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CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 1 CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 2 APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA A disciplina intitulada Crise do Sistema Penitenciário representa um esforço para apresentar aos discentes um panorama sobre a difícil questão prisional no Brasil. Historicamente, o país tem dificuldades em gerir sua população carcerária, mas há diversos condicionantes que devem ser considerados. Um país de dimensões continentais, o seu histórico colonial e oligárquico, uma população das maiores do mundo, questões sociais prementes, formam um todo bastante complexo e que reflete diretamente nas questões relacionadas ao encarceramento. Esta disciplina pretende, assim, clarificar algumas dessas questões. Passaremos por debates que envolvem as questões do Direito e da Lei, mas também da Ciência Política e da Sociologia. Ao fazer a intersecção destas áreas nesta disciplina, será possível entender bem o quadro crítico do sistema prisional brasileiro. Assim, os debates passarão por temas como a estrutura legal e constitucional do sistema carcerário, suas funções e prerrogativas, os direitos da população carcerária e de todos os atores envolvidos, além de demonstrar possíveis soluções para problemas de ordem metodológica e prática, com as novas tecnologias e novas culturas de gestão prisional. OBJETIVOS: - Demonstrar o quadro geral do sistema carcerário no Brasil - Fazer conhecer e aplicar os saberes necessários para um bom exercício do direito e da lei no tocante ao tema da crise do sistema carcerário - Apresentar soluções possíveis, novas formas de gestão prisional e o panorama para o futuro BIBLIOGRAFIA: CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 3 Bibliografia básica: BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: . Acesso em: 01 abr. 2019. BRASIL. Lei 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jul. 1984. Disponível em: 01 abr. 2019. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Regras de Mandela: Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos. Conselho Nacional de Justiça. 1. ed. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2016. Acesso em: 01 abr. 2019. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 143.641. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, Brasília, DF, 20 de fevereiro de 2018. Acesso em: 01 abr. 2019. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assembleia Geral das Nações Unidas. Paris. 10 dez. 1948. Disponível em: . Acesso em: 09 maio 2018. ______. O que são os direitos humanos?. Brasil, 2018. Disponível em: . acesso em: 17 jun. 2018. Bibliografia complementar: BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de José Cretella Júnior e Agnes Cretella. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Organização e tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão - causas e alternativas. 4. ed . São Paulo: Saraiva, 2011. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. CERQUEIRA, D. (Coord). et. al. Atlas da Violência 2018. Rio de Janeiro: 2018. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2018. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 4 COELHO, Edmundo Campos. Oficina do diabo e outros estudos sobre criminalidade. Rio de Janeiro: Record, 2005; FELTRAN, Gabriel. Irmãos: Uma história do PCC. Editora Companhia das Letras, 2018. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Coleção Pensamento Criminológico). 1. Crise do sistema penitenciário CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 5 APRESENTAÇÃO Esta primeira apresentação do tema representa uma primeira abertura no complexo tema das condições prisionais no Brasil. Diante dos desafios existentes, esta introdução deve servir como elemento mediador principal, onde estarão presentes as principais questões de ordem legal e institucional do Sistema Carcerário, apresentando suas principais ferramentas, suas bases de dados e metodologias. Logo de início, uma apresentação ao Sistema Carcerário e seu marco legal, suas relações com a esfera federal e estadual. Em seguida, as prerrogativas deste Sistema, ou literalmente, o que pode e o que não pode, seguido de um debate sobre o fundamento constitucional do encarceramento e do encarcerado. Por fim, uma breve introdução ao Mapa do Encarceramento do Brasil, grande trabalho de pesquisa da identificação da massa encarcerada e suas condições de existência, além de debates sobre sua aplicabilidade e metodologia. O mesmo será feito com o InfoPen, o sistema federal de informações sobre as penitenciárias no Brasil. OBJETIVOS Sendo assim, esta aula tem como objetivos: • Apresentar os primeiros debates sobre o sistema prisional no Brasil • Conhecer os dispositivos que regem o encarceramento no Brasil • Fazer delimitar as funções constitucionais previstas para o Estado na gestão de sua população carcerária CONTEÚDO ONLINE a. Introdução ao sistema carcerário CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 6 Historicamente, o Brasil tem problemas na gestão de sua população carcerária. Este definitivamente não é isolado de todos os outros, mas o contrário. Se entendido dentro de um sistema complexo de deterioração das relações sociais, uma forte tradição patrimonialista e de altos índices de concentração de renda e de desigualdade social e violência, problemas esses que parecem muito difíceis de serem solucionados, a crise do sistema penitenciário no Brasil é só uma peça desse problema de natureza estrutural. É preciso dar bases à estas afirmações. Fazer uma análise da realidade das prisões do Brasil demanda imediatamente uma postura crítica, diante de uma série da fatores que apontam suas mazelas e seus problemas, a falta de solução para suas questões mais prementes e, sobretudo, a condição do sujeito encarcerado. As coisas não funcionam e o fato está já inscrito no título desta disciplina, que aponta uma crise real. Assim, momentaneamente, é preciso entender o contexto social em que vivemos. A prisão muitas vezes se pretende como uma ilha inteiramente destacada do resto da sociedade mas os vasos intercomunicantes são muitos. Os processos sociais que assolam a vida cotidiana do lado de fora também são concretos do lado de dentro. A diferença está na intensidade dos problemas, que dentro do cárcere parecem ainda mais sem controle, mais distantes de uma solução e mais desafiadores aos gestores de prisões e ao próprio Estado. Tomemos por exemplo a desigualdade social. Depois de muitos anos de encurtamento da distância do modo de vida dos mais ricos e dos mais pobres, a concentração de renda entre os primeiros voltou a crescer, enquanto a dos últimos voltou a se achatar. As políticas de valorização do salário mínimo, os baixos índices de desemprego e o crescimento econômico distributivo fizeram com que os níveis sociais apresentassem melhora sensível. Essa condição não se sustentou, diante da crise política que o país atravessou de 2013 para os nossos dias, acompanhada de uma forte retração econômica, o fim da valorização da renda do trabalhador, o retorno maciço do desemprego, entre outros aspectos (IPEA, 2017). CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 7 Os gargalos estruturais do país não se resolveram no período de pujançae estabilidade. A saúde pública no Brasil permanece com os problemas de financiamento e gestão que conhecemos. A educação, a melhor das chances que teríamos, não promoveu o salto para um futuro mais sustentável. b. Perfil do aprisionado no Brasil O cárcere não é uma via de mão única. De fato, como se discutirá mais a frente, em um determinado momento as ações decididas de dentro de grandes complexos penitenciários passaram a influenciar o lado de fora. Muitos questionam as condições de dentro das cadeias: elas são infinitamente piores que as do lado de fora, que, por sua vez, já são cada vez mais precárias, seja no mundo do trabalho, na situação urbana, na provisão de serviços públicos básicos e no respeito às garantias individuais. As prisões representam, até hoje, um projeto das classes dominantes. Representam, ao mesmo tempo, a definição de formas de governar a vida de grandes populações, a partir de padrões como o encarceramento, o proibicionismo, mas emplacam também a incapacidade do ente público em lidar com questões que lhe são inerentes, salvaguardadas em preceitos constitucionais básicos. Isto se reflete muito no perfil do encarcerado no Brasil e demonstram como a crise prisional é reflexo direto de escolhas políticas e sociais que datam de muito tempo. Uma análise rápida sobre a população carcerária, a ser aprofundada depois, demonstra isto com clareza e distinção. Figura 1 - Evolução da população carcerária no Brasil de 2000 a 2016 (Infopen) Em 2014, a população carcerária no Brasil era de 622.202 presos, distribuídos entre penitenciárias estaduais, delegacias e presídios federais. Nos estados, 584.758 pessoas cumpriam pena. Nas delegacias, eram 37.444, enquanto no sistema federal, CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 8 específico para presos de alta periculosidade, eram 397 no total. Todos estes dados vieram do Infopen, o sistema de informações da autoridade penitenciária no Brasil, hoje subordinada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Ainda em 2014, o número de vagas no sistema prisional era de 317.804, ou seja, quase metade da quantidade de presos. O déficit de 250.318 vagas reflete a condição básica das superlotações, problema bastante comum, ao número de 1,67 preso por vaga. A série histórica, de 2000 a 2014, mostra um aumento substancial no crescimento da população carcerária, crescimento este maior do que a média nacional do crescimento populacional. Considerando o fluxo no sistema prisional, isto é, o número de pessoas que entrou e saiu do sistema durante este período, essa taxa de crescimento da população carcerária quintuplica-se em sua grandeza (DIAS, 2017). Figura 2 - Distribuição do sistema prisional entre 2014 e 2016 (Infopen) O grande número de presos provisórios também assusta. Cerca de 32% da população carcerária estaria na condição de provisoriedade, ferindo preceito constitucional da presunção de inocência. É grande também o número de subnotificações, problema estrutural do país em muitas frentes onde se faz necessária a informação e articulação de muitos órgãos públicos, em sistema bastante difuso e confuso. Investe-se muito na estrutura do flagrante mas pouco no sistema de investigação, o que cria distorções. No regime fechado, estão 46% da população carcerária. A predileção pelo sistema fechado dá-se por muitos aspectos e a falta de vagas é um deles. Só 18% gozam do sistema semi-aberto, que permite ao apenado deixar a unidade prisional pela manhã para o trabalho e o seu retorno à noite. Não se conhece os números reais de quem efetivamente goza do regime semi-aberto, visto que a saída está condicionada a um vínculo empregatício, num país que, em 2019, tem mais de 12% de desempregados. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 9 c. Funções do sistema prisional Importante debater agora as funções a que se destina o sistema prisional no Brasil, e fazer isso é definir sua esfera de atuação e os limites éticos e jurídicos do aprisionamento enquanto prática penal. Fala-se em “reciclagem”, mas é consenso que o sistema penal brasileiro recicla muito menos do que deveria, ou, pior, oferece aos encarcerados a possibilidade de uma carreira no crime, dado que as facções criminosas atuam de forma bastante livre no interior das celas. A função inicial é, portanto, a ressocialização. A Lei 7.210/84, que instituiu a Lei de Execuções Penais (LEP), define com clareza quais são as funções do sistema. Deve- se garantir assistência no sentido geral ao encarcerado, tanto o provisório quanto o condenado, encampando aí a assistência social, a moral, a jurídica, a material, a educacional e a religiosa. Efetivamente, o objetivo é garantir as condições para um bom retorno à sociedade, depois da privação da liberdade. Nesse sentido, a integridade física e moral dos presos deve ser também garantida pela autoridade prisional, assegurando-lhes respeito à dignidade da pessoa humana. É vedada ao Estado qualquer tipo de castigo físico e moral. O Brasil é signatário de tratados internacionais que servem como mecanismos internos de regulação. O artigo quinto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em 1948 e consagrada pela Constituição Federal de 1988 (CRFB/88) define que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Num país de herança autoritária, a Carta estabelece um limite claro, ainda que a tônica geral nos presídios seja a de abuso de autoridade, superlotação e desrespeito às condições mínimas de confinamento. Diante do flagrante paradoxo que é o confinamento em estruturas que não ressocializam os apenados e que os devolvem à sociedade em situação ainda pior do que entraram, o que, de fato, se vê como objetivo principal dos sistemas prisionais? A resposta está na legislação mas também na análise crítica da realidade. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 10 O posicionamento defronte ao tema é imperativo. O jurista argentino Raúl Zaffaroni é bastante claro em relação à isso, no que é acompanhado por outros eminentes magistrados e analistas do direito penal no Brasil. A lógica é a do inimigo, aprisionado mas ainda perigoso, que deve de todas as maneiras ser neutralizado. Cito como forma de ilustrar o brilhante pensamento e a capacidade de síntese de Zaffaroni (2007): “A rigor, quase todo o Direito Penal do século XX, na medida em que teorizou admitindo que alguns seres humanos são perigosos só por isso devem ser segregados ou eliminados, coisificou-os sem dizê-lo, e com isso deixou de considerá-los pessoas, ocultando esse fato com racionalizações” (ZAFFARONI, 2007, p. 17). A lógica do ser humano perigoso é diametralmente contrária à lógica da ressocialização e assim está posto pela crítica e pela realidade. Quer dizer, se há indivíduos perigosos, a única correção possível é a sua neutralização ou eventual eliminação. Nesse sentido, a lógica do apenado muito se acopla à da militarização da segurança pública, que tanto produz mortes em série quanto produz hiperencarceramento. Ou seja, a lógica da docilização, conforme trazida da doutrina, da historiografia e de outras fontes que o Direito se abastece, é a manifestação primordial da função do sistema prisional. Naturalmente que outras lógicas tentam se impor e dividir espaço com o fazer hegemônico, mas no geral, a dinâmica das “classes perigosas” associada à incapacidade --- intencional ou não --- de reeducar e ressocializar sujeitos é a prática comum. A delinquência é tratada, portanto, com o remédio da exclusão perpétua, extensível aos cônjuges, parentes, e outras gerações, que recebem de forma indireta o estigma do aprisionamento. Quando retornam à sociedade, são negados aos egressos do sistema prisional, o direito ao emprego, ao trabalho digno, à ressocialização completa, e não por outro motivo,a carreira nas facções criminosas acaba sendo a opção viável. A reincidência é marca indelével dos sistemas prisionais CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 11 nos seus corpos e em sua trajetória de vida, pra sempre marcada pela passagem e por sua ficha criminal. d. Relação sistema carcerário e o Estado e Sistema prisional constitucional Dito isso, o Estado possui as suas responsabilidades, do cumprimento efetivo daquilo que está na LEP. Neste quadro de falência, o tema dos sistemas prisionais é somente alvo de debate quando, pontual ou coletivamente, a coisa foge do controle. Os governos passam e as soluções são sempre tópicas, específicas e pouco eficientes. Outrossim, a lei prevê as condições mínimas, dando ao Estado à referência que precisa para as regras de confinamento. O artigo 88 da LEP descreve: “Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de 6,00m² (seis metros quadrados)” O artigo 89, reescrito[1] pela Lei 11942 do ano de 2009, obriga a penitenciária de mulheres da dotação de uma creche para abrigo de crianças de seis meses aos sete anos, além de seção separada para gestante e parturiente. A creche deve ter pessoal capacitado, conforme legislação educacional vigente. O funcionamento da creche também deve ser de atendimento às necessidades das mulheres aprisionadas e é proibido o pernoite. Além disso, os artigos 40 e 41 definem as obrigações do Estado, para o que chama-se a atenção aos seguintes incisos, não por seu cumprimento mas por seu flagrante desrespeito: “Art. 40 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 12 Art. 41 - Constituem direitos do preso: II - atribuição de trabalho e sua remuneração; III - Previdência Social; V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado; X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; XI - chamamento nominal; XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.” Importante salientar que existem projetos de lei complementar ou de emenda constitucional que objetivam alterar parte destas obrigações. O debate é bastante amplo sobre a condenação em segunda instância, mas também sobre o monitoramento das conversas de advogados e clientes dentro das prisões, subterfúgio que é usado sim por facções criminosas para enviar recados e “salves” para o mundo externo, mas que fere diretamente o direito ao sigilo e ao julgamento justo, além de atentar contra o livre exercício da função advocatícia. EXERCÍCIOS Questão 1 Sobre o papel constitucional do Estado em relação ao sistema prisional, conforme artigo 40 e 41 da Lei de Execuções Penais, marque a alternativa incorreta: CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 13 a) é garantido o sigilo entre advogados e apenados segundo a Lei, e as hipóteses para a quebra deste sigilo são julgadas pela Justiça, conforme CRFB/88 e Pacto de San Jose da Costa Rica. b) a assistência educacional é direito garantido pela Constituição, mas somente uma porcentagem muito pequena da população prisional tem acesso à formação educacional ou acadêmica. c) os tempos de serviços, educação e previdência não são contados enquanto na prisão, seja no caso de presos provisórios, seja no caso de condenados, e não contam para a proporcionalidade da redução da pena. d) é vedada qualquer tipo de violência moral e física no interior das cadeias, sendo também vedado qualquer situação de castigo físico, o que é uma inovação em um país de herança autoritária. Comentário: Gabarito letra C. Os artigos 40 e 41 da Lei de Execuções Penais garantem a proporcionalidade do tempo de serviço, do período usado para a formação profissional e escolar, tanto para contribuição da Previdência Social, quanto para a redução da pena. Questão 2 Quando se fala em docilização dos corpos dentro do quadro de funções do sistema prisional, quer se dizer que a prisão é como uma marca indelével nos corpos e trajetórias dos egressos. Sobre a docilização, aponte a resposta correta: a) trata-se de objetivo colateral, porém previsto em lei, como reflexo de uma sociedade que pode e deve ser amestrada dentro de parâmetros morais e éticos, tornando a prisão uma forma de ameaça justa à qualquer tipo de contravenção, crime ou desrespeito que exista b) trata-se de objetivo colateral, imprevisto em lei, porém mais fundamental que a ressocialização, que é função constitucional mas que não se cumpre no geral, CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 14 enquanto efeito moral de uma escolha política, que no geral prioriza “classes perigosas” e a lógica do inimigo c) trata-se de objetivo fundamental, previsto em lei, como objetivo real de uma sociedade que tem dificuldades históricas na gestão de suas populações encarceradas, e usa a cadeia como elemento de subserviência que se impõe da sociedade pelo Estado, para sua proteção d) trata-se de objetivo fundamental, porém imprevisto em lei, que usa a prisão como forma de mediar as tensões sociais de forma igualitária, sem reais distorções sobre o componente populacional da massa encarcerada Comentário: Gabarito letra C. Usa-se o termo docilização não como elemento da função precípua do sistema prisional, mas do efeito direto do encarceramento privilegiado das classes mais desfavorecidas e da juventude, sobretudo negra e pobre, como forma de administrar a pobreza, a violência e a concentração de renda e de direitos, atinente à conceitos históricos como do ócio, da vagabundagem e da necessidade de enquadrar as populações à formas mais adequadas de viver, mediante parâmetros higienistas, racistas e machistas. APRENDA MAIS • “Discursos Sediciosos”, longa coletânea de artigos e textos com os principais criminologistas do país, entre eles, Nilo Batista, Vera Malagutti, Raul Zaffaroni, entre outros • Podcast “Salvo Melhor Juízo”, Episódio número #2, “Mundo carcerário”, disponível em https://soundcloud.com/salvo-melhor-ju-zo/smj-2-mundo- carcerario • “Grupo Cabano de Criminologia”, grande repositório de textos-base, entrevistas, vídeos, artigos, sobre a criminologia crítica no Brasil e seus principais expoentes. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 15 REFERÊNCIAS BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Trad. De Maria E. Galvão. SP: Martins Fontes, 2000. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. PIOVESAN, Flavia C. A Constituição Brasileira de 1988 e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos. 1996. 583 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1996. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Coleção Pensamento Criminológico). WACQUANT, Loic. Punir os pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos.Rio de Janeiro: Revan, 2007. NOTAS: [1] A redação anterior do artigo colocava como não-obrigatória a existência de creche e ala separada para parturientes e gestantes. SÍNTESE DA AULA Nesta aula: • Foram apresentados os debates iniciais sobre criminologia, o direito penal e o sistema prisional no Brasil, para entender seu aspecto de crise • Foram definidos os primeiros insights sobre o perfil do apenado, da hiperlotação do sistema carcerário, dos temas da docilização, entre outros. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 16 PRÓXIMA AULA Na próxima aula, você estudará os seguintes assuntos: • O histórico do sistema prisional brasileiro, suas origens e marcas estruturais • As primeiras colônias prisionais, a herança colonial e o objetivo das prisões em seu princípio • O sistema disciplinar conforme proposto por Michel Foucault 2. Preto fujão, suspeito padrão APRESENTAÇÃO CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 17 Nesta aula, o debate se abre em favor da ampliação histórica do nosso olhar. O tempo imediato faz parecer que os fenômenos sociais e políticos têm uma duração curta, o que pode sugerir algum tipo de coincidência ou despropósito das questões que estão sendo trabalhadas nesta disciplina. Na verdade, o tempo mais largo, de duração maior, vai mostrar as origens e fundamentos destes fenômenos, o que será de primordial definição para as políticas de hoje e do futuro. Ao chamar esta aula de “preto fujão, suspeito padrão” determina-se a relação entre a herança colonial no Brasil, com as questões relacionadas à segregação social, à escravização de seres humanos, à classificação aristocrática daquela forma de organização social, com as práticas atuais, do confinamento, da submissão, da lógica do flagrante, da escolha pelo regime fechado, entre outros aspectos. Faz-se aqui uma relação histórica que dará conta de descortinar algo como a árvore genealógica da condição penitenciária no Brasil. O resultado é que, fundamentalmente, as coisas não são como são por acaso. Não há acasos, mas uma política escolhida para assim ser, que guarda consigo uma série de questões da história deste país, da sua desigualdade inerente, da maneira como se administra a vida dos seus “indesejáveis”. OBJETIVOS Sendo assim, esta aula tem como objetivos: • Fazer o paralelo histórico com a herança colonial e da condição atual do sistema penitenciário no Brasil • Demonstrar que a crise do sistema penitenciário é uma opção política, relativa diretamente ao passado • Descortinar os aspectos comuns da gestão dos “indesejáveis”, tanto do “preto fujão” daquele do “suspeito padrão”, e de como isto abastece as carceragens no país CONTEÚDO ONLINE CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 18 a. “Preto fujão” e formas arcaicas de hierarquização social no Brasil A escravidão é a marca central de nossa sociedade. Foi a escravidão que determinou as nossas desigualdades atuais. Foi a escravidão que definiu a distribuição dos recursos no espaço deste território. Foi a escravidão que estabeleceu o eixo do desenvolvimento econômico nacional (FURTADO, 2005). Foi o fim da escravidão também que marcou o início de nossa era moderna. A reorganização social causada pela abolição formal ainda hoje causa problemas, problemas que não foram resolvidos lá atrás. A Lei Áurea marca o surgimento de um mercado formal competitivo de trabalho (SOUZA, 2017), estabelecendo novas formas de contratação profissional mas baseada em antigas roupagens sociais. O eixo econômico do país também se desloca, do Nordeste açucareiro, pro café mineiro- paulista e depois para a maior das metrópoles, que passa a definir também os rumos políticos da nação. A integração do negro na sociedade de classes. Esse era o grande problema, detectado desta forma mesmo por Florestan Fernandes e outros, mas sobretudo este autor. Raça e classe estabelecidas como hierarquia moral do país, o critério com que se organizaria a sociedade a partir da abolição. Diz sobre isso SOUZA (2017): “Como todo processo de escravidão pressupõe a animalização e a humilhação do escravo e a destruição progressiva de sua humanidade, como direito ao reconhecimento e à autoestima, a possibilidade de ter família, interesses próprios e planejar a própria vida, libertá-lo sem ajuda equivale a uma condenação eterna. E foi exatamente isso que aconteceu entre nós.” (SOUZA, 2017, p. 75) Parece familiar essa descrição. Todos os não-direitos previstos acima se repetem nas carceragens de todo o país, assim como nos discursos mais inflamados. De forma semelhante, o ex-escravo é lançado numa estrutura social de intensa CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 19 competitiva ao qual ele jamais fora preparado para participar. Anistia geral, já que a escravidão nunca foi considerada um crime, e, na verdade, foi um grande relaxo para as classes escravocratas, que se literalmente se sentiram livres desse entrave à seus negócios. Puderam escolher entre a mão-de-obra recém liberta e a mão-de-obra imigrante, que chegava aos montes no país, com maior preparo e menor resistência. Não foi difícil escolher. Estava assim colocada a tal hierarquia. No topo da pirâmide, as classes que sempre lá estiveram, desta vez investindo no café ou na recém-iniciada industrialização do país, entre os anos de 1889 e 1930. A competição lá em cima nunca existiu, sobretudo porque os privilégios sempre mantiveram esta hierarquia, mas também porque se criou uma elite acostumada com o apoio do Estado para todas as questões. Abaixo, as classes trabalhadoras livres. Neste contexto, raça e classe sempre se misturaram, e é preciso entender de que forma esse estamento se organizava. O imigrante que veio para o Brasil em busca de serviço, geralmente branco europeu mas não somente, foi encarado aqui como a solução para a necessidade de expansão rápida e desenvolvimento econômico do país, até porque as elites sempre viram seus funcionários escravizados como “lenientes”, “vagabundos”, o que configura gritante contradição. Ainda mais abaixo, estão aqueles que Souza (2017) define como a “ralé brasileira”: “[...] composta pelos negros recém-libertos e por mulatos e mestiços de toda ordem para quem a nova condição era apenas uma nova forma de degradação. A submersão na lavoura de subsistência ou a formação das favelas nas grandes cidades passam a ser o destino reservado para o seu abandono. Temos aqui a constituição de uma configuração de classes que marcaria a modernização seletiva e desigual brasileira a partir de então” (SOUZA, 2017, p. 77) CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 20 Aí está a grande covardia. b. “Suspeito padrão” e formas modernas de hierarquização social no Brasil Estabelecida esta categoria, a ralé brasileira, passa-se agora à análise do hoje, ainda que todo este debate seja de uma atualidade que chega a constranger. Quer dizer, este perfil descrito acima bate perfeitamente nos dias de hoje com o maior recorte social envolvido tanto no abissal número de homicídios no país quanto nos números do encarceramento. O retrato colonial do país ainda é o mesmo retrato das sociedades contemporâneas, não só aqui, mas sobretudo aqui no Brasil. Esse mito desconstruído é muito simbólico, e contrasta diretamente com a ideia de uma sociedade cordial e pacífica, onde todos são aceitos e a tolerância é elemento primordial. Esta mitologia não é parte só do nosso folclore, mas se encontra também em boa parte da tradição intelectual brasileira, majoritariamente conservadora. Está na percepção que vem de cima, sobre as relações entre casa grande e senzala, entre sobrados e mucambos, mas também entre o lado de dentro e o lado de fora das prisões. Toda mitologia é perigosa, por mais fantasiosa que seja, porque estabelecea realidade. A mitologia do brasileiro cordial determina diferenciações sociais do tipo “preto trabalhador” e “preto vagabundo”, guardando em nosso vocabulário a nefasta definição do “preto de alma branca”. Por definição, se este não tem a alma branca, o lugar dele ou é o confinamento ou a morte. Diz Souza (2017): “O excluído, majoritariamente negro e mestiço, é estigmatizado como perigoso e inferior e perseguido não mais pelo capitão do mato, mas, sim, pelas viaturas de polícia com licença para matar pobre e preto. Obviamente, não é a polícia a fonte da violência, mas as classes média e alta que apoiam este tipo de política pública informal para higienizar as cidades e calar o medo do oprimido e do excluído que construiu com as próprias mãos. E essa continuação da escravidão com outros meios se utilizou e se CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 21 utiliza da mesma perseguição e da mesma opressão cotidiana e selvagem para quebrar a resistência e a dignidade dos excluídos” (SOUZA, 2017, p. 83) Está aí colocado o nexo entre desigualdade, demanda social por violência e (hiper)encarceramento. Mais, aí estão colocadas as responsabilidades e a importância de ações que suprimam ou mesmo só amenizem o funcionamento deste mecanismo. Também estão colocadas aí as razões do colapso do sistema penitenciário, mas do sistema penal, da arquitetura da segurança pública e do sistema de justiça criminal, que nunca conseguiram ultrapassar a dinâmica histórica descrita acima. Se o prognóstico está feito, a verdade é que a perspectiva não é boa para o futuro. As soluções estão sendo apresentadas agora, mas seguem esbarrando na resiliência das classes dominantes e suas terminações nervosas, associações tradicionais e as relações de compadrio que mantém a rede de privilégios. Cabe a Justiça um papel muito grande na proteção dos direitos básicos, mas que passa também pela formação crítica que, lá na frente, pode produzir mudanças sensíveis, ainda que o quadro não seja bom para isso. Tome o caso, por exemplo, da redução da maioridade penal. A medida está no Projeto de Emenda Constitucional 171[1], de 1993, de amplo debate na sociedade atual. A ideia principal é reduzir a maioridade penal para até 16 anos, alterando a redação do artigo 228 da Constituição Federal, mas existem outros subprojetos mais radicais, que apontam 12 anos como o primeiro limite. A PEC 171/1993 prevê penalização a partir de 16 anos, em flagrante dissenso com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que prevê, em caso de ato infracional, medida socioeducativa, cumprimento de prestação de serviços à comunidade e, em último caso, a restrição de liberdade com internação em instituição educacional. A maior parte da população encarcerada é da jovens negros pobres, de 19 a 24, o que já prevê a opção privilegiada pelo regime fechado, mas o que pretende com a PEC é ampliar este encarceramento, aprofundar este abismo, entre a ralé destinada ao subtrabalho, ao precariado ou à outras formas não-ortodoxas de CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 22 subsistência, como a adesão ao crime e à facções criminosas, que terá como inapelável destino a prisão ou a morte. É a importação de modelos estrangeiros de punitivismo que, associados à lógica colonial da qual a sociedade brasileira atual e sua hierarquização diretamente descendem, que produzirão ainda mais distorções. A ideia de tolerância zero, de origem estadunidense, foi incorporada num período de hegemonia neoliberal mas ainda assim em governos ditos progressistas a tendência não foi revertida. c. A sociedade disciplinar O modelo de tolerância zero das polícias estadunidenses fez aumentar de forma muito acentuada o encarceramento no país, com efeitos nefastos para sua sociedade, sobretudo para aqueles que de alguma maneira estão na mesma parte da hierarquia social que a ralé dos trabalhadores no Brasil. Michelle Alexander, autora norte- americana de A Nova Segregação: Racismo e Encarceramento em Massa, trata deste tema nos Estados Unidos, e de que maneira as novas leis penais e criminais no país estabeleceram-se como política de controle social e de disciplinamento e docilização. Diz Alexander (2018): “A maioria das pessoas imagina que a explosão da população prisional dos Estados Unidos durante os últimos 25 anos reflete o aumento das taxas de criminalidade. Poucos adivinhariam que nossa população prisional saltou de aproximadamente 350 mil para 2,3 milhões em um período tão curto de tempo devido a mudanças nas leis e nas políticas, e não nas taxas de criminalidade. Não houve crescimento dos crimes, houve mudanças em nossas leis --- particularmente os dramáticos aumentos no tempo das sentenças das prisões --- que são responsáveis pelo crescimento de nosso sistema prisional” (ALEXANDER, 2017, p. 151). CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 23 As heranças históricas de Estados Unidos e Brasil muito se assemelham. A opção por uma colonização de subsistência só se deu no contexto das 13 colônias originárias, mas com o desenvolvimento econômico e a posterior independência do país, a utilização do trabalho escravo foi de enorme escala, sobretudo ao sul dos Estados Unidos, mas não somente. No Brasil, a colonização de exploração se deu nos mesmos moldes, mas com a diferença mais gritante de que toda a produção de açúcar ou café aqui tinha como destino o exterior, o que aconteceu de alguma forma nos Estados Unidos com o algodão que abastecia as fábricas inglesas, mas em proporção menor. No campo social, o efeito da escravidão é bastante semelhante. Não é que seja um país seguro, como o senso comum costuma apontar. As taxas de encarceramento são as maiores do planeta e a letalidade das polícias, sobretudo em relação aos mesmos recortes sociais aqui do Brasil, são semelhantes. A “Guerra às Drogas” é uma invenção estadunidense, exportada não só para aqui mas como para todo o continente, como política hemisférica mas depois também como política social (BRAGANÇA, 2017). A mudança primordial a que se refere Alexander no texto referenciado acima é precisamente a Guerra às Drogas. A Guerra às Drogas não é exatamente uma guerra às substâncias estupefacientes ou seus grandes produtores, mas aos pequenos produtores, comerciantes varejistas, funcionários em geral das empresas ilegais que se formam dentro do submundo do narcotráfico. Tudo isso faz parte de um grande sistema prisional e punitivo que não foi inaugurado neste momento, mas que tem apelo e é largamente utilizado em todo o Ocidente. Michel Foucault o identifica já nas bordas da Revolução Francesa, mas o expediente é muito anterior, e a isso dá o nome de sociedade disciplinar. A ideia de uma “economia do castigo” (FOUCAULT, 1987, p. 11), representam um novo estilo penal, uma nova forma de condução e execução da pena, nova teoria de lei e da criminalidade, do exercício da prerrogativa da punição. Trata-se de uma CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 24 atualização geral, uma modernização, da larga utilização dos suplícios, que não eram proporcionais ao crime, mas submetidos à lógica da espetacularização e da publicização. O caso de Damiens, descrito logo no início de Vigiar e Punir, livro de Foucault sobre a história da violência nas prisões, é bastante emblemático, e vale a pesquisa. Sobre esta nova perspectiva da punição, que muito está presente nos dias de hoje, diz Foucault (1987): “A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias consequências; deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens” (FOUCAULT, 1987,p. 13). Essa nova tecnologia da punição conta com a prisão como elemento central mas não somente. A prisão passa a ser a instituição disciplinar por definição, e os castigos não perdem imediatamente o seu nível de crueldade. Foucault fala do “pudor judiciário: tirar a vida evitando de deixar que o condenado sinta o mal, privar de todos os direitos, impor penas isentas de dor” (FOUCAULT, 1987, p. 15). Esta grande reforma, do fim do século XVIII até meados do século XIX, foi capaz de produzir efeitos sentidos até hoje. Não só a prisão ganhou a função-chave da docilização dos corpos, tão fundamental para a gestão das sociedades em desenvolvimento na Europa deste período. O que se entendeu foi que o corpo --- vivo, dócil, submisso --- deve ser o verdadeiro alvo do poder. O homem matável é de outra ordem, sub-homem, e nesta categoria está sobretudo o estrangeiro, o desconhecido, o “terrorista”, aquele que ameaça de fora. O que ameaça de dentro deve ser gerido de outra maneira. Então, se a prisão encampa também as punições, outras formas de disciplinamento, semi-prisionais, são CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 25 desenhadas. A engenharia da docilização passa a contemplar de forma geral mais ou menos todas as fases da socialização humana, nos edifícios, casas, unidades físicas onde a socialização controlada ocorre. Foi possível achar reproduções bastante fiéis de prisões em casas de internação, colégios internos, hospitais, fábricasdeia principal e nas Forças Armadas. A própria criação de um modelo em linha de produção em massa respeita uma quase militarização do trabalho, mas que representa também a incorporação dos aspectos da disciplinarização social. d. A dominação biopolítica Toda tecnologia de dominação desenvolveu-se a partir desta matriz identificada acima. A sociedade representou um marco na criminologia e o impacto na história das prisões em todo mundo é inegável. A defesa da sociedade passa então pela gestão dos indesejáveis de dentro e dos ameaçadores de fora, todos representando um perigo incontornável. A equação do pacto social define-se, portanto, na lógica segurança-liberdade. Não se trata de uma dicotomia, com dois pólos e só. Trata-se de um espectro, onde as várias nuanças de seguridade e cidadania contrastam de acordo com a condição de cada indivíduo dentro da lógica social e de poder. O que se está em jogo hoje é precisamente a supressão cada vez maior das liberdades em favor de uma suposta segurança que se pretende assegurar com nossos condomínios ultra-armados, tecnologias de reconhecimento facial, enormes bancos de dados genéticos, entre outras formas de dominação da vida --- ou seja, biopolítica. A prisão segue com seu efeito aterrorizador, mas os problemas hoje são de outra ordem. A dominação transborda o elemento físico dos edifícios e passa a ser de ordem pessoal, da gestão do próprio desempenho (HAN, 2017). O trabalhador atual, endividado, sem direitos posteriores assegurados, à mercê de negociação pouco justa entre ele e o seu patrão, também cria os próprios mecanismos de dominação, de auto- gestão e performance. O precariado, expressão que determina a classe de trabalhadores que está ainda mais abaixo nessa hierarquia, passa a ser alvo de uma CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 26 série de experimentações que, pra todos os efeitos, degrada em muito a sua condição social. EXERCÍCIOS 1) As Leis Jim Crow representavam o aspecto mais grave da segregação social nos Estados Unidos. No Brasil, as leis que acompanhavam a escravidão faziam esse papel, mas depois de sua abolição, não se construiu rede de proteção de direitos dos ex-escravizados. Sobre este momento, aponte a alternativa correta: a) a escravidão foi abolida formalmente em 1888, mas foi também abolida formal e informalmente qualquer tipo de distinção, o que garantiu a plena inserção de negros e mestiços à nova realidade do trabalho no Brasil, em condição de igualdade na disputa com imigrantes b) mesmo abolida formalmente, a escravidão tomou outras formas. A vida na sociedade era difícil mas a inserção foi cuidadosamente feita, pra contemplar a massa de trabalhadores livres. Nesse sentido, a ralé brasileira representa uma classe abaixo, de imigrantes pobres, migrantes internos e estrangeiros recém-chegados no Brasil. c) a abolição da escravatura não trouxe soluções de largo espectro para a situação social dos ex-escravos, que passaram a se agrupar como possível nas periferias das cidades ou nas franjas de encostas, em condições urbanas precárias mas também em bastante desvantagem em relação à mão-de-obra imigrante que chegara ao Brasil. d) Legalmente, a distinção entre negros e brancos no Brasil existia a partir de dispositivos constitucionais atinentes, sobretudo após a Lei Áurea. Dessa maneira, medidas de ação afirmativa, como as cotas em concursos públicos, representam uma tentativa de desmontar essa arquitetura jurídica que legitimava a segregação. Comentário: A resposta certa é a letra C. Formalmente, não haviam mecanismos legais que sustentavam a distinção e segregação entre negros e brancos no Brasil, e a abolição da escravatura representou mais uma maneira de deixar uma parcela imensa da população brasileira, sobretudo a CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 27 ralé de trabalhadores, em condição de inteira desvantagem e desproteção social. 2) Foucault fala de a “sociedade disciplinar” em seu texto Vigiar e Punir, como sendo este novo paradigma punitivo que internaliza a pena e a execução para as prisões e replica o modelo de controle em escolas, fábricas, quartéis e outros. Sobre isto, aponte a alternativa correta: a) A estrutura das escolas ainda repete de alguma maneira o comportamento que se espera numa prisão. Os horários rígidos, a divisão inflexível das atividades, a presença de inspetores nos corredores e a definição de um elenco de regras e suas respectivas penas em caso de punição, tudo isto é tributário de um modelo disciplinar de sociedade. b) Nas Forças Armadas, o militarismo representa uma forma de proteção da cultura destas instituições, onde a hierarquia é flexibilizada em favor da liberdade do pensamento e dos fazeres, sendo só a arquitetura dos quarteis uma representação das antigas prisões e suas estruturas de controle. c) Os hospitais psiquiátricos precisam responder a esta condição disciplinar pelo tipo de paciente que comportam. Assim, mesmo que o elemento da punição cruel seja abolido, as colônias de reabilitação, sobretudo as de ascendência confessional, representam o que de mais adequado existe no tratamento das enfermidades da mente. d) A própria cidade representa parte da visão de sociedade disciplinar, com seus sistema de câmeras, guardas e punições em caso de infração, mas a arquitetura urbanística não incorporou estes elementos, pois a maioria das cidades é efeito da ocupação desordenada e sofre menos com a intervenção do poder público. Comentário: A letra A demonstra como na escola os parâmetros que regem os objetivos da docilização dos corpos ainda é presente. Ainda que hoje tenhamos novas possibilidades de educação, novos modelos pedagógicos, a escola persiste com muitos dos protocolos que limitam a criatividade e a produtividade em favor de uma socialização submissa. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 28 APRENDA MAIS • “Razão Inadequada”, trabalho de fôlego dos editores Rafael Lauro e Rafael Trindade, que mistura artes, psicologia e filosofia. Recomendação especial para o verbete “Foucault”. Disponível em razãoinadequada.com • Podcast “Anticast”, episódio 133, “A cultura do eu: ficção e realidade”. Disponível em https://www.b9.com.br/49332/anticast-133-cultura-eu- violencia-ficcao-e-realidade/ • Série “Mudbound”, que conta a história de dois trabalhadores, um branco e um negro, nos Estados Unidosdo pós-Segunda Guerra Mundial e da vigência das Leis Jim Crow. REFERÊNCIAS Alexander, Michelle. A Nova Segregação: Racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017. Bragança, Danillo. Narcotráfico, Soberania e Relações Internacionais no México. Rio de Janeiro: Gramma, 2016. Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 1987. Furtado, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005. Han, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Petrópolis: Editora Vozes, 2017. Souza, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro: Editora Leya, 2017. NOTAS [1] O histórico do debate no Legislativo sobre a PEC 171 está em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14493 CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 29 SÍNTESE DA AULA Nesta aula: • Foram apresentados as origens históricas do direito penal e do sistema prisional no Brasil • Foram definidos os primeiros debates sobre recorte social e encarceramento, aproveitando-se da experiência de outros países para uma análise da situação no Brasil PRÓXIMA AULA Na próxima aula, você estudará os seguintes assuntos: • O paradigma dos Direitos Humanos e da Dignidade da Pessoa Humana • Conflito Direitos Humanos x privação de liberdade • As condições (desumanas) das prisões no Brasil 3. Direitos Humanos e o Apenado APRESENTAÇÃO São tempos de bastante rivalidade e competição em torno das narrativas que definem a nossa vida em sociedade. Parece que em todos os campos há disputas pela voz hegemônica sobre os temas gerais, atuais ou históricos, e este debate é sempre encarado como um jogo de soma-zero. Um destes debates é o papel dos Direitos Humanos no estabelecimento de uma ética mínima de convivência mas também de garantia dos direitos básicos dos cidadãos e de sua dignidade. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 30 Nesta aula o grande enfoque é o da situação do apenado no interior do sistema penitenciário no Brasil enquanto sujeito pleno dos seus direitos e garantias. A máxima “direitos humanos para humanos direitos” nunca foi tão largamente utilizada e representa um grande desafio, além de uma grande falácia. Se a garantia dos Direitos Humanos já é questionada fora das cadeias, sobretudo em relação às populações pobres, periféricas, imigrantes, entre outros, na realidade do cárcere, a crítica é ainda maior. A condição de encarceramento, em qualquer regime e em qualquer hipótese, no estado democrático de direito, não suspende a existência dos Direitos Humanos, e este é o ponto que vai se debater aqui. OBJETIVOS Sendo assim, esta aula tem como objetivos: • Compreender o paradigma dos Direitos Humanos e da Dignidade da Pessoa Humana em relação ao apenado • Conhecer o debate Direitos Humanos e privação de liberdade, suas contradições e incapacidades • Entender as condições (desumanas) das prisões no Brasil CONTEÚDO ONLINE a. A Dignidade da Pessoa Humana A dignidade da pessoa humana não é só um princípio, insustentável na realidade e pertinente só ao texto da lei. Ela é um imperativo moral básico, pra além de suas terminações práticas. Há um distanciamento entre o que está no texto e o que está na cadeia, e este paradoxo é também parte das escolhas políticas envolvidas nas políticas específicas para o sistema prisional no Brasil, dentro dos conceitos já trabalhados antes, como gestão da vida dos indesejáveis, a opção pelo regime fechado e a incapacidade de ressocialização da maior parte das instituições prisionais. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 31 De qualquer forma, está lá, no inciso III do artigo primeiro desta Constituição. Reconhecidamente amplo, este dispositivo legal é pilar fundamental de um sistema prisional que se pretende humanizado, mas que ao menos se imagina funcional e eficiente. Mais: o princípio da dignidade humana é elemento norteador de todo nosso arcabouço jurídico. Sua falha ou inobservância, completa ou incompleta, já representam descaso, mas também o insucesso deste projeto de civilização e desta sociedade. Sob o prisma da isonomia, do respeito às prerrogativas básicas do cidadão, trata-se de uma derrota abominável. Pela lógica da governamentalidade, descrita acima a partir dos objetivos da gestão dos indesejáveis, do controle e do disciplinamento, da docilização, também não é exatamente um sucesso. A violência e o encarceramento como parte da força que em tese repeliria um indivíduo em cometer um delito é, de fato, uma sombra que existe, mas que não define inteiramente suas ações. O caso de M., 25 anos, é emblemático, e é o caso que abordaremos nesta aula. Ocultar-se-ão nomes e informações mais específicas para salvaguardar e respeitar a privacidade do (injustamente) apenado e sua família, mas este é um caso real e de grande repercussão. Existem muitos outros, muitos mesmo, numa regularidade de erros e mal-entendidos que, novamente, deveria constranger mais do que já constrange. Poder-se-ia falar aqui de casos entre homens, mulheres, menores de idade, com algum tipo de repetição quanto ao recorte social de que fazem parte, mas erros, na verdade, também são comuns, porque, de forma geral, o sistema é feito de pessoas e mesmo com a mecanização e automatização de muitas rotinas, prevalecem culturas dentro das prisionais que deveriam ser imediatamente eliminadas, mas que não são. Ao contar a trajetória de M., o objetivo é demonstrar a trajetória do apenado dentro do sistema prisional. Demonstrar também que em toda intersecção com a pauta CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 32 dos Direitos Humanos, é comum que o caminho que se escolha seja o do flagrante desrespeito, da violação, num sistema prisional que, a priori, deveria ressocializar. b. Privação de liberdade e Direitos Humanos M. é morador da Costa Verde e Sul do Rio de Janeiro. Esta é uma área de ocupação nova de milícias que operam há muitas décadas na Zona Oeste e Zona Norte do Rio de Janeiro. A Costa Verde e Sul do Rio são áreas estratégicas, que recebem periodicamente um número significativo de visitantes, em busca de suas praias, ilhas e resorts. Há muitas casas de alto padrão na região, escolhida sempre pela calmaria, trânsito relativamente tranquilo e estrutura razoável. Angra dos Reis, por exemplo, conta com grandes operações da Petrobrás, além das usinas de Angra 1 e Angra 2, o que cria um fluxo grande de trabalhadores em movimento pendular ou não para estas áreas. Muitas empresas estão instaladas nestas regiões e os índices de criminalidade são historicamente baixos, mas este é um quadro que está mudando rapidamente. Como dito, as milícias passaram a ocupar estes locais, em busca de condições semelhantes às de suas instalações na Baixada de Jacarepaguá, Baixada Fluminense e Zona Oeste no geral: terra farta e desregulamentada, forte componente coronelista e bastante leniência do Estado, seja por meio da corrupção, seja pelas relações simbióticas entre estes grupos criminais e instituições do próprio poder público. Há farta documentação que indica a participação extensa de policiais militares, policiais civis, bombeiros militares e outros agentes públicos de segurança na formação, manutenção e nas operações destas milícias. Em uma dessas regiões, invariavelmente pobre e desassistida, um policial militar foi morto em um assalto em um estabelecimento comercial –-- a primeira versão dá conta de homens que teriam passado atirando, em uma moto, mas a versão final é de que foi um assalto, segundo a perícia. Testemunhas teriam apontado 6 suspeitos, 3 CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 33 menores de idade, que foram presos na região. Um deles, M., foi localizado no hospital, comum ferimento leve e chamado a prestar esclarecimentos na delegacia. Ao chegar, foi informado de que ficaria detido. M. ficou cinco meses detido na carceragem da polícia de sua cidade, mesmo tendo residência fixa e emprego formal. A estrutura toda descrita acima mostra alguns vícios de conduta que vão em oposição àquilo que está determinado em lei. Há duas formas básicas de prisão, a prisão penal, decorrente de sentença em julgado, e a prisão processual, aquelas que são realizadas para garantias do processo legal, e podem ser em a) flagrante; b) preventiva ou; c) temporária. A LEP assim apresenta, em seu artigo 302: Art. 302 - Considera-se em flagrante delito quem: I - está cometendo a infração penal; II - acaba de cometê-la; II - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. É possível ver algumas inconsistências, sobretudo nos incisos III e IV. A estrutura do flagrante e sua opção privilegiada como fato a partir da incapacidade instrumental e estrutural da investigação, colocam em evidência as distorções que estas inconsistências podem, porventura, virem a produzir. O caso de M. é uma destas distorções, que poderiam ter sido corrigidas no imediato de sua detenção, que, a este ver, não deveria ter sequer acontecido. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 34 Mas o caso é, como dito, emblemático, e mostra vícios de rotina que são muito comuns em abordagens policiais, investigações no geral e na própria estrutura do flagrante. Assim, os flagrantes são classificados em: a) Flagrante impróprio (quase flagrante), explicado também no artigo 290, inciso I do Código Processual Penal, que dá conta do agente poder ser identificado por terceiros, caso a autoridade vir a perder seu rastro; b) Flagrante presumido, que demonstra com clareza as possibilidades e os limites de interpretação do inciso IV do artigo 302, que são eventualmente esticados de forma imprudente; c) Flagrante em crime permanente; d) Flagrante provocado; e) Flagrante esperado, também conhecido como tocaia; f) Flagrante forjado; A prisão em flagrante, em suas formas válidas, enseja prisão provisória de natureza cautelar, que prescinde de ordem judicial, devendo ser imediatamente comunicada ao juiz, que deve homologá-la ou não a partir das provas recolhidas. Aqui está um ponto: a presunção de inocência é elemento não garantido a todos da mesma forma, e já foram apresentadas aqui as suas variações a partir de recortes sociais específicos. As rotinas em delegacias, rondas, batidas e operações policiais no geral são embebidas em pré-definições culturais que atravessam permanentemente a ideia de presunção de inocência. O policial, conforme a LEP, não pode deixar de efetuar prisão em casos de flagrante, e devem ser desconsiderados elementos de culpa ou de falhas processuais neste momento. Quer dizer, na hora da decisão, a obrigação da prisão mais as pré-definições já explicadas conduzem a erros graves como o de M., preso em flagrante no interior da própria autoridade policial. c) Prisões e direitos humanos CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 35 Já no primeiro momento, a opção foi pelo aprisionamento, homologado pelo juiz de plantão. O conflito natural entre flagrante e privação de liberdade é substituído por uma dinâmica mais complexa, em que o flagrante por vezes é distorcido e a privação de liberdade é sempre o primeiro efeito em condições não muito específicas, como no caso de crimes contra policiais. Neste caso, M. tinha provas suficientes que provavam que a sua prisão foi um equívoco desde o começo, apresentadas oportunamente por outras testemunhas confrontadas mas também pela defesa, que logo solicitou seu habeas corpus. A demora no julgamento, na confrontação, no reconhecimento das provas e na emissão do alvará de solturas também fazem parte de um sistema que desconhece as garantias individuais, potencializando suas distorções. As provas, segundo a perícia e a leitura do caso, estavam lá, desde o começo. M. foi filmado por câmeras de segurança de um banco, depois de um outro estabelecimento comercial em um outro ponto da cidade, no momento exato do disparo dos tiros que mataram o policial. Testemunhas contaram em juízo que M. estava em um ginásio esportivo e teria se machucado na atividade, tendo procurado pelo pronto-socorro logo depois. No hospital, foi conduzido à delegacia para esclarecimentos e lá foi preso. M. ficou 5 meses na prisão. M. contou sua história nos meios de comunicação, uma história bastante comum. Diz não ter revolta ou remorso, e segue se fiando em seu discurso de fé e religiosidade. Diz que as condições de sua unidade prisional eram as piores possíveis, segundo interlocutores. M. mal sabe que a condição a que ele foi submetido é bastante comum. Em 2012, José Eduardo Cardozo, então ministro da Justiça, deu a seguinte declaração: “Do fundo do meu coração, se fosse para cumprir muitos anos em alguma prisão nossa, eu preferia morrer”. Esta é uma fala muito contundente, mas que indica cristalinamente a dimensão do problema. As cadeias no Brasil estão superlotadas e, todos os dias, 3 mil novos presos entram no sistema, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 36 proporção é de mais de um preso por vaga, mas há unidades em que há o dobro, o triplo de gente que deveria ter em cada uma dessas celas. Ainda segundo o Fórum, 3 entre 10 prisioneiros ainda estão por receber seu julgamento, como foi no caso de M. As penas também são muito longevas, sobretudo na comparação com outros países com melhores sistemas prisionais. Há países em 4 entre 5 condenações não passam um ano de pena, enquanto no Brasil, a média é muito maior. Tudo isto contribui pra superlotação, e podem ser alinhadas aí também a reincidência, que atinge níveis alarmantes no Brasil. Nas prisões brasileiras, a chance de um apenado contrair doenças como o vírus HIV é 30 vezes maior do que no resto da população. Presos estão mais vulneráveis ao consumo de drogas e álcool, que circulam com alguma liberdade nas cadeias. Drogadictos entram nas prisões e não é feito com eles qualquer tipo de tratamento. Há farta documentação também no que se refere à doenças mentais, entre outras. As condições sanitárias são péssimas, no geral. Não há estímulo também à educação, formação profissional, ou atividades laborais nas cadeias. As penitenciárias passam a ser depósitos de pessoas com problemas mentais, com doenças sexualmente transmissíveis, em condições de compartilhamento de seringas e outros vetores de transmissão de doenças, além de consumo de entorpecentes no geral. Pessoas que no geral estão entregues ao ócio completo, à falta de perspectiva, ao descaso das famílias e da sociedade. Como se não bastasse, as cadeias ainda são centros de recrutamento para grandes facções criminais. Grupos como o Primeiro Comando da Capital garantem a seus afiliados um tipo de vida diferente nas prisões, com “privilégios”, sobretudo no trato com a violência dos guardas e no acesso ao mundo exterior e tudo aquilo que lá fora tem e dentro inexiste. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 37 Depois de cinco meses de calvário, M. foi enfim liberado, mas sua liberdade também é provisória. Na verdade, fora da cadeia, sua liberdade está restrita no geral. Algumas perguntas não podem deixar de serem feitas. O emprego que M. tinha foi integralmente recuperado? E as custas de uma família pobre que ficou alguns meses sem seu sustento? E as custas com o pagamento de honorários ao advogado ou advogada de defesa que se prontificaram a defendê-lo?Mais: e as sequelas morais que ficaram na vida de M.? O crime foi solucionado ou entra no elenco de mais mortes sem solução? O Estado será obrigado a indenizar de forma satisfatória M. caso sua inocência for inegavelmente comprovada? Em alguns lugares do mundo, as instituições passaram a ajustar melhor suas condutas quando foram alvos de grandes multas ou indenizações obrigatórias em casos emblemáticos como este. Talvez seja uma solução possível para que casos como este, que eventualmente acontecerão, possam ser cada vez mais coisa do passado. EXERCÍCIOS 1) (Polícia Civil-Minas Gerais – adaptada). A verdadeira consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos surge em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra Mundial, por isso o moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Dentre as proposições abaixo, assinale a que NÃO corrobora com o enunciado acima: a) A temática dos Direitos Humanos, apesar de anterior, é nascida das violações gigantescas exercidas pelo nazi-fascismo durante a Segunda Guerra Mundial e esta separação moral é o que nos distancia da barbárie e da incivilização, sendo portanto de patrimônio mundial b) O estado de exceção jurídico que justificou as ditaduras militares e intervenções autoritárias no geral, parecidas ou não com o nazi-fascismo, estabeleceu o limite claro CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 38 para o tratamento dos indivíduos em suas garantias básicas, mesmo em condições de encarceramento ou de suspensão provisória de seu direito de liberdade c) O nazi-fascismo representou o máximo da barbárie da humanidade, sustentando que diferenças de gênero, raça, religiosidade e origem poderiam diferenciar pessoas, criando classes sociais insustentáveis dentro das sociedades ocidentais, devendo portanto, serem desincorporadas, guetizadas e, por fim, eliminadas. Nesta tônica, surgem os Direitos Humanos, pra garantir as classes de privilégios que existem. d) Na Alemanha de Hitler, foram cometidas as barbáries mais extraordinárias, forçando a criação de organismos internacionais, herdeiros ou não de outras experiências anteriores, que tiveram como função regulamentar ao nível internacional a temática dos Direitos Humanos e da Dignidade da Pessoa Humana, conceitos antigos, porém revitalizados. Comentários: O gabarito é letra C. Em nenhum momento, sob nenhuma hipótese, os Direitos Humanos devem ser utilizados como elemento da supressão de direitos por conta de qualquer recorte social ou ação que eventualmente tenha sido cometida, mesmo que sob escusável emoção e pressão da opinião pública. A máxima “Direitos Humanos para Humanos Direitos”, além de abominável, é uma flagrante oposição aos princípios consagrados internacionalmente. 2) A criminalização dos Direitos Humanos é uma tendência dos dias de hoje. Sobre isto, leia o trecho e marque a alternativa correta: “A novíssima legislação penal que vai surgindo, por força da televisão, das mídias, dos jornais, daqueles que estão reclamando maiores penas, é uma legislação cada vez mais absurda, que vai criando um novo autoritarismo, que não é o velho autoritarismo de entre guerras. Não. Não é o fascismo, não é o nazismo, não é stalinismo. Não. Nem sequer é isso. Aqueles autoritarismos pelo menos eram coloridos, pelo menos tinham formações, CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 39 divisas. Não é esse não. Pelo menos aqueles faziam uma arquitetura neoclássica. Não é esse. Não. É um autoritarismo bobo, é um autoritarismo descolorido, é um autoritarismo que está se produzindo quase por inércia. É a expressão mais clara da pulsão de morte, se falarmos em termos freudianos. É muito mais clara do que a dos velhos autoritarismos” (ZAFFARONI, Raul.) a) os mecanismos de produção de indignação moral, notadamente ligado às mídias tradicionais, como jornais, televisões e, agora a internet, não devem interferir nas sentenças e julgamentos no geral, mas a produção destas pulsões de morte forma uma demanda social por violência que é grande e que respinga o tempo todo nas execuções penais. b) com o desmonte do Estado assistencial, ou seja, aquele que produz formas de vida possíveis com o apoio do Estado, a própria vida passa a ser um elemento de autonomia dos próprios indivíduos que, com o controle de si próprios disponível, fazem melhor uso de suas ações, e isto tem contribuído para a redução significativa dos índices criminais. c) nunca fomos tão pacíficos, e os níveis de criminalidade são os mais baixos que a humanidade experimentou, mesmo em situações de guerra e mesmo em países pobres, e isto é reflexo direto da intensificação destas pulsões de morte e dos níveis de encarceramento, o que tem, portanto, saldo positivo. d) a pulsão de morte é uma ficção, e este novo autoritarismo, subordinado entre outras coisas ao modo de produção vigente mas também ao déficit democrático que vivemos, é na verdade uma reedição dos fascismos que vigoraram entre os anos de 1930 e 1940, e que por isso mesmo tantas mortes produziram ao longo dos anos. Comentários: O trecho lida exatamente com a ideia de criminalização dos direitos humanos a partir da lógica da demanda social por violência, que está diretamente ligada aos preceitos autoritários que vigoram em nossas sociedades contemporâneas mas que são ao mesmo tempo herdadas dos períodos ditatoriais, em que no geral, não tiveram a sua transição completa CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 40 pra democracia realizada. Isto quer dizer, na prática, este novo autoritarismo como parte de políticas deliberadamente escolhidas e que, portanto, estão presentes em nossas práticas penais. Gabarito letra A. APRENDA MAIS • Os documentários “Justiça” e “Juízo”, ambos de Maria Augusta Ramos, que mostra a intensidade do fluxo de pessoas no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com centralidade na questão dos jovens infratores. • “Foco distanciado”, de Dorrit Harazim, em matéria da Revista Piauí que mostra a maneira como o distanciamento das questões que tratamos diariamente, e como este distanciamento pode favorecer nosso julgamento. • O site “ponte.org”, de jornalismo independente e que cobre questões de Direitos Humanos, Justiça e Segurança Pública, criou o “Pontecast”, onde os debates mais agudos sobre a área podem ser acompanhados. REFERÊNCIAS BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2002. BRANDAO, P.; CEPIK, M. (Orgs.). Inteligência de segurança pública: teoria e prática no controle da criminalidade. Niterói: Impetus, 2013. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Estabelecimentos Prisionais. Disponível em: . Acesso em: 23 ago. 2011 COSTA, Arthur Trindade Maranhão; OLIVEIRA JÚNIOR, Almir de. Novos padrões de investigação policial no Brasil. Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 147-164, 2016. GRECO, Rogério. Direitos humanos, sistema prisional e alternativas à privação de liberdade. São Paulo: Saraiva, 2011. RIBEIRO, L.J. Não há corpo, mas foi crime. Brasília: Fábrica dos Livros Editora, 2012. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 41 NOTAS O Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH), instituto de pós-graduação e pesquisa da Universidade Federal Fluminense que tem grande repositório de textos e produções acadêmicas sobre as interseções tratadas aqui. Recomendamos a navegação e exploração dos conteúdos que lá existem. SÍNTESE DA AULA Nesta aula: • Foi apresentado o paradigma dos Direitos Humanos e da Dignidade da Pessoa Humana como ordenador moral e prático do nosso sistema penal e constitucional • Mostrou-se um caso de repercussão nacional que demonstra os limites e conflitos entre Direitos Humanos e privação de liberdade• Foram percebidas as condições (desumanas) das prisões no Brasil e alguns dados sobre o tema PRÓXIMA AULA Na próxima aula, você estudará os seguintes assuntos: • O (hiper)encarceramento como prática mais aguda das políticas sociais no Brasil • A natureza do fenômeno do (hiper)encarceramento em todo o planeta • Soluções para reduzir os alarmantes números de aprisionados no país CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 42 4. (Hiper)encarceramento APRESENTAÇÃO Chega-se aqui ao ponto maior do debate que dá forma a este texto. Se a prisão e as escolhas que a acompanham por parte do poder público são escolhas, estratégias de dominação, baseadas não em preceitos como o da impessoalidade, mas com forte componente segregacionista e higienista, qual é o método que garante o funcionamento deste mecanismo? O que se apresenta aqui como (hiper)encarceramento tem intenção de demonstrar o funcionamento deste mecanismo, no Brasil e em outros lugares do CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 43 mundo. No geral, sua estrutura de funcionamento repete alguns padrões históricos que projetaram sociedades bastante desiguais, e é esta desigualdade que ainda é permanentemente construída e reconstruída, e as prisões são pilares fundamentais desta constante criação, assim como a própria morte, o desaparecimento e a tortura. Conforme apresentado aqui, será possível dizer que a violência e o (hiper)encarceramento destroem a vida de milhões e milhões de pessoas numa escala só possível de ser medida no futuro. Para tanto, é comum a analogia com a escravidão, uma forma de pensar o quanto as gerações seguintes ainda sofrerão com as políticas do hoje. OBJETIVOS • Entender o (hiper)encarceramento como prática mais aguda das políticas sociais no Brasil, associada às políticas de morte e pulsão por violência • Compreender a natureza do fenômeno do (hiper)encarceramento em todo o planeta • Tomar contato com soluções para reduzir os alarmantes números de aprisionados no país CONTEÚDO ONLINE a. O (hiper)encarceramento no Brasil Caso a tendência atual não seja revertida, em 2020, serão 1 milhão de pessoas presas no Brasil. Os dados do IBCCrim mostram um aumento de mais de 80% em oito anos, o que pega o período de governos considerados mais progressistas no país. Os orçamentos aumentaram sensivelmente, o número de vagas também, mas há mais presos e mais crime, mais superlotação e mais violação. Se o modelo de profilaxia contra o crime organizado é este, seus êxitos são muito questionáveis. O fato é que CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 44 as instituições não dão conta, com este paradigma, dos desafios que enfrentamos hoje em dia. Mais, a maneira como tratamos as coisas é um dos motivos pelos quais os índices criminais e de violência não cedem. A prisão como primeira hipótese --- ou a morte, como única hipótese --- não resolvem o problema. Este não é só um posicionamento da esquerda, ou da direita, pois não há, em toda a criminologia, em qualquer bandeira que ela levante, a ideia do encarceramento como profilaxia de crimes. Mas é o que na prática acontece, e a vivência no meio jurídico, no terceiro setor, nos tribunais, mostra bem isso. Mostram também as articulações entre a chamada guerra às drogas e os números e conclusões que emergem aqui, e seu marco institucional é bastante claro: a política de drogas no Brasil. As origens da 11.343/2006, a Lei de Drogas, são as mesmas das políticas de dominação e segregação que estão sendo demonstradas aqui. No Brasil, durante muitas décadas, se associou o consumo de drogas a crimes passíveis de prisão, como acusações de vadiagem. O combate a este tipo de delito também era feito no campo cultural, com ainda maior agressividade. A lógica do trabalho e da retidão moral dos preceitos cristãos funcionavam como referências para a sustentação de políticas de viés sócio-econômico. É daí que vem, por exemplo, a indistinção entre consumidor de drogas e vendedor de drogas, e a prisão pelo mero uso era amparada pela legislação. A última que vigia desta forma foi a Lei 6368/76, criada no contexto do regime civil- militar ditatorial. A Lei de Drogas de 1976 estabelecia a divisão entre o usuário e o consumidor, mas ambos foram tipificados na lei: o usuário no artigo 16 e o consumidor no artigo 12, em substituição ao artigo 281 da Lei de Drogas de 1940, que é um dos primeiros marcos regulatórios do consumo e produção de substâncias entorpecentes no Brasil[1]. Há outros dispositivos que merecem atenção na Lei de 1976, mas o que importa é esta distinção inicial, que a Lei de 2006 tencionou modificar. Em 2006, portanto, entrou em vigor a Nova Lei de Drogas, após longo debate no Congresso Nacional. Foi instituído o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, um marco importante, que deslocava o 16 pro campo da saúde pública e pra rede de atendimento que começou a ser montada no SUS --- a bem da verdade, CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 45 mostram os documentos da época, a pressão da classe média interessada foi bastante importante na retirada da redação final a tipificação do consumo. Este deslocamento causaria a produção de um novo paradigma, menos criminal e mais de prevenção, que foi elogiado por muita gente, inclusive militares já em cargos eletivos e representações de bancadas religiosas. Este, no entanto, foi só um dos lados da moeda. O outro era muito mais feio. Ao mesmo tempo que se produziu entendimento sobre questões de tratamento, profilaxia, criaram-se as condições ideais para o recrudescimento das penas, sobretudo o de tráfico de drogas, mas também a manutenção da criminalização pelo porte de drogas ilícitas, conforme redação do capítulo III. A distinção entre saber clínico e saber jurídico também foi de alguma forma suspensa, o que produziu estranhas figuras de juízes que faziam diagnósticos sobre a condição de usuários de drogas que chegavam em seus tribunais, mas que garantia o clique do mecanismo que deve ser apontado aqui, que é o da redução do rigor para o consumo em troca do aumento do rigor do vendedor. Esta nefasta estratégia produziu o (hiper)encarceramento como conhecemos hoje, perpetuando ainda mais o estigma do traficante negro de favela, que deve ser preso ou morto, e do consumidor branco de classe média que pode ser recuperado e tratado. Está aí o nexo que une a guerra às drogas ao (hiper)encarceramento, e que coloca em proximidade estratégias coerentes como os da redução de danos, largamente amparada em experiências estrangeiras, com o do aumento vertiginoso da população carcerárias. Um em cada 3 presos responde por crime de tráfico de drogas, uma taxa de mais de 30% do contingente confinado nas prisões. Antes da Lei de Drogas de 2006, esta taxa era de 15%, segundo dados do Infopen e do Conselho Nacional de Justiça. A Lei de Drogas de 2006, aplaudida num primeiro momento por conservadores e progressistas, produziu a distorção que vivemos hoje. Mais do que destruir famílias, o que certamente ela faz, a Lei de Drogas de 2006 constrói a sociedade estamental, clusterizada, que confina seus filhos em enclaves fortificados que são os condomínios, garantindo a eles o nível de acesso cultural que a esmagadora maioria não terá. E por não ter, o ciclo da violência é alimentado ainda mais. CRISE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 46 b. (Hiper)encarceramento no mundo O copo, então, parecia meio cheio pra uns, meio vazio para outros, como bem construiu Marcelo da Silveira Campos. Mas não dá pra humanizar uma instituição que nasceu, pelo menos neste contexto cristão-ocidental, pra separar pessoas por sua trajetória social, cor de pele ou status econômico, como diz Suzanne Jardim. O argumento segue sendo o da proteção da sociedade