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Uma dessas maneiras já aparece claramente formulada nos diálogos de Platão. Só- crates protesta dizendo que não se pode dar como explicação de que se está recostado o fato de que o corpo está feito de ossos e tendões e que, dado que os ossos se movem nas articulações, então os tendões, ao relaxarem e contraírem-se, fazem com que as extremidades se dobrem de tal maneira que permitam que se recoste. Para Sócrates, citar este tipo de causa é não invocar o tipo apropriado de causa para o tipo de explicação requerida. O comportamento humano requer uma explicação que apele para causas finais, e não para causas materiais. De modo mais em geral, o problema está em que é muito fácil confundir diferentes tipos de causa e, portanto, dar explicações que não são apropriadas a determinado tipo de processo. A partir dessa perspectiva (uma vez que incluímos como parte do problema a finalidade em questão), o problema do reducionismo é, na verdade, um problema relacionado com as dificuldades que temos para identificar os tipos apropriados de explicação para as diferentes aplicações da ciência, as quais são desenvolvidas através das diferentes práticas científicas. Em outras palavras, o problema pode ser visto, em termos de Neurath, como um problema de engenharia social: as diferentes práticas científicas desenvolveram-se por meio da promoção de tipos específicos de explicações e métodos; um problema importante é saber como organizar esses recursos de maneira racional em relação aos valores sociais, de maneira análoga a como um engenheiro organiza os diferentes materiais de acordo com as necessidades da obra planejada. 4.1 Reducionismo em medicina A dimensão de engenharia social de um reducionismo programático — que muitas vezes é associado a uma rejeição ao reducionismo —, pode ser vista, principalmente, na importância de certas maneiras de implementar o conhecimento científico em desenvol- vimentos tecnológicos e aplicações médicas. Regenmortel mostra as consequências de uma metodologia reducionista em relação ao desenvolvimento de novas drogas e vaci- nas12. Ele mostra que o número de drogas aprovadas pela FDA, a agência encarregada de sua aprovação nos EUA (US Food and Drug Administration), tem sofrido uma queda sistemática. Isto tem sido atribuído a muitas causas — aumento das regulamentações, maus manejos e tendência a focar a pesquisa apenas em drogas que prometem um certo nível de lucro. Regenmortel considera que apesar de que as estratégias de pesquisa em questão incluem muitas teorias e práticas científicas inovadoras, como a genômica, a proteômica e a bioinformática, os resultados não são os esperados. Muitos projetos biotecnológicos focados na criação de vacinas contra o câncer e doenças virais, por exemplo, têm sido considerados fracassos. O diagnóstico de Regenmortel é que, se bem existem muitos fatores que podem ser vistos como contribuindo para esta situação, uma razão fundamental para este estado de coisas é o uso de metodologias reducionistas no 12Ver, por exemplo, Van Regenmortel (1999). 440 planejamento e avaliação de projetos. Muitas doenças resultam da interação de muitos produtos gênicos e, de modo geral, não temos conhecimento de todos os produtos gênicos envolvidos em uma função biológica específica. Contudo, os pesquisadores tendem a fazer com que suas pesquisas se apoiem em experimentos que envolvem a remoção de um único gene. Outro exemplo que tem sido discutido por vários críticos do reducionismo, e por Regenmortel em particular, é a vacinação e, mais especificamente, projetos de pesquisa que buscam um “projeto racional de vacinas”. Esses projetos partem da ideia de que os princípios do desenvolvimento de drogas baseadas no conhecimento da estrutura biológica podem ser aplicados no desenvolvimento de vacinas. Isso pressupõe que um fenômeno biológico, como a proteção contra uma infecção, pode ser reduzido ao nível químico. Esse pressuposto, contudo, é questionável, segundo Regenmortel. Os determinantes antigênicos de um agente infeccioso são propriedades que se definem na interação com anticorpos específicos e que somente existem no contexto do sistema imunológico. Em um trabalho recente, Ahn e co-autores (AHN et al., 2006) apontam a mesma direção. Afirmam que, se bem a implementação da medicina clínica é orientada por uma visão sistêmica, a ciência da medicina clínica é fundamentalmente reducionista. Eles consideram que esse reducionismo está acompanhado por quatro tipos de prática que são característicos: (1) a ênfase em explicações baseadas na identificação de um fator singular dominante. A ideia é que, de maneira análoga a como ummecânico identifica a peça defeituosa em um automóvel, os médicos tendem a procurar o fator identificado como a causa da doença; (2) a ênfase na homeostase; (3) avaliações inexatas de riscos; e (4) tratamentos “aditivos”. Essas ideias são consideradas questionáveis, porque muitas vezes não é possível identifi- car um fator singular dominante (como propõe (1)). O pressuposto de que a estabilidade de um sistema biológico, e do corpo humano em particular, pode ser entendida em termos de parâmetros associados a faixas normais e anormais de funcionamento (home- ostase) tem, sem dúvida, muito êxito e é considerado, corretamente, como um grande avanço na medicina; mas é importante pensar em seus limites. Por exemplo, a ênfase na correção de um parâmetro (nível baixo de potássio, por exemplo) pode fazer com que se perca de vista a importância de regulações que ocorrem no nível sistêmico. É possível que forçar esse parâmetro para intervalos considerados “normais” tenha efeitos sistêmicos prejudiciais. Ahn et al. mencionam, por exemplo, efeitos adversos do cálcio 441 Traduções Reducionismo em biologia: uma tomografia da relação biologia-sociedade A discussão sobre reducionismo em diferentes práticas científicas Reducionismo em medicina