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Prévia do material em texto

Karl Marx
Friedrich Engels
A IDEOLOGIA ALEMÃ
1 a edição
EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR
São Paulo - 2009
Copyright © 2009, by Editora Expressão Popular
Revisão: Miguel Cavalcanti Yoshida, Geraldo Martins de Azevedo Filho.
Revisão da tradução: Sérgio Lessa e Ivo Tonet.
Texto editado a partir: Marx e Engels Obras Escolhidas. A ideologia alemã.
Tradução de Álvaro Pina.
Projeto gráfico, diagramação e capa: ZAP Design.
Impressão e acabamento: Cromosete
Arte da capa: Acervo Iconographia
______Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Marx, Karl, 1818-1883
M392i A ideologia alemã / Karl Marx, Friedrich Engels ;
tradução de Álvaro Pina.-1.ed. - São Paulo : Expressão
Popular, 2009.
128 p.
Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br
ISBN 978-85-7743-102-1
1. Ideologia alemã. 2. Dialética. 3. Materialismo
dialético social. I. Engels, Friedrich. 1820-1895. II. Título.
CDD 193
335.4
_______________________________________ CPU 162.6
Bibliotecária: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.
I a edição: março de 2009
I a reimpressão: abril de 2010
EDITORA EXPRESSÃO POPULAR
Rua Abolição, 197 - Bela Vista
CEP 01319-010 - São Paulo-SP
Telefone: (11) 3112-0941 ou 3105-9500
vendas@expressaopopular.com.br
www.expressaopopular.com.br
SUMÁRIO
NOTA EDITORIAL ................................................................................................. 7
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 9
FEUERBACH. OPOSIÇÃO ENTRE A CONCEPÇÃO (ANSCHAUUNG)
MATERIALISTA E IDEALISTA
(Introdução) [I] .................................................................................................................. 19
1. A ideologia em geral e a alemã em particular .......................................................... 21
2. Premissas da concepção materialista da história ......................................................... 23
3. Produção e intercâmbio. Divisão do trabalho e formas de propriedade:
tribal, antiga e feudal .................................................................................................... 25
4. A essência da concepção materialista da história. Ser
social e consciência social] ............................................................................................. 30
[H]
1. Condições da libertação real do homem ....................................................................... 35
2. Crítica do materialismo contemplativo e inconsequente de Feuerbach...................... 36
3. Relações históricas primordiais, ou os aspectos básicos da atividade social:
produção dos meios de subsistência, produção de novas necessidades,
reprodução das pessoas (a família), intercâmbio social, consciência.......................... 40
4. A divisão social do trabaího e as suas consequências: a propriedade
privada, o Estado, a “alienação” da atividade social .................................................... 46
5. Desenvolvimento das forças produtivas como uma premissa material
do comunismo ................................................................................................................ 50
6. Conclusões da concepção materialista da história: continuidade do
processo histórico, transformação da história em história mundial, a
necessidade de uma revolução comunista ..................................................... 53
7. Resumo da concepção materialista da história ............................................................. 57
8. Falta de fundamento da concepção anterior da história, a concepção
idealista, particularmente da filosofia alemã pós-hegeliana ....................................... 59
9. Crítica adicional de Feuerbach, da sua concepção idealista da história .................... 63
[III]
1. A classe dominante e consciência dominante. Formação da concepção
de Hegel do domínio do espírito na história ............................................................... 67
[IV]
1. Instrumentos de produção e formas de propriedade.................................................... 73
2. A divisão do trabalho material e intelectual. Separação da cidade e do
campo. O sistema das corporações ............................................................................... 74
3. Maior divisão do trabalho. Separação do comércio e da indústria.
Divisão do trabalho entre as várias cidades. Manufatura ........................................... 79
4. A divisão do trabalho mais extensa. A grande indústria............................... 87
5. A contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio como
base de uma revolução social ........................................................................................ 89
6. A concorrência dos indivíduos e a formação das classes. Desenvolvimento
da contradição entre os indivíduos e as condições da sua vida. A comunidade
ilusória dos indivíduos na sociedade burguesa e a unidade real dos indivíduos
no comunismo. A subjugaçáo das condições de vida da sociedade ao poder dos
indivíduos unidos ......................................................................................................... 90
7. A contradição entre os indivíduos e as suas condições de vida como uma
contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio.
O desenvolvimento das forças produtivas e a mudança das formas
de intercâmbio.................................................................................................................... 99
8. O papel da violência (conquista) na história .............................................................. 103
9. O desenvolvimento da contradição entre as forças produtivas e a forma
de intercâmbio nas condições da grande indústria e da livre concorrência.
Antagonismo entre trabalho e capital................................................. 105
10. A necessidade, as condições e as consequências da abolição da
propriedade privada .................... 108
11. Relação do Estado e do direito com a propriedade...................... 111
12. Formas da consciência social .................................................................................... 114
TESES SOBRE FEUERBACH
Karl Marx - 1. Ad Feuerbach (1845)............................ 119
Marx sobre Feuerbach (1845) [Com alterações de Engels, 1888] ................................. 123
NOTA EDITORIAL
O leitor poderá encontrar diversas traduções de A ideologia, alemã
em português. Entre elas, duas traduções dos manuscritos completos,
a da Editora Boitempo, que segue mais fielmente a provável ordem
cronológica da redação dos manuscritos (a partir da MEGAII, isto é,
a segunda versão e mais atualizada das Obras Completas de Marx e
Engels), e a da Editora Civilização Brasileira, que segue a organização
dos manuscritos segundo foram publicados nas Marx-Engels Werke
(MEW). Além delas há inúmeras traduções para o português do
capítulo I e das Teses Ad Feuerbach, a mais comum entre nós é a da
Ed. Hucitec (que optou por seguir a ordem da MEW exceto no seu
trecho final, que segue a tradução inglesa da Progress Publishers). E
importante o leitor estar atento a esse fato porque embora trate-se da
mesma obra de Marx e Engels, a ordem dos parágrafos pode variar
bastante entre cada uma das edições.
A presente edição foi preparada a partir da tradução portu-
guesa realizada pelo coletivo “Avante!” e publicada em Marx e
Engels Obras Escolhidas, “A ideologia alemã” — Tomo I, tendo sido
realizada uma revisão da tradução pelos profs. drs. Sérgio Lessa
e Ivo Tonet, ambos professores titulares da Universidade Federal
de Alagoas.
Na presente edição os materiais são apresentados de acordo com
a brochura em russo: K. Marx e F. Engels, Feuerbach. Oposição
A IDEOLOGIA ALEMÃ
das Concepções Materialista e Idealista. (Nova ediçáo do primeiro
capítulo de A Ideologia Alemã}, Moscou, 1966. Todos os títulos
einterpolaçóes acrescentados pelos editores vão entre colchetes,
assim como os números das páginas do manuscrito. As folhas da
primeira cópia a limpo, a principal, numeradas por Marx e Engels,
são assinaladas com a letra “f” e um número: [f. 1] etc. As páginas
da primeira cópia a limpo não têm numeração do autor e são as-
sinaladas com a letra “p” e um número: [p. 1] etc. As páginas das
três partes em rascunho do manuscrito, numeradas por Marx, são
assinaladas com um simples número: [1] etc.
Os termos que foram utilizados em outra línguas no texto
original, que não o alemão, foram mantidos como tal seguidos
pela sua tradução entre colchetes.
As notas de rodapé inseridas pela edição portuguesa estão
assinaladas no texto como (N.E.); as que foram inseridas para a
edição brasileira estão assinaladas por (N.E.B.); as que não estão
assinaladas são notas do original alemão que serviu de base para
a tradução da obra.
8
INTRODUÇÃO
Texto e contexto
A A ideologia alemã é uma obra escrita por K. Marx e F. Engels nos
anos de 1845-1846. Sem dúvida, a mais importante no que se refere
à elaboração dos fundamentos de uma nova concepção de história.
Para entender o significado mais profundo dessa obra é preciso
compreender o momento histórico -social em que ela foi escrita e,
ao mesmo tempo, o momento na trajetória intelectual dos seus
autores.
Como se sabe, Marx e Engels viveram no século 19, que teve
uma importância extraordinária na história da humanidade. É
nesse momento, na virada do século 18 para o século 19, que a
sociedade burguesa chega ao seu pleno florescimento. Esse flores-
cimento é o resultado de um conjunto de transformações — eco-
nômicas, políticas, sociais, ideológicas, culturais — impulsionadas
pela dinâmica do capital, que a levaram a se tornar plenamente
madura, vale dizer, plenamente social. Essa maturidade significava
que, nesse momento, a sociedade atingiu uma forma que a distin-
guia claramente da natureza, embora mantendo sua vinculação
insuperável com ela. A realidade social se torna plenamente social.
E isso que permite que ela possa ser conhecida em sua legalidade
própria, ou seja, como algo que é produzido pela atividade humana
e não por forças naturais ou sobrenaturais.
Por outro lado, a sociedade burguesa, por ser baseada numa
forma de exploração do homem pelo homem que mistifica as
A IDEOLOGIA ALEMÃ
relações sociais, também oculta a sua verdadeira natureza. Ao
transformar as relações sociais em relações entre coisas, faz com
que essas relações apareçam como se fossem naturais . Como
consequência, as relações de exploração não aparecem como
produtos da atividade humana, mas como algo que independe
dos homens.
A completude da revolução burguesa também tem outra con-
sequência importante. Juntamente com a classe burguesa, também
adentra o cenário histórico uma outra classe, que terá uma im-
portância fundamental para o futuro da humanidade — trata-se
da classe proletária. Pela primeira vez na história da humanidade,
não só a classe dominante, mas também a classe dominada abre
uma perspectiva para toda a humanidade. Esta, classe dominada,
por sua vez, é também a primeira classe social que exige, por sua
própria natureza, a superação radical da exploração do homem pelo
homem. Mas, para isso, ela precisa de um tipo de saber, de um
conhecimento da realidade social, de uma concepção de mundo
radicalmente diferente daqueles que orientavam a construção da
sociedade burguesa. Esse novo tipo de saber era absolutamente
necessário para que ela pudesse orientar a sua luta pela construção
dessa nova forma de sociabilidade.
Ora, a elaboração desse novo tipo de saber implicava a crítica
do modo dominante de pensar e a elaboração de novos e diferentes
fundamentos para a compreenção da realidade social. O modo de
pensar tradicional era marcado pelo idealismo e pelo empirismo.
Segundo o idealismo, é a atividade intelectual que cria a realida-
de social. O empirismo, por sua vez, simplesmente narra os fatos
como eles se apresentam de modo imediato. Esse modo de pensar
falseia, embora de modo não intencionalmente, o conhecimento
da realidade social, contribuindo, assim, para reproduzi-la segundo
os interesses das classes dominantes.
E esse conjunto de circunstâncias que permite entender o sur-
gimento das idéias que estão expressas nesta obra.
10
Kar l Ma rx
Mas também é fundamental compreender o momento da
trajetória intelectual dos autores para entender o significado de
A ideologia alemã. Essa nova concepção de mundo, por ser radi-
calmente nova e não simplesmente o conhecimento de um tema
parcial, implicou um processo de busca intensa, de mudanças
profundas, de desbravamento de um terreno completamente des-
conhecido. Implicou também a passagem dos próprios autores de
uma concepção ainda marcada pelo idealismo para uma concepção
materialista. Contudo, também não se tratava de um materialismo
mecanicista, mas, sim, de caráter histórico, social e dialético.
Essa transição, do idealismo ao materialismo, se deu ao longo
de alguns anos, mais precisamente de 1837 a 1846, com uma in-
flexão significativa nos anos de 1843-1844. O ponto culminante
da elaboração dos fundamentos dessa nova concepção se encontra
precisamente nesta obra chamada A ideologia alemã. Nela, Marx e
Engels fazem uma crítica de alguns autores alemães, que expres-
savam a maneira idealista de pensar, e esboçam os fundamentos
da concepção materialista da história.
Como Marx mesmo adverte, este texto foi escrito como um meio
de passar a limpo os fundamentos dessa nova maneira de pensar,
que para ele e Engels haviam ficado claros ao longo desses anos.
Dificuldades surgidas na publicação desse trabalho fizeram com que
ele fosse deixado de lado e nem sequer recebesse uma forma final
apropriada. Como Marx conta no “Prefácio” da Contribuição à crítica
da Economia Política, em 1859, eles abandonaram o manuscrito à
“crítica roedora dos ratos”, já que haviam atingido o seu objetivo que
era o de ver com clareza esses novos fundamentos.
Felizmente, os ratos foram “camaradas” e não se interessaram
por esse texto, o que nos permite, hoje, ter acesso a essa precio-
sidade que são os fundamentos dessa nova forma de entender a
realidade social.
Contudo, é preciso ter sempre em mente que este texto é um
manuscrito, que não recebeu uma forma final para publicação.
n
A IDEOLOGIA ALEMÃ
Trata-se, portanto, de um esboço. Suas idéias centrais permane-
cerão inteiramente válidas, mas algumas delas sofrerão correções
e aprofundamentos em obras posteriores. Além disso, o escrito
de 1845-1846 permaneceu durante muitos anos desconhecido,
somente sendo redescoberto e publicado em 1932, pelo Instituto
de Marxismo-Leninismo de Moscou. Ao longo desse tempo,
páginas foram perdidas e outras se deterioraram, dificultando
enormemente a sua ordenação e compreensão. Além do mais,
tratava-se — especialmente na primeira parte, referente a Feuerbach,
em que aparecem mais claramente os fundamentos da concepção
materialista da história - de um trabalho inacabado, cheio de
interrupções, lacunas, correções e rasuras.
Vale lembrar que toda obra, de qualquer autor, deve ser lida,
sempre, com espírito crítico. Mais ainda quando se trata de uma obra
como esta, que não recebeu de seus autores uma forma definitiva.
Idéias fundamentais
Nada disso diminui a importância desta obra. Não obstante
as ponderações feitas acima, os elementos fundamentais dessa
concepção de mundo radicalmente nova estão claramente visíveis.
Poder-se-ia dizer que essa concepção está resumida na frase, pre-
sente nesta obra, em que eles afirmam que “Não é a consciência
que determina a vida, é a vida que determina a consciência”. Vale
dizer, não são as idéias, os produtos da consciência que constituem
o fundamento, a matriz da realidade social. São as relações mate-
riais, concretas, que os homens estabelecem entre si que explicam
as idéias e as instituições que eles criam. Por isso mesmo, para se
ter uma compreensão adequada da realidade, não se pode nem
partir nem permanecerno mundo das idéias. É preciso buscar a
conexão do que elas têm com a realidade objetiva. Só essa conexão
permitirá entender o que os homens pensam, por que pensam desse
modo e também as idéias errôneas que eles criam a seu respeito.
Criticando os pensadores alemães, Marx e Engels afirmam:
12
Kar l M a r x
A nenhum desses filósofos ocorreu perguntar qual era a conexão entre a
filosofia alemã e a realidade alemã, a conexão entre a sua crítica e o seu
próprio meio material.
Por isso mesmo, enfatizam eles, o ponto de partida para compreen-
der a história deve ser concreto, real, objetivo:
Os pressupostos de que partimos não são arbitrários, nem dogmas. São
pressupostos reais de que não se pode fazer abstração a não ser na ima-
ginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de
vida, tanto aquelas por eles já encontradas, quanto as produzidas por sua
própria ação. Esses pressupostos são, pois, verificáveis por via puramente
empírica.
Deve-se, pois, partir daquelas atividades básicas, sem as quais
é impossível a continuidade da existência humana. Esse ponto de
partida não é uma escolha arbitrária. E uma exigência do processo
real. Os autores enfatizam:
... somos forçados a começar constatando que o primeiro pressuposto de
toda a existência humana, e, portanto, de toda a história, é que os homens
devem estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para
viver, é preciso, antes de tudo, comer, beber, ter habitação, vestir-se e
algumas coisas mais.
Vale dizer, para viver é preciso produzir os bens necessários à
existência. Isso é trabalho, ou seja, uma transformação intencional
da natureza. Essa transformação intencional, por sua vez, implica
a fabricação de instrumentos necessários a essa tarefa, mas é im-
portante observar que, ao transformar a natureza, os homens não
produzem apenas os bens materiais necessários à sua existência,
mas também a si mesmos e as suas relações sociais. Por isso os
homens são radicalmente históricos e radicalmente sociais, isto é,
são eles que se criam inteiramente a si mesmos e a toda a realidade
social, através da atividade coletiva.
O trabalho, portanto, e não as idéias, aparece aqui como o
fundamento da vida social. E ele a única categoria que faz a me-
diação entre os homens e a natureza. Todo o processo histórico
13
A IDEOLOGIA ALEMÃ
se desenvolve a partir desse fundamento. É a partir das relações
que os homens estabelecem entre si na transformação da natureza
que surgirão determinadas idéias, valores e instituições políticas
e jurídicas.
Compreender a história é, pois, apreender, em cada momento,
a articulação que existe entre essas relações materiais de produção
e as variadas formas de idéias, valores, normas, relações e insti-
tuições que os homens criam no decorrer do processo. Segundo
os autores:
Essa concepção de história consiste, pois, em expor o processo real de
produção, partindo da produção material da vida imediata; e em conceber
a forma de intercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele en-
gendrada (...) como o fundamento de toda a história, apresentando-a em
sua ação como Estado e explicando a partir dela o conjunto dos diversos
produtos teóricos e formas da consciência...
Entender a história é também apreender as relações contraditó-
rias que vão se configurando entre os homens a partir das formas
concretas da produção; como essas contradições vão dar origem
à divisão do trabalho, ao surgimento da propriedade privada,
à exploração do homem pelo homem, às classes sociais e à luta
entre elas, ao problema da alienação, bem como a determinadas
instituições jurídicas e políticas necessárias à reprodução de cada
forma de sociabilidade.
Essa concepção de história permite compreender que tudo é
radicalmente histórico e social, isto é, que nenhuma forma de so-
ciabilidade é imutável, o que significa que a divisão da sociedade
em classes sociais não é, de modo algum, a forma definitiva da so-
ciedade. Permite, também, entender que a superação da exploração
do homem pelo homem, da propriedade privada, das classes sociais,
do Estado, da alienação e a instauração de uma sociedade igualitária
e comunista é uma possibilidade real e não apenas uma aspiração
subjetiva. Além disso, também deixa inteiramente claro que um
alto grau de desenvolvimento das forças produtivas, capaz de gerar
14
K A II L M A II X
riqueza em abundância para todos é uma condição absolutamente
indispensável para a construção de uma sociedade comunista.
Percebe-se, imediatamente, que essa concepção de história,
além de ser materialista e não idealista, também tem na categoria
da totalidade a sua categoria fundamental. Pois a realidade social
não é feita de partes autônomas, que possam ser compreendidas
isoladamente. A realidade social é uma totalidade, ou seja, um
conjunto de partes que, tendo o trabalho como sua matriz, vai
se configurando ao longo do processo histórico-social. O que
significa que nenhuma dessas partes pode ser compreendida sem
que seja apreendida a sua relação com os outros momentos da
realidade social.
Como dissemos acima, nesta obra estão lançados os fundamen-
tos de uma concepção radicalmente nova de mundo. Radicalmente
nova porque põe a descoberto a raiz mais profunda da realidade
social e com isso instaura uma compreensão inteiramente diferente
das anteriores. Uma concepção que responde aos interesses da classe
proletária porque, ao permitir a compreensão do processo histórico-
social como totalidade, também fundamenta uma transformação
revolucionária da sociedade. Uma compreensão que não precisa
falsear a realidade, porque o conhecimento de como as coisas
realmente são interessa à classe que tem por objetivo fundamental
transformar radicalmente a sociedade.
E essa concepção de história que orientará todo o trabalho
teórico e prático de Marx e Engels até o fim de suas vidas e que
estabelecerá um patamar radicalmente novo de produção do co-
nhecimento científico e filosófico.
Maceió, janeiro de 2009
Ivo Tonet
15
FEUERBACH. OPOSIÇÃO
ENTRE A CONCEPÇÃO (ANSCHAUUNG)
MATERIALISTA E IDEALISTA
(INTRODUÇÃO)
[I]
[El] Segundo anunciam ideólogos alemães, a Alemanha passou
nos últimos anos por uma revolução sem paralelo. O processo de de-
composição do sistema de Hegel, iniciado com Strauss, 1 transformou-
se numa fermentação universal para a qual são arrastados todos os
“poderes do passado”. No caos geral, poderosos impérios se formaram
para logo de novo ruírem, emergiram momentaneamente heróis para
serem de novo remetidos para a obscuridade por rivais ousados e mais
poderosos. Foi uma revolução ao pé da qual a Revolução Francesa 2 é
uma brincadeira de crianças; uma luta universal face à qual as lutas dos
Diádocos 3 parecem mesquinhas. Os princípios expulsaram-se uns aos
outros, os heróis do pensamento derrubaram-se uns aos outros com
uma pressa inaudita, e nos três anos entre 1842 e 1845 varreu-se mais
do passado na Alemanha do que anteriormente em três séculos.
Tudo isso teria ocorrido no pensamento puro. Trata-se, por certo,
de um acontecimento interessante: do processo de putrefação do es-
pírito absoluto. Depois de extinta a última centelha de vida, as várias
1 Trata-se da obra fundamental de D. F. Strauss A vida de Jesus (D. F. Strauss, Das Leben
Jesus, Bd. 1-2, Tübingen, 1835-1836), que marcou o início da crítica filosófica da religião
e da divisão da escola hegeliana em velhos hegelianos e jovens hegelianos. (N.E.)
2 Trata-se da revolução burguesa francesa de fins do século 18. (N.E.)
3 Diádocos-. generais de Alexandre Magno que, após a sua morte, iniciaram uma aguda luta
entre si pela conquista do poder. No decurso dessa luta (fim do século 4 e início do século
3 antes da nossa era) a monarquia de Alexandre, que constituía em si mesma uma união
militar-administrativa sem solidez, dividiu-se numa série de Estados separados. (N.E.)
A IDEOLOGIA ALEMÃ
partes constitutivas deste caputmortuuvrí' entraram em decomposição,
estabeleceram novas combinações e formaram novas substâncias. Os
industriaisda filosofia, que até aí haviam vivido da exploração do espí-
rito absoluto, lançaram-se agora sobre as novas combinações. Cada um
procedeu, com o maior zelo possível, à venda e ao desbarato do quinhão
que lhe coubera. Isso não podia se dar bem sem concorrência. Essa foi
inicialmente conduzida de um modo bastante burguês e respeitável.
Mais tarde, quando o mercado alemão estava saturado e a mercado-
ria, a despeito de todos os esforços, não encontrava acolhimento no
mercado mundial, o negócio se deteriorou à maneira habitual na Ale-
manha - pela produção em grande escala e fictícia, pela deterioração
da qualidade, pela adulteração da matéria-prima, pela falsificação dos
rótulos, por compras fictícias, por especulações fraudulentas no saque
de letras e por um sistema de crédito destituído de qualquer base real.
A concorrência acabou numa luta encarniçada que agora nos é exaltada
e apresentada como uma mudança de importância histórica, como
geradora dos resultados e conquistas mais prodigiosos.
Para apreciar corretamente essa charlatanice filosófica, que até
no peito do cidadão alemão honesto desperta um grato sentimento
nacional, para dar bem a ideia da mesquinhez, da tacanhez provin-
ciana de todo esse movimento jovem-hegeliano, nomeadamente do
contraste tragicômico entre os verdadeiros feitos desses heróis e as
ilusões sobre esses feitos, é necessário observar todo o espetáculo
de um ponto de vista exterior à Alemanha. 5
Literalmente: cabeça morta; termo usado na química para o resíduo que fica da destilação;
aqui: restos, resíduos.
[No manuscrito foi riscado a passagem seguinte:] [p. 2] Por isso fazemos preceder a crítica
específica de cada um dos representantes desse movimento de algumas observações gerais.
(Essas observações bastarão para indicar o ponto de vista da nossa crítica tanto quanto é
necessário para a compreensão e a fundamentação das críticas individuais subsequentes.
Contrapomos essas observações [p. 3] precisamente a Feuerbach por ser ele o único que
pelo menos fez algum progresso, e em cujas obras se pode entrar de bonne foi [de boa
fé — francês] (O texto traduzido entre parênteses encontra-se riscado horizontalmente
no manuscrito), as quais iluminarão mais de perto os pressupostos ideológicos comuns
a todos eles. 1. A ideologia em geral, e a filosofia alemã em especial.
20
K A R L M A R X
[1.] A ideologia em geral e a alemã em particular
[f.2] A crítica alemã não abandonou, até os seus esforços mais
recentes, o terreno da filosofia. Longe de examinar as suas premissas
filosóficas gerais, as suas questões saíram todas do terreno de um
sistema filosófico determinado, o de Hegel. Não apenas nas suas
respostas, mas já nas próprias questões estava uma mistificação. Essa
dependência de Hegel é a razão pela qual nenhum desses críticos
mais recentes tentou sequer uma crítica ampla do sistema de Hegel,
por mais que cada um deles afirme estar para além de Hegel. A sua
polêmica contra Hegel, e entre si, reduz-se ao fato de cada um deles
ter chamado a si uma faceta do sistema de Hegel e tê-la virado tanto
contra todo o sistema quanto contra as facetas reclamadas pelos
outros. Em princípio chamavam a si categorias puras de Hegel, não
falsificadas, como substância e consciência de si,* **** 6 mas posteriormente
profanaram essas categorias com nomes mais mundanos, como
espécie [Gattung\, o Único, o Homem 78 etc.
Toda a crítica filosófica alemã de Strauss a Stirner se reduz à
crítica de representações religiosas. 3 Partiu-se da religião real e da
autêntica teologia. O que são consciência religiosa e representa-
ção religiosa foi posteriormente definido de maneiras diversas. O
progresso consistiu em subsumir [subsumiereri\ as representações
metafísicas, políticas, jurídicas, morais e outras, pretensamente
Conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser conside-
rada de dois lados, dividida em história da natureza e história dos homens. No entanto,
esses dois aspectos não podem se separar; enquanto existirem homens, a história da
natureza e a história dos homens condicionam-se mutuamente. A história da natureza,
a chamada ciência da natureza, não é a que aqui nos interessa; na história dos homens,
porém, teremos de entrar, visto que quase toda a ideologia se reduz ou a uma concepção
deturpada dessa história ou a uma completa abstração dela. A ideologia é, ela mesma,
apenas um dos aspectos dessa história.
6 As categorias básicas de David Strauss e Bruno Bauer.
7 As categorias básicas de Ludwig Feuerbach e Max Stirner.
8 [No manuscrito encontra-se riscada a passagem seguinte:] (...) que surgiu reclamando
para si a qualidade de redentora absoluta do mundo de todo o mal. A religião foi conti-
nuamente considerada e tratada como a causa última de todas as relações repugnantes
a estes filósofos, como o arqui-inimigo.
21
A IDEOLOGIA ALEMÃ
dominantes, também na esfera das representações religiosas ou
teológicas; e, do mesmo modo, em explicar a consciência política,
jurídica e moral como consciência religiosa ou teológica, e o ho-
mem político, jurídico e moral em última instância, “o Homem”
- como religioso. Pressupunha-se o domínio da religião. Gradual-
mente, cada relação dominante foi explicada como uma relação
da religião e transformada em culto: culto do direito, culto do
Estado etc. Por toda a parte se lidava apenas com dogmas e com
a fé em dogmas. O mundo foi canonizado numa medida sempre
crescente, até que por fim o venerável São Max 9 o pôde declarar
santificado en bloc [em bloco — francês], e desse modo despachá-lo
de uma vez por todas.
Os velhos-hegelianos tinham a tudo compreendido, com a con-
dição de tudo ser reduzido a uma categoria lógica de Hegel. Os
jovens-hegelianos a tudo criticaram, porém subscrevendo (unters-
choberi) tudo como representações religiosas ou declarando-o teo-
lógico. Os jovens-hegelianos concordam com os velhos-hegelianos
na crença no domínio da religião, dos conceitos, do universal no
mundo existente. Só que uns combatem o domínio como usur-
pação, e outros o celebram como legítimo.
Como para os jovens-hegelianos as representações, idéias, con-
ceitos, em geral os produtos da consciência (por eles autonomizada)
têm o valor de autênticos grilhões dos homens; como, do mesmo
modo, para os velhos-hegelianos significam os verdadeiros elos da
sociedade humana, percebe-se que os jovens-hegelianos também
só tenham de lutar contra essas ilusões da consciência. Segundo a
sua fantasia, as relações dos homens, tudo o que os homens fazem,
os seus grilhões e barreiras, são produtos da sua consciência, assim
os jovens-hegelianos, de modo consequente, colocam aos homens
o postulado moral de trocarem a sua consciência presente pela
Max Stirner.
22
K A R L M A R X
consciência humana, crítica ou egoísta, 10 e, desse modo, de elimi-
narem as suas barreiras. Essa exigência de mudar a consciência
conduz à exigência de interpretar de outro modo o que existe, ou
seja, de o reconhecer por meio de outra interpretação. Os ideólogos
jovens-hegelianos são, apesar das frases com que pretendem “aba-
lar o mundo”, 11 os maiores conservadores. Os mais novos dentre
eles encontraram a expressão correta para a sua atividade quando
afirmam que lutam apenas contra “frases”. Esquecem, apenas, que
a essas mesmas frases nada opõem senão frases, e que de modo
algum combatem o mundo real existente se combaterem apenas as
frases deste mundo. Os únicos resultados a que essa crítica filosófica
pôde conduzir foram alguns esclarecimentos, e ainda por cima
unilaterais, de história da religião, sobre o cristianismo; todas as
suas demais afirmações são apenas outros tantos adornos para a sua
pretensão de haverem proporcionado, com esses esclarecimentos
insignificantes, descobertas de importância histórica e universal.
Não ocorreu a nenhum desses filósofos procurar a conexão
da filosofia alemã com a realidade alemã, a conexão da sua crítica
com o seu próprio ambiente material. 12
[2. Premissas da concepção materialista da história] 13
[p. 3] As premissascom que começamos não são arbitrárias,
não são dogmas, são premissas reais, e delas só na imaginação se
pode abstrair. São os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições
materiais de vida, tanto as que encontraram quanto as que produ-
10 Referência respectivamente a Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner.
11 Pensamentos que fazem abalar o mundo-, expressão de um artigo anônimo da revista
Wigand’s Vierteljahrsschrift de 1845, t. IV, p. 327. Wigand‘s Vierteljahrsschrift {Revista
Trimestral de Wigandf. revista filosófica dos jovens hegelianos; foi editada por O. Wigand
em Leipzig em 1844 e 1845. Colaboravam na revista B. Bauer, M. Stirner, L. Feuerbach
e outros. (N.E.)
12 A seguir, no manuscrito da versão principal do texto passado a limpo, o resto da página
está em branco. O texto da página seguinte vem reproduzido neste volume como 1,3.
13 O texto desta seção é extraído da primeira versão da cópia passada a limpo.
23
A IDEOLOGIA ALEMÃ
ziram pela sua própria ação. Essas premissas são [p. 4], portanto,
constatáveis de um modo puramente empírico.
A primeira premissa de toda a história humana é, natural-
mente, a existência de indivíduos humanos vivos.* * 14 O primeiro
fato a constatar é, portanto, a organização corpórea (kõperliche)
desses indivíduos e a relação por isso existente (gegebenes) com o
resto da natureza. Não podemos entrar aqui, naturalmente, nem
na constituição física dos próprios homens, nem nas condições
naturais que os homens encontraram - as condições geológicas,
oro-hidrográficas, climáticas e outras. 15 Toda a historiografia tem
de partir dessas bases naturais e da sua modificação ao longo da
história pela ação dos homens.
Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela
religião - por tudo o que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se
dos animais assim que começam a produzir os seus meios de subsis-
tência (Lebensmittel), passo esse que é requerido pela sua organização
corpórea. Ao produzirem os seus meios de subsistência, os homens
produzem indiretamente a sua própria vida material.
O modo como os homens produzem os seus meios de sub-
sistência depende, em primeiro lugar, da natureza dos próprios
meios de subsistência encontrados e a reproduzir, [p. 5] Esse modo
da produção não deve ser considerado no seu mero aspecto de
reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se já, isto
sim, de uma forma determinada da atividade desses indivíduos,
de uma forma determinada de exteriorizarem \zu àufíern] a sua
vida, de um determinado modo de vida dos mesmos. Como ex-
teriorizam [ãufíern] a sua vida, assim os indivíduos o são. Aquilo
1,1 [No manuscrito encontra-se riscado o trecho seguinte:] O primeiro ato histórico desses
indivíduos pelo qual se distinguem dos animais não é o de pensarem, mas o de come-
çarem a produzir os seus meios de subsistência.
15 [No manuscrito encontra-se riscada a seguinte passagem:] Mas essas condições reque-
rem (bedingen) nâo apenas a organização original, natural (naturwüchsige) dos homens,
especialmente as diferenças raciais, mas também todo o seu desenvolvimento ou não
desenvolvimento posteriores até os nossos dias.
24
Kar l Marx
que eles sâo coincide, portanto, com a sua produção, com o que
produzem e também com o como produzem. Aquilo que os in-
divíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua
produção.
Essa produção surge primeiramente com o aumento da popula-
ção. Ela própria pressupõe, por sua vez, um intercâmbio [Verkehr\
dos indivíduos entre si. 16 A forma desse intercâmbio é, por sua vez,
requerida (bedingt) pela produção. 17
[3. Produção e intercâmbio. Divisão do trabalho e formas
de propriedade: tribal, antiga e feudal]
[f. 3] As relações de diferentes nações entre si dependem do
grau em que cada uma delas desenvolveu as suas forças produtivas,
a divisão do trabalho e o intercâmbio interno. Essa proposição é
universalmente aceita. Mas não só a relação de uma nação com ou-
tras, mas também a própria estrutura interna dessa nação depende
da fase de desenvolvimento da sua produção e do seu intercâmbio
interno e externo. Até onde chega o desenvolvimento das forças
de produção [Produktionskrafte] de uma nação é indicado, com a
maior clareza, pelo grau atingido pelo desenvolvimento da divisão
do trabalho. Cada nova força produtiva, na medida em que não é
uma simples extensão quantitativa das forças produtivas até aí já
conhecidas (p. ex., o arroteamento de terrenos), tem como conse-
quência uma nova constituição da divisão do trabalho.
16 O termo Verkehr em A ideologia alemã tem um conteúdo muito amplo. Inclui o intercâm-
bio material e espiritual de indivíduos, grupos sociais e países inteiros. Na sua obra Marx
e Engels mostram que o intercâmbio material, e sobretudo o intercâmbio entre as pessoas
no processo de produção, constitui a base de qualquer outro intercâmbio. Nos termos
Verkehrsform, Verkehrsweise, Verkehrsverhaltnisse, Produktions-und Verkehrsverhaltnisse
(‘‘forma de intercâmbio”, “modo de intercâmbio”, “relações de intercâmbio”, “relações
de produção e de intercâmbio”), que são utilizados em A ideologia alemã, encontrou
expressão o conceito de relações de produção, que nesta altura estava sendo elaborado
por Marx e Engels. (N.E.)
17 Termina aqui a primeira versão da cópia passada a limpo. A seguir, este volume reproduz
o texto da versão principal dessa cópia.
25
A IDEOLOGIA ALEMÃ
A divisão do trabalho no interior de uma nação começa por
provocar a separação do trabalho industrial e comercial do trabalho
agrícola, e, com ela, a separação de cidade e campo e a oposição
dos interesses de ambos. O seu desenvolvimento posterior leva à
separação do trabalho comercial do industrial. Ao mesmo tempo,
com a divisão do trabalho, desenvolvem-se por sua vez, no seio
desses diferentes ramos, diferentes grupos entre os indivíduos que
cooperam em determinados trabalhos. A posição de cada um
desses grupos face aos outros é condicionada (bedingt} pelo modo
como é realizado o trabalho agrícola, industrial e comercial (pa-
triarcaüsmo, escravatura, estados, 18 classes). As mesmas relações se
verificam, com um intercâmbio mais desenvolvido, nas relações
de diferentes nações entre si.
As diferentes fases de desenvolvimento da divisão do trabalho
são outras tantas formas diferentes de propriedade; ou seja, cada
uma das fases da divisão do trabalho determina também as re-
lações dos indivíduos entre si no que diz respeito ao material, ao
instrumento e ao produto do trabalho.
A pr imeira forma de propriedade é a propriedade t r ibal
[Stammeigentumt Esta corresponde à fase não desenvolvida
da produção em que um povo se alimenta da caça e da pesca, da
criação de gado ou, quando muito, da agricultura. Pressupõe,
nesse último caso, uma grande massa de terrenos não cultiva-
18 No original — Stãnde-, Estados, ou ordens sociais, característicos do feudalismo.
''J O termo Stamm, que em A ideologia alemã é traduzido por “tribo”, tinha na historio-
grafia dos anos de 1840 um significado mais amplo do que atualmente. Significava
um conjunto de pessoas descendentes de um único antecessor, e abarcava os conceitos
atuais de “gens” e “tribo”. A definição precisa e as diferenças entre esses conceitos foram
dadas pela primeira vez no livro de L. Morgan A sociedade antiga (1877). Nessa obra
fundamental do ilustre etnógrafo e historiador estadunidense era esclarecida pela pri-
meira vez a importância da gens como célula fundamental do regime da comunidade
primitiva, tendo sido desse modo criada a base científica de toda a história da sociedade
primitiva. Ao sintetizar os resultados das investigações de Morgan, Engels desenvolveu
em todos os aspectos o conteúdo dos conceitos de “gens” e “tribo” na sua obra A origem
da família, da propriedade privada e do Estado (1884). (N.E.)
26
Karl Marx
dos. A divisão do trabalho está nessa fase a inda muito pouco
desenvolvida e limita-se a um prolongamento da divisão natural
do trabalho existente na família. A estrutura social limita-se,
por isso, auma extensão da família: os chefes patriarcais da
tribo, abaixo deles os membros da tr ibo e, por fim, os escravos.
A escravatura latente na família só se desenvolve gradualmente
com o aumento da população e das necessidades e com o alar-
gamento do intercâmbio externo, tanto de guerra quanto de
comércio de troca.
A segunda forma é a propriedade comunal e estatal antiga, a
qual resulta nomeadamente da união de várias tribos que formam
uma cidade por meio de acordo ou conquista: nela continua a
existir a escravatura. A par da propriedade comunal, desenvolve-
se a propriedade privada móvel e, mais tarde, também a imóvel,
mas como uma forma anormal e subordinada à propriedade co-
munal. Os cidadãos só em comum possuem o poder sobre os seus
escravos trabalhadores, estando logo, por esse motivo, ligados à
forma da propriedade comunal. E a propriedade privada comum
dos cidadãos ativos, os quais são obrigados, face aos escravos, a
permanecer nesse modo natural de associação. Por isso decai toda
a estrutura da sociedade baseada nessa forma de propriedade, e
com ela o poder do povo, à medida que se desenvolve, nomeada-
mente, a propriedade privada imóvel. A divisão do trabalho está
mais desenvolvida. Encontramos a oposição [Gegensatz\ de cidade
e campo, e mais tarde a oposição entre Estados que representam,
uns, o interesse urbano, e outros, o interesse do campo, e mesmo
no interior das cidades encontramos a oposição entre a indústria e
o comércio marítimo. A relação de classes entre cidadãos e escravos
está completamente formada.
Com o desenvolvimento da propriedade privada surgem aqui,
pela primeira vez, as mesmas relações que voltamos a encontrar na
propriedade privada moderna, só que nesta em maior escala. Por
um lado, a concentração da propriedade privada, que em Roma
27
A I D E O L O c; 1 A ALEMÃ
começou muito cedo (prova: a lei agrária liciniana) 20 e se processou
muito rapidamente desde as guerras civis e sob os imperadores; por
outro lado, e em conexão com isso, a transformação dos pequenos
camponeses plebeus num proletariado, o qual, porém, dada a sua
posição média entre os cidadãos possuidores e os escravos, não
conseguiu um desenvolvimento autônomo.
A terceira forma é a propriedade feudal, ou de Estados [ou
ordens sociais - stãndische\. Se a Antiguidade partiu da cidade e da
sua pequena área, a Idade Média partiu do campo. A população ao
tempo existente, pouco densa e dispersa por uma grande área, e
que não cresceu grandemente com os conquistadores, condicionou
esse ponto de partida diferente. Em contraste com Grécia e Roma,
o desenvolvimento feudal começa, por isso, num território muito
mais extenso, preparado pelas conquistas romanas e pela expansão
da agricultura a elas inicialmente ligada. Os últimos séculos do
império romano em declínio e a conquista pelos próprios bárbaros
destruíram grande quantidade de forças produtivas; a agricultura
afundara-se, a indústria declinara por falta de mercado, o comércio
adormecera ou fora violentamente interrompido, a população rural e
urbana decrescera. Essas condições ao tempo existentes e o modo de
organização da conquista por elas condicionado desenvolveram, sob
a influência da organização militar germânica, a propriedade feudal.
Esta se baseia, tal como a propriedade tribal e comunal, novamente
sobre uma comunidade \Gemeinweseri\ face à qual se encontram, não
como face à antiga os escravos, mas os pequenos camponeses servos
como classe produtora direta (unmittelbar produzierende Klassè).
Ao mesmo tempo, com a completa formação do feudalismo, surge
também a oposição às cidades. A estrutura hierárquica da proprie-
dade fundiária e os vassalos armados (Jbewaffneten Gefolgschafteri) a
ela ligados deram à nobreza o poder sobre os servos. Essa estrutura
20 A lei agrária dos tribunos populares romanos Licinius e Sextius, adotada no ano de 367
antes da nossa era, proibia os cidadãos romanos de possuírem mais de 500 jeiras (cerca
de 125 hectares) de terra do fundo público de terras {ager publicus). (N.E.)
28
Kar l Marx
feudal era, do mesmo modo que a antiga propriedade comunal,
uma associação face à classe produtora dominada; só que a forma
de associação e a relação com os produtores diretos era diferente,
porque existiam diferentes condições de produção.
A essa estrutura feudal da propriedade fundiária correspondia,
nas cidades, a propriedade corporativa, a organização feudal dos ofí-
cios. A propriedade consistia [f. 4] aqui principalmente no trabalho
de cada indivíduo. A necessidade da associação contra a rapina da
nobreza associada, a carência de mercados cobertos comuns num
tempo em que o industrial era simultaneamente comerciante, a
concorrência crescente dos servos fugitivos que confluíam para as
cidades florescentes e a estrutura feudal de todo o país deram origem
às corporações-, os pequenos capitais gradualmente economizados de
artesãos individuais e o número estável destes na população cres-
cente desenvolveram a relação de oficial e aprendiz, que originou
nas cidades uma hierarquia semelhante à do campo.
A propriedade principal consistiu assim, durante a época feudal,
por um lado, na propriedade fundiária e no trabalho do servo a ela
preso, e, por outro, no trabalho próprio com um pequeno capital a
dominar o trabalho dos oficiais. A estrutura de um e outro estava
condicionada pelas relações de produção \Produktionsverhãltnissê\
limitadas — a pequena cultura agrícola rudimentar e a indústria
artesanal. Pouca foi a divisão do trabalho que teve lugar no apogeu
do feudalismo. Cada país tinha em si a oposição de cidade e cam-
po; a estrutura de Estados [ou ordens sociais] era certamente muito
marcada, mas além da diferenciação de príncipes, nobreza, clero
e camponeses, no campo, e de mestres, oficiais e aprendizes, e em
breve também a plebe de jornaleiros, nas cidades, não teve lugar
nenhuma divisão importante. Na agricultura, era dificultada pela
cultura parcelada, a par da qual surgia a indústria caseira dos próprios
camponeses; na indústria, o trabalho não era dividido sequer no
interior de cada um dos ofícios, e muito pouco entre eles. A divisão
de indústria e comércio encontrava-se já em cidades mais antigas,
29
A IDEOLOGIA ALEMÃ
mas só mais tarde se desenvolveu nas mais novas, na medida em que
as cidades entraram em relação umas com as outras.
A reunião de territórios maiores em reinos feudais era uma
necessidade tanto para a nobreza latifundiária quanto para as
cidades. A organização da classe dominante, a nobreza, tinha por
isso, em toda a parte, um monarca à frente. 21
[4. A essência da concepção materialista da história.
Ser social e consciência social]
[f. 5] O fato é, portanto, este: o de determinados indivíduos, que
são produtivamente ativos de determinado modo 22 [auf bestimmte
Weise produktiv tãtig sind\ , entrarem em determinadas relações
sociais e políticas. A observação empírica tem de mostrar, em cada
um dos casos, empiricamente e sem qualquer mistificação e espe-
culação, a conexão da estrutura social e política com a produção. A
estrutura social e o Estado decorrem constantemente do processo
de vida de determinados indivíduos; mas desses indivíduos, não
como eles poderão parecer na sua própria representação ou na de
outros, mas como eles são realmente, ou seja, como agem, como
produzem material, realmente, como atuam \tãtig , portanto, em
determinados limites, premissas e condições materiais que não
dependem da sua vontade. 23
21 A seguir, no manuscrito, o resto da página ficou em branco. Na página seguinte começa
o sumário da concepção materialista da história. A quarta forma de propriedade, a
burguesa, é tratada na Parte IV do capítulo, Seções 2-4.
22 [Versão original:] determinados indivíduos em determinadas relações de produção.
23 [No manuscrito encontra-se riscada a passagem seguinte:] As representações \Vorstellungen]
que esses indivíduos formam são representações ou da sua relação com a natureza ou da sua
relação uns com os outros, ou sobre a sua própria natureza. É evidente que em todosesses
casos essas representações são a expressão consciente - real ou ilusória - das suas relações e
atividades reais, da sua produção, do seu intercâmbio, da sua organização social e política.
A suposição oposta só é possível quando se pressupõe, além do espírito dos indivíduos reais
e materialmente condicionados, ainda um espírito à parte. Se a expressão consciente das
relações reais desses indivíduos é ilusória, eles nas suas representações colocam a realidade
de cabeça para baixo, e isso por sua vez é uma consequência do seu modo de trabalho
material limitado e das relações sociais limitadas que dele resultam.
30
Kar l M a r x
A produção das idéias, das representações, da consciência está
em princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e
o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O
representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens apa-
rece aqui ainda como direta exsudaçâo [direkter Ausflufí] do seu
comportamento material. O mesmo se aplica à produção espiritual
como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral,
da religião, da metafísica etc., de um povo. Os homens são os pro-
dutores das suas representações, idéias etc., mas os homens reais,
os homens que realizam [die wirklichen, wirkenden Menscheri\, tal
como se encontram condicionados por um determinado desen-
volvimento das suas forças produtivas e pelas relações [Verkehrs]
que a estas corresponde até as suas formações mais avançadas. 24
A consciência [das Bewusstsein], nunca pode ser outra coisa senão
o ser consciente [das bewusste Sein\, e o ser dos homens é o seu
processo real de vida. Se em toda a ideologia os homens e as suas
relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmera escura,
é porque esse fenômeno deriva do seu processo histórico de vida
da mesma maneira que a inversão dos objetos na retina deriva do
seu processo diretamente físico de vida.
Em completa oposição à filosofia alemã, a qual desce do céu à
terra, aqui sobe-se da terra ao céu. Isto é, não se parte daquilo que
os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não dos
homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se
chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente
ativos, e com base no seu processo real de vida apresenta-se também
o desenvolvimento dos reflexos [Reflexe\ e ecos ideológicos desse
processo de vida. Também as fantasmagorias [Nebelbildungen\ no
cérebro dos homens são sublimações necessárias do seu processo
24 [Versão original:] Os homens são os produtores das suas representações, idéias etc., e
precisamente os homens condicionados pelo modo de produção da sua vida material,
pelo seu intercâmbio material e o seu desenvolvimento posterior na estrutura social e
política.
31
A IDEOLOGIA ALEMÃ
de vida material empiricamente constatável e ligado a premissas
materiais. A moral, a religião, a metafísica, e toda outra [sonstige\
ideologia, e as formas da consciência que lhes correspondem,
não conservam assim por mais tempo a aparência de autonomia
[Selbstãndigkeit\. Não têm história, não têm desenvolvimento,
são os homens que desenvolvem a sua produção material e o seu
intercâmbio material que, ao mudarem essa sua realidade, mudam
também o seu pensamento e os produtos do seu pensamento.
Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina
a consciência. No primeiro modo de consideração, parte-se da
consciência como indivíduo vivo. No segundo, que corresponde à
vida real, parte-se dos próprios indivíduos vivos reais e considera-se
a consciência apenas como a sua consciência.
Esse modo de consideração não é destituído de pressupostos.
Parte dos pressupostos reais e nem por um momento os abandona.
Os seus pressupostos são os homens, não num qualquer isolamento
e fixidez fantásticos, mas no seu processo, perceptível empiricamen-
te, de desenvolvimento real e sob determinadas condições. Assim
que esse processo de vida ativo é apresentado, a história deixa de
ser uma coleção de fatos mortos — como é para os empiristas, eles
próprios ainda abstratos — , ou uma ação imaginada de sujeitos
imaginados, como para os idealistas.
Lá onde a especulação cessa, na vida real, começa, portanto, a
ciência real, positiva, a descrição [Darstellung] da atividade prática,
do processo de desenvolvimento prático dos homens. Terminam as
frases sobre a consciência, o saber real tem de as substituir. Com a
descrição [Darstellung da realidade, a filosofia autônoma perde o
seu meio de existência. Em seu lugar pode, quando muito, surgir
uma súmula [Zusammenfassung] dos resultados mais gerais que é
possível abstrair da observação do desenvolvimento histórico. Essas
abstrações por si não têm, separadas da história real, o menor valor.
Só podem servir para facilitar a ordenação do material histórico,
para indicar a sequência de cada um dos seus estratos. Mas não
32
Kar l Ma rx
dão, de modo algum, como a filosofia, uma receita ou um esque-
ma segundo o qual as épocas históricas possam ser classificadas
[zurechtgestutzt]. A dificuldade começa ao contrário, precisamente
quando nos damos à observação e ordenação do material, seja de
uma época passada, seja do presente, quando passamos à descrição
[Darstellung\ real. A eliminação dessas dificuldades está condicio-
nada por premissas que de modo algum podem ser aqui dadas,
e que só resultarão [claras] no estudo do processo real da vida e
da ação dos indivíduos de cada época. Tomaremos aqui algumas
dessas abstrações, as quais contraporemos à ideologia, e vamos
explicá-las com exemplos históricos. 25
25 A versão principal (a segunda) da cópia passada a limpo termina aqui. Este volume vai
continuar com três partes do manuscrito original.
33
[II]
[1. Condições da libertação real do homem] 26
[1] Não nos vamos, naturalmente, dar ao trabalho27 de escla-
recer os nossos sábios filósofos sobre o fato de que a “libertação”
do “Homem” não avançou um único passo por terem resolvido
a filosofia, a teologia, a substância e todo o lixo na “Consciên-
cia de Si”, por terem libertado o “Homem” do domínio dessas
frases sob as quais ele nunca foi escravo; de que não é possível
conseguir uma libertação real a não ser no mundo real e com
meios reais, 28 de que não se pode abolir [aufheben} a escravatura
sem a máquina a vapor e a “mule-jenny”, nem a servidão sem
uma agricultura aperfeiçoada, de que de modo algum se pode
libertar os homens enquanto estes não estiverem em condições
de adquirir comida e bebida, habitação e vestuário na qualidade
e na quantidade perfeitas. A “libertação” é um ato histórico,
não um ato de pensamento, e é efetuada por relações históri-
cas, pelo [nív]el da indústria, do comfércio], da [agri]cultura,
26 A edição portuguesa da “Avante!”, que serve de base para esta edição, inseriu aqui o
manuscrito “Feurbach e história — rascunhos e anotações” (Boitempo, 2007, p. 29)
que, com exceção do primeiro parágrafo, foi publicado na versão de A ideologia alemã
publicada na WERKE como parte do subitem “Da produção da consciência” (Über die
Produktion des Bewufítseins). (N.E.B.)
27 [Nota marginal de Marx:] Feuerbach.
28 [Nota marginal de Marx:] Libertação filosófica e real. - O Homem. O Único. O indi-
víduo. Condições geológicas, hidrográficas etc., O corpo humano. A necessidade e o
trabalho.
A i deo log ia a l emã
do inter[câmbio]... [2] então, ulteriormente, consoante as suas
diferentes etapas de desenvolvimento, o absurdo da substância,
do sujeito, da consciência de si e da crítica pura, tal como o ab-
surdo religioso e teológico, e depois o el iminam de novo quando
estão suficientemente desenvolvidas. 29 Como é natural, num país
como a Alemanha, onde se processa apenas um desenvolvimento
histórico miserável, esses desenvolvimentos do pensamento, essas
trivialidades transfiguradas e ineficazes, encobrem a falta do
desenvolvimento histórico, fixam-se e têm de ser combatidas 30 .
Mas essa é uma luta de importância local.
[2. Crítica do materialismo contemplativo e inconsequente
de Feuerbach]
31 [8] na realidade,e para o materialista prático, isto é, para o
comunista, trata-se de revolucionar o mundo existente, de atacar
e transformar na prática as coisas que ele encontra no mundo. Se
em Feuerbach, por vezes, se encontram tais idéias [Anschauungen],
a verdade é que estas nunca vão além de conjeturas isoladas e têm
uma influência demasiado reduzida no seu modo geral de ver para
que aqui possam ser consideradas algo mais do que embriões capa-
zes de se desenvolverem. A “concepção” de Feuerbach do mundo
sensível limita-se, por um lado, à mera concepção [Anschauung\
deste, e, por outro, à mera sensação; ele diz “o Homem” em vez de
o(s) “homens históricos reais”. “O Homem” é, realiter [na realidade
— latim] “o alemão”. No primeiro caso, na concepção do mundo
sensível, esbarra necessariamente em coisas que contradizem a sua
consciência e o seu sentimento, que perturbam a harmonia, por
ele pressuposta, de todas as partes do mundo sensível, e nomea-
[Nota marginal de Marx:] Frases e o movimento real.
[Nota marginal de Marx:] Importância das frases para a Alemanha. [Nota marginal de
Marx:] A linguagem é a linguagem da re[alidade].
31 Há aqui uma lacuna de cinco páginas no manuscrito.
36
Kar l M a r x
damente do homem com a natureza. 32 Para eliminar tais coisas,
tem de procurar refúgio numa dupla concepção [Anschauung],
entre uma profana, que só avista o “trivialmente óbvio”, e uma
superior, filosófica, que avista a “verdadeira essência” das coisas.
Ele não vê que o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa
dada diretamente da eternidade, sempre igual a si mesma, mas
antes o produto da indústria e da situação em que se encontra
a sociedade, e precisamente no sentido de que ele é um produto
histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações,
cada uma das quais, sobre os ombros da anterior, desenvolvendo
a sua indústria e o seu intercâmbio. Modificando a sua ordem so-
cial de acordo com necessidades diferentes. Mesmo os objetos da
mais simples “certeza sensível” lhe são apenas dados por meio do
desenvolvimento social, da indústria e do intercâmbio comercial.
A cerejeira, como é sabido, e bem assim quase todas as árvores de
fruto, só há poucos séculos foi transplantada para a nossa zona
por meio do comércio, e por isso só [9] por meio dessa ação de uma
determinada sociedade num determinado tempo foi dada à “certeza
sensível” de Feuerbach.
De resto, nessa concepção [Auffassung] das coisas tal como
elas realmente são e aconteceram, todos os problemas filosóficos
profundos se resolvem, como mais adiante se revelará ainda com
maior nitidez, muito simplesmente num fato empírico. Por exem-
plo, a questão importante da relação do homem com a natureza
(ou, como Bruno diz (p. 110), 33 as “antíteses na natureza e na his-
tória”, como se estas fossem duas “coisas” separadas uma da outra,
como se o homem não tivesse sempre diante de si uma natureza
32 [Nota marginal de Engels:] NB. O erro não é que F[euerbach] subordine o trivialmente
óbvio, a aparência sensível, a realidade sensível constatada por meio de uma análise
mais rigorosa dos fatos sensíveis, mas sim que, em última instância, não seja capaz de
lidar com o sensível \Sinnlichkeif\ sem o considerar com os “olhos”, isto é, através dos
“óculos” do filósofo.
33 Trata-se do artigo de B. Bauer “Caracterização de Ludwig Feuerbach”, publicado na
revista WigancTs Vierteljãhrsschrift de 1845, t. III, pp. 86-146. (N.E.)
37
A IDEOLOGIA ALEMÃ
histórica e uma história natural), da qual saíram todas as “obras
imperscrutavelmente elevadas” 34 sobre “substância” e “consciência
de si”, desfaz-se por si própria com a compreensão de que a cele-
brada “unidade do homem com a natureza” desde sempre existiu
na indústria e existiu em todas as épocas de formas diferentes,
segundo o menor ou maior desenvolvimento da indústria, tal
como a “luta” do homem com a natureza, até o desenvolvimento
das suas forças produtivas numa base correspondente. A indústria
e o comércio, a produção e a troca das necessidades da vida, por
um lado, exigem \bedingeri\ e, por outro, são requeridos \bedingi\,
no modo como se processam, pela distribuição, pela articulação
das diferentes classes sociais; e assim acontece que Feuerbach, em
Manchester, por exemplo, só vê fábricas e máquinas onde há um
século se viam apenas rodas de fiar e teares, ou na Campagne di
Roma só descobre pastagens e pântanos onde no tempo de Augusto
nada teria encontrado a não ser vinhedos e vilas de capitalistas ro-
manos. Feuerbach fala em especial da observação [Anschauung\ da
ciência da natureza, menciona segredos que apenas se revelam aos
olhos do físico e do químico; mas, sem a indústria e o comércio,
onde estaria a ciência da natureza? Mesmo essa ciência “pura” da
natureza só alcança o seu objetivo, bem como o seu material, por
meio do comércio e da indústria, por meio da atividade sensível dos
homens. E de tal modo essa atividade, esse trabalho e essa criação
sensíveis contínuos e essa produção são a base de todo o mundo
sensível como ele agora existe, que, se fossem interrompidos ao me-
nos um ano, Feuerbach não só encontraria uma enorme mudança
no mundo natural como muito em breve daria pela falta de todo
o mundo dos homens e da sua própria faculdade de observação
[Anschauungvermõgeri\ — mais, da sua própria existência. É certo
que, no meio de tudo isso, se mantém a prioridade da natureza
exterior, e é certo que tudo isso não tem qualquer aplicação aos
3< Goethe, Fausto, “Prólogo no céu”.
38
K A R L M A R X
homens originais, produzidos por generatio aequivoca [geração
espontânea — latim]; mas essa diferenciação só tem sentido na
medida em que se considera o homem como sendo diferente da
natureza. 35 De resto, essa natureza que precedeu a história huma-
na não é, de modo algum, a natureza em que Feuerbach vive, é a
natureza que hoje em dia, à exceção talvez de uma ou outra ilha
de coral australiana de origem recente, em parte alguma existe, e
que portanto também não existe para Feuerbach.
Feuerbach tem, no entanto, [10] sobre os materialistas “puros”, a
grande vantagem de compreender que também o homem é “objeto
sensível”; mas, à parte o fato de entender o homem apenas como
“objeto sensível”, e não como “atividade sensível”, como também
aqui se mantém na teoria, e não concebe os homens na sua cone-
xão social dada, nas suas condições de vida existentes que fizeram
deles aquilo que são, nunca chega aos homens ativos, realmente
existentes, permanecendo na abstração “o Homem”, e só consegue
reconhecer o “homem corpóreo, individual, real” no sentimento,
ou seja, não conhece outras “relações humanas” “do homem com
o homem” além de amor e amizade, e mesmo assim idealizados.
Não faz nenhuma crítica às condições de vida [Lebensverhãltnisse}
atuais. Nunca chega, portanto, a conceber o mundo sensível como
a totalidade da atividade sensível viva dos indivíduos que o consti-
tuem, e é por isso obrigado — quando vê, por exemplo, em vez de
homens saudáveis, uma turba de famélicos escrofulosos, esgotados
pelo excesso de trabalho e tuberculosos - a buscar o seu refúgio
na “concepção \Anschauung\ superior” e na “igualização” superior
35 Em alemão: Alies keine Anwendung auf die ursprünglichen, durch generatio aequivoca
erzeugten Menschen; aber diese Unterscheidung hat nur insofern Sinn, ais man den Men-
schen ais von der Natur unterschieden betrachtet. Frase de difícil tradução. Uma possível
interpretação é que apenas após a separação do ser social em relação à natureza, pelo
surgimento do trabalho, a categoria fundante do ser social, essa afirmação faria sentido.
Antes dessa distinção do mundo dos homens e da natureza, os “homens originais”,
“produzidos por generatio aequivoca" , eram partes integrantes do mundo natural, não
eram ainda seres humanos. (N.E.B.)
39
A IDEOLOGIA ALEMÃ
“no gênero”, 36 e portanto a recair no idealismo precisamente onde
o materialista comunista vê a necessidade e, ao mesmo tempo,
a condição de uma transformação tanto da indústria quanto da
estrutura social.
Como materialista, paraFeuerbach a história não conta; e
quando considera a história não é materialista. Para ele, materia-
lismo e história divergem completamente, o que de resto se explica
pelo que ficou dito. 37
13. Relações históricas primordiais, ou os aspectos básicos da
atividade social: produção dos meios de subsistência, produção
de novas necessidades, reprodução das pessoas (a família),
intercâmbio social, consciência]
[1 1] 38 Com os alemães, que não partem de qualquer pressuposto
[voraussetzungslosen], temos de começar por constatar o primeiro
pressuposto de toda a existência humana, e portanto, também, de
toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar
em condições de viver para poderem “fazer história”. 39 Mas da vida
fazem parte sobretudo comer e beber, habitação, vestuário e ainda
algumas outras coisas. 40 O primeiro ato histórico é, portanto, a pro-
36 No alemão: “zur ideellen ‘Ausglei-chung in der Gattung" Gattung é um termo de difícil
tradução. Indica a máxima universalidade, por isso muitas vezes é traduzido por espécie
(por exemplo, espécie humana) e, outras vezes, por gênero humano. Outras vezes tem-se
criado neologismos para traduzi-lo, por exemplo, generidade ou genericidade quanto se
trata de Gattungmafíigkeit. (N.E.B.)
37 [No manuscrito encontra-se riscada a passagem seguinte:] Se aqui, porém, entramos
mais na história, isso deve-se ao fato de os alemães estarem habituados a imaginar por
"história” e “histórico” tudo o que é possível, mas não o que é real, e disso nos dá um
exemplo brilhante nomeadamente o São Bruno com a sua “eloquência do púlpito”.
38 [Nota marginal de Marx:] História.
No tomo 3 dos Marx/Engels, Werke, Dietz Verlag, Berlim, 1969, p. 28, esse parágrafo vem
precedido do subtítulo [/.] Geschichte (História), e segue-se imediatamente ao parágrafo
com que termina a versão principal (a segunda) da cópia passada a limpo. (N.E.)
3’ Cf. cap. II, 8.
40 [Nota marginal de Marx:] Hegel . Condições geológicas, hidrográficas etc. Os corpos
humanos. Necessidade, trabalho. [Ver Hegel, Filosofia da história, Introdução, Base
Geográfica da História Mundial.]
40
Kar l Marx
dução dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da
própria vida material, e a verdade é que esse é um ato histórico, uma
condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, tal como
há milhares de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para
ao menos manter os homens vivos. Mesmo quando o mundo sensível
é reduzido ao mínimo, a um bastão, como com o sagrado Bruno, 41
pressupõe a atividade da produção desse bastão. Assim, a primeira
coisa a fazer em qualquer concepção da história é observar esse fato
fundamental em todo o seu significado e em toda a sua extensão, e
atribuir-lhe a importância que lhe é devida. Como é sabido, os alemães
nunca o fizeram, e por isso nunca tiveram uma base [Basis] terrena
para a história nem, consequentemente, um historiador. Os franceses
e os ingleses, embora tenham concebido a conexão desse fato com a
chamada, história apenas de um modo extremamente unilateral, no-
meadamente enquanto enredados na ideologia política, fizeram não
obstante as primeiras tentativas para dar à historiografia uma base
materialista, tendo sido os primeiros a escrever histórias da sociedade
civil42 \bürgerlichen Gesellschafi}, do comércio e da indústria.
O segundo ponto é [12] este: a própria primeira necessidade
satisfeita, a ação da satisfação e o instrumento já adquirido da sa-
41 Trata-se de uma expressão de B. Bauer no artigo “Caracterização de Ludwig Feuerbach”
(,Wigand’s Vierteljahrsschrift, 1845, t. III, p. 130). (N.E.)
42 O termo alemão para sociedade civil é bürgerliche gesellschaft, cuja tradução literal é
sociedade burguesa. Para Marx e Engels, sociedade burguesa pode significar duas coisas:
1) o conjunto da sociabilidade burguesa (capitalista); 2) a base material da sociedade,
vale dizer, o “intercâmbio material” que os homens estabelecem entre si na produção dos
bens materiais necessários à existência, em qualquer tipo de sociedade. Em A ideologia
alemã o termo é utilizado nesse segundo sentido. Com isso, os autores querem deixar
claro que essa base material é o fundamento da história, em contraposição ao modo
de pensar idealista. Desse modo, bürgerliche gesellsscahft não se refere apenas à forma
burguesa (capitalista) da sociedade, mas à base material existente em todas as sociedades.
Essa base material ganha seu pleno desenvolvimento na sociedade burguesa (capitalista)
e é a partir daí que surge esse último termo. O sentido atual de sociedade civil muda
radicalmente aquele atribuído por Marx e Engels, com enormes consequências. Socie-
dade civil, então, ganha o sentido de organização dos cidadãos em oposição ao Estado,
situando-o, portanto, no contexto da teoria liberal. (N.E.B.)
41
A IDEOLOGIA ALEMÃ
tisfação, conduz a novas necessidades — e esta produção de novas
necessidades é o primeiro ato histórico. Logo por aqui se revela
de quem descende espiritualmente a grande sabedoria histórica
dos alemães, os quais, ao esgotar-lhes o material positivo e ao
não se tratar de nenhum absurdo [Unsinn] teológico, político ou
literário, não reconhecem nenhuma história, mas o “tempo pré-
histórico 43 ”, sem entretanto nos esclarecerem como desse absurdo
da “pré-história” se chega à verdadeira história - embora, por outro
lado, a sua especulação histórica se lance muito particularmente
sobre essa “pré-história”, porque acredita estar aí mais segura face
às incursões dos “fatos crus” e, ao mesmo tempo, porque pode
soltar as rédeas ao seu impulso especulativo e produzir e derrubar
hipóteses aos milhares.
A terceira relação, que logo desde o início entra no desenvol-
vimento histórico, é esta: os homens que, dia a dia, renovam a sua
própria vida começam a fazer outros homens, a reproduzir-se — a
relação entre homem e mulher, pais e filhos, a família,. Essa família,
que a princípio é a única relação social, torna-se mais tarde, quando
o aumento das necessidades cria novas relações sociais e o aumen-
to do número dos homens cria novas necessidades, uma relação
subordinada (exceto na Alemanha), e tem então de ser tratada e
desenredada segundo os dados empíricos existentes, e não segundo
o “conceito da família”, como se costuma fazer na Alemanha. De
resto, essas três facetas da atividade social não devem ser entendi-
das como três fases diferentes, mas apenas como três facetas ou,
para escrever claro para os alemães, três “momentos” que, desde o
começo da história e desde os primeiros homens, existiram simul-
taneamente, e que ainda hoje se afirmam na história.
A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da
alheia, na procriação, surge agora imediatamente como uma dupla
43 Pré-histórico, nesta passagem, náo como uma fase da história, mas como antes de
qualquer história. Em alemão Vorgeschichte (N.E.B.)
42
K A R L M A R X
[13] relação: por um lado como relação natural, por outro como re-
lação social — social no sentido em que aqui se entende a cooperação
de vários indivíduos seja em que circunstâncias for e não importa
de que modo e com que fim. Daqui resulta que um determinado
modo de produção, ou fase industrial, está sempre ligado a um
determinado modo da cooperação, ou fase social, e esse modo da
cooperação é ele próprio uma “força produtiva”; e que a quantidade
das forças produtivas acessíveis aos homens condiciona a situação da
sociedade, e portanto a “história da humanidade” tem de ser sempre
estudada e tratada em conexão com a história da indústria e da troca.
Mas também é evidente que na Alemanha é impossível escrever essa
história, porque para tanto faltam aos alemães não só a capacidade
de concepção e o material, mas também a “certeza sensível”, e para
além do Reno não se pode colher experiência dessas coisas, pois lá
nenhuma história se processa. Revela-se, assim, logo de princípio,
uma conexão materialista dos homens entre si, a qual é requerida
\bedingt\ pelas necessidades e pelo modo da produção e é tão velhacomo os próprios homens - uma conexão que assume sempre formas
novas e que, por conseguinte, apresenta uma “história”, mesmo que
não exista um absurdo político ou religioso qualquer que una ainda
mais os homens. 44
Só agora, depois de termos considerado quatro momentos,
quatro facetas das relações históricas primordiais, descobrimos
que o homem também tem “consciência”. 45 Mas também, logo
de início, não como consciência “pura”. O “espírito” tem consigo
de antemão [14] a maldição de estar “preso” à matéria, a qual
nos surge aqui na forma de camadas de ar em movimento, de
44 Em alemão extra zusammenhalte. O sentido é: mesmo que não haja uma instância política
ou religiosa, absurda em si mesma, que promova uma articulação extra (para além da
história) entre os homens. (N.E.B.)
45 [Nota marginal de Marx:] Os homens têm história porque têm de produzir a sua vida
e, ainda, o têm de fazer de determinado modo: isto é [na mega: este ter de.] dado pela
sua organização física, tal como o é a sua consciência.
43
A IDEOLOGIA ALEMÃ
sons, numa palavra, da linguagem [Sprache\. A linguagem é tão
antiga quanto a consciência — a linguagem é a consciência real
prática que existe também para outros homens e que, portanto,
só assim existe também para mim, e a linguagem só nasce, como
a consciência, da necessidade [Bedürfnis\, da necessidade orgânica
[Notdurft\, do intercâmbio com outros homens. 46 Onde existe
uma relação, ela existe para mim, o animal nâo se “relaciona”
com nada; sequer se relaciona. Para o animal, a sua relação com
outros não existe como relação. A consciência é, pois, logo des-
de o começo, um produto social, e continuará a sê-lo enquanto
existirem homens. A consciência, naturalmente, começa por ser
apenas consciência acerca do ambiente sensível mais imediato e
consciência da conexão limitada com outras pessoas e coisas fora
do indivíduo que se vai tornando consciente de si; é, ao mesmo
tempo, consciência da natureza, a qual em princípio se opõe aos
homens como um poder completamente alienado \fremdé\, todo-
poderoso e inatacável, com o qual os homens se relacionam de
um modo puramente animal e pelo qual se deixam amedrontar
como os animais; é, portanto, uma consciência puramente animal
da natureza (religião natural).
Por aqui se vê imediatamente: essa religião natural ou essa
determinada relação com a natureza é requerida \bedingt\ pela
forma de sociedade e vice-versa. Aqui, como em toda a parte,
também se manifesta a identidade de natureza e homem que a
relação limitada dos homens com a natureza requer, bem como
também a sua relação limitada uns com os outros; e a sua re-
lação limitada uns com os outros requer a sua relação limitada
com a natureza, precisamente porque a natureza mal está ainda
historicamente modificada e, por outro lado, a consciência da
necessidade [Notwendigkeit\ de entrar em ligação com os indi-
[Riscadas do manuscrito as seguintes palavras:] A minha relação com o que me rodeia
é a minha consciência.
44
Kar l Ma rx
víduos à sua volta é o começo da consciência do homem de que
vive de fato numa sociedade. Esse começo é tão animal como
a própria vida social dessa fase, é mera consciência de horda, e
o homem distingue-se aqui do carneiro apenas pelo fato de a
sua consciência lhe fazer as vezes do instinto, ou do seu instinto
ser consciente. Essa consciência de carneiro, ou tribal, recebe o
seu desenvolvimento e formação posterior do aumento da pro-
dutividade, da multiplicação das necessidades e do aumento da
população [15] que está na base desta e daquele. Desse modo se
desenvolve a divisão do trabalho, que originalmente nada era
senão a divisão do trabalho no ato sexual, e depois a divisão
espontânea ou “natural” do trabalho em virtude da disposição
natural (p. ex., a força física), de necessidades, acasos etc. etc.
A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do
momento em que surge uma divisão do trabalho material e es-
piritual [geistigen\y A partir desse momento, a consciência pode
realmente dar-se à fantasia de ser algo diferente da consciência
da práxis existente, de representar realmente alguma coisa sem
representar nada de real — a partir deste momento, a consciência
é capaz de se emancipar do mundo e de passar à formação da
teoria “pura”, da teologia, da filosofia, da moral etc., “puras”.
E mesmo quando essa teoria, teologia, filosofia, moral etc.,
entram em contradição com as relações vigentes, isso só pode
acontecer pelo fato de as relações sociais vigentes terem entrado
em contradição com a força de produção existente — o que, de
resto, também pode acontecer num determinado círculo nacional
de relações pelo fato de a contradição se fazer sentir, não neste
âmbito nacional, mas entre esta consciência nacional e a práxis
das outras nações,47 48 ou seja, entre a consciência nacional e a
consciência geral de uma nação (como agora na Alemanha); mas
47 [Nota marginal de Marx:] Primeira forma dos ideólogos, padres, coincide com isso.
48 [Nota marginal de Marx:] Religião. Os alemães com a ideologia como tal.
45
A IDEOLOGIA ALEMÃ
como essa contradição parece existir apenas como contradição
dentro da consciência nacional, parece então a essa nação que
também a luta se confina a essa porcaria nacional, precisamente
porque essa nação é a porcaria em si e para si.
[16] De resto, é completamente indiferente o que quer que seja
que a consciência comece a fazer sozinha; de toda essa porcaria
\Dreck\ extraímos apenas um resultado, o de que esses três mo-
mentos, a força de produção, o estado da sociedade e a consciên-
cia, podem e têm de cair em contradição entre si, porque com a
divisão do trabalho está dada a possibilidade, mais, a realidade de
a atividade espiritual e a atividade material49 , a fruição [Gnufí\ e o
trabalho, a produção e o consumo caberem a indivíduos diferentes;
e a possibilidade de não caírem em contradição reside apenas na
superação [aujgeboben] da divisão do trabalho. E de resto evidente
que os “espectros”, os “vínculos”, o “ser superior”, o “conceito”, a
“escrupulosidade” são meramente a expressão espiritual [geistlich]
idealista, a representação aparente do indivíduo isolado, a repre-
sentação de grilhões e limites muito empíricos dentro dos quais o
modo de produção da vida e a forma de intercâmbio àquele ligada
se movem.
[4. A divisão social do trabalho e as suas consequências: a
propriedade privada, o Estado, a “alienação” da atividade
social]
Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas essas
contradições, e a qual por sua vez assenta na divisão natural do
trabalho na família e na separação da sociedade em famílias in-
dividuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada
também a repartição, e precisamente a repartição desigual, tanto
quantitativa quanto qualitativa, do trabalho e dos seus produtos
w [Nota marginal de Marx que foi cortada:] atividade e pensamento, isto é, atividade
destituída de pensamento e pensamento inativo.
46
K A « L M A U X
e, portanto, a propriedade, [17] a qual tem o seu embrião, a sua
primeira forma, na família, na qual a mulher e os filhos são os
escravos do homem. A escravatura latente na família, se bem
que ainda muito rudimentar, é a primeira propriedade, que de
resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos modernos
economistas, segundo a qual ela é o dispor de força de trabalho
[Arbeitskraft\ alheia. De resto, divisão do trabalho e propriedade
privada são expressões idênticas - numa enuncia-se em relação
à atividade o mesmo que na outra se enuncia relativamente ao
produto da atividade.
Além disso, com a divisão do trabalho está dada, ao mesmo
tempo, a contradição entre o interesse de cada um dos indivíduos
ou de cada uma das famílias e o interesse comunitário [gemeins-
chaftlichen} de todos os indivíduos que mantêm intercâmbio uns
com os outros; e a verdade é que esse interesse comunitário de
modo algum existe meramente na representação, como “univer-
sal”, mas antes de mais nada na realidade, como dependência
recíproca dos indivíduos entre os quaiso trabalho está dividido.
E é precisamente por essa contradição do interesse particular e do
interesse comunitário que o interesse comunitário assume uma
organização [Gestaltung\ autônoma como Estado, separado dos
interesses reais dos indivíduos e do todo, e ao mesmo tempo como
comunidade ilusória, mas sempre sobre a base real \realen Basis\ dos
laços existentes em todos os conglomerados de famílias e tribais -
como de carne e sangue, de língua, de divisão do trabalho numa
escala maior, e demais interesses — , e especialmente, como mais
tarde desenvolveremos, das classes desde logo condicionadas pela
divisão do trabalho e que se diferenciam em todas essas massas de
homens, e das quais uma domina todas as outras. Daqui resulta
que todas as lutas no seio do Estado, a luta entre a democracia, a
aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc., não
são mais do que as formas ilusórias em que são travadas as lutas
reais das diferentes classes entre si (disso os teóricos alemães não
47
A IDEOLOGIA ALEMÃ
percebem uma sílaba, apesar de lhes ter dado para isso indicações
suficientes nos Deutsch-Franzõsische Jahrbücher 50 e em A sagrada
família)-, e também que todas as classes que aspiram ao domínio,
mesmo quando o seu domínio, como é o caso com o proletaria-
do, condiciona a superação de toda a velha forma da sociedade
e da dominação em geral, têm primeiro de conquistar o poder
político, para por sua vez representarem o seu interesse como o
interesse geral, coisa que no primeiro momento são obrigadas a
fazer. Precisamente porque os indivíduos procuram apenas o seu
interesse particular, o qual para eles não coincide com o seu inte-
resse comunitário — a verdade é que o geral é a forma ilusória da
existência na comunidade -, este é feito valer como um interesse
que lhes é “alienado” [fremdes] [18] e “independente” deles, como
um interesse “geral” que é também ele, por sua vez, particular e
peculiar, ou eles próprios têm de se mover 51 nesta discórdia, como
na democracia. Por outro lado, também a luta prática desses in-
teresses particulares, que realmente se opõem constantemente aos
interesses comunitários e aos interesses comunitários ilusórios,
torna necessários a intervenção e o refreamento práticos pelo inte-
resse “geral” ilusório como Estado 52 .
[17] E , finalmente, a divisão do trabalho oferece-nos logo o
primeiro exemplo de como, enquanto os homens se encontram na
sociedade natural, ou seja, enquanto existir a cisão entre o interesse
particular e o comum, enquanto, por conseguinte, a atividade não
50 Deutsch-FranzõsischeJahrbücher (Anais Franco-Alemâes) foram publicados em Paris sob
a direcção de K. Marx e A. Ruge em língua alemã. Saiu apenas um número, duplo,
em fevereiro de 1844. Incluía as obras de K. Marx Para a questão judaica e Critica da
Filosofia do Direito deHegel. Introdução, assim como as obras de F. Engels Esboços para
uma critica da Economia Politica e A situação na Inglaterra: “O passado e o presente”, de
Thomas Carlyle. Esres trabalhos traduzem a passagem definitiva de Marx e Engels para
o materialismo e o comunismo. A causa principal do desaparecimento da revista foram
as divergências de princípio entre Marx e o radical burguês Ruge. (N.E.)
51 Na MEGA: chocar (begegneri}. (N.E.)
5 - Esses dois últimos parágrafos foram inseridos na margem pela mão de Engels.
48
Kar l Marx
é dividida voluntariamente, mas sim naturalmente, a própria ação
do homem se torna para este um poder alienado e a ele oposto [einer
fremden, gegenüberstehenden Macht\, que o subjuga, em vez de ser ele
a dominá-la. E que assim que o trabalho começa a ser distribuído,
cada homem tem um círculo de atividade determinado e exclusivo
que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador
ou pastor ou crítico crítico, 53 e terá de continuar a sê-lo se não qui-
ser perder os meios de subsistência - ao passo que na sociedade
comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de
atividade, mas pode se formar [ausbilderi\ em todos os ramos que
preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse
modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra,
que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique
depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador,
pescador, pastor ou crítico. [18] Essa fixação da atividade social,
essa consolidação do nosso próprio produto como força objetiva
[sachlichen Geu>alt\ acima de nós que escapa ao nosso controle,
contraria as nossas expectativas e aniquila os nossos cálculos, é
um dos principais momentos no desenvolvimento histórico até os
nossos dias. O poder social, isto é, a força de produção multiplicada
que surge pela cooperação [Zusammenwirkeri\ dos diferentes indi-
víduos requerida \bedingtè\ na divisão do trabalho, aparece a esses
indivíduos — porque a própria cooperação não é voluntária, mas
natural — não como o seu próprio poder unido, mas como uma força
alienada \fremde\ que existe fora deles, da qual não sabem donde
vem e a que se destina, que eles, portanto, não podem dominar e
que, ao contrário, percorre uma série peculiar de fases e etapas de
desenvolvimento independente da vontade e do esforço dos homens,
e que até mesmo dirige essa vontade e esse esforço. 54 De outro modo,
53 “Crítico crítico”: referência aos teóricos da esquerda hegeliana que Marx e Engels criti-
caram duramente em A sagrada família. (N.E.B.)
" Sobre esse passo escreveu Marx, à margem, o texto que é reproduzido neste volume nos
dois primeiros parágrafos da seção que se segue a 5 a , logo depois do parágrafo em curso.
49
A IDEOLOGIA ALEMÃ
como poderia, por exemplo, a propriedade ter uma história, assumir
várias formas, e, por exemplo, a propriedade fundiária, conforme as
diferentes condições existentes, passar na França do parcelamento
para a centralização em poucas mãos e, na Inglaterra, da centraliza-
ção em poucas mãos para o parcelamento, como é hoje realmente o
caso? Ou como explicar que o comércio, que não é de fato mais do
que a troca de produtos de diferentes indivíduos e países, domine
o mundo inteiro pela relação de procura e oferta [Nachfrage und
Zufuhr\ - uma relação que, como diz um economista inglês, paira
sobre a Terra semelhante ao Destino antigo e com mão invisível
distribui a felicidade e a infelicidade aos homens, funda impérios e
destrói impérios, faz nascer [19] e desaparecer 55 povos —, ao passo que
com a superação \Aufhebung\ da base, da propriedade privada, com
a regulação comunista da produção e o aniquilamento a ela inerente
da alienação [Fremdheit] com que os homens se relacionam com o
seu próprio produto, o poder da relação de procura e fornecimento
se dissolve em nada e os homens voltam a ter sob o seu domínio a
troca, a produção, o modo da sua mútua relação?
[5. Desenvolvimento das forças produtivas como uma
premissa material do comunismo]
[18] Essa “alienação” [Entfremdung , para continuarmos com-
preensíveis para os filósofos, só pode ser superada, evidentemente,
dadas duas premissas \Voraussetzungen\ práticas. Para que ela se
torne um poder “insuportável”, isto é, um poder contra o qual se
faça uma revolução, é necessário que tenha criado uma grande
massa da humanidade absolutamente “destituída de propriedade”
\durchaus aEigentumslos >r\ e ao mesmo tempo em contradição com
um mundo existente de riqueza e cultura, o que pressupõe um
grande aumento da força produtiva, um grau elevado do seu de-
senvolvimento — e, por outro lado, esse desenvolvimento das forças
55 Nos MEW, verschwinden-, na MEGA, schwinden. (N.E.)
50
K A II L M A R X
produtivas (com o qual já está dada, simultaneamente, a existência
empírica concreta dos homens no plano histórico-mundial, em vez
de no plano local) é também uma premissa prática absolutamente
necessária porque sem ele só a escassez [Mangei} se generaliza, e,
portanto, com a carência [Notdurf} também teria de recomeçar
a luta pelo necessário e teria de se produzir de novo toda a velha
merda [Scheifó}-, porque, além disso, só comesse desenvolvimento
universal das forças produtivas se estabelece um intercâmbio
universal dos homens, que por um lado produz o fenômeno da
grande massa “destituída de propriedade” em todos os povos ao
mesmo tempo (concorrência geral), tornando todos eles depen-
dentes das revoluções uns dos outros e, por fim, colocando indi-
víduos empiricamente universais, indivíduos histórico -mundiais,
no lugar dos indivíduos locais. Sem isso, 1) o comunismo apenas
podería existir como algo local [eine Lokalitãt\\ 2) os poderes do
intercâmbio não teriam eles próprios podido desenvolver-se como
poderes universais, e por isso insuportáveis, e teriam permanecido
“circunstâncias” de superstição locais; 56 3) todo o alargamento
do intercâmbio superaria o comunismo local. Empiricamente,
o comunismo só é possível como o ato dos povos dominantes
“de repente” e ao mesmo tempo 57 , o que pressupõe o desenvol-
56 Em alemão lemos “ heimish-aberglãugie 'Umstãnde”'. Literalmente: “circunstâncias” de
superstições locais, familiares, domésticas. Marx e Engels estão aqui contrapondo a
universalidade dos poderes, das forças, necessárias para a revolução proletária, forças
revolucionárias essas que apenas podem surgir na luta contra forças alienadas igualmente
universais, às forças e processos de alienações apenas locais que caracterizam o capi-
talismo antes do seu pleno desenvolvimento histórico, Na luta contra essas alienações
ainda não universais, as potências revolucionárias também não poderiam se desenvolver
plenamente. (N.E.B.)
57 Na MEGA: “de repente” ou ao mesmo tempo. Essa conclusão da possibilidade da
vitória da revolução proletária apenas em simultâneo nos países capitalistas avançados
e, consequentemente, a impossibilidade da vitória da revolução num só país, que
recebeu a sua formulação mais completa no trabalho de Engels Princípios básicos
do comunismo (1847) era justa para o período do capitalismo pré-monopolista. Nas
novas condições históricas, no período do capitalismo monopolista, V. I . Lenin,
par t indo da lei por ele descoberta do desenvolvimento político e econômico de-
sigual do capitalismo na época do imperialismo, chegou a uma nova conclusão: a
51
A IDEOLOGIA ALEMÃ
vimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial a
ele articulado.* **** 58
[19] De resto, a massa de meros trabalhadores [blofísen Arbei-
tern\ — força de trabalho [Arbeiterkraft} massiva 59 separada do capi-
tal ou de qualquer limitada satisfação — , e por isso também a perda
não temporária desse mesmo trabalho como uma fonte assegurada
de vida, pressupõe o mercado mundial por meio da concorrência.
O proletariado só pode, por conseguinte, existir à escala histórico-
mundial, tal qual o comunismo; a sua ação apenas pode se dar
como existência “histórico-mundial”; existência histórico-mundial
dos indivíduos, ou seja, a existência dos indivíduos diretamente
vinculada à história mundial.
[18] O comunismo não é para nós um estado de coisas \Zustand\
que deva ser estabelecido, um ideal pelo qual a realidade [terá] de
se regular. Chamamos comunismo ao movimento real que supera
o atual estado de coisas. As condições desse movimento resultam
do pressusposto atualmente existente. 60
***
[19] A forma de intercâmbio requerida [bedingte\ pelas forças
de produção existentes em todos os estágios históricos até os nossos
dias, e que por sua vez as requer, é a sociedade civil [bürgerliche
da possibilidade da vitória da revolução socialista inicialmente nalguns ou num só
país, individualmente considerado, e da impossibilidade da vitória simultânea da
revolução em todos os países ou na maioria deles. A formulação dessa nova conclusão
surge pela primeira vez no trabalho de Lenin Sobre a palavra de ordem dos Estados
Unidos da Europa (1915) (N.E.)
58 [Nota de Marx no topo da página seguinte do manuscrito que continua o texto:] Co-
munismo.
” Na MEGA: massivamente. (N.E.)
6,1 No manuscrito, este parágrafo foi inserido por Marx por cima do primeiro parágrafo
desta seção.
52
K A R 1. M A R X
Gesellschafâ* , a qual, como se torna claro pelo que já foi dito, tem
por pressuposto e fundamento [Voraussetzung und Grundlage} a
família simples e a família composta, o chamado sistema tribal,
cujas características marcantes mais precisas foram acima expostas.
Já por aqui se revela que esta sociedade civil é o verdadeiro lar e
teatro de toda a história, e que é absurda a concepção da história
até hoje defendida que despreza as relações reais ao confinar-se às
ações altissonantes de chefes e de Estados.
Até aqui consideramos principalmente apenas uma das facetas
da atividade humana, o trabalho da natureza pelos homens. A outra
faceta, o trabalho dos homens pelos homens. ,.61 62
Origem do Estado e a relação do Estado com a sociedade civil. 63
[6. Conclusões da concepção materialista da história:
continuidade do processo histórico, transformação da
história em história mundial, a necessidade de uma
revolução comunista]
[20] A história não é senão a sucessão das diversas gerações,
cada uma das quais explora os materiais , capitais, forças de
produção que lhe são legados por todas as que a precederam, e
que por isso continua, portanto, por um lado, em circunstâncias
completamente mudadas, a atividade transmitida, e por outro
modifica as velhas circunstâncias com uma atividade completa-
mente mudada, o que permite a distorção especulativa de fazer da
história posterior a finalidade \Zweck\ da anterior, por exemplo,
colocar como subjacente ao descobrimento da América a finali-
dade \Zweck\ de proporcionar a eclosão da Revolução Francesa;
desse modo, a história recebe então finalidades à parte e torna-se
uma “pessoa a par de outras pessoas” (como sejam: “Consciência
61 Cf. nota 42, p. 41. (N.E.B.)
62 [Nota marginal de Marx:] Intercâmbio e forças produtivas.
63 O resto da página no manuscrito ficou em branco. A página seguinte começa com a
exposição das conclusões da concepção materialista da história.
53
A IDEOLOGIA ALEMÃ
de Si [Selbstbewufítseins\, Crítica, Único” etc.), enquanto aquilo
que se designa com as palavras “Determinação”, “Finalidade”,
“Germe”, “Ideia” da história anterior nada mais é do que uma
abstração formada a partir da história posterior, uma abstração
a partir da influência ativa que a história anterior exerce sobre
a posterior.
Quanto mais se expandem, no curso desse desenvolvimento,
os diversos círculos que atuam uns sobre os outros, quanto mais o
isolamento original de cada nacionalidade é aniquilado pelo modo
de produção e o intercâmbio já formados e pela divisão do trabalho
naturalmente produzida entre as diferentes nações, tanto mais a his-
tória se torna história mundial, pelo que, por exemplo, quando na
Inglaterra é inventada uma máquina que deixa sem pão inúmeros
operários na índia e na China e transforma profundamente toda a
forma de existência desses impérios, esse invento torna-se um fato
histórico-mundial; e o açúcar e o café provaram a sua importância
mundial no século 19 pelo fato de a falta desses produtos, provocada
pelo Sistema Continental Napoleônico 64 ter levado os Alemães [21]
à revolta contra Napoleão e ter assim se tornado a base real das
guerras gloriosas de libertação de 1813. Daqui decorre que essa
transformação da história em história mundial não é, de modo
algum, um mero ato abstrato da “Consciência de Si”, do Espírito
do Mundo ou de qualquer outro espectro metafísico \metaphysis-
chen Gespenstes], mas um ato totalmente material, demonstrável
empiricamente, um ato cuja prova é fornecida por cada indivíduo
no seu dia a dia, ao comer, ao beber e ao vestir-se.
Na história até os nossos dias é , sem dúvida, igualmente
um fato empírico que cada um dos indivíduos, à medida que a
atividade se alarga à escala histórico-mundial, fica cada vez mais
escravizado sob um poder que lhe é al ienado \fremden\ (cuja
64 Sistema continental ou bloqueio continental: proibição, imposta em 1806 por Napoleão
I aos países do continente europeu, de comerciarem com a Inglaterra. O bloqueiocon-
tinental caiu após a derrota de Napoleão na Rússia. (N.E.)
54
K A U L M A R X
pressão eles imaginaram como ardil do chamado Espírito do
Mundo etc.), um poder que se tornou cada vez mais desmedido e
que em última instância se desvela [sich... ausweist} como mercado
mundial. Mas, do mesmo modo, está empiricamente provado
que pela subversão [Umsturz\ do estado de coisas vigente na so-
ciedade por meio da revolução comunista (à qual retornaremos
mais adiante) e da abolição da propriedade privada que é a ela
idêntica, esse poder tão misterioso para os teóricos alemães será
dissolvido, e então será realizada a libertação de cada um dos
indivíduos na medida em que a história se transforma comple-
tamente em história mundial. 65 Depois do que atrás ficou dito,
torna-se claro que a verdadeira riqueza espiritual do indivíduo
depende completamente da riqueza das suas relações reais. Só
desse modo os diferentes indivíduos são libertados das várias
barreiras nacionais e locais, colocados em relação prática com a
produção (também com a espiritual) de todo o mundo e coloca-
dos em condições de adquirir a capacidade de fruição para toda
essa variada produção de toda a Terra (as criações dos homens).
A dependência multifacetada \allseitigé\, essa forma natural da
cooperação histórico -mundial dos indivíduos, é transformada [22]
por essa revolução comunista no controle e domínio consciente
desses poderes que, gerados pela ação recíproca dos homens, até
aqui se lhes têm imposto e os têm dominado como poderes com-
pletamente alienados [fremde\. Ora, essa concepção [Anschauung\
pode, de novo, ser compreendida de modo idealista-especulativo,
ou seja, de modo fantástico como “autocriação do gênero” [S<?Z-
bsterzeugung der Gattung} (a “sociedade como sujeito”), e desse
modo a série consecutiva de indivíduos em conexão entre si pode
ser imaginada como um único indivíduo que realiza o mistério
de gerar a si próprio. Torna-se aqui evidente que os indivíduos
se fazem de fato uns aos outros, física e espiritualmente, mas não
65 [Nota marginal de Marx:] Sobre a produção da consciência.
55
A IDEOLOGIA ALEMÃ
fazem a si próprios, nem no sentido absurdo do sagrado Bruno,
nem no sentido do “Único”, do homem “feito”
Por fim, da concepção da história que desenvolvemos obtemos
ainda os seguintes resultados: 1) no desenvolvimento das forças
produtivas atinge-se um estágio no qual se produzem forças de
produção e meios de intercâmbio que, sob as relações vigentes, só
causam desgraça, que já não são forças de produção, mas forças
de destruição (maquinaria e dinheiro) - e, em conexão com isso,
é produzida uma classe que tem de suportar todos os fardos da
sociedade sem gozar [geniefán} das vantagens desta e que, expulsa
da sociedade [23], é forçada ao mais decidido antagonismo a to-
das as outras classes; uma classe que constitui a maioria de todos
os membros da sociedade e da qual deriva a consciência sobre a
necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista, a
qual, evidentemente, também pode se formar no seio das outras
classes por meio da observação [Anschauung] da posição desta
classe; 2) que as condições, no seio das quais podem ser aplicadas
determinadas forças de produção, são as condições do domínio
de uma determinada classe da sociedade, cujo poder social, decor-
rente da sua propriedade, tem a sua expressão j&rzzízco-idealista na
respectiva forma de Estado, e por isso toda a luta revolucionária se
dirige contra uma classe que até então dominou; 66 3) que em todas
as revoluções anteriores o modo da atividade permaneceu sempre
intocado e foi só uma questão de uma outra distribuição dessa
atividade, de uma nova repartição do trabalho a outras pessoas,
ao passo que a revolução comunista se dirige contra o modo da ati-
vidade até os nossos dias, elimina o trabalho 67 e supera [aufhebt] o
domínio de todas as classes suprimindo as próprias classes, porque
é realizada pela classe que na sociedade não vale como uma classe,
66 [Nota marginal de Marx:] Que as pessoas estão interessadas em conservar o atual estado
da produção.
67 [Cortado no manuscrito:] ... a forma moder[na] da atividade sob a qual o domínio de...
56
Kar l M a r x
não é reconhecida como uma classe, é a expressão da dissolução
de todas as classes, nacionalidades etc., no seio da sociedade atual;
e 4) que, tanto para a produção massiva dessa consciência comu-
nista quanto para a realização da própria causa, é necessária uma
transformação massiva dos homens que só pode processar-se num
movimento prático, numa revolução-, que, portanto, a revolução não
é só necessária porque a classe dominante de nenhum outro modo
pode ser derrubada, mas também porque a classe que a derruba só
numa revolução consegue sacudir dos ombros toda a velha porcaria
[Dreck\ e tornar-se capaz de uma nova fundação da sociedade. 68
[7. Resumo da concepção materialista da história]
[24] Essa concepção da história assenta, portanto, no de-
senvolvimento do processo real da produção, partindo logo da
produção material da vida imediata, e na concepção da forma
68 [Cortado no manuscrito:] Ao passo que todos os comunistas, tanto na França quanto na
Inglaterra e na Alemanha, há muito estão de acordo sobre esta necessidade da revolução,
o sagrado Bruno continua a sonhar tranquilamente, e opina que o “Humanismo Real”,
isto é, o comunismo, será colocado “no lugar do espiritualismo” (que náo tem qualquer
lugar) apenas para que conquiste respeito. Então — continua o seu sonho - teria na verdade
“chegado a salvação, a Terra [teria sido] feita Céu e o Céu Terra”. (O teólogo continua a
náo poder esquecer o céu.) “Então a alegria e a glória ressoarão nas harmonias celestiais
por toda a eternidade” (p. 140). O sagrado padre da Igreja terá por certo uma grande
surpresa quando o dia do juízo final, em que tudo isso se consumará, romper sobre ele —
um dia cuja aurora vermelha é o reflexo no céu das cidades em chamas, quando ressoarem
nos seus ouvidos, no meio dessas “harmonias celestiais”, as melodias da Marselhesa e da
Carmagnole com o troar indispensável dos canhões, e a guilhotina a marcar o compasso;
quando a “massa” infame bradar ça ira, ça ira, e suprimir a “Consciência de Si” por
meio do candeeiro [Marselhesa, Carmagnole, Ça irat canções revolucionárias do período
da revolução burguesa francesa de fins do século 18. A última canção tem o seguinte
refrão: ‘Ah! ça ira, ça ira, ça ira, les aristocrates à la lanterne. Ah, ça ira, ça ira, ça ira, les
aristocrates on les pendra!" (“Ah! isto irá, isto irá, isto irá, os aristocratas ao candeeiro.
Ah! isto irá, isto irá, isto irá, os aristocratas enforcá-los-emos!”)]. O sagrado Bruno não
tem o menor motivo para esboçar para si um quadro edificante de “alegria e glória para
toda a eternidade”. Renunciamos ao prazer de construir a priori o comportamento de
S. Bruno no dia do juízo final. É também difícil de decidir se os prolétaires en revolution
teriam de ser entendidos como “Substância”, como “Massa” que quer derrubar a crítica,
ou como “Emanação” do espírito ao qual falta ainda, entretanto, a consistência necessária
para digerir os conceitos de Bauer.
57
A IDEOLOGIA ALEMÃ
de intercâmbio intimamente ligada a esse modo de produção e
por ele produzida, ou seja, a sociedade civil 69 nos seus diversos
estágios, como base de toda a história, e bem assim na represen-
tação da sua ação como Estado, explicando a partir dela todos os
diferentes produtos teóricos e formas da consciência — a religião,
a filosofia, a moral etc. etc. — e estudando a partir destas o seu
nascimento; desse modo, naturalmente, a coisa pode também ser
apresentada na sua totalidade (e por isso também a ação recípro-
ca dessas diferentes facetas umas sobre, as outras). Ao contrário
da visão idealista da história, não tem de procurar em todos os
períodos uma categoria, pois permanece constantemente no solo
histórico; não explica a práxis a partir da ideia, explica as for-
mações das idéias [Ideenformationen} a partir da práxis material,
e chega, em consequênciadisso, ao resultado70 de que todas as
formas e produtos da consciência podem ser resolvidos, não pela
crítica espiritual, pela dissolução na “Consciência de Si” ou pela
transformação em “fantasmas”, “espectros”, “visões” 7 ’ etc., mas
apenas pela subversão [Umsturz\ prática das relações sociais reais
de que derivam essas fantasias idealistas — a força motora da his-
tória, também da religião, da filosofia e de toda as demais teorias,
não é a crítica, mas sim a revolução. Ela mostra que a história não
termina resolvendo-se na “Consciência de Si” como “espírito do
espírito”, 72 mas que nela, em todos os estágios, se encontra um
resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação
historicamente criada com a natureza e dos indivíduos uns com
os outros que a cada geração é transmitida pela sua predecessora,
uma massa de forças produtivas, capitais e circunstâncias que,
por um lado, é de fato modificada pela nova geração. Mas que,
Cf. nota 42, p. 41. (N.E.B.)
70 Na MEGA: chega, em consequência disso, a esse resultado. (N.E.)
71 Expressão do livro de M. Stirner O Ünico e a sua propriedade (M. Stirner, Der Einzige
undsein Eigenthum, Leipzig, 1845). (N.E.)
72 A expressão é de Bruno Bauer.
58
K A l< L M A H X
por outro lado também lhe prescreve as suas próprias condições
de vida e lhe dá um determinado desenvolvimento, um caráter
especial — , mostra, portanto, que as circunstâncias fazem os ho-
mens tanto [25] quanto os homens fazem as circunstâncias. Essa
soma de forças de produção, capitais e formas de intercâmbio
social, que todos os indivíduos e todas as gerações vêm encontrar
como algo dado, é o fundamento real daquilo que os filósofos
têm representado como “substância” e “essência do Homem”,
daquilo que têm hipostatizado e combatido - um fundamento
real que de modo algum é afetado nos seus efeitos e influências
sobre o desenvolvimento dos homens pelo fato de esses filósofos
se rebelarem contra ele como “Consciência de Si” e o “Único”.
Essas condições de vida que as diferentes gerações já encontram
vigentes é que decidem, também, se o abalo revolucionário pe-
riodicamente recorrente na história será suficientemente forte ou
não para deitar abaixo a base de todo o existente, - ou seja, por
um lado, as forças produtivas existentes, por outro, a formação de
uma massa revolucionária que faz a revolução não apenas contra
estas ou aquelas condições da sociedade anterior, mas contra a
própria “produção da vida” vigente até agora, contra a “atividade
total” em que se baseava — e quando esses elementos materiais
de uma revolução [Umwãlzung\ total não estão presentes, então
é completamente indiferente para o desenvolvimento prático
que a idéia, dessa transformação profunda já tenha sido expressa
centenas de vezes - como o prova a história do comunismo.
[8. Falta de fundamento da concepção anterior da história,
a concepção idealista, particularmente da filosofia alemã
pós-hegeliana]
Toda a concepção da história até hoje ou deixou, pura e sim-
plesmente, por considerar essa base real da história, ou viu nela
apenas algo de secundário e sem qualquer conexão com o curso
histórico. A história tem, por isso, de ser sempre escrita segundo
59
A IDEOLOGIA ALEMÃ
um critério que lhe é extrínseco; a produção real da vida aparece
como pré-histórico73 primitiva, enquanto o que é histórico aparece
como existindo separado da vida em comum, como extrassupra-
terreno. A relação dos homens com a natureza fica, desse modo,
excluída da história, pelo que é gerada a oposição entre natureza
e história. Daí que tal concepção só tenha podido ver na história
ações políticas de chefes e de Estados e lutas religiosas e teóricas
em geral, e tenha tido, em especial, em cada época histórica, de
partilhar da ilusão dessa época. Por exemplo, se uma época imagina
ser determinada por motivos puramente “políticos” ou “religiosos”,
embora a “religião” e a “política” sejam apenas formas dos seus mo-
tivos reais, o seu historiador aceita essa opinião. A “imaginação”, a
“representação” desses homens determinados sobre a sua práxis real
é transformada no único poder determinante e ativo que domina e
determina a práxis desses homens. Quando a forma rudimentar em
que aparece a divisão do trabalho dos indianos e entre os egípcios
dá origem, nesses povos, ao sistema de castas no seu Estado e na sua
religião, o historiador acredita ser o sistema de castas [26] o poder
que gerou essa forma social rudimentar. Enquanto os franceses e os
ingleses se agarram pelo menos à ilusão política, que está mais perto
da realidade, os alemães movem-se no reino do “espírito puro” e
fazem da ilusão religiosa a força motora da história. A filosofia da
história de Hegel é a última consequência, levada à sua “expressão
mais pura”, de toda essa historiografia alemã, na qual a questão não
é a dos interesses reais, nem sequer dos interesses políticos, mas
dos pensamentos puros, e que depois tem de aparecer ao sagrado
Bruno como uma série de “pensamentos” que se devoram uns aos
outros e que por fim naufragam na “Consciência de Si” e, de um
modo ainda mais consequente, ao sagrado Max Stirner, que não
sabe absolutamente nada da história real, o curso histórico tem
75 Em alemão, Urgeschichtlich, literalmente antes da história. Não é pré-histórico enquanto
uma fase da história, mas como antes da história. (N.E.B.)
60
Kar l Marx
de aparecer como uma mera história de “cavaleiros”, salteadores e
espectros, face às visões dos quais ele naturalmente só sabe salvar-
se pela “impiedade” [Heillosigkeit]. 74 Essa concepção é realmente
religiosa, faz passar o homem religioso pelo homem original do
qual parte toda a história, e coloca, na sua imaginação, a produ-
ção de fantasias religiosas no lugar da produção real dos meios de
subsistência e da própria vida. Toda essa concepção da história,
juntamente com a sua dissolução e os escrúpulos e dúvidas dela
resultantes, é um assunto meramente nacional dos alemães e tem
interesse apenas local para a Alemanha, como, por exemplo, esta
questão importante, e recentemente muito tratada: como é que de
fato “se vem do reino de Deus para o reino dos homens”, como se
esse “reino de Deus” tivesse alguma vez existido em qualquer outra
parte que não na imaginação, e os doutos senhores não vivessem
continuamente, sem o saberem, no “reino dos homens” para o
qual agora procuram caminho, e como se o divertimento cientí-
fico, pois não é mais do que isso, de explicar a curiosidade dessa
nefelibatice75 teórica não residisse precisamente em, ao contrário,
demonstrar o seu nascimento a partir das relações terrenas reais.
A verdade é que, para esses alemães, a questão é sempre a de des-
fazer o contrassenso já existente [27] numa outra tolice qualquer,
ou seja, de pressuporem que todo esse contrassenso tem, de fato,
um sentido original que há que descobrir, ao passo que se trata
apenas de explicar essa fraseologia teórica a partir das relações reais
vigentes. A resolução [Aüflôsung} prática, real, dessa fraseologia,
a eliminação dessas representações da consciência dos homens, é
operada, como já dissemos, pela mudança das circunstâncias, e
não por meio de deduções teóricas. Para a massa dos homens, isto
é, para o proletariado, não existem essas representações teóricas,
74 [Nota marginal de Marx:] A historiografia dita objetiva consistiu precisamente em
conceber as relações históricas separadas da atividade. Caráter reacionário.
75 De nefelibato, o que ou quem vive nas nuvens. (N.E.B.)
61
A IDEOLOGIA ALEMÃ
e, portanto, para ele, não precisam ser resolvidas [aufglõst]; e se
essa massa teve quaisquer representações teóricas, por exemplo, a
religião, já há muito que estas se encontram resolvidas [aufgelôst]
pelas circunstâncias.
O que há de puramente nacional nessas questões e soluções
revela-se ainda no fato de esses teóricos acreditarem, com toda a
seriedade, que idéias malucas \Hirngespinste\ como “o Homem-
Deus”, “o Homem” etc., tivessem alguma vez presidido a cada
uma das épocas da história — o sagrado Bruno chega mesmo
aoponto de afirmar que só “a crí t ica e os críticos fizeram a
história” 76 — e de, quando eles próprios se dedicam a construções
históricas, saltarem sobre tudo o que é mais remoto e passarem
imediatamente do “Mongolismo” 7778 para a história autêntica e
“cheia de conteúdo”, isto é, a história dos Hallische e dos Deutsche
Jahrbücher™ e da barulhenta dissolução da escola hegeliana em
um desacordo geral. São esquecidas todas as outras nações, todos
os acontecimentos reais, o theatrum mundi [teatro do mundo
— latim] confina-se à Feira do Livro de Leipzig e às desavenças
mútuas da “crítica”, do “Homem” e do “Único”. 79 Se a teoria se dá
alguma vez ao trabalho de tratar de temas realmente históricos,
como, por exemplo, o século 18, os seus adeptos dão só a história
das representações, desligada dos fatos e dos desenvolvimentos
práticos que lhes são o fundamento, e mesmo assim apenas com
a intenção de apresentarem esse tempo como um estágio preli-
76 Essa expressão é retirada do artigo de B. Bauer “Caracterização de Ludwig Feuerbach”
(ver a revista Wigand ’s Vierteljahrsschrift, 1845, t. III, p. 139. (N.E.)
77 Expressão do livro de M. Stirner O Único e a sua propriedade. Em alemão Mongolentum,
referente à civilização MongoL (N.E.)
78 Hallische Jahrbücher e Deutsche Jahrbücher-. título abreviado da revista literário-filosófica
dos jovens hegelianos editada sob a forma de folhas diárias em Leipzig de janeiro de 1838
a junho de 1841 .0 título completo era HallischeJahrbücher für deutsche Wissenschaft und
Kunst (Anais de Halle sobre a ciência e a arte alemãs)-, de julho de 1841 a janeiro de 1843
passou a chamar-se Deutsche Jahrbücher für Wissenschaft und Kunst (Anais alemães sobre a
ciência e a arte). Em janeiro de 1843 a revista foi proibida pelo governo. (N.E.)
79 Ou seja, Bruno Bauer, Ludwig Feuerbach e Max Stirner.
62
K A R L M A R X
minar inacabado, como precursor ainda limitado da verdadeira
época histórica, ou seja, do tempo da luta dos filósofos alemães
de 1840-1844. A essa finalidade de escrever uma história de um
período anterior para fazer brilhar, com mais fulgor ainda, a gló-
ria de uma pessoa a-histórica e das suas fantasias corresponde o
fato de não se mencionar nenhum dos fatos realmente históricos,
nem mesmo as intervenções realmente históricas da política na
história, e de, em vez disso, se dar uma narrativa assente não em
estudos mas em construções e historietas de mexericos literários —
como aconteceu com o sagrado Bruno na sua já esquecida História
do século 18. s0 Esses patéticos e arrogantes merceeiros de idéias,
que crêem estar infinitamente acima de todos os preconceitos
nacionais, são, pois, na prática, a inda muito mais nacionais do
que os filisteus bebedores de cerveja que sonham com a unida-
de da Alemanha. Não reconhecem como históricos os atos de
outros povos, vivem na Alemanha pela Alemanha [28] e para a
Alemanha, transformam a canção do Reno80 81 num hino religio-
so, e conquistam a Alsácia e a Lorena roubando, não o Estado
francês, mas a filosofia francesa, e germanizando, não províncias
francesas, mas idéias francesas. Comparado aos sagrados Bruno e
Max, que no domínio universal da teoria proclamam o domínio
universal da Alemanha, Herr Venedey é um cosmopolita.
[9. Crítica adicional de Feuerbach, da sua concepção
idealista da história]
Dessas disputas torna-se também claro quanto Feuerbach se ilu-
de ao declarar-se, em virtude da qualificação “homem comunitário”
80 B. Bauer, Geschichte der Politik, CulturundAufklãrungdesachtzehnten Jahrhunderts, Bd.
1-2, Charlottenburg, 1843-1845 (B. Bauer, Historiada política, da cultura e das “luzes"
do século dezoito, tt. 1-2, Charlottenburg, 1843-1845)- (N.E)
81 Canção do Reno: do poema Der deutsche Rhein (O Reno alemão), do poeta pequeno-
burguês alemão N. Becker, muito utilizado pelos nacionalistas. Foi escrito em 1840 e
desde então muitas vezes musicado. (N.E.)
63
A IDEOLOGIA ALEMÃ
[Gemeinmensch], um comunista82 (WigancTs Vierteljahrsschrift, 1845,
Bd. 2), ao transformar comunista num predicado “do” Homem,
ou seja, ao julgar poder transformar a palavra comunista, que no
mundo que existe designa o adepto de um determinado partido
revolucionário, de novo numa mera categoria. Toda a dedução
de Feuerbach quanto à relação dos homens entre si não vai além
de provar que os homens precisam, e sempre precisaram, uns dos
outros. Ele quer estabelecer a consciência acerca desse fato, isto é,
como os demais teóricos quer apenas produzir uma consciência
correta acerca dum fato existente, ao passo que ao comunismo real
o que importa é derrubar este existente. De resto, reconhecemos
perfeitamente que Feuerbach, ao esforçar-se por criar a consciên-
cia precisamente desse fato, vai tão longe quanto qualquer teórico
pode ir sem deixar de ser um teórico e um filósofo. Mas o que é
característico é que os sagrados Bruno e Max coloquem a noção
de comunista de Feuerbach diretamente no lugar do comunista
real, o que em parte sucede precisamente para poderem combater
o comunismo também como “espírito do espírito”, como categoria
filosófica, como adversário da mesma condição - e da parte do
sagrado Bruno também por interesses pragmáticos.
Como exemplo do reconhecimento, e ao mesmo tempo desco-
nhecimento, do que existe - que Feuerbach continua a partilhar
com os nossos adversários -, recordamos a passagem da Filosofia do
futuro em que ele desenvolve [entwickelt\ que o ser de uma coisa ou
de um homem é, ao mesmo tempo, a sua essência, 83 que as deter-
82 Trata-se do artigo de L. Feuerbach “Sobre a ‘essência do cristianismo’ em relação ao
'Único e a sua propriedade’ “ publicado na revista Wigand‘s Vierteljahrsschrift, 1845, t.
II, pp. 193-205. O artigo termina assim: “Por isso, Feuerbach não pode ser chamado
de materialista, nem de idealista, nem de filósofo da identidade. O que é ele, então? Ele
é no pensamento o que é na realidade, no espírito o que é na carne, na essência o que é
nos sentidos — é o Homem, ou antes — uma vez que Feuerbach transporta a essência do
Homem apenas para a sua comunidade - é o Homem social, é comunista.” (N.E.)
83 L. Feuerbach, GrundsàtzederPhilosophiederZukunft, Zürich und Winterthur, 1843, S. 47 (L.
Feuerbach, Princípios da filosofia do futuro, Zurique e Winterthur, 1843, p. 47). Nas suas notas,
intituladas Feuerbach e provavelmente destinadas ao primeiro capítulo do primeiro tomo de
64
Kar l M a r x
minadas condições de existência, o modo de vida e a atividade de
um indivíduo animal ou humano são aquilo mesmo em que a sua
“essência” se sente satisfeita. Aqui se entendem todas as exceções
expressamente como acasos infelizes, como uma anormalidade
que não se pode alterar. Se, portanto, milhões de proletários não
se sentem de modo algum satisfeitos nas suas condições de vida, se
o seu “ser” [29] de modo algum corresponde à sua “essência”, isto
é, segundo a citação, uma desgraça inevitável que deve ser supor-
tada tranquilamente. Esses milhões de proletários ou comunistas,
porém, pensam de modo totalmente diferente, e prová-lo-ão a seu
tempo, quando, de um modo prático, por meio de uma revolu-
ção, estabelecerem a harmonia entre o seu “ser” e a sua “essência”.
Feuerbach, portanto, nunca fala do mundo do homem nesses casos,
refugia-se sempre na natureza exterior e, para mais, na natureza que
ainda não foi dominada pelos homens. Mas cada nova invenção,
cada avanço da indústria, separa outro pedaço desse domínio, pelo
que diminui continuamente a área que produz os exemplos ilustra-
tivos das proposições de Feuerbach. A “essência” do peixe é o seu
“ser”, a água — para ficarmos por essa proposição. A “essência” do
peixe de água doce é a água de um rio. Mas essa deixa de ser a “es-
sência” do peixe, e já não é um meio adequado de existência, assim
que o rio é posto ao serviço da indústria, assim que é poluído com
A ideologia alemá, Engels cita e comenta a passagem indicada do livro de Feuerbach: “O Ser
nâo é um conceito universal separável das coisas. É uno com o que existe... O Ser é a posição
da Essência.O que é a minha essência é o meu ser. O peixe está na água, mas desse Ser não se
pode separar a sua Essência. Já a linguagem identifica Ser e Essência. Só na vida humana,
mas também apenas em casos anormais e infelizes, o Ser se aparta da Essência — acontece que
não se tem a Essência onde se tem o Ser, mas precisamente por causa desse divórcio também
verdadeiramente não se está com a alma onde realmente se está com o corpo. Tu só estás onde
está o teu coração. Mas todas as coisas — à excepção dos casos contrários à natureza — gostam de
estar onde estão e de ser o que são (p. 47). “Um belo panegírico à ordem vigente. À exceção de
casos contrários à natureza e anormais, que são poucos, gostas de com sete anos ser porteiro
de uma mina de carvão e de passar catorze horas sozinho no escuro, e porque esse é o teu Ser,
essa é também a tua Essência. Do mesmo modo piecer num selfactor. [Em inglês no original:
piecer— rapariga que trabalha com o selfactor, vigiando a máquina e atando de novo os fios
quebrados; selfactor- parte automática de uma máquina de fiar] É a tua ‘Essência’ estares
subordinado a um ramo do trabalho.” (N.E.)
65
A IDEOLOGIA ALEMÃ
tintas e outros produtos residuais, e navegado por barcos a vapor,
ou assim que a sua água é conduzida para canais onde bastam os
esgotos para privar o peixe do seu meio de existência. A explicação
de que todas essas contradições são inevitáveis anormalidades não
difere essencialmente da consolação que o sagrado Max Stirner
oferece aos descontentes, quando lhes diz que essa contradição é a
contradição própria deles e essa situação aflitiva a situação aflitiva
própria deles, pelo que deveriam ou tranquilizar o espírito, guardar
para si próprios o seu horror, ou revoltar-se contra ela de qualquer
modo fantástico. Do mesmo modo, pouco difere da alegação de são
Bruno de que essas circunstâncias infelizes se devem ao fato de que
as pessoas estão presas no esterco da “substância”, não avançaram
para a “absoluta Consciência de Si”, e não compreendem que essas
condições adversas são espírito do seu espírito.
66
[III]
[1. A classe dominante e consciência dominante. Formação
da concepção de Hegel do domínio do espírito na história]
[30] As idéias da classe dominante são, em todas as épocas,
as idéias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material do-
minante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual
dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a
produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para
a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo,
submetidas em média as idéias daqueles a quem faltam os meios
para a produção espiritual. As idéias dominantes não são mais do
que a expressão ideal [ideell\ das relações materiais dominantes, as
relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto,
das relações que precisamente tornam dominante uma classe,
portanto as idéias do seu domínio. Os indivíduos que constituem
a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência,
e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominam como
classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é
evidente que o fazem em toda a sua extensão e, portanto, entre
outras coisas, dominam também como pensadores, como produ-
tores de idéias, regulam a produção e a distribuição de idéias do
seu tempo; que, portanto, as suas idéias são as idéias dominantes
da época. Por exemplo, em uma época e num país em que a força
do rei, a aristocracia e a burguesia lutam entre si pelo domínio, em
que portanto o domínio está dividido, revela-se ideia dominante
A IDEOLOGIA ALEMÃ
a doutrina da divisão dos poderes, que é agora declarada uma “lei
eterna”.
A divisão do trabalho, que atrás (pp. [44-50]) 84 encontramos
como uma das principais forças da história até os nossos dias,
manifesta-se agora também na classe dominante como divisão do
trabalho espiritual e [31] material, pelo que no seio dessa classe uma
parte surge como os pensadores dessa classe (os ativos ideólogos
criadores de conceitos da mesma, os quais fazem da elaboração
[Ausbildung\ da ilusão dessa classe sobre si própria a sua principal
fonte de sustento), ao passo que os outros têm uma atitude mais
passiva e receptiva em relação a essas idéias e ilusões, pois que na
realidade são eles os membros ativos dessa classe e têm menos tem-
po para criar ilusões e idéias sobre si próprios. No seio dessa classe
pode essa sua cisão chegar a uma certa oposição e hostilidade entre
ambas as partes, mas que por si própria desaparece em todas as
colisões práticas em que a própria classe fica em perigo, desapare-
cendo então também a aparência de que as idéias dominantes não
seriam as idéias da classe dominante e teriam um poder distinto
do poder dessa classe. A existência de idéias revolucionárias numa
época determinada pressupõe já a existência de uma classe revo-
lucionária, e acerca dos seus pressupostos já foi dito o necessário
(pp. [5O-53]). 85
Ora, se na concepção do curso da história separarmos da clas-
se dominante as idéias da classe dominante, se lhes atribuirmos
uma existência autônoma, se nos limitarmos a que numa época
dominaram estas e aquelas idéias, sem nos preocuparmos com as
condições da produção e com os produtores dessas idéias, se, por-
tanto, deixarmos de fora os indivíduos e as condições do mundo
que estão na base das idéias, então poderemos dizer, por exemplo,
que durante o tempo em que dominou a aristocracia dominaram
M Ver II, 3 e 4. (N.E.)
s' Ver II, 5 e 6. (N.E.)
68
Kar l Ma rx
os conceitos honra, lealdade etc., durante o domínio da burguesia
dominaram os conceitos liberdade, igualdade etc. 86 Em média,
é isso que a própria classe dominante imagina. Essa concepção
da história, que a todos os historiadores é comum, em especial a
partir do século 18, há de necessariamente se chocar com o [32]
fenômeno de que dominam idéias cada vez mais abstratas, isto é,
idéias que assumem cada vez mais a forma da universalidade. E
que cada nova classe que se coloca no lugar de outra que dominou
antes dela é obrigada, precisamente para realizar o seu propósito,
a apresentar o seu interesse como o interesse universal de todos os
membros da sociedade, ou seja, na expressão ideal \ideell\\ a dar
às suas idéias a forma da universalidade, a apresentá-las como as
únicas racionais e universalmente válidas. A classe revolucionária, 87
já que tem pela frente uma classe, surge desde o princípio não como
classe, mas como representante de toda a sociedade, ela aparece
como a massa inteira da sociedade face à única, dominante, classe. 88
E consegue-o porque, em princípio, o seu interesse anda realmente
ainda mais ligado ao interesse comum \gemeischaftlichen\ de to-
das as demais classes não dominantes, porque sob a pressão das
condições até aí vigentes ele não pôde ainda desenvolver-se como
interesse particular de uma classe particular. A sua vitória serve
também, por isso, a muitos indivíduos das demais classes que não
se tornam dominantes, mas apenas na medida em que permite a
esses indivíduos subirem à classe dominante. Quando a burguesia
86 [Riscado no manuscrito:] Esses “conceitos dominantes” terão uma forma tanto mais geral
e ampla quanto mais a ciasse dominante é obrigada a apresentar o seu interesse como o
de todos os membros da sociedade. A classe dominante tem, ela própria, em média, a
noção de que esses seus conceitos dominam, e distingue-os de representações dominantes
de épocas anteriores apenas pelo fato de as apresentar como verdades eternas.
87 Literalmente, a classe revolucionante, Die revolutionerende Klasse.
88 [Nota marginal de Marx:] (A universalidade corresponde: 1) à classe contra o estamento
[Stand]-, 2) à concorrência, ao intercâmbio mundial etc.; 3) à grande força numérica
da classe dominante; 4) à ilusão dos interesses comuns [gemeinschaftlichen] (sendo no
princípio essa ilusão verdadeira); 5) ao delírio dos ideólogos e à divisão do trabalho.)
69
A IDEOLOGIA ALEMÃ
francesa derrubou o domínio da aristocracia, tornou dessemodo
possível a muitos proletários subirem acima do proletariado, mas
apenas na medida em que se tornaram burgueses. Cada nova classe,
por isso, instaura o seu domínio apenas sobre uma base mais ampla
do que a até aí dominante, pelo que, em contrapartida, mais tarde
também o antagonismo da classe não dominante contra a agora
dominante se desenvolve muito mais aguda e profundamente.
Por ambas as razões é determinado o fato de que a luta a travar
contra a nova classe dominante por sua vez visará uma negação
mais radical, mais decidida, das condições sociais até aí vigentes
[33] do que fora possível a todas as classes que anteriormente
procuraram dominar.
Toda essa aparência de que o domínio de uma determinada
classe seria apenas o domínio de certas idéias cessa, naturalmente,
por si mesma logo que o domínio de classes em geral deixa de ser a
forma da ordem social, logo que, portanto, deixa de ser necessário
apresentar um interesse particular como geral ou “o geral” como
dominante.
Uma vez separadas as idéias dominantes dos indivíduos do-
minantes, e sobretudo das relações decorrentes de uma dada fase
do modo de produção, e atingido assim o resultado de que na
história dominam sempre as idéias, é muito fácil abstrair dessas
várias idéias “a ideia”, a Ideia etc., como aquilo que domina na
história e, desse modo, entender todas as diferentes idéias e con-
ceitos como “autodeterminações” do conceito que se desenvolve
na história. E , então, também é natural que todas as relações dos
homens possam ser derivadas do conceito de Homem, do Homem
tal como representado, da essência do Homem, do Homem. Foi
o que fez a filosofia especulativa. O próprio Hegel confessa, no
fim da Filosofia da História, que “apenas considerou o curso do
conceito” e que na história apresentou a “verdadeira teodiceia” (p.
446). Podemos agora voltar aos produtores do “conceito”, aos teó-
ricos, ideólogos e filósofos, e chegamos então a esta conclusão: os
70
K A l< L M A K X
filósofos, os pensadores enquanto tais, desde sempre dominaram
na história — uma conclusão que, como vemos, já foi expressa por
Hegel. 89 Todo o truque de demonstrar na história a supremacia do
espírito (a hierarquia, em Stirner) reduz-se, portanto, aos seguintes
três esforços.
[34] N° 1. E preciso separar as idéias dos que dominam por
razões empíricas, em condições empíricas e como indivíduos ma-
teriais, desses mesmos que dominam, e por essa via reconhecer o
domínio das idéias ou ilusões na história.
N° 2. E preciso pôr uma ordem nesse domínio das idéias, de-
monstrar uma conexão mística entre as idéias que sucessivamente
dominam, o que se consegue pela via de considerá-las “autodeter-
minações do conceito” (e isso é possível pelo fato de essas idéias,
graças à sua base empírica, estarem realmente em conexão entre
si, e pelo fato de elas, entendidas como meras idéias, se tornarem
autodistinções, diferenças feitas pelo pensamento).
N° 3. Para eliminar o aspecto místico desse “conceito que se
autodetermina”, transformam-no numa pessoa — “a Consciência
de Si” — , ou, para parecerem verdadeiramente materialistas, numa
série de pessoas que representam “o conceito” na história, nos
“pensadores”, nos “filósofos”, nos ideólogos, que agora de novo
são entendidos como os fabricantes da história, como o “Conselho
dos Guardiães”, como os dominantes. 90 Desse modo eliminaram
da história todos os elementos materialistas e puderam então dar
rédea solta ao seu corcel especulativo.
[35] Enquanto na vida comum cada shopkeeper [lojista — inglês]
sabe muito bem distinguir entre aquilo que alguém pretende ser e
89 Marx e Engels referem-se ao terceiro capítulo do primeiro tomo de A ideologia alemã.
Essa parte do capítulo sobre Feuerbach inicialmente fazia parte desse terceiro capítulo
e estava imediatamente a seguir ao texto a que aqui se referem Marx e Engels. Na pas-
sagem indicada do terceiro capítulo Marx e Engels citam a obra de Hegel Filosofia da
História e outras. (N.E.)
90 [Nota marginal de Marx:] O homem = o “espirito humano pensante”.
71
A IDEOLOGIA ALEMÃ
aquilo que é realmente, a verdade é que a nossa historiografia ainda
náo atingiu esse reconhecimento trivial. Ela acredita que todas as
épocas são, literalmente, aquilo que dizem e imaginam ser.
Esse método histórico que dominou na Alemanha, e especial-
mente a razão por que dominou, têm de ser explicados a partir
da conexão com a ilusão dos ideólogos em geral, por exemplo, as
ilusões dos juristas, políticos (entre os quais, também, os estadistas
práticos), a partir das divagações dogmáticas e distorções desses
sujeitos, 91 ilusão aquela que muito simplesmente se explica pela
sua posição prática na vida, pela sua atividade e pela divisão do
trabalho.
” “Sujeitos” no sentido pejorativo. Poderia ser também “tipos”.
72
[IV]
[1. Instrumentos de produção e formas de propriedade]
...[40] 92 encontrado. Do primeiro, decorre o pressuposto de
uma divisão do trabalho já desenvolvida e de um extenso comér-
cio; do segundo, a localidade. No primeiro caso, os indivíduos
têm de ser reunidos, no segundo caso descobrem-se, a par do ins-
trumento de produção dado, a si próprios como instrumentos de
produção. Entra aqui, portanto, a diferença entre os instrumentos
de produção naturais e os que foram criados pela civilização. A
terra (a água etc.) pode ser considerada como um instrumento de
produção natural. No primeiro caso, no caso de um instrumento
de produção natural, os indivíduos são subordinados à natureza.
No segundo caso, a um produto do trabalho. No primeiro caso, a
propriedade (propriedade da terra) surge, por isso, também como
domínio natural direto, no segundo como domínio do trabalho,
em especial do trabalho acumulado, do capital. O primeiro caso
pressupõe que os indivíduos se encontram ligados por algum vín-
culo, seja a família, a tribo, a própria terra etc.; o segundo caso, que
são independentes uns dos outros e apenas unidos pela troca. No
primeiro caso, a troca é principalmente uma troca entre os homens
e a natureza, uma troca em que o trabalho de um é trocado pelos
produtos da outra; no segundo caso, ela é, predominantemente,
troca dos homens entre si. No primeiro caso, basta o senso co-
92 Aqui faltam quatro páginas no manuscrito.
A IDEOLOGIA ALEMÃ
mum dos homens, a atividade corporal e a espiritual não estão
ainda separadas; no segundo caso, tem de estar já consumada na
prática a divisão entre trabalho espiritual e corporal.93 No primeiro
caso, o domínio do proprietário sobre os não proprietários pode
assentar em relações pessoais, sobre uma espécie de comunidade;
no segundo caso, ele tem de ter assumido uma figura coisificada
\dingliche Gestalt\ num terceiro elemento, o dinheiro. No primeiro
caso, existe a pequena indústria, mas subordinada à utilização do
instrumento de produção natural, e por isso sem distribuição do
trabalho por vários indivíduos; no segundo caso, a indústria existe
apenas na e pela divisão do trabalho.
[41] Até aqui temos tomado os instrumentos de produção como
ponto de partida, e já aqui se revelou a necessidade da propriedade
privada para certas etapas industriais. Na industrie extr active [in-
dústria extrativa — francês], a propriedade privada ainda coincide
completamente com o trabalho; na pequena indústria, e em toda
a agricultura até os nossos dias, a propriedade é consequência
necessária dos instrumentos de produção existentes; na grande
indústria, pela primeira vez, é produto desta a contradição entre
o instrumento de produção e a propriedade privada, e para a ge-
ração \Erzeugun dessa contradição a grande indústria deve estar
muito desenvolvida. Portanto, só com a grande indústria é também
possível a abolição da propriedade privada.
[2. A divisão do trabalho material e intelectual. Separação
da cidade e do campo. O sistema das corporações] 94
A maior divisão do trabalho material e espiritual \geistigeri\ é
a separação da cidade e do campo. A oposição \Gegensatz\ entre
” Marx e Engels aqui fazem a contraposição entre kõrperliche e geistige, literalmente,corpóreo, corporal e espiritual. Preferimos essa alternativa, por isso, à tradução desses
termos por manual e intelectual. (N.E.B.)
’4 Nas edições WERKE... consta o seguinte subtítulo - B. A base real da ideologia [1]
Intercâmbio e força produtiva (N.E.B.)
74
K A R L M A R X
a cidade e o campo começa com a transição da barbárie para a
civilização, do sistema tribal para o Estado, da localidade para a
nação, e estende-se através de toda a história da civilização até os
nossos dias (a Anti-Corn-Law League). 95
Com a cidade, está ao mesmo tempo dada a necessidade da
administração, da polícia, dos impostos etc., em suma, da orga-
nização acima dos indivíduos \des Gemeindewesens}'* e, assim, da
política em geral. Aqui se revelou primeiro a divisão da população
em duas grandes classes, a qual assenta diretamente na divisão do
trabalho e nos instrumentos de produção. A cidade é imediata-
mente, de fato, a concentração da população, dos instrumentos
de produção, do capital, dos prazeres, das necessidades, ao passo
que o campo torna patente precisamente a realidade oposta,
o isolamento e a solidão. A oposição entre cidade e campo só
pode existir no quadro da propriedade privada. E a expressão
mais crassa da subsunção do indivíduo à divisão do trabalho, a
uma atividade determinada que lhe é imposta, uma subsunção
que faz de um o idiota animal da cidade e, do outro, o idota
[boniert\ animal do campo, e que dia a dia de novo produz a
oposição dos interesses de ambos. O trabalho é aqui, de novo,
o principal, o poder sobre os indivíduos, e enquanto este último
existir tem de existir também a propriedade privada. A abolição
” Liga contra as leis dos cereais: organização da burguesia industrial inglesa, fundada em
1838 por Cobden e Bright, fabricantes de Manchester. As chamadas leis dos cereais, que
tinham como objetivo limitar ou proibir a importação de cereais, foram introduzidas na
Inglaterra em benefício dos grandes latifundiários. Apresentando a exigência da total
liberdade de comércio, a Liga pretendia a abolição das leis dos cereais com o objetivo
de reduzir os salários dos operários e enfraquecer as posições políticas e econômicas da
aristocracia agrária. Em resultado dessa luta as leis dos cereais foram revogadas em 1846,
o que significava a vitória da burguesia industrial sobre a aristocracia agrária. (N.E.)
96 Gemeindwesens é quase intraduzível. Gemein é o comum, o vulgar e, também, como
em allgemein o universal e, por extensão, o comunitário, no sentido de aquilo que é a
todos comum. Aqui, todavia, o conteúdo é distinto: a gênese de uma organização que
não é mais tribal, mas é do Estado; que não é mais comunitária mas sim uma criatura,
um ser [u>esens], que se impõe sobre os indivíduos pela administração, pela polícia, pela
política etc. (N.E.B.)
75
A IDEO L O G IA ALEMÃ
da oposição de cidade e campo é uma das primeiras condições
[42] da comunidade, uma condição que, por sua vez, depende
de um grande número de premissas materiais e que a simples
vontade não consegue preencher, como qualquer pessoa vê à
primeira vista. (Essas condições têm ainda de ser desenvolvidas.)
A separação de cidade e campo pode ser também tomada como
a divisão de capital e propriedade fundiária, como o começo de
uma existência e desenvolvimento do capital independente da
propriedade fundiária, do capital, ou seja, uma propriedade que
tem a sua base meramente no trabalho e na troca.
Nas cidades que, na Idade Média, não foram entregues
prontas pela história anterior e se formaram do nada a partir dos
servos da gleba que se libertaram, o trabalho particular de cada
um era a sua única propriedade, além do pequeno capital que
trazia consigo e que consistia quase só da mais necessária ferra-
menta do ofício. A concorrência dos servos fugidos que acorriam
à cidade, a guerra permanente do campo contra as cidades e, com
ela, a necessidade de um poder armado organizado das cidades,
o vínculo da propriedade comum de um determinado trabalho,
a necessidade de edifícios comuns para venda das suas merca-
dorias numa altura em que os artesãos eram, ao mesmo tempo,
commerçants [comerciantes — francês], e a consequente exclusão
desses edifícios dos que nada tinham a ver com a profissão, opo-
sição de interesses dos diferentes ofícios entre si, a necessidade
de proteção do trabalho penosamente aprendido e a organização
feudal de todo o país foram as causas da união dos trabalhadores
de cada um dos ofícios em corporações. Não temos aqui de en-
trar nas múltiplas modificações do sistema corporativo surgidas
ao longo de desenvolvimentos históricos posteriores. A fuga dos
servos para as cidades teve ininterruptamente lugar durante toda
a Idade Média. Esses servos, perseguidos no campo pelos seus
senhores, vinham isolados para as cidades, onde já encontravam
uma comunidade organizada [organisiert Geimende\ contra a qual
76
Kar l M a r x
nada podiam e na qual 97 t inham de se submeter à posição que
lhes apontavam a necessidade do seu trabalho e o interesse dos
seus concorrentes organizados da cidade. Esses trabalhadores, que
chegavam isoladamente, nunca puderam constituir um poder,
porque se o seu trabalho era regulado pelas corporações e tinha
de ser aprendido, os mestres das corporações os submetiam a si
e os organizavam segundo o seu interesse; ou, se o seu trabalho
não t inha de ser aprendido, e não era por isso regulado pelas
corporações, mas trabalho assalariado por dia [Taglõhnerarbeit\,
nunca chegaram a uma organização, e permaneceram plebe
desorganizada. A necessidade do trabalho dos diaristas [Taglõh-
nerarbeit\ nas cidades criou a plebe.
Essas cidades eram verdadeiras “associações”, 98 criadas pela
necessidade [43] imediata, pelo cuidado com a proteção da pro-
priedade e para multiplicar os meios de produção e os meios de
defesa de cada um dos membros. A plebe dessas cidades ficou
privada de todo o poder pelo fato de se compor de indivíduos
alienados \fremderi\ entre si e que haviam chegado isoladamente, os
quais, sem organização, se contrapunham a um poder organizado,
equipado para a guerra, que os vigiava zelosamente. Os oficiais e
aprendizes estavam organizados, em cada ofício, da maneira que
melhor correspondia ao interesse dos mestres; a relação patriarcal
em que se encontravam face aos mestres dava a estes um poder
duplicado, por um lado na sua influência direta sobre toda a vida
dos oficiais, e depois porque, para os oficiais, trabalharem com o
mesmo mestre era um vínculo real que os unia face aos oficiais dos
outros mestres e deles os separava, e finalmente os oficiais estavam
desde logo atados à ordem vigente pelo interesse que tinham em
tornar-se eles próprios mestres. Enquanto, por isso, a plebe pelo
menos se ergueu em motins contra toda a ordem da cidade, os
” Na MEGA: nada podiam, na qual... (N.E.)
98 Associação (Vereiri), segundo Stirner, agrupamento voluntário de egoístas. (N.E.)
77
A IDE O L O C IA ALEMÃ
quais, no entanto, dada a sua falta de poder, nâo produziram
quaisquer efeitos, os oficiais chegaram tão-só a pequenas insu-
bordinações no seio de corporações separadas e que integravam a
existência do próprio sistema das guildas. Os grandes levantes da
Idade Média partiram todos do campo, mas ficaram igualmente
sem qualquer êxito devido à dispersão dos camponeses e à crueza
que dela decorre.
O capital, nessas cidades, era um capital natural [naturwüchsiges
Kapital], que consistia da casa, das ferramentas do ofício e dos
compradores hereditários naturais, e que, devido ao intercâmbio
não desenvolvido e à escassa circulação, tinha de se transmitir de
pais a filhos como irrealizável. Não era esse capital, ao contrário
do moderno, um capital avaliável em dinheiro e para o qual é
indiferente estar investido nesta ou naquela coisa, mas um capital
diretamente ligado ao trabalho particular do possuidor, absolu-
tamente inseparável deste e, nessa medida, um capital estamental
\stãndisches Kapita[\. xw>
A divisão do trabalho nas cidades entre [44] as diferentes
corporações era ainda [completamentenatural]99 * 101 e nas próprias
corporações não era realizada entre os diferentes trabalhadores.
Cada trabalhador tinha de ser versado num ciclo inteiro de tra-
balhos, t inha de saber fazer tudo o que se podia fazer com as
suas ferramentas; o intercâmbio reduzido e a escassa ligação das
diferentes cidades entre si, a falta de população e a limitação das
necessidades não permitiram o aparecimento de uma maior divisão
do trabalho, e por isso todo aquele que queria ser mestre tinha de
dominar completamente o seu ofício. Por isso, nos artesãos me-
dievais se encontra ainda um interesse no seu trabalho especial e
99 Em alemão naturwüchsig-stãndische Kapital. Trata-se do capital que se acumulou “natu-
ralmente ’ sob a ordem feudal e, portanto, anterior à da expansão comercial. (N.E.B.)
Estamental, aqui, referente às ordens ou estamentos em que se organizava a sociedade
feudal.
101 O manuscrito encontra-se deteriorado nesta passagem.
78
K A R L M A R X
em ser perito nele que podia elevar-se a um certo sentido artístico
limitado. Mas também por isso cada artesão medieval se entrega-
va completamente ao seu trabalho, mantinha com ele uma grata
relação de servo e estava muito mais subsumido a ele do que o
trabalhador moderno, ao qual o seu trabalho é indiferente.
[3. Maior divisão do trabalho. Separação do comércio
e da indústria. Divisão do trabalho entre as várias
cidades. Manufatura]
A expansão seguinte da divisão do trabalho foi a separação
da produção do intercâmbio, a formação de uma classe especial
de comerciantes, uma separação que, nas cidades herdadas pela
história, 102 fora transmitida (entre outras coisas, com os judeus) e
que nas cidades recém-formadas surgiu muito cedo. Estava, assim,
dada a possibilidade de uma ligação comercial que ultrapassava
os limites locais, uma possibilidade cuja realização dependia dos
meios de comunicação existentes, da situação da segurança pública
no campo condicionado pelas condições políticas (em toda a Idade
Média, como é sabido, os comerciantes deslocavam-se em caravanas
armadas), e das necessidades mais rudes ou mais desenvolvidas,
dependendo do nível de cultura respectivo, da região acessível ao
intercâmbio.
Com o intercâmbio constituído numa classe especial, com a
expansão do comércio pelos comerciantes para além dos arredores
imediatos da cidade, surge imediatamente uma ação recíproca
entre a produção e o intercâmbio. As cidades entram em ligação
umas com as outras, de uma cidade são levadas para outra novas
ferramentas, e a divisão entre a produção e o intercâmbio em
breve dá origem a uma nova divisão da produção entre [45] cada
uma das cidades, cada uma das quais em breve explora um ramo
102 historisch überlieferten Stãten, cidades que já existiam antes e que foram transmitidas pela
história como herança para o processo de renascimento comercial e urbano. (N.E.B.)
79
A I D E O 1. O G I A ALEMÃ
predominante da indústria. A limitação local inicial começa a ser
gradualmente dissolvida.
Se as forças produtivas ganhas numa localidade, pricipalmente
inventos, se perdem ou não para o desenvolvimento posterior de-
pende simplesmente da expansão do intercâmbio. Enquanto não
existe um intercâmbio que ultrapasse a vizinhança imediata, cada
invento tem de ser feito separadamente em cada localidade, e simples
contingências, como irrupções de povos bárbaros, as próprias guerras
habituais, são o bastante para fazer regressar uma região com forças
produtivas e necessidades desenvolvidas ao ponto em que tem de
começar tudo de princípio. Na história inicial, cada invento tinha
de ser feito diariamente de novo e independentemente em cada lo-
calidade. Quão pouco a salvo de uma ruína completa estão forças
produtivas desenvolvidas, até mesmo quando existe um comércio
relativamente bastante extenso, demonstram os Fenícios, 103 cujos
inventos em grande parte se perderam por longo tempo devido à
expulsão desta nação do comércio, à conquista de Alexandre e ao
declínio que se lhe seguiu. E o mesmo acontece na Idade Média,
por exemplo, com os vitrais. Só quando o intercâmbio se tornou
intercâmbio mundial e tem por base a grande indústria é que está
assegurada a duração das forças produtivas conquistadas.
A divisão do t rabalho entre as diferentes cidades teve por
consequência imediata o nascimento das manufaturas nos ramos
de produção que tinham ultrapassado o sistema corporativo. O
primeiro florescimento das manufaturas — na Itália e, mais tarde,
na Flandres — teve como seu pressuposto histórico o intercâmbio
com nações estrangeiras. Em outros países - Inglaterra e Fran-
ça, por exemplo — as manufaturas limitaram-se inicialmente ao
mercado interno. As manufaturas têm por pressuposto, além dos
mencionados, ainda uma concentração já avançada da população
— nomeadamente no campo — e do capital, tendo este começado
,w [Nota marginal de Marx:] e os vitrais na Idade Média.
80
Kar l M a r x
a acumular-se nas mãos de indivíduos, em parte nas guildas, a
despeito das leis corporativas, em parte entre os comerciantes.
[46] Foi o trabalho que desde o início pressupôs uma máquina,
ainda que na mais tosca das formas, que muito rapidamente se
mostrou o mais capaz de desenvolvimento. A tecelagem, ante-
riormente exercida no campo pelos camponeses, como atividade
secundária, para se proverem com o vestuário necessário, foi o
primeiro trabalho a receber um impulso e uma maior evolução
com a expansão do intercâmbio. A tecelagem foi a primeira, e
permaneceu a principal, manufatura. A procura de tecidos para
o vestuário, que crescia à medida que aumentava a população, o
começo da acumulação e mobilização do capital natural devido
à circulação acelerada, a necessidade do luxo assim provocada e
favorecida pela gradual expansão do intercâmbio em geral, deram
à tecelagem, quantitativa e qualitativamente, um impulso que a
arrancou da forma de produção precedente. A par dos campone-
ses que teciam para uso próprio, os quais continuaram e ainda
continuam a existir, surge nas cidades uma nova classe de tecelões
cujos tecidos se destinavam a todo o mercado interno e, as mais
das vezes, também a mercados estrangeiros.
A tecelagem, um trabalho que na maior parte dos casos pouca
habilidade exigia e que cedo se subdivide em inúmeros ramos,
opunha-se, por toda a sua natureza, aos grilhões da corporação de
ofício. A tecelagem foi, também por isso, exercida sem organização
corporativa, principalmente em aldeias e em vilas que aos poucos
se tornaram cidades e, no curto prazo, as cidades mais florescentes
de cada país.
Com a manufatura liberta das corporações mudaram também,
imediatamente, as relações de propriedade. O primeiro progresso
sobre o capital natural estamental 104 verificou-se com o ascenso
10,1 Em alemão naturwüchsig-stãndische Kapital. Trata-se do capital que se acumulou “natu-
ralmente” sob a ordem feudal e, portanto, anterior à da expansão comercial. (N.E.B.)
81
A IDEOLOGIA ALEMÃ
dos comerciantes, cujo capital era, desde o princípio, móvel, ca-
pital no sentido moderno, tanto quanto as condições de então o
permitiam. O segundo progresso veio com a manufatura, a qual
de novo mobilizou uma massa do capital natural e, acima de tudo,
aumentou a massa do capital móvel face ao natural.
A manufatura tornou-se, ao mesmo tempo, um refúgio dos
camponeses contra as corporações que os excluíam ou lhes pagavam
mal, do mesmo modo que anteriormente as cidades das corporações
haviam [servido] aos camponeses de refúgio [47] contra [a nobreza
rural que os oprimia].
Com o começo das manufaturas coincidiu um período de va-
gabundagem, ocasionado pela dissolução das vassalagens feudais,
pela desmobilização dos populosos exércitos que haviam servido os
reis contra os vassalos, pelo aperfeiçoamento da agricultura e pela
transformação de grandes extensões de solo arável em pastagens.
Já por aqui se vê como essa vagabundagem se encontra em nítida
conexão com a dissolução do feudalismo. Já no século 13 ocorrem
algumas épocas dessa natureza, mas no fim do século 15 e prin-
cípio do século16 é que essa vagabundagem surge generalizada
e permanentemente. Esses vagabundos, que eram tão numerosos
que Henrique VIII de Inglaterra, para falar apenas dele, mandou
enforcar 72 .000, só com as maiores dificuldades e pela miséria
mais extrema eram levados a trabalhar - e mesmo assim só ao
cabo de longa resistência. O rápido florescimento das manufaturas,
nomeadamente na Inglaterra, absorveu-os gradualmente.
Com a manufatura, as diferentes nações entram numa relação
de concorrência, numa luta comercial que se travou em guerras,
proteções alfandegárias e proibições, ao passo que anteriormente
as nações, tanto quanto estavam em ligação entre si, haviam pros-
seguido 105 uma troca inofensiva umas com as outras. De agora em
diante, o comércio passa a ter importância política.
105 Na MEGA: realizado. (N.E.)
82
K A R L M A R X
Com a manufatura, passa ao mesmo tempo a haver uma relação
diferente do trabalhador com quem lhe dá trabalho [Arbeitgeber].
Nas corporações continuava a existir a relação patriarcal entre os
oficiais e o mestre; na manufatura, ocupa o lugar daquela a relação
de dinheiro entre trabalhador e capitalista; uma relação que, no
campo e em pequenas cidades, conservou uma cor patriarcal, mas
que nas cidades maiores, nas cidade realmente manufatureiras,
desde cedo perdeu quase toda a coloração patriarcal.
A manufatura, e em geral o movimento da produção, recebeu
um enorme ascenso com o alargamento do intercâmbio que teve
lugar com o descobrimento da América e do caminho marítimo
para a índia. Os novos produtos dali importados, nomeadamente
as quantidades de ouro e prata que entraram em circulação, alte-
raram completamente a posição das classes umas em relação às
outras e aplicaram duro golpe na propriedade fundiária feudal e
nos trabalhadores, as expedições de aventureiros, a colonização e,
sobretudo, a expansão agora possível, dia a dia, dos mercados até se
transformarem em mercado mundial, deram origem a uma nova
fase [48] do desenvolvimento histórico em que aqui, no geral, não
vamos entrar. Pela colonização das terras recém-descobertas, a luta
comercial das nações umas contra as outras recebeu novo alimento
e, consequentemente, maior extensão e encarniçamento.
A expansão do comércio e da manufatura acelerou a acumu-
lação do capital móvel, enquanto nas corporações, que nenhum
estímulo experimentaram para uma produção mais ampla, o
capital natural permaneceu estável ou até diminuiu. O comércio
e a manufatura criaram a grande burguesia, nas corporações
concentrava-se a pequena burguesia, a qual agora já não domi-
nava como antes nas cidades, e t inha de se dobrar ao domínio
dos grandes comerciantes e proprietários de manufaturas. 106 Daí
106 [Nota marginal de Marx.] Pequeno-burgueses [Kleinbürger] - Ordem média [Mittels-
tand\ — Grande burguesia [Grosse Bourgeoisie].
83
A IDEOLOGIA ALEMÃ
o declínio das corporações assim que entrfaram] em contato com
a manufatura.
A relação das nações entre si no seu intercâmbio assumiu duas
formas diferentes durante a época de que estamos falando. Em
princípio, a pequena quantidade do ouro e da prata em circula-
ção exigiu \bedingtê\ a proibição da exportação desses metais; e a
indústria, na sua maior parte importada do estrangeiro e tornada
necessária pela necessidade 107 de dar trabalho à população cres-
cente das cidades, não podia dispensar os privilégios que podiam
ser concedidos, e naturalmente não apenas contra a concorrência
interna mas, principalmente, contra a externa. O privilégio local
das corporações foi alargado, nessas proibições originais, a toda
a nação. Os direitos alfandegários nasceram dos tributos que os
senhores feudais impunham aos comerciantes que atravessavam as
suas regiões para não os pilharem, tributos que mais tarde foram
igualmente impostos pelas cidades e consti tuíram, quando do
aparecimento dos Estados modernos, o primeiro dos meios de o
fisco arranjar dinheiro.
O surgimento do ouro e da prata americanos nos mercados
europeus, o desenvolvimento gradual da indústria, o rápido ascenso
do comércio e o florescimento, assim provocado, da burguesia não
corporativa e do dinheiro deram a essas medidas uma outra impor-
tância. O Estado, que a cada dia podia dispensar menos o dinheiro,
manteve, por considerações fiscais, a proibição da exportação de
ouro e de prata; os burgueses, para os quais essas quantidades de
dinheiro lançadas recentemente no mercado eram o objeto prin-
cipal de especulação [Akkaparements], ficaram completamente
satisfeitos com a medida; os privilégios anteriores tornaram-se uma
fonte de receitas para o governo e eram vendidos por dinheiro; na
legislação alfandegária apareceram os direitos de exportação, os
A sequência de “necessária” e “necessidade” nesta frase náo revela, como poderia parecer,
desleixo da tradução. No original surge-nos também Nowendigkeit e nõtíg (N.E.B.)
84
Kar l Marx
quais, [colocando] apenas um obstáculo no caminho da indústria
[49], tinham realmente um objetivo fiscal.
O segundo período teve início por meados do século 17 e durou
quase até o final do século 18. O comércio e a navegação tinham
se expandido mais depressa do que a manufatura, que desempe-
nhava um papel secundário; as colônias começaram a tornar-se
consumidores importantes, as diferentes nações repartiram entre
si, em longas lutas, o mercado mundial que se abria. Esse período
começa com as leis da navegação e os monopólios coloniais. A con-
corrência das nações entre si era, tanto quanto possível, interditada
por meio de tarifas, proibições e tratados; e, em última instância, a
luta de concorrência era conduzida e decidida por meio de guerras
(especialmente guerras marítimas). A nação mais poderosa no mar,
os ingleses, conservaram a sua preponderância no comércio e na
manufatura. Vê-se já aqui a concentração num país.
A manufatura estava permanentemente protegida por direitos
alfandegários de proteção no mercado interno, por monopólios
no mercado colonial e, no mercado externo, pelo maior número
possível de taxas de importação diferenciais [Differentialzõlle\. A
elaboração [Bearbeitun$ do material produzido no próprio país
era favorecido (lã e linho na Inglaterra, seda na França), proibida a
exportação da matéria-prima produzida no país (a lã, na Inglaterra)
e a [elaboração] da matéria-prima importada era desconsiderada
ou reprimida (o algodão, na Inglaterra). A nação predominante no
comércio marítimo e no poderio colonial assegurava para si, como
é evidente, também a maior expansão quantitativa e qualitativa
da manufatura. A manufatura de modo algum podia dispensar
a proteção, pois pode perder o seu mercado e arruinar-se com
menor mudança que se opere noutros países; é fácil introduzi-la
num país desde que haja condições relativamente favoráveis, e por
isso mesmo é fácil destruí-la. Pelo modo como era realizada no
país, em especial no século 18, estava tão ligada às condições de
vida de uma grande massa de indivíduos que nenhum país pôde
85
A IDEOLOGIA ALEMÃ
arriscar-se a pôr em jogo a sua existência com a permissão da livre
concorrência. Por isso, na medida em que é levada à exportar, a
manufatura depende da expansão ou da restrição do comércio e
exerce [sobre ele], por sua vez, um efeito rela[tivamente] muito
pequeno. Daí a sua [importância] secundária, e daí a influência
dos [comerciantes] no século 18. [50] Foram os comerciantes, e
especialmente os armadores, que antes de todos os outros insisti-
ram na proteção do Estado e nos monopólios; os proprietários de
manufaturas também exigiram e conseguiram proteção, é certo,
mas em importância política ficaram sempre atrás dos comercian-
tes. As cidades comerciais, especialmente as cidades do litoral,
tornaram-se em certa medida civilizadas e da grande burguesia,
ao passo que nas cidades fabris subsistiu a maior parte da pequena
burguesia. Cf. Aikin 108 etc. O século 18 foi o do comércio. Pinto
o diz expressamente: “Le commerce fait la marotte du sièclé” [“O
comércio é a mania do século” - francês], e: “Depuis quelque temps
ilríest plus question que de commerce, de navigation et de marine?
[“Há algum tempo para cá só se fala de comércio, de navegação e
de marinha.” — francês] 109 .
108 J. Aikin, A description of the country from thirty to forty miles round Manchester, London,
1795 (J. Aikin, Uma descrição do campo de trinta a quarenta milhas em redor de Man-
chester, Londres, 1795). (N.E.)
[Em nota no original;] O movimento do capital, embora consideravelmente acelerado,
continuava ainda, contudo, relativamente lento. A divisão do mercado mundial em
parres separadas, cada uma das quais era explorada por uma nação particular, a exclu-
são da concorrência entre si por parte das nações, a indestreza da própria produção e
o fato de a finança estar saindo das suas primeiras fases muito impediam a circulação.
A consequência disso foi um espírito tíbio, mesquinho e sórdido, que continuou agar-
rado a todos os comerciantes e a todo o modo de comerciar. Em comparação com os
proprietários de manufaturas, e sobretudo com os artesãos, eram, na verdade, grandes
burgueses, burguesia; em comparação com os comerciantes e industriais do período
seguinte continuavam a ser pequeno-burgueses.
Cf. Adam Smith [A. Smith, An inquiry into the nature and causes ofthe wealth ofnations,
London, 1776 (A. Smith, Inquérito sobre a natureza e as causas da riqueza das nações,
Londres, 1776).] A citação é da Lettre sur lajalousie du commerce (Carta sobre a rivalidade
no comércio') publicada no livro de I. Pinto Traitéde la circulation etdu crédit, Amsterdam,
1771 (Tratado da circulação e do crédito, Amsterdam, 1771), pp. 234 e 283. (N.E.)
86
K A II L M A H X
Esse período é também caracterizado pelo fim das proibições
de exportação de ouro e prata, pelo aparecimento do comércio de
dinheiro, dos bancos, das dívidas do Estado, do papel-moeda, da
especulação com ações e obrigações, da agiotagem em todos os
artigos e da formação da finança em geral. De novo o capital per-
deu uma grande parte do caráter natural que ainda trazia consigo.
[4. A divisão do trabalho mais extensa. A grande indústria]
Desenvolvendo-se irresistivelmente no século 17, a concentração
do comércio e da manufatura num país, a Inglaterra, criou gradual-
mente para esse país um relativo mercado mundial e, com ele, uma
demanda por produtos manufaturados ingleses que já não podia
ser satisfeita pelas forças produtivas até aí existentes na indústria.
Essa demanda, que crescera mais do que as forças produtivas, foi a
força motora que deu origem ao terceiro [51] período da propriedade
privada desde a Idade Média com a criação da grande indústria - a
aplicação de forças elementares para fins industriais, a maquinaria e
a mais extensa divisão do trabalho. As condições restantes dessa nova
fase — a liberdade de concorrência no interior da nação, o desenvol-
vimento da mecânica teórica (a mecânica aperfeiçoada por Newton
foi a ciência mais popular na França e na Inglaterra principalmente
no século 18) etc. - existiam já na Inglaterra. (A livre concorrência
dentro da própria nação teve em toda a parte de ser conquistada por
meio de uma revolução - em 1640 e 1688 na Inglaterra, em 1789 na
França.) A concorrência em breve obrigava todos os países que que-
riam conservar o seu papel histórico a proteger as suas manufaturas
com novas medidas alfandegárias (os velhos direitos já não serviam
frente à grande indústria), e logo a seguir a introduzir a grande in-
dústria sob regras alfandegárias protetoras. A despeito desses meios
de proteção a grande indústria universalizou a concorrência (ela é
a liberdade prática de comércio, os direitos protecionistas são nela
apenas um paliativo, uma defesa na liberdade de comércio), esta-
beleceu os meios de comunicação e o mercado mundial moderno,
87
A i deo log ia a l emã
submeteu a si o comércio, transformou todo o capital em capital
industrial e criou assim a rápida circulação (o desenvolvimento da
finança) e centralização dos capitais. Com a concorrência universal
obrigou todos os indivíduos à mais intensa aplicação da sua energia.
Aniquilou, tanto quanto lhe era possível, a ideologia, a religião, a
moral etc., e onde não o conseguiu fez delas uma mentira palpável.
Foi ela que, pela primeira vez, criou a história universal, na medida
em que tornou dependentes de todo mundo todas as nações civi-
lizadas e todos os indivíduos nelas existentes para a satisfação das
suas necessidades, e aniquilou a exclusividade até aí natural de cada
uma das nações. Subsumiu ao capital a ciência da natureza e retirou
à divisão do trabalho a última aparência de naturalidade. De um
modo geral, aniquilou a naturalidade, tanto quanto é possível no
seio do trabalho, e dissolveu todas as relações naturais em relações
de dinheiro. No lugar das cidades surgidas naturalmente criou as
grandes cidades industriais modernas, nascidas de um dia para o
outro* 110 . Onde penetrou, destruiu o artesanato e, de um modo geral,
todas as fases anteriores da indústria. Completou a vitória [da] cidade
comercial sobre o campo. [O seu primeiro pressuposto] é o sistema
automático. [O seu desenvolvimento] criou uma massa de for[ças
produ]tivas para as quais a [propriedade] 111 privada se tornou um
grilhão, [52] do mesmo modo que a corporação para a manufatura
e a pequena oficina rural para o artesanato em desenvolvimento.
Sob a propriedade privada, essas forças produtivas recebem um de-
senvolvimento apenas unilateral, tornam-se forças destrutivas para a
maioria, e uma grande quantidade dessas forças não podem sequer
ser aplicadas na propriedade privada. Criou, em geral, por toda a
parte, as mesmas relações entre as classes da sociedade, e aniquilou,
por esse meio, a particularidade de cada uma das nacionalidades. E,
"" Nas frases acima, o “natural” refere-se ao existente antes do desenvolvimento do comércio
mundial. Cf. nota 99 acima. (N.E.B.)
111 O manuscrito encontra-se deteriorado nesta passagem.
88
Kar l Marx
finalmente, ao passo que a burguesia de cada nação ainda conserva
interesses nacionais particulares, a grande indústria criou uma classe
que, em todas as nações, tem o mesmo interesse, e na qual a nacio-
nalidade está já anulada, uma classe que realmente já está livre de
todo o velho mundo e, ao mesmo tempo, a ele se contrapõe. Torna
insuportável para o operário não só a relação com o capitalista mas
o próprio trabalho.
Como se compreende, a grande indústria não atinge em todas
as localidades de um país o mesmo nível de desenvolvimento. Isso,
contudo, não detém o movimento de classe do proletariado, visto
que os proletários criados pela grande indústria tomam a vanguar-
da desse movimento e arrastam consigo toda a massa, e visto que
os operários excluídos da grande indústria são atirados por essa
grande indústria para uma condição de vida ainda pior do que a
dos operários da própria grande indústria. Do mesmo modo atuam
os países em que está desenvolvida uma grande indústria sobre os
países plus ou moins [mais ou menos — francês] não industriais,
na medida em que estes são arrastados para a luta universal de
concorrência pelo intercâmbio mundial.
***
Essas diferentes formas são outras tantas formas da organização
do trabalho e, assim, da propriedade. Em todos os períodos teve
lugar uma unificação das forças produtivas existentes, na medida
em que as necessidades a tornavam necessária.
[5. A contradição entre as forças produtivas e a forma de
intercâmbio como base de uma revolução social]
Essa contradição entre as forças produtivas e a forma de in-
tercâmbio, que, como vimos, várias vezes ocorreu na história até
89
A IDEOLOGIA ALEMÃ
os nossos dias sem, contudo, pôr em perigo o seu fundamento,
teve todas as vezes de rebentar em uma revolução, assumindo
então, ao mesmo tempo, várias formas secundárias, como tota-
lidade de colisões, como 112 colisões de diferentes classes, como
contradição da consciência, luta de idéias etc., luta política etc. A
partir de um ponto de vista limitado, pode-se isolar uma dessas
formas secundárias e considerá-la como a base dessas revoluções,o que é tornado mais fácil na medida em que os indivíduos dos
quais par t i ram as revoluções se i ludiram, segundo o seu grau
de educação e a etapa do desenvolvimento histórico, sobre a sua
própria atividade.
Todas as colisões da história têm, pois, segundo a nossa concep-
ção, a sua origem na contradição entre as forças produtivas e a forma
de [53] intercâmbio. Não é, de resto, necessário que essa contradição
tenha sido levada ao extremo em um país para conduzir a colisões
nesse próprio país. A concorrência com países industrialmente mais
desenvolvidos, provocada por um intercâmbio internacional am-
pliado, é suficiente para criar uma contradição semelhante também
em países com uma indústria menos desenvolvida (por exemplo,
o proletariado latente na Alemanha, feito surgir \zur Erscheinung
gebracht\ pela concorrência da indústria inglesa).
[6. A concorrência dos indivíduos e a formação das classes.
Desenvolvimento da contradição entre os indivíduos e as
condições da sua vida. A comunidade ilusória dos
indivíduos na sociedade burguesa e a unidade real dos
1,2 Na MEGA: esse segundo “como” (ais) fora omitido. (N.E.)
90
K A R L M A II X
indivíduos no comunismo. A subjugaçâo das condições
de vida da sociedade ao poder dos indivíduos unidos]
A concorrência isola os indivíduos uns contra os outros, não
apenas os burgueses mas ainda mais os proletários, e isso a des-
peito de agregá-los. 113 Daí que demore muito tempo até que esses
indivíduos possam se unir, além do que os meios necessários para
essa união — a fim de não ser meramente local — , as grandes cidades
industriais e as comunicações baratas e rápidas, têm primeiro de ser
estabelecidas pela grande indústria, e por isso só ao cabo de longas
lutas se consegue vencer todo o poder organizado contraposto a
esses indivíduos isolados que vivem no seio de relações que diaria-
mente reproduzem o isolamento. Exigir o contrário seria o mesmo
que exigir a não existência de concorrência nessa época histórica
determinada, ou que os indivíduos banissem da cabeça relações
sobre as quais, enquanto isolados, não têm nenhum controle.
Construção de casas. Entre os selvagens, é a coisa mais natural
que cada família tenha a sua própria caverna ou cabana, como
entre os nômades a tenda separada de cada família. Essa econo-
mia doméstica separada se torna ainda mais necessária com o
desenvolvimento posterior da propriedade privada. Entre os povos
agrícolas, a economia doméstica comum é tão impossível quanto
a cultura comum do solo. Foi um grande progresso a construção
de cidades. Em todos os períodos até hoje, entretanto, a superação
[Aufhebung\ da economia separada, a qual não pode se separar da
superação da propriedade privada, era simplesmente impossível,
dado que ainda não existiam as condições materiais para ela. A
instituição de uma economia doméstica comum [gemeinsamen\
113 Em alemão, zusammenbringt: trazer para junto de tal modo a compor um todo; uma
alternativa possível seria também “agregar”. (N.E.B.)
91
A IDEOLOGIA ALEMÃ
pressupõe o desenvolvimento da maquinaria, da utilização das
forças naturais e de muitas outras forças produtivas - por exemplo,
água canalizada, [54] iluminação a gás, aquecimento a vapor etc.,
superação [da oposição] de cidade e campo. Sem essas condições,
a economia comum não seria ela própria, por sua vez, uma nova
força de produção, careceria de toda a base material, assentaria num
fundamento meramente teórico, isto é, seria uma simples mania
[blofíe Marotte} e não passaria de economia monástica. O que foi
possível revela-se na aglomeração nas cidades e na construção de
casas comuns com um objetivo determinado (prisões, casernas
etc.). Que a superação da economia separada não pode se separar
da superação da família por si mesmo se compreende.
(A afirmação, tão frequente em são Max, de que cada um é, por
meio do Estado, tudo o que é, é no fundo o mesmo que dizer que o
burguês é apenas um exemplar da espécie burguesa;" 4 uma afirmação
que pressupõe que a classe dos burgueses tenha se constituído antes
dos indivíduos que a constituem.114 115 ) Os burgueses de todas as cidades
eram obrigados, na Idade Média, a unir-se contra a nobreza rural
para salvarem a pele; a expansão do comércio, o estabelecimento de
comunicações, levou as diferentes cidades a conhecer outras cidades,
as quais tinham afirmado os mesmos interesses na luta contra a mes-
ma oposição. Das muitas corporações locais de burgueses de cada
uma das cidades nasceu, em princípio muito gradualmente, a classe
dos burgueses. As condições de vida de cada um dos burgueses, pelo
114 Em alemão ein Exemplar der Bourgeoisgattung. Gattung é uma palavra alemã ainda
à espera de uma tradução que seja universalmente aceita. A tradição anglo-saxã tem
preferido “espécie”, opção também adotada pela edição portuguesa que nos serve de
base. A tradição latina (os franceses, italianos e, entre nós, brasileiros, muitos marxistas)
quase sempre prefere “gênero”. (N.E.B.)
[Nota marginal de Marx:] Pré-existência da classe para os filósofos.
92
Kar l Ma rx
antagonismo contra as relações vigentes e pelo tipo de trabalho por
tais condições requerido, tornaram-se a todos eles comuns e, ao mes-
mo tempo, independentes de cada um deles. Os burgueses tinham
criado essas condições na medida em que haviam rompido com a
associação feudal, e foram por elas criados na medida em que foram
condicionados pelo seu antagonismo contra a feudalidade [Feudali-
tãF 6 ] que já encontraram vigente. Com o estabelecimento da ligação
entre as diferentes cidades, essas condições comuns desenvolveram-se
em condições de classe. As mesmas condições, a mesma oposição, os
mesmos interesses, tinham também de dar origem, por toda a parte
e de um modo geral, a costumes iguais. A própria burguesia, com
as suas próprias condições, gradualmente se desenvolve, cinde-se de
novo em diferentes frações segundo a divisão do trabalho, e acaba
por absorver em si todas as classes possuidoras precedentes" 7 (ao
passo que transformou a maioria das classes não possuidoras que
encontrou e uma parte das classes até aí possuidoras" 8 numa nova
classe, o proletariado), na medida em que toda a propriedade que
encontrou é transformada em capital comercial ou industrial. Os
indivíduos isolados só formam uma classe na medida [55] em que
têm de travar uma luta comum contra uma outra classe; fora disso,
contrapõem-se de novo hostilmente uns aos outros, na concorrência.
Por outro lado, a classe autonomiza-se, face aos indivíduos, pelo que
estes encontram já predestinadas as suas condições de vida, é-lhes
dada [angewiesen\ pela classe a sua posição na vida e, com esta, o seu
desenvolvimento pessoal; estão subsumidos a ela. E esse o mesmo
fenômeno que a subsunção de cada um dos indivíduos à divisão do
116 “Feudalidade” por vezes comparece em Marx como a sociabilidade que ainda nâo co-
nheceu a emancipação política, algo bem mais amplo, pois inclui todas as sociedades
de classe antes do capitalismo maduro, do que o adjetivo feudal, que se refere apenas
ao feudalismo. Parece ser este o caso nesta passagem. (N.E.B.)
117 [Nota marginal de Marx:] Começa por absorver os ramos de trabalho diretamente
pertencentes ao Estado, e depois todos os estamentos [Stãnde\ ± [mais ou menos]
ideológicos.
118 Na MEGA: da classe até aí possuidora. (N.E.)
93
A IDEOLOGIA ALEMÀ
trabalho, e só pode ser eliminada por meio da superação da pro-
priedade privada e do próprio trabalho* 119 . Como essa subsunção dos
indivíduos à classe se desenvolve numa subsunção a toda a série de
representações etc., já foi por nós referido variadas vezes.
Se se considera filosoficamente esse desenvolvimento dos indiví-
duos nas condições comuns de existência dos estamentos e classes
que se sucedem historicamente, e nas representações gerais que,
por isso, lhes são impostas, é certamente fácil imaginar que nesses
indivíduos se desenvolveu a espécie, ou o Homem, ou que eles
desenvolveram o Homem; um imaginar com que se dá à história
algumas sonoras bofetadas. Pode-se então tomaresses diferentes
estamentos [ou ordens sociais] e classes como especificações da
expressão geral, como subespécies da espécie, como fases de de-
senvolvimento do Homem.
Essa subsunção dos indivíduos a determinadas classes não pode
ser superada antes que se tenha formado uma classe que, contra a
classe dominante, já não tenha de impor nenhum interesse par-
ticular de classe.
A transformação dos poderes (relações) das pessoas em poderes
das coisas \sachliche\ por meio da divisão do trabalho também não
pode ser abolida pelo fato de se banir da cabeça a sua representa-
ção geral, mas apenas pelo fato de os indivíduos submeterem de
novo a si esses poderes das coisas e abolirem a divisão do traba-
lho. 120121 Isso não é possível sem a comunidade [Gemeinschaft™}. Só
1,9 Sobre o significado da expressão "superação do trabalho” (Aufhebung der Arbeif) ver,
neste volume, II. 6, esta mesma seção, e IV, 9-10. (N.E.)
120 [Nota marginal de Engels:] (Feuerbach: Ser e Essência.) Ver II, 9.
121 Gemeinschaft, comunidade, aqui no sentido de uma sociabilidade não regida pela força
das coisas , pelas forças reificadas — ou seja, que superou a propriedade privada, o Estado,
as classes e a “família” (aquela de “economia separada”), como vimos acima. (N.E.B.)
94
K A R L M A R X
na comunidade [com outros, é que cada] indivíduo tem [56] os
meios de desenvolver em todas as direções as suas aptidões; só na
comunidade, portanto, se torna possível a liberdade pessoal. Nos
substitutos da comunidade até hoje, no Estado etc., a liberdade
pessoal existiu apenas para os indivíduos desenvolvidos nas relações
da classe dominante, e tâo-só na medida em que eram indivíduos
dessa classe. A comunidade aparente em que se uniram, até aqui,
os indivíduos autonomizou-se sempre em relação a eles, e foi, ao
mesmo tempo, por ser uma união de uma classe em relação a outra,
para a classe dominada não só uma comunidade completamente
ilusória como também um novo grilhão. Na comunidade real, os
indivíduos conseguem, na e pela sua associação, simultaneamente
a sua liberdade.
Os indivíduos partiram sempre de si, mas, naturalmente, de
si no quadro das suas condições e relações históricas dadas, não
do indivíduo “puro” no sentido dos ideólogos. Mas no curso do
desenvolvimento histórico, e precisamente pela autonomização
das relações sociais, que é inevitável no quadro da divisão do tra-
balho, sobressai uma diferença entre a vida de todos os indivíduos
enquanto ela é pessoal e na medida em que ela está subordinada a
um ramo qualquer de trabalho e às suas condições. (Isso não deve
ser entendido como se, por exemplo, quem vive de rendimentos, o
capitalista etc., deixassem de ser pessoas; mas a sua personalidade
está condicionada e determinada por relações de classe muito bem
definidas, e a diferença só se torna patente no antagonismo em
relação a uma outra classe, e para eles mesmos apenas quando
vão à bancarrota.) No estamento (e, ainda mais, na tribo) isso
ainda está oculto; por exemplo, um nobre é sempre um nobre, o
roturier [plebeu — francês] é sempre um roturier, independente-
mente das suas demais relações, uma qualidade indissociável da
sua individualidade. A diferença do indivíduo pessoal contra o
indivíduo da classe, o caráter casual [Zufãlligkeit\ das condições
de vida para o in[divíduo], surge apenas com o aparecimento da
95
A IDEOLOGIA ALEMÃ
classe, que é ela própria um produto da burguesia. 122 A concorrência
e luta [dos] indivíduos entre si pro[duz] e de[senvolve], pela primeira
vez, [57] esse caráter casual como tal. Na representação, os indiví-
duos são, por isso, sob o domínio da burguesia, mais livres do que
anteriormente, porque as suas condições de vida lhes são casuais; na
realidade são, naturalmente, menos livres, porque mais subsumidos
ao poder das coisas. A diferença do estamento sobressai nomeada-
mente no antagonismo da burguesia contra o proletariado. Quando
o estamento dos burgueses das cidades, as corporações etc. surgiram
face à nobreza rural, a sua condição de existência - a propriedade
móvel e o trabalho artesanal, que já tinham uma existência latente
antes da sua separação do vínculo feudal - apareceu como algo
positivo que era feito valer contra a propriedade fundiária feudal, e
daí que, por sua vez, tenha começado também por assumir, a seu
modo, a forma feudal. E certo que os servos fugitivos tratavam a sua
servidão anterior como algo casual [Zufálliges] à sua personalidade.
Mas aqui eles faziam apenas o mesmo que fazem todas as classes que
se libertam de um grilhão e, então, não se libertaram como classe,
mas isoladamente. Além disso, não saíram da esfera do sistema de
estamentos, mas apenas formaram um novo estamento e conserva-
ram o seu modo de trabalho anterior também na nova posição, e o
desenvolveram ao o libertarem dos seus grilhões anteriores, que [já]
não correspondiam ao desenvolvimento já atingido.
Marx e Engels se referem, aqui, ao fato de que, com o capitalismo, a relação dos indiví-
duos com suas condições de vida é algo que pode variar e muito ao longo da vida. Um
burguês pode tudo perder e se tornar um trabalhador e um assalariado pode se elevar a
burguês, ao contrário do feudalismo e do escravismo, nos quais ser senhor de escravo,
senhor feudal, escravo ou servo era uma condição dada pelo nascimento e permanecia
para toda a vida. É para se referir a essa maior mobilidade social no capitalismo em
confronto com os modos de produção precedentes que Marx e Engels vão utilizar, com
frequência, a expressão casual ou casualidade. Nesta passagem, em particular, é evidente
que não estão afirmando a inexistência de classes antes da burguesia. (N.E.B.)
96
Kar l M a ii x
Entre os proletários, ao contrário, a sua própria condição de
vida, o trabalho, e com ele todas as condições de existência da so-
ciedade atual, tornou-se para eles algo casual sobre o qual cada um
dos proletários não tem nenhum controle, e sobre o qual nenhuma
organização social lhes pode dar um controle, e a contradição en-
tre a personalidade do proletário individual e a condição de vida
que lhe é imposta, o trabalho, torna-se patente para ele mesmo,
nomeadamente porque ele já desde a juventude é sacrificado e
porque lhe falta a oportunidade de alcançar, no seio da sua classe,
as condições que o coloquem na outra.
[58] N. B. Não esquecer que a própria necessidade de existirem
os servos, e a impossibilidade da economia em larga escala [grofán
Wirtschafi\ que acarretava a repartição dos allotments [parcelas —
inglês] pelos servos, cedo reduziu as obrigações dos servos face
aos senhores feudais a uma média de pagamentos em gêneros e de
corveias que tornou possível ao servo a acumulação de propriedade
móvel, e assim facilitou que escapasse à posse do seu senhor e lhe
deu a perspectiva do seu progresso como burguês da cidade; pro-
duziu também gradações entre os servos, pelo que os servos que
fogem já são meio burgueses. Com isso se torna igualmente óbvio
que os camponeses servos peritos num ofício eram os que mais
possibilidade tinham de adquirir propriedade móvel.
Enquanto, portanto, os servos fugitivos só queriam desenvol-
ver livremente e tornar válidas as suas condições de existência já
presentes, e por isso, em última instância, chegaram apenas até o
trabalho livre, os proletários têm de superar a sua própria condição
de existência anterior, que é simultaneamente a de toda a sociedade
anterior, o trabalho, para se tornarem válidos como pessoas. Por
isso, encontram-se também em antagonismo direto com a forma
em que até aqui os indivíduos da sociedade deram uma expressão
coletiva \GesamtausdrucQ, o Estado, e têm de derrubar o Estado
para afirmarem a sua personalidade.
97
A IDEOLOGIA ALEMÃ
Decorre de todo o desenvolvimento anterior que a relação
comunitária [gemeinschaftliche Verhãltnis\ em que entraram os
indivíduos de uma classe, e que era condicionada pelos seus inte-
resses comunitários [gemeinschaftliche Interesseri\ face a terceiros,
foi sempre uma comunidade [Gemeinschaft] à qual os indivíduos só
pertenceramcomo indivíduos médios, apenas na medida em que
viviam nas condições de existência da sua classe, uma relação em
que eles não tomaram parte como indivíduos, mas como membros
da classe. 123124 No caso da comunidade [Gemeinschaft\ dos proletá-
rios revolucionários, ao contrário, que tomam sob o seu controle
as suas condições [59] de existência e as de todos os membros da
sociedade, as coisas passam-se precisamente ao contrário; nela os
indivíduos tomam parte como indivíduos. E justamente a união
dos indivíduos (naturalmente, no quadro do pressuposto das
forças produtivas agora desenvolvidas) que coloca as condições
do livre desenvolvimento e movimento dos indivíduos sob o seu
controle, condições que até aqui estavam abandonadas ao acaso
e que haviam se autonomizado contra cada um dos indivíduos,
precisamente devido à sua separação como indivíduos, devido à sua
união necessária que fora dada pela divisão do trabalho e se tornara,
pela sua separação, um elo que lhes era alienado. Até aqui a união
era uma união (de modo algum arbitrária, como por exemplo é
apresentada no Contract social,™ mas necessária) nessas condições
(compare-se, por exemplo, a formação do Estado estadunidense e
as repúblicas sul-americanas) em que os indivíduos tinham então
de desfrutar do acaso. A esse direito de se poder deliciar em paz
123 É importante dar-se conta que, aqui, “comunitário” e “comunidade” não se referem à
sociabilidade que superou a propriedade privada, mas ao que é comum aos indivíduos
de uma mesma classe. (N.E.B.)
124 Ver o livro de J. J. Rousseau Du contract social; ou, príncipes du droit politique {Sobre o
contrato social; ou princípios do direito político), publicado em Amsterdã em 1762. (N.E.)
98
K A H L M A R X
com o acaso em determinadas condições dava-se, até aqui, o nome
de liberdade pessoal. - Essas condições de existência são apenas,
naturalmente, as forças de produção e formas de intercâmbio de
cada período.
O comunismo distingue-se de todos os movimentos anteriores
por transformar radicalmente [umwãltz\ o fundamento de todas as
relações de produção e de intercâmbio anteriores e por tratar cons-
cientemente, pela primeira vez, todos os pressupostos naturais como
criações dos homens anteriores, por despi-las da sua naturalidade
e submetê-las ao poder dos indivíduos associados \vereinigteri\. A
sua instauração é, por isso, essencialmente econômica, a produção
material das condições desta associação; ela faz das condições
existentes condições da associação. O existente [Bestehende\ que
o comunismo cria é precisamente a base objetiva para tornar im-
possível tudo que existe independentemente dos indivíduos, já que
esse existente não passa de um produto do intercâmbio anterior dos
próprios indivíduos. Os comunistas, portanto, tratam na prática
como não-orgânicas \unorganisché\ as condições criadas pela pro-
dução e intercâmbio anteriores, sem contudo imaginarem que as
gerações anteriores tinham tido o plano de, ou estavam destinadas
a, fornecer-lhes material, e sem acreditarem que essas condições
eram não-orgânicas para os indivíduos que as criaram.
[7. A contradição entre os indivíduos e as suas condições de
vida como uma contradição entre as forças produtivas e a
forma de intercâmbio. O desenvolvimento das forças
produtivas e a mudança das formas de intercâmbio}
[60] A diferença entre o indivíduo pessoal e o indivíduo
casual [zufãlligem Individuum\ não é uma distinção conceituai,
mas um fato histórico. Essa distinção tem um sentido diferente
99
A IDEOLOGIA ALEMÃ
em tempos diferentes; por exemplo, o estamento e, plus ou moins
[mais ou menos - francês] também a família, como algo casual ao
indivíduo no século 18. Não é uma distinção que nós tenhamos
de fazer para cada época, mas sim uma distinção que cada época
faz por si própria, a partir dos diferentes elementos que encontra,
e não segundo um conceito, mas forçada pelas colisões materiais
da vida. O que aparece como casual numa época posterior, em
oposição à anterior, e portanto também os elementos herdados
\überkommeneri\ da anterior, é uma forma de intercâmbio que cor-
respondia a determinado desenvolvimento das forças produtivas.
A relação das forças de produção com a forma de intercâmbio é a
relação da forma de intercâmbio com a atividade ou a atividade
[Betàtigung dos indivíduos. (A forma fundamental dessa ativida-
de é, naturalmente, a material, da qual dependem todas as outras:
espiritual, política, religiosa etc. A diferente configuração dada
à vida material depende sempre, naturalmente, das necessidades
já desenvolvidas, e tanto a criação quanto a satisfação dessas ne-
cessidades são, elas próprias, um processo histórico que não se
encontra nem no carneiro nem no cão (renitente argumento prin-
cipal de Stirner125 adversus hominem [contra o homem - latim]),
embora os carneiros e os cães sejam por certo, na sua forma atual,
mas malgré eux [apesar deles — francês], produtos de um processo
histórico). As condições em que os indivíduos, enquanto [61] não
surgiu ainda a contradição, mantêm intercâmbio uns com os
outros são condições que pertencem à sua individualidade, e não
algo de exterior a eles, condições em que só esses determinados
indivíduos, existindo em determinadas relações, podem produzir
a sua vida material e o que com ela se relaciona, são portanto as
condições da sua autoatividade [Selbstbetãtigung\ e são produ-
125 Trata-se das idéias de M. Stirner no seu artigo “Recensões sobre Stirner”, publicado no
III tomo da revista Wigand’s Vierteljahrsschrift, 1845, p. 187. (N.E.)
100
K a n l Marx
zidas por essa autoatividade 126 . Essa condição determinada em
que produzem corresponde, portanto, enquanto a contradição
ainda não surgiu, à sua real condicionalidade, à sua existência
unilateral, tal unilateralidade só se revela com o aparecimento
da contradição e, portanto, só existe para as gerações posteriores.
Então essa condição surge como um grilhão casual, e então a
consciência de que é um grilhão é também dissimuladamente
imputada [untergeschoben] à época anterior.
Essas diferentes condições, que surgiram primeiro como condi-
ções da autoatividade e mais tarde como grilhões, formam em todo
o desenvolvimento histórico uma série conexa [zusammenhãngende
Reihe\ de formas de intercâmbio, cuja conexão reside em que no
lugar da forma de intercâmbio anterior, tornada um grilhão, é
posta uma nova forma de intercâmbio que corresponde a forças
produtivas mais desenvolvidas — e, assim, ao tipo mais avançado
de autoatividade dos indivíduos — e que, à son tour [por sua vez
— francês], de novo se torna um grilhão e será substituída por ou-
tra. Como, em todas as etapas, essas condições correspondem ao
desenvolvimento simultâneo das forças produtivas, a sua história
é, pois, ao mesmo tempo, a história das forças produtivas em de-
senvolvimento e herdadas por cada nova geração e, desse modo, a
história do desenvolvimento das forças dos próprios indivíduos.
Como esse desenvolvimento se processa naturalmente \na-
turwüchsig\, ou seja, não está subordinado a um plano global
de indivíduos l ivremente associados, ele par te de diferentes
localidades, tr ibos, nações, ramos de trabalho etc. , cada um
dos quais em princípio se desenvolve independentemente dos
outros e só aos poucos em ligação com os outros. Além disso, só
muito lentamente se processa esse desenvolvimento; as diferen-
tes etapas e interesses nunca são completamente ultrapassados,
mas apenas subordinados ao interesse triunfante, e a par deste
126 [Nota marginal de Marx:] Produção da própria forma de intercâmbio.
101
A IDEOLOGIA ALEMÃ
se arrastam ainda ao longo de séculos. Daqui decorre que,
mesmo no seio de uma nação, os indivíduos tenham, mesmo
sem considerarmos as condições de posses, desenvolvimentos
completamente diferentes, e que um interesse anterior, cuja
forma de intercâmbio característica já tenha sido desalojada
pela de um posterior, ainda por longo tempo continue na pos-
se de um poder tradicional na comunidade aparente (Estado,
direito) que se autonomizouem relação aos indivíduos, poder
esse que, em última instância, só se quebrará por meio de uma
revolução. Assim se explica também por que razão em relação
a alguns pontos [62], que permitem um resumo mais geral, a
consciência pode por vezes parecer ter avançado mais do que
as relações empíricas que lhe são contemporâneas, de tal modo
que nas lutas de uma época posterior as pessoas podem apoiar-
se em teóricos anteriores como autoridades.
Ao contrário, o desenvolvimento processa-se muito rapi-
damente em países que, como a América do Norte, têm o seu
começo numa época histórica já desenvolvida. Tais países não
têm outros pressupostos naturais além dos indivíduos que neles
se fixam, a isso levados pelas formas de intercâmbio dos velhos
países que não correspondem às suas necessidades. Começam,
portanto, com os indivíduos mais avançados dos velhos países
e, por isso, com a forma de intercâmbio mais desenvolvida que
corresponde a esses indivíduos ainda antes de essa forma de in-
tercâmbio se poder afirmar nos velhos países. E esse o caso com
todas as colônias, desde que não sejam meras estações militares
ou comerciais. Cartago, as colônias gregas e a Islândia nos séculos
11 e 12 fornecem-nos exemplos disso. Uma relação semelhante
tem lugar na conquista, quando uma forma de intercâmbio
desenvolvida em outro solo é transferida já pronta para o país
conquistado; ao passo que na sua terra de origem estava ainda
enleada em interesses e relações de épocas anteriores, aqui pode e
tem de ser estabelecida completamente e sem obstáculo, até para
102
K A R L M A R X
assegurar aos conquistadores um poder duradouro. (A Inglaterra
e Nápoles depois da conquista normanda, 127 quando receberam
a forma mais acabada da organização feudal.)
[8. O papel da violência (conquista) na história]
O fato da conquista parece contradizer toda essa concepção
da história. Até agora fez-se da violência, da guerra, da pilhagem,
da rapinagem sangrenta etc. a força que move a história. Aqui só
podemos nos limitar aos pontos principais, e pegamos por isso
apenas o exemplo mais marcante, 128 a destruição de uma velha ci-
vilização por um povo bárbaro e a formação de uma nova estrutura
de sociedade que dela parte. (Roma e os bárbaros, feudalidade e
Gália, o império romano do Oriente e os Turcos. 129 [63] Para o povo
bárbaro conquistador, a própria guerra já é, como já atrás referido,
uma forma regular de intercâmbio, que é tanto mais ardentemente
explorada quanto mais o crescimento da população cria a necessida-
de de novos meios de produção no modo de produção rudimentar
tradicional que é, para essa população, o único possível. Na Itália,
ao contrário, por meio da concentração da propriedade fundiária
(causada, não só pela compra e endividamento, mas também por
herança, na medida em que, com a grande devassidão e os raros
casamentos, as velhas gerações gradualmente se extinguiram e a
sua propriedade veio à posse de uns poucos) e da transformação
desta em pastagens (que foi causada, além das causas econômicas
habituais e ainda hoje válidas, pela entrada de cereais roubados e
pagos como tributo, e pela falta daqui resultante de consumidores
para o cereal italiano), a população livre quase desaparecera e os
próprios escravos morriam continuamente e tinham de ser sempre
127 A Inglaterra foi conquistada pelos normandos em 1066; Nápoles, em 1130. (N.E.)
128 Na MEGA: marcante (frappantè). (N.E.)
129 Império Romano do Oriente-. Estado que em 395 se separou do império romano escravista,
com centro em Constantinopla; posteriormente passou a chamar-se Bizâncio; existiu
até 1453, ano em que foi conquistado pelos turcos. (N.E.)
103
A IDEOLOGIA ALEMÃ
substituídos por outros. A escravatura continuou a ser a base de
toda a produção. Os plebeus, que se encontravam entre os cida-
dãos livres e os escravos, nunca conseguiram ser mais do que um
lumpemproletariado. De um modo geral, Roma nunca foi além da
cidade, e tinha com as províncias uma conexão quase só política e
que, por sua vez, como é natural, também podia ser interrompida
por acontecimentos políticos.
Nada há de mais habitual do que a ideia \Vorstellung\ de
que na história, até hoje, teria se tratado apenas do tomar. Os
bárbaros tomam o império romano, e com o fato dessa tomada
se explica a passagem do mundo antigo para a feudalidade. Mas,
na tomada pelos bárbaros, trata-se é de saber se a nação que é
ocupada desenvolveu forças produtivas industriais, como é o caso
com os povos modernos, ou se as suas forças produtivas assentam
principalmente na sua união e no sistema comunitário [Ge-
meinwesen}. O tomar é ainda condicionado pelo objeto tomado.
A fortuna em papel de um banqueiro não pode de modo algum
ser tomada sem que aquele que a toma se submeta às condições
de produção e de intercâmbio do país tomado. Do mesmo modo,
todo o capital industrial de um país industrial moderno. E, por
fim, o tomar acaba muito depressa em toda a parte, e quando
nada mais há para tomar tem de se começar a produzir. Dessa
necessidade de produzir, que muito cedo surge, decorre [64] que
a forma do sistema comunitário adotada pelos conquistadores que
se fixam no território tem de corresponder à etapa de desenvol-
vimento das forças produtivas que nele encontram, ou, quando
não é esse o caso desde o início, tem de mudar de acordo com as
forças produtivas. Desse modo se explica também o fato, que se
pretende ter observado por toda a parte no tempo que se seguiu
à migração de povos, de que o vassalo era realmente o senhor, e
104
Kar l M a r x
de que os conquistadores em breve adotaram a língua, a cultura
e os costumes dos conquistados.
De modo algum a feudalidade foi trazida pronta da Alema-
nha; teve, isto sim, a sua origem, por parte dos conquistadores,
na organização guerreira do exército durante a própria conquista,
e só depois desta aquela se desenvolveu, sob a influência das for-
ças produtivas encontradas nos países conquistados, até chegar à
verdadeira feudalidade. O quanto essa forma estava condicionada
pelas forças produtivas demonstram as tentativas fracassadas de
impor outras formas oriundas de reminiscências da velha Roma
(Carlos Magno etc.).
A continuar.
[9. O desenvolvimento da contradição entre as forças
produtivas e a forma de intercâmbio nas condições da
grande indústria e da livre concorrência. Antagonismo
entre trabalho e capital]
Na grande indústria e na concorrência todas as condições de
existência, condicionamentos, unilateralidades dos indivíduos, se
fundiram 130 nas duas formas mais simples: propriedade privada
e trabalho. Com o dinheiro, todas as formas de intercâmbio e o
próprio intercâmbio são postos como casuais para os indivíduos.
No dinheiro é que reside, portanto, o fato de todo o intercâmbio
até os nossos dias ser apenas o intercâmbio dos indivíduos em
determinadas condições, e não dos indivíduos como indivíduos.
Essas condições reduzem-se a duas — trabalho acumulado ou pro-
priedade privada, e trabalho real. Se essas, ou uma delas, cessa, o
130 Em alemão, zusammengeschmolzen — geschmolzen é relativo a schmelzerr. fundir-se,
derreter-se. Zusammen significa “junto” em uma ordem que é uma totalidade. Literal-
mente aqui seria “fundir-se em uma totalidade”, em “um todo”. É nesse sentido que
deve ser entendido o “fundir-se” dessa frase. (N.E.B.)
105
A IDEOLOGIA ALEMÃ
intercâmbio fica paralisado. Os próprios economistas modernos,
por exemplo, Sismondi, Cherbuliez etc., contrapõem a association
des individus à association des capitaux [associação dos indivíduos à
associação dos capitais - francês]. Por outro lado, os próprios indi-
víduos estão completamente subsumidos [subsumiert\ à divisão do
trabalho e, desse modo, colocados na mais completa dependência
uns dos outros. A propriedade privada, na medida em que no seio
do trabalho se contrapõe ao trabalho, desenvolve-se a partir da
necessidade da acumulação e em princípio ainda tem a forma da
comunidade [Gemeinwesens], mas no seu desenvolvimento poste-
rior aproxima-se cada vez mais da forma moderna da propriedadeprivada. Pela divisão do trabalho está dada, logo de início, a divisão
também das condições de trabalho, das ferramentas e dos materiais,
e com ela a fragmentação do capital acumulado entre diferentes
proprietários, e com ela a fragmentação entre o capital e o traba-
lho, e as diferentes formas da própria propriedade. Quanto mais
se desenvolve a divisão do trabalho [65], e quanto mais cresce a
acumulação, tanto mais agudamente se desenvolve também essa
fragmentação. O próprio trabalho só pode existir sob a premissa
dessa fragmentação.
Energia pessoal dos indivíduos de diferentes nações — alemães
e americanos — energia desde logo pelo cruzamento de raças daí o
cretinismo dos alemães na França, Inglaterra etc., povos estrangei-
ros transplantados para um solo já desenvolvido, na América, para
um solo completamente novo, na Alemanha, a população natural
ficou tranquilamente onde estava.
106
K A R L MaRX
Aqui se revelam, portanto, dois fatos. 131 Primeiro, as forças pro-
dutivas aparecem como completamente independentes e divorciadas
dos indivíduos, como um mundo próprio a par dos indivíduos, o
que tem o seu fundamento no fato de os indivíduos, cujas forças
elas sâo, existirem divididos 132 e em antagonismo uns contra os ou-
tros, ao passo que essas forças, por outro lado, só são forças reais no
intercâmbio e na conexão desses indivíduos. De um lado, portanto,
uma totalidade de forças produtivas que assumiram de certo modo
um caráter coisal 133 e que, para os próprios indivíduos, já não são as
forças dos indivíduos, mas da propriedade privada, e que por isso
são dos indivíduos apenas na medida em que estes são proprietários
privados. Em nenhum período anterior as forças produtivas tinham
assumido essa forma indiferente para o intercâmbio dos indivíduos
como indivíduos, porque o seu próprio intercâmbio ainda era limita-
do. Do outro lado, face a essas forças produtivas está a maioria dos
indivíduos, aos quais tais forças foram arrancadas, e que, por isso,
roubados de todo o conteúdo real da vida, se tornaram indivíduos
abstratos, mas que só desse modo são colocados em condições de
entrarem em ligação uns com os outros como indivíduos.
A única conexão em que os indivíduos ainda se encontram
com as forças produtivas e com a sua própria existência, o tra-
balho, perdeu no seu caso toda a aparência de autoatividade e
apenas mantém a sua [66] vida atrofiando-a. Ao passo que, nos
períodos anteriores, a autoatividade e a produção da vida material
estavam separadas pelo fato de caberem a pessoas diferentes e de a
produção da vida material, pela limitação dos próprios indivíduos,
131 [Nota marginal de Engels:] Sismondi.
132 Em alemão zersplittert, de zersplittern-. estilhaçar, dividir em muitos pequenos pedaços.
(N.E.B.)
133 Em alemão, sachliche Gestalt. Uma tradução literal seria “um caráter (ou uma figura)
coisal”, com uma clara referência ao processo de coisificação ou reificação típico do
capitalismo. Todavia, coisificação (ou reificação) em Marx é a tradução adotada em
geral para Verdinglichung, Ding sendo o outro vocábulo para “coisa” em alemão.
(N.E.B.)
107
A IDEOLOGIA ALEMÃ
vaier ainda como um tipo subordinado de autoatividade, agora
elas divergem tanto uma da outra que, de fato, a vida material
surge como fim, e a produção dessa vida material, o trabalho (o
qual é agora a única forma possível mas, como vemos, negativa de
autoatividade), como meio.
[10. A necessidade, as condições e as consequências da
abolição da propriedade privada]
Chegou-se agora, portanto, a um ponto tal que os indivíduos
têm de apropriar-se da totalidade existente das forças produtivas,
não só para alcançarem a sua autoatividade, mas principalmente
para assegurarem a sua existência. Essa apropriação é requerida
[bedingt], primeiro, pelo objeto a apropriar — as forças produtivas
desenvolvidas até uma totalidade e apenas existentes no seio do
intercâmbio universal. Essa apropriação tem, portanto, e desde
logo por esse motivo, de ter um caráter universal, correspondente
às forças produtivas e ao intercâmbio. A apropriação dessas forças
nada mais é, ela mesma, do que o desenvolvimento das capaci-
dades individuais correspondentes aos instrumentos da produção
material. A apropriação de uma totalidade de instrumentos de
produção é desde logo, por isso, o desenvolvimento de uma tota-
lidade de capacidades nos próprios indivíduos. Essa apropriação
é, além disso, requerida \bedingt} pelos indivíduos que apropriam.
Só os proletários do presente, completamente excluídos de toda
a autoatividade, estão em condições de realizar a sua completa
autoatividade, não mais limitada, a qual consiste na apropriação
de uma totalidade de forças produtivas e no desenvolvimento,
assim iniciado, de uma totalidade de capacidades. Todas as an-
teriores apropriações revolucionárias foram limitadas: indivíduos
cuja autoatividade era limitada por um instrumento de produção
limitado e por um intercâmbio restrito apropriaram-se desse limi-
tado instrumento [67] de produção e, por isso, apenas o levaram
a uma nova limitação. O seu instrumento de produção tornou-se
108
Kar l Marx
propriedade sua, mas eles próprios continuaram subsumidos à
divisão do trabalho e ao seu próprio instrumento de produção. Em
todas as apropriações até hoje realizadas, uma massa de indivíduos
continuou subsumida a um único instrumento de produção: no
caso da apropriação dos proletários, uma massa de instrumentos de
produção tem de ser subsumida a cada indivíduo e a propriedade
tem de ser subsumida a todos. O intercâmbio universal moderno
só pode ser subsumido aos indivíduos de uma maneira: sendo
subsumido a todos os indivíduos.
Além disso, a apropriação é condicionada pelo modo como tem
de ser realizada. Só pode ser realizada por meio de uma união, a
qual, pelo caráter do próprio proletariado, só pode ser, por sua vez,
uma união universal, e por uma revolução em que, por um lado,
é derrubado o poder do modo de produção e de intercâmbio e da
organização social anteriores e, por outro lado, se desenvolvem o
caráter universal do proletariado e a sua energia necessária para
levar a cabo a apropriação, e em que, além disso, o proletariado
deixa para trás tudo o que ainda lhe ficou da sua posição anterior
na sociedade.
Só nessa etapa a autoatividade coincide \zusammeri\ com a vida
material, o que corresponde ao desenvolvimento dos indivíduos
para indivíduos totais e ao deixar para trás toda a naturalida-
de [Naturwüchsigkeii\, e então correspondem-se uma à outra a
transformação do trabalho em autoatividade e a transformação
do requerido intercâmbio anterior no intercâmbio dos indivíduos
enquanto tais. Com a apropriação das forças produtivas totais pelos
indivíduos associados \vereinigteri\ cessa a propriedade privada.
Enquanto, na história anterior, uma condição particular aparecia
sempre como acidental, agora tornou-se acidental o isolamento dos
próprios indivíduos, a própria remuneração privada [Privaterwerb]
particular de cada um.
Os filósofos têm-se representado como ideal, sob o nome de “o
Homem”, os indivíduos que já não estão subsumidos [68] à divisão
109
A IDEOLOGIA ALEMÃ
do trabalho, e têm tomado todo o processo por nós desenvolvido
como o processo de desenvolvimento “do Homem”, pelo que até
hoje, em todas as etapas históricas, “o Homem” foi substituído
pelos indivíduos e apresentado como a força motora da história.
Todo o processo foi assim tomado como processo de autoalienaçáo
“do Homem”, 134 e isso essencialmente porque o indivíduo médio
da etapa posterior [foi] sempre substituído à anterior, e a consciên-
cia posterior aos indivíduos anteriores. Por meio dessa inversão,
que desde o princípio abstrai das condições reais, foi possível
transformar toda a história num processo de desenvolvimento da
consciência.
***
A sociedade civil 135136 compreende todo o intercâmbio material dos
indivíduos numa determinada etapa do desenvolvimento das forças
produtivas. Compreende toda a vida comercial e industrial de uma
etapa, e nessa medida transcende o Estadoe a nação, embora, por
outro lado, tenha de se fazer valer em relação ao exterior como
nacionalidade e de se articular como Estado em relação ao interior.
O termo sociedade civil [bürgerliche Gesellschafi\ surgiu no século
18, quando as relações de propriedade já tinham se desembaraça-
do da comunidade antiga e medieval. A sociedade civil como tal
apenas se desenvolve com a burguesia; a organização social que
se desenvolve a partir diretamente da produção e do intercâmbio,
e que em todos os tempos forma a base do Estado e da restante
superestrutura idealista \Idealistichen Super estruktur , continuou
sempre, no entanto, a ser designada com o mesmo nome.
I3,i [Nota marginal de Marx:] Autoalienaçáo.
135 Cf. nota 42, p. 41. (N.E.B.)
136 Isto é: ideal, ideológica.
110
K A R L M A R X
[11.] Relaçáo do Estado e do direito com a propriedade
A primeira forma da propriedade é, tanto no mundo antigo
quanto na Idade Média, a propriedade tribal, condicionada entre
os romanos principalmente pela guerra, entre os germanos pela
criação de gado. Entre os povos antigos, porque numa cidade
vivem juntas várias tribos, a propriedade tribal surge como pro-
priedade do Estado, e o direito do indivíduo a ela como mera
possessio [posse, tomada de posse — latim] a qual , no entanto,
como a propriedade tribal em geral, se confina apenas à proprie-
dade fundiária. A verdadeira propriedade privada começa, entre
os antigos como entre os povos modernos, com a propriedade
móvel. (Escravatura e comunidade [Gemeiwesenj) {dominium
ex jure Quiritum [Trata-se da propriedade do ant igo cidadão
romano garantida por lei - latim]). Entre os povos que provêm
da Idade Média, a propriedade tribal desenvolve-se, através de
várias etapas — propriedade fundiária feudal, propriedade móvel
corporativa, capital manufatureiro — até o capital moderno, re-
querido pela grande indústria e pela concorrência universal, até a
propriedade privada pura, que deixou para trás toda a aparência
de uma comunidade e excluiu toda a intervenção do Estado sobre
o desenvolvimento da propriedade. A essa propriedade privada
moderna corresponde o Estado moderno, o qual, gradualmente,
por meio dos impostos, foi adquirido pelos proprietários privados
e, por meio das dívidas públicas, ficou completamente à mercê
destes, e cuja existência, nas subidas e quedas dos papéis do Estado
na Bolsa, ficou totalmente dependente do crédito comercial que
os proprietários privados, os burgueses, lhe concedem. Porque
é uma classe, e não mais um estamento, a burguesia é obrigada,
desde cedo, a organizar-se nacionalmente, e já não localmente, e a
dar ao seu interesse médio uma forma geral. Pela emancipação da
propriedade privada em relação à comunidade, o Estado adquiriu
uma existência particular a par, e fora, da sociedade civil; mas
ele nada mais é do que a forma de organização que os burgueses
111
A IDEOLOGIA ALEMÃ
se dão, tanto externa quanto internamente, para garantia mútua
da sua propriedade e dos seus interesses. A autonomia do Estado
ocorre, hoje em dia, apenas em países em que os estamentos não
se desenvolveram completamente em classes, em que os estamen-
tos, eliminados nos países mais adiantados, ainda desempenham
um certo papel e ainda existe uma mistura; países nos quais,
por isso, nenhuma parte da população consegue o domínio
sobre as restantes. E esse o caso nomeadamente na Alemanha.
O exemplo mais acabado do Estado moderno é a América do
Norte [70]. Os escritores franceses, ingleses e americanos mais
recentes manifestam todos a opinião de que o Estado só existe
por causa da propriedade privada, pelo que isso passou também
à consciência geral.
Como o Estado é a forma em que os indivíduos de uma
classe dominante fazem valer os seus interesses comuns e se
condensa toda a sociedade civil de uma época, segue-se que
todas as instituições comuns [gemeinsamen\ que adquirem uma
forma política, são mediadas pelo Estado. Daí a ilusão de que
a lei assentaria na vontade e, mais ainda, na vontade dissociada
da sua base real, na vontade livre. Do mesmo modo o direito é,
por sua vez, reduzido à lei.
O direito privado desenvolve-se, simultaneamente com a
propriedade privada, a partir da dissolução da comunidade
natural. Entre os romanos, o desenvolvimento da propriedade
privada e do direito privado não teve consequências industriais
e comerciais posteriores, porque todo o seu modo de produção
permaneceu o mesmo. 137 Entre os povos modernos, onde a co-
munidade feudal foi dissolvida pela indústria e pelo comércio,
começou com o aparecimento da propriedade privada e do
direito privado uma nova fase, capaz de desenvolvimento pos-
terior. Logo a primeira cidade que na Idade Média realizou um
[Nota marginal de Engels:] (Usura!)
112
Kar l Marx
extenso comércio marítimo, Amalfi, formou também o direito
marítimo. 138 Assim que, primeiro na Itália e mais tarde noutros
países, a indústria e o comércio deram novo desenvolvimento à
propriedade privada, foi logo retomado e elevado à autoridade
o Direito privado romano, que já estava desenvolvido. Quando,
mais tarde, a burguesia tinha alcançado tanto poder que os prín-
cipes fizeram seus os interesses dela, para derrubarem, por meio
da burguesia, a nobreza feudal, começou em todos os países — na
França no século 16 — o verdadeiro desenvolvimento do Direito,
que em todos os países [71], à exceção da Inglaterra, se processou
com base no código romano. Também na Inglaterra tiveram de
ser introduzidos princípios do Direito romano para um maior
desenvolvimento do Direito privado (especialmente no caso da
propriedade móvel). (Não esquecer que o Direito, como a religião,
não tem uma história própria.)
No Direito privado, as relações de propriedade vigentes são
ditas [ausgesprochen] como resultado da vontade geral. O próprio
jus utendi et abutendi [direito de usar e dispor arbitrariamente
- latim] exprime, por um lado, o fato de que a propriedade se
tornou completamente independente da comunidade, e, por outro
lado, a ilusão de que a própria propriedade privada assentaria
na mera vontade privada, na disposição arbitrária da coisa. Na
prática, o abuti [o dispor arbitrariamente — latim] tem barreiras
econômicas muito determinadas para o proprietário privado,
se este não quiser ver a sua propriedade e, como ela, o seu jus
abutendi passar para outras mãos, porque a verdade é que a coi-
sa, considerada meramente em relação com a sua vontade, não
é coisa nenhuma, mas só se torna uma coisa, propriedade real,
no intercâmbio, e independentemente do Direito (uma relação a
138 A cidade italiana de Amalfi foi nos séculos 10-11 um próspero centro de comércio. O
Direito marítimo da cidade de Amalfi ÇTabula Amãlphitüníi) vigorava em toda a Italia
e teve uma ampla difusão nos países do Mediterrâneo. (N.E.)
113
A IDEOLOGIA ALEMÃ
que os filósofos denominam uma idéia). 139 Essa ilusão jurídica,
que reduz o Direito à mera vontade, conduz necessariamente,
no desenvolvimento posterior das relações de propriedade, a que
alguém possa ter título jurídico a alguma coisa sem ter realmente
a coisa 140 . Se, por exemplo, é eliminada pela concorrência a renda
de uma parcela de terra, o proprietário desta tem título jurídico
àquela, juntamente com o jus utendi et abutendi. Mas com eles
nada pode fazer, como proprietário fundiário nada possui se, por
outro lado, não possuir capital suficiente para cultivar o seu solo.
Pela mesma ilusão dos juristas se explica que para eles, e para
todos os códigos em geral, seja casual que indivíduos entrem em
relações entre si, por exemplo, contratos, e que para eles essas
relações sejam daquelas em que se [pode] entrar ou não entrar,
conforme se queira [72], e cujo conteúdo [ass]enta completamente
na [vontade] livre dos contraentes.
Todas as vezes que, pelo desenvolví [mento] da indústria e do
comércio, se formaram novas formas de intercâmbio, por exemplo,
companhias de seguros e outras, o Direito foi sempre obrigado a
incluí-las entre os modos de adquirir a propriedade.
[12. Formas da consciência social]
Influênciada divisão do trabalho sobre a ciência.
O que é no Estado, no Direito, na moral etc., a repressão.
[Na] lei os burgueses têm de dar uma expressão geral de si
mesmos, precisamente porque dominam como classe.
Ciência da natureza e história.
139 [Nota marginal de Marx:] Relação para os filósofos = idéia. Conhecem meramente a
relação “do Homem” consigo mesmo e, por isso, para eles, todas as relações reais se
tornam idéias.
140 [Nota marginal de Marx:] A vontade sobre a vontade [...] reais etc. Nota destinada a
elaboração posterior. (Em alemão: Den Willen über den Willen wirkliche etc.)
114
K a n l M a n x
Não há história da política, do Direito, da ciência etc., da arte,
da religião etc. 141142 
Por que é que os ideólogos põem tudo de cabeça para baixo.
Religiosos, juristas, políticos.
Juristas, políticos (estadistas em geral), moralistas, religiosos.
Para essa subdivisão ideológica numa classe, 1) Autonomização
da ocupação profissional [Geschãfts] pela divisão do trabalho', cada um
considera o seu ofício como o verdadeiro. Sobre a conexão em que
o seu ofício se encontra com a realidade criam ilusões tanto mais
necessariamente quanto isso é desde logo condicionado pela natureza
do próprio ofício. As relações tornam-se conceitos na jurisprudên-
cia, política etc. — na consciência; como elas não vão a[l]ém dessas
relações, também os conceitos das mesmas são conceitos fixos na
sua cabeça; o juiz, por exemplo, aplica o código, por isso para ele
a legislação vale como o verdadeiro motor ativo. Respeito pela sua
mercadoria; pois que a sua ocupação tem a ver com o geral.
Ideia do Direito. Ideia do Estado. Na consciência habitual a
coisa está de cabeça para baixo.
A religião é, desde o princípio, a consciência da transcendência
[que] decorre de um dever [Müssen\ realP 2
Isto mais popular.
141 [Nota marginal de Marx:] À “comunidade”, como ela surge no Estado antigo, no
feudalismo, na monarquia absoluta, a esse vínculo correspondem [No manuscrito:
corresponde.] nomeadamente as representações religiosas (catfólicas]).
142 A tradução brasileira da MEGA II traz, nessa passagem, “poder real”, indicando que,
no manuscrito, Müssen foi, nessa nova versão, lido como Machten. (N.E.B.)
115
A IDEOLOGIA ALEMÃ
Tradição, para o Direito, a religião etc.
***
[73] 143 Os indivíduos partiram sempre de si, partem sempre de
si. As suas relações são relações do seu processo real de vida. A que
se deve que as suas relações se autonomizem contra eles? que os
poderes da sua própria vida se tornem opressores contra eles?
Numa palavra: a divisão do trabalho, cujo grau depende da
força produtiva desenvolvida em cada caso.
Propriedade fundiária. Propriedade comunal. Feudal. Moder-
na. Propriedade estamental. Propriedade manufatureira. Capital
industrial.
145 Essa última página do manuscrito não está numerada. As notas que contém referem-se
ao começo do enunciado da concepção materialista da história. As idéias aqui esboçadas
são desenvolvidas na I a parte do capítulo, na seção 3. (retornar ao texto)
116
TESES SOBRE FEUERBACH
KARL MARX
1. AD FEUERBACH (1845)’ 44
1.
O principal defeito de todo o materialismo existente até agora
(o de Feuerbach incluído) é que o objeto [Gegenstand], a realidade,
o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da con-
templação, mas não como atividade humana sensível, como prática;
não subjetivamente. Daí o lado ativo, em oposição ao materialis-
mo, [ter sido] abstratamente desenvolvido pelo idealismo - que,
naturalmente, não conhece a atividade real, sensível, como tal.
Feuerbach quer objetos sensíveis [sinnliche Objekte], efetivamente
diferenciados dos objetos do pensamento: mas ele não apreende a
própria atividade humana como atividade objetiva [gegenstãndliche
Tãtigkeit]. Razão pela qual ele enxerga, nA essência do cristianismo,
apenas o comportamento teórico como o autenticamente humano,
enquanto a prática é apreendida e fixada apenas em sua forma de
manifestação judaica, suja. Ele não entende, por isso, o significado
da atividade “revolucionária”, “prático-crítica”.
2.
A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma
verdade objetiva [gegenstãndliche Wahrheit] não é uma questão da
teoria, mas uma questão prática. E na prática que o homem tem de
144 A presente tradução das teses “Ad Feuerbach” foi gentilmente cedida pela Boirempo
Editorial. Elas são parte do livro Marx, Karl e Engels, Friedrich, A ideologia alemã,
Boitempo editorial, São Paulo, 2007. Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e
Luciano Cavini Martorano, pp. 533-539. (N.E.B.)
A IDEOLOGIA ALEMÃ
provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza citerior
[Diesseitigkeit] de seu pensamento. A disputa acerca da realidade
ou não-realidade do pensamento - que é isolado da prática - é
uma questão puramente escolástica.
3.
A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias
e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos
homens e que o próprio educador tem de ser educado. Ela tem,
por isso, de dividir a sociedade em duas partes — a primeira das
quais está colocada acima da sociedade.
A coincidência entre a alterafção] das circunstâncias e a ati-
vidade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e
racionalmente entendida como prática, revolucionária.
4.
Feuerbach parte do fato da autoalienação [Selbstentfremdung]
religiosa, da duplicação do mundo [Welt] num mundo religioso
e num mundo mundano [weltliche]. Seu trabalho consiste em
dissolver o mundo religioso em seu fundamento mundano. Mas
que o fundamento mundano se destaque de si mesmo e construa
para si um reino autônomo nas nuvens pode ser esclarecido apenas
a partir do autoesfacelamento e do contradizer-a-si-mesmo desse
fundamento mundano. Ele mesmo, portanto, tem de ser tanto
compreendido em sua contradição quanto revolucionado na prá-
tica. Assim, por exemplo, depois que a terrena família é revelada
como o mistério da sagrada família, é a primeira que tem, então,
de ser teórica e praticamente eliminada.
5.
Feuerbach, não satisfeito com o pensamento abstrato, quer a
contemplação [Anschauung]; mas ele não compreende o sensível
[die Sinnlichkeit] como atividade prática, humano-sensíveL
120
Kar l Marx
6.
Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas
a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo
isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais.
Feuerbach, que não penetra na crítica dessa essência real, é
forçado, por isso:
1 — a fazer abstração do curso da história, fixando o sentimen-
to religioso para si mesmo, e a pressupor um indivíduo humano
abstrato — isolado;
2 — por isso, a essência só pode ser apreendida como “gênero”,
como generalidade interna, muda, que une muitos indivíduos de
modo natural.
7.
Feuerbach não vê, por isso, que o próprio “sentimento religio-
so” é um produto social e que o indivíduo abstrato que ele analisa
pertence a uma determinada forma de sociedade.
8.
Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios
que conduzem a teoria ao misticismo encontram sua solução ra-
cional na prática humana e na compreensão dessa prática.
9.
O máximo a que chega o materialismo contemplativo, isto é,
o materialismo que não concebe o sensível como atividade prá-
tica, é a contemplação dos indivíduos singulares e da sociedade
burguesa.
10.
O ponto de vista do velho materialismo é a sociedade burguesa;
o ponto de vista do novo é a sociedade humana, ou a humanidade
socializada.
121
11.
Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes ma-
neiras; o que importa é transformá-lo.
KARL MARX
MARX SOBRE FEUERBACH (1845)
[COM ALTERAÇÕES DE ENGELS, 1888]
1.
O principal defeito de todo o materialismo existente até agora— o
de Feuerbach incluído - é que o objeto [Gegenstand], a realidade, o
sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da con-
templação; mas não como atividade humana sensível, como prática,
não subjetivamente. Daí decorreu que o lado ativo, em oposição ao
materialismo,foi desenvolvido pelo idealismo — mas apenas de modo
abstrato, pois naturalmente o idealismo não conhece a atividade
real, sensível, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis [sinnliche
Objekte] efetivamente diferenciados dos objetos do pensamento; mas
ele não apreende a própria atividade humana como atividade objetiva
[gegenstandliche Tãtigkeit]. Razão pela qual ele enxerga, n’ A essência
do cristianismo, apenas o comportamento teórico como o autentica-
mente humano, enquanto a prática é apreendida e fixada apenas em
sua forma de manifestação judaica-suja. Ele não entende, por isso, o
significado da atividade “revolucionária”, “prático-crítica”.
2 .
A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma
verdade objetiva [gegenstandliche Wahrheit] não é uma questão
da teoria, mas uma questão prática. Na prática tem o homem de
provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza citerior
[Diesseitigkeitj de seu pensamento. A disputa acerca da realidade
A IDEOLOGIA ALEMÃ
ou não-realidade de um pensamento que se isola da prática é uma
questão puramente escolástica.
3.
A doutrina materialista de que os homens são produto das
circunstâncias e da educação, de que homens modificados são,
portanto, produto de outras circunstâncias e de uma educação
modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas pre-
cisamente pelos homens e que o próprio educador tem de ser
educado. Por isso, ela necessariamente chega ao ponto de dividir a
sociedade em duas partes, a primeira das quais está colocada acima
da sociedade (por exemplo, em Robert Owen).
A coincidência entre a alteração das circunstâncias e a atividade
humana só pode ser apreendida e racionalmente entendida como
prática, revolucionária.
4.
Feuerbach parte do fato da autoalienação [Selbsentfremdung]
religiosa, da duplicação do mundo num mundo religioso, ima-
ginado, e um mundo real [wirkliche Welt]. Seu trabalho consiste
em dissolver o mundo religioso em seu fundamento mundano.
Ele ignora que, após a realização desse trabalho, o principal resta
ainda por fazer. Sobretudo o fato de que o fundamento mundano
se destaca de si mesmo e constrói para si um reino autônomo nas
nuvens é, precisamente, algo que só pode ser esclarecido a partir do
autoesfacelamento e do contradizer-a-si-mesmo desse fundamento
mundano. Ele mesmo tem, portanto, de ser primeiramente enten-
dido em sua contradição e, em seguida, por meio da eliminação
da contradição, ser revolucionado na prática. Assim, por exemplo,
depois que a terrena família é revelada como o mistério da sagrada
família, é a primeira que tem, então, de ser criticada na teoria e
revolucionada na prática.
124
Kar l Marx
5.
Feuerbach, nâo satisfeito com o pensamento abstrato, apela
à contemplação sensível; mas ele não apreende o sensível [die
Sinnlichkeit] como atividade prática, humano-sensível.
6.
Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas
a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo
isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais.
Feuerbach, que não penetra na crítica dessa essência real, é
forçado, por isso:
1 - a fazer abstração do curso da história, fixando o sentimen-
to religioso para si mesmo, e a pressupor um indivíduo humano
abstrato — isolado.
2 — por isso, nele a essência humana pode ser compreendida
apenas como “gênero”, como generalidade interna, muda, que une
muitos indivíduos de modo meramente natural.
7.
Feuerbach não vê, por isso, que o “sentimento religioso” é, ele
mesmo, um produto social, e que o indivíduo abstrato que ele analisa
pertence, na realidade, a uma determinada forma de sociedade.
8.
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que
induzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional
na prática humana e na compreensão dessa prática.
9.
O ponto mais alto a que leva o materialismo contemplativo,
isto é, o materialismo que não concebe o sensível como atividade
prática, é a contemplação dos indivíduos singulares na “sociedade
burguesa”.
125
A IDEOLOGIA ALEMÃ
10.
O ponto de vista do velho materialismo é a sociedade u bur-
guesa”; o ponto de vista do novo é a sociedade humana, ou a hu-
manidade socializada.
11.
Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes ma-
neiras; porém, o que importa é transformá-lo.
126
processos históricos particulares
foram mais tarde abordados com
uma maior precisão, por vezes
com novos elementos históricos,
tornando ultrapassadas várias
passagens desse manuscrito.
Quando o leitor se deparar
com contradições entre A
ideologia alemã e, por exemplo,
o livro I de O capital, saiba que
possivelmente Marx e Engels
tinham consciência das mesmas
e, por esse motivo, preferiram
publicar este último texto e
deixar à crítica dos roedores
o belíssimo manuscrito de A
ideologia alemã.
E, ainda assim, trata-se de
um texto fundamental para
conhecermos Marx e Engels.
Nele encontramos um dos
primeiros delineamentos da
concepção histórica, do local
do trabalho e da produção no
desenvolvimento dos modos
de produção, da relação entre o
desenvolvimento da totalidade
social e dos indivíduos. E com
a vantagem de ser um texto
de fácil leitura, mesmo para o
iniciante. Não é sem razão que
A ideologia alemã ocupa um lugar
de destaque na quase totalidade
das análises que tratam da
evolução dos dois grandes
revolucionários.
Sérgio Lessa

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