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C O M E N T Á R I O de M A R C O S Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Edwards, James R. O comentário de Marcos / James R. Edwards; tradução de Helena Aranha. — São Paulo : Shedd Publicações, 2018. 632 p. Bibliografia ISBN: 978-85-8038-071-2 Título original: The Gospel According to Mark 1. Bíblia N.T. Marcos - Comentários 2. Jesus 3 .1. Título II. Aranha, Helena 18-1763 CDD-226.307 Indices para catálogo sistemático: 1. Bíblia N .T.: Marcos - Comentários o C O M E N T Á R I O de M A R C O S GOw % < Tradução Helena Aranha SHEDD C opyright © 2002 W m . B. E erdm ans Publishing Co. 2140 O ak Industrial D rive N . E . G ran d Rapids, M ichigan 49505 Originally published in English un d er the title PNTC: The Gospel According to Mark (978-0-8028-3734-9) All rights reserved. I a E dição - N ov em b ro de 2018 Publicado n o Brasil com a devida autorização e com todos os d ireitos reservados p o r Sh e d d P u b lic a ç õ es Rua São N azário , 30, S to A m aro São Paulo-SP - 04741-150 Tel. (011) 5521-1924 C om pras online w w w .sheddpublicacoes.com .br Pro ib ida a rep rodução p o r quaisquer m eios (m ecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados, etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte. ISB N 978-85-8038-071-2 Printed in Brazil / Im presso no Brasil T r a d u ç ã o - H elena A ranha R ev isã o - Regina A ranha D ia gra m açã o & C apa- E dm ilson Frazão B izerra http://www.sheddpublicacoes.com.br Para m inha mãe, M ary E leanor Callison Edw ards, que, de acordo com H ebreus 13.7, foi quem prim eiro falou para m im a palavra de D eus, e cuja vida tem sido um a inspiração para m inha fé. Sumário Prefácio da série em in g lês................................................................... 9 Prefácio do a u to r ........................................................................................................... 11 A brev iações.................................................................................................................... 15 O bras citados com frequênc ia ...................................................................................25 INTRODUÇÃO..................................................................... 27 1. HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DE MARCOS......................27 2. AUTORIA E LOCAL DA COMPOSIÇÃO..................................... 29 3. DATA................................................................................................ 33 4. CONTEXTO HISTÓRICO............................................................37 5. CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS ESPECÍFICAS....................37 5.1 E s tilo ......................................................................................................................... 37 5.2 Técnica de san d u ích e .............................................................................................39 5.3 Iro n ia ......................................................................................................................... 39 6. JESUS NO EVANGELHO DE MARCOS......................................40 6.1 A autoridade de J e s u s ............................................................................................ 40 6.2 O servo do S e n h o r................................................................................................. 42 6.3 O Filho de D e u s ......................................................................................................43 7. TEMAS CARACTERÍSTICOS....................................................... 44 7.1 O d iscipu lado .......................................................................................................... 44 7.2 A f é .............................................................................................................................44 7.3 O s que pertencem ao g ru p o ín tim o e os de fo ra .............................................45 7.4 O s g e n tio s ................................................................................................................46 7.5 A ordem para silenciar.......................................................................................... 46 7.6 A jo rn a d a ..................................................................................................................47 8. A ESTRUTURANARRATIVA.................................................... 48 COMENTÁRIO SOBRE MARCOS 1 .0 E V A N G E L H O A PA R E C E E M PESSO A (1.1( 51.................................־13 2 .0 IN ÍC IO D O M IN IS T É R IO G A L IL E U (1.14-45)...................................73 Excurso: O motivo do segredo e a autoconsáênáa messiânica de Jesus (1 .3 4 )..................96 3. O S PRO BLEM A S C O M AS A U T O R ID A D E S (2.1— 3 .12)................... 107 Excurso: O Filho do H om em (2 .1 2 )............................................................................114 Excurso: O homem divino (3 .1 2 )..................................................................................145 4. OS Q U E P E R T E N C E M A O G R U P O ÍN T IM O E O S D E F O R A (3.13— 4 .3 4 )..........................................................................151 5. “ Q U E M É E S T E ?” (4.35— 6.6a).......................................................................195 6. T E S T E M U N H O PARA OS JU D E U S (6.6b— 7.23).................................229 7. T E S T E M U N H O PARA O S G E N T IO S (7.24— 8 .9 )............................... 275 8. A R E M O Ç Ã O D O V É U (8.10— 9 .29)............................................................297 Excurso: Cristo (8 .3 1 )...................................................................................................316 Excurso: Como a transfiguração deveria ser compreendida? (9 .8 ) ................................340 9. M E R O D IS C IP U L A D O (9.30-50).................................................................. 355 10. “S U B IN D O A PARA JE R U S A L É M ” ATRAVÉS D A JU D E IA (10 .1-52)................................................................................... 373 1 1 .0 T E M P L O E S T É R IL (11.1 -2 6 )................................................................... 415 12. JESU S E O S IN E D R IO (11.27— 12.44).....................................................435 13. V IG ÍL IA N A T R IB U L A Ç Ã O E T R IU N F O (13.1-37).......................... 475 1 4 .0 A B A N D O N O D E JE SU S (14.1-72)........................................................507 Excurso: A s mulheres no evangelho de Marcos (1 4 .9 )..................................................515 15. A C R U Z E O T Ú M U L O V A Z IO (15.1— 16.8)........................................ 557 Excurso: Pondo Pilatos (1 5 .1 )...................................................................................... 558 Excurso: O Filho de D eus (1 5 .3 9 ).............................................................................. 591 16. A C O N C L U Sà O M AIS L O N G A D E M ARCOS (16.9-20)..................611 A P Ê N D IC E : O E V A N G E L H O S E C R E T O D E M A R C O S ......................625 Prefácio da série em inglês O s com entários têm objetivos específicos, e esta série não é exceção. O s com entários Pillar, planejados para pastores e p rofessores de Bíblia, buscam acim a de tu d o esclarecer o tex to da E scritu ra con fo rm e o tem os em mãos. O s acadêm icos escrevendo estes volum es in teragem com o debate con- tem poráneo m ais im portan te e bem in fo rm ado , evitando com plicarem -se indevidam ente com detalhes técnicos. O ideal desses acadêm icos é m isturar a exegese rigorosa e a exposição, com um olhar a ten to tan to à teologia bíblica quan to à relevânciacon tem porânea da Bíblia, sem confund ir o com entário e o serm ão. A ideia para essa abordagem é que a visão da “academ ia objetiva” (uma vã quim era) p ode ser de fato profana. D eus está acim a de nós, e não podem os julgá-lo. Q u an d o D eus fala conosco p o r in term édio de sua Palavra, aqueles que professam conhecê-lo têm de responder de um a fo rm a apropriada, e isso com certeza é d iferente de um a posição em que o acadêm ico projeta um a im agem de distância au tônom a. C ontudo , esse não é um apelo sub-reptício para a subjetividade descontro lada. O s escritores desta série objetivam a abertura im parcial ao texto, o m elhor tipo de “ objetividade” de todos. Se o tex to é a Palavra de D eus, é ap ropriado que respondam os com re- verência, certo tem or, alegria santa e obediência investigativa. E sses valores devem ser refletidos na fo rm a com o os cristãos escrevem . O s com entários Pillar, com a adoção desses valores, serão bem recebidos não só p o r pastores, professores e estudantes, m as tam bém pelos leitores em geral. * * * * O s bons com entários sobre os evangelhos canônicos são particularm ente difíceis de escrever. As exigências são consideráveis: senso histórico refinado 10Prefácio da série e m aturidade teológica; habilidade para trabalhar com diversos gêneros literá- rios; com preensão m eticulosa do con tex to judaico e greco-rom ano; dom ínio da vasta literatura secundária sem p erm itir que essa literatura d ite a agenda ou faça com que o leito r m ergulhe em detalhes periféricos sem -fim . Jam es Edw ards reúne adm iravelm ente essas qualidades. Seu com entário reflete o estudo de um a vida toda, a qualidade de ju lgam ento inteligente e com capa- cidade de discernim ento , com o tam bém equilibrado. A lém disso tudo , ele acrescenta um a reverência serena pelo texto, atitude apropriada e edificante. E um p razer e um a honra incluir seu com entário nesta série. D. A. C arson Prefácio do autor E ste volum e represen ta um a Ueblingsarbeit em m inha vida acadêm ica — um trabalho p recioso para m eu coração. Isso é verdade não só p o r causa do assun to em si, m as tam bém pelas pessoas a quem ele m e apresentou. Fui apresentado pela prim eira vez ao estudo acadêm ico de M arcos trinta anos atrás no Sem inário sobre o N o v o T estam ento , m in istrado pelo p ro fesso r E duard Schweizer, em Z urique, Suíça. O com entário de Schweizer sobre M arcos causou u m a p ro fu n d a influência em m im , e as conversas que desfru tei com E duard , em especial em m inhas frequentes visitas a sua casa, continuam entre as ricas m em órias de m inha vida. Q u an d o dei início ao m eu dou to rad o no Fuller Seminary, em m eados da década de 1970, tive a felicidade de continuar m eus estudos com o u tro im portan te estud ioso de M arcos, p ro fesso r Ralph M artin, cujo dom ínio da am plitude e detalhes dos estudos acadêm icos do N ovo T estam ento m e orien taram na conclusão de m inha d issertação sobre o Filho de D eus no evangelho de M arcos. M inha dívida com esses dois aca- dêm icos cristãos é en o rm e e duradoura. N os últimos vinte anos ensinei o evangelho de M arcos, prim eiro em Jam es- tow n College e, agora, em W hitw orth College. A lém disso, ensinei M arcos em seminários para Y oung Life Institu te e Fuller Colorado, bem com o em muitas conferências, palestras e sermões. E ste com entário com eçou a criar form a (embora em um form ato mais m odesto) com o um apoio para m inhas aulas. E m bora não tenha antevisto à época, fui m uito feliz em continuar a aprender sobre M arcos com um g ru p o diferen te de professores, em bora não m enos estim ulante — m eus alunos. A o longo dos anos, deleitei-m e com as percep- ções notáveis que os estudantes e m em bros de m inha congregação — alguns no prim eiro sem estre dos estudos universitários e alguns octogenários — que contribuíram para que com preendesse ainda mais o evangelho de M arcos. As 12Prefácio do autor vozes de m uitos am igos na sala de aula e nos bancos da igreja, jun to com os sábios com quem estudei, tam bém deram fo rm a a este com entário. E screvi a fo rm a publicada deste com entário na Tyndale H ouse em Cam - bridge, Inglaterra, onde, de fevereiro a agosto de 2000, passei um período sabático de o ito m eses generosam ente financiado pelo W hitw orth College. Ali, o evangelho de M arcos mais um a vez m e apresentou para um estim ulante g ru p o de acadêm icos, dessa vez provenientes do m u ndo todo. Sou g ra to a B ruce W inter, d ire to r da Tyndale H ouse, pela perm issão de con tinuar m eu pro jeto em m eio a acadêm icos veneráveis e recursos excelentes da biblioteca; a E lizabeth M agba e K irsty Corrigall, bibliotecárias da Tyndale H ouse, que são longânim es e habilidosas para enco n tra r volum es postos em prateleiras equivocadas. Sou g ra to a D av id In s to n e B rew er pelo auxílio g eneroso e frequente, em especial com sua m aestria no com putador. U m a palavra em particular de agradecim ento é devida a Peter H ead que se vo luntariou para ler e com entar seções do m anuscrito. D o is colegas acadêm icos da Tyndale H ouse, G eorge B runk e R alph K lein foram de grande auxílio e extrem am ente encorajadores neste trabalho, mais do que podem imaginar. U m dos atrativos da Tyndale H o u se é a reunião para o café da m anhã e o chá da tarde com os académ icos que residem ali. E ra raro o dia em que o conhecim ento de um acadêm ico, um a dica bibliográfica ou um com entário casual não expandia m inha com preensão do N ovo T estam ento e do evangelho de M arcos. E m m eio ao g rupo de testem unhas a quem sou devedor encontra-se D. A. Carson, ed ito r geral da série Pillar, p o r sua aceitação de m inha pessoa com o figurante na série e p o r seu estupendo conhecim ento acadêm ico e instin to editorial. T am bém sou g ra to a um doad o r anôn im o pela dádiva que m e encorajou e ajudou a financiar esse período sabático em Cam bridge. A tarefa considerável de com pilar os índices para este com entário foi habilm ente realizada p o r Scott S tarbuck, a quem sou sinceram ente grato. P o r fim, sou g ra to à constância fiel de m inha esposa Jane, que perm itiu que o trabalho sobre este com entário tivesse precedência aos passeios e viagens na Inglaterra. A cim a de tudo, sou hum ildem ente gra to ao S enhor p o r sua providência ao fazer da m aneira m ais notável com que este com entário fosse publicado. D en tre as várias séries de com entários publicadas hoje, o ideal da série Pillar sobre o N o v o T estam ento de ap resen tar um a exegese de prim eiríssim a e o calor h u m ano evangélico é o mais p róxim o de m inhas próprias aspirações com o acadêm ico da igreja. Prefácio do autor13 O fo rm ato deste com entário segue aquele de outras séries, com a exceção de com entários mais longos ou mais breves sobre term os-chave relacionados a M arcos, os quais salientei com negrito; e dos excursos mais longos sobre tem as de m aior im portância em locais designados em m eu com entário . O objetivo deste volum e, em consonância com os p ropósitos dos editores e publicadores da séries Pillar, é com entar sobre o texto recebido do evangelho de M arcos, e não sobre hipóteses de sua p rocedência ou as várias escolas de in terp re tação desse evangelho. O com entarista do N o v o T estam ento , em especial dos evangelhos sinóticos, é herdeiro de um núm ero crescente de m etodologias de in terpre tação — algumas históricas, outras literárias, outras ainda filológicas, algum as outras sociológicas e psicológicas e ainda outras políticas e relacionadas ao gênero. B usquei em pregar essas m etodologias se e quando m e parecessem de ajuda para a com preensãodo texto de M arcos, m as não m e esforcei para ser um apologista de nenhum a delas. M eu principal objetivo foi o de m e concen trar nos três aspectos do evangelho de M arcos que, em m inha opinião, são essenciais para sua com preensão apropriada: o cenário e a narrativa históricos-, os m étodos literários·, e os p ropósitos teológicos. N a discussão desses p ropósitos, esforcei-m e para não subestim ar a inteligência dos leitores e para não superestim ar o conhecim ento deles da Palestina do século I, m as procurei expor o evangelho de M arcos de tal m aneira que os leitores consigam ser capazes de ver Jesus com o o F ilho de D eus e segui-lo com o seus discípulos. Jam es R. Edw ards Abreviações lC r 1 Crônicas 1 Ciem. / Clemente IC o 1 Corintios lEnoque lEnoque lE d lE sdras IJo ljo ão lR s IReis IM ac IM acabeus lP e 1 Pedro lQ F lo r Florilegium da Caverna Um, M anuscrito do M ar M orto (MMM) 1QM Manuscrito de guerra, MMM lQ p H ab Pesher on Habakkuk [Comentário sobre Habacuque], MMM 1QS Regra da comunidade, Manual de disciplina, MMM lQ Sa Apêndice A (Regra da congregação) até 1QS, MMM ISm 1 Samuel lTs ITessalonicenses lT m 1 Tim óteo 2Apoc. Bar. Grego, Apocalipse de Baruque 2Apoc. Tg 2Apocalipse de Tiago 2Bar. Siríaco Apocalipse de Baruque 2Cr 2Crônicas 2Clem. 2Clemente 2Co 2Coríntios 2Ed 2Esdras 2Jo 2João 2Rs 2Reis 2Mac 2Macabeus 2Pe 2Pedro 16Abrev iações 2Sm 2Samuel 2Ts 2Tessalonicenses 2Tm 2Tim óteo 3Jo 3João 4Ed 4 Esdras 4Mac 4Macabeus 4Q N ah 4Q N aum , MMM 4Q PrN ab 4Q Oração de Nabo nido, MMM 4Q175 Antologia messiânica, MMM 11Q T Manuscrito do templo, MMM AB A nchor Bible ABD Anchor Bible Dictionary [Dicionário Anchor Bible], 6 vols., ed. D. Freedman A tos A tos dos Apóstolos Atos de João Atos de João Atos de Pedro Atos de Pedro Atos de Pilatos Atos de Pilatos Atos de Tomé Atos de Tomé Adv. Haer. Ireneu, Contra as heredas Ag.Ap. Josefo, Contra Apião AnBib Analecta bíblica Ann. Tácito, Anais Ant. Josefo, Antiguidades dos judeus Ap. Platão, Apologia Ap. Tg. Apócrijo de Tiago Apoc. Ab. Apocalipse de Abraão Apoc. Elias Apocalipse de Elias Apoc. Pe. Apocalipse de Pedro Apol. Justino M ártir, Primeira Apologia Aram. Aramaico art. artigo Ase. Isa. Ascensão de Isaías AsiaJournTheol Asian Journal of Theology As. Mos. Assunção de Moisés ASNU Acta seminarii neotestam entica upsaliensis A TA N T Abhandlungen zur Theologie des A lten und N euen Testam ents BA Biblical Archaeologist [.Arqueólogo bíblico] BAG A Greek-English lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, ed. W Bauer, rev. W A rndt e F. Gingrich, 1967 Abrev iações17 BAGD M esmo volume, ed. W. Bauer, rev. W. A rndt, F. G ingrich e F. Danker, 1979 BARev Biblical Archaeology Review Barn. Epístola de Barnabé BBB B onner biblische Beitráge b. Ber. Berakhot, Talmude babilonio B D F F. Blass, A. D ebrunner e R. Funk, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Lit Bel Bel e o dragão b. Hag. Hagigah, Talmude babilônio Ben. As 18 bênçãos Bib Bíblica Bib. Ant. Antiguidades bíblicas (Pseudofílon) Biblnt Biblical Interpretation BibKir Bibel und Kirche BibLeb Bibel und Leben BibToday The Bible Today BibZeit Biblische Zeitschrifi BJRL Bulletin of the John Rylands Library Studies BJS Brown Judaic Studies b. Mo’ed. Q. Mo’edQatan, Talmude babilônio BN Biblische Notion b. Nid. Niddah, Talmude babilônio BN TC Com entário do N ovo Testam ento de Black b. Pes. Pesahim, Talmude babilonio BR Biblical Research BRev Bible Review b.Qid Qiddushin, Talmude babilonio b. Sanh. Sanhedrin, Talmude babilonio b. Shab. Shabbat, Talmude babilonio b. Sot. Sotah, Talmude babilônio b. Suk. Sukkah, Talmude babilônio b. Ta'an. Ta'anit, Talmude babilônio BTB Biblical Theology Bulletin BTZ Berliner Theologische Zeitschrifi b. Yoma Yoma, Talmude babilônio BZN W Beihefte zur Zeitschrifi f ir die neutestamentliche Wissenschaft c. cerca Ct Cântico dos Cânticos CBQ Catholic Biblical Quarterly CD Documento de Damasco, MMM sec. século cf. com pare cap(s). capítulo(s) Cl Colossenses Com. Comentário ConB Coniectanea bíblica Contra Celsum Orígenes, Contra Celso C R IN T C om pendia Rerum Iudaicarum ad N ovum Testam entum m. m orto D n Daniel D t D euteronôm io Dial. Sav. Diálogo do Salvador Dial. Trif. Justino M ártir, Diálogo com Trifio Did. Didaquê diss. dissertação MMM M anuscritos do M ar M orto Ec Eclesiastes ed. editado E D N T Exegetical Dictionary of the New Testament, 3 vols., ed. H. Balz e G. Schneider Eg. Pap. Evangelho de Egerton ou Papiro de Egerton E K K N T Evangelish-katholischer K om m entar zum N euen Testam ent Ench. Enchiridion Encjud. Encyclopaedia Judaica, 1971 Ing. Inglês Port. Português Ep. Ap. Epistula Apostolorum [Epístola dos apóstolos] E f Efésios Disc. Epict. Discursos de Epicteto, organizado por Arriano, Ep.Jer. Epístola de Jeremias Ep. Pe. Fil. Carta de Pedro a Filipe Ep. Pol. Fp. Epístola de Policarpo aos filipenses esp. especialmente EstBih Estudios Bíblicos E t Ester ETL Ephemerides theologicae Lovanienses ETR Etudes théologiques et religieuses EvT Evangelische Theologie Ex Exodo Abrev iações 18 Abrev iações19 Expository Times Ezequiel Esdras Gálatas Geist und Leben Gênesis geral grego G rundrisse zum N euen Testam ent Evangelho de Bartolomeu Evangelho dos ebionitas Evangelho dos egípcios Evangelho dos hebreus Evangelho de Mani Evangelho de Mana Evangelho dos Nazarenos Evangelho de Nicodemos Evangelho de Pedro Evangelho de Filipe Evangelho Pseudomateus Evangelho de Tomé Habacuque Ageu L. Koehler, W. Baum gartner e J. J. Stamm, The Plebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, trad. M. E. J. Richardson A Hellenistic Commentary to the New Testament, ed. M. Boring, K. Berger e C. Colpe Carta aos Hebreus hebraico Pastor de Hermas, Mandato Pastor de Hermas, Semelhanças Pastor de Hermas, Visões Tácito, Histórias Eusébio, História eclesiástica H andbuch zum N euen Testam ent Oseias H erders theologischer K om m entar zum N euen Testam ent Harvard Theological Review ibidem, no m esm o lugar ExpTim Ez E d G1 GeistLeb G n gen. gf· G N T Evg. Bart. Evg. Eb. Evg. Eg. Evg. Heb. Evg. Mani Evg. Maria Evg. Na% Evg. Nic. Evg. Pe. Evg. Phil. Evg. Pseud.-Mt Evg. Tomé He Ag H ALO T H CNT Hb Heb. Herm. Man. Herm. Sim. Herm. Vis. Plist. Hist. Eel. H N T Os H T K N T HTR Ibid. 20Abrev iações IBS Irish Biblical Studies IC C In te rn a tio n a l Critical C om m en tary ID B T h e In te rp re te r’s D ic tionary o f the Bible, 4 vols. Plus Sup., ed. G. Buttrick IEJ Israel Exploration Journal Ign. Ef. Carta de Inácio aos efésios Ign. Rm. Carta de Inácio aos romanos Ign. Trail. Carta de Inácio aos trallians In t In te rp re tação Is Isaías JAMA Journal of the American Medical Association T g T iago j. Ber. Berakhot, T alm ude Jerusalém JBL Journal of Biblical Literaturel JBTh Jahrbuch fúrBiblische Theologie Jdt Judite Jr Jeremias JerusalemPersp Jerusalem Perspective JETS Journal of the Evangelical Theological Society JJS Journal of Jewish Studies j. Kil. Ki’ajim, T alm ude Jerusalém Jó Jó J1 Joel Jo Jo ão J n Jonas Jos. Asen. Joseph andAseneth Js Josué JR Journal of Religion JSN T Journal for the Study of the New Testament JSNTSup Journalfor the Study of the New Testament, S upp lem ent Series JSP Journal for the Study of the Pseudepigrapha JTS Journal of Theological Studies Jub. Jubileus Jd Judas Jz Juizes K E K K ritisch-exegetischer K o m m en ta r über das N eu e T estam en t (M eyer-K om m entar) L m L am entações Lat. Latim LCL Loeb Classical Library Abrev iações21 LEC Library o f Early Christianity Lv Levi tico Vida Josefo, Vida Vida deAp. Filóstrato, Vida deApolônio lit. literalmente log. Logion, leitura TSJ A Greek-English Lexicon, ed. H. Liddell, R. Sc e R. McKenzie Lc Lucas LXX Septuaginta, tradução grega do A T hebraico m. Avot Avot, M ishná Ml Malaquias Mc Marcos Mari. Isa. Martino de Isaías Mart. Pol. Martírio de Policarpo Mt Mateus m. B. Bat. Bava Batra, M ishná m. Ber. Berakhot, Mishná m. B. Qam.BavaQamma, Mishná Mek. Exod. Mekilta on Exodus [Êxodo de Mekilta] Mem. Apost. Memoria Apostolorum m. Git. Gittin, M ishná m. Hag. Hagiga, M ishná m. Hul. Hullin, M ishná m. Kel. Kelim, Mishná m. Ker. Keritot, M ishná m. Ket. Ketubbot, M ishná m. Kil. Kilayim, M ishná m. Mid. Middot, Mishná m. Miqw. Mikwa’ot, M ishná m. Ned. Nedarim, M ishná m. Neg. Negaim, Mishná m. Pes. Pesahim, Mishná m. Ohal. Ohalot, M ishná Mq Miqueias m. Rosh HaSh. Rosh HaShana, M ishná m. Sanh. Sanhedrin, M ishná m. Shah Shabbat, Mishná m. Sheq. Sheqalim, Mishná m. Sot. Sotah, M ishná 22Abrev iações Sukkah, M ishná Texto M assorético Ta'anit, M ishná Teharot, M ishná Yadayim, M ishná Yoma, Mishná Zavim , M ishná Zevahim, M ishná nota N aum sem data Neemias N ag H am m adi Library, ed. f . Robinson Neotestamentica N ew International Biblical Com m entary N ew International Com m entary on the N ew Testam ent N ew International Dictionary o f N ew Testament Theology, 3 vols., ed. C. Brown N otas sobre tradução N ovum Testamentum núm ero N ovo Testam ento N ew Testament Apocrypha, ed. rev., 2 vols., ed. W. Schneemelcher, trand. R. Mcl. Wilson Das N eue Testam ent D eutsch N ew Testam ent Guides N ew Testament Studies N ew Testam ent Tools and Studies N úm eros Obadias Odes de Salomão A ntigo Testam ento O ld Testament Pseudepigrapha, 2 vols., ed. J. Charlesworth página(s) Epifânio, Refutação de todas as heresias Paralelo Platão, Fédon Filipenses Policarpo, Epístola aos Filipenses Filemom m. Suk. TM m. Ta‘an. m. Teh. m. Yad. m. Yoma m. Zav. m. Zev. n. N a s.d. N e N H L N eot N IBC N IC N T N ID N T T NotesTrans N o v T n° N T N T A poc N T D N T G N T S N TTS N m O b O des Sol AT O TP P· Pan. par. Fédon Fp P ol Fp. Fm Abrev iações23 pi. plural P.Ox. Papiros de Oxirrinco O r Azar O ração de Azarias O r Man O ração de Manassés Prot. Tg. Protoevangelho de Tiago Pv Provérbios SI Salmos SI. Sol. Salmos de Salomão Quest. Bart. A s questões de Bartimeu Rab. Exod. Êxodo de Rabá RB Revue Biblique Refut. Om. Haer.: Hipólito, Refutação de todas as heresias reimpr. reimpressão ResQ Restoration Quarterly Ap Apocalipse rev. revisado RevBib Revue biblique RevistB Revista Bíblica RevQ Revue de Qumran RIDA Revue Internationale des droits de Fantiquité Rm Romanos Rt Rute SBLDS Society o f Biblical Literature D issertation Series SBLSS Society o f Biblical Literature Semeia Studies SBT Studies in Biblical Theology ScEs Science et Esprit Sib. Or. Oráculos Sibilinos Sir Eclesiástico ou Sabedoria de Jesus Ben Sirac SJLA Studies in Judaism in Late Antiquity SJT Scottish Journal of Theology SNTSMS Society for N ew Testam ent Studies M onograph Series SNT(SU) Studien zum N euen Testam ent (und seiner Umwelt) Spec. Leg. Fílon, Leis especiais Str-B Kommentar tçum Neuen Testament aus dem Talmud und Midrasch, 6 vols., eds. H. Strack e P. Billerbeck Suz Suzana T.Adão Testamento de Adão TBei Theologische Beitrãge T. Benj. Testamento de Benjamim t. Ber. Berakhot, Toseftá 24Abrev iações B. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament Testamento de Dã Theological Dictionary of the New Testament, 9 vols., ed. G. Kittel e G. Friedrich, trad. G. Bromiley Theological Dictionary of the Old Testament, 8 vols., ed. G. Botterweck e H. Ringgren O testemunho da verdade Targum dos escritos, Coélet Theologie und Glaube Targum Jonathan Theologische H andkom m entar zum N euen Testam ent O livro de Tomé, 0 Adversário Tijdschrift voor Theologie Testamento de Issacar Tito Testamento de Judá Testamento de Levi Tobias traduzido Tratado sobre a ressurreição O segundo tratado do grande Sete Testamento de Salomão Theology Today The Tyndale Bulletin Theologische Zeitschrift Testamento de Zebulom versículo versículos Filóstrato, A vida de Apolónio Josefo, A guerra judaica W ord Biblical Com m entary Word and World Sabedoria de Salomão Wissenschaftliche Untersuchungen sçum Neuen Testament Zacarias Sofonias Zeitschrift fur die neutestamentliche Wissenschaft Zeitschrift ftir Theologie und Kirche TCGNT T. Dã TDNT T D O T Testim. Verdd Tg. Ket. Qoh. TGl Tg.Jon. T H K N T Thorn. Cont. Tiid. Theol T.Iss. Tt T.Jud. T. Levi Tob trad. Traí. Res. Trat. Set T.Sol. TToday TynBul TZ T.Zeb. v. w . VitaApol. 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E m com paração com João com sua teologia sublim e, M ateus com sua estru tu ra narrativa ou Lucas com suas parábolas e histórias inimitáveis, M arcos é com frequênciajulgado, até m esm o p o r acadêm icos, um evangelho sem arte e um tan to prosaico .1 A eclipse de M arcos rem on ta aos prim ordios da tradição dos evangelhos, e essa tradição, de acordo com o consenso geral de m uitos pais da igreja, atribui a escrita do evangelho mais antigo a M ateus.1 2 U m a vez que M arcos contém apenas três perícopes que não se encon tram em M ateus ou Lucas, nem em 1 G. Deh n, Der Gottessohn. Eine Einfiihrung in das Evangelium des Markus (Hamburg: Im Furche-Verlag, 1953), p. 18, declarou que Marcos não era “nem historiador nem autor. Ele reuniu seu material da maneira mais simples imaginável” . R. Bultmann, The History of the Synoptic Tradition, trad. J. Marsh (New York: Harper Sc Row, 1963), p. 350, escreveu que “Marcos não é suficientemente mestre de seu material para ser capaz de se aventurar ele mesmo em uma construção sistemática” . E. Trocmé, The Formation of the Gospel According to Mark, trad. P. Gaughan (London: SPCK, 1975), p. 72, ridicularizou a realização literária de Marcos. “Não há dúvida quanto a este ponto: o autor de Marcos era um escritor atrapalhado que não merece menção em nenhuma história da literatura” . 2 Seis pais — Ireneu, Clemente de Alexandria, Orígenes, Eusébio de Cesareia, Epifânio e Jerónimo (e sete se considerarmos Papias) — afirmam que o registro mais antigo de Mateus foi escrito em hebraico (embora não exista nenhum texto hebraico do evangelho hoje). O Hadith Islâmico também preserva a tradição de um remoto evangelho hebraico: “Kadija, então, acompanhou [Maomé] até a casa de seu primo Waraqa ibn Naufal ibn Asad ibn ‘abdul ‘Uzza, que, durante o período pré-islâmico se tornou cristão e costumava escrever em hebraico, fundamentado no evangelho, tanto quanto Alá queria que ele escrevesse” {Sahih al-Bukhari 1:3). 28Introdução am bos (Mc 4.26-29; 7.31-37; 8.22-26), en tão o evangelho de M arcos, de m ea- dos do século I I em diante (e.g., Iren eu ,Adv. Haer. 3.1.1), foi considerado o segundo (e algum as vezes o quarto) no cânone, com o um resum o um tan to in ferio r de M ateus. As citações dos evangelhos, ao longo de to d o o período patrístico, eram dos evangelhos de M ateus e João, nessa ordem ; citações de Lucas v inham em u m distante terceiro lugar, e as de M arcos em últim o e apenas raram ente. U m d ito de A gostinho com relação ao evangelho de M ar- cos tipifica não só o ju lgam ento dos pais antes dele, m as tam bém aquele dos séculos subsequentes até a era do Ilum inism o: “M arcos im itou M ateus com o u m lacaio (lat. pedisequus) e é considerado com o seu sin tetizador” .3 A igreja cristã, em razão dessa visão, fundam entou , ao longo da história, seu retrato de Jesus basicam ente no evangelho de M ateus. C om o M ateus aparece prim eiro no cânone do N o v o T estam ento e enfatiza que Jesus é o cum prim en to das prom essas do A ntigo T estam ento , a igreja, p o r dezessete séculos, considerou M ateus com o o evangelho m ais an tigo e o mais confiável. A s leituras dos dom ingos e dias santos eram retiradas de M ateus, e os ou tros evangelhos eram utilizados em geral só quando se considerava que M ateus apresentava deficiências sob re alguns temas. A opin ião sob re o valor de M arcos sofreu um a m udança radical n a pri- m eira m etade do século X IX quando os acadêm icos,4 com base em investi- gação cuidadosa dos prim eiros três evangelhos, levantaram a h ipótese de que M arcos não era um seguidor sem originalidade de M ateus, mas era na verdade o mais antigo dos evangelhos e a fon te prim eira para os evangelhos de M ateus e Lucas. E ssa reavaliação afetou de m o d o radical o in teresse acadêm ico p o r M arcos. N o últim o século e m eio, M arcos recebeu atenção de p ro p o rção de celebridade, e o resu ltan te aum en to de estudos acadêm icos sobre o según- do evangelho é tão prolífico que n enhum acadêm ico po d e reivindicar ter lido toda a literatura sobre o assunto, e m uito m enos dom inar a fundo esse tem a. A teoria da prioridade m arcana, em bora essa afirm ação não fique sem contestações, continua a ser susten tada pela m aioria dos acadêm icos de hoje, incluindo o p resen te autor. O relacionam ento dos quatro evangelhos — em especial dos três prim eiros — represen ta um dos problem as m ais difíceis de solucionar na história das idéias e não po d e ser relatado em detalhes neste 3 D e Consensu Evangeliorum, 1.2.4. 4 K. Lachm ann, 1835; C. H . Weisse e C. G. Wilke, 1838; H. J. H oltzm ann, 1863; B. Weiss, 1886; B. H. Streeter, 1924. Autoria e local de composição29 com entário .5 O m elho r que pode ser feito nesta o b ra com respeito à priori- dade de M arcos é cham ar a atenção para o núm ero de passagens relevantes em que, de m o d o razoável, é possível su p o r a precedência de M arcos em relação aos ou tros evangelhos sinóticos e o fato de que os influenciou, em particular M ateus. E sse dilúvio de estudos recentes devotados a M arcos foi bem -sucedido em fazer calar, assim creio, os julgam entos pejorativos de aca- dêm icos m ais anügos de que M arcos era um escrito r desajeitado e sem arte. A posição represen tada nesse com entário é que M arcos era um habilidoso artista literário e teólogo. E m b o ra o estilo de M arcos se aproxim e do grego falado no dia a dia, em vez de apresen tar a qualidade tocan te da alta literatura, o evangelho, ainda assim , d em onstra considerável sofisticação na in tenção e p lanejam ento literário, con fo rm e fica evidenciado não só pela técnica de sanduíche e o u so da ironia p o r M arcos, com o tam bém pelos tem as especiais dos que p ertencem ao círculo ín tim o e os de fora, pela o rdem para silenciar e pela jornada. E ssas e outras convenções literárias são em pregadas pelo au- to r do segundo evangelho a fim de re tratar um a concepção p ro fundam en te teológica de Jesus com o o F ilho autoritativo de D eus, ainda que sofredor. 2. A U TO R IA E LO CAL D A COM POSIÇÃO O evangelho de M arcos, com o os ou tros evangelhos canônicos, não iden- tífica em nenhum trecho seu autor, nem , tam pouco, com o acontece com Lucas (1.1-4) e João (20.30,31), a ocasião da escrita. O s títulos de cada um dos quatro evangelhos, designados com base na tradição da igreja, aparecem na prim eira m etade do século II. A nom enclatura norm al é “Evangelho segundo M ateus” (gr. euangelion kata Maththaioii), “Evangelho segundo M arcos” (gr. euangelion kata Markon) e assim p o r diante. A igreja primitiva, com relação à tradição do evangelho, usava a palavra para “E vangelho” (gr. euangelion) com regularida- de no singular e raras vezes no plural, indicando que concebia a tradição do Evangelho com o um a unidade, ou seja, o único Evangelho em quatro versões.6 5 H.-H. Stoldt, History and Criticism of the Marcan Hypothesis (Macon, Ga.: Mercer University Press/Edinburgh: T. & T. Clark, 1980), p. 1: “A análise crítica das fon- tes do evangelho é justificavelmente considerada um dos problemas de pesquisa mais difíceis na história das ideias. [...] É possível afirmar que nenhum outro empreendimento na historia das ideias foi sujeito a um escrutínio acadêmico tão amplo e profundo quanto esse” . 6 M. Hengel, Studies in the Gospel of Mark, trad. J. Bowden (Philadelphia: Fortress Press, 1985), p. 64-69; M. Hengel, The Four Gospels and the One Gospel of fesus Christ, trad. J. Bowden (Harrisburg: Trinity Press International, 2000), p. 34-115. 30Introdução A prim eira referência ao au to r e à circunstância do segundo evangelho veio de Papias, b ispo de H ierapólis, na Á sia M enor, em um a ob ra intitulada Exposição dos oráculos do Senhor; com posta em algum m o m en to antes da m o rte de Papias em 130 d.C..7 E m b o ra o livro Exposição dos oráculos do Senhor tenha sido perd ido h á m uito tem po, o testemunho de Papias foi p reservado p o r E usébio na seguinte versão: M arcos tornou-se o intérprete de Pedro e escreveu com precisão tudo que ele se lembrava, não, de fato, na ordem das coisas ditas e feitas pelo Senhor. Pois Marcos não ouvira o Senhor nem o seguira, mas mais tarde, conform e eu disse, seguiu Pedro que costumava ensinar conform e a necessidade exigia, mas não fazendo, por assim dizer, uma organização dos oráculos do Senhor, de form a que Marcos não fez nada errado em escrever dessa form a pontos isolados conform e se lembrava deles. Contudo, ele deu atenção a um a coisa, não deixar de fora nada do que já ouvira nem fazer afirmações falsas em seu relato {Hist. Ecl. 3.39.15). E sse com entário , apesar de ter sido escrito no início do século IV, é provenien te de fontes de dois séculos antes e represen ta um a tradição m uito confiável. E uséb io p roduz a tradição acim a não só a partir de Papias, m as tam bém do respeitado pai da igreja do século II, Ireneu. E uséb io inclui um prefácio longo para o testem unho de Papias, observando que esse últim o, em bora não ten h a ouvido d ire tam en te os apósto los, fez um a cuidadosa investigação nas origens da tradição do evangelho e recebeu a in fo rm ação acim a p o r in term édio dos sucessores im ediatos deles, um João, o A ncião e um certo A rístion, discípulos do apósto lo João. Esse fato data a tradição de Papias entre o ano 90 e 100. A confiabilidade da citação de E uséb io é fortalecida ainda mais pelo detalhe de que E usébio, nessa ocasião, está d isposto a confiar o testem unho a um h o m em a quem ele não considerava au tom aticam ente com o um a fon te confiável.8 O s p o n to s salientes do testem unho de Papias são de que o segundo evangelho é p roven ien te de M arcos, e este, em bora n ão fosse um apósto lo , era um in térprete fiel do testem unho do apósto lo Pedro. Papias testifica ainda 7 W. R. Schoedel, “Papias”, ABD 5.140, localiza a atividade literária de Papias em aproximadamente 110. 8 Eusébio, em uma ocasião, desmerece Papias “como um homem pouco inteligente, conforme fica claro em seus livros” {Hist. Ecl. 3.39.13). A disposição de Eusébio de confiar na tradição de Papias relacionada a Marcos indica que tinha razão para fazer isso, apesar de sua avaliação da reputação de Papias. Para toda essa discussão, veja Hist. Ecl. 3.39.1-17. Autoria e lo ca l de com pos ição31 que M arcos escreveu com precisão e se esforçou para não fazer nenhum a afirm ação falsa; que ele escreveu apenas tu d o o que se lem brava; m as que não escreveu inteiram ente em ordem cronológica. A últim a afirm ação m ostra que Papias tinha consciência que M arcos, pelo m enos em alguns círculos, foi criticado p o r ap resen tar um a cronologia diversa da v ida de Jesus. E ssa crítica provavelm ente se origina do fato de a cronologia de M arcos se distanciar, em certos particulares, do evangelho de João, a quem os p ro teg idos de Papias aderiram . A referência a Pedro “ensinar conform e a necessidade exigia” é elaborada ainda m ais n o testem unho de E usébio , cujo con teúdo ele atribui ao pai da igreja do final do século II, C lem ente de Alexandria: Q u an d o P edro p regou publicam ente a palavra em Rom a e, pelo E spírito , p roclam ou o evangelho para aqueles presentes, que eram m uitos, exortou M arcos, com o u m dos seguidores [de Pedro] p o r um lo n g o p erío d o e aquele que se lem brava do que fora falado, a fazer um reg istro do que fo ra d ito ; e que ele fez isso e d istribuía o evangelho en tre aqueles que lhe ped iam um a cópia {H ist. Ecl. 6.14.6-7). Podem os acrescentar a esse relato o co rro b o ran te testem unho de Ireneu do m eado do século II de que M arcos, “ o discípulo e in térp re te de Pedro, após P edro e Paulo pregarem e lançarem os fundam entos da igreja em Rom a, tam bém en tregou ele m esm o um escrito dos fatos p regados p o r P ed ro” (Adv. H aer. 3.1.1). A tradição de que P edro era um a fon te essencial para o evangelho de M arcos — n a verdade, o segundo evangelho era em m uitos aspectos as “m em órias de P ed ro” — encon trou , que saibam os, concordância unânim e na igreja prim itiva.9 A ssim , a partir de um a variedade de tradições * V. 9 O prólogo antimarcionita; Justino M ártir, Dial. Trif.p. 106; Ireneu, Adv. Haer. 3.1.1; Hipólito, sobre lP e 5.:13; C lem ente de Alexandria (citado em Eusébio H ist. Ecl. 6.14.6; Orígenes (citado em Eusébio, H ist. Ecl. 6.25.5); Jerónim o, Com. deM t, Prooemium 6). Veja mais, Eusébio, H ist. Ecl. 2.15; 5.8.2. Veja o material reunido em V. Taylor, The Gospel According to St. M ark,p. 1-8; W. G rundm ann, D as Evangelium nach Markus, p. 22-23; e H. Yíoestet, Ancient Christian Gospels: Their History and Development (Philadelphia: Trinity Press International, 1992), p. 289-90. Aos testem unhos acima, tam bém poderia ser acrescentado o Cânone M uratório que contém uma lista de livros reconhecidos po r sua autoridade em Rom a no período de 170-190. A parte inicial do C ânone M uratório foi perdida, e a porção sobrevivente contém apenas um fragm ento da afirmação final sobre M arcos (“na qual, no entanto, ele estava presente e assim a escreveu”). A afirm ação acima, em bora incom pleta, é razoavelmente explicada, com o nas tradições preservadas po r Papias, Ireneu e 32Introdução do final do século I em diante, vem os um testem unho com plem entar de que o au to r do segundo evangelho é M arcos, o in térpre te de Pedro, que com pôs o evangelho em Rom a. O M arcos em consideração é ev identem ente João M arcos, filho de um a m ulher cham ada M aria, em cuja casa a igreja prim itiva se reunia em Jerusa- lém (At 12.12). E ssa m esm a habitação foi aparen tem ente tam bém o local da últim a ceia (At 1.13,14; M c 14.14).10 N o N o v o T estam ento , João M arcos aparece só em associação com as personalidades e eventos mais proem inentes. E le acom panhou B arnabé e Saulo (Paulo) com o um assistente na prim eira viagem m issionária destes (At 12.25; 13.4), sendo evidentem ente responsável pelos arranjos de viagem , alim entos e hospedagem . E m Perge, ele abando- n ou a viagem p o r m otivos n ão revelados (At 13.13). A questão se M arcos deveria partic ipar da segunda viagem m issionária em aproxim adam ente 50 d.C. resu ltou em um a separação en tre Paulo e B arnabé: Paulo, considerando injustificável a deserção de M arcos na prim eira viagem e não estando disposto a levá-lo em um a segunda viagem , levou Silas e re to rn o u para a Á sia M enor; enquan to B arnabé re to rn o u para C hipre com M arcos (A t 15.37-41). N ão se ouve mais falar em João M arcos p o r um a década, quando referências esparsas m ostram que ele se reconciliou com Paulo (Cl 4.10; F m 24; 2Tm 4.11). U m a referência final do N o v o T estam ento o m ostra trabalhando com P edro em R om a (lP e 5.13). M arcos, de acordo com a tradição patrística, evangelizou no Egito e aü estabeleceu igrejas caracterizadas pelo asceticismo e rigor filosófico, to rnando-se p o r fim o prim eiro b ispo de A lexandria (Eusébio, Hist. Ecl 2.16). E m b o ra não possam os com provar que João M arcos foi o au to r do según- do evangelho, o peso da evidência está firm em ente a seu favor. O evangelho tem inúm eras características do relato de um a testem unha ocular, e terem os várias ocasiões neste com entário de m ostrar em que p o n to s a história de M arcos se apoia plausivelm ente no testem unho de Pedro. N en h u m a tradição da igreja prim itiva e n enhum pai da igreja atribui o evangelho a alguém ou tro que não M arcos. U m a vez que os livros do N ovo T estam ento no rm alm en te exigem autoria p o r um apósto lo para que possam ser aceitos no cânone, é im provável que a igreja prim itivatenha atribuído um evangelho a um per- Eusébio, como uma referência à presença de Marcos na pregação de Pedro, ou seja, “Marcos, no entanto, estava presente na pregação de Pedro e a escreveu”. 1(1 Grundmann, Das Evangelium nach Markus, p. 21, sugere que o rapaz carregando a jarra de água em Marcos 14.13 era o próprio Marcos, o autor do evangelho. Não existe nenhuma outra evidência disso, quer a favor dessa ideia quer contra ela. Data33 sonagem m en o r com o João M arcos, cujo nom e não aparece em nenhum a lista apostólica, a m enos que ele fosse o autor. O títu lo não elaborado “O evangelho segundo M arcos” sugere o único M arcos que conhecem os no N ovo T estam ento — Jo ão M arcos.11 3. DATA A data do evangelho de M arcos é tão obscura quan to seu autor. E m ne- nhum trecho o evangelho de M arcos, nem quaisquer dos ou tros evangelhos canônicos, fo rnece in form ações específicas p o r m eio das quais possam ser datados. U m a data aproxim ada da com posição d epende de um a com bina- ção de relatos de fontes externas e no que a evidência in te rn a no p róp rio evangelho sugere com respeito à datação. E m am bos os casos, a evidência é limitada, e, p o r conseguinte, as conclusões sobre a data do segundo evangelho têm de ser tentativas. Ireneu , com respeito à evidência externa, relata que M arcos só escreveu o evangelho depois do “êxodo” (gr. êxodos) dos apósto los P edro e Paulo em Rom a (Adv. Haer. 3.1.1). O uso do te rm o “ êxodo” na passagem significa a m orte de P edro e Paulo (com o tam bém o uso da palavra em 2Pe 1.15; e Eusébio, Hist. Ecl. 5.8.2). Isso é confirm ado pelo testem unho do P ró logo antim arcionita — um a fon te con tem porânea de Ireneu , se não an terior — que m enciona de fo rm a explícita a m o rte de P edro antes da com posição do evangelho p o r M arcos (lat. post exceáonem ipsius Petri). E ssa tradição não é unânim e, no entanto , p o r causa de dois pais do século III , C lem ente de Alexandria (Eusébio, Hist. Ecl. 6.14.6-7; 2.15.2) eO ríg en es (Flusébio, Hist. Ed. 6.25.5), enquan to ela silencia com respeito a Paulo, relata que M arcos com pôs o evangelho em R om a durante o período de vida de Pedro. N ão é mais pos- sível julgar quais dessas duas tradições é correta, m as as evidências externas com binadas, de qualquer m odo, localizam a com posição de M arcos p erto do fim da vida de P edro ou logo depois dela. A tradição da igreja prim itiva é 11 11 Taylor, The Gospel According to St. Mark, p. 7, conclui a análise crítica completa dos antigos testemunhos do evangelho de Marcos, portanto: “Em suma, podemos dizer que, desde o início do século II, a evidência externa concorda em atribuir a autoria do evangelho de Marcos, ‘o intérprete de Pedro’, e [...] em designar o local de sua composição em Roma”. Da mesma forma, J. Wenham, Reading Matthew, Mark and Luke (Downers Grove: InterVarsitv Press, 1992), p. 142: “Todos esses testemunhos apontam para um cerne sólido da tradição, o que torna Marcos o autor do evangelho e também um cooperador de Pedro, e isso torna seu livro um registro fiel do que o apóstolo ensinou em Roma. 34Introdução unânim e de que P edro m o rreu duran te os ú ldm os anos do reinado de N ero , que governou de 54 a 68. A evidência externa sugere um a data para M arcos en tre m eados e o final da década de 60 do século I. A rgum entos da evidência in terna para a datação de M arcos fundam en- tam -se em três e talvez quatro possíveis datas relevantes. P rim eiro, a ênfase de M arcos em Jesus com o o F ilho sofredor de D eus e a concom itan te ênfase no discipulado so fredo r (8.31— 9.1; 13.3-13), sugere que o segundo evangelho foi escrito para cristãos so frendo perseguições. Tem os conhecim ento de duas perseguições duran te as décadas após a crucificação de Jesus, a prim eira sendo a tentativa de Caligula de erigir um a estátua de si m esm o sob a aparência de Z eus no tem plo de Jerusalém (Josefo ,Ant. 18.261-309). A am bição insana de Caligula foi potencialm ente catastrófica, mas, em razão de seu assassinato em 41 d.C., to d o esse assunto foi evitado. A segunda perseguição, real e bárbara, ocorreu em Rom a, sob Ñ ero. O im perador — buscando um b ode expiatório para o incênd io em R om a — e sabem os que o h is to riad o r ro m an o T ácito pôs a culpa desse incênd io nas o rd en s do p ró p rio N e ro — ap ressou -se a culpar os cristãos e os sujeitou aos h o rro res m ais cruéis (Tácito, Anais 15.44). A conflagração rom ana ocorreu no ano de 64, com a perseguição dos cristãos p o r N e ro acontecendo logo depois. Isso coincide com o local e datação apro- xim ada de M arcos sugerida pela evidência externa e em presta apoio plausível à inferência de que o pano de fundo da perseguição em M arcos era o m assacre de N ero , e esta foi a prim eira perseguição oficial enfren tada pelos cristãos. O segundo p o rm en o r relevante para a datação de M arcos é a afirm ação em 13.14 sobre “ ‘o sacrilégio terrível’ no lugar onde não deve estar” . A palavra grega para “no lugar” (hestêkotà) está n o m asculino, o que, para m uitos co- m entaristas, sugere que a afirm ação é um a referência enigm ática da destruição do tem plo p o r T ito em 70 d.C. Se essa sugestão pudesse ser confirm ada, en tão a datação da com posição de M arcos teria de ser depois dessa data. C on tudo , é m uito duvidoso que essa sugestão possa ser confirm ada. U m a com paração da referência enigm ática em 13.14 com a descrição detalhada de Josefo da cap tura e destru ição do tem plo no livro 6 de A guerra judaica não encon tra paralelos exatos e se depara com várias discordancias reais. U m a entrada apo teó tica do v itorioso T ito no tem plo destru ído não é narrada em nenhum o u tro tex to de Josefo de um a form a rem iniscente de 13.14 (Veja Guerra 6.409-13). Josefo , p o r sua vez, enfatiza repetidas vezes a destru ição do tem plo pelo fogo, e esse fato não é m encionado em M arcos 13. A cim a de tudo, a referência para fugir para as m ontanhas quando “virem ‘o sacri Data35 légio terrível’ n o lugar on d e não deve estar” dificilm ente se refere ao cerco rom ano, pois quando T ito en tro u em Jerusalém , a cidade já estivera sitiada pelo m uro do cerco rom ano, o circumvallatio, to rn an d o a fuga de Jerusalém praticam ente im possível. A am biguidade de 13.14 é um tan to surpreendente se M arcos estivesse co m p o n d o seu evangelho depois da queda de Jerusalém . Se M arcos soubesse da queda de Jerusalém , seria de esperar um a correlação mais óbvia com o cerco rom ano, conform e, p o r exem plo, fica aparen te em Lucas 21.20,24. E ssa evidência relacionada a M arcos 13.14, p o r conseguinte, sugere u m tem po an terio r à queda de Jerusalém em 70.12 A terceira peça de evidência p ode talvez estar oculta na opaca referência na cena da tentação de Jesus em que ele estava “com os anim ais selvagens” (1.13). E ssa frase não tem nenhum paralelo óbvio n a Bíblia e ainda não foi explicada de fo rm a satisfatória. E s to u inclinado a ver nessa frase um a refe- rência velada à perseguição de N ero , em particular o estado dos assuntos descritos mais tarde na afirm ação de Tácito que os cristãos estavam “cobertos com as peles dos anim ais selvagens e foram despedaçados p o r cães” (Anais 15.44). C onsiderando os argum entos acima para a perseguição de N ero com o o pano de fundo de M arcos, não é im plausível que M arcos tenha incluído uma referência aos animais selvagens no relato da tentação de Jesus a fim de encorajar os cristãos rom anos subm etidos às atrocidades de N e ro afirm ando que o p róp rio Jesus en fren tou os anim ais selvagens — e, ao fazer isso, foi m inistrado pelos anjos. U m a quarta possível peça de evidência relevante para acom posição de M arcos vem do retórico rom ano Q uintiliano, que m o ro u em R om a do breve reinado de G alba (68 d.C.) até o reinado de D om iciano (81-96). Q uintiliano, no livro 1 de seu Institutio Oratorio, devotado à educação infantil, faz um a referência de passagem aos jovens estudantes precoces, m as sem m aturidade e profundidade. A referência é curiosam ente rem iniscente da parábola do sem eador (Mc 4.3-9, par.) e da parábola da sem ente que cresce (Mc 4.26- 29), e essa últim a é única de M arcos.13 Q uintiliano, na época em que estava 12 Veja ainda a discussão dessa questão em 13.14, e tam bém Hengel, Studies in the Gospel o f M ark, p. 18. 13 “N on m ultum praestant, sed cito; no n subest uera uis nec penitus inmissis ra- dicibus nidtur, u t quae sum m o solo sparsa sund semina celerius se effundunt et imitatae spicas herbulae inanibus aristis ante m essem flauescunt. Placent haec annis com parata; deinde stat profectus, adm irado decrescit” (Institutio Oratorio 1.3.5). H. E. Butler (LCL; 1963) traduz o texto acima desta form a: “Eles não 36Introdução esc rev en d o Institution e ra tu to r de d o is jovens p rín c ip es, o s filhos d e D o m itila , so b rin h a d e D o m ic ia n o , e seu m a rid o C lem en te . “T u d o q u e sa b e m o s so b re Q u in tilian o d e m o n s tra q u e ele faria o m e lh o r possíve l p a ra m a n te r u m rela- c io n a m e n to ín tim o c o m os pais d aqueles so b su a re sp o n sa b ilid a d e ” , escreve F. H . C o lso n .14 O ze lo d e Q u in tilia n o n essa ocasião é re levan te , po is a m ãe d o s m e n in o s (e ta lvez o pai tam b ém ) e ra c ristã co n fessa . A s afin idades da m e tá fo ra d e Q u in tilia n o c o m as d u as h is tó rias so b re h o r tic u ltu ra n o s evan- ge lhos, u m a das quais o c o rre ap en as e m M arco s, p o d e su g e rir q u e o re tó rico , ta lvez p o r in te rm é d io d e D o m itila e C lem en te , tivesse a lgum a fam iliaridade a n te rio r c o m o ev an g e lh o d e M a rc o s .15 E ssa po ssib ilid ad e , e m b o ra n ão n o s p e rm ita avançar o g ra u d e p rec isão c o m re lação à d a ta d o seg u n d o evangelho , p o d e e m p re s ta r u m a ev idência c o rro b o ra tiv a d e que M arco s e ra c o n h e c id o em R o m a e m a lgum m o m e n to d e p o is d e 68. E m su m a , e m b o ra n e n h u m d o s a rg u m e n to s e das ev idências p re c e d e n - tes se jam co n c lu siv o s em si m esm o s, u m a c o m b in a ç ã o d o s d a d o s ex te rn o s e in te rn o s p a re c e m a p o n ta r p a ra a c o m p o s iç ã o d o ev an g e lh o d e M arco s em R o m a e n tre o g ra n d e in c ên d io d e 64 e o ce rco e d e s tru iç ã o d e Je ru sa lé m p o r T ito em 70, o u seja, p o r v o lta d o a n o 65 .16 têm poder de fato, e o que você tem não passa de um crescimento raso: é como quando lançamos a semente na superfície do solo: ela nasce com rapidez, a folha imita a espiga com grãos, e os amarelos anunciam o tempo da colheita, mas não há grãos. Essas trapaças nos agradam quando as contrastamos com a idade do executor, mas o progresso logo é interrompido, e nossa admiração murcha” . Sobre a similaridade do texto acima com a versão de Marcos da parábola do semeador, H. J. Rose, “Quintilian, The Gospels and Corned}'” , Classical Review 39 (1925), p. 17, escreve que “essa passagem nos apresenta um paralelo mais próximo do texto original que conheço, não apenas pela tendência geral da parábola do semeador, mas graças à forma como se desenvolve um detalhe dela. [...] Aqui, detalhamos um paralelismo que se estende até mesmo às palavras usadas, quando levamos em consideração as diferenças entre o estilo simples de Marcos e o estilo elaborado de Quintiliano”. 14 F. H. Colson, “Quintilian, the Gospels and Christianity,” ClassicalReview?>9 (1925), p. 167. 15 Ibid.,p. 169: “Não hesitaria em dizer que a explicação natural era [...] que Quin- tiliano tinha, quer por intermédio de Domitila quer pela leitura direta do texto, emprestado do evangelista, e que temos aqui a primeira adaptação dos evangelhos em um escritor pagão e talvez o primeiro em qualquer escritor” . 16 Wenham, ReadingMatthew, M ark and Cuke, p. 146-72, argumenta que Pedro visitou Roma no início do reinado de Cláudio (em 42-44), e que Marcos foi escrito logo depois disso em c. 45. Apesar dos argumentos corajosos de Wenham e outros Características literárias específicas37 4 . C O N T E X T O H I S T Ó R I C O D etalhes relevantes no segundo evangelho co rro b o ram a reconstrução histórica preceden te de que a in tenção do evangelho de M arcos era retratar a pessoa e m issão de Jesus C risto para os cristãos rom anos enfren tando perseguição sob N ero . N ão resta a m en o r dúvida de que M arcos escreveu para os leitores gentios, e os gentios rom anos em particular. M arcos cita com relativa pouca frequência o A ntigo T estam ento e explica os costum es judai- cos poucos familiares a seus leitores (7.3,4; 12.18; 14.12; 15.42). E le traduz frases aram aicas e hebraicas p o r seus equivalentes gregos (3.17; 5.41; 7.11,34; 10.46; 14.36; 15.22,34).17 E le tam bém inco rpo ra um a série de latinism os ao transliterar expressões latinas familiares para os caracteres gregos.18 P o r fim, M arcos apresen ta os rom anos em um a luz neu tra (12.17; 15.1,2,21,22) e al- gum as vezes favorável (15.39). E sses dados indicam que M arcos escreve para leitores gregos cuja estru tu ra prim ária de referência era o Im pério Rom ano, cuja língua nativa era ev identem ente o latim , e para os quais a te rra e o éthos judaico de Jesus não lhes eram familiares. Mais um a vez, R om a parece ser o lugar on d e e para o qual o segundo evangelho foi com posto . 5. CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS ESPECÍFICAS 5.1 Estilo M arcos é o m en o r e m ais com pacto dos quatro evangelhos. A brevidade do evangelho de M arcos se deve ao fato de que M arcos inclui m enos histórias (e.g., G. E dm undson; recentem ente C. P. Thiede), nenhum a evidência externa nem interna para essa data é convincente. E verdade que a tradição da igreja do século IV em diante pressupõe a perm anência rem ota e longa (25 anos) de Pedro em Roma, mas o N ovo Testam ento se silencia totalm ente sobre o assunto, e, até o século IV (incluindo Eusébio), há apenas evidência ambígua e esparsa sobre o assunto. D e qualquer m odo, a questão a ser resolvida não é quando Pedro estava em Roma, mas quando o evangelho de M arcos foi escrito, e a evidência interna no evangelho parece favorecer a perseguição de N ero na década de 60, em vez da década de 40, um período relativamente sem m uitos eventos. 17 Veja G rundm ann, Das Evangelism nach Markus, p. 23. Hengel, Studies in the Gospel of M ark,p. 46, declara: “N ão conheço nenhum outro trabalho em grego que tenha tantas palavras em aramaico ou hebreu e preceitos em um espaço tão dim inuto quanto o tem o segundo evangelho” . 18 Essas palavras são derivativas com base latina em Marcos: modius, 4.21; legio, 5.9,15; speculator, 6.27; denarius, 6.37; census e Caesar, 12.14; praetorium, 15.16; e centurio, 5.39,44. Para um a discussão das frases gregas em Marcos que derivam dos originais latinos, veja BDF, 4-6. 38Introdução em seu evangelho que os ou tros evangelistas. As histórias que M arcos inclui, no entanto , são, via de regra, narradas de um m o d o mais com pleto que as m esm as histórias nos ou tros evangelhos.19 M arcos com põe seu evangelho com um to tal de 1.270 palavras gregas distintas, excluindo os nom es próprios. E ssa extensão relativam ente m odesta de vocabulário, que é quase o m esm o núm ero de palavras latinas diferentes usadas p o r César em um a obra m uito mais extensa A s guerras da Gália, indica queM arcos, com o César, utiliza o vo- cabulário da fala com um a fim de transm itir eventos extraordinários. M arcos evita o estilo culto e com frequência afetado que caracteriza as obras-prim as áticas e tam bém m uitas palavras gregas helenistas. E le escreve em um estilo sem rebuscam entos, em bora vivido, que se com unica de im ediato com o leitor. E le m an tém um ritm o v igoroso ao iniciar de m odo ubíquo sentenças com “e” (gr. kai), bem com o p o r ligar orações coordenadas p o r kai, e não pelo uso dos participios ou orações subordinadas; ao uso igualm ente ub íquo do “ tem po p resen te h istó rico” dos verbos gregos; e pelo uso frequente de palavras com o “ im ediatam ente” (gr. euthys), “de novo” (gr. palin) e m uitas palavras para expressar espan to e assom bro. E m alguns m om entos, a rapi- dez da narrativa de M arcos é rivalizada p o r sua densidade na expressão ou arte de dizer, com o p o r exem plo, em 5.26,27, em que seis particip ios em rápida sucessão precedem o verbo finito. Igualm ente característico do estilo de M arcos é a preferência pelos dim inutivos e, co n fo rm e observado antes, sua predileção para incluir palavras e frases gregas que devem sua m enção aos originais latinos, quer transliterações das palavras latinas quer ecos da sintaxe e fraseologia latinas. A narrativa vivaz de M arcos deixa a im pressão de bastan te proxim idade dos eventos descritos, e suas perícopes são postas lado a lado, com o tijolos de um a construção praticam ente sem argam assa editorial en tre elas. D etalhes narrativos organizadores — p o r exem plo, on d e e quando Jesus estava em um dado m o m en to ou quem estava com ele — são reduzidos a um m ínim o, e o resultado dessa estratégia narrativa se aproxim a das peças m odernas com p o uco cenário e pano de fundo , a fim de focar a atenção to talm en te em Jesus. 19 Por exemplo, em Marcos, a história de Jesus curando a filha de Jairo e a mulher com hemorragia (Mc 5.21-43) contém 383 palavras cm grego. Os paralelos em Mateus 9.18-26 e Lucas 8.40-56 contêm 138 palavras (= 36% da extensão de Marcos) e 285 palavras (= 74% da extensão de Marcos), respectivamente. Caracte rís ticas literárias e spec íficas39 5 .2 Técnica de sanduíche O segundo evangelho in te rro m p e com frequência u m a h istó ria ou perícope ao inserir ali um a segunda história aparen tem ente sem qualquer relação com a prim eira. P o r exem plo, no capítulo 5, Jairo, um dirigente da sinagoga, pede a Jesus para curar sua filha (w . 21 -24). U m a m ulher com um a hem orragia in terrom pe Jesus quando este estava a cam inho para a casa de Jairo (w . 25-34) e só após o registro da cura da m ulher é que M arcos re tom a de fato a ressurreição da filha de Jairo que m orre ra nesse ín terim (w . 35-43). E sse sanduíche em particular é sobre a fé, m as ou tros sanduíches, com nove ocorrências n o evangelho,20 enfatizam tem as concom itan tes de discipulado, testem unhos ou perigos da apostasia. O s sanduíches, p o r conseguinte, são convenções literárias com p ropósito s teológicos. Cada unidade de sanduíche consiste da sequência A ’-B-A2, em que o co m p o n en te -B funciona com o um a chave teológica para as m etades que o ladeiam. Pode haver rud im entos da técnica de sanduíche nas tradições que M arcos recebeu, m as um a com - paração de M arcos com os ou tros sinóticos revela que ele em prega a técnica sanduíche de um a fo rm a p ronunciada e única para salientar os principais temas do evangelho.21 5.3 Ironia M arcos é o m estre do inesperado. O segundo evangelho, além desse estilo narrativo vivaz e da técnica de sanduíche, é caracterizado pela ironia. O uso da ironia é im portan te para o segundo evangelista que, ao longo de todo o evangelho, descreve Jesus com o aquele que desafia, con funde e algumas vezes quebra os estereótipos convencionais, quer religiosos, quer sociais, quer políticos. A resposta de Jesus a várias pessoas e situações — e a resposta delas a ele — não é de form a algum a o que o leitor antecipa. O s líderes religiosos e m orais, con fo rm e represen tados pelos escribas e Sinédrio, p o r exemplo, estão em incessante com bate com Jesus ao longo do evangelho, ao passo que a m ulher gentia siro-fenícia sem n enhum a reputação é elogiada p o r sua fé (7.29). D a m esm a form a, aqueles mais próxim os de Jesus — seus discípulos (8.14-21,33; 10.35-45) e até m esm o sua p rópria família (3.21,31-35; 6.1-6) — percebem sua m issão e ser apenas gradualm ente e com dificuldade, ao passo que os de fora, com o o cego B artim eu (10.46-52) e o centurião gentio (15.39) 20 3.20-35; 4.1-20; 5.21-43; 6.7-30; 11.12-21; 14.1-11; 14.17-31; 14.53-72; 15.40— 16.8. 21 VejaJ. R. Edwards, “M arkan Sandwiches: T he Significance o f Interpolations in Markan N arratives”, N opT 31 (1989), p. 193-216. 40Introdução respondem a Jesus intu itivam ente e mais de im ediato. Jesus, em ainda ou tro exem plo, restaura os estrangeiros de fora, com o um leproso (1.40-45) e um dem oníaco hostil (5.1-20) à saúde e à sociedade — e, ao fazer isso, to rna-se ele m esm o um de fora. Jesus en tra em um a grande variedade de cenários em M arcos, em cada um deles continua a ser sua p rópria pessoa em liberdade e autoridade soberanas, desafiando a fo rm a com o as coisas são e estendendo esperança para o que podem se tornar. O s leitores do evangelho de M arcos acham necessário abandonar suas p reconcepções do que D eus e o M essias de D eus são a fim de experim entar um “novo ensino — e com autoridade” (1.27) — e aprender que o v inho novo exige um a vasilha de couro nova (2.22). 6 . JESUS NO EVANGELHO DE MARCOS C ada um a das perícopes em M arcos é sobre Jesus, exceto p o r duas sobre João B atista (1.2-8; 6.14-29), ap resen tado com o o p recu rso r de Jesus. D o início ao fim , Jesus é o assunto incon teste do evangelho de M arcos, sendo re tratado com o um h o m em de ação. A ação do evangelho é im portan tíssim a para o sen tido do evangelho, pois aprendem os quem Jesus é, nem tan to pelo que diz q u an to pelo que /αχ. M arcos, em relação a esse assunto, escreve com um pincel cheio de cores. M arcos — de fo rm a distin ta do evangelho de João, p o r exem plo, em que os principais tem as ficam explícitos — apresenta os principais tem as de fo rm a implícita, exigindo que os leitores en trem no dram a do evangelho a fim de co m preender seu sentido. M arcos, em bora se refira com frequência a Jesus com o m estre, raram ente relata o co n teúdo de seus ensinam entos. Fica rap idam ente aparen te que a pessoa do m estre é mais im portan te que o co n teúdo de seus ensinam entos. M arcos, den tre os quatro evangelistas, tam bém é o que mais p rontam ente retrata a hum anidade de Jesus, incluindo seu pesar (14.34), desapon tam en to (8.12), desagrado (10.14), raiva (11.15-17), perplexidade (6.6), fadiga (4.38) e até m esm o ignorância (13.32). A tradição do evangelho subsequente a M arcos revela um a tendência sutil para suavizar e em udecer o re tra to nítido da hum anidade de Jesus p in tado p o r esse evangelista. O re trato de Jesus feito p o r M arcos, acim a de tudo, é caracterizado p o r três fatores: a autoridade divina, a m issão com o o Servo so fredor de D eus e a filiação divina. 6 .1 A autoridade de Jesus A característica de Jesus que deixou a im pressão mais duradoura em seus seguidores e m ais o fendeu seus oponen tes foi a exousia, sua liberdade Je su s no evangelho de M arcos41 soberana e autoridade m agistral. Jesus, em sua prim eira aparição pública em M arcos, deixa a congregação da sinagoga estarrecida com sua suprem acia sobre o m u ndo dem oníaco e o ensinam ento da Torá m in istrado p o r especia- listas n o assunto (1.21-28). O s dois efeitos — os ensinam entos ea expulsão de dem ônios — originam -se de sua autoridade divina. A exousia de Jesus se apresenta pela prim eira vez em sua liberdade ousada para reorganizar as prioridades políticas e sociais. O cham ado dos doze dis- cípulos, cujo núm ero co rresponde às doze tribos de Israel (3.13-19), sugere um cum prim en to do destino de Israel no conselho apostó lico dos seguido- res. O relacionam ento com a m ãe e os irm ãos é redefinido de acordo com o fazer a vontade de D eus, e não pela linhagem de sangue (3.31-35; 6.1-6). N o reino político, Jesus presum e declarar o que é — e o que não é — devido a César (12.13-17). A exousia de Jesus tam bém se m anifesta em sua audácia para redefinir os m andam entos da Torá. A responsabilidade de um filho de p rover para seus pais deve, con fo rm e declarado p o r Jesus, suplantar a opção legal de C orbã (7.8-13). Jesus faz um a crítica veem ente à tradição oral rabínica (7.1-23) e, em contraste com a tradição dos anciãos e a lei m osaica, abraça um leproso (1.40-45), publícanos e pecadores (2.13-17) e gentios im undos, incluindo a m ulher siro-fenícia (7.24-30). Jesus transgride a proib ição de trabalhar aos sábados co lhendo grãos (2.23-26) e cu rando (3.1-6); e ele redefine o p róp rio p ropósito do sábado com o um a o rdem constitu tiva da criação (2.27,28). As discussões rabínicas na Palestina do século I eram orientadas principalm ente em to rno de quatro pontos bem delim itados: a observância do sábado, o ritual de lim peza, alim entos e casam ento — cada um dos quais se desenvolvería mais tarde em tratados individuais ou divisões inteiras da M ishná. C ada um desses quatro aspectos é desafiado de fo rm a vigorosa p o r Jesus. Por fim e ainda mais im portante, a autoridade de Jesus se m ostra na form a com o afirm a suas prerrogativas que, de ou tra form a, p ertencem só a Deus. Jesus tem a habilidade de curar as mais variadas e as mais sérias doenças — habilidade essa reconhecida até m esm o p o r seus opon en tes (3.22; b. Shab. 104è; b. Sanh. 25d). Sua autoridade tam bém se estende à suprem acia sobre a natureza. Q u an d o ele acalm a a tem pestade (4.35-41), sua “ repreenfsão]” ao vento e a o rdem para o m ar “ aquiet[ar-se]” as frases são com postas na linguagem de expulsão de dem ônios, rem em orando o p o d er de D eus sobre o caos na criação. D o m esm o m odo, Jesus andar sobre a água (6.45-52) sig- nifica que Jesus p ode andar onde só D eus o poderia fazer (Jó 9.8,11; SI 77.19; 42Introdução Is 43.16) e designa Jesus pela m esm a expressão (egõ eimi; “E u Sou”) usada p o r D eus quando ele se revela a M oisés (Ex 3.14, LXX). O utras exibições da autoridade divina de Jesus incluem seu am arrar de Satanás, o “hom em fo rte” (3.27); sua afirm ação de p erdoar pecados (2.10) e sua substituição do tem plo em Jerusalém com o o locus Dei, o lugar onde D eus se encon tra com a hum anidade (15.38,39). Sua fala para D eus e com ele é única en tre os rabis judaicos: ao prefaciar as declarações com Amén (“D ig o a verdade” ou “ E m verdade” [ARA, ARC]), ele ousa falar com a autoridade de D eus; e sua re- ferência a D eus com o “A b d ’ (14.36) exibe um a intim idade filial com D eus, algo sem paralelos n o judaísm o. Jesus, quando questionado sobre a fon te de sua autoridade, ap on ta para seu batism o p o r João, m o m en to em que a voz o declarou F ilho de D eus, e o E spírito que lhe dá po d er com o servo de D eus lhe confere a exousia de D eus (11.27-33).22 6.2 O Servo do Senhor A autoridade de Jesus, a qual em todos os lugares perm eia seu com por- tam ento e atitude, é em pregada não para si m esm o, m as para o serviço aos outros. M arcos, p o r conseguinte, descreve Jesus usando o perfil de um servo, em especial com o o cum prim ento do servo so fredo r de D eus, con fo rm e apresentado em Isaías. A característica m ais im portan te do Servo do S enhor de Isaías é o efeito de seu so frim en to expiatório e vicário (Is 53.5,10), não encon trado em n enhum o u tro texto do A ntigo Testam ento. E precisam en- te esse aspecto do Servo que Jesus cum pre em sua m issão com o Filho do hom em de “ dar a sua vida em resgate p o r m uitos” (10.45). E cos dos Servo do Senhor são in tercep tados em m om en tos críticos e essenciais no re trato de Jesus feito p o r M arcos. Já no batism o a voz do céu (1.11) define a filiação divina nas categorias do servo (Is 42.1; 49.3). Jesus, no início de seu m inistério, m ostra ter consciência de que sua vida tem de ser tirada dele (2.20) e, mais tarde, Jesus com preende sua m o rte com o um a parte essencial de seu trabalho, um “batism o” (10.38). U m crism a luxuoso de um a m ulher cujo n om e não é m encionado é recebido com o um a unção para o sepultam ento (14.8). As três predições da paixão (8.31; 9.31; 10.33,34) servem com o m arcos na jo rnada para Jerusalém na segunda m etade do evangelho, às quais p ode ser adicionada a frase reveladora na parábola da v inha na qual o F ilho am ado é entregue nas m ãos assassinas dos lavradores arrendatários (12.6-8). N a últim a ceia, Jesus 22 J. R. Edwards, “The Authority o f Jesus in the Gospel o f Mark”, JETS37/2 (1994), p. 217-33. Je su s no evangelho de M arcos43 mais um a vez in terpre ta sua m orte im inente em categorias rem iniscentes do Servo do Senhor com o o “ sangue da aliança, que é derram ado em favor de m uitos” (14.24). 6.3 O Filho de Deus M arcos utiliza vários títulos para se referir a Jesus — m estre, rabi (ARC), Filho de D avi, Cristo, Senhor, Filho do hom em e Filho de D eus. D estes, o últim o m encionado é sem som bra de dúvida o m ais im portan te . Filho de D eus define tan to o com eço quan to o fim do evangelho: esse título ocorre no p ronunc iam ento de abertu ra do evangelho, “Princíp io do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de D eus” (1.1), com o tam bém na confissão apoteótica e conclusiva do centurião na cruz: “ R ealm ente este hom em era o Filho de D eus!” (15.39). A filiação divina de Jesus é a pedra angular teológica do evangelho de M arcos. M arcos, em p o n to s decisivos, apresenta dicas para des- vendar o m istério da pessoa de Jesus. N o batism o (1.11) e na transfiguração (9.7), o Pai no céu cham a Jesus de “m eu Filho am ado” , indicando que Jesus com partilha um relacionam ento único de am o r e obediência com o Pai. O s dem ônios tam bém reconhecem Jesus com o o Filho de D eus (1.24; 3.11; 5.7), testificando que lhe foi concedida autoridade divina. M arcos estabelece não só que Jesus é F ilho de D eus, m as tam bém que tipo de Filho de D eus ele é. Jesus, de fo rm a d istin ta dos vários heróis e hom ens divinos do m u n d o helenista que eram elevados acim a do m undano, exibe sua filiação divina em m eio a um m undo conturbado . A surpresa — e a chave — para en tender o Filho de D eus está em seu sofrim ento . Jesus tem de ser obediente à von tade do Pai, até a m o rte na cruz (14.36). N as narrativas da paixão, M arcos retrata Jesus principalm ente de acordo com o m odelo do servo sofredor de Isaías. L ogo antes da paixão Jesus con ta um a parábola sobre o filho do proprie tário de um a vinha que sofre rejeição e m o rre nas m ãos de insolentes lavradores arrendatários (12.1-12). A parábola, em últim a análise, reflete o p ró p rio destino de Jesus, e isso transpira n o relato da crucificação. Ironicam ente, sua m o rte na cruz é o local para o n d e convergem sua m issão e sua identidade com o Filho de D eus, e com o tal é o prim eiro local em que a hum anidade o reconhece com o Filho de D eus (15.39).23 23 Além disso, veja o excurso sobre o Filho de D eus em 15.39. J. R. Edwards, “T he Son o f G od: Its Antecedents in Judaism and Hellenism, and Its Use in the Earliest Gospel” , dissertação dedoutoram ento, Fuller Theological Seminary, 1978. Para um resumo, veja Studia Bíblica el Theologica 8 /1 (1978), p. 76-79. 7. T E M A S C A R A C T E R ÍS T IC O S 7 .1 Discipulado H á em M arcos um relacionam ento causai en tre o m inistério de Jesus e o dos discípulos. A ssim com o Jesus está com o Pai, tam bém os discípulos têm de estar com ele (3.13). Jesus ou to rga p o d e r aos discípulos para em preenderem o m inistério do m estre de proclam ação e po d er sobre as forças do m al (3.14; 6.7-13). A ssim com o o F ilho do hom em serve em hum ildade sem considerar a si m esm o e até m esm o com sofrim ento , assim tam bém devem agir os dis- cípulos (10.42-45). “Se alguém quiser acom panhar-m e, negue-se a si m esm o, tom e a sua cruz e siga-m e” (8.34). Ironicam ente, no entanto, quando alguém perde a vida p o r Cristo acaba a encontrando em C risto (8.35). O discipulado é definido repetidas vezes em M arcos pela simples proxim idade com Jesus: estar com ele (3.13), sentar-se em volta dele (3.34; 4.10), ouvi-lo (4.1-20) e segui-lo “pelo cam inho” (1.16-20; 10.52). O ato simples, m as im portan tíssim o, de ouvir e seguir Jesus antecede e é mais im portan te que a com preensão total dele p o r parte dos discípulos. O s discípulos, e em especial os D oze, são m ostrados com frequência com o indivíduos a quem falta com preensão e até m esm o com coração du ro (8.14-26). É su rp reenden te observar que isso não com prom ete o discipulado deles. O que Jesus tem de ensinar só po d e ser ensinado em um relacionam ento de aprendiz que requer que os discípulos estejam com ele mais do que tenham a plena com preensão de quem realm ente é o m estre. N a verdade, a com preensão deles só po d e vir da perspectiva da cruz, quando a co rtina do tem plo é rasgada e o sentido da filiação divina de Jesus é final e to talm en te revelada (15.38,39). 7.2 Fé Para M arcos, fé e d iscipulado não têm sentido à parte de seguir o Filho so fredo r de D eus. A fé, p o r conseguinte, não é um a fórm ula m ágica, m as depende do ouv ir repetidas vezes sua palavra e participação na missão. M ar- cos m ostra dois tipos d istin tos de respostas de fé em relação a Jesus. P o r um lado, vários indivíduos d em onstram percepção e atos de fé notáveis p o r sua rapidez e ausência de precedente. Iron icam ente, essas pessoas via de regra são provenien tes de fora do círculo im ediato dos seguidores de Jesus e são em geral m ulheres ou gentios. Q u a tro com panheiros de um paralítico, sem qualquer m enção ao n o m e deles, são elogiados p o r sua fé (2.5), com o tam - bém o é um leproso (1.40-42), um a m ulher im pura que so fre de hem orragia (5.34), um a m ulher siro-fenícia (7.24-30), o pai de um g aro to epilético (9.24), Introdução 44 Temas caracte rís ticos45 um cego (10.52), um a viúva po b re (12.41-44), um a m ulher que unge Jesus em B etânia (14.3-9) e, sobre tudo , o centurião na crucificação (15.39). Essas pessoas dem onstram grande resolução e sacrifício de um a fo rm a ou de ou tra e não são desapontadas p o r depositarem sua fé em Jesus. P o r o u tro lado, aqueles que parecem ter um a vantagem na fé — a família de Jesus (3.31-35), o povo de sua cidade natal (6.1-6) ou os religiosos espe- cialistas (11.27-33) — são, ironicam ente, os que m enos com preendem Jesus e os mais resistentes a ele. A té m esm o a resposta de fé do círculo ín tim o de Jesus, e particu larm ente dos D oze, é vacilante e incom pleta. Para esse grupo , a fé vem de fo rm a lenta, até m esm o laboriosa, pelo ouvir repetidas vezes, recebendo e dando p o r fim fru tos (4.10-20). O s D oze questionam quem é realm ente Jesus (4.41) e, às vezes, eles o exasperam (9.19). N ão obstante, eles, com o o cego em Betsaida, tam bém p o dem vir a ver, m as apenas pela presença p ro longada e toque repetido de Jesus (8.14-26). 7.3 Os que pertencem ao grupo íntimo e os de fora O s tem as do discipulado e da fé estão in tim am ente relacionados com o tem a dos que pertencem ao círculo ín tim o e os de fora. Jesus, falando com o o círculo íntim o, diz: “A vocês foi dado o m istério do Reino de D eus, mas aos que estão fora tu d o é d ito p o r parábolas [ . . . ]” (4.11). H á entre os segui- dores de Jesus um g ru p o ín tim o in teirado do segredo do R eino de D eus e outro g ru p o dos de fora que não p o d em partic ipar do que é confidenciado ao prim eiro grupo . A surpresa, no en tan to , é ver quem p ertence a cada um dos grupos. Esperaríam os que a família de Jesus, p o r exem plo, estivesse entre os do g ru p o íntim o. C on tudo , um episódio inquietan te n o início do evan- gelho revela a m ãe e os irm ãos de Jesus fora do g ru p o ín tim o e u m g ru p o de seguidores não m encionados pelo n om e partic ipando do g ru p o íntim o, sentados em volta de Jesus e fazendo a von tade de D eus (3.31-35). Mais um a vez, os “de fora” — m ulheres, gentios ou judeus considerados “ im undos” — dem onstram com frequência com preensão e fé em Jesus, ao passo que os líderes religiosos, a família de Jesus e até m esm o seus discípulos não têm essa com preensão e fé. N a verdade, M arcos re trata com frequência Jesus com o um “de fora” (1.45; 5.17; 8.23; 11.19; 12.8; 15.22). E le não se ajusta em nenhum a das categorias sociais p redom inan tes e, ao longo de todo seu ministério, enfrenta com preensões equivocadas, dureza e rejeição. O reino que Jesus proclam a e inaugura não é identificável com nenhum a no rm a social nem instituições existentes, m as é singularm ente cen trado em sua p rópria pessoa. 7 .4 Gentios O evangelho de M arcos não só é escrito para um a audiência gentia (veja 4. Contexto histórico), com o tam bém retrata Jesus m in istrando aos gentios e aos judeus. O Jesus de M arcos é o Jesus “do n o rte” , o rien tado para as re- giões além da órb ita do judaísm o definido p o r Jerusalém . A Galileia, o cen tro do m inistério inicial e form ativo de Jesus, fica no ex trem o n o rte da nação, m as ainda na jurisdição de Jerusalém , de onde represen tan tes eram enviados para esp ionar o m inistério de Jesus (3.8,22; 7.1). A Galileia, não obstan te, tinha um a relevante população gentia (daí “ Galileia dos gen tios” , Is 9.1; M t 4.15). Jesus, de aco rdo com M arcos, deixa com frequência a Galileia para aden trar nas regiões dos gentios: em D ecapólis no leste do m ar da Galileia ele cura um hom em possesso (5.1-20) e alim enta quatro mil pessoas (8.1-10), d em onstrando o m esm o p o d er em m eio aos gentios que dem onstrara antes en tre os judeus (6.31-44). E le em preende um a jornada longa e to rtu o sa na direção n o rte até T iro e Sidom na Fenicia, onde, em m eio aos grandes rivais pagãos de Israel, encon tra um a m ulher de fé infatigável (7.24-30) e m ais tar- de cura um su rdo -m udo (7.31-37). D e acordo com M arcos, Jesus, p o r parte dos gentios e nas regiões dos gentios, encon tra m aior receptividade que nas regiões judaicas. As duas grandes confissões cristológicas de M arcos são relacionadas aos gentios: em Cesareia de Filipe, Jesus foi declarado o C risto (8.27-30); e na cruz, o cen turião declara que Jesus é o F ilho de D eus (15.39). 7.5 A ordem para silenciar N a prim eira m etade do evangelho de M arcos, Jesus o rdena com frequên- cia as pessoas curadas p o r ele, observadores, discípulos e até m esm o dem ônios a silenciar (1.25,34; 1.44; 3.12; 5.43; 7.36; 8.26,30; 9.9). H á m uito tem p o os leitores ficam surpreendidos com a razão de Jesus, que veio para se to rn a r conhecido, trabalhar os p ropósito s da cruz com sua pessoa perm anecendo escondida. H á três m otivos que podem ser apresen tados para essa atitude. Jesus sem dúvida u sou a o rdem para silenciar parase p ro teger das falsas expectativas m essiânicas. O “m essias” , para a m aioria dos con tem porâneos de Jesus, invocava im agens de um herói m ilitar com o o rei D avi que expul- saria os rom anos da Palestina ocupada. Jesus abraçava alguns aspectos do m essianism o davídico (2.25; 12.35-37) e foi reconhecido p o r fazer isso (e.g., “ Filho de D avi” , 10.47,48; 11.10), m as evitava os m étodos m ilitaristas para efetuar seu reino. O m odelo que ele abraçou foi o da toalha do servo, con- fo rm e pred ito p o r Isaías, e não o da espada do guerreiro. Introdução 46 Temas caracte rísticos47 O u tra razão p o r que Jesus escondeu seu po d er m ilagroso foi que ele sabia que a fé não podería ser coagida p o r um espetáculo (e.g., M t 4.5-7). N ão a visão, m as a percepção na vida e no p ro p ó sito de Jesus podería evocar a verdadeira fé. O conhecim ento salvífico precisa v ir p o r in term édio da sua experiência de Jesus, e não só p o r m eio de fórm ulas e títulos nem pelos re- latos de feitos m ilagrosos. P o r fim , M arcos em prega o tem a do segredo a fim de ensinar que até a cruz Jesus não p ode ser conhecido co rre tam en te p o r quem ele é. O leproso pode ser lim po (1.44), m as Jesus ordena que esse hom em silencie para que não proclam e Jesus m eram ente com o um o perado r de m aravilhas; os dem ônios podem cham ar Jesus de “ Filho de D e u s” (3.11,12), m as Jesus os silencia por- que aqueles que se o p õem a ele não p o d em ser seus m ensageiros; até m esm o o principal apósto lo recebe ordem para silenciar após confessar que Jesus é o C risto (8.30) — não porque ele estivesse errado, m as po rque ele não havia apreendido p lenam ente o sentido de sua confissão. N em podería ter essa com preensão. Só na cruz é que Jesus p ode ser conhecido corretam ente , não apenas com o um grande m estre de m oral ou com o a pessoa m ais nob re que já viveu na face da terra; nem , tam pouco , com o um operad o r de m ilagres ou com o um a resposta a essa ou aquela questão p rem ente do m undo. Jesus, na cruz, é revelado com o o Filho sofredor de D eus, cuja rejeição, cujo sofrim ento e cuja m o rte revelam o triunfo de D eus. Só no G ó lgo ta é que Jesus pode ser corretam ente conhecido com o o D eus incógnito que se revela àqueles que estão d ispostos a negar a si m esm os e a segui-lo nesse discipulado custoso.24 7 .6 A jornada O tem a final no evangelho é o da jornada. U m a citação de Isaías no início descreve o evangelho de Jesus C risto com o “o cam inho” (1.2,3). N a prim eira m etade do evangelho, o cam inho é indeterm inado e está desfocado. Jesus cruza com frequência o m ar da Galileia e, em um a ocasião, faz um a longa e sinuosa jo rnada para as regiões gentias a n o rte e a leste da Galileia. E le está continuam ente em m ovim ento , m as não há destino aparen te para seus m o- vim entos. Só nos limites mais longínquos de Cesareia de Filipe (8.27) é que as andanças na Galileia se fundem em um objetivo focado que determ ina a estru tura do restan te do evangelho. Ali P edro declara que Jesus é o Messias, e Jesus, daí em diante, volta sua face para Jerusalém e dirige seus passos para essa cidade. “ N o cam inho” to rna-se o refrão tem ático da segunda m etade 24 Sobre a ordem para silenciar, veja mais adiante em 1.34. 48Introdução do evangelho (8.27; 9.33,34; 10.17,32,52; 11.8). “N o cam inho” , Jesus declara p o r três vezes a necessidade de ir para Jerusalém para sofrer rejeição e ser executado para, p o r fim, ser levantado dos m ortos (8.31; 9.31; 10.33,34). “N o cam inho” está não só o destino de Jesus, m as tam bém o destino de seus dis- cípulos (10.32,52). O “ cam inho” ou jornada, p o rtan to , descreve o cam inho que Jesus precisa seguir e o cam inho que os discípulos têm de seguir se for para am bos cum prirem o p lano de D eus. 8. A E S T R U T U R A N A R R A T IV A O evangelho de M arcos divide-se naturalm ente em duas m etades: a pri- m eira diz respeito ao m inistério de Jesus na Galileia (1.1— 8.26); e a segunda, à jo rnada para Jerusalém e sua paixão ali (8.27— 16.8). A prim eira m etade com eça com a declaração do p rop ó sito do evangelho (1.1), seguida pela aparição de Jo ão Batista (1.2-8) e o batism o de Jesus (1.9-11). A ten tação no deserto é m encionada, m as não de fo rm a elaborada (1 .1 2 ,1 3 ),ea in trodução conclui com um a breve m ensagem de Jesus: “ Ό tem po é chegado’, dizia ele. Ό R eino de D eus está próxim o. A rrependam -se e creiam nas boas-novas!’ ” (1.14,15). A seguir, há um a série de treze vinhetas cu idadosam ente elaboradas que descrevem Jesus com o m estre e aquele que cura e expulsa dem ônios em C afarnaum e em suas cercanias, em geral em conflito com as autoridades judaicas (1.16— 3.25). O capítulo 4 é um a reunião seleta de parábolas de Jesus, a m aioria das quais sobre sem entes em crescim ento. M arcos re tom a o m inistério de Jesus com o um p regador ao ar livre e aquele que efetua curas em 4.35— 8.26. A oposição a Jesus p o r parte de H erodes A ntipas e dos líderes religiosos judeus o força a sair da Galileia e em barcar em um a jornada sinuosa nas regiões gentias da Fenicia e Decápolis. O s gentios, os “de fora” , d em onstram notável abertu ra a Jesus e aceitação dele e do evangelho, ao passo que “o g ru p o dos que p ertencem a seu círculo ín tim o” , em especial os discípulos, são tão em pedern idos quan to os líderes religiosos, em bora sem qualquer in tenção m aldosa. A segunda m etade do evangelho com eça em 8.27 com Jesus já n ão mais circundando o m ar da Galileia, mas “no cam inho” para Jerusalém . O cam inho para Jerusalém com eça com a confissão de P edro em Cesareia de Filipe. Jesus pergunta a seus discípulos: “ Q uem o povo diz que eu sou?” (8.27). Pedro responde: “Tu és o C risto” (8.29). Jesus choca seus discípulos ao explicar que o C risto tem de sofrer e m orrer; e ainda mais, que quem desejar ser seu A estrutura narrativa49 discípulo tem de estar p reparado para o d iscipulado (8.31— 9.1). U m a glo- riosa transfiguração de Jesus se segue a esse p ronunc iam en to terrível, o que m ostra que o Pai no céu confirm a o papel de Jesus com o o F ilho sofredor do hom em (9.2-13). A narrativa, depois de Cesareia de Filipe, é direcionada de fo rm a resoluta para Jerusalém . “N o cam inho”, Jesus prediz p o r três vezes o sofrim ento, m orte e ressurreição im inentes (8.31; 9.31; 10.33,34). As grandes m ultidões que o buscavam na Galileia o abandonam , e Jesus foca o ensino de discipulado para os D oze: “ [...] quem quiser to rnar-se im p o rtan te en tre vocês deverá ser servo; [...] Pois nem m esm o o Filho do hom em veio para ser servido, m as para servir e dar a sua v ida em resgate p o r m uitos” (10.43,45). E m b o ra Jesus entre em Jerusalém com o um celebrado peregrino (11.1-10), M arcos aponta para a ru p tu ra de Jesus com a Cidade Santa p o r m eio de sua partida no tu rn a para Betânia, fora de Jerusalém (11.11) e p o r seu julgam ento sobre o tem plo (11.12-21). O s capítulos 11— 13 con têm um a série de testes e arm adilhas no tem plo e em seus arredores, a m aioria dos quais evidencia a hostilidade do Sinédrio para com Jesus e a co rresponden te rejeição do tem plo p o r Jesus. N o capítulo 13, a destru ição do tem plo se transfo rm a em um sím bolo para a angústia que assolará os fiéis antes do D ia do S enhor e o re to rn o do Filho do hom em . O s capítulos 14— 15 englobam o cerne do relato da paixão. U m a solene últim a ceia com os discípulos é p reparada em m eio às intrigas e à traição, não só pelos adversários judeus e rom anos, m as até m esm o p o r seus discípulos. U m a prisão clandestina com duas audiências, um a pelo Sinédrio judaico (14.53-72) e ou trap o r Pôncio Pilatos, o governador rom ano (15.1-20). A ênfase na cena da crucificação é mais em seu ab andono (até m esm o p o r D eus, 15.34) e na zom baria de seus adversários que no sofrim ento físico de Jesus. U m centurião gentio , n o m o m en to da m o rte de Jesus, confessa Jesus com o Filho de D eus (15.39). A derro ta , p o r conseguinte, é transfo rm ada em vitória quando o Filho de D eus é revelado no sofrim ento. A form a mais antiga do evangelho term ina com um anúncio feito p o r anjos em que proclam am a ressurreição (16.1-8); um final secundário p osterio r inclui várias aparições do Jesus ressu rreto (16.9-20). capítulo um O Evangelho aparece em Pessoa M A R C O S 1 .1 1 3 ־ A C H A V E P A R A M A R C O S (1.1) O s escritos da A ntiguidade no rm alm en te com eçam com um a dedicação form al descrevendo o p ropósito do livro ou com um a linha de abertu ra tra- tando do prim eiro assunto d iscutido.’ A in trodução form al do evangelho de Lucas e do livro de A tos segue o prim eiro padrão. O evangelho de M arcos com eça da segunda m aneira: “ Princípio do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de D eu s” (1.1). Se M arcos tivesse a in tenção de seu trabalho ter um título, seria esse. A prim eira palavra de M arcos — com o em G ênesis, Oseias e o evangelho de Jo ão — é apenas “P rincíp io” . M arcos sem dúvida a escolheu com o um lem brete da atividade de D eus na história: no princíp io D eus criou o m undo; assim , tam bém , a era do evangelho é m anifesta quando o Filho de D eus se to rn a um ser hum ano em Jesus Cristo. A palavra grega traduzida por “princíp io” , archê, p o d e incorporar dois sentidos: p rim eiro na ordem da sequência tem poral, ou prim eiro em term os de origem ou princípio. E com esse últim o sen tido que o te rm o é usado aqui, um a vez que M arcos tem a intenção que to d o o evangelho, e não apenas sua abertura , seja incorporado por archê. O te rm o “princíp io” , p o rtan to , identifica n a palavra inicial do evangelho a autoridade de quem o evangelho se origina, o p róp rio D eus, o autor e orig inador de tudo que existe.1 2 L ohm eyer está co rre to em dizer que 0 term o “princíp io” assinala o “ cum prim ento da palavra eterna de D eu s” .3 Para M arcos, a in trodução de Jesus não é m enos g randiosa que a criação do m undo, pois, em Jesus, um a nova criação está à mão. 1 H. Koester, A ndent Christian Gospels (Philadelphia: Trinity Press International; London: SCM Press, 1992), p. 14. 2 R. P. M artin, New Testament Foundations (G rand Rapids: Eerdm ans, 1975), 1.27. 3 E. Lohmeyer, Das Evangelium des Markus, p. 10. 52M arcos 1.1 O evangelho d o qual M arco s fala n ão é u m livro , c o m o a c o n te c e em M ateus (1.1, “ R eg istro [gr. biblos] d a genealog ia d e Jesu s C risto , filho d e D av i, filho d e A b ra ã o ”). A n tes , p a ra M arco s , o ev an g e lh o é a h is tó ria d a salvação em Jesus. A p a lav ra p a ra “ e v a n g e lh o ” (gr. euangelion) significa p ra tic a m e n te “ b o a s-n o v a s” . O te rm o euangelion, ta n to n o A n tig o T e s ta m e n to q u a n to na lite ra tu ra g reg a , e ra c o m u m e n te u sa d o p a ra re la to s d e v itó rias n o c a m p o de bata lha . Q u a n d o o s filisteus d e r ro ta ra m as tro p a s de Saul n o m o n te G ilb o a , “ env ia ram m en sag e iro s p o r to d a a te rra d o s filisteus p a ra p ro c la m a r a n o tí- cia (euangeligesthai) [ . . .] n o m eio d o seu p o v o ” (IS m 31.9; veja ta m b é m 2S m 1.20; 18.19,20; l C r 10.9). O m en sa g e iro que tro u x e esse re la to e ra o p o r ta d o r d a “ b o a n o tíc ia” (2Sm 4.10; 18.26). O te rm o , e n tre o s g reg o s , ta m b é m era u sad o p a ra a v itó ria n a b a ta lh a , c o m o ta m b é m p a ra o u tra s fo rm a s d e bo as no tíc ias. E m 9 a.C ., n a d é c a d a d o n a sc im e n to d e Jesu s , o an iv ersá rio de C ésar A u g u s to (63 a .C .-14 d .C .) fo i ac lam ad o c o m o euangelion (pl.). U m a vez q u e C ésar A u g u s to e ra ac lam ad o c o m o u m deus, seu “ an iversá rio assinalava o in íc io das B o a s-N o v a s p a ra o m u n d o ” .4 * N o m u n d o g re c o -ro m a n o , essa p a lav ra se m p re ap arece n o p lu ra l, c o m o se n tid o d e u m a b o a n o v id a d e e n tre ou tra s ; m as n o N o v o T e s ta m e n to euangelion aparece ap en as n o singular: a b o a no tíc ia d e D e u s em Jesu s C risto , e a lém d essa b o a -n o v a n ã o h á n e n h u m a o u tra .’ O c o n c e ito d e “ b o a s -n o v a s” , n o e n ta n to , n ã o se lim itava às v itó rias 4 Retirado da inscrição do calendário de Priene; citado em A. Deissmann, Light from the Ancient East, trad. L. Strachan (London: Hodder and Stoughton, 1927), p. 366. O mundo greco-romano honrava seus heróis ao elevá-los à posição similar à de um deus. O culto em torno de César Augusto tinha particularmente esse viés. Acreditava-se que Augusto, de acordo com a lenda popular, fora concebido por uma serpente (a qual representava o espírito de um deus; veja Suetônio, Lives of the Caesars, “The Deified Augustus”, p. 94). Seu reino foi celebrado como o cum- primento de urna era dourada, conforme sugere o seguinte encomio: “A natureza imortal e eterna de todas as coisas graciosamente concedidas ao maravilhosamente bom César Augusto para realizar as boas ações em abundância para os homens a fim de que pudessem desfrutar da prosperidade da vida. Ele é o pai de sua divina terra natal, Roma, herdada de seu pai Zeus, e um salvador das pessoas comuns. Sua presciência não só cumpriu as súplicas de todos os povos, mas os sobrepujou, tra- zendo paz à terra e ao mar, enquanto as cidades floresciam com ordem, harmonia e bons tempos; a produtividade de todas as coisas é boa e em seu pleno vigor, há esperanças extremosas para o futuro, e boa vontade durante o presente que enche todos os homens, de forma que devem produzir os sacrifícios agradáveis e hinos” (citado H. Kleinknecht, PANTEION: Religiose Texte des Gñechentums [Tubingen: Mohr, 1959], p. 40). -G. Stanton, Aula inaugural como professor do Novo Testamento de Lady Mar י garet, Cambridge, England, 27 de Abril de 2000. M arcos 1.153 políticas e m ilitares. N o p ro fe ta Isaías, o u so d e “ b o a s -n o v a s” é tra n sfe rid o para ir ru p ç ã o d e D e u s em seu a to salv ífico final q u a n d o a p az , as b o as-n o v as e lib e rtação d a o p re ssã o se rão d e rra m a d as so b re o p o v o d e D e u s (Is 52.7; 61.1-3). P a ra M arco s, o a d v e n to d e Je su s é o p rin c íp io d o c u m p rim e n to das “b o a s-n o v a s” an u n c iad as p o r Isaías. Se M arcos, c o m o p arece provável, é o p rim eiro evangelista, en tão ele tam - bém inaugura u m n o v o g ên e ro literário n a aplicação d o te rm o “ evangelho” à vida e m in isté rio d e Jesus C risto .6 P ara M arcos, o evangelho se re fere ao cum - p rim en to d o re ino e salvação d e D e u s n a p len itu d e d o te m p o (Is 52.7; 61.1). A aparição d e Jesu s n a G alileia traz o alvorecer d e u m a n ova ép o c a q u e exige a rrep en d im en to e fé. O reg istro escrito d a v ida d e Jesu s fe ito p o r M arcos é em si m e sm o c h am ad o d e evangelho, e, p o rta n to , esse m e sm o Jesu s que v en ceu o sepu lcro n a ressu rre ição d e n tre o s m o rto s é ago ra o S e n h o r v ivo em operação na igreja e n o m u n d o , ch am an d o as pessoas à fé n o evangelho. N a com p reen são de M arcos, p o r ta n to , o evangelho é m ais que u m c o n ju n to d e verdades o u u m co n ju n to d e crenças. É u m a pessoa, o “evangelho d e Jesu s C ris to ” .7 O re ino que D eus inaugu ra e stá c o rp o ra lm e n te p re se n te e m Jesu s d e N azaré . 6 “Evangelho” , euangelion, é uma palavra frequente em Marcos e uma de suas favoritas, com sete ocorrências em Marcos, e apenas quatro em Mateus, e nenhuma em Lucas e João nem na fonte hipotética de ditos “Q ”. Marcos, portanto, não só é o primeiro a aplicar a compreensão do “evangelho” a Jesus, mas ele também é o primeiro a inventar o gênero “evangelho” para descrever a vida e m orte dele. Veja Martin, New Testament Foundations, 1.23-27. 7 W. Marxsen observa corretamente que Jesus Cristo pode ser substituído por “evangelho” e, além disso, que “evangelho”, conforme empregado por Marcos, é um título ou descrição para toda a narrativa de Jesus do batismo até sua morte e ressurreição (veja M ark the Evangelist, trad. J. Boyce, D. Juel, W. Poehlmann e R. Harrisville [Nashville/New York: Abingdon Press, 1969], p. 130-31). Marcos dificilmente pode ser considerado uma coletânea de ditos (e.g., fonte hipotética de ditos “Q ”) nem uma mera descrição de Jesus como um mero mestre de sabedoria (e.g., o Evangelho de Tomé ou muitos documentos gnósticos de Nag Hammadi), mas deve ser visto como um “evangelho” no sentido em que ele introduziu esse termo na tradição sinótica. Tampouco, a igreja primitiva o consideraria assim, pois para ela os quatro evangelhos eram versões (e.g., “segundo Mateus” , “segundo Marcos”) de um evangelho (veja M. Hengel, Studies in the Gospel o f M ark, trad. J. Bowden [London: SCM Press, 1985], p. 65). Em uma crítica do Jesus Seminar sobre esse ponto, N. T. Wright observa corretamente que “chamar [o Evangelho de Tomé e Q] ‘evangelhos’ obscurece a diferença óbvia de gênero entre eles e os quatro comumente assim denominados” (“Five Gospels but N o Gospel: Jesus and the Seminar”, em Authenticating the Activities o f Jesus, ed. B. Chilton e C. Evans, NTTS 28 /2 (Eiden, Boston, Koln: Brill, 1999), p. 92. 54M arcos 1.1 Je su s , cu jo n o m e em h e b ra ic o é u m a v a rian te d e “Y e h o sh u a ” (p o rt. “Jo su é ”) e cu jo sen tid o é “D e u s é salvação” , é de fin id o n o p ró lo g o d e M arcos c o m o o “ C ris to ” e o “ F ilho d e D e u s” . (Veja os excursos so b re Cristo em 8.29 e so b re Filho de Deus em 15.39.) O F ilh o d e D e u s é um títu lo m ais c o m p le to p a ra a p esso a e m issão de Jesus q u e M essias, e é o títu lo de p rim eira o rd e m para Jesus d a d o p o r M arcos, a p rinc ipa l a rtéria d o evangelho .8 A frase “ P rinc íp io d o evangelho d e Jesu s C risto , o F ilho d e D e u s” (1.1) é o p ró lo g o , n a verd ad e a sen tença tóp ico , d o evangelho de M arcos. P o d e ser até m esm o co n sid e rad o o títu lo d o evangelho , d esd e que n ã o esteja d issociado d o que se segue, c o m o a co n ex ão c o m Jo ã o B atis ta n o v ersícu lo 2 evidencia. N o v ersícu lo 1, M arco s dec lara o c o n te ú d o essencia l d e euangelion, c o m o “ b o a s-n o v a s” . O ev an g e lh o d e M arcos, p o r ta n to , n ã o é u m a h is tó ria d e m is té rio em q u e o s le ito res têm d e ju n ta r as p eças aqu i e ali p a ra d e sc o b rir seu sen tid o ; n e m é u m a c rô n ica e n fa d o n h a d e d a tas e lugares sem p ro p ó s ito o u re levância, n e m ta m p o u c o é reduzíve l a u m m e ro sis tem a d e p e n sa m e n to . A n tes , M arco s, d esd e o início, a n u n c ia q u e o c o n te ú d o d o ev an g e lh o é a p esso a d e Jesu s, o C ris to e F ilh o 8 Veja O. Hofius,“IstJesus der Messias? Thesen”,/A7/Í1993) 8 ׳), p. 117, que enfatiza com correção que “Messias” designa o agente humano, ao passo que “Filho de Deus” é um termo mais plenamente metafísico que designa a divindade de Jesus Cristo: “O título metafísico ‘Filho de Deus’ que aparece como um título de exaltação para Jesus no Novo Testamento pressupõe a comunhão essencial e original de Jesus com Deus e com sua divindade preexistente (Gottsein)” (itálico no original). “Filho de Deus” é omitido em dois manuscritos uncíais de peso, Sinaítico (séc. IV) e Koridethi (séc. IX), embora o mero número, variedade e peso dos manuscritos apoiem essa inclusão em 1.1. Contra sua autenticidade temos o fato de que os escribas com frequência sucumbiam à tentação de expandir títulos e quasitítulos dos livros. Além disso, é difícil explicar por que um escriba omitiría um título tão importante, se estivesse no original. Em favor de sua autenticidade, por sua vez, está a possibilidade do equívoco dos escribas na cópia devido à similaridade das terminações do genitivo das quatro palavras precedentes. Ainda, “Filho de Deus” desempenha um papel essencial na cristologia de Marcos e está presente em pontos críticos do evangelho (batismo, 1.11; expulsão de demônios, 3.11; 5.7; transfiguração, 9.7; julgamento de Jesus, 14.61; e em especial a confissão do centurião, 15.39). A evidência e propósito geral do manuscrito de Marcos parece argumentar em favor da originalidade do “Filho de Deus” em 1.1. Veja B. Metzger, TC G N T, p. 73. N. Perrin (“The Christology o f Mark: A Study in Methodology”, em A Modern Pilgrimage o f New Testament Christology [Philadelphia: Fortress, 1974], p. 115) observa o seguinte: “se [o título] não fizesse parte do sobrescrito original, ele deveria estar lá, e o escriba que o adicinou pela primeira vez era marcano em propósito, se não em nome”. M arcos 1.2-355 de D eus. É um a breve confissão de fé, o sen tido da qual se desenrolará só à m edida que o leitor seguir a apresentação de Jesus no evangelho de M arcos. J O à O B A T IS T A : O P R E C U R S O R D E J E S U S (1.2-8 ) 2,3 O evangelho de M arcos foi escrito para os rom anos gentios. M arcos, o que é bastan te com preensível, faz p o uco uso das citações do A ntigo Tes- tam ento , um a vez que os textos de com provação da profecia hebraica não alcançariam o grau de autoridade com as audiências gentias que alcançariam e alcançavam com as audiências judaicas. É ainda mais notável, p o r conseguinte, que M arcos com ece sua h istória com um a referência ao A ntigo Testam ento. A citação é in troduzida com um a fórm ula autoritativa com um no m undo g reco-rom ano e no judaico: “ C onfo rm e está escrito” (gr. kathõsgegraptaí). N o m undo helenista a fórm ula aparece frequen tem ente em in troduções às leis ou às declarações com força legal. N o A ntigo T estam ento , ela reivindica a influência norm ativa sobre os ouvintes ou leitores ao designar a autoridade de D eus, da Torá, do rei ou do p rofeta.9 A citação de 1.2,3 é identificada com o provenien te do p ro feta Isaías, em- bora seja de fato um a com binação de três passagens do A ntigo T estam ento .10 * A referência ao envio do m ensageiro no versículo 2 segue a prim eira m etade de Ê xodo 23.20 e de M alaquias 3.1, em bora não exista um a con traparte exata no A ntigo T estam ento à ú ltim a m etade do versículo 2 (“ele p reparará o teu cam inho”). A m aior parte da com binação de textos aparece no versículo 3 que reproduz Isaías 40.3 de fo rm a p raticam ente exata. O tex to de Isaías 40.3 é ci- tado pelos quatro evangelhos com referência a João Batista com o o precursor de Jesus (M t 3.3; M c 1.3; Lc 1.76; Jo 1.23). A citação de Isaías no versículo 3 foi considerada com o o elem ento defin idor dessa com binação de citações.11 O todo, p o rtan to , é atribuído a Isaías, considerado o m aio r dos profetas e cuja autoridade na igreja prim itiva suplanta a de Ê x o d o e a de M alaquias.12 9 G. Schrenk, “grapbõ”, T D N T \ .747-49. 10 Vários dos m anuscritos uncíais (A K P W Π) atribuem a citação nos w . 2,3 aos “profetas” , em vez de específicam ente a Isaías. E ssa m udança pode ser explica- da pelo desejo de copistas posterioresde criar um a fórm ula introdutória mais abrangente, um a vez que a citação nos w . 2,3 é um a combinação. A atribuição da citação a Isaías é mais firm em ente atestada, no entanto, e deve ser preferida. Veja Metzger, TC G N T, p. 73; e E. Hoskyns e N. Davey, The Riddle o f the New Testament (London: Faber and Faber, 1958), p. 44-46. "S tr-B 2.1. 12 Sobre as citações do Antigo Testam ento nos w . 2,3, veja J. Marcus, The Way o f the Lord (Edinburgh: T. & T. Clark, 1992), p. 12-17, que argumenta que a composição se origina de Marcos. 56M arcos 1.2-3 T an to no T M quan to n a LX X , “n o dese rto ” designa o locai onde D eus preparará o cam inho para seu povo; p o r conseguinte, “ U m a voz clama: ‘N o deserto preparem o cam inho para o Se n h o r ’ ” (Is 40.3). O s M M M , seguin- do essa com preensão , citam o versículo na justificação da fundação de um a com unidade da T orá longe dos “ hom ens do pecado” (= Jerusalém ) n a estepe ou deserto de C unrã (1QS 8.14). M arcos, no entanto , alinha a expressão “ no d eserto” com o m ensageiro (“voz do que clam a no dese rto ”), em vez do lugar da preparação de D eus, co n fo rm ando-se desse m o d o com a aparição de João B atista no deserto da Judeia. A citação apresenta João B atista com o o “m ensageiro” enviado à frente, a “voz do que clam a no d eserto” (1.2,3). A tarefa de João é “preparfar] o cam inho” para aquele que viria a seguir. E m Ê x o d o 23.20,23, o “an jo” que liderará o povo não é um guia hum ano nem m esm o M oisés, m as um m ensageiro divino do S enhor (Yahmh). Apli- car esse tex to a Jo ão Batista indica m ais que a alta estim a que M arcos tinha p o r Jo ão Batista; indica seu p rop ó sito d ivinam ente ordenado. A passagem de M alaquias (tam bém M l 4.5,6), da m esm a form a, identifica o p reparado r do cam inho com Elias que, de acordo com 2Reis 2.11, não m orreu , m as foi a rrebatado para o céu em um carro de fogo. H avia um a expectativa m uito d ifundida n o judaísm o de que Elias re to rnaria com o o p recu rso r do reino escatológico de D eus no dia final.13 P ressupõe-se com frequência que Elias, a quem M arcos aqui identifica com João Batista, seria o p recu rso r do Messias. Todavia, nos textos judaicos pré-cristãos, preservados no A ntigo T estam ento e na literatura in tertestam entária, Elias prefigura a aparição do p ró p rio D eus, não do M essias.14 E sse fato eleva de fo rm a considerável a im portância da citação do A ntigo T estam ento em 1.2,3. N a citação, vários dos p ronom es e a frase “ o cam inho para o Senho!<** (grifo do autor) referem -se a D eus. M arcos, no en tan to , aplica esses textos a Jesus. Isso indica que João B atista não só é o m ensageiro do Messias, m as do próprio D eus, aparecendo em Jesus de Nazaré. A passagem 1.2,3, p o r consegu in te , ap resen ta Jo ão B atista co m o o p recu rso r de Jesus div inam ente ordenado , e Jesus com o a m anifestação de D eus. A citação tem ainda o efeito de ligar a vida e m inistério de Jesus com o A ntigo T estam ento. Jesus não é um a ideia tardia de D eus, com o se um p lano de salvação an terio r tivesse dado errado. A ntes, Jesus está em continuidade com o trabalho de D eus em Israel, o cum pridor da lei e dos profetas (M t 5.17). 13 Ml 3.1; Sir 48.10; Pseudofílon, Bib. A n t. 48:1; 4E d 6.26; Sib. O r 2:187-89; Apoc. E lias 5.32,33; 4Q558. 14 M. Òhler, “T he Expectation o f Elijah and the Presence o f the Kingdom o f G o d ”, J B L \\% (1999),p. 641-76. M arcos 1.457 A com binação das citações do A ntigo T estam ento feita na in trodução não só liga a pessoa e m inistério de Jesus de m o d o inseparável com a revelação precedente de D eus no A ntigo T estam ento , m as tam bém to rn a a pessoa e m inistério de Jesus não com preensíveis à parte dela. D a perspectiva teológi- ca cristã, isso une o N o v o T estam ento de fo rm a única e inseparável com o A núgo T estam ento . O evangelho é com preensível apenas com o a conclusão de algo que D eus com eçou na h istória de Israel. Isso exclui a possibilidade de os cristãos desprezarem ou dim inuírem a im portância do A ntigo Testam ento, ou de ten tarem “p urgar” o evangelho das origens e do con tex to judaicos. U m segundo efeito dessa com binação de citações é que ela oferece um a pista para a com preensão da pessoa de Jesus. O u tro aspecto im portantíssim o é que as citações, com seus contex tos do original hebraico se referem direta ou indiretam ente ao S enhor (Yahrnh), são aqui aplicadas a Jesus. A citação de abertura de M arcos transfere o cum prim ento do reino escatológico de D eus de m odo sutil, m as direto, para jesus. O fundam en to que define e caracteriza a influência de Jesus ao longo de todo o evangelho — em que Jesus de fo rm a despretensiosa, m as autoritativa, une seu cam inho ao cam inho de D eus; sua obra com a ob ra de D eus; sua pessoa com a pessoa de D eus — já aparece em 1.2,3.'י־ P o r fim , a com binação de citações fornece um a pista para a natureza do m inistério de Jesus. H á três ocorrências das palavras “ cam inho” e “veredas” em 1.2,3. A referência inicial ao “ evangelho de Jesus C risto” (1.1) é, p o rtan - to, um caminho (cf. A t 9.2). A história de Jesus, desde o início da narrativa, direciona seus ouvintes a algo prático e tran sfo rm ad o r — e não à m etafísica e m isticism o, nem às regras e sistem as éticos — um caminho de salvação via- bilizado p o r D eus. M arcos resum irá e refinará esse tem a na segunda m etade do evangelho em que a expressão “ no cam inho” direciona Jesus — e seus discípulos — ao cum prim ento de sua m issão em Jerusalém . E m M arcos, o caminho de D eus é derradeiram ente o cam inho de Jesus para a cruz. 4 João Batista, apenas com o um a conjunção seguindo a citação, aparece em 1.4.15 16 A im ediação da apresentação de João Batista o identifica com o o 15 Marcus, The Way of lhe Lord, p. 31-41, vê corretamente a importação cristológica da abertura mosaica do Antigo Testamento. “O caminho para o Senhor” não é basicamente uma referência ao comportamento ético, mas à presente irrupção de Deus em Jesus. Marcos, portanto, assinala que onde Deus agiu anteriormente, Jesus age agora. 16 A tradição manuscrita está dividida quanto ao v. 4, se baptism (“batizando”) deve ser com artigo definid() ou sem artigo definido, ou seja, se é um título de João 0 58M arcos 1.4 m ensageiro da preparação para Jesus. A descrição de Jo ão nos versículos 4-8 está m ais focada e m ais definida que o re trato de João B atista nos ou tros evangelhos. O m itidos em M arcos estão as circunstâncias m aravilhosas do nascim ento de Jo ão (Lc 1), seu desafio am eaçador às escolas farisaicas e sa- duceias do judaísm o (M t 3.7-10; Lc 3.7-9) e seu clam or pela re fo rm a social (Lc 3.10-14). M arcos restringe seu retrato de João a um único tem a, descrever João Batista com o aquele que cum priu o papel apo teó tico de Elias com o o p recursor do “mais p oderoso” (1.7), cujas sandálias ele era indigno de desatar. João Batista, com o Elias (lR s 17.2,3), é identificado com o deserto — as terras estéreis e vastas de Judá, assoladas pelo ven to e calor. O deserto rep resen ta repetidas vezes um local de arrepend im en to na h istória de Israel e, p o r conseguinte, um lugar da graça de D eu s.17 O deserto , dos p rim ordios de Israel, é o local o n d e D eus traz a libertação para seu povo, p rim eiro no deserto do Sinai após o êxodo (Ex 15.22ss) e, daí em diante, em um deserto sim bólico de esperança proclam ada pelos profetas (Jr 2.2,3; O s 2.14ss.). A aparição de João Batista no deserto cum pre p ro tó tipos proféticos e m osaicos: é um a nova encenação do p o d ero so evento inaugural da história de Israel em Ê xodo e também cum pre as prom essas dos profetas, um a vez que “ toda a região próxim a ao Jo rd ã o ” (Lc 3.3) frequentada p o r João Batista é preci- sám ente a região associada com Elias (2Rs 2.6-14). João reúne as pessoas tirando-as de suas rotinas, do co n fo rto dos dom icílios u rbanos e em especial da hegem onia estatu tária do tem plo de Jerusalém , “ p regando um batism o de a rrepend im en to para o perdão dos pecados” no deserto. João Batista, com o um sím bolo de regeneração m oral e espiritual, cha- m a as pessoas ao batismo. A palavra grega para “batism o” , da raiz baptein, significa “ afundar to talm ente, m ergulhar ou subm ergir” . As origens precisas do batism o são obscuras, em bora os rituais de banhos sagrados e os rituais de lavagem sejam conhecidos em to d o o O rien te P róxim o da A ntiguidade.18 O judaísm o pré-cristão concordava com a necessidade de arrepend im ento antes do fim dos dias {eschatori) quando D eus purificaria seu povo p o r m eio do E sp írito Santo (Jub. 1.22-25). A pesar de o mikwa’ot (ritual de lavagem an- tes da adoração) ser um elem ento constitu tivo do judaísm o (veja m. Miqwà) Bateador ou uma descrição dele batizando no deserto. A última opção é a leitura preferida uma vez que (1) tem o apoio manuscrito mais diverso e mais vigoroso e (2) porque “o Batizador” pode ser explicado como uma assimilação a passagens como 6.25 e 8.28. Veja Metzger, TCGNT, p. 73. 17 U. W. Mauser, Christ in the Wilderness, SBT (London: SCM Press, 1963), p. 46-52. 18 A. Oepke, “baptõ”, TD N T\.528-29. M arcos 1.459 e de haver algum as evidências para o batism o dos prosélitos n o judaísmo, o principal exem plo do ritual de lavagens no judaísm o deriva-se da com u- nidade da aliança ou concerto em C unrâ, p róxim o do m ar M orto , onde a purificação diária sim bolizava a purificação escatológica de D eus. “ [Deus] respingará sob re ele o espírito da verdade co m o a água purificadora (a fim de purificá-lo) de todas as repugnancias do engano e da p rofanação do espírito im undo” (1QS 4.21-22). H á m uitos debates se, e até que pon to , o batism o de João reflete esses vários precursores de rituais com água. O batism o de João, de m uitas maneiras im portantes, difere do que conhecem os do batism o do prosélito e das lavagens em Cunrã. O batism o de Jo ão — de fo rm a distin ta do ritual de mikwa’ota dos banhos em C unrã, um a vez que estes eram autolavagens — era adm inistrado para (נ pen iten te p o r Jo ão com o um segundo partícipe. A lém disso, o batism o do p rosélito e as lavagens em C unrã eram rituais de iniciação nas com uni- dades de fé, ao passo que o batism o de João significava renovação espiritual e m oral. O s acadêm icos, p ressu p o n d o que Jo ão batizava nos arredores da com unidade de C unrâ, supõem em geral que João ou estava associado com os essênios ou foi influenciado p o r eles.19 N o en tan to , fundam entados na escassa evidência que tem os, parece que João batizava um pouco mais a norte no rio Jordão , p e rto da Galileia (veja a n o ta 23 abaixo). N ão há, além disso, nenhum a evidência no N o v o T estam ento de que Jo ão estava associado com a com unidade de Cunrã; e, caso ele estivesse, os costum es deles deixaram um traço reduzido em seu m inistério. C onsiderando-se as diferenças en tre o batism o de Jo ão e os rituais de lavagem judaicos em geral, é questionável se o batism o de João b ro ta de algum costum e dos essênios de Cunrã. Parece pro- vável que o batism o de João lem bre e reviva a aliança fundam ental com Israel no Sinai em que to d o o povo era reun ido para ser um “re ino de sacerdotes e um a nação san ta” (Êx 19.6; 23.22; tam bém lP e 2.9). E ste era o ideal único e peculiar (“teso u ro pessoal” , Ê x 19.5, heb. segullah) de toda a nação de Israel desde seus prim ordios, e não apenas do sacerdócio descendente de Arão. Os israelitas dem onstravam a aceitação de seu relacionam ento com D eus 19 Os prós e os contras à influência de Cunrã sobre João Batista são discutidos em O. Betz, “Was John the Baptist an Essene?” BRev 6 /6 (1990), p. 18-25. Betz acredita que João Batista foi educado em Cunrã, sendo muitíssimo influenciado por esse contato, mas que, mais tarde, ele abandonou essa facção para pregar para uma comunidade mais ampla de judeus. A associação de João com Cunrã, no entanto, continua conjectural, e as diferenças entre João Batista e os essênios são mais numerosas e mais impressionantes que as similaridades. 60M arcos 1.4 fundam entado na aliança ou concerto p o r m eio da lavagem das roupas e da purificação deles m esm os antes de en trarem na aliança no Sinai (Êx 19.10). E ssa lavagem sim bolizava a transfo rm ação m oral e espiritual necessária para en tra r n o relacionam ento com D eus fundam entado n o concerto ou afiança. O “ batism o de a rrepend im en to” de Jo ão destinado a todos os judeus (e não apenas para a elite religiosa) co rresp o n d e favoravelm ente aos elem entos essenciais da preparação para o dia do Senhor na afiança original do Sinai. A chave para com preender o batism o de João é que ele éproclamado, o que significa que é um a ação de D eus, em oposição a um a m era ação hum ana.2“ É tan to um a dádiva divina q u an to um a oportun idade divina realizada p o r in term édio do arrependim ento . O “arrep en d im en to ” (gr. metanoia) é um a palavra com posta com o sen tido de “ m udar a m en te da pessoa” ou “ alterar o en tend im en to de alguém ”, cono tando , p o rtan to , decisão racional e ato deliberado em oposição ao sen tim en to em otivo. Todavia, a etim ologia gre- ga da palavra precisa ser argum entada pelo conceito de a rrepend im en to e conversão no A ntigo T estam ento , em particular nos profetas, se fo r para o cham ado de Jo ão ao a rrepend im en to ser apreciado.21 O arrepend im en to era a m ensagem de Jo ão Batista reduzida a um a palavra. E le exige, de acordo com o breve relato de M arcos n o versículo 4, dar as costas para o pecado, e tam bém , de acordo com M ateus 3.8 e Lucas 3.8, um sinal o u “ fru to ” , talvez o batism o com água, m as mais provavelm ente a transform ação m oral. A cim a de tudo, o cham ado de João ao arrependim ento é mais urgente que aquele dos profetas; é a única atitude necessária para p reparar o povo para o julgam ento im inente de D eus. Tam pouco, o cham ado de João ao arrependim ento pode ser com partim entafizado. Im plica a totalidade da vida da pessoa, e não é apenas para pecadores no tó rio s (Lc 3.12,13) ou gentios (Lc 3.14), m as até m esm o para os judeus justos (M t 3.7-10).22 Josefo , na única referência ao batism o de João fora do N o v o T estam ento , salienta a in tenção da re fo rm a ineren te 211 \ eja Lohmeyer, D׳ as Evangelium des M arkus, p. 13-15; e Marcus, The W ajof theLord, p. 18-31, que argum enta que, no N ovo Testam ento, o objeto do verbo kêryssein (“proclam ar”) é um a ação de Deus. 21 Metanoia e metanoeõ não ocorrem com frequência na LXX, em geral com o um a tradução de naham, “lam entar” ou “sentir rem orso” . As condições da pregação para o arrependim ento de João Batista, em particular com o preservadas po r M ateus 3.7-10 e Lucas 3.7-9, revelam um padrão mais rem iniscente do hebraico J'hub, “voltar” , que ocorre mais de mil vezes no TM. 22 H. Merklein, “metanoia’’, E D N T 2 A \5 -\9 ■ J. Behm, “metanoeõ”, 7D A T 4.1 .000- 1.001. M arcos 1.5-661 ao cham ado de João ao arrependim ento . “ [João] exortou os judeus a levar um a vida justa, a p raticar justiça em relação a seus cam aradas e p iedade em relação a D eus, e, ao fazer isso, juntar-se ao batism o” (Ant. 18.116-18). O batism o em tal estado de re fo rm a m oral alcançava, nas palavras de M arcos, “o perdão dos pecados” . 5 M arcosnão diz exatam ente on d e Jo ão batizava ao longo do rio Jor- dão, em bora vários fatores sugiram a região im ediatam ente a sul do m ar da Galileia.23 “A ele [João] vinha toda a região da Judeia e to d o o povo de Jerusalém ”, de acordo com M arcos. A m enção expressa de Jerusalém indica que o m inistério de João (e talvez os convertidos) cham ou a atenção da elite do tem plo em Jerusalém , com o tam bém de ou tros locais no interior. A no- toriedade de João, com o indica a descrição de M arcos, era bem difundida e im pressionante. O apósto lo Paulo, duas ou três décadas m ais tarde, em cerca de 55 d.C., en co n tro u os discípulos de João na d istan te E feso (At 19.1-7); e Josefo, escrevendo p róxim o do fim do século I, devo ta m ais atenção a João que a jesu s {Ant. 18.116-19). A atração e influência de João, em sum a, fizeram história. A in tenção de João, no en tan to , não era ganhar popularidade, mas iniciar um m ovim ento de arrepend im en to e re fo rm a em Israel para p reparar para “alguém mais p o d ero so ” p o r vir (1.7; Lc 1.17). 6 A descrição da fo rm a com o João se vestia, quase tão incom um na época de João quan to seria na nossa, relem bra a vestim enta de um p ro fe ta (Zc 13.4) e, em particular, do p ro fe ta Elias que “vestia roupas de pelos e usava um cinto de co u ro ” (2Rs 1.8). O hebraico de 2Rs 1.8 descreve a roupa de Elias 23 A localização precisa do local onde João batizava é incerta. M arcos (1.5) e M ateus (3.6) dizem apenas que João batizava no rio Jordão. Lucas 3.3 relata que João “percorreu toda a região próxim a ao Jordão” , deixando implícito que João batizava em mais de um local do rio e talvez nos tributários saindo do Jordão. B. Pixner, pegando a descrição de Lucas com o uma pista, sugere que João batizava em vários locais associados com Elias ( With Jesus Through Galilee, p. 19-20). O evangelho de João localiza João batizando em “E nom , perto de Salim, porque havia ali muitas águas, e o povo vinha para ser batizado” (Jo 3.23). T anto E nom quanto Salim ficam logo a oeste do rio Jordão, cerca de quarenta quilôm etros a sul do m ar da Galileia. Isso localiza o batism o de João em Decapólis, perto da Galileia. Para uma discussão detalhada da questão, veja R. Riesner, “Bethany Beyond the Jordan (John 1:28): Topography, Theology and H istory in the Fourth G ospel” , TjnBul 38 (1987), p. 29-63 (em bora o argum ento de Riesner po r Batanea sudeste do mar da Galileia seja talvez m uito especulativo). 62M arcos 1.7-8 com o um a veste áspera de pele de bo d e que, em M arcos, se to rn a a veste de pelo de cam elo de Jo ão Batista. O alim entar-se de gafanhotos, em bora possa parecer estranho para alguns paladares m odernos do O cidente , fazia parte das regras dietárias dos judeus (Lv 11.22; m. Hui. 3.7), sendo um a alta fon te de p ro teína e m inerais. A veste rústica e a dieta de Jo ão o separavam do culto refinado n o tem plo em Jerusalém e o identificava ainda mais com a região de “deserto” (1.4). N ão só a vestim enta de João o associa com Elias, m as tam bém sua crítica destem ida de H erodes A ntipas (6.18) ecoa as confron tações de Elias com o rei A cabe (IR s 18.18).24 A ssim , M arcos associa Jo ão a Elias na vestim enta, no cenário e na proclam ação, o p ro feta es trondoso que renovou o concerto ou aliança de D eus com Israel no m on te C arm elo (IR s 18.30-45). As m ultidões que visitam João, po rtan to , fazem um a peregrinação até um a figura que é um arau to do cum prim ento do destino de Israel. 7 M arcos, ao contrário de M ateus 3.7-10 e Lucas 3.7-9 que cham am atenção para a m ensagem de re fo rm a de João, foca a pregação de Jo ão em “alguém mais p o d ero so ” p o r \tir. E ssa descrição de Jesus antecipa a parábola com pacta de um versículo em 3.27 em que Jesus se refere a si m esm o com o o único p o deroso o suficiente para am arrar o hom em forte , Satanás. João Batista, de acordo com a m etáfora da época, considerava-se indigno de desa- m arrar as sandálias daquele que estava p o r vir. O desam arrar as sandálias e o lavar os pés eram tarefas dos escravos, na verdade apenas de escravos gentios, no judaísm o do século I. A m etáfo ra evidencia a hum ildade e subord inação de João em relação ao M essias (v e ja jo 3.30).25 8 O batism o de Jo ão era sim bólico e provisório de um a realidade mais p erm anen te e m ais p oderosa p o r vir: “ E u os batizo com água, m as ele os batizará com o E sp írito S anto” .26 E ssa é um a declaração extraordinária, pois, 24 Veja M. Hengel, The Charismatic Leader and His Followers, trad. J. Greig (New York: Crossroad, 1981), p. 35-37. 25 Veja Str-B 2.557. 26 A tradição do manuscrito do versículo 8 é dividida se João Batista batizava “na água” ou apenas “por meio da água”. A primeira opção sugere imersão, ao passo que a segunda é mais ambígua. Em bora um campo um tanto mais robusto do manuscrito traga “na água” , apenas bydati (“por meio da água”) é preferível (1) por causa do apoio dos principais manuscritos alexandrinos (א B Δ) e (2) porque os escribas tendiam a acrescentar en (“em”) antes de bydati (“água”) para concordar com passagens como Mateus 3.11 e jo ão 1.26. Veja Metzger, TCGNT, p. 74. M arcos 1.7-863 no A ntigo T estam ento , a concessão do E spírito pertence exclusivam ente a Deus. A declaração de João, de acordo com M arcos, transfere a concessão do E spírito para Jesus, ind icando mais um a vez que Jesus, com o aquele mais poderoso, virá com p o d er e com um a prerrogativa de D eus.27 O p o d er es- piritual do batism o m essiânico, po rtan to , suplantará o sím bolo da água no batism o hum ano. O “E sp írito Santo” identifica o p o d er espiritual de Jesus com D eus, guardando, p o rtan to , o p o d e r divino de ser com preend ido de form a equivocada com o algo satânico ou m al (e.g., 3.22). A econôm ica in trodução de Jesus p o r M arcos, em bora seja considera- velm ente truncada em com paração à dos ou tros evangelhos, testifica, não obstante, que o evento-C risto não é um a ocorrência arbitrária e aleatória. A o contrário, o alvorecer da era da salvação em Jesus é a consum ação de um a poderosa h istória da revelação de D eus, estendendo-se aos p rim ordios de Israel em Ê xodo. D eus, do Sinai em diante e particu larm ente nos profetas, estava p reparando para um novo com eço em Jesus Cristo. O B A T IS M O D E J E S U S (1.9 -11) M arcos relata o batism o de Jesus em apenas 53 palavras no original em grego. A relevância do evento, no en tan to , é m uitíssim o desproporcional ao seu tam anho. O batism o, com o o evento inaugural do m inistério público de Jesus, não nos diz o que Jesus faz, m as o que D eus faz para ele. U m a referência em A tos 1.21,22 testifica que o bastim o desde os prim ordios do m ovim ento cristão foi considerado com o um fato defin idor e indispensável na vida de Jesus. Q u an d o os apósto los acharam necessário escolher um substitu to para Judas, o principal critério era encon trar alguém que tivesse acom panhado Jesus do batismo em diante. E m b o ra o evangelho de Jo ão se inicie com a preexistência da Palavra de D eus; e os evangelhos de M ateus e Lucas, com circunstâncias po rten tosas em to rn o do nascim ento de Jesus, M arcos com eça a história de Jesus com o evento inaugural que a igreja desde seus prim ordios considerava com o o princíp io da relevância salvífica da vida e m inistério de Jesus — o batism o no rio Jo rd ão p o r João Batista. 27 Uns poucos manuscritos uncíais (B L) trazem pneumati hagioi (“com o Espírito Santo”; seguido pela NVI) e um (P) que Jesus será batizado “no Espírito Santo e no fogo”. Essa última leitura é uma assimilação óbvia de Mateus 3.11 e Lucas 3.16. A leitura preferida, no entanto,é representada pela maioria dos manuscritos “no Espírito Santo” que intensifica a união entre Jesus e o Espírito Santo. Veja Metzger, TCGNT, p. 74. 64M arcos 1.9-10 9 A in trodução do batism o na prim eira parte de 1.9 tem o toque de um H ebraísm o, sugerindo um a narrativa hebraica ou aram aica no original. A m enção de que “Jesus veio de N azaré da Galileia” é a única m enção pelo nom e da cidade onde Jesus cresceu em M arcos, em bora N azaré seja aludida mais um a vez em 6.1. M arcos liga o batism o ao m inistério de Jo ão Batista p o r m eio do paralelo de palavras nos versículos 5 e 9.28 N ã o obstan te , Jesus não é p o sto no m esm o p lano que Jo ão Batista. A m udança estratégica para a voz passiva (“Jesus [...] foi batizado p o r Jo ão no Jo rd ão ”) transfere João Batista, que fora o sujeito dos versículos 4-8, para o papel de m ediador, es- tabelecendo Jesus de fo rm a p roem inen te com o o sujeito. M arcos tam bém m uda o tem po verbal, passando do aoristo (pretérito simples) no versículo 9 para o im perfeito (ação contínua no passado) nos versículos 10,11, tendo o efeito de atrair o leitor para o d ram a im inente. Jesus, quando sai da água, experim enta três coisas que, na tradição judaica, significam a inauguração do reino escatológico de D eus: os céus foram abertos acim a dele, o E sp írito desceu sobre ele e a voz celestial falou dele. A concom itância desses eventos m om en tosos no batism o assinalam que Jesus é o “mais p o d ero so ” (1.7) p ro - m etido no A ntigo T estam ento e o inaugurador do reino escatológico de Deus. 10 O p ro fe ta Isaías (64.1) foi o prim eiro a falar do rom pim en to do céu e da descida do Messias. A tradição judaica subsequente elaborou a im agem de Isaías. O Testamento deLevi, co m p o sto talvez em 250 a.C., antecipa a narra- tiva do batism o de M arcos ao m encionar expressam ente todos os três sinais escatológicos observados acima. Os céus abrir-se-ão, e do Santuário da Glória descerá sobre Ele a santida- de, num a voz paternal, com o a de Abraão e Isaque. A Glória do Altíssimo ser-lhe-á adjudicada, e o espírito do entendim ento repousará n’Ele, da m esm a form a com o o espírito da santidade [na água]. Ele transm itirá realmente aos seus descendentes a majestade do Senhor, para sempre {T. Levi 18.6-8; Charlesworth, OTP,. 1.795). 28 1.5: exepereueto [ . . . ] . pasa héloudaia chõra ka i hot Ierousolymitai pantes ka i ebapti^onto hyp' autou en tç Jordan!! potamç 1.9: Uthen Ièsous apo Nadaret tês Galilaias ka i ebaptisthê eis ton Iordanèn. Veja Lohmeyer, D as Evangelimn des Markus, p. 20. M arcos 1.9-1065 U m a passagem sim ilar do Testamento deJudá fala do rei m essiânico com o a Estrela de Jacó, sobre quem “ os céus se abrem [...] , derram ando o espírito e a bênção san ta do Pai” (T Jud. 24.1-3; C harlesw orth, O TP , p. 1.801). O rom pim ento ou abertu ra do céu é altam ente relevante porque o judaísm o do segundo tem plo com um ente acreditava que o E sp írito Santo, com a cessação dos grandes profetas do A ntigo Testam ento, cessara de falar diretam ente com o povo de D eus.29 A ausência do E spírito suprim iu a profecia, e acreditava-se que D eus falava aos fiéis apenas com um eco distante, um a batqol (heb. “ filha de um a voz”). A abertu ra dos céus n o batism o, p o r conseguinte, inaugura o havia m uito esperado re to rn o do E sp írito de D eus. U m período de graça com eça em Jesus, em quem D eus, de m o d o sem paralelos, revela a si m esm o no m undo. E specialm ente relevante são as palavras de M arcos de que os céus foram literalm ente “ rasga[dos]” (ARA) (gr. schi^ein), um a descrição suavizada p o r M ateus 3.16 e Lucas 3.21 que usam “ abrir” (anoigein). Schispin é a tradução apropriada do term o hebraico qara (“rasgar”) em Isaías 64.1. Schi^ein tam bém traduz o hebraico do Testamento de L ev i e do Testamento deJudá, acima. O term o aparece na literatura judaica para dem onstrações cataclísmicas do po d er de D eus, tais com o a divisão do m ar V erm elho (Ex 14.21), M oisés fendeu a rocha (Is 48.21), a divisão ao m eio do m o n te das Oliveiras no D ia do Senhor (Zc 14.4) ou a descida do hom em celestial em José e A vena te (Jos. A%en. 14.3). M arcos em prega a palavra para ter um efeito sim ilar no batism o. O term o schi^ein ocorre apenas m ais um a vez em M arcos, quando o centurião, confes- sa na crucificação que Jesus é o Filho de D eus, m om en to em que a cortina do tem plo “ rasgou-se em duas partes, de alto a baixo” (15.38). Esses dois relatos — prim eiro em seu batism o e, depois, na crucificação — tratam de ocorrências sobrenaturais, revelando Jesus com o o Filho de D eus. O em prego estratégico dessa palavra p o r M arcos indica que a confissão de Jesus com o 29 Salmos 74.9; T. Benj. 9.2; 2Apoc. Bar. 85.3; IM ac 4.46; 9.27; 14.41; Josefo, A g. A p . 1.41. VejaJ. Jeremias, New Testament Theology, trad.J. Bowden (New York: Scribner’s, 1971), p. 80-81. Veja Str-B 1.125-34 para mais evidencia de que o Espírito Santo (o Espírito de profecia), após a m orte dos últim os profetas Ageu, Zacarias e Ma- laquias, desapareceu de Israel e, desse m om ento cm diante, passou a se comunicar apenas ocasionalm ente po r interm edio do inferior B ath-Q ol (veja ainda, Str-B 2.128-34). Cunrã, não obstante, era uma exceção a essa crença. Para um a visão contraria de que os rabis não negavam a presença do Espírito Santo no judaísmo do segundo tem plo, mas que eram indiferentes a ele, cm parte devido ao desejo deles de defender a autoridade deles do desafio do cristianismo nascente, veja F. G reenspahn, “W hy Prophecy Ceased” , J B L 108 (1989), p. 17-35. 66M arcos 1.9-10 o Filho de D eus não surge de recursos hum anos, m as apenas da revelação e em poderam ento divinos (veja IC o 12.3). O segundo sinal p resen te no batism o é a descida do Espírito . O s aca- dêm icos de um a geração an terior a esta aceitaram com m uita segurança o ju lgam ento de D alm an de que falar do “ E sp írito” no sentido abso lu to era algo que não se ouvia no judaísm o, e que a presença do “E sp írito ” em M ar- cos 1.10 se deriva ou do helenism o ou do cristianism o.30 O d ito de D alm an era um exagero até m esm o na época, e isso foi revelado p o r ou tros textos do período in tertestam entário e, m ais recentem ente, pelas descobertas de C unrã.31 A creditava-se, sobre tudo , que o M essias, na era escatológica, seria provido com o E sp írito de D eus.32 Essa provisão é intensificada na descrição da descida do E sp írito em M arcos. A N V I traduz a frase com o “ o E spírito descendo com o p o m b a sobre ele” , m as o grego intensifica a união de Jesus e do E spírito: “ o E sp írito estava descendo nele”, ind icando o p reench im ento com pleto e o equipar para o m inistério pelo Espírito. A ssem elhar o E sp írito de D eus a um a p o m b a é incom um no judaísm o (Str-B 1.124-25), m as não to talm ente desconhecido. E m F ilón, a p o m ba sim boliza a sabedoria e pa- lavra de D eus; no targum para G ênesis 1.2, o E spírito se m ovendo sobre a água é visto com o um a p o m b a (b. Hag. 154); e, em Odes de Salomão 24.1, um a pom ba adeja sobre a cabeça do M essias (em bora essa últim a passagem seja provavelm ente de influência cristã). M arcos, de fo rm a d istin ta de Lucas que descreve o E sp írito em “ fo rm a co rp ó rea” (Lc 3.22), vê a p o m b a com o um a sem elhança (“ co m o p o m b a”), ou seja, com o um a im agem visual que sugeria um a pom ba. A im agem de um a p o m ba para a descida do E sp írito em Jesus, po rtan to , é um a ocorrência sobrenatural que po d e se assem elhar a um a rea- lidade em pírica, e não um a m etáfo ra para a ilum inação espiritual nem para um a experiência m ística em pírica.M arcos — apesar de o relato do batism o em seu evangelho focar estritam ente em Jesus, e não nos espectadores, com o nos relatos de M ateus e de Lucas — não descreve um a experiência in terna e subjetiva de Jesus. A ênfase no que foi visto e ouvido atesta da objetividade em pírica do evento.33 3(1 G. Dalm an, TheWords o f Jesus, trad. D. M. Kay (Edinburgh: T. & T. Clark, 1909), p. 203. 31 lEnoque 49.3; 62.2; 1QS 4.6; para uma discussão detalhada, vejaJ. R. Edwards, “The Baptism o f Jesus According to the G ospel o f Mark” , J E T S 34 (1991), p. 46-47. 32 Veja o material reunido em E. Schweizer, “pneuma”, T D N T, 6.384. 33 O bserve o julgam ento de R. Bultmann: “N ão existe um a palavra sobre a experi- ência íntima de Jesus. [...] M ateus e Lucas estão m uito corretos em considerar a M arcos 1.1167 H O sinal escatológico final é a declaração do céu: “T u és o m eu Filho am ado; de ti m e agrado” . E m grego, a voz não é mais o ob jeto de “viu” no versículo 10, com o o são os dois prim eiros sinais. A voz está n o caso nom ina- tivo, transform ando-a no sujeito do que vem a seguir e significando a natureza climática da declaração divina. A penas aqui e na transfiguração (com exceção d e jo 12.28) é que vem os o discurso d ireto divino com Jesus nos evangelhos, e D eus, em cada um dos casos, refere-se a Jesus com “ m eu Filho” .34 Sob a declaração divina há um a riqueza das im agens do A ntigo Testa- m ento. U m a de suas an tecendentes mais clara é Isaías 49.3, em que o servo hum ilde do Senhor, apesar de seus sentim entos de total futilidade, é declarado ser aquele em quem D eus dem onstra seu esplendor: “Você é m eu servo, Is- rael, em quem m ostrarei o m eu esp lendor” . O paralelism o entre a declaração ao servo d o S enhor e a declaração a Jesus em seu batism o fica aparente de im ediato (tam bém Is 42.1). O Filho, com o o servo do Senhor, tam bém realiza a vontade de D eus p o r in term édio da ocultação. N a verdade, a ocultação é essencial para a revelação de D eus, pois a vida do F ilho só p o d e ser transpa- rente da von tade de D eus quando ele se despoja de suas prerrogativas po r direito. O m inistério de Jesus, com o o do m isterioso servo de Isaías, estará repleto de oposição e aparen te derro ta , m as seu serviço vicário terá efeitos de revelação (“um a luz para os gen tios”) e de salvação (“para que você leve a m inha salvação até os confins da te rra” ; Is 49.6). A declaração no batism o, além do conceito de servo e de servir, iden- tífica sem a m en o r som bra de dúvida Jesus com o o Filho de D eus ao ecoar o en tronam en to do rei de Israel em Salmos 2.7. A intim idade e obediência filiais, im perfe itam ente prenunciada pelo rei israelita, estão agora to talm ente com pletadas em Jesus. E ste é o cum prim ento perfeito do conceito original de filiação ligado ao cham ado de Israel em Ê xodo 4.22,23: Jesus é Israel reduzido a um. história de Marcos como a descrição de um acontecimento objetivo” (The History of the Synoptic Tradition, ed. rev., trad. J. Marsh [New York: Harper and Row, 1963], p. 247-48). 34 A tradição do manuscrito grego está dividida em como descrever a voz do céu. A NVI segue a maioria da tradição de que “veio dos céus uma voz” (א ' A B K L P W Δ Π), mas a leitura mais simples dc א * e D (“uma voz do ccu”) é impressionante (1) por causa das diferentes tradições representadas pelos dois manuscritos, e (2) porque os escribas tenderiam a suprir um verbo. A leitura de Θ, de que a voz “foi ouvida” , é provavelmente um aprimoramento posterior feito pelos escribas. Veja Metzger, TCGNT, p. 74. 68M arcos 1.11 U m terceiro an teceden te à voz n o batism o é o conceito do F ilho amado. O p ro fu n d o am or de A braão p o r Isaque quando foi cham ado a sacrificá-lo no m o n te M oriá é o tipo mais claro para esse aspecto da declaração celestial (G n 22.2,12,16). A proclam ação divina expressa o am or leal do Pai p o r seu Filho, com o tam bém a unidade essencial deles. O u tro s escritores do N ovo T estam ento (Rm 4.24; 8.32; H b 11.17-19) e os pais da igreja prim itiva (Barn. 7.3 em diante) tam bém viam no sacrifício de Isaque a prefiguração do sacri- fício de Jesus. N a sublim e declaração para Jesus no batism o, encon tram os am or pa- te rn o e obediência filial, m ajestade e serviço sofredor. C ada um a dessas facetas rep resen ta o que significa ser F ilho de D eus. As palavras ditas a Jesus no batism o não foram ditas a n en h u m profeta. A braão era am igo de D eus (Is 41.8); M oisés, servo de D eus (D t 34.5); A rão, um escolhido de D eus (SI 105.26); D avi, um hom em segundo o coração de D eus (ISm 13.14); e Paulo, um apósto lo (Rm 1.1). A penas Israel (Êx 4.23) — e o rei com o o líder de Israel (SI 2.7) — já fora cham ado de Filho de D eus. C ontudo , em tudo que Israel falhou, Jesus assum iu seu lugar. O batism o é a pedra angular na vida e m inistério de Jesus. O em podera- m en to pelo E sp írito para ser o Servo de D eus e a declaração do céu: “T u és o m eu F ilho” , capacitou Jesus não só para falar e agir em nome de D eus, m as tam bém como D eus. Isso é d em onstrado pelo fato de ele p erdoar pecados (2.5), aceitar os pecadores (2.15), cham ar os publícanos para o discipulado (2.13), cu rar os doen tes (1.40ss.), expulsar dem ôn ios (1.24), recuperar a verdadeira in tenção do sábado (2.28) e desafiar a posição da elite religiosa judaica co n fo rm e represen tada na tradição oral (7.1ss.), no tem plo (11.12ss.) e no S inédrio (14.61ss.). N ão é coincidência que Jesus, quando é mais tarde co n fron tado pelo S inédrio com esta pergunta: “ C om que autoridade estás fazendo estas coisas?” , leve os que o questionam de volta ao seu batism o (11.27-33). O que Jesus faz com o o servo de D eus, afinal, só faz sentido p o r causa de quem ele é com o o F ilho de D eus. A ssum e-se algumas vezes que o batism o ensina o adocionism o, o u seja, que Jesus se to rn a Filho de D eus pela prim eira vez no rio Jordão. E m b o ra essa perspectiva seja possível, não é convincente. P ressupondo que a originalidade da frase “o Filho de D eu s” em 1.1, M arcos já anuncia a filiação divina de Jesus. As palavras da declaração divina: “T u és o m eu Filho am ado; de ti m e agrado” não estabelecem um relacionam ento tan to quan to p ressupõem um relacionam ento.35 N o batism o, a voz celestial declara e confirm a, prim eiro, 35 “D ie G ottesstim m e setzt nicht erst Jesu Sohnschaft, sondem setzt sie voraus” . K. H . Rengstorf, Das Evangelium nach Lukas, N T D (Gottingen: V andenhoeck & M arcos 1.1269 quem é Jesus: o F ilho de D eus, que, com o tal, é ungido e equipado com o E spírito de D eus para expressar sua posição filial em term os de seu serviço — na verdade, serviço com sofrim ento . O batism o assinala a confirm ação da filiação de Jesus e o princíp io de seu serviço.36 O F IL H O D E D E U S S E E N C O N T R A C O M O A D V E R S Á R IO D E D E U S (1.12,13) Jesus, após a declaração de que ele era o Filho de D eus e da inauguração de seu m inistério público, não é convidado, com o se podería esperar, para um a recepção o u celebração. A ntes, ele é designado pelo E sp írito para um a tarefa m uito d iferente — um a reunião com Satanás no deserto . A descrição da tentação p o r M arcos, em bora m enos desenvolvida que nos relatos de M a- teus 4.1-11 e Lucas 4.1-13, deixa claro que a posição de Jesus com o o Filho de D eus e o em poderam en to pelo E sp írito são dados para a p rom oção do reino de D eus, e a principal parte dessa tarefa é a d erro ta do adversário de D eus, Satanás. 12 As características estilísticas m arcanas ficam claram ente evidentes no relato da tentação. “ L ogo após” (gr. euthys, com cerca de quarentaocorrências em M arcos), o tem po p resen te “ im pele” (NV1, “ im peliu”) e a brevidade da estru tura do relato são aspectos típicos de M arcos. A pressa e im ediacidade da ten tação logo após o batism o cria um a sensação de im inência e em oção intensa no leitor. N ão há tem po para se delongar na glória do batism o. Je- sus, sem um m o m en to para respirar, p o r assim dizer, é im pelido para a luta de buscar seu m inistério ao qual foi o rdenado e para o qual foi do tado . O apócrifo Evangelho de Filipe (74.29-31) apresen ta Jesus em ergindo do batism o rindo com desdém do m undo, com o se seu m inistério fosse um m elodram a. Isso não acontece em M arcos, em que a sinceridade extrem ada perm eia a narrativa da tentação. O m esm o E sp írito que desceu sobre Jesus no batism o tem um encon tro para ele no deserto. A linguagem é vigorosa e sem am bigui Ruprecht, 1965), p. 27. A lém disso: “O s autores do N ovo Testam ento desejam deixar claro o seguinte: aquele prom etido nas Escrituras com o o Filho de D eus é na verdade, de acordo com seu início e ser e, portan to , desde seu próprio princípio, o Filho divino que está ao lado de Deus. D a m esm a form a, em nenhum lugar no N ovo Testam ento há qualquer m enção sobre o hom em Jesus de Nazaré sendo adotado com o M essias” (Hofius, “1st Jesus der Messias? T hesen” ,/577> 8 [1993], p. 125 — grifo no original). 16 Edwards, “T he Baptism o f Jesus in the G ospel o f M ark” , / ¿ : 73'34 (1991), p. 43- 57. 70M arcos 1.13 dade. O E sp írito “im pei[e]” Jesus ou “em purra para fora” (gr. ekballem) para co n fro n ta r Satanás. A im agem é rem iniscente do bo d e expiatório carregado com os pecados de Israel e expulso para o deserto (Lv 16.21). A voz passiva (“ sendo ten tado p o r Satanás”), com o as palavras usadas em 1.9 acim a, esta- belecem mais um a vez Jesus com o o sujeito ou assunto inconteste. O E spírito que em podera o F ilho para o m inistério o testa agora para determ inar se ele usará sua filiação divina para sua própria vantagem ou se ele se subm eterá em obediência a D eus. A tentação de Jesus não é apresentada com o um a circunstância infeliz ou um a dificuldade resu ltan te de um lapso ou falha p o r parte de Jesus. O que acontece com Jesus n o deserto é orquestrado divinam ente com o o que aconteceu com ele no Jordão. O batism o, con fo rm e observam os, é algo que D eus fez para Jesus; a tentação, da m esm a form a, é seu corolário necessário, para que Jesus não seja im aginado com o um clone divino nem um autôm ato que não tem escolha nem desejo próprio . A tentação estabelece a ação sobe- rana e livre de Jesus que, co m o todos os agentes hum anos, tem de escolher fazer com que a von tade de D eus seja sua própria escolha. A relevância daquela escolha p o d e ser efetuada no contex to de um a alternativa e escolha oposta apresen tada pelo adversário de D eus. Jesus, p o r conseguinte, tem de ser “ ten tado p o r Satanás” . 13 A história da tentação de M arcos, com o sua descrição de João Batista, é firm em ente aparada, pelo m enos quando com parada com os dram as da tentação m ais com pletos de M ateus 4.1-11 e Lucas 4.1-13. M arcos reduz a narrativa dos vários testes existentes em M ateus e Lucas a fim de salientar o enco n tro com Satanás no deserto. “Satanás” , do hebraico satan, significa literalm ente “ adversário” ; mas, aqui e em outros textos do N ovo Testam ento, o te rm o designa o inim igo pessoal e sobrenatural de D eus. M arcos não usa o te rm o mais funcional “dem ô n io ” para se referir ao adversário de D eus, em b o ra esse ú ltim o te rm o o co rra ap rox im adam en te o m esm o núm ero de vezes no N o v o T estam ento (34 ocorrências) que a palavra Satanás (36 ocorrências). E m b o ra as referências explicitas a Satanás sejam relativam ente infrequentes no segundo evangelho,37 o uso do te rm o “Satanás” p o r M arcos indica sua com preensão da ação pessoal do adversário de D eus, abaixo de quem há legiões de “dem ôn ios” subord inados a ele. Satanás, com o o adver- sário de D eus, esforça-se para subverter o reino de D eus co m o m anifestado 37 1.13,3.23,26; 4.15; 8.33. M arcos 1.1371 por in term édio de seu F ilho am ado. E m M arcos, o prim eiro m ilagre de Jesus (1.21-28) e a prim eira parábola (3.27) são ofensivas con tra Satanás com o o “hom em fo rte” . O breve resum o de l jo ã o sobre a razão pela qual “ o Filho de D eus se m anifestou: para destru ir as obras do D iab o ” (3.8) é igualm ente descritivo do evangelho de M arcos. O teste de quaren ta dias do F ilho de D eus continua o tem a bastim al de Jesus com o Israel-reduzido-a-um . Israel esteve no deserto p o r quarenta anos (D t 8.2), M oisés esteve no m on te Sinai p o r quaren ta dias e quarenta noites (Êx 34.28), e Elias foi conduzido p o r quaren ta dias e quaren ta noites até o m o n te H o reb e (lR s 19.8). E m cada um desses eventos, o deserto era um cam po de provas, um teste de fidelidade e um a p rom essa de libertação. Os m esm os contrastes estão p resen tes na ten tação de Jesus, pois Jesus, no deserto, é ten tado p o r Satanás e cuidado p o r anjos. O deserto com o um local de teste e libertação provê um a pista para a com preensão do elem ento mais curioso no relato da ten tação de M arcos — sua referência a je su s estar “ com os anim ais selvagens” . N ã o existe paralelo exato para essa afirm ação na Bíblia. U m a tentativa de explicar seu sentido invoca o evento em que A dão nom eava os anim ais no É d en (G n 2.19), a nova aliança (O s 2.18,19) e, sobretudo , a transfo rm ação da criação hostil em um reino de paz (Is 11.6-9; Jó 5.22,23). O s anim ais selvagens, de acordo com essa in terpretação, rem em oram um a im agem de redenção e nova criação na qual as bestas, antes hostis, são pacificadas e passam a ser subservientes a Cristo, o Senhor delas. A proveitando esse tem a, um evangelho apócrifo fala das bestas selvagens adorando e p ro tegendo o bebê Jesus no d eserto (Evg. Pseud.-Mt 19.1). E ssa in terpretação, no en tan to , não é to talm en te satisfatória. N en h u m a das passagens do A ntigo T estam ento citadas acim a se aproxim a o suficiente das palavras ou pensam ento do versículo 13 para to rná-lo um pan o de fundo ou paralelo convincente.38 * A m enção dos anim ais selvagens, da m esm a for 38 Para um a exposição dos animais selvagens com o um sím bolo do reino messiânico de paz inaugurado po r Jesus, veja R. Bauckham, “Jesus and the W ild Animals (Mark 1.13): A Christological Im age for an Ecological Age” , em Jesus o f Nazareth Lord and Christ. Essays on the Historical Jesus and N ew Testament Christo logy, eds. J. G reen e M. T urner (G rand Rapids: Eerdm ans/Carlisle: Paternoster, 1994), p. 3-21. Bauckham, no entanto, não m ostra de form a bem -sucedida que esse é o sentido do conceito em M arcos 1.13. Tam pouco, seu argum ento convincente de que a preposição “com ” (e.g., ‘'1com os animais selvagens” ; grifo do autor) “não pode por si m esm a transm itir hostilidade” , mas apenas proxim idade física amigável e positiva (p. 5). E m M arcos 3.4,6, p o r exemplo, meta (“com ”) é usado para a raiva e para a tram a para m atar Jesus conform e planejada pelos herodianos. 72M arcos 1.13 m a, vem im ediatam ente após a m enção de Satanás, o ten tad o r e adversário, sugerindo um a ligação dessas bestas com Satanás. A lém disso, se os animais selvagens têm a in tenção de sim bolizar a nova criação, então, a referência seguinte aos anjos cuidando de Jesus é um non sequitur, pois Jesus dificilm ente precisa ser m inistrado (gr. diakonein) no paraíso. Todas essas objeções são abrandadas se v irm os as bestas com o sím bolos de “ h o rro r e perigo” do vasto, selvageme assom broso deserto da Judeia.39 E sto u inclinado a ver nessa referência aos anim ais selvagens um p o n to m uito específico de co n ta to com os leitores rom anos de M arcos. T ácito falou sobre a selvageria de N e ro em relação aos cristãos na década de 60 do século I, usando estas palavras: “eles eram coberto s com as peles dos ani- mais selvagens e despedaçados pelos cães” {Ann. 15.44).40 C onsiderando-se o exterm ínio de cristãos p o r animais selvagens duran te o reinado de N ero , não é difícil im aginar M arcos incluindo essa frase incom um “com os animais selvagens” a fim de lem brar seus leitores rom anos que C risto tam bém foi lançado aos anim ais selvagens, e assim com o os anjos m inistraram para ele, tam bém eles m inistrarão para os leitores rom anos en fren tando o m artírio .41 Se essa explicação estiver correta, en tão a frase “com os anim ais selvagens” é um a im portan te peça de evidência para localizar a p rocedência de M arcos em R om a duran te o reinado de N ero . D eus, em bora leve Jesus para um teste no deserto — da m esm a fo rm a com o ele leva os leitores rom anos de M arcos — , não abandona nem Jesus nem esses leitores ali. O tem po verbal im perfeito do verbo grego para “ servijr]” indica que os anjos m inistraram para Jesus não no fim do teste (tam bém em M t 4.11), m as ao longo dos quaren ta dias. E ssa conclusão despretensiosa para a tentação é um exem plo da com preensão do dram a que caracteriza o evangelho de M arcos. O cam inho do F ilho de D eus tem a bênção do Pai, e Jesus, até m esm o em seus testes pelo arqui-inim igo, é susten tado pelos atendentes celestiais do Pai. v> M auser, Christ in the Wilderness, p. 37,100-101. 4(1 “ ferarum tergis contecti laniatu canum interirent” . A palavra latina “ ferus” é a tradução regular do term o grego thêr (“bestas de rapina”), um derivativo do qual, thérion, é usado po r M arcos no versículo 13. N a prim eira década do século II, Iná- cio {Rm. 5.2-3) usa o m esm o term o grego {thérion) para se referir ao seu m artírio im inente po r bestas selvagens em Roma. 41 Inácio {Rm. 4—5) repete a m esm a palavra {thêriõn; “bestas selvagens”) seis vezes com referência ao seu m artírio im inente po r bestas selvagens em Roma. capítulo dois O início do Ministério Galileu M A R C O S 1.14 -45 M arcos fo rnece in form ações sobre época e local de m o d o m oderado em seu evangelho. P o r conseguinte, o fato de ele fo rnecer essas inform ações no princípio do m inistério público de Jesus em 1.14 é relevante. M arcos não m enciona de fo rm a específica um a viagem de Jesus na Judeia, com o o faz o evangelho de Jo ão (3.22-36), m as os com entários p o r alto em seu pró logo de que “Jesus veio de N azaré da Galileia” (1.9; grifo do autor) e re to rn o u “para a Galileia” (1.14; grifo do autor) indicam um a viagem de Jesus na Judeia. Se o re to rn o de Jesus para a Galileia fosse um a consequência da prisão de João em 1.14, en tão é possível supor, con fo rm e afirm a Jo ão (3.22), que Jesus colaborou de algum a fo rm a com Jo ão no m inistério na Judeia. C ontudo , é mais provável que M arcos tenha a in tenção de que 1.14 seja com preendido de m odo tem poral, ou seja, quando ]02.0 foi traído, então Jesus se to rn o u pú- blico. D evem os, de qualquer m odo, provavelm ente considerar um intervalo de tem po en tre M arcos 1.13 e 1.14, talvez devido a um m inistério inicial na Judeia.1 T an to M arcos quan to Jo ão relatam que Jesus, após um in tervalo de tem po não especificado, re to rn o u para a Galileia (Mc 1.14; Jo 4.1-3). M ar- cos fixa o re to rn o de Jesus com o um m o m en to decisivo e o m odela em um anúncio form al em 1.14, um tipo de “ entrevista coletiva” insatisfatória, para indicar o princíp io do m inistério público de Jesus. O E V A N G E L H O E M PO U C A S PA LA V R A S (1 .1 4 ,1 5 ) C om o é notável o fato de Jesus escolher a Galileia para iniciar seu mi- nistério. “ E le não se p reparou para um a cam panha m issionária, p rim eiro em 1 Veja J. M urphy-O ’C onnor, “W hy Jesus W ent Back to Galilee”, BRev 12/1 (1996), p. 20-29. 74M arcos 1.14 Jerusalém e depois n o resto do m undo; não, ele perm aneceu na insignificante Galileia” .2 Jesus inicia seu m inistério na Galileia, a região com colonos judaicos a oeste do m ar da Galileia, e, em term os de apelo popular, é onde desfru ta de seu m aior sucesso (1.28; 3.7). A Galileia é tam bém on d e Jesus, após sua m o rte e ressurreição, reúne seus seguidores d ispersos e d erro tados (14.28; 16.7) e os com issiona de novo para o ministério. A descrição de Jerusalém p o r M arcos, p o r sua vez, é caracterizada pela m arcante ausência de fé e oposição do tem plo e dos líderes religiosos, con trastando com a Galileia, apesar de sua insignificância, com o o lugar da p rom essa e o p o rtun idade para o evangelho.3 14 O batism o de Jesus p o r João Batista e a prisão deste foram m arcos p o r m eio dos quais a igreja prim itiva dem arcou o início do m inistério pú- blico de Jesus (At 1.22; 10.37). E m b o ra a N V I fale que Jo ão foi “p reso ” , o texto grego n ão m enciona específicam ente o aprisionam ento , m as, antes, o “entregar-se” ou “apresentar-se” . E verdade, nas inscrições em grego e nos papiros, o te rm o é en con trado com frequência no jargão policial e legal para “en tregar alguém com o prisioneiro” ,4 mas, em M arcos, o te rm o não pode se restringir apenas a esse sentido. A palavra “ entregar nas m ãos” (paradidom) desem penha um papel especial em M arcos para o destino dos fiéis. A m esm a palavra será usada para Jesus “se en tregando” com o o Filho do hom em (9.31; 10.33; mais o ito ocorrências nos caps. 14— 15) e tam bém para os cristãos (13.9,11,12). “ E n tregar-se” com bina não só com as adversidades às quais os fiéis estão sujeitos, m as tam bém à supervisão da von tade de D eus que é operada p o r in term édio deles (14.21!). A prisão de João e o início do m inistério de Jesus estão in tencionalm ente relacionados para m ostrar que o evangelho é proclam ado e conhecido na ad- versidade e sofrim ento , não na facilidade e conforto . O anúncio de Jesus das 2 E. Schweizer, The Good N e m According to M ark, p. 47. 3 Veja R. Pesch, Das Markusevangelium, 1.104-5. S. Legasse, L ’Évangile de Marc, p. 102- 3, está correto em observar o contraste m arcante entre a Galileia c Jerusalém em M arcos, mas está equivocado em supor que a Galileia representa a recepção do evangelho po r gentios pagãos em oposição a sua rejeição pela Jerusalém judaica. Marcos enfatiza de fato um ím peto gendo no ministério de Jesus (e.g., 7.24— 8.10), mas não é representado pela Galileia perse. A costa noroeste do m ar da Galileia, o foco do início do ministério de Jesus, era em sua maioria um a região judaica da Galileia, conform e evidenciado pelas muitas sinagogas (1.21ss.,39; 6.2), sacerdotes (1.44) e costum es judaicos (2.16,24; 3.4; 7.1-23). 4 C. E. B. Cranfield, The Gospel According to Saint M ark, p. 61-62. M arcos 1.1475 boas-novas (1.14) no con tex to im ediato da prisão e execução do justo João Batista é um exem plo perfeito da apresentação do evangelho p o r M arcos. João B adsta é o p recu rso r de Jesus não só em sua m ensagem , m as tam bém em seu destino, o que inclui so frim en to e m orte. E João Batista não é um tipo só de Jesus. A prisão e execução de Jo ão Batista, con fo rm e verem os na técnica de sanduíche de 6.7-30, tam bém estabelece o padrão para os discípulos de Jesus. Se o evangelho de M arcos, com o parece provável, foi com posto em R om a em m eados da década de 60, en tão o efeito incitativo de ligar o evangelho com a prisão de Jo ão B atista não passaria despercebido dos leitoresde M arcos que sofriam com as perseguições sob N ero. O sentido do te rm o “ evangelho” (euangelion) foi discutido em 1.1.5 O ter- m o evangelho, con fo rm e usado em 1.14, refere-se a um a narrativa resum ida do ensinam ento deJesus, con tendo , po rtan to , sua m ensagem . N o s prim ordios da tradição cristã, o te rm o passou a incluir cada vez m ais a proclam ação sobre Jesus com o a história de sua vida, m o rte e ressurreição. Jesus, p o r con- seguinte, p roclam ou o evangelho, m as ele tam bém era o evangelho. O fato de os cristãos prim itivos se referirem tan to à m ensagem de Jesus quan to à m ensagem sobre Jesus com essa palavra — e deixar para a posteridade um terceiro sen tido para o te rm o ao designar os relatos escritos da vida de Jesus com o “evangelhos” — indica o quan to inseparáveis essas várias com preen- sões estão presentes nesse term o. E ssa é a única referência no evangelho de M arcos às “ boas-novas de Deu/ ’ (grifo do autor), um a expressão rem iniscente de Paulo (Rm 1.1; 15.16; 2Co 11.7; lT s 2.2,8,9; tam bém lP e 4.17). U m a vez que M arcos já in troduziu o evangelho (gr. euangelion-, N V I, “boas-novas”) com referência a Jesus em 1.1, é provável que ele, com a frase “ boas-novas de D eu s” , não quis dizer as boas-novas sobre D eus, mas, antes, as boas-novas de D eus que se to rnam conhecidas em Jesus Cristo. A frase “as boas-novas de D eu s” , p o rtan to , é a soma do ensinam ento e proclam ação de Jesus e será elaborada ainda mais pelo “Reino de D eu s” no versículo 15. A palavra grega para “ proclam ando” (gr. kêryssein) foi usada para João Batista em 1.4, e a repetição da palavra aqui significa a associação ín tim a da m ensagem de Jesus com a de João Batista. 5 Um número respeitável de manuscritos gregos, incluindo a maioria da tradição bizantina, traz “as boas-novas do reino de Deus” no versículo 14. E provável, no entanto, que as palavras do reino tenham sido inseridas por copistas de forma a se conformar à expressão comum “o Reino de Deus”, como no versículo 15. Veja B. Metzger, TCGNT, p. 74. 76M arcos 1.15 E m b o ra a palavra kêrjssein n ão seja usada com frequência nos p ro fetas do A ntigo T estam ento , ela oco rre em Isaías 61.1 e Joel 2.1, duas passagens que anunciam o reino escatológico de D eus. O uso de kbyssein no versículo 15 sugere que, n a proclam ação de Jesus das “boas-novas de D e u s” , o Reino de D eus prev isto pelos profetas chegou. 15 A passagem 1.14,15 é um a sinopse de Jesus e sua m ensagem , em que o versículo 14 provê o cenário histórico, e o versículo 15, sua interpretação. M arcos é capaz de resum ir toda a vida e ensinam ento de Jesus em um único conceito, “o Reino de Deus” (1.15). O R eino de D eus assum e sua fo rm a inicial do conceito de Israel de D eus com o rei (Ex 15.18; IS m 12.12; SI 5.2). D eus, com o o C riador do m undo, é exaltado acim a de suas criaturas, gover- na com esp lendor m ajestoso, zo m b a dos deuses de m adeira e ped ra e reduz reinos a nada. O Reino de D eus foi inicialm ente m anifestado na h istória de Israel n o êxodo d o E g ito e na en trega da T orá no m o n te Sinai, m as seria suprem am ente m anifestado no advento de um fu tu ro M essias, cujo reino in troduzirá o re ino e terno e celestial de D eus. Jesus afirm ou a descrição acim a d o Reino de D eus. C on tudo , ele apre- sen tou u m conceito d istin to das ou tras concepções de re ino susten tado p o r seus contem porâneos. A literatura judaica do período, e em especial as referências form alistas aos “ filhos da luz e os filhos das trevas” nos M M M , m ostra um a p ro p en são a dividir a hum anidade em duas classes, os justos e os injustos. O s justos previsivelm ente puseram sobre si m esm os o jugo da obediência à Torá, ao passo que os injustos não fizeram isso; e os justos, p o r causa de sua obediência, podiam esperar ser recom pensados no fu tu ro após D eus aniquilar os injustos. O reino, de acordo com a visão prevalente, dependia derradeiram ente de D eus, m as sua chegada fundam entava-se nos pré-requisitos de justiça e obediência hum anas, o que po d e ser pensado com o os “fundos co rresp o n d en tes” para a barganha. O ensino de Jesus, em con traste com essa com preensão, é ousado e inovador. E le raram ente — e nunca em M arcos — fala de D eus com o rei ou de sua soberania sob re Israel o u sobre o m undo. A ntes, ele fala de entrar no reino com o en tra r em um novo estado de ser. O Reino de D eus não é o resultado do esforço h u m ano nem evolui em direção a sua com pletude, nem , tam pouco, é idên tico ao p o n to de vista ou afiliação religiosos. E le, com o um m istério (4.11) que não p ode ser decifrado e calculado, é mais bem descrito p o r m eio de analogias ou parábolas (4.26,30). O reino está oculto M arcos 1.1577 no m om ento , apesar de esperar as futuras m anifestações de p roporções sem precedentes, incluindo p o d er e glória (9.1; 14.25,61). M esm o em seu estado velado, as pessoas têm de tom ar um a decisão para recebê-lo ou rejeitá-lo, e sua m anifestação fu tura to rn a a escolha p resen te um a questão de urgência. A té m esm o agora em sua fo rm a em brionária, h á surpresas. O rico e o con- fiante dificilm ente encon trarão a en trada (10.23-25), ao passo que o pobre, o insignificante e os de fora — até m esm o as crianças — encon tram p ro n ta entrada (10.14,15). E m bora o reino ainda não esteja p lenam ente concretizado, o con trito e o sincero já estão a sua p o rta (12.34). A ssim , não só o Reino de Deus é a substância do ensinam ento de Jesus (1.15), m as tam bém corresponde a sua pessoa e m inistério e é identificado da m aneira m ais próxim a possível com sua pessoa e m inistério. A escolha de verbos p o r M arcos parece refor- çar a ligação do reino com a pessoa de Jesus, pois M arcos, ao declarar que o reino está “p róx im o” (v. 15), em prega um verbo (gr. engigein) que oco rre com frequência n o N o v o T estam ento em referência a proxim idade espacial, e não tem poral.6 E m Jesus de N azaré, o Reino de D eus faz um a aparição pessoal.7 “ O tem p o é chegado.” O anúncio do reino na estreia na Galileia é apre- sentado p o r M arcos com o o m o m en to definitivo da história. O alvorecer da salvação, à qual Paulo se refere com o a “plen itude do tem p o ” (G1 4.4; E f 1.10), resulta da providência e tem po de D eus, kairos em grego, cujo sentido é “o m o m en to o p o rtu n o ou crítico” (em oposição ao tem po progressivo). D eus trouxe o tem po da p rofecia co n fo rm e rep resen tado na citação de 1.2,3 a um encerram en to e inaugurou a fase final da história. Jesus não vem atropelando o u vendendo o reino. A ntes, ele se subm eteu pacien tem ente ao 6 R. H . Fuller, The Mission and Message o f Jesus (London, 1954), p. 20-25. As três ocorrências de engi^ein em M arcos (1.15; 11.1; 14.42) acontecem em relação à proximidade espacial; portanto , “com o aparecim ento de Jesus, o Reino de D eus está se aproximando” (D. D orm eyer, “engibo”, E D N T \3 1 \) . 7 D. Flusser,yír»r (Jerusalem: M agnes Press, H ebrew University, 1997), p. 110-11, observa que “ [Jesus] é o único judeu dos tem pos antigos que conhecem os que pregava não só que as pessoas estavam próxim as do fim dos dias, mas tam bém que a nova era da salvação já começara. [...] Para Jesus, o reino do céu não é só o governo escatológica de D eus que já alvorecera, mas um m ovim ento divino e voluntário que se dissemina po r toda a terra. O reino do céu não é apenas uma questão da m ajestade de Deus, mas tam bém diz respeito ao dom ínio de seu go- verno, um reino em expansão abraçando cada vez mais pessoas, um reino no qual alguém pode entrar e encontrar sua herança, um reino onde hágrandes e pequenos. Essa é a razão po r que Jesus cham ou os D oze para que fossem pescadores de homens e tam bém curassem e pregassem em todos os lugares” . 78M arcos 1.15 tem po divino e esperou pelo m om en to propício, p reparado p o r m uito tem po, e do qual ele é o arauto. A chegada do kairos de D eus exige um a m udança de pensam ento . A nova possibilidade, e sem paralelos, apresentada para a hum anidade n o evangelho cham a p o r um a resposta única. E ssa resposta está conüda na palavra “arrependam -se” (1.15, veja a discussão do te rm o em 1.4), que exige um a m udança decisiva. Ju n to com a o rdem para se arrep en d er está a o rd em para “ cre[r]” . Sc o arrepend im ento deno ta aquilo de que se volta, a crença d eno ta aquilo para o que nos voltam os — o evangelho. O s dois verbos no grego estão no im perad- vo presente, ou seja, eles im põem viver em um a condição de arrepend im ento e crença, e não em atos m om entâneos. O arrepend im ento e a crença podem ser aplicados a certas áreas da vida, m as não a outras; antes, eles exigem a total aliança dos que creem n o evangelho. O a rrepend im ento (gr. metanoeiri) é usado na descrição sucinta da proclam ação de Jo ão B atista (1.4), Jesus (1.15) e os discípulos (6.12), e não é usada mais em M arcos. A sequência dos term os “arrependam -se” e “creiam ” sugere que a crença pressupõe o arrependim ento e d epende dele. A crença aparece com frequência em M arcos, tan to a palavra quan to o conceito , e supõe o ato de arrependim ento . M arcos enquadra seu resum o in trodu tó rio da proclam ação de Jesus em 1.14,15 de acordo com um esquem a característico do A ntigo T estam ento que apresenta a revelação de D eus em term os das bênçãos divinas e das obri- gações hum anas. A graciosa atividade de D eus evoca e exige um a resposta apropriada da hum anidade (e.g., Ê x 19— 20; D t 29.2-8,9-15). D a m esm a form a, o evangelho, com o proclam ado p o r Jesus e p resen te nele, po d e ser resum ido de fo rm a notável em um único indicativo: a bênção divina está p resen te no “ Reino de D eu s” , e a obrigação hum ana está con tida em dois sim ples im perativos — “ arrependam -se” e “creiam ” . O C H A M A D O D O S P R IM E IR O S D IS C ÍP U L O S (1.16 -2 0 ) O prim eiro ato do m inistério de Jesus registrado em M arcos não é algo sensacional — um m ilagre espetacular ou um serm ão p o deroso — , m as ape- nas um a sim ples convocação de quatro trabalhadores com uns à com unhão com ele. O cenário é o mar da Galileia, um lago p itoresco com cerca de onze quilôm etros de largura e v in te de com prim ento de um a extrem idade à outra. O m ar da Galileia, aproxim adam ente 213 m etros abaixo do nível do mar, está confinado p o r um a cadeia de m ontanhas íngrem es a leste e p o r colinas mais suaves a oeste. V isto do alto, ele tem aproxim adam ente a form a M arcos 1.16-2079 de um a harpa, de o nde p ode te r recebido seu n om e em hebraico, Q uinerete. Josefo enaltece o m ar da Galileia p o r sua água doce pura e m uitas espécies de peixe, seu solo fértil e clima agradável que supre fru tas e p rodução p o r dez m eses do ano. T oda a região, afirm a ele, é aquela da qual “a natureza se orgulha” (Guerra, 3.516-21). 16-20 M arcos não especifica onde exatam ente ao longo do lago Jesus cham ou os quatro .8 A costa nos arredores de C afarnaum , presum ivelm ente a localização geral do cham ado, é form ada p o r m assa de basalto p re to rugoso, to rnando difícil o cam inhar e a chegada de barcos à praia. Sim ão e A ndré, de acordo com M arcos, estavam “lançando redes ao m ar” (1.16). A palavra para “lançando redes” (gr. amphiballein), cujo sen tido é “ lançar ao red o r” , designa um a rede circular; amphiblêstron, de acordo com M ateus 4.18; m ed indo cerca de seis m etros de d iâm etro com barras pesadas de m etal ou pedras am arradas no perím etro. O lançar redes, com prática e destreza, só podería ser feito p o r um pescador sozinho que, de pé em um barco ou, com o era o caso aqui, cam inhando na água, recolhe a rede em seu braço e a arrem essa com força em um m ovim ento circular de fo rm a que caia na água co m o um paraquedas, enredando os peixes enquan to afunda até o leito do rio o u lago. O s peixes são recolhidos quando o pescador m ergulha até o fundo, junta os pesos da rede e arrasta a rede e os peixes presos ali até a praia.9 N o século I , a pescaria era um a indústria florescente no m ar da Galileia, contando com mais de dezesseis po rto s m ovim entados no lago e em várias cidades na costa noroeste , incluindo B etsaida (“casa do peixe”), M agadã, tam bém conhecida p o r M agdala (“ to rre do peixe”) e T aricheae (“peixe salgado”), nom es recebidos p o r causa do com ércio de peixe. O s barcos de pesca eram tão num erosos que Josefo conseguiu requisitar 230 deles duran te 8 Dois acadêmicos que passaram a vida investigando o m ar da Galileia, M endel N un e Bargil Pixner, localizam o cham ado em Tabgha, cerca de três quilôm etros a sul de Cafarnaum . O pequeno porto de Pedro, conform e se encontra hoje, é sugerido com o o local do cham ado de quatro pescadores po r causa da pequena queda de água que desagua no lago, onde os pescadores podiam lavar suas redes (Lc 5.2) e porque as fontes de água quente que desaguavam no lago nesse local atraíam cardumes de peixes no inverno e primavera, prom etendo pescas com pensadoras. Veja B. Pixner, With Jesus Through Galilee, p. 30-32; M. N un, “Ports o f Galilee” , BARev 2 5 /4 (1999), p. 27-28. 9 Veja M. N un , The Sea o f Galilee and Its Fishermen in the New Testament (K ibbutz Ein Gev: K innereth Sailing Company, 1989), p. 23-27. 80M arcos 1.16-20 a guerra da Galileia em 68 d.C. (Guerra 2.635). T am pouco os peixes eram consum idos só pelos m ercados locais. D evem os nos lem brar que o peixe, e não a carne, era o alim ento de consum o do m undo g reco-rom ano. O peixe do m ar da Galileia era exportado e apreciado na d istante A lexandria, no Egito, e A ntioquia, na Síria. O fato de os pescadores na Galileia com petirem com os m ercados m aiores testifica de sua habilidade, p rosperidade e engenhosi- dade — e provavelm ente de seu dom ínio do grego, a língua internacional dos negócios e da cultura. O s pescadores a quem Jesus cham ava não eram trabalhadores diaristas que passavam necessidades. A fim de sobreviver na liga de m ercado, eles precisavam ser — e sem dúvida eram — hom ens de negócio sagazes e bem -sucedidos.,״ Três aspectos determ inam o cham ado ao discipulado. P rim eiro e mais im- portante , Jesus é o sujeito absoluto do chamado. Ele, enquanto passa ao longo da praia e vê os dois pares de irm ãos, profere a convocação: “Sigam-me” . N esse m om en to em particular, Jesus era um líder d iferente dos rabis e escribas do judaísm o. N ão existem histórias análogas ao cham ado dos discípulos, pois os rabis não consum aram o relacionam ento m estre-aluno pela convocação: “Sigam -m e” . A en trada em um a escola rabínica, ao con trário d o cham ado que vem de Jesus, dependia da iniciativa daquele que aspirava ser aluno, e não do cham ado do rabi.11 A proem inência pessoal que Jesus assum e no cham ado dos quatro pescadores é m uitíssim o incom um na tradição judaica com o um todo. A principal aliança dos alunos rabínicos era a Torá, e não um rabi em particular. N o A ntigo T estam ento , a ideia de “ seguir D eu s” é rara, se não ausente. N em M oisés, nem os reis, nem os vários “ hom ens de D eu s” , nem os profetas, n inguém , via de regra, cham a o povo para segui-lo. A convocação, antes, é para andar nos cam inhos de D eus e de acordo com os estatu tos divinos (e.g., D t 5.30). C ontudo , Jesus cham a os quatro para si mesmo. O únicop recedente análogo no A ntigo T estam ento para um cham ado para si m esm o é o cham ado de E liseu p o r Elias em IR eis 19.19-21, em bora até ali o paralelo não seja com pleto , pois Elias perm ite que Eliseu re to rne para sua casa e se despeça da m ãe e do pai, ao passo que a aliança que Jesus espera dos discípulos não perm ite nem m esm o um a despedida da família 10 11 10 Veja J. Murphy-O’Connor, “Fishers o f Fish, Fishers o f Men: What We Know of the First Disciples from Their Profession” , BRev 15/3 (1999), p. 22ss.; e Nun, “Ports o f Galilee” , BARev 25 /4 (1999), p. 18-31. 11 K. H. Rengstorf, “mathêtês”, TDNT 4.446-50; M. Hengel, The Charismatic Leader and His Followers, trad. J. Greig (Edinburgh: T. & T. Clark, 1981), p. 50-51. M arcos 1.16-2081 (Le 9.57-62). O cham ado dos quatro pescadores não está fundam entado na Torá nem m esm o no nom e de D eus, m as apenas na au toridade m essiânica de Jesus. N ão existe n enhum a evidência que apoie esse cham ado — nem milagres, nem debates, n em persuasão m oral. O s pescadores, de fo rm a distinta dos aspirantes a rabi, não precisam fazer nada antes de se to rnarem discípulos; não precisam exibir conhecim ento da T orá nem passar p o r um exame de qualificação em teologia. O que precisam ap render e fazer só pode ser ap rendido e feito enquan to seguem Jesus (10.52). Para M arcos, o ato de seguir Jesus acarreta um risco da fé, e a fé tem de ser um ato antes que seja um co n teúdo de crença. Só à m edida que se segue Jesus é que ele pode ser conhecido. O evangelho de Jo ão (1.35-42) observa que P ed ro e A ndré, e talvez os outros discípulos, tinham algum a fam iliaridade an te rio r com Jesus antes desse cham ado. M arcos, no en tan to , om ite a referência a essa fam iliaridade e fundam enta o cham ado dos discípulos apenas no cham ado autoritativo de Jesus. E les não o buscam , m as ele os busca. É no m u ndo deles que o discipu- lado tem início. Q u an d o Jesus, com o o Filho de D eus, inicia sua com unhão hum ana, o enco n tro acontece no terreno deles e em m eio às suas atividades de trabalho em m eio a barcos e redes e de labor do alvorecer ao entardecer, e não no te rren o de Jesus, nem , tam pouco , no terreno sagrado da sinagoga ou do tem plo. H á apenas um a coisa que os pescadores p o dem fazer, e esta é responder à palavra de o rdem de Jesus, fundam entada apenas na autoridade de sua pessoa. U m a segunda característica do cham ado ao discipulado é que é um cham ado ao serviço. “Sigam -m e” , disse Jesus, “e eu os farei pescadores de hom ens” (1.17). As palavras gregas têm de fato mais nuanças, dizendo: “E u os farei se tornarem pescadores de ho m en s” . O processo de se to rn a r discipu- los de Jesus é lento e do lo roso para os D oze; não é fácil en tender (8.14-21), observar (14.37), seguir (14.50), sofrer perseguição para a causa de Jesus (13.13). A vida para a qual Jesus cham a seus discípulos exige um a m udança fundam ental de perspectiva, ou seja, ter em m ente as coisas de D eus, e não de si m esm o (8.33). Só dessa fo rm a os discípulos p o d em partic ipar do reino e servi-lo. Jesus, com o o Servo cujo objetivo é servir, e não ser servido, e dar sua vida em resgate de m uitos (10.45), é o m odelo daqueles que o seguem. Esse serviço é custoso, exigindo a separação das alianças antigas a fim de estar livre para a nova aliança com Jesus. O s pescadores não só precisam deixar 82M arcos 1.16-20 as redes para trás, m as tam bém têm de deixar suas famílias.12 N ão há nada ineren tem ente errado com as redes, e m uito m enos com as famílias. As redes são essenciais para a pescaria; e as famílias, para a vida. C on tudo , até m esm o estas precisam ser abandonadas caso se to rnem em pecilhos que im pedem a pessoa de p restar atenção ao cham ado para a ven tu ra do discipulado com Jesus (veja M t 5.29,30).13 P or fim, o cham ado dos quatro pescadores indica que o trabalho essencial de Jesus consiste na form ação de um a com unhão, e é só nessa com unhão que o cham ado de Jesus é ouvido e obedecido. A com unidade que Jesus fo rm a não é um a m assa sem no m e e sem face, m as um a com unidade de indivíduos cujos nom es são conhecidos — Simão, A ndré, T iago e João, e ou tros p o r vir. A ênfase de M arcos no cham ado dos quatro pescadores, co m o tam bém seu relato relativam ente m odesto da cena da tentação (que p õe Jesus em um a batalha individual com Satanás), têm o efeito de to rn a r Jesus o iniciador e cen tro de um a nova com unidade que engloba todos os aspectos da v ida.14 N ão é exagero dizer que as sem entes da igreja cristã se originaram no prim eiro ato do m inistério público de Jesus em que ele cham a quatro pescadores para form ar um a com unidade com ele. 12 A transposição de euthys do cham ado de Jesus em Marcos 1.20 (“Logo jjesus] os cham ou”) até a resposta dos irm ãos Z ebedeu em M ateus 4.21,22 (“deixando m ediatam ente seu pai e o barco”) é um refinam ento sintático que argum enta pelo uso de M arcos p o r Mateus. 13 E. Schweizer, Lordship and Discipleship, SBT 28 (London: SCM Press, 1960), p. 12-13. 14 Essa é a tese de J. D. Crossan (The HistoricalJesus: The L ife o f a Mediterranean Jewish Peasant [Edinburgh: T. & T. Clark 1991], ρ. 345-48) de que Jesus era um repre- sentante de um “reino sem interm ediários” , um pregador itinerante radical do “igualitarismo sem interm ediários” que se opunha a qualquer “interm ediação” de sua mensagem ou ministério por Pedro e os Doze. Contra essa concepção de Jesus, deve-se observar que a escolha de M arcos para com eçar seu relato do ministério público de Jesus com o cham ado dos discípulos sugere claramente que Jesus tinha planos além daqueles de cura, mágica e operação de milagres (conform e Crossan caracteriza seu ministério). Se esses últimos aspectos citados fossem a som a do plano de Jesus, então ele, com o A polônio de Tiana ou vários outros pregadores itinerantes no m undo greco-rom ano, realizaria seus intentos m elhor sozinho que em com unidade. N o entanto, Jesus, po r todos os relatos do Evangelho, cham ou seus discípulos e os investiu com sua missão e autoridade (apenas em Mc, veja, e.g., 6.7-13,41; 8.6; 9.38-40!), com o a expressão-chave “pescadores de hom ens” (1.17) indica. M arcos 1.2183 A A U T O R ID A D E D E J E S U S (1.21-28 ) A in trodução ao m inistério de Jesus na Galileia em 1.16-45 exibe o es- tilo econôm ico de M arcos ao com binar vários episódios juntos com apenas conectivos (“ e” , “ logo” , “ en tão” , etc.) e com p o uco ou n enhum com entário editorial. Igualm ente m arcano, ap rendem os p o r in term édio de um a varieda- de de en con tros (cham ados, expulsões de dem ônios, curas e viagens) quem Jesus é p o r in term édio do que ele /αχ. M arcos, na sinagoga de C afarnaum , dem onstra a au toridade de Jesus ao m ostra r o que acon tece quando um hom em com um espírito im undo se encon tra com aquele ungido com o Es- pírito de D eus. A história com bina dois episódios que apresen tam o m esm o ponto. N a prim eira, M arcos m ostra que Jesus ensina com autoridade única, de form a d istin ta da dos escribas e m uito superior ao ensino destes (w . 21,22). A segunda parte é um relato sobre expulsão de dem ônio (w . 23-26). Esses dois episódios são entrelaçados pelo versículo 27, em que M arcos observa que todos os p resen tes — e ele enfatiza todos — ficam m aravilhados, pois a autoridade p o r m eio da qual Jesus expulsa um dem ônio é a m esm a autori- dade p o r m eio da qual ele ensina. As histórias com binadas dem onstram que a palavra de Jesus é ação. 21 Cafarnaum, de acordo com M ateus 4.13; 9.1 (e ostensivam ente M c 2.1; 9.33), to rnou-se a residência de Jesus após deixar N azaré. N ão sabem os por que ele se m udoupara lá, em bora possa ser p o r causa de C afarnaum ser a terra de seus prim eiros convertidos. C afarnaum estava propiciam ente situada para um m inistério na Galileia. E la fica ao lado da Via M aris, a principal ro ta de com ércio en tre a planície costeira m editerrânea e D am asco, no norte. N a Galileia, esse era o p o n to mais distante das principais cidades helenistas de Séforis, B ete-Seã e especialm ente T iberíades o nde H erodes A ntipas estabe- leceu sua capital, de fo rm a que Jesus conseguiu, pelo m enos de início, evitar a interferência dos líderes políticos e religiosos. A prisão de Jo ão Batista po r Herodes A ntipas (1.14; 6.14-29) to rna essa segunda opção nada insignificante. C afarnaum , localizada na costa no rte do m ar da Galileia recebeu seu nom e do hebraico KepharNahum (“ vilarejo de N au m ”). A evidência arqueoló- gica indica que no século I um p o rto se estendia ao longo de um a alam eda de cerca de 762 m etros apoiada p o r um m uro de arrim o com quase 2,5 m etros. O cais se estendia da alam eda até p o uco m ais de trin ta m etros den tro do lago. C afarnaum era um a cidade de fronteira en tre as tetrarquias de Filipe e H erodes, sendo, p o rtan to , o local da coletoria (2.14). A m aioria de seus ha- 84M arcos 1.21 hitantes (em bora não todos) eram judeus que trabalhavam com o pescadores, fazendeiros, artesãos, m ercadores e autoridades, incluindo os publícanos. A população já m ista foi aum entada graças a um a pequena guarnição rom ana que habitava em lugares m elhores que os locais e desfru tavam as am enidades de um b anho rom ano com caldarium (caldário, o local mais quen te e cheio de vapor), tepidarium (tepidário, local do b anho m orno) e frigidarium (frigidário, onde se tom ava um b anho frio). O relacionam ento en tre judeus e gentios era evidentem ente cordial um a vez que, de acordo com Lucas 7.1-10, um centu- rião rom ano não só constru iu um a sinagoga para os judeus em C afarnaum , m as tam bém , em certa ocasião, encontram -se rom anos apresentando seu caso diante de Jesus. As vantagens com erciais de um local em que a principal ro ta de com ércio circundava as terras férteis e a pesca volum osa determ inavam C afarnaum com o um local com um grau invejável de prosperidade. A prosperidade de C afarnaum con tinuou p o r vários séculos, pois, no século IV, a cidade teve m eios para con stru ir um a sinagoga — a mais im pres- sionante a ser escavada até o m o m en to na T erra Santa — de pedra calcária branca, em vez de usarem a pedra local, o basalto preto , com o observado na cidade v izinha de C orazim . O calcário b ranco resp landecente da sinagoga apresenta um contraste m arcante com as estruturas em basalto pre to em to rn o dela. E ssa sinagoga data do século IV e não é aquela visitada p o r Jesus. U m a série de fossos escavados abaixo de seu piso em 1969, no entanto , revelou um pavim ento de pedra basalto que po d e ser datado do século I (estava coberta com po tes de cerâm ica e m oedas do século Γ). E sse subpavim ento parece ter sido o piso original da sinagoga visitada p o r Jesus. A fundação da sinagoga de basalto p re to que Jesus conheceu está claram ente visível no nível do solo abaixo da sinagoga de calcário do século IV.15 Jesus, de acordo com o costum e, en tra na sinagoga no sábado e com eça a ensinar. As sinagogas judaicas, de m o d o distin to do tem plo em Jerusalém onde o sacrifício anim al era p raticado pelos sacerdotes, eram , de acordo com a nom enclatura rabínica, “ saguões de reunião” ou auditórios on d e a Torá era lida e exposta. H avia apenas um tem plo (em Jerusalém ), ao passo Sobre Cafarnaum נ1 , veja S. Loffreda, Recovering Capernaum (Jerusalem: Terra Santa, 1985); R. Riesner, “N eues von den Synagogen K afarnaum s” , Biblische Umschau 40 (1985), p. 133-35; V. C. Corbo, “C apernaum ”, A B D 1.866-59; M. N un , “Ports o f Galilee” , BARev 2 5 / 4 (1999), ρ. 23-27. A descrição de Cafarnaum po r J. M. O ’C onnor com o um lugar pobre e insignificante (The Holy Land1 [New York: O xford University Press, 1992], p. 223-25) é injustificavelmente desdenhosa da relevância dos restos arqueológicos ali encontrados. M arcos 1.2285 que as sinagogas, e o te rm o grego derivado deste significa apenas “local de reunião” , podiam ser encon trados em to d o o m u n d o M editerráneo onde dez ou mais hom ens judeus, com treze anos ou m ais velhos, estariam presentes. A única au toridade responsável pela sinagoga era o “dirigente da sinagoga” , uma função que incluía as responsabilidades de bibliotecário, com itê de ado- ração, custódia e talvez professor. O dirigente da sinagoga, não obstan te , não pregava nem expunha a Torá, o que queria d izer que o ensino e exposição do sábado ficavam nas m ãos dos leigos e, nessa ocasião, nas m ãos de Jesus.16 22 O ensino que a congregação ouve de Jesus é d istin to de qualquer coisa que tivessem ouvido antes. O espectro das reações daqueles presen tes foi do espanto à incredulidade — “T odos ficaram tão adm irados que perguntavam uns aos outros: Ό que é isto? U m novo ensino — e com autoridade!’ ” (1.27). O único pad rão ao qual o ensino de Jesus p ode ser com parado é aquele dos mestres da lei. N o século I, antes do advento da educação universal e do dom ínio da escrita, havia um a grande dem anda para os m estres da lei ou escribas em to d o o m u ndo da A ntiguidade, em especial no judaísm o em que o código da T orá regulava a vida dos judeus. A palavra hebraica para m estres da lei ou escribas, sopherim, tem que ver com contas, avaliação e m anutenção dos docum en tos escritos, p rovendo, po rtan to , um a com preensão inicial das funções de um m estre da lei judeu. O te rm o “ m estres da lei” oco rre no início da m onarquia davídica para designar um a autoridade real que tem um secre- tário geral e um reg istrador (2Sm 8.16,17; 20.24,25; lR s 4.3). N o judaísm o pós-exílio, o te rm o “ m estre da lei” ou escriba passou a designar um especia- lista na Torá, dos quais E sdras foi o prim eiro em um a linhagem reconhecida e ilustre (E d 7.6,11). A im portância e fam a dos m estres da lei aum entaram durante o período asm oneano ou m acabeano quando, en tre os judeus, os ideais helenistas com eçaram a rivalizar com o ensino da Torá. O s m estres da lei, em prim eiro lugar, eram especialistas da T orá capazes de em itir decisões obrigatórias sobre sua interpretação. O conhecim ento relativo à escrita da Torá e os m eios pelos quais ele é ob tido eram com frequência considerados com o ilum inação esotérica e, p o r isso, mais autoritativo. E m segundo lugar, os escribas, com o crescim ento da sinagoga, to rnaram -se m estres da Torá, cuja 16 Sobre as sinagogas, veja S. J. D. Cohen, From the Maccabees to the Mishnah, LEC, ed. geral W. Meeks (Philadelphia: W estminster Press, 1987), p. 111 -15; G. F. M. M oore, Judaism in the First Centuries o f the Christian Era (New York: Schocken, 1971), 1.29- 36, 281-307; Str-B IV /1 .115-88; E. Schiirer, Flistory o f the Jewish People, p. 423-53. 86M arcos 1.22 reputação era hon rad a com o título “ rabí” , com o sentido de “ m eu grande indivíduo” . P o r fim, os escribas eram juristas legais no sen tido am plo do term o. “M estres da lei” , p o r conseguinte, reuniam os cargos de p ro fesso r da Torá, m estre e m oralista e advogado civil, nessa ordem . A erudição e prestígio deles alcança p roporções lendárias p o r volta do século I, sup lan tando em algum as ocasiões a erudição e prestígio dos sum os sacerdotes (b. Yoma 71 b). Só os m estres da lei (à parte dos principais sacerdotes e m em bros das famílias aristocráticas) pod iam en trar no Sinédrio. As pessoas com uns dem onstravam deferência para comos escribas quando estes cam inhavam pelas ruas. O s prim eiros assentos da sinagoga eram reservados para os escribas, e as pessoas ficavam de p é quando esses m estres da lei entravam em um recin to .17 E m M arcos, daqui em diante, tan to as sinagogas quan to os m estres da lei desem penham o papel, n a m aior parte da narrativa, de oposito res d e je - sus. A distância en tre Jesus e a sinagoga já é percebida n o versículo 23 com a referência à frase “ na sinagoga deled' (ARC; grifo do autor). As sinagogas aparecem m ais ou tras seis vezes em M arcos com o locais on d e os dem ônios estão p resen tes (1.39), e o nde há an tagonism o dos líderes religiosos (13.9). H á, da m esm a fo rm a, apenas um a referência positiva a um m estre da lei em M arcos (veja 12.28-34); as ou tras dezoito referências restantes re tra tam os m estres da lei com o antagonistas de Jesus e sua missão. O an tagonism o geral das sinagogas e m estres da lei, p o rtan to , prenunciam a rejeição p o r v ir de Jesus tan to no tem plo q u an to pelos líderes religiosos em Jerusalém . O efei- to narrativo disso é reforçar a parábola de 2.21,22 de que o novo v inho do evangelho não p o d e ser con tid o pelas vasilhas de couro velha do judaísm o. A afirm ação de M arcos de que “ [Jesus] ensinava com o alguém .que tem autoridade e não co m o os m estres da lei” (1.22) é m enos um a depreciação dos m estres da lei que um a aclam ação de Jesus. A palavra que M arcos usa para a autoridade de Jesus, exousia, é um term o p reem inente em sua apresen- tação de Jesus. A palavra exousia, nas últim as porções da LX X e na literatura in tertestam ental, é usada com mais frequência que o contrário para designar os poderes sobrenaturais e as autoridades, em especial de D eus e das obras, dos represen tan tes e em issários de D eus, con fo rm e expresso p o r in term édio dos reis, sacerdotes e santos. O s M M M acom panham essa tradução, em bora 17 Sobre os escribas, veja G. F. M. M oore,Judaism in the First Centuries o f the Christian Era, p. 37-47; E . P. Sanders, Judaism: Practice and Belief, 63 B C -6 6 A D (Philadelphia: Trinity Press In ternadonal, 1992), p. 170-89; G. Baum bach, “grammateus”, E D N T 1.259-60; J. Jeremias, Jerusalem in the Time o f Jesus, trad. F. H. e C. H . Cave (London: SCM Press, 1969), p. 233-45. M arcos 1.2287 os term os hebraicos do C unrã que estão p o r trás do te rm o exousia na L X X 18 com frequência se refiram aos poderes sobrenaturais de natureza dem oníaca. Exousia, de qualquer m aneira, designa de m o d o típico a au toridade sobreña- tural na literatura im ediatam ente anterior à tradição cristã. E m M arcos, exousia ocorre nove vezes, seis com referência a Jesus (1.22,27; 2.10; 11.28,29,33) e três com referência à autoridade conferida aos apósto los p o r Jesus (3.15; 6.7; 13.34). Todas as ocorrências de exousia, p o rtan to , refletem direta ou indire- tam ente a au toridade de Jesus. O uso de M arcos desse te rm o defin idor logo no início do m inistério público de Jesus estabelece a au toridade dele acima das m ais altas autoridades no reino tem poral, con fo rm e represen tada pelos m estres da lei, e as autoridades sobrenaturais, co n fo rm e represen tada pelo dem ônio em 1.23ss.19 * O s m estres da lei derivam sua autoridade das “ tradições dos hom ens” (7.8-13) — os pais do judaísm o, poderiam os dizer; ao passo que Jesus recebe sua autoridade diretam ente do Pai no céu (1.11). A autoridade dos m estres da lei é con tingen te à autoridade da Torá e, p o r isso, é um a autoridade m ediada; ao passo que Jesus apela para a autoridade superio r e im ediata residente em si m esm o recebida em seu batism o.21’ O m aravilham ento dos presen tes na sinagoga diante do ensino de Jesus não se deve apenas ao fato de que eles viram um m estre m aior em Jesus que nos m estres da lei. A ntes, o ensino de Jesus é qualitativam ente diferente, “ não com o os m estres da lei” .21 18 Mas bal e sbalai. Sobre exousia, veja ainda: ‘T ’יי h e Authority o f Jesus” , Introdução 6.1; e J. R. Edwards, “T he Authority o f Jesus in the G ospel o f M ark” , J E T S 37 (1994), p. 2 1 7 2 2 .־ 2l) “Todas as ações e palavras [de Jesus] estão conectadas com João e rem ontam ao espírito da descida de D eus sobre ele após ter aceitado o batism o pelas m ãos de João Batista” (B. Μ. E van Iersel, Reading M ark [Edinburgh: T. & Τ . Clark, 1989], ρ.148). 21 D. D aube (”exousia in Mark 1 22 and 27” , /73 '39 [1938], p. 45-59) tenta explicar a oposição dos mestres da lei a Jesus argum entando que havia duas classes de mestres da lei na época de Jesus, um a classe inferior de m estres elementares, cham ada em hebraico de sopherim (gr. grammateis), e um g rupo m enor de m estres da lei da elite que ensinavam com reshut {exousia). Jesus, de acordo com a percepção de Daube, pertencia ao últim o grupo, e esse relato sobre o m aravilham ento das multidões ocorre na rem ota Galileia onde apenas os m estres da lei m enores eram em geral encontrados. N o entanto, contra a tese de D aube, é preciso dizer que o N ovo Testam ento não m ostra nenhum a consciência de classe dos superm estres da lei, nem que Jesus pertencia a esse grupo. U m a vez que os m estres da lei não são m encionados nem em jo se fo nem em Filón, o testem unho do N ovo Testam ento 88M arcos 1.22 D avid Flusser, o acadêm ico judeu estud ioso do judaísm o do segundo tem plo, argum enta co n tra a tendência nos estudos acadêm icos con tem porâ- neos sobre o N T a relegar os testem unhos da autoconsciência preem inente de Jesus aos estágios posterio res da tradição do evangelho. F lusser fundam enta seus argum entos na evidência da au toproem inência incom um de Hillel e do M estre d a ju s tiça do Cunrã. Flusser, apesar das sem elhanças en tre Jesus e Hil- lei, declara que “há um a g rande d iferença en tre os dois. A au tocom preensão de Hillel não se lim itava a sua própria pessoa, mas, antes, era um tipo para todas as pessoas. A consciência de Jesus de seu valor exaltado vinha, com o a de Hillel, acom panhada pela hum ildade pessoal e opunha-se a qualquer sinal de um ‘culto à personalidade’, m as estava inextricavelm ente ligada com o co- nhecim ento de que sua p róp ria pessoa não era intercam biável com qualquer ou tra pessoa. E le com preend ia a si m esm o com o ‘o F ilho’, o que significava que tinha um a com issão e tarefa centrais n o p lano de D eu s” .22 M arcos observa o m aravilham ento da congregação com o ensino de Jesus, m as não relata o co n teú d o desse ensino. A ênfase recai sobre Jesus, o m estre. H á 35 ocorrências em várias form as da palavra para “ensino” em M arcos,23 e em todas elas, exceto um a, Jesus é o sujeito. N a sinagoga de C afarnaum , o “ ensino” su rp reende de fato a congregação, m as p o r causa da au toridade do m estre, m uito distin ta daquela dos m estres da lei. N o evangelho de M arcos, a pessoa de Jesus é m ais im p o rtan te que o assunto de seu ensino. Se quiserm os saber do que consiste o evangelho ou ensino de Jesus, som os direcionados a sua personificação em Jesus, o m estre. transform a-se em um a peça de evidência contrária à tese de D aube. T am pouco, a tentativa de D aube para equacionar reshut com exousia é bem -sucedida. Reshui ocorre em apenas três textos fragm entados em MM M (1QM 12.4; 4QM 1 1 + 1.3; 4QM1 8+1.5), e nenhum deles carrega a força de mashalou de shalat. 22 D. Flusser, Entdeckungen imNeuen Testament. Band 1: Jesusworte undihre Uberlieferung (Neukirchen-Vluyn: N eukirchener Verlag, 1987), p. 210-15 [minha tradução]. O bserve ainda, o julgam ento de M. Hengel sobre a autoridade de Jesus: “A afir- m ação de Jesus à autoridade [...] vai m uito além de qualquer coisa que pode ser alegada com o um tipo profético ou paralelospara o cam po do Antigo Testam ento e do período do N ovo Testam ento. [...] [El]e perm anece com o o últim o recurso incom ensurável e confunde de m odo tão básico todas as tentativas de ajustá-lo nas categorias sugeridas pela fenom enología ou pela sociologia da religião” (The Charismatic Leader and H is Followers, p. 68-69). 23 Didaskein, “ensinar” (dezoito ocorrências), didaskalos, “m estre” (doze ocorrências), didachê, “ensino” (cinco ocorrências). M arcos 1.23-2689 23-26 M arcos, para a prim eira aparição pública de Jesus, escolhe um encon tro na sinagoga de C afarnaum no qual o Reino de D eus bate de frente com seu derradeiro oponen te , em bora este seja invisível — a estru tu ra de poder do mal. O d u ro teste da autoridade de Jesus vem em 1.23. A inda mais im pressionante que a autoridade de Jesus com o m estre é sua suprem acia no reino sobrenatural. C om eçando com essa h istória (veja tam bém 3.7-12; 5.1- 20), as expulsões de dem ônio em M arcos descrevem o conflito em ocionante entre o R eino de D eus e o dom ínio de Satanás, en tre o ungido com o Espí- rito de D eus e aqueles cativos de espíritos im undos. A irrupção do Reino de Deus em Jesus com eça prim eiro, de acordo com M arcos, não em um a arena hum ana, m as em um a arena cósm ica, a fim de am arrar o “ hom em fo rte” (3.27) que exercita p o d e r sobre a ordem natural. N a verdade, os dem ônios, com o os próprios poderes sobrenaturais, reconhecem a m issão e a autoridade de Jesus antes que a hum anidade o faça (1.24; 3.11; 5.7). O s dem ônios se transform am na segunda parte da apresentação de Jesus p o r M arcos, após a voz do céu no batism o (1.11), para anunciar a filiação divina de Jesus. O dem oníaco grita: “O que queres conosco, Jesus de N azaré? Vieste para nos destru ir? Sei quem tu és: o Santo de D eus!” (v. 24). A expressão “espírito im undo” é um a expressão favorita de M arcos (onze ocorrências) para desig- nar os espíritos malignos, oco rren d o aproxim adam ente o m esm o núm ero de vezes que “d em ô n io ” (treze ocorrências), e os dois te rm os ocorrem apenas na prim eira m etade do evangelho. “Im u n d o ” indica o que é po lu ído ou contam inado, o que, da perspectiva judaica, equivale a im piedoso. O apelo m elancólico do dem oníaco traz à m em ória as palavras desesperadas da viúva de Sarepta para Elias (lR s 17.18). A frase “ O que queres conosco?” (lit. “ O que [é] para nós e você?”) o co rre com frequência na LX X e no N ovo Testa- mento.24 A frase, com exceção de João 2.4, indica que os dois concernentes nesse relato não têm nada que ver um com o outro . O dem ônio aqui, com o em ou tros trechos (5.9), refere-se a si m esm o no plural, talvez porque isso reflita a experiência subjetiva da pessoa possuída p o r dem ônio que abriga as forças malignas que estão atuando em seu ín tim o (tam bém 5.9). O u talvez o espírito im undo saiba que a m issão de Jesus não é apenas d erro ta r um de- mônio, m as destru ir toda a estru tu ra de p o d er dem oníaca. A palavra grega por trás de “ rep reendeu” (v. 25, epitimari) é um te rm o técnico no judaísm o “por m eio do qual os poderes m alignos são subm etidos e o cam inho, atra 24 LXX: Juizes 11.12; 2Samuel 16.10; 19.23; IReis 17.17; 2Reis 3.13; 9.18; 2Crôni- cas 16.3; 35.21; NT: M arcos 5.7 par.; M ateus 27.19; Lucas 4.34; João 2.4. 90M arcos 1.27-28 vés disso, é p reparado para o estabelecim ento do governo justo de D eus no m u n d o ” .25 O prim eiro em bate com os subord inados após a ten tação é um evento sem luta. O fo rte F ilho de D eus prevalece sobre o m al e am arra o “hom em fo rte” (3.27). O dem ônio refere-se a “Jesus de N azaré” com o “o Santo de D eu s” . Isso po d e refletir a crença de que falar o no m e de um inim igo espiritual garantia àquele que o proferia o dom ín io sobre ele. O título “ o Santo de D eu s” não só traz à lem brança a filiação divina de Jesus confirm ada no batism o (1.11), m as aparen tem ente com para Jesus a Sansão, o subjulgador p o deroso dos filisteus, a única pessoa na Bíblia cham ada de “ nazireu de D eu s” (Jz 16.17; ARC). E possível acrescentar um a correlação en tre o vo to de “ nazireu” de Sansão e a referência ao fato de Jesus vir de “N azaré” , pois esses dois te rm os são provenientes da m esm a raiz hebraica.26 Jesus, mais um a vez an tecipando a im agem do “h o m em fo rte” em 3.27, subjuga o príncipe m aligno e seus subord inados pelo p o d er do R eino de D eus. 27,28 A expulsão do dem ôn io term ina com o m aravilham ento de to- dos os presentes. O te rm o “ to d o s” é enfático em grego (hapantes), com o sentido literal de todos ali presentes. A palavra para “adm irados” (gr. tham- beiri) deriva-se da raiz “im pressionar” , com o sentido de causar surpresa ou surpreender.27 A euforia de 1.27, de m o d o bastan te in teressante, resu ltou na tradição textual grega confund ida p o r um rebuliço de leituras variantes.28 A 25 H. C. Kee, “T h e Term inology o f M ark’s Exorcism Stories” , N T S 14 (1968), p. 235. 26 A correlação com Sansão se to rna plausível pelas designações “N azareno” (NVI “N azaré”) e “o Santo de D eus” , e essas duas designações são aplicadas a Sansão em Juizes 16.17 (LXX), que no texto A é cham ado de na^iraios theou·, e no texto B, hagiostheou. O term o hebraico po r trás de na^iraios, ni%ir, significa “ ser consagrado ou devotado” , daí a correlação com “o santo de D eus” . Veja, E. Schweizer, “E r wird N azorãer heissen” , em Neo testamentica. Deutsche und Englische Aujsàt^e 1951- 1963 (Z ürich/S tuttgart: Zwingli Verlag, 1963), p. 51-55. A tentativa de Lohm eyer (Das Evangelium des M arkus, p. 37) de explicar “o Santo de D eus” com referência ao sum o sacerdote A rão é m enos plausível. 27 Marcos registra com frequência o efeito público da autoridade de Jesus com su- perlativos: ekplêssõ (6.2; 7.37; 10.26; 11.18); thauma^õ (5.20; 15.5, 44); ekthaumasp (12.17); thamboumai (1.27; 10.24,32); ekthamboumai (9.15; 16.5); existêmi (2.12; 5.42; 6.51);phoboumai (4.41; 5.15, 33, 36; 6.50; 9.32; 10.32; 11.18; 16.8). Veja Cranfield, The Gospel According to Saint M ark, p. 73. 28 Veja M etzger, TC G N T, p. 75. M arcos 1.27-2891 im pressão da autoridade de Jesus causa um p ro fu n d o im pacto, m as tam bém as “notícias a seu respeito se espalharam rap idam ente p o r toda a região da Galileia” (v. 28). O relato inicial sobre Jesus na sinagoga de C afarnaum não é apenas de um a vitória do Santo de D eus sobre as forças malignas e subjugadas, com o se dois jogadores de xadrez estivessem m anipulando peões sobre um tabuleiro buscando a própria vantagem . A derro ta do “hom em fo rte” (3.27) não acontece às custas das vítim as de Satanás, m as em favor delas. N ão só os espíritos im undos são expulsos, m as tam bém as pessoas destru ídas são restauradas à saúde e integridade e à possibilidade de restauração com seu Criador, em cuja im agem são feitos. A exousia de Jesus é surpreendente , não com o um a dem onstração da grandeza de Jesus, m as com o um po d er de redenção dos cativos. UM D IA N A V ID A D E J E S U S (1.29 -3 4) M arcos ap resen ta os eventos de 1.21-38 com o eventos acontecendo em apenas um dia e cujas atividades são unidas com cinco ocorrências de euthys (w . 21,23,28,29,30; traduzido pela N V I de várias form as p o r “ logo” , “justo naquele m o m en to ” , etc.). O te rm o euthys, com onze ocorrências no capítulo um (e mais de quarenta ocorrências no evangelho com o um todo), tem pera o relato com um senso de urgência. O ritm o ráp ido da ação e a estrutura tem poral com prim ida sinalizam que a autoridade de Jesus com o o Filho de D eus em erge em ação decisiva. E ainda sábado (1.21,32), e Jesus, após deixar a sinagoga, en tra na casa de Sim ãoe A ndré com T iago e João, os quatro pescadores cham ados em 1.16-20. A cura da sogra de P edro nos versículos 30,31 é m enos excepcional que a m aioria dos m ilagres de Jesus e pode ter sido eclipsada p o r obras e m aravilhas aparen tem ente m ais rele- vantes. A história, no en tan to , tem um toque de um a rem iniscência pessoal e foi incluída p o r causa da influência de Pedro.29 A inclusão desse milagre m odesto, e sua subsequente m ultiplicação em m eio a “ toda a cidade” (1.33) 29 T. Z ahn (seguido po r m uitos outros) sugere que a história surge de um relato em prim eira pessoa feito po r Pedro, e este seria assim: “Viemos diretam ente da sinagoga para nossa casa, e T iago e João nos acom panharam ; e m inha sogra es- tava doente com febre, e falamos com ele [Jesus] de imediato concernente a ela” (Introduction to the New Testament, 2.496-97). A sugestão de Z ahn tam bém pode lançar luz sobre a confusa tradição textual grega do versículo 29. E m bora muitos manuscritos de peso apoiem o pronom e singular (“ele [Jesus] foi à casa”), a leitura plural (“ fom os à casa”) explica m elhor as variantes e concorda com o testem unho de Pedro sugerido po r Zahn. Veja tam bém , M etzger, TC G N T, p. 75. 92M arcos 1.29-31 e “ toda a Galileia” (1.39), assevera a solidariedade de Jesus e o engajam ento com as pessoas com uns e suas necessidades com uns. 29 A um a distância do arrem esso de um a pedra da sinagoga de Cafarnaum fica um a estru tu ra que, razoavelm ente, po d e ser identificada co m o a casa de Pedro. A casa faz parte de um am plo com plexo “ insular” , no qual as portas e janelas se abrem para o pátio interior, e não para o exterior, para a rua. O pátio, acessado p o r um p o rtão na rua, era o cen tro da vida das casas ao seu redor, co n tendo lareiras, m o inhos para os grãos, prensas m anuais e escadas para os telhados das casas. Essas casas foram constru ídas com o paredes pe- sadas de basalto p re to sobre as quais era p o sto um telhado p lano de m adeira e palha. E m b o ra a casa em questão tenha sofrido vários desenvolvim entos em séculos sucessivos, as investigações arqueológicas descobriram grafites devocionais e sagrados em grego, latim , siríaco e aram aico, rabiscados nas paredes de argam assa, ind icando que foi venerada com o um lugar de reunião para os cristãos, e talvez com o um a igreja, do fim do século I ou início do século II. H á um a g rande probabilidade de que o local preserve a casa de Pedro.30 N e n h u m local, incidentalm ente, foi identificado na E scritu ra ou na tradição co m o a casa de Jesus, e é possível que Jesus viveu com P edro em C afarnaum . 30 N a casa, a sogra de P edro está doen te “com febre” . A palavra para “ febre” (gr.pyresso) é m uito in frequen te n o N o v o T estam ento e m uito gené- rica para identificar a natureza ou causa da doença (veja Jo 4.52; A t 28.8). N o N o v o T estam ento e n a tradição rabínica, as febres em geral são atribuídas à punição divina ou possessão dem oníaca, e isso ainda é verdade em m eio a m uitos beduinos no O rien te M édio. N o sso relato não apresen ta nen h u m indício de punição divina ou possessão dem oníaca, m as o relato paralelo em Lucas identifica o m ilagre com o um a expulsão de dem ônios.31 31 M arcos, em vez de discutir a natureza da febre, enfatiza a to tal suficiên- cia de Jesus com o aquele que cura. N ão existem feitiços nem encan tam entos típicos dos operadores de m aravilhas helenistas. A ntes, Jesus, ao ouvir sobre a febre, “ se aproxim ou dela [a sogra de Pedro], tom ou-a pela m ão e ajudou-a 3u Corbo, “Capernaum”,ABD 1.867-68. 31 “ [Jesus] [...] repreendeu a febre, que a deixou” (Lc 4.39). A palavra grega “repre- endeu”, epüiman, é um termo técnico comum para a expulsão de demônios. Sobre “febre” , veja K. Weiss, “pjressõ”, ΊΌΝΤ6.956-59. M arcos 1.32-3493 a levantar-se” . O grego apresen ta “ ajudou-a a levantar-se” n o tem po verbal im perfeito (“ele a estava ajudando a se levantar”), com o se a cura estivesse sendo lem brada, de novo um a sugestão de um a rem iniscência pessoal de Pedro. A cura d epende apenas de Jesus, cujo toque pessoal e com paixão restauram a saúde da m ulher doente.32 E m resposta à cura, a sogra de P edro “com eçou a servi-los” (1.31). Esse versículo é citado com frequência para a apoiar a ideia de relegar as mulheres para as funções de serviço. Isso não p o d e ser considerado com o uma cono tação da ideia de subserviência ou inferioridade para M arcos, pois a palavra grega para “servir” (gr. diakonein) é a m esm a palavra usada para os anjos que “serviam ” Jesus duran te a ten tação (1.13). A lém disso, a m esm a palavra é traduzida p o r “ servir” em 10.45, em que Jesus declara que o Filho do h o m em não “veio para ser servido, m as para servir e d ar a sua vida em resgate p o r m uitos” . Servir é o cam inho de Jesus e daqueles que o servem , e, portanto , descreve um a característica essencial do R eino de D eus que Jesus apresenta e exemplifica. Para M arcos, a resposta apropriada daquele que foi tocado p o r Jesus é servir (“servi-los”) os ou tros, o u seja, a com unhão cristã. (Sobre servir, veja ainda os com entários em 9.35.) 32-34 A com paixão que Jesus d em onstrou pela sogra de Pedro é agora estendida às m ultidões. O sábado se estendia do p ô r do sol da sexta até o pôr do sol do sábado. O desespero do d oen te e do possu ído p o r dem ônio é expressa no sim ples páthos m arcano: “T oda a cidade se reuniu à p o rta da casa” . A p o rta da com paixão e p o d er de Jesus está aberta para eles, pois ele “curou m uitos que sofriam de várias doenças” .33 Q u an d o M arcos diz que 32 É interessante observar a facticidade com que os milagres dejesus são descritos em contraste com aqueles operadores de maravilhas helenistas, bastante conhecidos. Em m uitos relatos helenistas, o verbo “parecer” (dokein), ou algum term o simi- lar, acom panha a descrição de um milagre. Assim, a m enina a quem A polônio, conform e se supõe, levantou dos m ortos apenas “parecia” m orta, de acordo com Filóstrato ( Vida deApol., 4.45). Esculápio, tam bém conhecido pelo nom e de Asclépio, parece “ ter trazido m uitos que m orreram à vida” (D iodoro, 4.71.1-2). As pessoas “supunham ” (hjpolambanein) que Heracles foi ficar com os deuses após ser crem ado (D iodoro, 4.38), e um relâm pago “parece” que caiu no nascim ento de Apolônio (Filóstrato, Vida deA pol 1.4). 33 Uma m udança sutil na ordem das palavras na passagem paralela em M ateus argu- menta em favor da prioridade marcana. E nquanto M arcos diz que “ todos” foram trazidos a Jesus, dos quais “m uitos” foram curados (1.32,34), M ateus 8.16 afirma que “m uitos” foram trazidos, e “ todos” foram curados. A ordem das palavras em 94M arcos 1.32-34 Jesus “cu rou m u ito s” , ele não quis dizer que Jesus cu rou apenas alguns, e não outros. E le em prega o te rm o “ m uitos” com o sentido hebraico (rabbim), ou seja, para abranger “ toda a com unidade” . Jerem ias sugere um a tradução: “ G rande foi o núm ero daqueles cu rados” .34 O te rm o demônios (1.34) desem penha um papel im portan te aqui e em ou tros trechos do evangelho de M arcos. M arcos situa todos os dem ônios e expulsão de dem ônios na prim eira m etade do evangelho, a judando com isso o leitor a co m preender a iden tidade de Jesus. O s profetas previram que D eus baniría os nom es de ídolos no D ia do Senhor (Zc 13.2); para M arcos, o D ia do S enhor é rep resen tado pelo fato de Jesus vencer e ban ir as obras e os servos de Satanás. N o batism o (1.11), a voz do céu anuncia que Jesus é o Filho de D eus. E ssa declaração é reforçada p o r um a série de questões e res- postas alternadas nos capítulos subsequentes. A pergun ta sobre a identidade deJesus veio do lado hum ano (1.27; 2.7; 4.41; 6.2; 6.14-16), e as respostas vieram , em parte , do lado dem oníaco (1.24; 1.34; 3.11; 5.7). O efeito da ação de interação en tre as perguntas hum anas e as respostas dem oníacas revela que os partic ipantes hum anos ainda não en tendem a identidade de Jesus, ao passo que os dem ônios a com preendem , pois eles, com o ele, p ertencem ao m undo espiritual.35 O s dem ônios, p o r sua vez, estão intim am ente relacionados à ordem para que silenciem que oco rre aqui pela segunda vez (veja 1.24,25). “ [Jesus] não perm itia, po rém , que estes [os dem ônios] falassem , po rque sabiam quem M arcos levanta perguntas na m ente dos leitores que se questionam po r que Jesus não curou todos os doentes. É mais razoável supor que M ateus m udou o texto de M arcos e, com isso, livrou-o de um a possível diminuição do poder de Jesus, do que M arcos tenha introduzido essa diminuição no texto de M ateus, de resto bastante feliz. 34 N a literatura talmúdica, harabbim designa consistentem ente “toda a com unidade” . Em Cunrã, da m esm a form a, o term o designa a associação de m em bros totalm ente capacitados. E m Rom anos 5.15, o texto grego hoipolloi (“os m uitos”) transm ite um sentido inclusivo e igualmente universal. O adjedvo anartro, sem artigo, pode transm idr a m esm a conotação (e.g., lEnoque 62.3,5). Veja J. Jeremias, The Eucharistic Words o f Jesus, trad. N. Perrin (London: SCM Press, 1964), p. 179-82. 35 Um a série de m anuscritos gregos (B L W Θ C, mais correções para א ) trazem que os dem ônios reconheceram Jesus com o o Messias {Christos). Parece improvável, portanto, que Marcos tenha incluído Christos, com pouquíssim as ocorrências (sete apenas) no segundo evangelho. A inclusão do título é explicada mais provavelmente com o um a assimilação de Lucas 4.41. Se o título fosse original de M arcos, ficaria difícil imaginar um escriba o omitíndo. M arcos 1.32-3495 ele era.” Λ o rdem para silenciar toca um dos nervos mais con troversos do evangelho. P o r que Jesus aparen tem ente trabalha com p ropósito s contrários a si m esm o p o r p ro ib ir que os curados o to rn em conhecido? A ordem para silenciar parece fru strar a publicação do Reino de D eus para o qual ele veio (1.14,15). U m a explicação adequada sobre a o rdem para silenciar parece exigir três com ponentes. Prim eiro, segundo um a esfera estratégica e prática, era necessário que Jesus silenciasse as falas m essiânicas sobre ele m esm o um a vez que estas carregavam conotações de libertação m ilitar (veja ainda sobre Cristo em 8.29). Essas conotações não só eram inapropriadas a sua missão, mas tam bém a publicidade do títu lo “M essias” (ou algum o u tro equivalente) convidaria um a rápida in tervenção da ocupação rom ana. A lém disso, Jesus rejeita qualquer anúncio sobre sua pessoa e m issão pelos dem ônios que se opõem ao R eino de D eus. Todavia, a o rdem para silenciar está enraizada em interesses mais que estratégicos. Segundo, e ainda mais im portan te , parece derivar do perfil do Servo do S enhor segundo o qual Jesus m odela de fo rm a conscien te seu ministério. O Servo é definido pela m oderação e hum ildade: “N ão quebrará o caniço rachado” (Is 42.3). E ssa m oderação chega à mais plena expressão em Isaías 49.1-6. E m b o ra o Servo sinta que tem se “afadigado sem qualquer propósito” e “gastado [...] [sua] força em vão” , D eus garante o contrário para seu servo, ou seja, de que ele será “luz para os gen tios” . A habilidade da mensagem do Servo (“ fez de m inha boca um a espada afiada”) e a abrangência de sua influência (“ele m e to rn o u um a flecha polida”) estão guardadas na ocultação (“ na som bra de sua m ão ele m e escondeu [...] e escondeu-m e na sua aljava”). O s Salm os sabem que o justo tem de estar velado (17.8; 27.5; 64.3), m as a ideia chega a sua p lena expressão nos hinos do Servo em Isaías, em que a ocultação se to rn a um elem ento defin idor da m issão do servo. O tipo do Servo do S enhor parece exercer a influência mais fo rte possível sobre o m inistério de Jesus (M t 12.15-21). N en h u m a o u tra figura, A braão, M oisés, Samuel ou um dos reis ou profetas, co rresponde in tim am ente ao m inistério de Jesus nem influenciou seu m inistério m ais p ro fundam en te que o Servo do Senhor. O m otivo do Servo é seguram ente a chave para a p ergun ta p o r que o Filho de D eus canaliza sua au toridade e p o d er na ocultação. A quilo que verdadeiram ente m uda o coração hum ano e constrange derradeiram ente a pessoa a reconhecer e seguir Jesus jamais p o d e acon tecer p o r in term édio 96Excurso : o m otivo do segredo da coerção ou dem onstração de p o d er m ilagroso. Jesus não quer nenhum a aliança forçada p o r m eio do m aravilham ento e perplexidade. A fé de seus discípulos tem de ser evocada p o r in term édio da hum ildade e basicam ente p o r m eio do sofrim ento . Se a pessoa não receber Jesus dessa form a, tam bém não o receberá em to d o seu p o d er e majestade. A ordem para silenciar, p o r conseguinte, rep resen ta in teresses estra- tégicos e tipológicos n o m inistério h istórico de Jesus. C ontudo , o tem a do silenciar desem penha um terceiro papel no evangelho de M arcos.36 A lém de seus papéis n o m inistério h istórico de Jesus, M arcos em prega o tem a para seu p róp rio p ro p ó sito cristológico, a saber, que todas as especulações sobre Jesus, antes da consum ação de sua ob ra na cruz, são prem aturas. Só na cruz Jesus p ode ser co rretam ente com preend ido p o r quem ele é. Todas as falas sobre Jesus — e em especial aquelas vindas dos m em bros da rebelião — antes da confissão do centurião aos pés da cruz (15.39), são prem aturas o u falsas. P o r conseguinte, os m otivos estratégicos e tipológicos na v ida de Jesus e os m otivos cristológicos na história de M arcos são coeren tes na o rd em de Jesus para silenciar. Excurso: O motivo do segredo e a autoconsciência messiânica de Jesus (1.34) O m otivo do segredo é um a parte ineren te da tram a do evangelho de M arcos. O s demônios, em três ocasiões, são ordenados a silenciar (1.25; 1.34; 3.11). Jesus o rdena o silêncio após quatro milagres (a purificação de um lepro- so, 1.44; o ressuscitar de um a m enina, 5.43; a cura de um surdo-m udo, 7.36; a cura de um cego, 8.26). O s discípulos são ordenados duas vezes a silenciar (8.30; 9.9). Jesus, p o r duas vezes, se afasta das multidões para escapar da deten- ção (7.24; 9.30). M arcos, além dessas adm oestações para o segredo, deixa o segredo im plícito em ou tros aspectos do m inistério público de Jesus. Jesus só explica os m istérios do re ino quando está em “particu lar” com os discípulos, ao passo que, em público, o re ino é velado nas parábolas (4.10-12). E le for- nece instrução particular aos discípulos sobre a co rrupção in terna (7.17-23), o sofrim ento m essiânico (8.31; 9.31; 10.33) e a segunda v inda (13.24-27). Jesus escolhe revelar o m istério e glória de sua filiação divina apenas para os seguidores ín tim os e, depois, em cenários reservados (4.10-20; 8.27— 9.13). 36 Sobre o uso do m otivo do Servo de lavé na retratação do ministério de Jesus, vejaj. Marcus, The Way o f the Lord: ChristologicalExegesis o f the Old Testament in the Gospel o f M ark (Edinburgh: T. & T. Clark, 1992), p. 186-94; e R. E. Watts, Isaiah’s New Exodus and M ark, W U N T 88 (Tübingen: M ohr Siebeck, 1997), p. 119-21. Excurso : o m otivo do segredo97 Todavia, ironicam ente, a o rdem para silenciar resulta em geral no oposto : “C ontudo, quan to m ais ele os proib ia [de con tar a ou tras pessoas], m ais eles falavam” (7.36; 1.45; 5.20; 7.24). W illiam W rede, em The Messianic Secret [O segredo m essiânico],37 ten tou argum entar que as adm oestações para o segredoem M arcos não passavam de adições derivadas da tradição pré-m arcana e do p ró p rio M arcos. W rede acreditava que a igreja prim itiva foi pega na contrad ição en tre o que é rece- hido sobre Jesus e o que p o r fim acreditavam sobre ele. W rede sugeriu que as tradições mais prim itivas da vida de Jesus eram não m essiânicas, em bora a igreja, após a Páscoa, veio na realidade a crer que Jesus era de fato o Messias. A presença do m aterial sobre o segredo forneceu a chave, na avaliação de Wrede, para resolver a contradição. A igreja, e M arcos o evangelista, inseriram adm oestações para o segredo em vários p o n to s no evangelho para explicar por que a vida terrena de Jesus parecia não m essiânica, bem com o para ex- plicar com o as gerações posteriores depois da ressurreição (e.g , 9.9) vieram a considerá-lo m essiânico. A teoria de W rede, p ro p o sta pela prim eira vez em 1901, encanta há um século os estudos acadêm icos sobre M arcos. Sua influência, p o rtan to , foi desproporcional ao seu m érito .38 A teoria é fundam entada no p ressuposto essencial de que o Jesus h istórico não acreditava que era o M essias nem , tam pouco, era o Messias. Se a consciência de Jesus de sua filiação divina pode ser razoavelm ente estabelecida, en tão a teoria de W rede cai p o r terra. E precisam ente essa crença que o evangelho de M arcos p ressupõe em todos seus textos, pois um estrato não m essiânico da tradição do evangelho tem ainda de ser descoberto . A consciência m essiânica de Jesus está pro funda- m ente en tranhada na fala, ações e co m p o rtam en to de Jesus, em especial conform e expresso em sua exousia, sua au toridade divina que com eçou em seu batism o.39 E preciso lem brar que a proclam ação e escrita do evangelho 37 W W rede, The Messianic Secret, trad. J. G reig (C am bridge/L ondon: Clarke, 1971). 38 Já em 1926 Geerhardus Vos expôs e refutou as falhas na tese de Wrede (TheSelf-Disclosure of Jesus [Grand Rapids: Eerdmans, reimpr. em 1954]). Veja também V Taylor, The Gospel According to St. M ark, p. 122-24; O. Betz, “D ie Frage nach dem messianischen Bewusstsein Jesu” , N ovT 6 (1963), p. 28-48; G. E. Ladd, Λ Theology o f the New Tes- tament (G rand Rapids: Eerdm ans, 1974), p. 169-71; R. P. M artin, M ark, Evangelist and Theologian (G rand Rapids: Zondervan, 1972), p. 148-50; N. T. W right, The New Testament and the People o f God (London: SPCK, 1992), p. 391. 39 “Em último recurso, o segredo messiânico rem onta à misteriosa autoridade messiâ- nica de Jesus. Portanto, não é invenção do evangelho da com unidade prc-marcana, 98Excurso : o m otivo do segredo surgiu no seio do judaísm o. C onsiderando-se a relevância fundam ental do Shema (D t 6.4) e o m ono te ísm o n o judaísm o, dificilm ente é concebível que os judeus que creram que Jesus era o M essias teriam inventado sua filiação divina. A única resposta razoável para fazer cair sobre eles m esm os a aversão dos com patrio tas judeus p o r proclam arem o evangelho é que criam que Jesus era o Filho de D eus e o Messias. Jesus dificilm ente podería ser proclam ado com o o M essias depois da ressurreição, a m enos que já tivesse sido reconhe- cido com o tal duran te seu m inistério. A lém disso, é um salto considerável de fé crer que os judeus estivessem dispostos a en tregar seu tru n fo do m o- no teísm o em tro ca da aceitação do evangelho p o r “gentios pecadores” (G1 2.15) e idólatras (Rm 1.23), co n fo rm e se supõe com frequência. P o r fim , a crucificação é p raticam ente inexplicável, a m enos que R om a suspeitasse que Jesus era um im p o sto r messiânico. A teoria de W rede resulta em um a visão to talm en te cética do valor his- tórico de M arcos e d a coerência teológica e literária desse evangelho. N ão é necessário reco rre r a um a teoria atestada com p ressupostos literários e h istóricos questionáveis a fim de responder à pergun ta p ro p o sta p o r W rede. A evidência in te rn a nos p róp rio s evangelhos, m últipla e variada, é de que o gênero dom inan te da autoconsciência m essiânica de Jesus foi transm itido para a igreja prim itiva e para M arcos pelo p róp rio Jesus. O m otivo do segre- do surgiu da identificação consciente de Jesus com o m otivo d o Servo do S enhor em Isaías e da necessidade de guardar sua identidade m essiânica das com preensões prem aturas e falsas. C om relação à o rdem para silenciar, os fatores h istóricos e literários argum entam que a apresentação de Jesus p o r M arcos está em continu idade essencial com o Jesus da história. A JO R N A D A IN T E R N A , A JO R N A D A E X T E R N A (1.3 5 3 9 (־ M arcos se m ove agora do particular para o geral. A cura da sogra de Pedro em 1.30,31 dá lugar a um resum o geral da m issão de Jesus nos versículos 35- 39, sem detalhes de localização nem duração. O efeito do resum o é m ostrar mas um a expressão do mistério do próprio Jesus que avança para a questão do Messias. [...] O mistério da exousia messiânica de Jesus e o mistério do reino em 4.11 estão indissoluvelm ente conectados na pessoa histórica de Jesus. [...] Com um a figura tão única quanto Jesus, que destrói todas as estruturas históricas, não podería haver nenhum a ‘tradição unidim ensional’ sem tensões e aparentes contradições. Sua pessoa e atividade não podem ser forçadas nas fronteiras das teorias cristológicas triviais e pouco originais” (M. Hengel, Studies in the Gospel o f M ark, trad. J. Bow den [London: SCM Press, 1985], p. 45). M arcos 1.3599 que o m inistério de Jesus se estende além tan to dos confins de C afarnaum quanto do escopo da narrativa do evangelho até agora. A pesar de sua natureza geral, esse breve resum o histórico avança o p ropósito teológico de M arcos de que Jesus, em seu m inistério de ensino e cura, continua essencialm ente mal com preendido, e não só pelos líderes religiosos e m ultidões, m as tam bém por seus p róp rio s discípulos. 35 A abertu ra desajeitada e redundan te de 1.35 em grego {kaiprõi ennycha lian׳, N V I: “D e m adrugada, quando ainda estava escuro”) soa m ais coloquial que literária, talvez refletindo um a lem brança de Pedro. Jesus acorda cedo e vai para C afarnaum para o ra r em solitude. A palavra grega para “lugar deserto” (eremos) é a m esm a palavra para o deserto onde João pregava (1.4) e onde Jesus foi ten tado (1.12). C on fo rm e observam os an terio rm ente, essa palavra em M arcos não co no ta um deserto arrasado, mas, refletindo a jor- nada de Israel no deserto depois do êxodo, um lugar de arrependim ento , restauração e com unhão com D eus.40 M arcos registra Jesus o rando apenas três vezes n o evangelho; aqui (1.35), após alim entar cinco m il pessoas (6.46) e no G etsêm ani (14.32-39). Todas as três vezes oco rrem à noite e em lugares solitários. Todas as três oco rrem em contex tos de oposição ao m inistério de Jesus, quer de m o d o im plícito quer de fo rm a explícita. Jesus, em m eio a um redem oinho de atividade, busca um lugar quieto, um p o n to im óvel, para orar para o Pai. H á um paralelo sugestivo nas palavras en tre Jesus sair para o ra r (v. 35) e sair para p regar e expulsar dem ônios (v. 39). A o b ra do F ilho de D eus é um trabalho tan to in terno quan to externo. Jesus não p ode estender a si m es- m o em com paixão sem prim eiro atender à fon te de sua m issão e p ropósito com o Pai; e, inversam ente, sua unidade com o Pai o im pele para fora em sua missão. A relevância do m inistério de Jesus consiste não só no que faz pela hum anidade, m as tam bém em quem ele é em relação ao Pai. Jesus, de acordo com a narrativa de M arcos, não é nem um asceta contem plativo nem um ativista social. E le não p rom ove um a agenda, m as deriva um m inistério de um relacionam ento com o Pai.E le é o Filho, um em ser com o Pai; e o Servo, um em p ropósito com a vontade do Pai. 4u “A errância de Israel sob a liderança de Moisés foi uma marcha sob a orientação do Espírito de Deus (Is 63.11), e o Espírito deu às pessoas descanso (Is 63.14). Como o primeiro êxodo foi uma jornada sob a liderança do Espírito de Deus, não é de surpreender que o profeta [Isaías] espere um novo derramamento na época do segundo êxodo” (U. Mauser, Christ in the Wilderness [London: SCM Press, 1963], p. 52; veja também p. 105-8). 100M arcos 1.36-37 36 A tradução da N V I (“Simão e seus com panheiros foram procurá-lo”) é anêm ica com parada com as palavras vigorosas de M arcos: Sim ão e seu g ru p o o “buscaram com diligência” (gr. katadiõkeiri). O verbo grego p ode até m esm o con o tar “caçado” . Lucas 4.42 diz que Jesus foi perseguido pelas “m ultidões” , e não p o r Simão, talvez para po u p ar um a ofensa a Sim ão e aos discípulos. M arcos, no en tan to , identifica in tencionalm ente o in tru so com o Sim ão P edro e os ou tros discípulos. E ssa in trusão aparen tem ente inócua e a oposição m ais infam e de P edro em 8.32,33, a qual fo rm a o divisor de águas em M arcos, são curiosam ente parecidas. N as duas passagens Sim ão Pedro é o único discípulo m encionado pelo nom e, e em am bas ele ten ta im pedir Jesus de cum prir sua missão. N as duas ocasiões, descobrim os que o principal apósto lo é o principal antagonista do F ilho de D eus. E sse episódio prenuncia a verdade mais enfática de 8.31-39, de que o discipulado consiste em seguir o Filho de D eus, e não em ten tar con tro la r o trabalho de D eus.41 37 O s discípulos, quando encon traram Jesus, anunciaram : “T odos estão te procurando!” . M ais um a vez, a linguagem é enganosa. A palavra grega p o r trás de “p ro cu ran d o ” (içêtein) oco rre dez vezes em M arcos, e, em cada ocasião, ela carrega conotações negativas. As duas prim eiras ocorrências da palavra referem -se à in terferência de Jesus e à o b strução de seu m inistério (1.32; 3.32); as duas ocorrências seguintes referem -se à descrença e falta de fé (8.11; 8.12); e as ocorrências restantes referem -se às tentativas de m atar Jesus (11.18; 12.12; 14.1; 14.11; 14.55).42“Procur[ar]” sugere um a tentativa de determ inar e contro lar, em vez da atitude de se subm eter e seguir. N esse as- pecto, p rocurar Jesus não é um a virtude no evangelho de M arcos. Tam pouco, as m ultidões clam ando é um sinal de sucesso ou ajuda para m inistrar. Aqui, com o em ou tros trechos de M arcos, o entusiasm o não deve ser con fund ido com fé; na verdade, ele po d e se o p o r à fé. 41J. Crossan (The HistoricalJesus, p. 346-47), com correção, reconhece o conflito entre Pedro e Jesus em 1.36, mas não há nenhuma sugestão, nem aqui nem na rejeição de Jesus em Nazaré (6.1-6), de que esse conflito resultou, conforme argumentou Crossan, da esperança dos discípulos e família de Jesus colherem os benefícios de sua fama e dádivas. O problema não é de “comissão ou corretagem”, para citar Crossan, mas de descrença e compreensão equivocada. 42 A ocorrência final de %êtein em 16.6 é menos pejorativa, mas aqui, também, ela parece questionar as mulheres que buscam Jesus. E provavelmente muito especu- lativo sugerir que Marcos, com essa referência final mais positiva, pretende sugerir que só é possível buscar Jesus após a ressurreição. M arcos 1.38-39101 38,39 O s discípulos ev identem ente querem que Jesus capitalize sua no- toriedade com o o perado r de milagres. Já n o prim eiro dia de seu m inistério público, de acordo com M arcos, a m issão de Jesus é p o sta em perigo, e isso pelos m ais próxim os dele. Jesus, no en tan to , não se desvia de seu propósito , respondendo de form a sim ples e com decisão: “ Foi para isso que eu vim ” . Jesus, com essa declaração despretensiosa, reafirm a sua com issão batism al de serviço que ele cum p re “p roc lam ando as boas-novas” (1.14,15). E m M arcos, a palavra para “proclam ar” (gr. kêryssein), o co rren d o duas vezes nos versículos 38,39, não se reserva apenas à atividade de Jesus ou Jo ão Batista. Uma am pla variedade de arautos proclam a o evangelho — Jesus, Jo ão Ba- tista, um leproso que foi lim po, um dem oníaco curado, os discípulos, até m esm o as m ultidões. O evangelho é proclam ado p o r fon tes inesperadas e improváveis, m as o assunto dos seus vários m ensageiros é consisten tem ente as boas-novas de Jesus.43 M arcos localiza a pregação de Jesus e a expulsão de dem ônios nas “sina- gogas deles” (1.39; A RA )44 O foco do m inistério de Jesus m ais um a vez nas sinagogas judaicas (1.21) o identifica com o m estre de Israel. E le não é, com o os filósofos itinerantes do m u ndo greco-rom ano , um dissidente com estilo próprio nem individualista. O evangelho não é revelado em um vácuo, nem em m ovim entos extáticos e voluntários, dos quais havia um bo m núm ero na Palestina do século I. Jesus direciona seu m inistério para com unidades praticantes da fé no judaísm o em cum prim ento de um a história anterior da revelação (1.2,3). Sua m issão é definida e direcionada pelo com pletar do propósito de D eus para Israel. 43 Há dois conjuntos de variantes textuais no versículo 39. O prim eiro conjunto de variantes diz respeito a èlthen kèryssõn (“veio pregando”), favorecida po r א B L Θ. O apoio textual para essa leitura é levem ente inferior ao im perfeito perifrástico èn kêtyssõn (“estava pregando” ; A C D K W Δ Π), tipicam ente um a construção marcana. C ontudo, um a decisão no prim eiro conjunto de variantes não pode ser traduzida à parte do segundo conjunto de variante. O segundo conjunto de variantes eis tas synagògas autõn (“dentro das sinagogas deles”), adotado por quase todos os m anuscritos m árcanos e claram ente superior a en tais synagògais autõn (“na sinagoga deles”), atestado apenas nos m anuscritos minúsculos e tardios. A variante bem atestada eis tas synagògas autõn exige ser precedido po r um verbo transitivo, e isso argum enta em favor da originalidade do transitivo èlthen, em vez do intransitivo ên, no prim eiro conjunto de variantes. 44 As cidades visitadas po r Jesus eram grandes os suficientes para com portar sina- gogas, as quais exigiam dez hom ens já com barmityyah. A palavra de Marcos para “povoados” (v. 38), kõmopoleis, tam bém sugere cidades de pelo m enos tam anho m oderado, e não pequenos povoados. Veja Str-B 2.3-4. 102M arcos 1.40 J E S U S T R O C A D E L U G A R C O M U M L E P R O S O (1 .4 0 -4 5 ) M arcos, ao anexar essa história a 1.35-39, leva-nos a com preendê-la com o um exem plo do alcance m issionário de Jesus nos “povoados vizinhos” (v. 38) de C afarnaum . E ssa narrativa, com o a anterior, bastan te típica de M arcos, não apresen ta especificidade geográfica. M arcos, assim com o um a estru tu ra elaborada p o d e prejudicar um a g rande p in tura, om ite com regularidade os detalhes contextuáis de m o d o a não prejudicar o foco essencial da narrativa. 40 “U m leproso aproxim ou-se dele” não faz jus a esse encontro altam ente p rovocador e ofensivo. A lep ra era um a doença d issem inada na Palestina. Isso fica aparen te não só pelos vários leprosos que Jesus en co n tro u em seu ministério, m as tam bém pelo excesso de instruções sobre a doença n a M ishná. A lepra, naquela época co m o agora, era um m otivo de superstição e m edo. A lepra é um a doença da pele e, com o todas as doenças da pele, é difícil de ser diagnosticada e curada. As condições dessa doença são discutidas em dois longos capítulos em Levítico 13— 14 que se assem elham a um antigo m anual sobre derm atologia. O te rm o hebraico tsara‘at cobre outras doenças da pele além da lepra, incluindo a ferida purulenta (Lv 13.18), queim aduras (Lv 13.24), coceiras, m icose e condições docouro cabeludo. O s escribas contaram até 72 doenças d istintas definidas com o lepra. N o A ntigo T estam ento , a lepra era em geral considerada com o um a punição divina, cuja cura só poderia ser efetuada p o r D eus (N m 12.10; 2Rs 5.1,2). O pavor de ser con tam inado é refletido na seguinte passagem : “Q uem ficar leproso, ap resen tando quaisquer desses sintom as, usará roupas rasgadas, andará descabelado, cobrirá a parte inferior do ro sto e gritará: ‘Im puro! Im puro!’ E nq u an to tiver a doença, estará im puro. V iverá separado, fora do acam pam ento” (Lv 13.45,46). Isso não é apenas a descrição de um a doença. E um a sentença, cujo pro - pósito era p ro teg er a saúde da com unidade de um contagio apavorante. O tratado Negaim (“Pragas”) da M ishná, e laborando sobre Levítico 13— 14, discute a dissem inação da lepra não só em m eio às pessoas, m as tam bém em relação às vestes (m. Neg. 3.7; 11.1-12) e casas {m. Neg. 3.8; 12-13). O s leprosos eram vítim as de m uito m ais além da doença. A doença lhes roubava a saúde, e a sentença im posta a eles em razão da doença lhes roubava o nom e, a ocu- pação, os hábitos, a família, o convívio social e a com unidade de adoração. O s leprosos, para evitar o con ta to com a sociedade, tinham de to rn a r sua aparência o m ais repugnante possível. Jo sefo fala do ban im ento dos leprosos com o aqueles que “não se distinguem de fo rm a algum a de um cadáver” (Ant. M arcos 1.41-42103 3.264). A referência à lepra de Miriã em N úm eros 12.12 estim ulou vários rabis a se referir aos leprosos com o “m ortos-v ivos” cuja cura era tão difícil quanto ressuscitar dos m ortos.45 O diagnóstico da lepra, p o rtan to , englobava tanto as d im ensões m édicas quan to as sociais. A lepra contam inava a posição de Israel com o povo san to (em bora não contam inasse os gentios, um a vez que estes já eram considerados im undos, m. Neg. 3.1; 11.1). O u tras doenças tinham de ser curadas, m as a lepra tinha de ser purificada (e.g., M t 11.5). O relato de M arcos sobre Jesus e o leproso é o espelham ento d a im agem dessas trágicas realidades, pois não há referência à “ cura” , m as há quatro referências ao “purificar” em seis versículos. A ofensa da ação do leproso logo fica aparente. Exigia-se que os leprosos ficassem “ a certa distância” (Lc 17.12) de cinquenta passos. Se um leproso entrasse em um a casa, ele a contam inava im. Negaim 12— 13), ou se ele ficasse embaixo de um a árvore acabava p o r corrom per todos que passassem em baixo dela (m. Neg. 13.7), en tão a abordagem desse leproso co m prom ete o ritual de purificação de Jesus. O leproso, não obstan te , arrisca tudo , quebrando a lei e os costum es, na possibilidade de ser curado e restaurado p o r Jesus. N en h u m obstáculo, nem m esm o os decretos da Torá, o im pedem de se aproxim ar de Jesus. E ssa aproxim ação e postu ra obsequiosas, “suplicou-lhe de joelhos: ‘Se quiseres, podes purificar-m e!’ ” , traem a longa hum ilhação de sua aflição.46 C ontudo, con tido no pedido do leproso estão os princípios da fé de que Jesus pode salvá-lo. Sua fé é revelada pelo fato de que ele não questiona a habilidade de Jesus para salvá-lo, apenas a disposição de salvá-lo. O anseio do lep roso é p ro fundam ente hum ano, pois ele não duvida da habilidade de D eus, m as apenas de sua disposição — se ele fará o que esse h o m em pediu. 41,42 Surpreendentem ente, a resposta de Jesus não é m enos escandalosa que a audácia do leproso. D ian te de tam anha in trusão , é possível esperar um judeu o b servador se enco lher para se p ro teger e defender. C on tudo , com Je- sus, a com paixão substitui o desprezo. Jesus, em vez de se afastar do leproso, volta-se para ele; na verdade, ele toca esse hom em doen te , fazendo com que 45 Veja Str-B 4/2.750-51; sobre a lepra em geral, veja 4/2.743-63. 46 A tradição textual grega é confusa sobre se “de joelhos” é original ou não. A tra- dição dos manuscritos favorece sua exclusão, sendo uma palavra rara, ocorrendo apenas uma outra vez, em Mc 10.17. Todavia, se fosse original, sua omissão po- deria ser explicada por homoeoteleuton, ou seja, um erro do escriba causado pelos olhos passarem inadivertidamente de uma palavra para outra que tem a mesma sequência de letras no final. Veja Metzger, TCGNT, p. 76. 104M arcos 1.43-44 tivesse con ta to p leno com a intocabilidade ritual e física. O braço estendido de Jesus é um longo alcance para sua é p o c a ... para qualquer época. E ssa atitude rem ove as separações social, física e espiritual prescritas pela T orá e tam bém dos costum es. O toq u e de Jesus fala mais alto que suas palavras; e as palavras de Jesus tocam o lep roso mais p ro fundam en te que qualquer ato de am or hum ano. Jesus n ão só é capaz de curá-lo, m as tam bém deseja fazer isso: “ Q uero. Seja purificado!” . Jesus, de fo rm a diferente de um rabi com um , não fica con tam inado nem co rro m p id o pela doença do leproso ; antes, o leproso é purificado e curado pela santidade contagiosa de Jesus. A N V I descreve Jesus com o “ cheio de com paixão” . O que a N V I não observa é que um m anuscrito im p o rtan te e m uito antigo (D) traz “ cheio de ira” . N esse con tex to e v indo de Jesus, a ira de início parece equivocada. N o entanto, isso p o d e argum entar p o r sua originalidade, um a vez que os copistas tendiam a m udar as leituras difíceis para outras m ais aceitáveis. A lém disso, o fato de que tan to M ateus 8.3 q u an to Lucas 5.13 om item a palavra quan- do recon tam essa h istória é mais com preensível se a palavra original fosse “ira” do que se fosse “com paixão” . A ira p ode não ser tão ofensiva quan to parece ser à p rim eira vista se recordarm os que D eus, em Juizes 10.16, “não pô d e mais sup o rta r o so frim en to de Israel” , atitude m uito parecida com a dem onstrada p o r Jesus aqui. Se “ ira” era a leitura original, ela com certeza indicava que Jesus estava ind ignado com a m iséria do lep roso (tam bém Jo 11.33-38), pois Jesus, de boa vontade, o curou.47 M arcos, co m o se a lepra tivesse sido dissipada pela ira santa, declara: “ Im ediatam ente a lepra o deixou, e ele foi purificado” . 43,44 D e m o d o ab ru p to e firm e, “Jesus o despediu , com um a severa advertência: ‘O lhe, não con te isso a n inguém ’ ” . A palavra para “ severa ad- vertência” significa literalm ente “esfolegar ou bufar” em grego, derivando da palavra hebraica para ira (’ap), cujo sen tido é “abrir as narinas” . A palavra para “despediu” é tam bém m ais forte em grego que o term o usado na N V I. A expressão (gr. ekballein), em geral usada para expulsão de dem ônios, significa que Jesus o m andou em bora com certa rispidez. A o rdem para silenciar Ç‘Olhe, não con te isso a n inguém ” ; grifo do autor) parece ser um a tradução literal 47 A leitura splangnistheis (“cheio de com paixão”) perm anece, no entanto, um a leitura m uito forte, conform e evidenciada pelos argum entos de M etzer em seu favor (TC G N T, p. 76). M arcos 1.43-44105 de um a in junção hebraica falada.48 O encargo sem sen tido para o leproso curado reflete a m esm a determ inação com que Jesus o rd en o u os dem ônios a silenciar em 1.25 e 1.34. Jesus é sério e insistente sobre guardar o véu de sua identidade m essiânica a fim de preservá-la da com preensão equivocada e de repostas falsas (veja A o rd em p a ra s ilen c ia r em 1.34). Jesus o rdena que o hom em siga o ritual tradicional de purificação, con- form e especificado em Levítico 14 e mais tarde elaborado em m. Negaim 14 do M ishná. O lep roso tem prim eiro de se m ostrar ao sacerdote. E m b o ra os sacerdotes estivessem oficialm ente associados com o tem plo cerca de 144 quilôm etros a sul, em Jerusalém , não era incomum encontrá-los nas regiões afastadas, com o a Galileia. O sacerd ó c io de Arão era um a posição heredi- tária; sacerdotes, com o os levitas, em outras palavras, nasciam sacerdotes, e não se to rnavam um . Josefo relata que, em sua época, havia cerca de vinte mil sacerdotes na Palestina (Ag. Ap. 2.108). Eles se dividiam em 24 famílias sacerdotais ou “ fileiras” . C ada fileira precisava se ap resen tar em Jerusalém a fim de servir os peregrinos nas principais festas da Páscoa (primavera), Pentecostés (ou Festa das sem anas, final da prim avera) e D ia da Expiação, seguido pela Festa das C abanas (ou Tabernáculos, no ou tono). D esde en- tão, cada fileira de sacerdotes servia no tem plo p o r um a sem ana, duas vezes anualmente. As tarefas de um sacerdote, p o r conseguinte, eram cum pridas em algumas sem anas do ano. D e acordo com a Carta deAristeias (92— 95), essas tarefas incluíam oficiar a adoração, queim ar incenso, conduzir a liturgia, aceitar sacrifícios e ofertas, ouvir confissões e, acim a de tudo, m atar os anim ais para o sacrifício. O serviço de um sacerdote, nessa ro tação deles, não era m uito pesado, m as, nas festas, o serviço sacerdotal no tem plo poderia ser longo, exigindo m uito deles. A ssim que as tarefas do tem plo fossem cum pridas, os sacerdotes ficavam livres para re to rn ar para suas casas, m esm o que, com o aqui, fosse na distante Galileia. Eles, em períodos em que não trabalhavam no tem plo, serviam co m o escribas, juizes e m agistrados em seus respectivos locais.49 U m a possibilidade legal dos sacerdotes envolvia p ronunciam entos con- cem ente às doenças: “ só o sacerdote po d e pronunciar peprosos] im undos ou purificados” (m. Neg. 3.1; tam bém Lv 13.50; 14.2-4). U m a vez que era tarefa 48 Hora — dh (também Êx 28.40). Veja A. Schlatter, Der Evangelist Matthaus (Stuttgart: Calwer Verlag, 1959), p. 272. 49 Sobre o sacerdocio, veja E. P. Sanders, The Historical Figure of Jesus (London: Pen- guin Press, 1993), p. 41-43. 106M arcos 1.45 do sacerdote garan tir a pureza ritual de Israel, a inspeção de alegados casos de lepra desem penhava um papel natural em seu trabalho. Se um a n o ta de saúde fosse em itida e certificada p o r escrito {m. Neg. 8.10), a pessoa curada era instru ída a ap resen tar duas aves, um a das quais era m o rta n o tem plo em Jerusalém . A ou tra ave era m ergulhada no sangue da ave m o rta e libertada. A pós esperar p o r um período de o ito dias, a pessoa curada ainda trazia três cordeiros para o sacerdote, um pela o fe rta pelo pecado, um pela o fe rta de culpa e um para o ho locausto ou oferta queim ada (Lv 14.10,11; m. Neg. 14.7). Se o suplicante fosse m uito pob re para apresentar três cordeiros, um a redução na o ferta era perm itida. 45 E sse era o p ro toco lo para a purificação de um leproso. O fato de Jesus o rdenar o hom em a seguir tu d o prescrito pela lei revela que ele honrava a lei m osaica. A Galileia, é claro, ficava m uito distante de Jerusalém , e o sacri- fício p rescrito podería ser feito na visita seguinte desse hom em ao tem plo, presum ivelm ente em um período de festa. N esse ín terim , as notícias de sua cura com eçam a se espalhar. Se esse hom em seguiu o ritual de purificação prescrito ou n ão é algo que n ão ficam os sabendo. Só sabem os que ele não obedeceu à o rdem de Jesus para silenciar. “ Ele, porém , saiu e com eçou a to rn a r público o fato, espalhando a notícia.” A sinceridade e hum ildade do lep roso (1.40), após ser curado, transfo rm ou-se em com placência e até m esm o descaso. U m a ironia adversa resulta dessa atitude do leproso. Jesus libertou o lep roso de seu fardo, m as este, ao anunciar as notícias, im pôs um fardo para Jesus, pois ele “ não pod ia mais en trar publicam ente em nenhum a cidade, m as ficava fora, em lugares solitários” . M arcos com eçou essa h istória com Jesus den tro e o leproso fora. N o fim dela, Jesus está “ fora, em lugares solitários” . Jesus e o lep roso trocaram de lugar. Jesus, no início de seu m inistério, já é um de fora na sociedade hum ana. M arcos o re tra ta n o papel do Servo do Senhor que carrega as iniquidades dos ou tros (Is 53.11), e o co m p o rtam en to deles faz com que Jesus seja “con tado en tre os transgressores” (Is 53.12) capítulo três Os problemas com as autoridades M A R C O S 2 .1— 3 .12 M arcos re to rna a ação para C afarnaum onde, em um a sequência de cinco narrativas com pactas, oferece um vislum bre sobre a autoridade de Jesus. Cada história reflete a vida diária em C afarnaum e em seus arredores, e, com exce- ção da prim eira história, cada um a é aproxim adam ente d o m esm o tam anho. A prim eira história com eça com ou tra cura, m as inesperadam ente se volta para um a pergun ta sob re a identidade de Jesus (2.1-12). E n tão , Jesus, em um m ovim ento inaudito cham a um hom em que anda em m á com panhia , um publicano, para se jun tar a seu g ru p o de seguidores (2.13-17). A isso se segue pronunciam entos sobre o jejum (2.18-22) e o sábado (2.23-28), duas questões de considerável in teresse na época de Jesus. M arcos com pleta a sequência mais um a vez na sinagoga de C afarnaum onde um a cura no sábado traz um julgamento horrível con tra Jesus (3.1-6). E m cada um a dessas histórias, Jesus entra em conflito com as autoridades religiosas, principalm ente os fariseus (2.16,18,24; 3.6), m as tam bém com os m estres da lei (2.6) e herod ianos (3.6). Em cada um desses episódios, Jesus suplanta a T orá e a tradição dos anciãos, m ostrando o que acontece quando o M essias se to rn a público, destru indo os costumes e convenções da época. O evangelho d e jo ã o relata que “ [a Palavra] veio para o que era seu, m as os seus não o receberam ” (1.11). E ssa colagem de cinco histórias é um a boa elaboração e com entário dessa declaração.1 M arcos conclui a série de histórias com um resum o da autoridade de Jesus sobre os poderes hostis, físicos e espirituais, e um a segunda confissão dos dem ônios de que ele é o Filho de D eus (3.7-12). 1 Veja a breve discussão de D. E . N ineham sobre as cinco histórias de conflito em 2.1— 3.6 em The Gospel o f S t M ark, p. 88-89. 108M arcos 2.1-4 A A U T O R ID A D E D O F IL H O D O H O M E M (2 .1 -1 2 ) O s tem pos verbais gregos dessa narrativa podem prover um a pista sobre sua com posição. A cura do paralítico se assem elha a um a história m ais antiga apresentada no tem po presente (em grego, 2.3-11) que M arcos estru tura com um a in trodução e conclusão no tem p o pre térito (mais um a vez em grego, w . 1 ,2 /12). A narrativa no tem po p resen te nos versículos 3-11 tem um a qualidade de testem unho ocular que, de m odo concebível, deriva-se de Pedro. 1 A frase “poucos dias depois” separa a narrativa p resen te da viagem de pregação de Jesus relatada em 1.35-45. A notoriedade de Jesus está crescendo, e espalhou-se a notícia de que ele “ estava em casa” . O grego en oikõi, que po d e ser traduzido p o r “em casa” , sugere um local familiar, presum ivelm ente a casa de P edro de 1.29 (veja a descrição em 1.29). O s telhados das casas palestinas, acessíveis p o r escadas de pedra externas, eram tipicam ente planos, apoiados p o r vigas encostadas nas paredes externas da casa. As vigas eram cruzadas p o r estacas e ripas m enores, as quais eram cobertas com palha, e esta, p o r sua vez, era coberta com um a cam ada de barro (daí a referência a “rem overam parte da cobertu ra” , v. 4). O nível do teto , necessitando de um a correção periódica da superfície com um rolo de teto , funcionava m uito com o os deques de ho je em dia, o ferecendo alívio dos côm odos úm idos abaixo, acesso ao ar fresco e um lugar para secar a roupa, com er e até m esm o orar em solitude(veja A t 10.9). 2-4 U m a m ultidão de pessoas se acotovela à p o rta d a casa onde Jesus está (1.33). A multidão desem penha um papel im portan te no evangelho de M arcos.2 M arcos atesta da popularidade de Jesus n a Galileia ao se referir à m ultidão p erto de quaren ta vezes antes do capítulo 10. As m ultidões form am audiências para seu ensinam ento e são ob je to da com paixão de Jesus, m as M arcos jamais descreve as m ultidões se vo ltando a Jesus em arrepend im ento e crença, co n fo rm e exige o evangelho (1.15). Q u an to à com preensão e à fé, as m ultidões em geral dem onstram passividade e, considerando-se a redu- ção súbita delas após o ensinam ento de Jesus em Cesareia de Filipe em que ele fala sobre o sofrim ento , dem onstram até m esm o m aior inconstância. O atribu to m ais com um das m ultidões em M arcos é que o b stru em o acesso 2 Ochlos, 38 ocorrências;polys, em referência às multidões, 14 ocorrências. Sobre as multidões em Marcos, veja D. Kingsbury, The Christology of Mark’s Gospel (Phila- delphia: Fortress Press, 1983), p. 78-80. M arcos 2.1-4109 a Jesus. A ssim , apesar da popularidade de Jesus, as m ultidões não são um a medida do sucesso em M arcos. Elas constituem “os de fora” que dem onstram ambivalência ou oposição a Jesus. E n tão , Jesus m ascara seus ensinam entos para elas em parábolas (e.g., 4.33,34; 7.17). É bastan te in teressan te observar que as palavras gregas para “m ultidão” (ochlos) e “casa” {oikos) p roduzem um a rima com aliteração. E m M arcos, as casas ou locais reservados, p o r contraste, provêm cenários para a revelação e ensino especiais para os discípulos e os que pertencem ao g ru p o íntim o.3 4 Só em particular é que Jesus explica as coisas claram ente a seus discípulos e perm ite vislum bres, se possível, de sua filiação divina. O con traste en tre “m ultidão” e “ casa” ajuda a ilustrar um tem a mais amplo em M arcos, aquele entusiasm o p o r Jesus e até a proxim idade dele não são o m esm o que fé — e p o dem até se o p o r a ela (e.g., 11.1-11). O que atrai essas m ultidões a Jesus? M arcos oferece o resum o mais simples possível: “ ele lhes pregava a palavra” . M arcos, em algum as ocasiões, descreve a m ensagem de Jesus apenas com o “ a palavra” (2.2; 4.33; 8.32), p o r meio da qual ele quer d izer a m ensagem do “evangelho de D eu s” (1.14,15). Mais que qualquer ou tra expressão no cristianism o prim itivo, “a palavra” define a essência do m inistério de Jesus. E m especial em M arcos, que raras vezes registra o co n teú d o do ensino de Jesus, é possível, equivocadam ente, pressupor que o m aravilham ento das m ultidões se deve aos m ilagres e m ara- vilhas fascinantes. A o contrário , a p roclam ação do evangelho é tão essencial para o p ro p ó sito de Jesus que M arcos po d e incluir todo o m inistério do M estre nesta frase: “ele lhes pregava a palavra” . A verdade que ele proclam a é a m esm a verdade que ele incorpora, e, diante dela, seus ouvintes não podem perm anecer passivos. A “palavra” exige de seus ouvintes um a resposta de fé que só p o d e rem eter a Jesus. O ensinam ento de Jesus em casa em C afarnaum , no entanto, é o contexto para um a história mais im portan te . M arcos in troduz o episódio do paralítico pela dinâm ica do tem p o verbal no p resen te (em grego), to rn an d o con tem po- rânea a narrativa e enfatizando sua im ediação para o leitor: “ trazendo-lhe um paralítico, carregado p o r quatro deles” (2.3)7 O am o n toado de pessoas no pátio está im ped indo um g ru p o necessitado de chegar a Jesus. Fazer parte da multidão em to rn o de Jesus não é o m esm o que ser discípulo de Jesus. A mui- 3 Oikos: 2.1; 7.17; oikia: 7.24; 9.33; 10.10; kata monas: 4.10; katidian: 4.34; 6.31,32; 7.33; 9.2,28; 13.3. 4 O fato dessa frase em grego ser um tanto inábil, e que tanto Mateus 9.2 quanto Lucas 5.18 a melhorarem, argumenta pela prioridade marcana. 110M arcos 2.5 tidão fica ali e observa; os discípulos têm de se em penhar na ação, con fo rm e ilustrado pelo corajoso g ru p o de quatro deles. Se não é possível encontrar um a abertura para Jesus, en tão é preciso fazer um a. E ssa é a descrição de fé: ela rem overá qualquer obstáculo — até m esm o um telhado, se necessário — para chegar até Jesus.5 6 A rem oção do telhado po d e ter derram ado desrespeito e tam bém sujeira nos convidados em baixo do buraco feito. O Talm ude (b. Mo’ed Q. 25d) con ta um a história parecida com essa (em bora três séculos depois) sobre a m o rte do rabi H u n a (297 d.C.), cujo esquife era m uito g rande para passar pela p o rta de sua casa. Foi sugerido que o esquife fosse tirado através do teto , ao que os discípulos de H una protestaram : “A prendem os com ele que a h o n ra de um m estre exige acesso pela p o rta” . N o caso do rabi H una, a p o rta foi alargada. 5 Jesus, não obstan te , não se o fendeu p o r aqueles h om ens rem overem o telhado, m as encorajou-os. Q uando ele vê “a fé que eles tinham , Jesus disse ao paralítico: ‘Filho, os seus pecados estão perd o ad o s’ ” (2.5). O uso de “ filho” (gr. teknorr, tam bém 10.24; Lc 16.25; Jo 13.33; l jo passim) para se dirigir ao paralítico provavelm ente reflete o te rm o hebraico beni, “ m eu filho” . E mais que um te rm o carinhoso o u afetuoso, em bora seja isso tam bém . E basica- m en te um te rm o de um superior que age com autoridade e benevolência/’ A prim eira m enção de fé (2.5) em M arcos liga de fo rm a relevante a fé à ação, e não com conhecim ento ou sentim ento. N ão sabem os nada sobre as crenças dos quatro am igos do paralítico, exceto pelo fato de que agiram , ação essa incluindo rodear as m ultidões e rem over o telhado para garan tir que aquele sob sua responsabilidade chegasse até Jesus. A fé é em prim eiro lugar confiança ativa de que Jesus é suficiente para nossas mais p ro fundas e mais sinceras necessidades, e não conhecim ento sobre Jesus. A questão sobre se “ a fé que eles tinham ” inclui a fé do paralítico não é tratada nos textos relevantes do evangelho (M t 9 .2 / /M c 2 .5 / /L c 5.20). Por um lado, é difícil im aginar os quatro carregadores trazendo o paralítico até Jesus con tra a von tade dele; certam ente, con fo rm e observa Lagrange, seria 5 A tradição textual divide-se entreprosenenkai (“oferecer”),prosengisai (“aproximar-se”) e proselthein (“aproxim ar-se”) no versículo 4. E m bora a segunda leitura afirm e ter o mais forte apoio nos m anuscritos, é provável, com o M etzger sugere (TC G N T, p. 77), que a ausência de objeto direto (exigido po r prosenenkai) induziu os copistas a substituir as duas outras palavras que não necessitam de objeto direto. 6 Sobre teknon (“ filho”), veja W. G rundm ann, D as Evangelium nach Markus, p. 56-57. M arcos 2.5111 um caso raro se um paralítico não esperasse ser curado de sua doença.7 N ão obstante, o p ro n o m e plural (“a fé que eles tinham״ ■, grifo do autor) inclui a fé dos carregadores, e isso não nos deveria su rp reender de fo rm a alguma. O s evangelhos preservam várias instâncias de Jesus cum prindo a petição de um grupo em favor de ou tro .8 O p o d e r de Jesus é de fato fortalecido nas curas intercessórias, pois a cura não p ode ser atribuída à au tossugestão nem à preparação in terna da vítim a.9 Jesus, p o r conseguinte, revela a si m esm o ao paralítico p o r in term éd io da fé; e os evangelhos parecem m ais p reocupados com o fato da fé que com os agentes específicos da fé.10 11 O relacionam ento en tre o pecado e a doença im plícito em 2.5 é de m aior interesse. N ão é provável que Jesus levante a pergun ta dos pecados do para- lítico para p rovocar os m estres da lei e p rover um a ocasião para dem onstrar sua autoridade. N ão é característico de Jesus usarum a pessoa para um m o- tivo velado. P o r que, p o rtan to , Jesus m enciona expressam ente os pecados do hom em ? A m aioria dos com entaristas tip icam ente negam que havia algo incom um ou no tó rio sobre o pecado do paralítico, insistindo, antes, que a resposta de Jesus trata da conexão inevitável e orgânica en tre o pecado e a doença característica de toda a hum anidade.11 E m b o ra afirm ando a verdade geral dessa visão, vale a pena considerar se ela explica to talm ente p o r que só aqui Jesus, den tre todas as curas realizadas p o r ele, correlaciona explícitam ente pecado e enferm idade. A lém disso, “seus pecados” parece tra ta r de pecados específicos, e não da condição geral do pecado. Parece possível que a form a 7 M.-J. Lagrange, Evangile selon Saint Marc, p. 35. 8 Por exemplo, o pai que pediu para Jesus curar sua filha (5.21-43); a mulher siro-fenícia que implora ajesus para que cure a filha possuída por demônio (7.24-30); o oficial do rei que roga a je su s po r seu filho (Jo 4.46-53) ou o centurião que pede pelo servo (Mt 8.5-13). 9 E. Schweizer, The Good News According to M ark, p. 61. 111 Observe as palavras felizes de Schlatter sobre esse ponto: “W ird die Bitte zur Für- bitte, so wird sie dadurch nicht geschwãcht; vielmehr gilt ihr gegenüber erst recht die Regei Jesu, dass er keinen Glauben zerstõrt” (“A petição não é enfraquecida por se tom ar intercessão; um a intercessão ilustra ainda m elhor a regra de Jesus, que não é destruir a fé” ; D er Evangelist Matthaus [Stuttgart: Calwer Verlag, 1959], p. 297-98). 11 Um problem a com essa linha de pensam ento é que ela perpetua (conscientem ente ou não) a ideia de que a doença é o resultado do pecado, ideia característica do judaísmo da época de Jesus (veja a evidência reunida em Str-B 1.496). Algumas doenças e infortúnios, é claro, resultam do pecado, mas não todos eles (e.g., Lc 13.1-5). D e acordo com João 9.2,3, Jesus nega a equação categórica de pecado com doença. O fato de nenhum a outra cura de Jesus com binar expressam ente enferm idade com pecado parece sugerir que o pecado do paralítico precisa ser perdoado antes que sua paralisia seja curada. 112M arcos 2.6-7 com o Jesus se dirige ao paralítico reflita o conhecim ento de seus pecados pessoais, e o relacionam ento destes com sua paralisia. N ão h á nada mais característico da pessoa que seus pecados. Jesus, po rtan to , trata do paralítico na esfera m ais p ro fu n d a de seus pecados, e isso po d e ser particu larm ente apropriado para que o paralítico não ache que a fé dos am igos é um substitu to aceitável para sua p róp ria resposta a Jesus. 6,7 A m enção do perdão dos pecados cria um a reviravolta inesperada na história. O paralítico não fora trazido porque acreditava que seus pecados precisassem ser perdoados, m as po rque queria ser curado da paralisia. Ao ouv ir sobre o perdão dos pecados, a h istória m uda ab rup tam en te do para- Utico para os m estres da lei. E stes não reivindicam o perdão dos pecados e se escandaUzam quando Jesus ousa fazer isso. Jesus e os m estres da lei mais um a vez se defron tam , em bora não sobre o ensinam ento com o em 1.21-28, m as sob re a p resunção de Jesus de p erdoar pecados. O que com eçou com o um a cura recon fo rtan te transform a-se de repente em um co n fro n to perigoso sobre a au toridade religiosa.12 O s judeus com um en te acreditavam que o pecado era a causa da doença 0Ó 4.7; Jo 9.2; T g 5.15,16), m as, um a vez que o perdão dos pecados era um a prerrogativa exclusiva de D eus, os judeus que operavam cura pronunciavam o perdão dos pecados raríssim as vezes, se algum a vez, em suas curas.13 À parte do ato de absolvição no D ia da Expiação, nem m esm o o sum o sacer- do te pod ia p erdoar pecados, nem p ro m ete r isso, quer para um indivíduo 12 Klostermann tenta minimizar o fato de Jesus perdoar o pecado argumentando que ele, como um sacerdote, apenas media o perdão de D eus para o paralítico: “O uso passivo de aphientai significa: ‘D eus perdoa você!’Jesus, po r conseguinte, não perdoa por si mesmo, mas, antes, arrisca estender de si m esm o o perdão divino para aquele cuja doença o m arcou com o ‘pecador contra D eus’ ” (Das Markusevangelium, p. 23). Essa afirmação não faz justiça à autoridade radical de Jesus no versículo 5. Jesus não diz, por exemplo, como o fez Natã falando com Davi, “O Senhor perdoou o seu pecado” (2Sm 12.13). Jesus afirma que ele mesmo afasta os pecados, assumindo claramente, portanto, o lugar de Deus. Além do mais, Jesus não afirma perdoar pecados contra si mesm o (o que estaria em seu poder hum ano fazer); mas, sim, perdoar pecados contra o outro (w. 5,10). J. D. G. D unn observa corretamente: “é impossível suavizar a força cristológica de 2.7,10: Jesus é capaz de perdoar pecados e tem autoridade para isso, não apenas para declará-los perdoados” (Jesus, Paul, and the Law: Studies in M ark and Galatians [Louisville: W estm inister/John Knox, 1990], p. 27). 13 U m texto de C unrã publicado recentem ente correlaciona a cura de um a úlcera com o perdão dos pecados (4Q PrN ab). E m bora esse seja um texto notável, o divinador judaico perdoa os pecados em nom e de Deus, ao passo que Jesus profere o perdão po r sua própria autoridade. Veja R. G undry, M ark, p. 116. M arcos 2.8-9113 quer para a congregação coletivam ente. “ Q uem p o d e p erd o ar pecados, a não ser som ente D eus?” , respondem os m estres da lei. E les estão certos. Só Deus pode p erdoar os pecados (Êx 34.6,7; SI 103.3; Is 43.25; M q 7.18). N a realidade, nem m esm o o M essias afirm aria tal poder. A descrição clássica do M essias em Salmos de Salomão 17— 18 fala que ele dom inará os dem ônios, introduzirá um governo perfeito , julgará os ím pios, salientando sua jusdça e até m esm o de seu ser im aculado (17.36), m as não de sua habilidade para perdoar pecados. Strack e Billerbeck concluem co rretam ente que “não existe nenhum lugar que conheçam os em que o Messias tem autoridade para proferir o perdão dos pecados p o r seu p róp rio p o d er (‘M achtvollkom m enheit’). O perdão dos pecados continua em todos os textos a ser d ireito exclusivo de Deus” .14 A razão é que em to d o pecado, até m esm o nos pecados com etidos ostensivam ente só con tra o próxim o, D eus é a parte mais ofendida. P ortanto , Davi, em seu adultério com B ate-Seba e o assassinato de Urias, pecado esse que quebra pelo m enos três ou talvez quatro leis dos D ez M andam entos, confessou a D eus: “ C on tra ti, só con tra ti, pequei” (SI 51.4). 8,9 Jesus, sem n inguém lhe dizer nada, conhece a crise na m en te dos mestres da lei — e, aparen tem ente , a desejou! Q u an d o M arcos diz: “Jesus percebeu logo em seu esp írito” (veja 8.12; Jo 2.25), ele quer dizer mais que conhecim ento hum ano; Jesus não só conhece os pecados do paralítico, m as tam bém conhece o coração dos m estres da lei. E stes não têm nada a dizer sobre a condição espiritual ou física do hom em . Jesus tem algo que dizer para essas duas facetas da vida do paralítico, m as o que ele diz o fende pro- fundam ente os m estres da lei. “E stá blasfem ando!” (2.7), clam am eles.15 A blasfêmia era pun ida com a pena de m orte (Lv 24.16).16 14 Str-B 1.495. 15 O livro apócrifo Atos de Pilatos deixa passar a autoridade de Jesus para perdoar pecados e apresenta a cura do paralítico como um exemplo de violação do sábado: “Então um dos judeus veio para a frente e perguntou ao governador [Pilatos] se podia falar uma palavra. O governador disse: ‘Se deseja falar algo, diga’. E o judeu disse: ‘Por 38 anos fiquei em uma cama, angustiado e com dores, e quando Jesus veio, muitos demoníacos e aqueles doentes com várias doenças foram curados por ele. E um jovem se apiedou de mim e me carregou com cama e me trouxe até ele. E quando Jesus me viu, sentiucompaixão e disse-me: ‘Pegue sua cama e ande’. E peguei minha cama e andei. O judeu disse a Pilatos: ‘Pergunte a ele que dia da semana era quando ele me curou’. O homem curado disse: ‘Era sábado’ ” (Acts Pil. 6:1; citado dej. K. Elliott, The Apocryphal New Testament [Oxford: Clarendon Press, 1993], p. 175). 1Í' O medo da blasfêmia levou os judeus a evitar proferir o nome divino sempre que possível. Seguindo Números 15.30, a Mishná decreta a expulsão da comunidade 114Excurso : O F ilho do homem 10,11 Jesus p ode curar a paralisia de um hom em ; a questão mais am pla é se ele po d e curar a paralisia espiritual dos m estres da lei. E stes, para a o b ra de D eus, são tão dependen tes de Jesus quan to o paralítico, m as o aprendizado e a posição deles po d e deixá-los m enos conscientes dessa necessidade. Jesus quer que eles saibam (v. 10) isso, ou seja, experim entem em prim eira m ão a autoridade p o r m eio da qual ele pode perdoar pecados (v. 9). N o versículos 7, os m estres da lei perguntam quem “p o d e” (gr. dynatai) pe rd o ar pecados, ou seja, quem tem essa habilidade. Jesus declara que o Filho do h o m em não só tem habilidade para perd o ar pecados, m as tam bém tem autoridade para fazer isso. A palavra para “au toridade” (exousia) é a m esm a palavra usada para des- crever o ensino de Jesus e a expulsão de dem ônio na sinagoga de C afarnaum (1.21-28). D a perspectiva hum ana, é seguro p ro ferir o perdão dos pecados, um a vez que essa asserção não pode ser falsificada. Jesus, no entanto , p roverá evidência do perdão dos pecados curando o paralítico, evento que p o d e ser observado p o r todos. Sua autoridade para perdoar, não m enos eficaz p o r sua invisibilidade, será com provada pela cura do paralítico. A au toridade para curar e a autoridade para perd o ar são a m esm a autoridade. “ ‘M as, para que vocês saibam que o F ilho do h o m em tem na terra au toridade para p erdoar pecados’ — disse ao paralítico — ‘eu digo a você: Levante-se, pegue a sua m aca e vá para casa’.” 12 M arcos relata que o paralítico “ se levantou, pegou a m aca e saiu à vista de to d o s” . A ssim , em resposta à pergunta: “ Q uem po d e p erd o ar pecados, a não ser som ente D eus?” , os ouvintes e os leitores são convidados a suprir o nom e de Jesus. A vitória de Jesus sobre a doença e o pecado é com pleta, pois Jesus faz o que só D eus p ode fazer. A singularidade do evento é ecoada na exclam ação da m ultidão: “N u n ca vim os nada igual!” Excurso: O Filho do homem (2.12) “Filho do h o m em ” , título que oco rre pela prim eira vez em M arcos no versículo 10, é um títu lo am bíguo, to talm ente livre das conotações m ilitares e políticas associadas com o Messias. O título, em si m esm o, não parece te r feito algum a afirm ação especial aos ouvidos dos con tem porâneos de Jesus. E m n enhum trecho as pessoas parecem surpreendidas de que Jesus se cha- m e de “ Filho do h o m em ” , p o r exem plo, nem fizeram objeção p o r ele fazer como punição por tomar o nome de Deus em vão (m. Ker. 1.1-2; m. Sanh. 7.5). A mesma punição foi decretada em Cunrã por proferir o nome de Deus frivolamente (1QS 7). Excurso : O F ilho do homem115 isso. “Filho do h o m em ” , p o r conseguinte, oferece a vantagem de um título desim pedido de associações indesejáveis, dando a Jesus a possibilidade de falar de si m esm o em público, na verdade com frequência diante da oposição e hostilidade, de um a fo rm a que os ouvintes possam descobrir sua identidade, se conseguirem descobri-la de algum m odo. H á quato rze ocorrências do títu lo “ Filho do h o m em ” em M arcos, e só proferidos p o r Jesus. O “Filho do h o m em ” , com o nos ou tro s sinóücos, é dividido em três categorias em M arcos. E m três ocasiões (8.38; 13.26; 14.62), o título oco rre em contex tos apocalíticos, com o em seu uso em D aniel 7 e lEnoque 37— 69, em que se refere ao F ilho do h o m em v indo em julgam en- to. O título se refere duas vezes à autoridade te rrena de Jesus para perdoar os pecados (2.10) e suplantar o sábado (2.28). O uso mais p roem inen te , no entanto, diz respeito ao sofrimento de Jesus (nove ocorrências: 8.31; 9.9,12,31; 10.33,45; 14.21 [duas vezes], 41). Cada um a das três categorias se refere a um atribu to divino, ou, com o no caso da terceira, ao cum prim ento de um propósito d iv inam ente ordenado. Fica, po rtan to , aparen te que “ Filho do hom em ” não é, co n fo rm e se supõe com frequência hoje, m eram ente um a circunlocução para “ o h u m an o ” . N a passagem em questão (2.10), “ F ilho do hom em ” descreve a autoridade de Jesus de p erdoar pecados, aludindo p o r meio disso à figura do “ filho de h o m em ” em D aniel 7.13,14 que, do m esm o modo, é capacitado com a autoridade de D eus (“vi alguém sem elhante a um filho de hom em , [...] E le recebeu autoridade [LXX, exousia], glória e o re ino”). A au toridade do Filho do hom em , não obstan te , é p redom inan tem ente exibida na hum ilhação, n o so frim en to e na m o rte .17 “ Filho do h o m em ” — como “ Filho de D eu s” , o título mais im portan te em M arcos para Jesus — inclui o so frim en to com o seu con teúdo principal. Isso é rep resen tado pela maioria de seus usos no evangelho. E m cinco de seus nove usos relacionados ao sofrim ento , Jesus é “ tra ído” (gr. paradidonai) nas m ãos dos pecadores. A 17 Em um artigo notável por sua brevidade e sensibilidade, C. F. D. Moule, “ ‘The Son o f Mari: Some o f the Facts’ ”, NTS41 (1995), p. 277-79, salienta a associa- ção do “Filho do homem” com um indivíduo (em oposição a uma compreensão popular do termo) que precisa sofrer: “Ainda creio que a explicação mais simples da consistência quase inteira com que o singular definitivo está confinado a ditos cristãos é postular que Jesus se referiu a Daniel 7, falando de ‘0 Filho do homem [a quem você conhece a partir daquela visão]’, e que ele usou a figura humana de Daniel como um símbolo — e não basicamente como um título — da vocação para a vitória por intermédio da obediência e martírio ao qual ele foi chamado e ao qual reuniu seus seguidores (para que eles juntos constituam ‘o povo dos santos do Altíssimo’)” . 116M arcos 2.13 traição ao Filho do hom em não é arbitrária, m as é a von tade de D eus e o m eio pelo qual a vontade de D eus é realizada, pois o Filho do hom em “ tem de” (gr. dei) so frer p o r am or a seus discípulos e dar sua vida em resgate de m uitos (10.45). É digno de n o ta o fato de Jesus escolher “Filho do hom em ” para designar sua função com o Filho de D eus. E le não fala de sua vocação n a prim eira pessoa, ou seja, “ E ssa é a fo rm a com o faço isso” , m as na terceira pessoa, que, p o r m eio disso, designa sua hum ilhação, so frim en to e exaltação com o o cam inho o rdenado de D eus. O E S C  N D A L O D A G R A Ç A (2.13 -17) E ssa história, em conteúdo , faz paralelo ao cham ado dos quatro pes- cadores em 1.16-20. As duas histórias descrevem Jesus passando ao longo do m ar da Galileia, e nas duas narrativas Jesus cham a pessoas para segui-lo, pessoas essas que estão no lim ite da respeitabilidade religiosa ou fo ra dela. Levi, co m o os pescadores, segue Jesus sem nenhum a in fo rm ação adicional nem qualquer questionam ento . E m estru tura , no en tan to , a história aqui faz paralelo com a progressão do particular para o geral em 1.29-34. Ali, Jesus cu rou a sogra de Pedro, cura essa seguida p o r m uitas outras; aqui, ele cham a Levi, cham ado esse seguido p o r m uitos outros. Já vem os n o m inistério de Jesus um pad rão em ergindo. Jesus não é um filósofo itinerante livre que anda sem m apa nem bússola. T am pouco, a com unhão com ele é algo que acontece p o r coincidência e capricho. A ntes, h á um p lano de ensinoe cura itinerantes já aparen te no m inistério de Jesus, e é daí que ele, com intencionalidade, recru ta u m g ru p o de aprendizes e seguidores. 13 13 “Jesus saiu ou tra vez para beira-m ar.” N o Evangelho de Tomé e em m uitos evangelhos gnósticos d escoberto s em N ag H am m adi, a som a da vida e ob ra de Jesus consiste de ditos e pronunciam entos. N esses docum en- tos, não h á pra ticam ente referência ao m inistério e à atividade itineran te de Jesus; ele é, antes, um a “cabeça falante” , um m estre sedentário que ocupa, bem literalm ente, um a cadeira da religião. M arcos, ao contrário , devota seu evangelho quase to talm en te à atividade de Jesus com o m estre itinerante. O evangelho n ão é algo m eram ente falado, m as vivido, um a encarnação. Jesus, p o r conseguinte, não está sen tado em casa recebendo cham ados, m as faz ativam ente esses cham ados. M arcos 2.14117 M arcos m ais um a vez resum e o m inistério de Jesus em u m a palavra, “e ele os ensinava” (ARA) {edidaskerr, N V I “ e ele com eçou a ensiná-los”) .18 O term o em si m esm o e a fo rm a com o M arcos o usa repetidas vezes para caracterizar o m inistério de Jesus, indicam o papel essencial que o ensino desem penhava no m inistério de Jesus (e.g., 10.1; 14.49). O ensino de Jesus para grandes m ultidões, nessa ocasião ao lado do lago, revela que ele era um mestre público com um a m ensagem para as m assas (tam bém 1.14,15), e não um m estre eso térico para um núm ero de iniciados seletos. 14 Jesus, passando ao longo do lago, vê Levi sen tado na coletoria e o chama: “ Siga-m e” . A palavra para “ siga” (gr. akolouthein) é usada nos evan- gelhos só para os discípulos de Jesus, nunca para aqueles que se o p õem a ele. O verbo seguir, com dezenove ocorrências em M arcos, é um te rm o de peso que descreve a resposta apropriada de fé (10.521), sendo, na verdade, praticam ente sinônim o de fé. “ Seguir” é um ato que envolve risco e custo; é algo que alguém faz, não apenas algo em que pensa ou crê. Levi, prova- velmente, deve ser identificado com “M ateus” de M ateus 9.9.19 N o N ovo Testam ento, é bastan te com um a m esm a pessoa ser conhecida p o r m ais de um nom e (e.g., C efa s /S im ão /P ed ro ). M arcos não registra nen h u m diálogo nesse cham ado; Levi, com o os quatro pescadores (1.16-20), tem apenas de responder à au toridade de Jesus e a seu cham ado. N ã o é de su rp reender que Jesus encon tre p u b lícan o s em C afarnaum , a cidade fronteiriça com as colinas de G olã. A M ishná descreve os publica- nos fazendo rondas diárias, exigindo pagam ento de hom ens com ou sem o consen tim en to deles” , ou , co m o aqui, sen tados n a coletoria com livros caixa e caneta n a m ão {m. Avot 3.17). O s viajantes chegando a C afarnaum , do território de H erodes Filipe e da D ecápolis a leste e no rte , eram taxados p o r agentes co m o Levi, trabalhando para H erodes A ntipas, te trarca da Galileia e Pereia. O sistem a rom ano de taxas era com plexo e variado, até m esm o em um p equeno país com o a Palestina. As taxas sobre a te rra e pedágios eram coletados pelos rom anos, m as as taxas sobre bens transpo rtados eram cobradas p o r coletores locais, a m aioria dos quais eram judeus étnicos, m as provavelm ente não judeus que guardavam a lei, um a vez que não se esperava 18 Diclaskein descreve e resume a atividade de Jesus quinze vezes em Marcos. 19 Códices D e Θ trazem ‘Tiago, filho de Alfeu”, e não “Levi, filho de Alfeu” , mas essa leitura é provavelmente uma harmonização subsequente com 3.18, e não a original. 118M arcos 2.14 que os judeus com en tend im en to sobre a Torá fizessem transações com os gentios.20 Levi era um desses in term ediários (ou trabalhava a serviço de um deles) que fazia o fertas prévias para coletar im postos em um a dada área. Seu p róp rio lucro v inha do que ele conseguia despojar seus p róp rio s constitu in- tes, e um a p o rção dos im postos recebidos p o r ele ficava em seus bolsos.21 O sistem a ro m an o d e taxação dependia do subo rn o e cobiça e atraia indivíduos em preendedores que não eram contrários a esses m eios.22 O s coletores de taxas ou publícanos eram obviam ente desprezados e odiados. Q ualquer pessoa familiarizada com “d ed os-du ros” e in fo rm antes em regim es com unistas e nazista p o d em avaliar a aversão que os judeus do século I sentiam pelos publícanos. A M ishná e o Talm ude (em bora escrito mais tarde) registram julgam entos rigorosos dos publícanos, con tando-os com os ladrões e assassinos. U m judeu que fosse publicano não pod ia atuar com o juiz nem testem unha em um tribunal, era expulso da sinagoga e a cau- sa de desgraça para a família (b. Sanh. 25b). O toque de um publicano fazia com que u m a casa fosse considerada im unda (m. Teh. 7.6; m. Hag. 3.6). O s judeus eram pro ib idos de receber d inheiro e até esm olas de um publicano, um a vez que a renda p rovenien te dos im postos era considerada roubo. O desprezo dos judeus pelos publícanos é rep resen tado na regra de que os ju- deus pod iam m en tir para os publícanos im punem ente (m. Ned. 3.4) — um a regra, p o r sinal, com a qual as casas de Hillel e Sham m ai (norm alm ente em polos opostos) concordavam . O s publícanos eram um lem brete tangível da dom inação rom ana, detestados p o r sua injustiça e im undícia gentia. M uitos judeus extrem istas, inclu indo um en tre os discípulos de Jesus (3.18), consi- deravam a subm issão ao jugo rom ano, bem com o a seu sistem a de taxação (veja 12.13-17), um ato de traição a D eus. 20 Josefo (Guerra 2.285-88) registra a história em que os judeus de Cesareia chamaram um coletor de impostos ou publicano chamado João para interceder em favor deles perante Floro, prefeito da Judeia de 64 a 66 d.C. João foi capaz de produzir uma propina para Floro de cerca de oito talentos de prata (= mais de US$40.000 ou mais de R$127.000,00), o que ilustra o poder e riqueza de alguns publícanos ou coletores de impostos. 21 Observe a descrição de Fílon de um publicano em cerca de 40 d.C., apenas uma década após a m orte de Jesus. “Capito é o coletor de impostos para a Judeia e sente desprezo pela população. Quando chegou ali era um homem pobre, mas amealhou muita riqueza de várias formas, espoliou o povo por meio de fraudes e desfalques (nosphî etai kaipareklegei)” (Embassy, p. 199). 22 Sobre o sistema de taxação romana na Palestina, veja E. Schürer, History of the Jewish People, 1.372-76. M arcos 2.15-16119 15,16 O Levi que Jesus cham ou com o aluno-aprendiz pertencia a essa categoria de pessoas. C om preensivelm ente, o cham ado de Levi, aos olhos dos con terrâneos judeus, causou g rande consternação. Isso faz com que Jesus en tre em co n ta to novam ente com pessoas im undas; não com doenças imundas, com o n o caso do lep roso (1.40), m as com um indivíduo que, po r causa de sua colaboração com a ocupação gentia, é tan to m oralm ente inso- lente quan to ritualm ente im undo. P ode ser que o con ta to com Levi fosse de fato mais ofensivo que o con ta to com um leproso, um a vez que a condição do leproso não foi escolhida, ao passo que a do publicano o foi. E m vez de parar com Levi, no entanto , a o fensa criou m etástases. Jesus se jun tou a Levi para o jan tar em sua casa onde há “ m uitos publícanos e pecadores” , cujo sen tido é que o cham ado de um pecador não é um a exce- ção para sua m issão, m as algo típico dela. A fim de co m preender o term o “pecadores” , precisam os pensar sobre os “ ím pios” de Salm os, que na LX X aparece com o “ pecadores” (gr. hamartõloi). O s “ím pios” não são transgressores ocasionais da Torá, m as aqueles que se posicionam fundam entalm ente fora dela. São categoricam ente condenados. A M ishná descreve os “pecadores” como apostadores,agiotas, pessoas que fazem brigas de p o m b o s p o r espor- te, pessoas que fazem com ércio no ano sabático, ladrões, pessoas violentas, pastores e, é claro, publícanos (m . Sanh. 3.3). A lguns dos casos m encionados acima são indivíduos crim inosos, todavia, m uitos são apenas trabalhadores e pessoas com uns, m as m uito ocupadas, m uito pobres ou m uito ignorantes para viver de acordo com as regras das autoridades religiosas. A os nossos olhos, é claro, con ta r pessoas com uns com ladrões é com o jogar pedestres im prudentes na cadeia jun to com o crim inosos perigosos, m as essa não era a form a de p ensar dos fariseus. A M ishná, citando o rabi M eir, afirm a que aquele que se ocupa com o estudo da Lei [...] m erece todo o mundo. Ele é cham ado de amigo, am ado de Deus, am ante de D eus, am ante da humanidade; e isso o cobre de hum ildade e reverência e o ajuda a se tornar justo, santo, reto e fiel; o m antém longe do pecado e o traz para perto da virtude, e os hom ens apreciam seu conselho e conhecim ento são, com preensão e força (m. A v o t 6.1). Esse elogio testifica que a T orá é o padrão para d o “m erecedor” e “re to ” . Por inferência, aqueles que não estudam a T orá pertencem a ou tra classe, a de “pecadores e publícanos” (tam bém Lc 15.1). As traduções em português (em especial A R A , ARC, ACF, AR, A21; mas N V I e N T L H m encionam apenas que Jesus fazia um a refeição, sem 120M arcos 2.15-16 quaisquer ou tras especificações) deixam a im pressão de que Jesus estava sentado à m esa na casa de Levi, m as o grego de 2.15 indica que ele estava reclinado, a postu ra culinária costum eira, em especial em festas e festivais, com a cabeça na direção da m esa e os pés se estendendo para um a posição m ais d istante dela. A palavra para sentado à mesa (ARC; “ reclinar” em grego, katakeimaia; N V I, “duran te um a refeição”) o co rre apenas quatro vezes em M arcos, com referência a se reclinar com pecadores (2.15; 14.3) ou com um doen te (1.30; 2.4). As quatro ocorrências são sutis, lem bretes da solidariedade de Jesus com pessoas necessitadas e alienadas. A aceitação de Levi p o r Jesus envia um sinal a ou tros com o ele, pois “m uitos publícanos e pecadores” se juntaram a ele e aos discípulos. As leis dietárias dos judeus tinham a intenção (e ainda têm) de excluir o co n ta to com gentios, em especial na in tim idade da com unhão à m esa. O desrespeito de Jesus p o r essa fronteira judaica essencial causa g rande ofensa aos m estres da lei. O co m p o rtam en to de Jesus exacerba m ais um a vez um a tensão latente em um conflito abe rto com os m estres da lei. E m 2.1-12, o conflito foi p o r causa do perdão dos pecados; aqui, p o r ele com er com os pecadores. Jesus, nessas duas ocasiões, p ô d e alcançar o m esm o objetivo, o u algum similar, ao evitar o conflito. As duas histórias deixam a im pressão, n o en tan to , de que o conflito não é o resu ltado da negligência, m as da provocação. O s publi- canos e pecadores o convidam para jantar, ao passo que os m estres da lei ficam de fora julgando essa atitude.23 A fissura en tre Jesus e os m estres da lei é acentuada pela palavra “seguiu” : Levi segue Jesus (v. 14), com o tam bém o fazem os publícanos e pecadores (v. 15). C ontudo, “os m estres da lei que eram fariseus” não seguem Jesus.24 A lição é vigorosa: a com unhão com Jesus fundam enta-se em padrões radicalm ente distintos daquele d aT o rá . A o passo que o estudo da Torá, para citar o rabi M eier mais um a vez, to rn a o indiví- duo “m erecedor” e “ ju sto” , Jesus cham a aqueles que são abertam ente não m erecedores e não considerados justos e se reclina com estes. A com unhão 23 Um bom número de manuscritos gregos expandem a pergunta para: “Por que ele com eífcfecom publícanos e pecadores?” (v. 16). A leitura mais breve, no entanto, é preferível. Ela tem apoio de manuscritos mais robustos, e a adição de “e bebe” pode ser explicada como um acréscimo dos escribas, talvez em conformidade com Lucas 5.30 (veja Metzger, TCGNP, ρ. 67). 24 Sobre os mestres da lei, veja em 1.22. Os copistas gregos aparentemente alteraram o texto hoigrammateis tõn Pharisaiõn (também B א L) de Marcos para se conformar aos “mestres da lei” e “fariseus” mais tradicionais (Metzger, TCGN'P, p. 67). Para uma discussão de fariseus, veja em 2.18). M arcos 2.15-16121 com Jesus viola a convenção religiosa e social, em vez de prom ovê-la. E ssa história, no en tan to , ilustra a verdade de 2.1-12: ali Jesus p ro fere o perdão dos pecados, e aqui ele perdoa pecadores, en trando em suas casas em com unhão com eles e se reclinando à m esa com eles. O fato de pecadores e publícanos se reclinarem com Jesus sugere que ele — e não Levi — é o verdadeiro anfitrião do grupo . O fundam ento para a com unhão à m esa é o perdão que Jesus oferece com o M essias, e esse per- dão antecipa o banquete m essiânico no fim dos tem pos.25 A com unhão de Jesus com os publícanos e pecadores — e sua condenação pelos m estres da lei — ilustra a natureza radical da graça. A “ tradição dos anciãos” justifica o status quo das d istinções e erige barreiras en tre as pessoas; o evangelho busca transform ar e reconciliar essa condição constru indo um a p o n te en tre Jesus e a necessidade hum ana. O cham ado de Levi e o fato de Jesus fazer um a refeição com aqueles com o ele são descrições vividas de R om anos 9.30,31: a justiça de D eus não alcança aqueles que buscam estabelecer sua própria justiça; ao passo que a justiça de D eus é graciosam ente estendida àqueles que estão m uito d istantes para esperar p o r ela. E lugar com um que os m estres da lei e os fariseus se o p õem a Jesus p o r ele com er com “pecadores e publícanos” . M as o que exatam ente na associação de Jesus com essas pessoas é que os ofendia? Será que Jesus fazia a refeição com os pecadores com a condição de que eles m udassem o rum o da vida? Essa associação com os publícanos, p rostitu tas e rép ro b o s fundam entava-se no fato de eles abandonarem sua perversidade e se to rnarem pessoas piedosas? Jesus certam ente ficaria feliz se esse fosse o resultado. C on tudo , se essa fosse sua in tenção, poderiam os esperar que os líderes religiosos o aplaudissem , e não o oposto . Sabem os, no en tan to , que eles se o p u n h am a ele — sem pre e em todos os locais. A oposição deles é mais explicável segundo o fundam ento de que a re fo rm a não era o p ressuposto fundam ental do m inistério de Jesus, como, p o r exem plo, aconteceu com o m inistério de Jo ão Batista. N ão existe nenhum a m enção no cham ado de Levi e no jan tar com pecadores sobre o arrependim ento. N a verdade, o arrependim ento está curiosam ente ausente da proclam ação de Jesus em M arcos.26 O escândalo dessa história é que Jesus 25 Veja W. Lane, The Gospel According to M ark (G rand Rapids: Eerdm ans, 1974), p. 106. 26 Há apenas duas ocorrências do verbo “arrepender” (metanoein) proferido por Jesus em Marcos (1.15; 6.12), e não há nenhum a ocorrência do substantivo. Apenas em Lucas, Atos e Apocalipse é que o arrependim ento desem penha um papel proem inente na proclam ação do evangelho. 122M arcos 2.17 não to rna o arrependim ento m oral um a pré-condição de seu am or e aceitação. A ntes, Jesus am a e aceita os publícanos e pecadores com o eles são. Se eles abandonam seu m al e consertam sua vida, eles o fazem , com o o fez Z aqueu (Lc 19.1-10), não para ganhar o favor de Jesus, m as po rque Jesus os am ou enquan to ainda eram pecadores. A associação de Jesus com esse tipo de pessoas não é um a coincidência. E le não está com eles p o r acaso nem espera pelos convites. E le inicia a com unhão: “ Q uero ficar em sua casa h o je” (Lc 19.5). N ão ficam os sabendo quantos pecadores e publícanosse arrependeram e m udaram o curso de sua vida. A penas ficam os sabendo que Jesus sem eou am or com liberalidade e de fo rm a não calculada com o o sem eador que joga sem entes em lugares não p rom issores (Mc 4.3-9). E ra isso que escandalizava os líderes religiosos de sua época, com o escandaliza aqueles de nossa época que definem o evangelho em term os de m era refo rm a m oral e form ação de caráter. Jesus com unica na palavra e ação que aceitá-lo e segui-lo é mais im portan te que seguir a Torá. Q u an d o os indivíduos não re fo rm ados e não regenerados fazem isso, en tram n o Reino de D eus antes dos m estres da lei e fariseus. Jesus, em sua com unhão à m esa com “pecadores e publícanos” , afirm a de m o d o escandaloso sua exousia, sua p róp ria pessoa acim a da Torá e o am or p ród igo de D eus acim a d o m érito. E sse é o escândalo da graça.27 17 A cena é resum ida em um d ito m em orável: “N ã o são os que têm saúde que precisam de m édico, m as sim os doentes. E u não vim para cham ar justos, m as pecadores” . E sse versículo foi rem em orado e preservado em um a série de fon tes cristãs prim itivas, incluindo C lem ente de R om a (2Clem. 2.4), o Didaquê (4.10), a Epístula deBarnabé (5.9) e Justino M ártir (Apol. 1.15.8). O dito é um a defesa feita p o r Jesus do alcance dos indivíduos sem reputação, e não um a sugestão de que h á alguns que são isentos de seu cham ado. O fato de que Jesus p o d e ser encon trado na com panhia de pessoas co m o Levi nos lem bra da d iferença en tre sua m issão e aquela dos m estres da lei. E les vêm para instru ir; ele vem para redim ir. C onsiderando-se essa m issão, não faz sentido Jesus evitar os publícanos e pecadores, assim com o não faz sentido um m édico evitar os doentes. A graça de D eus se estende às piores form as de depravação hum ana e as sobrepuja. Iron icam ente, de certa fo rm a os m aiores pecadores estão mais próxim os de D eus que aqueles que se consideram justos, pois os pecadores têm mais consciência de sua necessidade de tran sfo rm a 27 Veja E. P. Sanders, The Historical Figure o f Jesus (London: Penguin Press, 1993), p. 230-37. M arcos 2.18123 ção pela graça de D eus. “A Lei foi in troduzida para que a transgressão fosse ressaltada. M as o nde aum entou o pecado tran sb o rd o u a graça” (Rm 5.20). J E J U M E F E S T A S ( 2 .1 8 2 2 (־ As cinco histórias em 2.1— 3.6 d em onstram um a intensificação firme do conflito en tre Jesus e os lideres religiosos, em particular os m estres da lei e fariseus. N a prim eira h istória (2.1-12), o an tagonism o perm anece em grande parte não explícito. N as três histórias seguintes (2.13-17,18-22,23- 28), o conflito resulta em confron tações verbais. N o final da h istória (3.1-6), há um a tram a para p ô r fim à vida de Jesus. A autoridade de Jesus, em cada um desses encon tros, destró i as fórm ulas e categorias em que as pessoas o colocam. Jesus, com o na parábola do v inho novo e da vasilha de couro no versículo 22, é com o o v inho novo que precisa de sua própria vasilha de couro. 18 O s contem porâneos dejesus viram possíveis analogias a seu m ovim en- to em dois ou tros m ovim entos do dia, a saber, naquele dos discípulos de João Batista e naquele dos fariseus. M arcos só faz um a ou tra referência de passagem aos discípulos de Jo ão Batista (6.29); mais in fo rm ações sobre o m ovim ento de João Batista, bastan te lim itadas, p o dem ser am ealhadas em referências disseminadas no N ovo T estam ento e em Josefo .28 Sabem os m uito mais sobre os fariseus. A origem exata dos fariseus não é clara, m as sabem os que eles surgiram na época da Revolta dos M acabeus (168 a.C.), o que significa que eles já existiam havia dois séculos na época d e jesu s . O n om e deles significa ou “separado” ou “santo” , duas interpretações que não são incom patíveis um a com a outra. O s fariseus, desde seu surgim ento, opunham -se firm em ente ao helenismo, ou seja, à tendência, clara ou sutil, para acom odar a vida judaica aos ideais prevalentes no m u n d o greco-rom ano. E les ficaram decididam ente sobre a rocha da Torá, “o in stru m en to p recioso p o r m eio do qual o m undo foi criado” , a expressão perfeita da sabedoria e von tade de D eus, e o objeto inigualável da existência hum ana {PirkeAbot 3.19). E les não eram um partido político e, na realidade, eram um tan to indiferentes aos governantes políticos desde que tivessem perm issão de buscar e conseguir estabelecer sua vida de 28Mt 11.2; 14.12; Lucas 7.18; l l . l ;J o ã o 1.35,37; 3.25. Dois dos discípulos dejesus, de acordo com o evangelho de João, pertenciam originalmente aos seguidores de João Batista (Jo 1.35-42). A fama e os seguidores de João Batista sobreviveram à morte dele, talvez, em alguns setores e em alguma medida, até mesmo competindo com o movimento dejesus (Jo 1.19-23; At 19.1-7;Josefo, Ant. 18.116-19). 124M arcos 2.18 acordo com a Torá. O farisaísm o era um m ovim ento leigo que, de acordo com a estim ativa de Josefo , tinha cerca de seis mil pessoas no século I (Ant. 17.42), ou aproxim adam ente 1% da população. O s fariseus, em bora fossem um g ru p o pequeno e apenas um den tre m uitos ou tros g rupos na Palestina, eram mais num erosos e m ais influentes que os saduceus, essênios, herodia- nos e zelotes. O farisaísm o tinha a reputação de te r altos ideais e era, nas palavras de Josefo , “ex trem am ente influente em m eio às pessoas com uns” (Ant. 18.14-15). O s fariseus eram considerados com o os sucessores autori- zados da Torá, aqueles que se assentaram n a “cadeira de M oisés” (M t 23.2). A força e adaptabilidade dos fariseus eram com provadas pelo fato de que, den tre todos os g ru p o s judaicos m encionados acima, só eles sobreviveram à guerra com R om a em 66-70 d.C. T odo o judaísm o subsequen te à catás- tro fe devia sua existência às origens farisaicas. As crenças fundam entais dos fariseus, esclarecidas p o r um a dinastia rabínica conhecida com o “a tradição dos líderes religiosos” (7.5), incluía a crença na soberania de D eus integrada com a responsabilidade hum ana pela v irtude e depravação; a ressurreição dos m ortos; os anjos e dem ônios; e a aderência escrupulosa à T orá escrita e às tradições orais fundam entadas nela, integradas com a expressão de desdém p o r aqueles que eram ignorantes, negligentes ou violadores da Torá.29 Jesus m esm o se aproxim ava mais das crenças fundam entais dos fariseus que das de qualquer o u tro g ru p o do judaísmo. O s evangelhos registram apenas conversas esporádicas e coincidentes en tre Jesus e os saduceus, e os herodia- nos, e os zelotes, e nenhum a en tre Jesus e os essênios; m as Jesus, ao longo de seu m inistério, está em p erm anen te debate com o farisaísmo, principalm ente sobre a questão da tradição. A diferença essencial fica especialm ente evidente em M arcos 7.1-23, em que Jesus acusa os fariseus de avaliar em dem asia a tradição e desvalorizar a intenção da p róp ria lei. N a época de Jesus, o fe rvo r e vitalidade inicial dos fariseus já havia se calcificado em form alism o em vários p o n to s de prática e observância, em que a conform idade às prescrições legais substituía a d isposição do coração, d isto rcendo desse m o d o a verdadeira in tenção da lei. O s fariseus, p o r crerem que a T orá era prescritiva para toda a vida, teciam um a teia cada vez mais intricada de regras em to rn o da Torá, cujo 29 Sobre os fariseus, veja Str-B 4/1.334-52; Schürer, History of the Jewish People, 2.381-403; S. J. D. Cohen, From the Maccabees to the Mishnah, LEC (Philadelphia: Westminster Press, 1987), p. 143-64; G. E M. M oore., Judaism in the First Centuries of the Christian Era (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1927), 1.56-71. Marcos 2.18125 propósito p ode te r sido honrá-la, m as cujo efeito foi confinar e até m esm o esmagar com um fardo excessivo a existência hum ana.30 E m 2.18, sob re a questão do jejum , o m ovim ento de Jesus é com parado aos m ovim entos de Jo ão Batista e dos fariseus. O s três principais pilares do judaísmo eram a oração, a caridade e o jejum. O judaísm o exigia apenas um jejum no D ia da E xpiação (Yom Kippur, Lv 16.29,30; m. Yoma 8.1,2). C ontu- do, o tratado da M ishná Talanit, devo tado às observancias apropriadas do jejum, especifica pelo m enos três ou tros tipos de jejuns. U m tipo de jejum era aquele que lam entava as tragédias nacionais, co m o a destru ição do tem - pio po r N a b u co d o n o so r (Zc 7.3,4; 8.19); o u tro era o jejum em tem pos de crise, com o na guerra, pragas, secas e fom e; e um terceiro tipo de jejum era aquele au to im posto p o r quaisquer razões pessoais (2Sm 12.16; SI 35.13). Os fariseus no rm alm en te jejuavam às segundas-feiras e quinta-feiras {Did. 8.1; b. Ta‘an. Í2a), em bora isso não fosse exigido. O jejum exigido no D ia da Expiação durava 24 horas, ao passo que os jejuns voluntários, via de regra, se estendiam apenas do am anhecer ao entardecer. O jejum , em bora não fosse uma exigência legal, exceto p o r um a instância, tornara-se , na época de Jesus, um pré-requisito do com prom isso religioso, um sinal da expiação do pecado e da hum ilhação e penitência diante de D eus, e um a ajuda geral para orar. Os rabis se referiam com frequência ao jejum com o “ um a aflição da alm a” , designando-o com isso com o um a característica e ato sacrificial da piedade.31 Aqueles que desafiam Jesus sobre a questão do jejum são identificados por M arcos em term os m uito gerais (“Algum as pessoas”). E videntem ente , 3(1 Dois intérpretes judeus m odernos produziram estudos relevantes do farisaísmo, e ambos concluem que o retrato dos fariseus no N ovo Testam ento não é um a interpretação equivocada do m ovim ento, nem está enraizado na inclinação antiju- daica, mas, em essência, é fiel às outras testem unhas do farisaísmo desse período de tempo. Jacob N eusner, The Idea o f Purity inA náentJudaism, SJLA (Leiden: Brill, 1973), p. 65, escreve: “As questões legais atribuídas po r rabinos posteriores aos fariseus anteriores a 70 são tem áticam ente congruentes com as historias e ditos sobre os fariseus nos evangelhos do N ovo Testam ento, e os considero precisos em substancia, se não em detalhes, com o representações das principais questões da lei farisaica” . D a m esm a form a, E. Rivkin, A Hidden Revolution (Nashville: Abingdon Press, 1978), p. 123-24,147-79, argum enta que a im agem dos fariseus nos evangelhos e em Paulo se conform a em aspectos essenciais com as da M ishná e do Talmude; e, além disso, que os vários rabis, Johanan ben Zakkai entre eles, criticavam alguns rabis, e particularm ente os saduceus, de form a tão severa quanto Jesus os criticava. 31 Sobre o jejum, veja J. Behm , “nêstis”, 7D A T4.924-35; Str-B 2.241-44; 4/1.77-114. 126M arcos 2.19 elas eram pessoas com uns, e não fariseus, o que reforça a im pressão de que o jejum era considerado com o parte e parcela da verdadeira piedade no m undo judaico da época de Jesus. A pergunta dessas pessoas: “ P or que os discípulos de João e os dos fariseus jejuam , m as os teus não?” , insinua que era m elhor Jesus e seus discípulos, se tivessem a intenção de ser levados a sério, prestarem m ais atenção ao p ro to co lo do jejum. 19 Jesus, nesse pan o de fundo som brio sobre o jejum , apresen ta uma im agem festiva de um a festa de casam en to . U m a celebração de casam ento em um vilarejo judeu dem orava em geral sete dias para um a noiva virgem e três dias para um a viúva con tra indo novas núpcias. O s am igos e convidados não tinham n en h u m a responsabilidade, exceto d esfru ta r as festividades. H avia um a abundância de alim entos e vinho, bem com o m úsica, dança e diversão na casa e n a rua. Esperava-se que até m esm o os rabis abrissem m ão da instrução da T orá e se juntassem na celebração com seus alunos. A frase “os convidados do noivo” (gr. hot huioi tou nymphõnos, “ filhos do noivo” , um sem itism o literal) re tra ta a reunião de um a festa de casam ento, esperando im paciente para com er. Q ualquer pensam en to sobre o jejum em tais m o- m en tos estava fo ra de questão! O uso da im agem do casam ento com relação à pergunta sobre o jejum altera radicalm ente o desafio de sua autoridade. Jesus não tem nada contra o jejum per se, co n fo rm e praticado pelos discípulos de Jo ão Batista e pelos fariseus. E le adm ite que quando o noivo fo r tirado, “ nesse tem p o [seus dis- cípulos] jejuarão” . A diferença en tre Jesus e os discípulos de João B atista e os fariseus diz respeito a um a atitude em relação ao m inistério de Jesus. E ste descreve sua m issão com o um casam ento — ele com o o noivo e seus disci- pulos com o os “ convidados do noivo” . U m casam ento não é um tem po de se abster, m as de vivê-lo. Jesus, mais um a vez, im pulsiona sua pessoa e m issão de fo rm a p roem inen te e inescapável para o cen tro do palco. O s discípulos de João Batista e os fariseus, se captassem a relevância da pessoa de Jesus, com preenderíam p o r que deveríam celebrar, em vez de jejuar.32 A não aquies- cência com a festa, no en tan to , atesta da não aceitação da pessoa de Jesus. A im agem do casam ento , de fo rm a b em inco m u m , é provocativa, em bora sua p lena relevância não seja com frequência captada. O fato de o 32 No Evangelho de Tomé, p. 104, Jesus instrui seus ouvintes a jejuar e orar quando o virem saindo do quarto nupcial. Esse dito une dois conjuntos de imagens e parece subordinar Jesus ao jejum, ao passo que, de acordo com Marcos, Jesus subordina o jejum a si mesmo. M arcos 2.20127 Messias não ter sido apresen tado em nenhum tex to do A ntigo T estam ento como um noivo, e apenas raram ente fora do A ntigo T estam ento ,33 levou um bom núm ero de estudiosos a duvidar da relevância cristológica do uso da imagem do noivo p o r Jesus em 2.19.34 A pesar de não ser possível estabelecer uma ligação firm e en tre o M essias e o noivo, isso não exclui nem dim inui a relevância cristológica da im agem do noivo. N esse caso, de fato, o noivo parece aum entar essa relevância, pois, no A ntigo T estam ento , o m arido e amante de Israel não é o M essias, m as D eus (Is 5.1; 54.5,6; 62.4,5; E z 16.6- 8; Os 2.19). E ssa m esm a im agem nupcial aum enta n o judaísm o posterior.35 As associações divinas inerentes na im agem do noivo são consoantes com a cristologia de M arcos, cuja principal categoria cristológica não é o M essias, mas o Filho de D eus. E sse últim o transm ite não só o serviço m essiânico de Deus, m as tam bém a natureza com partilhada e a união essencial com D eus. Jesus, no batism o, é declarado ser o F ilho de D eus e é d o tad o com o E sp írito de Deus. Sua posição e em poderam ento divinos com binam com sua exousia, sua autoridade divina, d erro ta os poderes dem oníacos (1.25) e até m esm o perdoa os pecados (2.10). A im agem do noivo rem em ora não um a função messiânica, m as a pessoa do p róp rio D eus. N essa m etáfora sugestiva, Jesus continua, naturalm ente e sem arrogância, a p resum ir as prerrogativas de D eus para si m esm o. O resultado da im agem do casam ento, p o r conseguinte, não é diferente do perdão dos pecados em 2.7, em que os ouvintes são convidados a suprir sua p róp ria resposta à identidade de Jesus. O s dois ep isódios são provocações para ver que o papel e a m issão de D eus estão agora presentes em Jesus.36 20 Jesus, apesar de ainda estar n o início de seu m inistério, não tem ilusões sobre a oposição potencial.A m enção de que o “noivo lhes será tirado” é uma im agem ab ru p ta e assom brosa. E m um casam ento norm al, são os con- 33 A Midrash judaica sobre Êxodo 12.2 afirma: “Nos dias do Messias, o casamento acontecerá” (Exodus Rabbah 15 [79b]). O Novo Testamento, é claro, emprega a imagem do noivo messianicamente (Ap 19.7-9). 34 Por exemplo, Nineham, The Gospel of St Mark, p. 103. 35 W. Eichrodt, Theology of the Old Testament, trad. J. Baker (London: SCM Press, 1961), p. 250-58; J. Jeremias, “nymphè”, TDNT4.1,101-3. 36 No texto gnóstico Tripartite Tractate de Nag Hammadi, a imagem do noivo perde o poder de seu relacionamento com Deus e com o ministério terreno de Jesus, sendo espiritualizada como a união da alma com Cristo no quarto nupcial da eleição (122:14-30). 128M arcos 2.21-22 vidados que p o r fim deixam o noivo e a noiva para que estes iniciem uma vida em com um . C ontudo, Jesus in troduz um pensam ento estranho do noivo sendo rem ovido pela força da celebração do casam ento. A ligação de M arcos da inauguração do m inistério de Jesus com a prisão de João Batista em 1.14 já p ro je tou nuvens de tem pestade no m inistério de Jesus. A quelas nuvens de tem pestade aum entam no episódio da consternação dos m estres da lei pela presunção de Jesus de p erdoar pecados em 2.10. A referência ao noivo que “lhes será tirado” revela que Jesus está consciente das consequências futuras d a m aldade das autoridades (tam bém 3.6). N a prim eira das muitas rem iniscências e alusões ao Servo do Senhor de Isaías, M arcos sugere que Jesus tam bém será “elim inado da te rra dos viventes” (Is 53.8). O R eino de D eus faz um a aparição pessoal em Jesus, m as a vitória final está longe de ser realizada. O noivo, a fim de sobrepu jar o pecado e a m orte, tem de se to rn a r a v ítim a deles. O s seguidores de Cristo, além disso, têm de experim entar de algum a fo rm a o destino de Jesus, o S enhor deles, experi- m en tar em especial o estar escondido e o silêncio de D eus. A referência ao noivo ser tirado dos discípulos, e o jejum subsequente deles, era com certeza um lem brete da perseverança e fidelidade da congregação de M arcos em Rom a, congregação essa v ítim a da perseguição cruel e perversa de N ero. H averá dias quando Jesus estará longe deles, com o o Pai ficou longe de Jesus duran te a paixão (14.36; 15.34). “ C onflitos externos, tem ores in te rn o s” , essa é a fo rm a com o Paulo descreveu os longos percursos e vigílias solitárias do discipulado cristão (2Co 7.5). Foi com referência ao susten to da vida de fé e crescim ento na sem elhança a C risto que o jejum con tinuou a ser praticado no cristianism o prim itivo.37 A disciplina da privação física no jejum era um a ajuda para a vigilância, contrição, força e sensibilidade na vida cristã. 21,22 A im agem do casam ento m essiânico é seguida p o r duas parábolas concisas e diretas de Jesus, a prim eira no evangelho de M arcos. A localização após o versículo 20 parece ligá-las in tim am ente com o m inistério de Jesus, e não específicam ente com o jejum nem com o ilustrações gerais do Reino de D eus, não m encionado (veja 4.26,30). E ssas duas parábolas, com o todas as ou tras de Jesus, incorporam im agens do dia a dia. A prim eira re trata um rem endo de pano novo em um a veste velha. Q uando lavada, esse rem endo novo encolhe, causando um a ru p tu ra tan to na veste quan to no rem endo 37 A tos 13.2,3; 14.23; IC o 7.5; 9.25-27; 2Co 6.5; 11.27; Did. 8.1. M arcos 2.21-22129 (veja Jó 13.28).38 A segunda descreve vasilhas velhas de couro cheias com vinho novo que ferm enta e expande, rom pendo , desse m odo , a vasilha de couro velha e frágil (veja Jó 32.19). T an to o v inho quan to a vasilha de couro ficam arruinados. A principal im pressão das duas parábolas é sua finalidade. O rem endo não encolhido “ forçará” a veste velha, “ to rn an d o p io r o rasgo” . A palavra grega para “ forçará” , airein, é a raiz da palavra no versículo 20 descrevendo o noivo sendo “ tirado” deles (gr. apairein). A vasilha de couro, da m esm a forma, se “ reben tará” e tan to o v inho quan to a vasilha “ se estragarão” (gr. apollymi, “d estru ídos”). N essas duas ocasiões, algo que já serviu para alguma coisa é destru ído e não tem m ais valor.39 O rem endo novo e o v inho novo são incom patíveis com a veste e a vasilha de couro velhas; e se houver alguma tentativa para com biná-las, as novas substâncias destru irão as velhas. “As duas parábolas são sobre a relação de Jesus, na verdade do cristianis- mo, com o judaísm o tradicional.”40 As parábolas ilustram a p ostu ra radical e ousadia de Jesus. E ste é o rem endo novo e o vinho novo. E le não é um adendo, um a adição ou apêndice do status quo. E le não p ode ser in tegrado nas estruturas pré-existentes nem con tido p o r elas, in dependen tem en te de quais sejam elas — o judaísm o, a T orá e a sinagoga. E le, claro, não é ascético nem anarquista e participa, p o rtan to , com o ser hum ano das estru turas hum anas. Ele vai à sinagoga, m as não da fo rm a com o as ou tras pessoas vão à sinagoga. Jesus vai com um novo ensino (1.27). E le é com o os m estres da lei naquilo que ensina, m as sua autoridade suplanta a deles (1.22). E le h o n ra a T orá quando envia o paralítico para fazer as ofertas exigidas p o r M oisés, m as ele não fica circunscrito à Torá; ele quebra os preceitos ali ensinados quando im pedem seu m inistério (2.24; 3.1-6) e a subordina a si m esm o (M t 5.17; R m 10.4). Seus 38 Os m anuscritos gregos m ostram uma diversidade incom um nas palavras utilizadas no versículo 22 (veja R. W. Swanson, ed., N ew Testament Greek Manuscripts: Variant Readings Arranged in Horizontal lanes Against Codex Vaticanus: M ark [Sheffield: Aca- demic Press, 1995], p. 32-33). A reconstrução oferecida por M etzger parece ser a m elhor resolução dentre as inúmeras leituras possíveis (TC G N 1*, p. 67-68). 39 O Evangelho de Tomé, p. 47 inclui duas parábolas em Marcos 2.21,22 em conjunto de pequenas parábolas sobre a impossibilidade de cavalgar dois cavalos, lançar duas flechas sim ultaneam ente ou servir dois senhores. O Evangelho de Tomé em prega as parábolas com o um alerta contra as alianças divididas, perdendo com isso o efeito violento e final em Marcos. J. D rury, The Parables in the Gospels: History and Allegory (London: SPCK, 1985), p. 45. 130M arcos 2.23-24 con tem porâneos exclamam: “N u n ca vim os nada igual!” (2.12). E le renuncia to talm ente a si m esm o, em bora jamais renuncie a sua autoridade divina. E le entrega-se ao serviço, em bora não faça a aliança com ninguém , exceto D eus. E le dá sua vida para o m undo, não é cativo do m undo. A questão p roposta pela im agem da festa de casam ento e as duas parábolas m uito concisas não é se os discípulos, com o costu rando um rem endo novo em um a veste velha ou enchendo um a vasilha de cou ro velha com vinho novo, abrirão espaço para Jesus em sua vida e agendas já cheias. A questão é se eles abrirão m ão dos negócios co m o de costum e e se juntarão à celebração do casam ento; se eles, em sua vida, se to rn arão receptáculos to talm ente novos para a ferm entação expansiva de Jesus e do evangelho. S E N H O R D O S Á B A D O (2.2 3 -2 8 ) A m aioria das religiões do m undo veneram lugares sagrados: o islam ism o honra M eca; o h induísm o, o rio G anges; e o xintoísm o, a ilha do Japão. O judaísm o tam bém venerava Jerusalém e em especial o tem plo com o o lugar sagrado, m as venerava algo m ais e talvez acim a desses dois locais: o tempo, o sábado. A perícope apresen tada aqui, em bora d iferente em co n teú d o da h istória an terior sobre o jejum , é em geral similar em construção. N as duas narrativas, Jesus é testado pelos fariseus po r causa do co m p o rtam en to de seus discípu- los, e as duas concluem com dois ditos de Jesus (em bora não com parábolas na p resen te narrativa). A s sim ilaridades form ais co m o essa são indícios do m odelar consciente na narração e transm issão. O fato de cada um a das qua- tro histórias em 2.13— 3.6 con terem aproxim adam ente o m esm o núm ero de palavras p ode fixar sua extensão e fo rm a n o estágio da transm issão oral. 23,24 A indiferença ocidental em relação à observância do sábado faz com que os leitores m odernos fiquem em desvantagem quanto à com preensão da im portância do sábado no judaísm o. D uas observâncias, acim a de tudo, definiam os judeus e os separavam das nações: a circuncisão e o sáb ad o , que se estendia do p ô r do sol da sexta-feira até o p ô r do sol do sábado. O quarto m andam ento , o mais longo den tre os D ez M andam entos (Ex 20; D t 5) m anda que os judeus se abstenham de qualquer tipo de trabalho um a vez que D eus m esm o descansou no sétim o dia da criação (Ex 20.8-11). Incluído n o descanso do sábado estavam não só os judeus que guardavam o sábado, m as tam bém os escravos e anim ais, e até m esm o a vegetação que não poderia M arcos 2.23-24131 ser cortada, colhida n em arrancada (Filón, V ida de M oisés, 2.22). O sábado, o único dos D ez M andam entos, está firm ado na o rdem da criação e atesta da ordem divina do universo (M ek. E xo d . 20.17). D eus, de acordo com a tradição judaica, escolheu Israel den tre todos os povos da terra e instituiu o sábado co m o um sinal e terno e bênção da posição singular de Israel (Ez 20.12; Jub. 2.18-33). O s tratados (.Shabbai) da M ishná e do T alm ude oferecem orientações proliferas sobre o que é considerado perm issível no sábado. O Talm ude descreve o sábado com um a o rdenança san ta de D eus e decreta que quem observa o sábado se to rn a parceiro de D eus na criação do m undo e traz salvação para o m undo (b. Shab. 118-99b). O s M M M preservam as re- gulam entações mais rigorosas do sábado no judaísm o, p ro ib indo até m esm o carregar crianças, ajudar no nascim ento de anim ais ou recuperar um animal que tenha·caído em um fosso no sábado (C D 10— 11). As tradições farisaicas e rabínicas eram apenas um p o uco m enos rigorosas em sua interpretação. A M ishná, am pliando Ê xodo 35.1-3, enum era 39 tipos de trabalho que profa- nam o sábado, incluindo aqueles que poderiam os esperar, com o arar a terra, caçar e m atar anim ais, e aqueles que não esperaríam os encon trar ali, com o am arrar e desam arrar nós, costu ra r mais que um p o n to o u escrever mais que uma letra (m. Shab. 7.2). A regra geral da observância era para não com eçar um trabalho que pudesse se estender até o sábado, e não fazer qualquer trabalho no sábado que não fosse abso lu tam ente necessário — entenda-se por “necessário” qualquer coisa que am eaçasse a vida (m. Yoma 8.6). Tal es- crupulosidade resultava inevitavelm ente em novas regras. P o r exem plo, era proibido consertar um pé ou m ão deslocado no sábado (m . Shab. 22.6) ou consertar um telhado caído (em bora pudesse ser escorado tem porariam ente; m. Shab. 23.5). O s rabis se esforçavam para oferecer um a regra, ou pelo m enos um precedente , para cada questão concebível para o sábado. A abrangência da tradição é revelada na seguinte regra: se um préd io caísse n o sábado, parte considerável dos escom bros poderia ser rem ovida para descobrir se havia vítimas m ortas ou vivas. Se estivessem vivas, poderíam ser resgatadas, m as se estivessem m ortas, os cadáveres tinham de ser deixados ali até o p ô r do sol {m. Yoma 8.7).41 A controvérsia na passagem atual reflete a determ inação farisaica para sustentar e h o n ra r o sábado. Parece que Jesus e seus discípulos violam de fato duas categorias de trabalho, a prim eira é viajar. A ndar m ais que 1.999 passos (= 800 m etros) era considerado um a jo rnada e, p o r conseguinte, um a 41 Sobre o sábado, veja Schürer, History o f theJewish People, 2.467-75; Str-B 1.610-22. 132M arcos 2.25-26 quebra do sábado (C D 11.5,6). C uriosam ente, os fariseus não m encionaram essa infração. A reclam ação deles é que os discípulos, ao apanhar espigas de m ilho, estavam “ co lhendo” (Ex 31.13-17; 34.21). D e acordo com D eutero - nôm io 23.25, recolher grãos do cam po de seu vizinho era perm itido — m as não no sábado, segundo um a regra rabínica p osterio r {m. Shab. 7.2). D aí a reprovação a Jesus: “ O lha, p o r que eles [os discípulos] estão fazendo o que não é perm itido no sábado?” 25,26 A reclam ação dos fariseus era sobre os discípulos de Jesus, mas este responde em no m e deles, da m esm a fo rm a que o E spírito Santo respon- derá pela igreja na h o ra da perseguição (13.11). Jesus em geral apela para sua p róp ria exousia ou autoridade quando fazendo p ronunc iam entos ou julga- m entos. C on tudo , op o rtu n am en te ele segue o preceden te rabínico de apelar para a E scritu ra n a resolução de um a controvérsia, com o faz aqui (tam bém 12.35-37). Jesus pergunta: “Vocês nunca leram o que fez D avi quando ele e seus com panheiros estavam necessitados e com fom e?” E prossegue: “N o s dias do sum o sacerdote A biatar, D avi en trou na casa de D eus e com eu os pães da P resença, que apenas aos sacerdotes era perm itido com er, e os deu tam bém aos seus com panheiros” . O p recedente ao qual Jesus apela vem dos anos em que D avi passou n o deserto quando ele e seus hom ens foram proscritos pelo rei Saul (1 Sm 21.1-6). D avi, com fom e e em desespero, en trou “na casa de D eu s” (i.e., o tabernáculo) em busca de alim ento. O s pães em questão referem -se aos doze pães postos sobre o altar n o sábado para servir de alim ento para os sacerdotes (Ex 40.23; Lv 24.5-9). A m enção a A biatar é problem ática no relato po rque o sacerdote em N o b e de quem D avi pegou os pães foi A im eleque (ISm 21.1), e não Abiatar, seu filho (IS m 22.20), que sucedeu ao sum o sacerdote duran te o reinado de Davi. A N V I traduz p o r “nos dias do sum o sacerdote A biatar” — em bora não seja tecnicam ente preciso com o a tradução da A R A , “ no tem po do sum o sacerdote A biatar” — parece, não obstan te , m elhor para cap tar a in tenção de M arcos, pois o evento em consideração parece estar associado na m em ória popu lar com o sum o sacerdote Abiatar.42 42 O problem a com A biatar em 2.26 não parece ter sido resolvido ao sim plesm ente atribuir um erro a Jesus ou M arcos. Por um lado, o fato de que Davi apareceu diante de Aimeleque em 1 Samuel 21.1-6, com o tam bém o fato adicional de que tanto M ateus 12.4 quanto Lucas 6.4 om item a referência a Abiatar em seus textos paralelos, parecem argum entar em favor de um erro. Esse erro poderia facilmente ser explicado com o um a falha da m em ória, em especial considerando-se o fato M arcos 2.25-26133 O peso do argum ento de Jesus, no entanto , não repousa n o sacerdote de N obe, m as em D avi. O eco m essiânico velado na im agem do noivo em 2.19 está mais um a vez p resen te aqui em relevo m uito m ais enfático. D avi foi o m aior rei de Israel e o p recurso r do M essias (2Sm 7.11-14; SI 110.1). “ ‘D ias virão’, declara o S e n h o r , ‘em que levantarei para D ata um R enovo justo, um rei que reinará com sabedoria e fará o que é justo e ce rto na te rra ’ ” (Jr 23.5; veja tam bém Sl Sol. 17.21). A esperança m essiânica davídica foi guardada com o relíquia nas D ezo ito B ênçãos recitadas na sinagoga: “R apidam ente faze com que a descendência de D avid, seu servo, para florescer, e levante a sua glória pela sua ajuda divina, po rque esperam os p o r tua salvação to d o o dia” (Ben. 15 [14]). N a E scritura, na tradição e na liturgia D avi era consideradocom o o inaugurador de um futuro reino m essiânico que seria mais glorioso que seu reino histórico. A alusão de Jesus ao episódio de N o b e é apenas aproxim ada, pois sua form a de recon tar essa história difere em detalhes do original. N ão obstante, a referência à visita de D avi a A im eleque é relevante. D avi com era os pães consagrados com o um a exceção, quando ele e seus hom ens estavam famintos. de que os m anuscritos com pletos do A ntigo Testam ento eram raros c de difícil manuseio (tam bém Schweizer, The Good N e m According 10 M ark, p. 72). C ontu- do, o problem a é mais com plexo que isso. As discussões mais úteis da questão são aquelas de Lagrange (Evangile selon Saint Marc, p. 53-54) e E. Lohm eyer {Das Evangelium des M arkus, p. 64). Já no Antigo Testam ento , Abiatar e Aimeleque parecem ser confundidos. E m 1 Samuel 22.20, afirma-se que Aimeleque c filho de Aitube e pai de Abiatar, mas, em 2Samuel 8.17 e 1 Crônicas 18.16, afirma-sc que Z adoque é filho de Aitue e Aimeleque é filho de Abiatar! E m 1 Crônicas 24.6, Aimeleque tam bém é cham ado de filho de Abiatar. A genealogia da família é ostensivam ente: A itube, pai de Aimeleque, pai de Abiatar, pai de Aimeleque (lC r 24.3,6,31). Parece haver dois Aimeleques, o avô e o neto , com Abiatar entre eles; no entanto, conform e observado acima, o segundo e o terceiro m em bros da linhagem sào algumas vezes invertidos. Abiatar, de acordo com a opinião geral, o m em bro dom inante da genealogia por ter sobrevivido ao m assacre de seu pai por D ocguc e fugiu para ficar com Davi. Ali se to rnou sum o sacerdote durante todo o reinado de D avi (tam bém Josefo, A nt. 6.269-70), o que pode explicar a associação de Davi com ele em M arcos 2.26. M arcos com as palavras, epiAbiathar archiereõs, em prega epi tecnicam ente para significar “no tem po de” (também IM ac 13.42; Lc 3.2; A t 11.28; Martírio de Policarpo, p. 21). A N V I traduz por: “N os dias do sum o sacerdote Abiatar”, parecendo, portanto , traduzir o sentido pretendido por Marcos. E m bora Davi tenha de fato com ido os “pães da Presença” sob Ai- meleque, o evento parece ter sido lem brado e transm itido em associação com o sumo sacerdócio dom inante de Abiatar. 134M arcos 2.27-28 Jesus, no entanto , não usa aquele incidente para ped ir p o r um a exceção no sábado para seus discípulos fam intos. E le cita a violação da T orá p o r Davi não com o um a desculpa p o r sua ação, m as com o um precedente. Jesus, ao fazer a alusão a D avi, convida os ouvintes a fazerem um a com paração en tre sua pessoa e o tipo m essiânico real de Israel. E ssa é a prim eira de várias referen- cias ou alusões a D avi no evangelho de M arcos, e essas referências ajudam a definir que tipo de F ilho de D eus é Jesus. O cego B artim eu cham ará Jesus de “ Filho de D avi” (10.47), e m ais tarde no tem plo — n o cerne de Israel — Jesus m enciona o assunto ao questionar os líderes religiosos: com o é possível para o M essias ser tan to “ filho” e “S enhor” de D avi (12.35-37)? O que fica im plícito é que o M essias é o “ filho” de D avi po rque ele é descenden te de D avi, m as o “S enhor” de D avi po rque é um a autoridade m ais alta. O apelo a D avi em nossa passagem com eça a definir a autoridade de Jesus com o o Filho de D eus real antecipado desde o reinado de D avi (veja o excurso sobre O homem divino em 3.12). 27,28 M arcos conclu i a co n tro v érsia so b re o cam p o de g rãos com duas falas de Jesus. E m 2.27, fica esclarecido o relacionam ento en tre a vida hum ana e o sábado: as pessoas não foram feitas para as regras do sábado, m as o sábado foi institu ído a fim de abençoar a hum anidade e forta lecer seu bem -estar. E ssa regra expressa um princípio notavelm ente sim ilar àquele do v inho e das vasilhas de couro em 2.22: assim com o as vasilhas de couro têm de se co n fo rm ar ao v inho, tam bém a lei confirm a a vida hum ana. Jesus corrige um a interpretação equivocada que to rn a a Torá um jugo pesado sobre a existência hum ana e recupera sua verdadeira in tenção com o um a ajuda e guardiã da vida. A regra de Jesus sobre o sábado tinha algum a analogia no judaísm o. U m rabi do final do século II , em essência, concordou : “O sábado foi dado para você; você não foi dado para o sábado” (Mek. Exod. 31.13). C ontudo , com que au toridade Jesus transgride a convenção do sábado e ousa redefini-la? A resposta é dada n o p ronunciam ento prom ete ico do versículo 28. O verdadeiro senhorio sobre o sábado está investido no Filho do hom em . A lguns estudiosos argum entam que o Filho do hom em no ver- sículo 28 é em essência um a circunlocução para “h o m em ” no versículo 27; assim , se o sábado foi feito para a hum anidade, en tão a hum anidade é aquela que governa esse dia.43 E sse argum ento pode ser atraen te em fundam entos 43 Por exemplo, R. Funk, R. H oover e o Jesus Seminar, The Five Gospels: W hat D id Jesus Really Saj? (San Francisco: HarperSanFrancisco, 1997), p. 49, traduz Marcos M arcos 2.27-28135 hum anísticos, m as depara-se com objeções form idáveis. Se, con fo rm e ob- servam os an terio rm ente, o sábado estava fundam entado na criação e era a característica mais distintiva do judaísmo, é inconcebível que Jesus ou qualquer outro rabi declare a suprem acia hum ana sobre ele.44 Segundo, essa solução não responde a pergun ta dos fariseus no versículo 24: “ O lha, p o r que eles estão fazendo o que não é perm itido no sábado?” Se o “ Filho do hom em ” significa apenas “ h o m em ” , en tão o versículo 28 não é um a resposta para os fariseus, m as um a m era tautología. P o r fim, não há instâncias do uso de “Filho do hom em ” nos evangelhos em referência à hum anidade em geral. A qui esse título, com o sem pre que “ Filho do h o m em ” aparece nos lábios de Jesus, traz o artigo definido “0 F ilho do h o m em ” , referindo-se à vocação única de Jesus com o Filho do h o m em com autoridade e p o d e r divinos de D aniel 7.14.45 Até m esm o quando “ Filho do hom em ” refere-se ao so frim en to hum ano de Jesus, com o em geral acontece, esse título quase sem pre se refere àquele sofrim ento com o um cum prim ento do m andato divino (veja o excurso sobre O Filho do homem em 2.12). O título po d e significar as várias funções de Jesus, mas, nos evangelhos (com o, p o r exem plo, em Salm os e em Ezequiel), não significa apenas “h o m em ” . A única com preensão plausível de “ Filho do h o m em ” n o versículo 28 é com referência a Jesus. A sintaxe grega do versículo 28 é arrojada. A palavra para “S enhor” (gr. kyrios) foi m udada de fo rm a p roem inen te para o início da sentença, to rn an d o -a enfática no grego, acen tuando quem é o verdadeiro Senhor do sábado. P o dem os traduzi-la da seguinte form a: “E quem é o Senhor do sábado? O Filho do h o m em é!” N o s evangelhos, o títu lo “Filho do h o m em ” é usado apenas p o r Jesus para se referir a si m esm o, quer a sua presente posição , tan to de hum ilhação q u an to de au toridade, quer a sua futura glória. A qui, tam bém , é um a referência à autoridade de Jesus, e não uma circunlocução para a hum anidade em geral. D eus, conform e observam os antes, institu ira o sábado (G n 2.3), e Jesus agora p resum e preem inência sobre ele! Jesus, mais um a vez, p õ e a si m esm o no lugar de D eus. A ssim , o 2.27,28 desta forma: “ Ό sábado foi criado para Adão e Eva, e não Adão e Eva para o sábado. Assim, o filho de Adão governa até mesmo o sábado”’. Por “Adão e Eva” e “filho de Adão”, o Jesus Seminar quer dizer qualquer membro da raça humana. Veja a discussão e crítica dessa leitura em R. Guelich, Mark 1-8:26, p. 125-27. 44 F. W. Beare, “The Sabbath Was Made for Man”,/A L 79 (1960), p. 130-36; Nine- ham, The Gospel of St Mark, p. 108. 45 Moule, “ Th e Son o f Man’: Some o f the Facts” , NTS41 (1995), p. 277-79. 136M arcos 2.27-28 versículo 27 oferece o princípio; e o versículo 28, a autoridade efetiva p o r trás dele; ou seja, o princípio do versículo 27 é verdadeiro po rq u e o Filho do hom em do versículo 28 é o Senhor! A autoridade de Jesus co m o o Filho do hom em se estende sobre o sábado. O tex to de 2.27,28 p reserva um im p o rtan te indício q u an to ao rela- cionam ento de Jesus com a Torá, o evangelho e a lei, algo que há m uito é um p o n to de controvérsia no cristianism o. O s extrem os do legalism o e do an tinom ianism o são evitados. A qui, a lei não é considerada co m o um a re- velação au tônom a, a qual no legalism o tende a substitu ir a pessoa de D eus. Jesus, tam pouco , é um agente livre que anula o sábado, a o rdem m oral ou a vontade revelada de D eus, com o acontece no antinom ianism o. A ntes, as falas dos versículos 27,28 ensinam que o p rop ó sito justo de D eus, con fo rm e m anifestado na Torá, p o d e ser recuperado e cum prido apenas em relação a Jesus, que é o S enhor dela. U M A Q U E S T à O D E V ID A E M O R T E (3.1-6) E m estilo, esse relato repete um padrão de episódios anteriores. M arcos p repara o palco para a narrativa u sando o aoristo grego (pretérito , v. 1) e, a seguir, atrai o leito r d ram aticam ente para um a ação contínua usando os im perfeitos e p resen tes gregos (w . 2-5). A urgência da narrativa sugere m ais um a vez um a rem iniscência pessoal, talvez de Pedro.46 M arcos, com esse episódio, conclui as h istórias de conflito iniciadas em 2.1. Jesus, em cada h istória, registra um curso soberano , livre da m esm a fo rm a das n o rm as da sociedade e d a expectativa dos m estres da lei, dos fariseus e in te rp re tação rabínica da Torá. Sua aliança é exclusivam ente com as boas-novas.de D eus (tam bém 1.14,15), as quais, nessas cinco histórias, é dirigida d iretam ente aos necessitados e pessoas proscritas. Sua m issão, no en tan to , não ficou sem oposição. A proclam ação e a prática das boas-novas oco rrem em m eio à resistência e até m esm a hostilidade, con fo rm e M arcos quis transm itir esse sentido ao ligar o início do m inistério de Jesus com a prisão de Jo ão Batista (1.14). Já Jesus tem a repu tação de ser b lasfem ador (2.7), um colega dos pe- cadores (2.16), um apostata do costum e religioso (2.18) e um transgressor do sábado (2.24). E sses sen tim entos se to rnarão m anifestos em um con tra to sob re sua vida nessa ú ltim a história de conflito , pois “ os fariseus saíram e com eçaram a consp ira r com os h erod ianos co n tra Jesus, sobre com o 46 Tam bém V. Taylor, The Gospel According to St. Mark, p. 220; C. E. B. Cranfield, The Gospel According to Saint Mark, p. 119. M arcos 3.1-4137 poderíam m atá-lo” (3.6). Jesus, com toda a estrada ainda adiante de si, tem de conduzir sua jo rnada na som bra da cruz. 1,2 E sábado, e Jesus está de novo na sinagoga, p resum ivelm ente em Cafarnaum. U m hom em ali presente tem “um a das m ãos atrofiada” . A palavra traduzida p o r “atrofiada” (gr. xêraineiti) oco rre várias vezes em M arcos, cujo sentido se estende en tre “cess[ar]” (5.29), “ see[ar]” (4.6; 11.20,21) e “rígido” (9.18). A m ão rígida e deform ada parece se ajustar ao p resen te contex to . Eles “o observavam aten tam ente” está no tem po verbal im perfeito (gr. paretêrom), com o sen tido de “ ficar em suspense” . C onscientes de que Jesus já curara ali no sábado (1.21-28), todos os olhos se voltaram “para ver se ele iria curá-lo [o hom em com a m ão atrofiada] no sábado” . Alguns, em m eio à congregação, não são apenas observadores neu tros e imparciais. N a realidade, estão m o- tivados para “acusar Jesus” . A ironia de M arcos está mais um a vez presente: as autoridades negam a Jesus o direito de fazer o bem no sábado, enquan to conspiram para fazer o m al no sábado. As regras do sábado, con fo rm e observam os an terio rm ente, podiam ser suprimidas apenas em casos de perigo de vida {m. Yoma 8.6). C aso contrário , as várias escolas do judaísm o concordavam que o sábado deveria ser total- mente observado.47 O s prim eiros soco rros eram considerados admissíveis para prevenir que algum ferim ento ficasse pior, m as os esforços em direção à cura eram considerados com o trabalho e tinham de esperar o fim do sábado. A m ão atrofiada, com certeza, não era um m al que p u n h a em risco a vida e não era considerada um a exceção às regras do sábado. N a verdade, “eles, [no sábado], não podiam endireitar um co rpo defo rm ado nem p ô r no lugar um m em bro queb rado” (m. Shab. 22.6). 3 ,4 Jesus, n o en tan to , o rd en a com destreza ao h o m em deficien te: “Levante-se e venha para o m eio” . E possível até m esm o sentir o h o rro r do hom em . Se tivesse im aginado que sua deficiência se to rnaria um espetá- culo público, ele, com certeza, jamais teria se aventurado a com parecer na sinagoga. O m aior pavor da m aioria das pessoas com algum a deficiência ou deform idade é que as pessoas a encarem de frente, e não passar pelos luga- res sem ser no tado: o hom em é cham ado p o r Jesus para ir para o cen tro da sinagoga. Jesus pergunta: “ O que é perm itido fazer no sábado: o bem ou o mal, salvar a v ida ou m atar?” 47 Veja a discussão sobre guardar o sábado em 2.23. 138M arcos 3.1-4 A prim eira parte da pergun ta sobre fazer o bem ou o m al obviam ente se refere à cura do h o m em deficiente. A necessidade hum ana, para Jesus, re- p resen ta um im perativo m oral. O n d e o bem precisa ser feito, não p ode haver neutralidade, e deixar de fazer o b em é con tribu ir para o mal. A ssim , não só é perm itido curar no sábado, m as é correto curar no sábado, quer isso esteja de acordo com o que é legal ou lícito quer não. U m teste decisivo da verdadeira religião versus a falsa é a resposta à injustiça. As autoridades religiosas, diante da necessidade desse hom em , “perm aneceram em silêncio” , m as Jesus fica “irado [...] e p ro fundam en te en tristecido” (v. 5). O silêncio das autoridades religiosas é a evidência de que, para elas, a religião nada m ais é que o cum - prim en to de estipulações, com o dirigir na velocidade perm itida (usando um a analogia m oderna), em bora haja o desejo de dirigir mais rápido. E sse tipo de religião p ode m uito facilm ente estar separado da necessidade hum ana. A religião apropriada, para os observadores coniventes, não diz respeito à in- tenção do coração, m as se tra ta daquilo que po d e ser em píricam ente testado e m edido, das questões da co rreção teológica, dos assuntos ligados à pureza e do cum prim en to das exigências legais. O s observadores estão d ispostos a to lerar a condição lam entável de o u tro ser hum ano e, nessa ocasião, usá-la com o um a o portun idade co n tra Jesus. C ontudo, Jesus não usa as pessoas, quer poderosas quer im poten tes, para p ropósitos encobertos. Para Jesus, o evangelho de D eus (1.14) é d iferen te da religião, pois ele trata da disposição do coração que não p o d e ficar inabalável diante do sofrim ento. A penas no G etsêm ani (14.34) é que o pesar e a angústia de Jesus se expressam de m odo m ais veem ente em M arcos do que em face da dureza encon trada na reunião da sinagoga diante do so frim en to desse hom em . A s questões da o rtodoxia teológica e do co m p o rtam en to m oral não podem ser respondidas de fo rm a abstrata, m as apenas p o r m eio de um a resposta concreta ao cham ado de D eus na vida de alguém e às necessidades hum anas à mão. Pode-se passar ou ser reprovado no teste de toda teologia e m oralidade p o r m eio da resposta aos m em bros m ais fracos e m ais indefesos da sociedade. Para Jesus, o cham ado deD eus apresenta-se u rgen tem ente na necessidade desse hom em particular. N esse p o n to da história, o foco m uda abrup tam ente, com o aconteceu com a cura do paralítico (2.5,6). A segunda parte da questão vem com o um a surpresa. O que se quer dizer p o r “ salvar a vida ou m atar” ? A questão na sinagoga é sobre se Jesus efetuará a cura n o sábado ou não, e não sobre viver ou m orrer.48 O u assim parece. N o en tan to , Jesus, mais um a vez, conhece as 48 A versão de Mateus da história (Mt 12.9-14) omite a referência a “salvar a vida ou matar” , mantendo desse modo o foco da história na cura. O mesmo é verdade M arcos 3.5139 intenções daqueles que seguiram esse evento (2.8; Jo 2.28), e talvez até tenham planejado isso. A segunda parte da questão não se refere mais ao hom em com a m ão atrofiada, m as ao p ró p rio Jesus. E sse hom em é apenas um joguete. Se Jesus to rn a r a violação do sábado um hábito ,49 as autoridades terão razão para m atá-lo. O enquadram ento da pergunta n o versículo 4, de fo rm a sutil e poderosa, liga o destino de Jesus inextrincavelm ente com o do hom em com a m ão atrofiada. Fazer “ o bem ou o m al” refere-se à resposta de Jesus ao hom em desafo rtunado ; “salvar a vida ou m atar” refere-se à resposta dos observadores a Jesus. A resposta de Jesus para o hom em com a m ão atrofiada determ inará a resposta deles a ele. “M as eles perm aneceram em silêncio.” Dessa vez, um argum ento do silêncio é conclusivo. 5 Jesús, de acordo com M arcos, “ o lhou para os que estavam a sua volta” . O term o grego periblepesthai, um dos favoritos do vocabulário de M arcos, descreve um a inspeção breve e poderosa, em geral seguida p o r um p ronun- ciam ento autoritativo (3.5,34; 5.32; 10.23; 11.11). A descrição de M arcos da ira de Jesus d ian te da dureza dos observadores é vivida e im pressionante. Ele usa três palavras gregas m uito veem entes que não aparecem em nenhum outro trecho do evangelho. Jesus, após inspecionar a m ultidão, fica “irado” (gr. m et’ orgês)·, e ele fica “p ro fundam en te en tristecido” (syllypoumenos) com o coração “ endurecido” (põrõsei). A palavra traduzida p o r “endurecido” não significa m al-in tencionado (em bora, nesse caso, ela pareça ab ranger esse sentido tam bém ) tan to quan to não estar d isposta a en tender.30 Tam pouco, sobre a versão da história preservada em Jerónim o (Com. sobre M t 12.13), com a inclusão da vocação do hom em : “N o evangelho que os nazarenos e os ebionitas usam, recentem ente traduzido do hebraico para o grego e cham ado pela maioria das pessoas do autêntico [Evangelho de] Mateus, o hom em com a m ão atrofiada é descrito com o um pedreiro que pediu ajuda com as seguintes palavras: ‘E ra um pedreiro e ganhava a vida com minhas mãos; im ploro a ti, Jesus, para que restaure minha saúde para que eu não tenha a ignom ínia de ter de m endigar po r m eu pão’” (NTApoc 1.160). 49 Em Marcos, o sábado, para Jesus, é um dia de contendas. As curas (1.21; 3.2,4); o trabalho, ou seja, “ fazer o que não é lícito” (2.23,24,27); e a redefinição do sábado (2.28); essas atitudes atraíram a oposição a Jesus, com o quando visita Nazaré (6.2). Apenas no sepulcro é que Jesus descansa no sábado (16.1,2,9)! 50 Veja K. L. e M. A. Schmidt, “põroõ”, T D N T 5.1025-28. A palavra grega para “en- durecido” ou obstinado ocorre nas form as nom inais e verbais em 3.5; 6.52; 8.17; João 12.40; Rom anos 11.17,25; 2Coríntios 3.14; e Efésios 4.18 para descrever os judeus, os gentios e os discípulos. 140M arcos 3.6 tal dureza e obstinação dizem respeito apenas aos o ponen tes de Jesus; ela descreve igualm ente seus p róprios discípulos (6.52; 8.17). A ira de Jesus é um a descrição da indignação justa. O m aior inim igo do am or e da justiça divinos não é a oposição, n em m esm o a malícia, m as a dureza do coração e a indiferença pela graça divina, às quais nem m esm o os discípulos de Jesus são imunes. Jesus não se equivoca. E le não decide agir ou não depen d en d o de sua posição nas pesquisas de opin ião nem nas consequências pessoais para si m esm o. “E sten d a a m ão” , o rdena ele. A quilo que o h o m em com a m ão atrofiada mais tem e está diante dele. U m a escolha precisa ser feita. E le pode se recusar a estender a m ão e se p o u p ar da hum ilhação. C ontudo , ao fazer isso, ele só será com o os líderes religiosos que se recusam a abrir a si m esm os para a palavra de Jesus. O u ele p o d e assum ir o risco da fé e agir segundo o com ando de Jesus. “ E le a estendeu” , diz M arcos, “ e ela foi restaurada” . E sse hom em , ao se ex p o r a Jesus, foi curado. M arcos, mais um a vez, descreve a fé sem usar essa palavra. A fé não é um a aposta particular e privada, m as um risco público de que Jesus é digno de confiança quando não se po d e confiar em nenhum a ou tra esperança. 6 A com paixão de Jesus é livre, m as custosa. A m ão é restaurada, m as os fariseus e herod ianos “ com eçaram a conspirar [...] con tra Jesus, sobre com o poderíam m atá-lo” . As razões para essa decisão não são apresentadas, m as a evidência co n tra je su s é num erosa: violações do sábado (1.21-25; 2.23- 28); confratern izar com pecadores (1.40; 2.13-17); desrespeitar os costum es rabínicos (2.18-22); e p resunção de perd o ar pecados (2.10,11). M arcos localiza a tram a co n tra je su s nos fariseus e herodianos. A iden- tidade dos herodianos, em con traste com a dos fariseus (veja em 2.18), é ex- trem am ente am bígua.51 M ateus 12.14 e Lucas 6.11 om item os herodianos de suas versões da história. O te rm o “ herod ianos” , à parte de três referências de passagem no N o v o T estam ento (3.6; 12.13 [8.15?]; M t 22.16), está ausente da literatura da Antiguidade. A referência em Josefo aos “partidários de H erodes (o G rande)” {Ant. 14.447) po d e se referir a esse g ru p o sem n en hum a outra 51 O s trabalhos de referência clássicos, em geral, negligenciam os herodianos, em grande parte po r causa da escassez de inform ações sobre eles. Boas discussões podem ser encontradas em Η. H . Rowley, “T he Herodians in the G ospels” , JT S 41 (1940), p. 14-27; S. Sandmel, “H erodians” , ID B 2.594-95; e Guelich, M ark 1-8:26, p. 138-39. M arcos 3.6141 identificação além dessa.52 53 Josefo , em um a referência separada, observa que H erodes (o G rande) “d em o n stro u favor especial àqueles do povo da cidade que estiveram do seu lado enquan to ele ainda era um a pessoa co m u m ” (A n t. 15.2). Essas alusões sugerem que os herodianos não eram um a facção distinta do judaísm o nem um partido político, com o o eram os fariseus, os saduceus ou os essênios, p o r exem plo, mas, antes, eram sim patizantes e apoiadores da causa de H erodes e da dinastia herodiana. N o N o v o T estam ento , os he- rodianos sem pre aparecem em aliança com os fariseus. E ssa é um a aliança curiosa e inesperada, pois os fariseus se opunham com firm eza ao helenism o e tinham p o uco em com um com aqueles livrem ente com prom etidos com as influências helenistas e com os políticos rom anos.33 A aliança desses dois grupos, que do con trário seriam antagonistas, tem de argum entar em favor da m agnitude da oposição deles a Jesus. A inclusão dos herodianos no ver- sículo 6 é um aviso antecipado de que a ()posição a Jesus não é só religiosa, mas talvez tam bém política (6.14-29; 12.13; 15.1,2). 52 Rowley observa que a Peshita siríaca entende os herodianos dessa maneira, tradu- zindo 3.6 com o “ aqueles da casa de H erodes” (“T h e H erodians in the G ospels” , J T S 41 (1940), p.23. C. D aniel, “Les ‘H erodiens’ du N ouveau Testam ent sont-ils des Esseniens?” RevQ 6 (1967), p. 31-53, faz a proposta altam ente insustentável de que os herodianos eram essênios que ganharam o apelido de “herodianos”dos inimigos de H erodes que se ressentiam do fato deste proteger e apoiar os essênios. A clara ausência de dados objetivos sobre os herodianos põe em dúvida a tese de Daniel e seus apoios conjecturais. Veja a refutação de W. Braun, “W ere the New Testam ent Herodians Essenes? A Critique o f an H ypothesis” , RevQ 14 (1989), p. 75-88. 53 Sanders, The Historical Figure ofJesus, p. 1 3 0 3 2 considera a menção dos herodianos ,־ anacronistica em 3.6. Ele considera os conflitos em 2.1— 3.6 com o “razoavelmen- tc m enores” e duvida da oposição herodiana em um m om ento m uito inicial do ministério de Jesus. Ele explica a m enção desse g rupo aqui ao supor que 2.1— 3.6 era originalm ente um prefácio para o relato da paixão que M arcos transpôs para o início de seu evangelho! Essa é um a hipótese extrem ada e não com provada. Os conflitos em 2.1— 3.6 dificilmente podem ser considerados “m enores” ; a blasfêmia (2.7) já lança o fundam ento para um caso capital contrajesus. A suposição de que 2.1— 3.6 já funcionou com o um prefácio para a narrativa da paixão é totalm ente conjectural. Por fim, as sugestões dogmáticas sobre os herodianos são surpreen- dentes, considerando-se a obscuridade destes. Sabemos que H erodes, o Grande, governou inicialmente a Galileia antes de desalojar seu irm ão Fasael em jerusalém . E totalm ente razoável supor que seus apoiadores continuaram a constituir uma presença política relevante na Galileia, e que os fariseus, percebendo a ameaça de Jesus a sua hegem onia religiosa, perceberam que deveríam se aliar com os herodianos, politicam ente astutos, para tram ar a m orte de Jesus. 142M arcos 3.7-8 A dem onstração da autoridade de Jesus é com um a cada um a dessas cinco histórias em 2.1— 3.6: perd o ar pecados (2.1-12); com er com pecadores e pu- blicanos (2.13-17); abster-se do jejum (2.18-22); suplantar o sábado (2.23-28); e curar no sábado (3.1-6). Paralela à autoridade de Jesus está a oposição das autoridades, a qual com eça com a acusação silenciosa (2.6,7), intensifica-se com o questionam ento (2.16; 2.24); e conclui com um a tram a con tra a vida de Jesus (3.2,6). Todavia, quan to m aior a oposição, m aior a autoridade de Jesus. Sua autoridade é tan to a presença próxim a e útil de D eus quan to um a pedra de tropeço. E ssa m esm a autoridade — e os conflitos resultantes dela — será dem onstrada de novo com os líderes religiosos no tem plo (11.27— 12.37). A referência ao “ noivo [que] lhes será tirado” (2.20) e a tram a con tra a vida de Jesus (3.6) já lança a ped ra angular para a paixão e a m o rte do Filho de D eus. O P R E G A D O R A O A R L IV R E ( 3 - 7 1 2 (־ E sse sum ário editorial do m inistério de Jesus fora de C afarnaum não tem u m paralelo exato nos evangelhos, em bora seja sim ilar à descrição ante- rio r do sum ário d o m inistério de Jesus em 1.35-39. O evangelho de M arcos é incom um ente particular e concreto , narrando o que Jesus fez e disse em situações específicas. C on tudo , M arcos não po d e fo rnecer um a “vida com - pleta” de Jesus, relatos gerais resum idos com o esse aqui in fo rm am e lem bram os leitores de que o m inistério de Jesus suplanta as histórias incluídas no evangelho de M arcos. A reputação e o m inistério de Jesus desfru taram de extensa influência geográfica e dom ínio sobre as forças dem oníacas, bem com o da oposição m undana. 7,8 “Jesus retirou-se com os seus discípulos para o m ar [...].” E m bora essa seja a única ocasião em que vem os o uso do verbo “retir[ar-se]” (gr. anachõreiti) em M arcos, as m uitas ocorrências do term o em M ateus sugerem retirada para um isolam ento e solitude. E possível que Jesus, considerando-se a batería de testes que en fren to u em 2.1— 3.6, deseje escapar de outras im portunações das autoridades religiosas. A descrição dessa retirada “para o m ar” em M ar- cos é enigm ática e su rp reenden te porque C afarnaum , o local declarado de 3.1-6, fica no mar. A fraseologia talvez indique que Jesus saiu de C afarnaum para ir a faixas da costa mais desertas e a norte , onde o rio Jo rd ão deságua nesse m ar ou lago. “U m a grande m ultidão” se reúne ali, essas pessoas são provenientes de um a extensa região geográfica, não só da Galileia, m as tam bém da Judeia M arcos 3.9-12143 (incluindo Jerusalém ), da Idum eia, cerca de 190 quilôm etros a sul, de p on tos a leste do rio Jo rd ão e tam bém de T iro e Sidom , cerca de 80 quilôm etros a norte. Igualm ente notável é a diversidade étnica da m ultidão. A Galileia, a Judeia e Jerusalém eram territó rios principalm ente judeus; a Idum eia e a Transjordânia eram regiões mistas de judeus e gentios; e T iro e Sidom eram em grande parte, se não totalm ente, regiões gentias (veja Lc 6.17; M t 11.21,22).54 A fama de Jesus é de longo alcance e abrange todos, o que é ainda mais notável considerando-se as segm entações sociais da época. O escopo da influência de Jesus excede aquele de Jo ão Batista que atraía apenas m ultidões de Jerusalém e da Judeia (1.5). Jesus, com essa reputação e m agnetism o, é de novo “ mais poderoso” (1.7) que João Batista. A descrição da influência geográfica de Jesus em M arcos, com o o re trato do Servo do Senhor, designa-o co m o “ luz para os gen tios” (Is 49.6). 9,10 A m ultidão de tam anho considerável atraída pela fam a de Jesus é mais um a vez um a força am bivalente, p rovendo tan to um a oportun idade quanto um im ped im ento para o ensino e m inistério de Jesus (veja a discussão de multidão em 2.2). A pressão da m ultidão exige a p ron tidão de “um peque- no barco, para evitar que o com prim issem ” . O s tipos pastoral e popu lar de Jesus cercado p o r ovelhas e crianças são caricaturas distorcidas da descrição em M arcos do início do m inistério de Jesus na Galileia. A chegada de um líder popu lar acotovelado pelas m ultidões e im p o rtu n ad o pelos repórteres é mais apropriada. A m ultidão é na verdade descrita, antes, com o am eaçadora. A palavra para “com prim irem ” (gr. thlibein) seria m ais bem traduzida p o r “prensar” o u “ esprem er” ; e, no grego, “em p u rran d o ” sugere o sentido de “cair sobre alguém ” ou “ fazer pressão sob re” Jesus. A m ultidão é paradoxal. Ela precisa de ordem e da atenção de Jesus, e este está to talm ente a ten to à miséria p resen te em grande quantidade, m as o clam or dessas pessoas não é uma resposta de fé. 11,12 As m ultidões podem cair sobre Jesus, m as os espíritos m alignos “prostravam -se diante dele” . O verbo “prostrar-se” (gr.prospipteiri) ocorre oito vezes no N o v o T estam ento e, em cada um a delas, exceto p o r um a, transm ite a imagem de um inferior p rostrando-se em hom enagem a u m superior. A tradução p o r “espíritos im undos” , um a form ulação judaica, é a mais ade 54 O texto grego dos versículos 7,8 é incomumente diferente em detalhes e ordem das palavras, talvez devido ao resumo prolixo dos locais em Marcos. Veja Metzger, TCGNT, p. 68. 144M arcos 3.9-12 quada da palavra grega.55 A palavra grega usada para descrever a visão deles de Jesus é theorem, um a palavra usada com frequência no evangelho de João e a qual indica a com preensão in terna, na verdade quase fé. Seu sentido, no entanto, fica aquém desse sentido em M arcos. N as sete ocorrências do term o em M arcos, ele indica um a observação um tan to im parcial, sem qualquer senso de convicção no que é observado. O s espíritos m alignos, com o forças espirituais, reconhecem aquele cheio com o E sp írito de D eus, m as não par- ticipam no ob je to de sua visão (veja mais sobre theorem em 15.40,41). Eles declaram a plena identidade divina de Jesus: “T u és o F ilho de D eu s” (veja Filho de Deus em 1.1; 15.39). A lém do Pai (1.11), os dem ônios são, até esse p o n to da narrativa, o único o u trog ru p o em M arcos a confessar a filiação divina de Jesus (1.24; 3.11; 5.7). O fato de eles, nessa ocasião, fazerem isso na p resença dos discípulos, acentua a incom pletude do conhecim ento que estes tinham de Jesus. A lguns estudiosos sugerem que os dem ônios expu- seram a identidade de Jesus a fim de escapar da autoridade deste sobre eles, e até m esm o para roubar-lhe a força e prevalecer sobre ele.56 Todavia, essa passagem , com o em 5.7, sugere um evento sem contestação, rem iniscente de T iago 2.19: “A té m esm o os dem ônios creem [que D eus existe] — e tremem!” (grifo do autor). A ênfase n ão está n a expulsão dos dem ônios per se, mas em Jesus subjugando o m u n d o dem oníaco a sua autoridade (veja A ordem para silenciar em 1.34). A característica da autoridade divina de Jesus sobre o m al é passada pelo te rm o grego epitiman (“ ele lhes dava o rdens severas”). A palavra epitimian, usada n o A ntigo T estam ento para se referir à Palavra de D eus que sobrepu ja as forças da natureza (SI 106.9) e das forças dem oníacas (Zc 3.2), rep resen ta a o rdem soberana de D eus para rep reender e subjugar o m al (1.25; 4.39; 9.25). A autoridade de Jesus sobre o reino dem oníaco é total. As forças dem oníacas não têm ou tra escolha a não ser confessar sua soberania p o r m eio da sujeição a ele. E m b o ra porções da p resen te narrativa apareçam em M ateus 4.24,25; 12.15,16; e Lucas 6.17-19, nenhum a destas inclui a confissão de Jesus com o 55 A. Y. Collins, “M ark and His Readers: T he Son o f G od Am ong Jew s” , H T R 9 2 /4 (1999), p. 398-99, sugere que a expressão “ espíritos im undos” rem em ora os anjos caídos de G ênesis 6.1-4; lEnoque 15.3-4, Jub. 7.21; 10.1; e Testamento de Salomão. O s dem ônios em Testamento de Salomão, no entanto, não passam de pragas desfiguradoras e erráticas; e aqueles de Gênesis, lEnoque e jubileus são im undos por causa de transgressões sexuais. N enhum a das categorias parece fazer justiça ao poder mais opressivo e sinistro do dem oníaco em Marcos. 16 G rundm ann, D as Evangelium nach Markus, p. 75-76. Excurso: O homem d iv ino145 Filho de D eus. A confissão, para M arcos, é um a conclusão necessária das curas e expulsões de dem ônios p o r Jesus. N ão existe com patibilidade nem coexistência en tre Jesus e as forças dem oníacas. Q u an d o o m ais poderoso se encontra com os espíritos im undos, isso se dá na capacidade de to tal su- premacia sobre eles. A casa deles é pilhada, para antecipar a im agem de 3.27. A suprem acia de Jesus é tão definitiva que é reconhecida pela confissão deles de que ele é “ o Filho de D eu s” . Excurso: O homem divino (3.12) A questão essencial no estudo do evangelho de M arcos relaciona-se aos títulos e nom enclaturas usados para Jesus. T ornou-se praticam ente axiom ático nos estudos m o d ern o s do N o v o T estam ento considerar com o secundário as afirmações nos evangelhos que atribuem títulos m essiânicos para Jesus. A cristologia dos evangelhos, quer explícita (e.g., nos títulos) quer implícitas (e.g., com em exousid), é em geral considerada com o resultado do encon tro da igreja primitiva com as categorias do pensam ento grego na m issão gentia (com o “hom em divino” e “ Filho de D eu s”) ou de ter sido projetada nos relatos do evangelho pela igreja prim itiva com o resultado de seu desejo de atribuir ao Jesus h istórico um a honra proporcional à experiência pós-ressurreição do senhorio dele p o r parte da igreja. E m b o ra estudos acadêm icos recentes sobre o N ovo T estam ento concentrem -se mais na investigação do pano de fundo judaico do N o v o T estam ento , a suposição das influências greco-rom anas e helenistas sob re a cristologia do N ovo T estam ento continua a ser fo rte .’ ' A 57 57 A história dessa interpretação é extensa. N o início do século XX (1913), ela recebeu uma expressão clássica por W. Boussct, Kyrios Christos: A History of the Belief in Christfrom the Beginnings of Christianity to Irenaeus, trad. J. Steely (Nashvil- le: Abingdon Press, 1970). Ela, subsequentemente, tornou-se lugar-comum na cristologia do Novo Testamento. Bultmann afirma: “Em Marcos, ele [Jesús] é lheios anthropoT (The History of the Synoptic Tradition, trad. J. Marsh [New York and Evanston: Harper and Row, 1963], p. 241). T. J. Wceden, mais tarde, escreve: “Na década passada um número cada vez maior de estudiosos de Marcos reconheceram que uma grande parte do material marcano está impregnado por uma cristologia fundamentada na tradição helenista lheios aner (homem divino)” . Além disso, “não existe o menor indício na primeira metade do evangelho [de Marcos] de que o messiado autêntico deveria conter qualquer outra dimensão cristológica [além de theios anêi\ (Mark — Traditions in Conflict [Philadelphia: Fortress Press, 1971], p. 55-56). Urna obra de referencia recente descreve Jesus totalmente no molde de theios anêr (“homem divino”): “A ação de Jesus na história do evangelho (em Mc 3.1-6), portanto, corresponde completamente à imagem contemporânea de 146Excurso: O homem d iv ino teoria do “h o m em divino” é usada em especial para explicar a expulsão de dem ônios p o r Jesus e o fato de ele subjugar as forças dem oníacas.58 M arcos, de acordo com essa teoria, descreve Jesus con fo rm e os m odelos helenistas de operadores de milagres. A teoria do “hom em divino” , apesar da rapidez com que alguns estu- diosos associam o Jesus do evangelho de M arcos com esse “ hom em divino” helenista, está cercada de obstáculos e não foi bem -sucedida em conseguir um a op in ião de co nsenso en tre os estud iosos do assun to .59 O prim eiro prob lem a é com a p róp ria nom enclatura. “ F ilho de D e u s” não era um título com um no helenism o. T ítu los mais im portan tes e m ais frequentes eram neos (“ novo” acom panhado p o r um nom e), epiphanès (“ epifanía”), euergetês (“ben- fe ito r”) e sõtér (“ salvador”). E ssa term inologia está visivelm ente ausente no N ovo Testam ento. O “ hom em divino” não oco rre no N o v o T estam ento , e o adjetivo theios (“divino”) aparece apenas três vezes (At 17.29; 2Pe 1.3,4), e para se referir apenas a D eus, e não a seres hum anos. “ N o v o ” ocorre 24 vezes n o N ovo T estam ento , m as nunca em referência a Jesus com o algo “N o v o ” . “ E pifanía” aparece apenas um a vez n a variante textual (At 2.20) em um a citação de Joel 3.4. “B enfeitor” , com um ente usado para os im peradores e figuras notáveis da A ntiguidade, tam bém o co rre apenas um a vez no N ovo T estam ento , em que o título é expressam ente rejeitado (Lc 22.25,26). Por fim, sõtèr o co rre 24 vezes no N o v o T estam ento , m as apenas três vezes nos evangelhos (Lc 1.47; 2.11; Jo 4.42); aparecendo principalm ente em Paulo. E usado apenas com relação a Jesus ou para D eus nas epístolas pastorais.60 A ssim , o vocabulário com m uito peso de “hom em divino” n o helenism o benfeitor público. Ele, como um rei filósofo, afirma ter o direito de determinar ele mesmo o critério para a conduta correta ou errada (HCNT, p. 86). 38 L. Keck argumenta que as histórias de milagre em 3.7-12; 4.35— 5.43; 6.31-52; e 6.53-56 brotam das fontes helenistas uma vez que são desprovidas de referências aos conflitos com o judaísmo, debates sobre o sábado ou a autoridade de Jesus, não tendo nenhuma conexão com o Reino de Deus nem com o perdão dos pecados. Ele conclui que “o poder sobrenatural reside em Jesus de uma forma a torná-lo diferente dos outros homens. [...] São manifestações do Filho de Deus e, de uma forma particular, o theios anêr (“Mark 3:7-12 and Mark’s Christology”, JBL 84 [1965], p. 341-58). 59 Veja P. Achtemeier, “Gospel Miracle Tradition and the Divine Man”, Inf26 (1972), p. 174. 60 Sobre “salvador” e “benfeitores”, veja A. D. Nock, “Soter and Euergetes”, em Essays onReligion and the Ancient World, ed. Z. Stewart (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1972), 1.720-35. Excurso : O homem d iv ino147 está conspicuam ente ausente do N o v o T estam ento , e em um a ocasião foi desdenhosam ente p o sto de lado. A inda m ais p roblem ático que a nom enclatura, no en tan to , é o conceito de “hom em divino” . E ssa expressão, “hom em divino” , oco rre apenas rara- mente na literatura da A ntiguidade. N ão é um conceito fixo, m as um coletivo abstrato de derivação m od ern a para um a série de fenóm enos sem irrelacio- nados, incluindo individuos incom uns e talen tosos — governantes, guerrei- ros, filósofos, poetas, heróis de todos os tipos e operadores de milagres. O m undo helenista designava várias pessoas incom uns com um ou m ais dos títulos acim a, aos quais os estudiosos m odernos referem -se um tan to indis- crim inadam ente com o “hom ens d iv inos” . C onsiderando-se a am biguidade do conceito, é insuficiente assum ir ou argum entar, sem o u tra identificação e sem mais precisão, que esse gênero coletivo está na raiz do re trato de Jesus em Marcos.61 Jesus tinha m uito p o uco em com um com o poeta inspirado pelas musas ou com o culto decadente e exagerado a César. As façanhas heroicas de Héracles dificilm ente são tipos para o carpinteiro de N azaré. A té o tipo do operador de m ilagres helenista, a analogia mais próxim a de Jesus, é de utili- dade questionável. D eve-se lem brar que o m odelo do “h o m em divino” que, conform e se supõe, influenciou a história de Jesus em M arcos é um m odelo pós-cristão. H istórias de indivíduos que operavam m aravilhas só com eçam a aparecer na segunda m etade do século II d.C. e depois, pelo m enos nos casos de F ilóstrato , Porfirio, Jâm blico e D iógenes Laércio, com a in tenção de criar um a polêm ica anticristã.62 C ontudo , m esm o p ressu p o n d o que esses relatos preservam as tradições anteriores, tais tradições estão longe de re- presentar um paralelo à tradição de Jesus nos evangelhos. E m b o ra as curas e ressuscitações sejam encontradas com frequência na literatura helenista, a expulsão de dem ônios era incom um entre os “hom ens d iv inos” helenistas.63 M arcos, em co n trap artid a , re tra ta os dem ô n io s co m o os principais oponentes de Jesus e o primeiro g ru p o a reconhecê-lo e confessá-lo com o Filho de D eus. O s operadores de m ilagres d a A ntiguidade, com relação à 61 Veja D. L. Tiede, The Charismatic Figure as Miracle Worker, SBLDS (Missoula: Scholars Press, 1070), p. 289; W. von M artitz, “huios”, 7Ϊ9Λ Τ8.339. 42 E. Schweizer, Jesus Christus im vielfàltigen Zeugnis des Neuen Testaments (M iinchen/ Hamburg: Siebenstern Taschenbuch Verlag, 1968), p. 127. 63 Veja o material reunido em H . D. Betz, Fukian von Samosata und das Neue Testament (Berlin: Akademie-Verlag, 1961). Betz, que de outra form a aprova o m otivo “ho- mem divino” , adm ite que há urna profunda diferença entre os relatos de Luciano sobre exorcismos e aqueles do N ovo Testam ento em que Jesus expulsa demônios. 148Excurso : O homem d iv ino cura, praticavam norm alm en te seu trabalho com ostentação, pois “ todos os sinais no m undo antigo eram exigidos para substanciar a afirm ação de ser um ‘filho de D e u s’ ” .64 T íp ico dessa ostentação é a história de A polôn io de T iana que, tendo “partido da vida en tre os hom ens” , apareceu em um sonho de um jovem ateu para convencê-lo da im ortalidade da alm a (F ilóstrato, Vida deApol 8.31).65 M arcos, no en tan to , re trata Jesus com o um servo hum ilde cuja autorida- de não é em pregada para fazer um a dem onstração de sua pessoa nem para engrandecê-lo.66 O s operadores de m aravilha helenistas, em con traste com Jesus, p resum em perd o ar pecados. F ilóstrato reconta a h istória de A polônio 64 G. P. Wetter, Der Cotíes Sohn (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1916), p. 64- 65. 65 Apolônio de Tiana, o mais famoso dos operadores de milagres da Antiguidade, é uma analogia distante a Jesus. Filóstrato produziu esse relato de Apolônio 150 anos depois de Jesus, com o objetivo de reabilitar Apolônio da acusação de charlatanismo. A obra Vida de Apolônio não tem proximidade com seu sujeito, uma característica dos relatos do evangelho sobre Jesus, e também é muitíssimo lendária. Apolônio conhece todas as línguas (até mesmo dos pássaros e animais) sem tê-las aprendido previamente, conhece os eventos futuros e passados e até mesmo se lembra das encarnações anteriores. Os 21 milagres relatados como feitos por ele têm a intenção de evidenciar sua posição preternatural. N o Egito, ele era considerado um deus, as pessoas de todos os lugares se maravilhavam com sua bondade. Apolônio, no entanto, não reivindicou o título de deus para si mes- mo, nem Filóstrato o chama de filhei de deus. Filóstrato equivoca-se ao registrar uma série de seus milagres, relatando que Apolônio “parecia” efetuar curas, etc. Filóstrato também é um tanto nebuloso sobre a morte de Apolônio, referindo-se vagamente a ele como “passando” desta vida. Apolônio, em suma, é o clássico sábio ou profeta helenista que é assim idolatrado. 66 Atanásio (século IV), que conheceu em primeira mão os operadores de milagres helenistas, diferenciava Jesus da seguinte maneira: “Bem, se eles perguntarem: Por que, então, [Deus] não apareceu por outros meios e em partes mais nobres da criação e não usou algum outro instrumento mais nobre, como o sol, a lua, as estrelas, o fogo ou o ar em vez de um mero homem? Que essas pessoas saibam que o Senhor não veio para fazer uma exibição de poder, mas veio para curar e ensinar os que sofrem. Pois o caminho daquele que busca fazer uma demonstra- ção de poder seria, só para aparecer, deixar perplexos os observadores; mas para aquele que busca curar e ensinar o caminho, e não apenas residir temporariamente aqui, é dar a si mesmo para ajudar aqueles necessitados e aparecer de uma forma que aqueles que necessitam dele possam suportar; que ele não possa, ao exceder às demandas dos sofredores, perturbar as mesmas pessoas que precisam dele, tornando inútil a aparição de Deus para elas” {On the Incarnation, ρ. 43). Excurso : O homem d iv ino149 para dem onstrar com o ele diferia da hum anidade norm al. É im portan te de- m onstrar, com F ilóstrato e tam bém com ou tros escritores da A ntiguidade, a moira (“m érito”) do herói com o o fundam ento para sua apoteose final à di- vindade. C ontudo , os evangelhos enfatizam a identificação e solidariedade de Jesus com a hum anidade (Mc 10.42-45). A revelação do relacionam ento único de Jesus com D eus no con tex to dos relacionam entos hum anos definidos pela confiança e discipulado é essencialm ente d iferente do papel, que segue uma fórm ula, do “ hom em divino” no culto oficial, con fo rm e exem plificado pelas referências aos faraós m ortos com o “pai d iv ino” ou aos im peradores rom anos com o “ salvador e benfe ito r do m u n d o hab itado” . U m tipo de literatura influenciada pelo conceito do “h o m em divino” helenista no cristianism o prim itivo foi a dos evangelhos apócrifos, e não dos evangelhos canônicos. N o s evangelhos apócrifos, observam os as elabo- rações sob re Jesus rem iniscentes dos m otivos do “ hom em divino” , e mais especialm ente naqueles relatos que não encon tram paralelos nos evangelhos canônicos.67 Isso indica que os evangelhos canônicos exercem um a influência contida sobre a descrição de Jesus com o o “hom em divino” . C om relação aos evangelhos canônicos, a evidência preceden te indica que M arcos e os evangelistas do N o v o T estam ento resistem a usar o vocabulário e os concei- tos associados com o “hom em divino” em suas apresentações de Jesus. O m odelo form ativo da filiação divina de Jesus, seja qual fo r ele, não é aquele do “hom em divino” greco-romano. A filiação divina de Jesus é definida pelos conceitos do A ntigo T estam ento de am or filial e obediência e expressada de acordo com o m otivo do Servo do S enhor em Isaías.68 61 Achtemeier, “ G ospel Miracle Tradition and the D ivine M an”, In t 26 (1972), p. 174-97. 68 Sobre o “hom em divino” , veja J. R. Edwards, ‘T h e Son o f G od: Its A ntecedents in Judaism and Hellenism and Its Use in the Earliest G ospel” (dissertação de doutorado, Fuller Theological Seminary, 1978), p. 48-81,125-35. E n tre aqueles que, corretam ente, resistem ao canto da sereia do conceito do “ hom em divino” estão O. Betz, “T he Concept o f the So-called ‘Divine M an’ in M ark’s Christology” , em Studies in New Testament and Early Christian Literature: Essays in Honor o f A llen P. Wikgren (Leiden: Brill, 1972); C. H. Holladay, Theios A nêr in Hellenistic Judaism: A Critique o f the Use o f This Category in New Testament Christology, trad. J. Bowden (Philadelphia: Fortress Press, 1976); W Liefeld, “T he Hellenistic ‘Divine M an’ and the Figure o f Jesus in the G ospels” , J E T S \6 (1973), p. 195-205; E . Schweizer, “N euere M arkus-Forschung in USA” , EvT2>3 (1973), p. 533-37; J. D. Kingsbury, ‘T h e ‘Divine M an’ as the Key to M ark’s Christology— The Find o f an Era?” In t 35 (1981), p. 243-57. capítulo quatro Os que pertencem ao grupo íntimo e os de fora M A R C O S 3 .13 — Φ 3 4 A sequência rápida das histórias em 2.1— 3.12 descreve a autoridade de Jesus em um a variedade de cenários públicos. M arcos foca agora a autoridade dejesus com respeito a seus seguidores, prim eiro na constitu ição form al dos Doze (3.13-19), m as tam bém com respeito aos g ru p o s relacionados com Jesus de ou tras form as, incluindo os associados a ele (3.21; 4.10) e a família N .(־3.3135) a presente seção, M arcos desenvolve com especial atenção o tem a dos que pertencem ao g ru p o ín tim o e os de fora, tem a esse im po rtan te ao longo de to d o o evangelho. N o entanto, esse não é um tem a separado daquele referente à autoridade de Jesus, m as um subtem a, pois a posição daqueles que pertencem ao g ru p o ín tim o e os de fora é de term inada pela proxim idade com Jesus e receptividade a ele. A N O V A IS R A E L (3 .13 -19 ) O tem a de seguir Jesus, depois dos tem as da filiação divina e da autori- dade d e je su s , é o mais im portan te no evangelho de M arcos. Jesus, desde o início de seu m inistério galileu, cham a as pessoas para a com unhão com ele a fim de estabelecer sua m ensagem e m issão n o m eio delas. A palavra para “discípulos” , na raiz grega e na hebraica, significa “ estudante” ou “aprendiz” , especificam ente aquele que aprende em com unhão ativa, daí um aprendiz. Jesus já reuniu alguns discípulos antes desse episódio. E le, ali ao lado do lago, chamou quatro pescadores (1.16-20) e um publicano (2.13,14). E sses e outros seguidores são m encionados de passagem ao longo dos capítulos anteriores. Os seguidores d e je su s , n o en tan to , excedem os discípulos m encionados até o m om ento , con fo rm e d em onstra sua escolha dos D o ze den tre u m g ru p o maior de seguidores não m encionados p o r nom e. A lguns dos nom es nes 152M arcos 3.13 se g ru p o m aior de seguidores ainda são preservados, incluindo os de José Barsabás e M atías que estiveram com Jesus desde seu batism o (At 1.21-23). O u tro s seguidores eram as m ulheres, “M aria M adalena, Salom é e M aria, mãe de Tiago, o mais jovem , e de José” (15.40). A igreja prim itiva tam bém con- to u os nom es de Paulo, B arnabé e T iago, o irm ão de Jesus, com o discípulos tardios que não estiveram en tre os D oze. Jesus, no início de seu m inistério, elegeu doze hom ens do círculo mais am plo de seus seguidores para se juntarem form alm ente a ele co m o apren- dizes.1 E sse círculo in terno é conhecido p o r “apósto los” , ou seja, seguidores com issionados de Jesus. E m 3.13-19, M arcos descreve m ais exatam ente o que acarreta o discipulado p o r Jesus. O s versículos 13-15 explicam a função dos D oze; e os versículos 16-19, a identidade deles. 13 “Jesus subiu a um m o n te e cham ou a si aqueles que ele quis, os quais vieram para jun to dele.” A linguagem dessa sen tença é m ais solene e mais sim bólica em grego do que em português. O prim eiro sinal d isso é que Jesus “subiu a um m o n te” . E m b o ra o cenário do cham ado dos D o ze tenha sido provavelm ente os m ontes no lado ocidental à beira do m ar da Galileia, “o m o n te” é um a tradução inadequada do te rm o grego oros (“m o n tan h a”) no versículo 13. As m ontanhas são com frequência em M arcos locais de revelação ou conjunturas relevantes n o m inistério de Jesus (3.13; 6.46; 9.2; 11.1; 13.3; 14.26), pois são locais de revelação no A ntigo Testam ento.1 2 Jesus subir em um 1 O cham ado e o com issionam ento dos D oze por Jesus é um a certeza histórica. D oze, à parte de um a referência aos doze concilios dos anciãos em C unrâ (1QS 8.1), não é um núm ero com um para as reuniões judaicas de com unhão (veja A t 6.3, e.g., em que os apóstolos escolheram sete diáconos). Tam pouco, é provável que os D oze tenham sido projetados em retrospectiva na vida de Jesus pela com unidade cristã, pois dificilmente seria concebível que a igreja primitiva tenha incluído o trai- dor de Jesus nesse círculo de seguidores. Por fim, a consciência e reconhecim ento de Paulo dos D oze (IC o 15.5; G1 2.9) atestam de seu fundam ento no ministério de Jesus. Veja E. Schweizer, The Good News According to M ark, p. 127-28. 2 O A ntigo Testam ento associa com frequência as m ontanhas com a presença e revelação de Deus: do m onte Ebal e do m onte G erizim vêm bênçãos e maldições (D t 11.29; 27.12,13; Js 8.33); Isaque é oferecido em um a m ontanha (G n 22.2); Moisés ora em um a m ontanha (Êx 17.9,10), com o tam bém o faz Elias (lR s 18.42); a arca é posta em um a m ontanha (1 Sm 7.1; 2Sm 6.3); e lavé habita nas m ontanhas (lC r 16.39). Acima de tudo, D eus entrega seus m andam entos no m onte Sinai (Êx 19— 20); o m onte Sião é lugar de habitação de D eus (SI 15.1; 24.3); e D eus julgará a terra do m onte das Oliveiras (Zc 14.4). Veja W. Foerster, "oros”, T D N T 5.475-87. M arcos 3.13153 m onte para cham ar os D o ze tem a relevância da subida de M oisés ao m on te Sinai para receber e transm itir os D ez M andam entos (Êx 19.1-25; 20.18-20). Jesus “cham ou a si aqueles que ele quis” . O grego é mais enfático; o sentido é que ele reuniu aqueles que ele desejava. Jesus determ ina o chamado. Os discípulos não decidem seguir Jesus nem fazer um favor para ele ao aceitar 0 cham ado; antes, seu cham ado suplanta a vontade deles, reun indo aquele que não tem a in tenção de segui-lo (10.21) e im ped indo aquele que desejava segui-lo (5.19). A sociedade para a qual ele os cham a é determ inada p o r seu chamado, e não pelas preferências deles. Seus m em bros não têm nada em comum, exceto o cham ado soberano de Jesus, à parte do qual a com unidade não pode existir. C onfo rm e observam os em 1.16-20, o em brião da igreja já está significado no cham ado dos seguidores-aprendizes para form ar um a nova com unidade em to rn o de Jesus. Por fim , os apósto los vieram “para jun to dele” . O s rabis, conform e ob- servamos em 1.16-20, não cham avam os discípulos, m as eram escolhidos po r seus discípulos, da m esm a fo rm a com o os alunos escolhem sua universidade. Tampouco, um rabí ousaria deixar a im pressão de que sua pessoa suplantava a Torá. O s discípulos rabínicos veríam idealm ente em seu tu to r um m eio de se especializar n a T orá e de m odelar o que eles m esm os p o dem vir a se tornar. Contudo, o program a de Jesus, con fo rm e descrito p o r Jesus, é de um a ordem distinta. Jesus é o único e exclusivo sujeito dochamado. N ada —— nem m esm o a Torá o u D eus — é apresen tado com o mais im portan te que Jesus. E ste, de forma distin ta da de um rabi, não é um m eio para um bem ulterior, m as ele mesmo é o bem derradeiro. N ão existe a possibilidade de se igualar a Jesus ou suplantá-lo. A questão é em quem Jesus p ode transfo rm ar seus próprios discípulos, e não o que eles podem fazer p o r si sós.3 ’ Sobre a natureza radical do cham ado de Jesus, veja K. H. Rengstorf, “matbêtês”, 7ZW 7’5.444-47, que declara o seguinte: “ [A iniciativa de Jesus] dom ina todos os relatos do evangelho sobre a m aneira com o jos discípulos] com eçaram a seguir Jesus” . A característica do cham ado de Jesus é captada po r Schwcizer, The Good News According to M ark, p. 49: “Esse conceito de discipulado é um a criação de Jesus. Os gregos e rabis de um a época posterior falam sobre os ‘discípulos de D eus’; no entanto, eles queriam dizer com isso ‘tornar-se com o ele’ em um sentido ético, ou a obediência a seus m andam entos. O relacionam ento dos rabis com seus alunos parecia ser um paralelo mais próxim o a esse discipulado. A principal diferença é que o rabi não cham a seus discípulos — ele é procurado por eles. Além disso, os rabis jamais poderíam ter concebido um cham ado tão radical a pon to de deixar claro que estar com Jesus é mais im portante que todos os m andam entos de Deus. 154M arcos 3.14-15 14,15 A nova com unidade, em todos os aspectos, é obra de Jesus. A N V I afirma: “ [Ele] escolheu d o ze” , m as o tex to grego diz: “ele fe% D o z e” . D esignar é selecionar de um g ru p o existente e elevar a um a nova posição, m as father significa trazer à existência. O verbo de M arcos ('epoiésen) é o m esm o usado em G ênesis 1.1 (LXX). E m b o ra esse seja um verbo com um , é bem concebível que M arcos tivesse a in tenção de rem em orar a linha de abertura de G ênesis: “ N o princíp io D eus criou os céus e a te rra” (grifo do autor), com o sentido de que os D o ze são um a nova criação.* 4 5 O discipulado não consiste no que os discípulos p o d em fazer p o r Cristo, m as no que C risto p ode father dos discípulos.כ A nova posição dos discípulos é significada pelo fato de serem chamados (N V I, “designando-os”) de “apósto los” . Isso mais um a vez rem em ora o tema da criação, em que A dão dá nom e aos animais (G n 2.19). N o m u n d o bíblico, o direito de d ar n om e pertencia a um superior — criador, senhor, pais — que determ inava a essência e p ro p ó sito daquilo nom eado. O cenário do cham ado dos D o ze nos versículos 13,14 salienta de todas as m aneiras concebíveis a au toridade de Jesus para determ inar e constituir seus seguidores. N o s versículos 14b,15, o cham ado é ainda defin ido p o r duas orações exprim indo propósito . O s D o ze são constitu ídos para estarem com ele e para serem enviados·, o últim o p rop ó sito se divide da m esm a fo rm a em duas ou tras responsabilidades: p regar e ter autoridade sobre os dem ônios. O aposto lado, p o rtan to , é u m a questão de ser e ser enviado, refere-se àquele que está em re lacionam ento com Jesus e àquilo que a pessoa faz co m o resultado desse relacionam ento. A frase sim ples preposicional “ para que estivessem com ele” tem rele- vância dim inuta no evangelho de M arcos. O discipulado é um relacionam ento O discípulo de um rabí pode sonhar, algum dia, em se to rnar ainda m elhor, se possível, que seu m estre; mas um discípulo de Jesus jamais podería esperar que algum dia ele m esm o possa ser o ‘Filho do hom em ’. Jesus nunca debate com os discípulos, com o um rabi faria. Assim, a palavra ‘seguir’ recebeu um novo tom quando Jesus a proferiu, um tom que não se encontra em nenhum outro lugar naquelas passagens do Antigo Testam ento que declaram que é preciso ser seguidor de Baal ou de lavé” . 4 Veja E. Lohm eyer, D as Evangelium des Markus, p. 74-75. 5 O texto gnóstico Carta de Pedro a Filipe (p. 133-34) em N ag H am m adi ignora a autoridade de Jesus para cham ar os discípulos e determ inar quais seriam eles. A Carta de Pedro a Filipe, ao contrário de M arcos, faz os discípulos o sujeito do rela- cionam ento, e estes não se reúnem à pessoa de Jesus, mas a “um a grande luz” e “voz” para a iluminação a partir da Plenitude (Pleroma). M arcos 3.14-15155 antes de ser um a tarefa, um “quem ” antes de um “o q uê” . Se, com o em Gênesis 3.4,5 indica, a essência do pecado fo r substitu ir um falso deus pelo verdadeiro D eus, estar com Jesus se to rn a o m eio para abandonar os ídolos humanos para ho n ra r o verdadeiro D eus, recuperando dessa fo rm a a im agem de D eus (G n 1.26,27). E s ta r com Jesus, p o r conseguinte, é o m istério mais profundo do discipulado. D esse m o m en to em diante, a pessoa e a ob ra de Jesus determ inam a existência dos D oze. O segundo p ro p ó sito do cham ado é ser “envia[do]’\ E m grego, a form a verbal da palavra para “ apósto lo” (apostólos) é apostellein, com o sentido de “com issionar” o u “ enviar com um p ropósito específico” . A ênfase em Mar- cos não é sobre designar um a categoria especial de superseguidores distintos dos ou tros seguidores, ou seja, apósto los versus discípulos. Isso fica evidente pelo fato de que a palavra para “apósto lo” , com certeza, o co rre apenas um a vez em M arcos 6.30,6 ao passo que a palavra “discípulo(s)” oco rre 45 vezes, com ainda outras expressões para os seguidores de Jesus (3.34; 4.10; 10.32; 11.9).7 O cham ado e com issionam ento dos D o ze é representativo daquilo que diz respeito a todos os seguidores de Jesus. O s D o ze são enviados p o r Jesus específicam ente “ a pregar” e ter “au- toridade para expulsar dem ôn ios” . A palavra grega traduzida p o r “pregar” (kêrjssein) é a m esm a palavra usada em 1.14 para a proclam ação do evangelho de D eus p o r Jesus. E la transm ite o sentido do discurso público, consequen- temente a proclam ação. O evangelho não é um m istério inefável além das palavras, m as um a história — a história de Jesus — que p ode ser articulada e com preendida em linguagem com um . A proclam ação não é a verbalização da experiência subjetiva do cristão, m as to rn a r conhecido a atividade salvífica de Deus em Jesus. N ão o que os discípulos pensam e sentem , m as o que eles veem e ouvem é o assunto da proclam ação; “ é isso que pregam os, e é nisso que vocês creram ” (IC o 15.11). E n tão , a pessoa não proclam a o evangelho de acordo com as p róprias palavras nem p o r m eio do p róp rio poder; antes, ela tem de ser enviada p o r Jesus (5.19; 6.7). E m adição à verbalização da m ensagem , os apósto los são em poderados para agir com autoridade para expulsar dem ônios. E ssa constitu i a segunda 6 Não é certo que a frase explanatória “designando-os apóstolos” {bous ka i apostolous õnomaseri) foi escrita po r Marcos. E m bora esteja presente em vários m anuscritos antigos ( B א C Θ), é om itida em m uitos m anuscritos im portantes. Sua presença aqui pode se dever a um a interpolação de Lucas 6.13. 7 Veja W. R. Telford, M ark, N T G (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1995), p. 141. 156M arcos 3.16-19 razão para o envio deles. A té o m om ento , o poder para proclam ar o evangelho e expulsar dem ônios era um a prerrogativa só de Jesus que “perco rreu toda a Galileia, p regando nas sinagogas e expulsando os d em ôn ios” (1.39). Jesus, em um ato in tencional de em poderam ento , confere aos D o ze sua autoridade para proclam ar as boas-novas e prevalecer sobre os poderes dem oníacos (At 5.12-16; 16.16-18). Isso os constitu i com o iguais, e não com o seguidores servis ou fas apaixonados, e lança o fundam ento para a m issão posterior deles em nom e de Jesus (6.7). A força sim bólica desse em p o n d eram en to é tão im portan te quan to seu efeito