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Cetoacidose diabética e Estado hiperosmolar hiperglicêmico

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Bianca Cardoso e Santos 
 
CETOACIDOSE DIABÉTICA E ESTADO HIPEROSMOLAR HIPERGLICÊMICO 
 
 
 A CAD é definida pela tríade: 
Glicemia maior que 250 mg/dL: embora raramente, em pacientes em jejum prolongado podem ocorrer 
euglicemia e até hipoglicemia. 
pH arterial < 7,3 (excluídas outras causas de acidose). 
Cetonemia positiva (na indisponibilidade da cetonemia, podemos inferir sua presença por cetonuria 
fortemente positiva). 
 O EHH, por sua vez, é definido por: 
Glicemia > 600 mg/dL. 
Osmolaridade > 320 mosm/kg. 
pH arterial > 7,3. 
 A fisiopatologia da CAD é mais conhecida que a da EHH. O paciente com diabetes mellitus 
devido à diminuição da própria insulina ou resistência à sua ação tem dificuldade de transportar 
a glicose para o meio intracelular, apresentando assim uma glicopenia intracelular. O equilíbrio 
dos meios acaba acontecendo, mas com um nível de glicemia muito mais elevado do que o 
considerado normal, estabelecendo-se assim uma nova homeostase glicêmica. 
 A CAD é precipitada por uma ausência absoluta ou relativa da insulina. Assim, o quadro é mais 
esperado em pacientes com DM do tipo 1, mas tem sido cada vez mais frequente em pacientes 
com DM tipo 2. 
 
 Bianca Cardoso e Santos 
 
 
 A CAD pode ser precipitada por infecção ou outros fatores estressores. Neste caso, ocorre uma 
resistência à ação insulínica extrema causada pelos hormônios contrarreguladores, como o 
hormônio do crescimento, cortisol e catecolaminas, que levam, por sua vez, ao aumento de 
glucagon e lipólise. 
 A indisponibilidade da glicose para servir de substrato para produção de energia intracelular e a 
alteração da relação insulina/glucagon levam a um aumento na gliconeogênese (produção de 
glicose através de outros substratos como gorduras e proteínas) e glicogenólise (quebra de 
glicogênio em glicose). Desta forma, o paciente apresenta-se com glicemias progressivamente 
maiores, ocorrendo assim o processo de diurese osmótica levando a desidratação e aumento da 
osmolaridade. 
 A acidose se soma ao quadro quando há alteração do metabolismo dos lipídios. Isso ocorre 
quando a ausência relativa de insulina for absoluta ou quase absoluta, pois mesmo pequenas 
quantidades de insulina são capazes de suprimir toda a produção de glucagon por efeito 
parácrino nas ilhotas pancreáticas. Nestas circunstâncias, há o aumento da produção de 
glucagon. Com o aumento do glucagon diminui a produção de uma enzima denominada malonil 
coenzima A, e ocorre o aumento da carnitina-palmitiltransferase, que faz o transporte de ácidos 
graxos para as mitocôndrias hepáticas. Desta forma, há produção de energia usando como 
substrato os lípides. O problema é que esse processo produz ácido aceto-acético, ácido 
betahidróxibutírico e acetona, estabelecendo o quadro de cetoacidose. 
 Há consumo da reserva alcalina e diminuição posterior do pH sanguíneo. 
 Ocorre também uma grande produção de lípides e triglicérides, podendo inclusive ser 
desencadeadas complicações da hipertrigliceridemia como a pancreatite. 
 São frequentes discretas elevações de amilase e lipase na CAD. 
 Outras alterações encontradas incluem: 
Aumento da atividade da lipase hormônio-sensível. Aumenta a conversão de triglicérides em ácido graxo 
e glicerol, também contribuindo para a produção de corpos cetônicos. 
Aumento da produção de prostaglandinas vasodilatadoras e vasoconstritoras pelo tecido adiposo 
causando hipotensão, náuseas e vômitos. 
A produção de prostaglandinas vasoconstritoras em circulação esplâncnica justifica o quadro de dor 
abdominal associado a CAD. 
 Glicemias acima de 180 mg/dL ultrapassam a capacidade de reabsorção de glicose renal e 
ocorre glicosúria, com desidratação e perda de eletrólitos, com aumento da osmolaridade e 
lesão renal aguda por desidratação. 
 Aumento de citocinas e fatores pró-coagulantes como o inibidor do plasminogênio tecidual 
(PAI1), aumentando o risco de tromboembolismo. 
 No EHH, ao contrário da CAD, a deficiência de insulina é apenas relativa, de forma que não 
ocorre uma elevação tão importante do glucagon, e assim a alteração do metabolismo lipídico 
não ocorre com produção de cetoácidos. Entretanto, esses pacientes se apresentam com 
desidratação muito maior. 
 
 Bianca Cardoso e Santos 
 
 A diurese osmótica pela hiperglicemia leva à perda importante de eletrólitos e perda ainda maior 
de água livre, de forma que a osmolaridade aumenta significativamente. 
 Entre os fatores precipitantes da CAD e EHH se destacam os processos infecciosos, sendo que 
os focos infecciosos mais frequentes incluem pneumonia, infecção urinária, sepse de origem 
determinada, infecções cutâneas e gastroenterites. 
 Em 20-30% dos pacientes com DM tipo 1 a CAD ocorre por descontinuação da medicação, 
frequentemente associada a problemas psiquiátricos. 
 A CAD pode ser a primeira manifestação de DM em cerca de 20% dos pacientes. 
 As causas cardiovasculares e cerebrovasculares, como infarto agudo do miocárdio e acidente 
vascular cerebral, são responsáveis por cerca de até 5% das CAD, sendo causa proeminente 
desta descompensação em grupos etários acima dos 40 anos de idade. 
 A CAD ocorre principalmente em um subgrupo de população mais jovem com média etária entre 
20-29 anos, embora possa ocorrer nos dois extremos da idade, com aparecimento por vezes 
abrupto. 
 
 
 Normalmente os pacientes apresentam pródromos com duração de dias de poliúria, polidipisia, 
polifagia e mal-estar indefinido. 
 O paciente apresentará, na maioria das vezes, desidratação, podendo estar hipotenso e muitas 
vezes taquicárdico, embora possa eventualmente estar com extremidades quentes e bem 
perfundido, devido ao efeito de prostaglandinas. 
 Os sinais e sintomas da acidose podem aparecer com taquipneia, surgindo o ritmo respiratório 
de Kussmaul quando o pH do paciente se encontra entre 7,0 7,2, sendo a cetona bastante volátil 
e, portanto, eliminada pela respiração, o que leva ao aparecimento do hálito cetônico que 
também é útil ao diagnóstico. 
 O paciente normalmente se encontra alerta, sendo as manifestações neurológicas e alterações 
do nível de consciência muito mais correlacionadas com a osmolaridade do que com a acidose 
e, portanto, muito mais prevalentes no doente com EHH em relação ao paciente com CAD. 
 O achado de febre não é frequente nos pacientes com cetoacidose, embora mesmo com sua 
exclusão não se pode descartar que o fator precipitante seja infeccioso. 
 Pacientes com CAD apresentam frequentemente dor abdominal (30%), náuseas e vômitos. 
Esses sintomas melhoram com a hidratação; este é um achado raro no EHH e provavelmente 
tem correlação com alteração de prostaglandinas na parede muscular intestinal, e tende a 
melhorar muito com a hidratação inicial. 
 Deve-se salientar que o paciente pode ainda apresentar as manifestações clínicas da doença 
que for fator precipitante para o episódio de cetoacidose, como infecção do trato urinário e infarto 
agudo do miocárdio. 
EXAMES COMPLEMENTARES 
 
 Bianca Cardoso e Santos 
 
 O diagnóstico de CAD e EHH é baseado em critérios laboratoriais. Assim, é necessária a coleta 
de glicemia, gasometria, corpos cetônicos e sódio para avaliação da presença de acidose, 
cetonemia e aumento da osmolaridade. 
 Outras alterações incluem leucocitose secundária ao episódio de estresse, embora valores de 
leucócitos > 25.000 céls./mm3 sugiram a presença de infecção. Pode ocorrer também o 
aumento de hematócrito e hemoglobina e a desidratação, assim como o aumento de ureia e 
creatinina. O potássio sérico inicialmente tenderá a estar elevado devido ao quadro de acidose, 
mas o potássio corporal total estará diminuído. Com o tratamento da hipocalemia, talvez seja 
necessário repor esse eletrólito. Fósforo e outros elementos também podem ser espoliados 
devido à diurese osmótica desses pacientes. 
 Os seguintes exames complementares devem ser solicitados nas emergências hiperglicêmicas: 
Gasometria arterial inicialmentee depois venosa (repetir a cada 4 horas). 
Glicemia e posteriormente glicemia capilar (de preferência a cada 1/1 hora). 
Potássio, sódio, fósforo, cloro e outros eletrólitos (dosagem sérica de K inicialmente a cada 2 horas. Os 
outros, inclusive fósforo, a cada 12 horas). 
Hemograma completo. 
Urina tipo 1. 
Cetonemia ou cetonúria: preferencialmente dosar o beta-hidroxibutirato, pois cerca de 80% da produção 
de corpos cetônicos é na forma de beta-hidroxibutirato, mas as fitas reagentes de urina só avaliam o 
ácido acetoacético. 
Em situações de sepse associada, o beta-hidroxibutirato se torna 100% dos corpos cetônicos, assim as 
fitas reagentes de urina podem ter resultados falso-negativos para corpos cetônicos. 
Eletrocardiograma: além de servir para rastrear isquemia coronariana como fator precipitante do episódio 
de cetoacidose diabética, também permite verificar a presença de complicações da hipercalemia e outros 
distúrbios hidroeletrolíticos. 
Radiografia de tórax (procura de foco infeccioso associado). 
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL 
 A CAD entra no diagnóstico diferencial de outras acidoses como a cetoacidose alcoólica, que 
não cursa com hiperglicemia, apesar de cursar com aumento de cetoácidos. 
 O EHH entra no diagnóstico diferencial de pacientes com confusão mental ou alteração de nível 
de consciência; por esse motivo, verificar a glicemia é importante nesses pacientes, tanto para 
descartar hipoglicemia como para descartar grandes hiperglicemias associadas ao EHH. 
TRATAMENTO 
 Deve-se pontuar que a CAD existe quando o pH é menor que 7,30. A existência de 
hiperglicemia com cetose e sem acidemia (pH > 7,30) é denominada de cetose diabética. Os 
quadros com tal descompensação diabética podem ser revertidos em algumas horas, na maioria 
das vezes sem a necessidade de internação. O esteio do tratamento é a hidratação, 
insulinoterapia e correção de fatores precipitantes. 
 Hidratação 
 A hidratação a princípio tem como alvo inicial a estabilização hemodinâmica. 
 Iniciamos com 1.000-1.500 mL de solução de NaCl a 0,9% na primeira hora. Se o paciente 
permanece hipotenso, pode ser necessário repetir ainda na primeira hora (no EHH, em 
particular, podem ser necessários vários litros). 
 Na segunda fase da hidratação mantemos 250-500 mL (4 mL/kg) por hora. Em pacientes com 
Na corrigido < 135 mEq/L mantemos solução salina a 0,9%. Caso a natremia seja normal ou 
aumentada deve-se utilizar salina a0,45%. 
 Quando a glicemia chegar a 250-300 mg/dL a hidratação continua, mas associando glicose a 5-
10% com a solução salina. A diluição pode ser feita usando-se 1 litro de solução glicosada 
acrescido de 20 mL de solução demNaCl 20%. A velocidade de infusão continua de 250-500 
mL/hora. 
Insulinoterapia 
 
 Bianca Cardoso e Santos 
 
 Em relação à insulinoterapia, recomenda-se que a insulina seja iniciada concomitante à 
hidratação, exceto se K < 3,3 mEq/L. Neste caso deve-se repor 25 mEq de potássio antes de 
iniciar a insulinoterapia (aproximadamente 1 ampola de 10 mL de solução de KCl 19,1%). 
 Geralmente utiliza-se bomba de infusão contínua endovenosa, com dose inicial de 0,1 U/kg de 
insulina em bolus e depois inicia-se a infusão da bomba em 0,1 U/kg/hora. Outra opção é infusão 
contínua inicial de 0,14 U/kg/hora sem bolus inicial. 
 A solução de insulina para infusão contínua pode ser preparada com 50 unidades de insulina em 
250 mL de solução fisiológica; assim, 5 mL correspondem a 1 U de insulina. O ideal no preparo 
desta solução é que se desprezem 50 mL da solução, pois a insulina é adsorvida no plástico. 
Alternativamente, pode-se utilizar insulina regular IM ou subcutânea (SC), usando dose em bolo 
inicial de 0,4 unidades/kg, metade dessa dose inicial em bolus EV e metade via IM ou SC e 
depois mantendo dose de 0,1 unidade/kg/hora IM ou SC, observando a taxa de queda da 
glicemia, que deve ser mantida entre 50 a 70 mg/dL/hora. 
 A glicemia capilar é mensurada de 1/1 hora. Espera-se uma queda da glicemia de 50-70 
mg/dL/hora. Caso a glicemia caia em níveis menores que 50 mg/dL é recomendável dobrar a 
taxa de infusão; se ocorrer redução maior que 70 mg/dL, recomenda-se diminuir a taxa de 
infusão pela metade. 
 A bomba de infusão pode ser desligada quando pelo menos dois dos três critérios estão 
presentes: 
pH > 7,3. 
Ânion gap ≤12. 
Bicarbonato ≥15. 
 Para desligar a bomba de infusão contínua deve-se esperar pelo menos 1 hora da ação da 
primeira dose de insulina regular SC, e posteriormente prosseguir com insulina SC conforme 
glicemia capilar a cada 4/4 horas. 
 Calcula-se a dose de insulina de longa duração verificando as doses de insulina nas últimas 24 
horas e utilizando dois terços dessa dose total ou 0,6 U/kg de insulina NPH, outra forma de longa 
duração. Geralmente a insulina basal é dividida em 2/3 pela manhã e 1/3 à noite 
 Reposição de potássio (K) 
 Em relação à reposição de K, caso os níveis de K sejam menores que 3,3 mEq/L, deve-se repor 
25 mEq de potássio em 1 L de solução de NaCl 0,9% e repetir a dosagem de K. Só se inicia a 
insulinoterapia após níveis de K > 3,3 mEq/L. 
 Pacientes com K entre 3,3-5,0 mEq/L devem repor 25 mEq de potássio a cada litro de solução 
de hidratação e dosar K a cada 2 ou 4 horas. 
 Pacientes com K > 5 mEq/L só devem iniciar a reposição de K quando os valores forem < 5 
mEq/L. 
Reposição de bicarbonato 
 A reposição de bicarbonato de sódio não demonstrou benefício em estudos e só é indicada em 
pacientes com pH < 6,9 com reposição de 100 mEq EV de bicarbonato em 2 horas com coleta 
de gasometria após 1-2 horas (100 mL de solução de bicarbonato 8,4%). 
 Reposição de fósforo 
 A reposição de fósforo só é indicada em pacientes com as seguintes condições: 
Disfunção cardíaca grave e arritmias. 
Fraqueza muscular e insuficiência respiratória. 
Rabdomiólise e anemia significativa. 
Concentração sérica < 1,0 mEq/L. 
 Quando indicada, a reposição é realizada com 25 mEq de fosfato de potássio, que repõe K além 
de fósforo, substituindo a solução de cloreto de potássio (KCl). 
 Por fim, e não menos importante, deve-se lembrar de sempre procurar e corrigir o fator 
precipitante da emergência hiperglicêmica. 
 
 Bianca Cardoso e Santos 
 
 
SISTEMA DE DUAS BOLSAS 
 O sistema de duas bolsas é uma maneira custo-efetiva e flexível para o manejo da fluidoterapia 
no tratamento da CAD. Consiste na administração simultânea de duas bolsas, que possuem o 
mesmo conteúdo de eletrólitos, porém diferentes concentrações de dextrose, conectadas por 
uma conexão em Y. 
 Nesse circuito, a bolsa 1 é formada por SF (ou SF 0,45%) e 40 mEq/L de KCl – se a reposição 
de potássio estiver indicada – enquanto a bolsa 2 é composta por SG10% e 40 mEq/L de KCl. 
 Assim, pode-se ofertar desde 0% até 10% de dextrose, titulando em qualquer momento 
conforme o ajuste na taxa de infusão de cada bolsa. 
 COMPLICAÇÕES 
 A hipoglicemia é a principal complicação do tratamento da cetoacidose, por isso a necessidade 
de verificação da glicemia capilar de hora em hora até a correção da cetoacidose diabética. 
 A hipocalemia e suas complicações também podem aparecer após a instituição do tratamento 
com insulina. 
 O edema cerebral é a complicação de maior frequência em crianças, apresentando correlação 
importante com o uso de soluções hipotônicas para hidratação do paciente. Com o uso inicial de 
salina fisiológica para hidratação, essa complicação se tornou rara. 
 O desenvolvimento da síndrome do desconforto respiratório do adulto pode ocorrer 
principalmente com utilização de soluções coloides para recuperação da pressão arterial do 
paciente. 
 O tromboembolismo pulmonar é uma complicação relativamente frequente em pacientes com 
estado hiperosmolar, mas é rara em pacientes com cetoacidose diabética. 
 A distensão gástrica aguda também pode ocorrer, sendo inclusive indicação para internação em 
ambiente de terapia intensiva. Representa complicação de neuropatia autonômica, sendo o 
extremo dagastroparesia diabética. 
 A mucormicose é uma infecção fúngica que atinge principalmente os seios da face e ocorre pela 
alteração do metabolismo de ferro que atinge esses pacientes, durante o episódio de 
cetoacidose. 
 A alcalose metabólica paradoxal pode ainda ocorrer durante o tratamento, assim como 
sobrecarga de volume, principalmente nos pacientes cardiopatas, sendo importante salientar que 
a terapêutica adequada pode prevenir a maioria dessas complicações 
 Todos os pacientes com CAD e EHH devem ser internados. Pacientes com cetose diabética 
isolada (sem acidose) ou apenas com hiperglicemias sem cetose geralmente não necessitam de 
internação hospitalar. Nesses casos, podese dar alta hospitalar entre 12-24 horas após controle 
de fator precipitante e reversão da CAD e EHH. 
As indicações de internação em UTI incluem as seguintes ocorrências: 
Desconforto respiratório agudo. 
Acidose com pH < 6,9. 
Choque cardiogênico. 
Edema cerebral. 
Todos os pacientes precisarão posteriormente de seguimento ambulatorial para controle do diabetes.

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