoses como a
cetoacidose alcoólica,que não cursa com hiperglicemia, apesar de cursar
com aumento de cetoácidos. O EHH entra no diagnóstico diferencial de
pacientes com confusão mental ou alteração de nível de consciência; por
esse motivo, verificar a glicemia é importante nesses pacientes, tanto para
descartar hipoglicemia como para descartar grandes hiperglicemias
associadas ao EHH.
Os pacientes em uso de inibidores de SGLT2 podem evoluir com
euglicemia, pois essas medicações bloqueam o cotransportador de sódio-
glicose 2. Com isso, aumenta a glicosúria, podendo minimizar ou prevenir o
desenvolvimento de hiperglicemia, apesar dos níveis de atividade de
insulina muito baixos e do desenvolvimento de cetoacidose.
 TRATAMENTO
A CAD era uma patologia invariavelmente fatal até 1926, quando pela
primeira vez se aplicou insulina regular para o seu tratamento. Hoje a
mortalidade em centros de referência norte-americanos é menor que 3%,
sendo grande parte dela atribuída aos fatores precipitantes como infecções e
eventos cardiovasculares. Deve-se pontuar que a CAD existe quando o pH é
menor que 7,30. A existência de hiperglicemia com cetose e sem acidemia
(pH > 7,30) é denominada de cetose diabética. Os quadros com tal
descompensação diabética podem ser revertidos em algumas horas, na
maioria das vezes sem a necessidade de internação. O esteio do tratamento
é a hidratação, insulinoterapia e correção de fatores precipitantes.
Discutiremos a seguir o manejo da CAD e do EHH dividido por tópicos.
Hidratação
A hidratação é fundamental no manejo inicial das emergências
hiperglicêmicas e, isoladamente, pode diminuir em 12% os níveis
glicêmicos. A hidratação a princípio tem como alvo inicial a estabilização
hemodinâmica. Iniciamos com 1.000-1.500 mL de solução de NaCl a 0,9%
na primeira hora. Se o paciente permanece hipotenso, pode ser necessário
repetir ainda na primeira hora (no EHH, em particular, podem ser
necessários vários litros).
Na segunda fase da hidratação mantemos 250-500 mL (4 mL/kg) por
hora. Em pacientes com Na corrigido < 135 mEq/L mantemos solução
salina a 0,9%. Caso a natremia seja normal ou aumentada deve-se utilizar
salina a 0,45%. Quando a glicemia chegar a 250-300 mg/dL a hidratação
continua, mas associando glicose a 5-10% com a solução salina. A diluição
pode ser feita usando-se 1 litro de solução glicosada acrescido de 20 mL de
solução de NaCl 20%. A velocidade de infusão continua de 250-500
mL/hora.
Um estudo de 2020 comparou o uso de soluções cristaloides
balanceadas como o Ringer-lactato e o Plasma-Lyte com a salina fisiológica
e encontrou que o tempo de resolução da CAD foi menor (13,0 horas vs.
16,9 horas). Desta forma, o uso de soluções balanceadas pode ser um
tratamento melhor para pacientes com CAD comparado a salina fisiológica,
embora a salina fisiológica continue sendo recomendada pela maioria dos
autores.
Insulinoterapia
A insulinoterapia é realizada concomitantememente com a hidratação
endovenosa, exceto quando o paciente apresenta hipocalemia (com K < 3,3
mEq/L) e hipotensão arterial, caso em que se deve aguardar a hidratação e a
reposição de potássio para iniciar o uso da insulina.
Até a década de 1970 eram utilizadas grandes doses de insulina para
realizar a compensação do quadro de cetoacidose diabética. Alguns
trabalhos dessa década demonstram, no entanto, que o uso de doses
menores de insulina foi associado à reversão do quadro com a mesma
rapidez, com menor número de complicações. O trabalho de Alberti em
1973, por exemplo, usou insulina regular intramuscular (IM) em dose
inicial de 16 unidades e depois dez unidades IM por hora, esquema
associado ao alto índice de sucesso na terapêutica. Outro trabalho da mesma
década comparou dois esquemas diferentes para o tratamento da
cetoacidose diabética, um deles usando altas doses de insulina e outro com
doses menores. Comparando-se os dois grupos verificou-se que em ambos
se conseguiu a reversão do quadro de cetoacidose diabética no mesmo
período de tempo, com a diferença de que o grupo que utilizou altas doses
de insulina precisou de cerca de 200-250 unidades de insulina regular para a
compensação do quadro, enquanto o outro grupo precisou de 40-60
unidades de insulina para a compensação do episódio. Ocorreram muito
menos complicações secundárias ao tratamento no grupo quando foram
utilizadas doses menores de insulina, principalmente hipoglicemia.
Em relação à insulinoterapia, recomenda-se que a insulina seja iniciada
concomitante à hidratação, exceto se K < 3,3 mEq/L. Neste caso deve-se
repor 25 mEq de potássio antes de iniciar a insulinoterapia
(aproximadamente 1 ampola de 10 mL de solução de KCl 19,1%).
Geralmente utiliza-se bomba de infusão contínua endovenosa, com dose
inicial de 0,1 U/kg de insulina em bolus e depois inicia-se a infusão da
bomba em 0,1 U/kg/hora. Outra opção é infusão contínua inicial de 0,14
U/kg/hora sem bolus inicial. A solução de insulina para infusão contínua
pode ser preparada com 50 unidades de insulina em 250 mL de solução
fisiológica; assim, 5 mL correspondem a 1 U de insulina. O ideal no
preparo desta solução é que se desprezem 50 mL da solução, pois a insulina
é adsorvida no plástico. Alternativamente, pode-se utilizar insulina regular
IM ou subcutânea (SC), usando dose em bolus inicial de 0,4 unidades/kg,
metade dessa dose inicial em bolus EV e metade via IM ou SC e depois
mantendo dose de 0,1 unidade/kg/hora IM ou SC, observando a taxa de
queda da glicemia, que deve ser mantida entre 50 a 70 mg/dL/hora.
A glicemia capilar é mensurada de 1/1 hora. Espera-se uma queda da
glicemia de 50-70 mg/dL/hora. Caso a glicemia caia em níveis menores que
50 mg/dL é recomendável dobrar a taxa de infusão; se ocorrer redução
maior que 70 mg/dL, recomenda-se diminuir a taxa de infusão pela metade.
A bomba de infusão pode ser desligada quando pelo menos dois dos três
critérios estão presentes:
pH > 7,3.
Ânion-gap ≤12.
Bicarbonato ≥15.
Para desligar a bomba de infusão contínua deve-se esperar pelo menos 1
hora da ação da primeira dose de insulina regular SC, e posteriormente
prosseguir com insulina SC conforme glicemia capilar a cada 4/4 horas.
Idealmente, o melhor momento para fazer essa transição é logo após uma
refeição.
Calcula-se a dose de insulina de longa duração verificando as doses de
insulina nas últimas 24 horas e utilizando dois terços dessa dose total ou 0,6
U/kg de insulina NPH, outra forma de longa duração. Geralmente a insulina
basal é dividida em 2/3 pela manhã e 1/3 à noite, mas diferentes autores têm
diversas recomendações, nenhuma delas com validação suficiente para uma
recomendação definitiva.
Reposição de potássio (K)
Em relação à reposição de K, caso os níveis de K sejam menores que 3,3
mEq/L, deve-se repor 25 mEq de potássio em 1 L de solução de NaCl 0,9%
e repetir a dosagem de K. Só se inicia a insulinoterapia após níveis de K >
3,3 mEq/L.
Pacientes com K entre 3,3-5,0 mEq/L devem repor 25 mEq de potássio a
cada litro de solução de hidratação e dosar K a cada 2 ou 4 horas.
Pacientes com K > 5 mEq/L só devem iniciar a reposição de K quando
os valores forem < 5 mEq/L.
Reposição de bicarbonato
A reposição de bicarbonato de sódio não demonstrou benefício em estudos
e só é indicada em pacientes com pH < 6,9 com reposição de 100 mEq EV
de bicarbonato em 2 horas com coleta de gasometria após 1-2 horas (100
mL de solução de bicarbonato 8,4%). Uma metanálise de estudos sobre
reposição de bicarbonato na CAD não demonstrou benefícios com essa
conduta em paciente com pH inicial entre 6,90 e 7,14, mas os trabalhos
analisados incluíram poucos pacientes com pH menor que 7,0.
Anteriormente, a recomendação era repor bicarbonato se o pH arterial <
7,00, mas outros estudos não demonstraram benefício e o ponto de corte
para reposição hoje é de pH ≤ 6,9.
▷ TABELA 5 Fatos importantes na CAD e EHH
Infecção é um fator precipitante comum e pode ocorrer mesmo na vigência de
normotermia ou hipotermia
Leucocitose > 25.000 deve levantar suspeita para infecção subjacente
Até 10% das apresentações de CAD podem apresentar-secomo euglicêmicas e isso
pode aumentar no futuro com a popularização das gliflozinas no tratamento da
insuficiência cardíaca.
Dor abdominal, especialmente em jovens e na ausência de acidose grave, pode ser
resultado de fator precipitante (p. ex., apendicite aguda)
▷ TABELA 5 Fatos importantes na CAD e EHH
Coma ou estupor, na ausência de osmolaridade efetiva ≥ 320 mOsm/kg, deve abrir
diagnóstico diferencial para outras causas de rebaixamento do nível de consciência
Reposição de fósforo
A reposição de fósforo só é indicada em pacientes com as seguintes
condições:
Disfunção cardíaca grave e arritmias.
Fraqueza muscular e insuficiência respiratória.
Rabdomiólise e anemia significativa.
Concentração sérica < 1,0 mEq/L.
Quando indicada, a reposição é realizada com 25 mEq de fosfato de
potássio, que repõe K além de fósforo, substituindo a solução de cloreto de
potássio (KCl).
Por fim, e não menos importante, deve-se lembrar de sempre procurar e
corrigir o fator precipitante da emergência hiperglicêmica.
 SISTEMA DE DUAS BOLSAS
Devido às diferentes necessidades de fluidos, eletrólitos e glicose ao longo
do tratamento, modificações frequentes são necessárias durante a terapia
intravenosa da CAD. No sistema convencional de uma bolsa, se um
paciente, durante determinado momento do tratamento, estiver em uso de
SG5% e apresentar queda dos níveis glicêmicos além do desejado, uma
nova bolsa com maior conteúdo de dextrose será prescrita e a atual
desprezada, gerando maiores custos. Em resposta às situações como esta, o
sistema de duas bolsas foi introduzido no Hospital da Filadélfia na década
de 1990.
O sistema de duas bolsas é uma maneira custo-efetiva e flexível para o
manejo da fluidoterapia no tratamento da CAD. Consiste na administração
simultânea de duas bolsas, que possuem o mesmo conteúdo de eletrólitos,
porém diferentes concentrações de dextrose, conectadas por uma conexão
em Y (Figura 1). Nesse circuito, a bolsa 1 é formada por SF (ou NaCl
0,45%) e 40 mEq/L de KCl – se a reposição de potássio estiver indicada –
enquanto a bolsa 2 é composta por SG10% e 40 mEq/L de KCl. Assim,
pode-se ofertar desde 0% até 10% de dextrose, titulando em qualquer
momento conforme o ajuste na taxa de infusão de cada bolsa. Outros pontos
de destaque são a menor quantidade de eventos de hipoglicemia, menos
bolsas utilizadas, menos ajustes na taxa de infusão da insulina, e redução do
tempo resposta – período entre a prescrição e sua execução – já que só é
necessário o ajuste do gotejamento ou da velocidade da bomba de infusão
ao invés da confecção de uma nova bolsa pela equipe de enfermagem. O
tempo de resolução da cetose é o mesmo em ambas as modalidades, embora
haja evidências conflitantes de que possa ser mais rápido no sistema de
duas bolsas.
▷ TABELA 6 Uso do sistema de 2 bolsas com infusão total = 500 mL/h
Concentração
final de glicose
Infusão
bolsa 1
Infusão
bolsa 2
D0 500 mL/h 0 mL/h
D2,5 375 mL/h 125 mL/h
D5 250 mL/h 250 mL/h
D7,5 125 mL/h 375 mL/h
D10 0 mL/h 500 mL/h
▷ FIGURA 1 Esquematização do conteúdo das duas bolsas usadas no sistema de 2
bolsas.
 COMPLICAÇÕES
A hipoglicemia é a principal complicação do tratamento da cetoacidose, por
isso a necessidade de verificação da glicemia capilar de hora em hora até a
correção da cetoacidose diabética. A hipocalemia e suas complicações
também podem aparecer após a instituição do tratamento com insulina.
O edema cerebral é a complicação de maior frequência em crianças,
apresentando correlação importante com o uso de soluções hipotônicas para
hidratação do paciente. Com o uso inicial de salina fisiológica para
hidratação, essa complicação se tornou rara. A razão fisiopatológica para
essa complicação é pouco descrita na literatura.
O desenvolvimento da síndrome do desconforto respiratório do adulto
pode ocorrer principalmente com utilização de soluções coloides para
recuperação da pressão arterial do paciente.
O tromboembolismo pulmonar é uma complicação relativamente
frequente em pacientes com estado hiperosmolar, mas é rara em pacientes
com cetoacidose diabética.
A distensão gástrica aguda também pode ocorrer, sendo inclusive
indicação para internação em ambiente de terapia intensiva. Representa
complicação de neuropatia autonômica, sendo o extremo da gastroparesia
diabética.
▷ FIGURA 2 Manejo de cetoacidose diabética.
BIC: bicarbonato.
A mucormicose é uma infecção fúngica que atinge principalmente os
seios da face e ocorre pela alteração do metabolismo de ferro que atinge
esses pacientes, durante o episódio de cetoacidose. A alcalose metabólica
paradoxal pode ainda ocorrer durante o tratamento, assim como sobrecarga
de volume, principalmente nos pacientes cardiopatas, sendo importante
salientar que a terapêutica adequada pode prevenir a maioria dessas
complicações. A Tabela 7 resume as principais complicações das
emergências hiperglicêmicas.
 INDICAÇÕES DE INTERNAÇÃO, TERAPIA INTENSIVA, ALTA
HOSPITALAR E SEGUIMENTO
Todos os pacientes com CAD e EHH devem ser internados. Pacientes com
cetose diabética isolada (sem acidose) ou apenas com hiperglicemias sem
cetose geralmente não necessitam de internação hospitalar. Nesses casos,
pode-se dar alta hospitalar entre 12-24 horas após controle de fator
precipitante e reversão da CAD e EHH.
▷ TABELA 7 Complicações das emergências hiperglicêmicas
Complicação Comentário
Hipoglicemia Mais frequente, por esse motivo deve-se repor glicose quando
glicemia entre 200-300 mg/dL na solução de reposição volêmica
Hipervolemia Frequente, principalmente em pacientes com disfunção cardíaca
Hipocalemia Por perda de potássio na diurese, repor K se potássio sérico
normal ou diminuído. Pode causar arritmias
Alcalose metabólica Principalmente em pacientes que realizaram reposição de
bicarbonato
Síndrome do
desconforto
respiratório agudo
Ocorre principalmente em uso de soluções coloides de reposição
volêmica
Tromboembolismo
venoso (TEV)
A CAD e o EHH são situações pró-trombóticas, assim a profilaxia
de TEV é indicada, pois com o tratamento o risco de TEV diminui
Edema cerebral Raro, ocorre principalmente em crianças, em geral quando se
utilizam soluções hipotônicas no início da reposição volêmica
Dilatação gástrica
aguda
Forma extrema de neuropatia autonômica, cursa com risco de
aspiração
Mucormicose Infecção fúngica profunda, atinge principalmente órbitas
CAD: cetoacidose diabética; EHH: estado hiperosmolar hiperglicêmico.
▷ FIGURA 3 Manejo do estado hiperosmolar hiperglicêmico.
As indicações de internação em UTI incluem as seguintes ocorrências:
Desconforto respiratório agudo.
Acidose com pH < 6,9.
Choque cardiogênico.
Edema cerebral.
Todos os pacientes precisarão posteriormente de seguimento
ambulatorial para controle do diabetes.

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