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CAPA 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................... 3 2 HISTÓRIA DA TEORIA GERAL DO CRIME ............................................. 4 3 CONCEITO E ELEMENTOS DO CRIME .................................................. 7 3.1 Da conduta ......................................................................................... 8 3.2 Da tipicidade ..................................................................................... 11 3.3 Da ilicitude ........................................................................................ 15 4 RELAÇÃO DE CAUSALIDADE ............................................................... 18 4.1 Teoria da conditio sine qua non ....................................................... 18 4.2 Da omissão na relação de causalidade ............................................ 20 5 APLICAÇÃO DA LEI PENAL ................................................................... 21 5.1 Lei penal no tempo ........................................................................... 21 5.1.1 Crimes permanentes e continuados ............................................. 23 5.2 Lei penal no espaço ......................................................................... 24 6 CRIME CONSUMADO, CRIME TENTADO E CRIME IMPOSSÍVEL ...... 26 6.1 Consumação .................................................................................... 26 6.2 Tentativa........................................................................................... 29 6.3 Crime impossível .............................................................................. 31 7 DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA, ARREPENDIMENTO EFICAZ E ARREPENDIMENTO POSTERIOR .......................................................................... 32 7.1 Desistência voluntária ...................................................................... 32 7.2 Arrependimento eficaz ..................................................................... 33 7.3 Arrependimento posterior ................................................................. 34 8 CONCURSO DE PESSOAS ................................................................... 35 9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................ 39 3 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta , para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 2 HISTÓRIA DA TEORIA GERAL DO CRIME A história da teoria geral do crime remonta aos primórdios da civilização, com diversas civilizações antigas desenvolvendo sistemas de leis e punições para crimes. Assim, o Direito Penal daqueles tempos não era, nem poderia ser, organizado ou sistematizado, mas sim caracterizado por uma aura mística, mágica, ligada muito mais à religião do que à razão e influenciado pelos instintos de conservação pessoal e coletiva que dominavam aquelas pessoas. (SMANIO, 2019, p. 1) No entanto, a formalização e sistematização desse campo de estudo ocorreram mais recentemente, principalmente no contexto do desenvolvimento do direito penal moderno. Entre as civilizações antigas, Grécia e Roma tiveram grande influência na origem da Teoria do crime. O direito penal na Grécia passou por três fases distintas ao longo de sua evolução. Na primeira fase, a vingança privada predominava, estendendo-se não apenas ao infrator, mas também à sua família. Na segunda fase, houve uma transição para um período religioso, no qual o Estado impunha as penas, porém atuando sob a delegação do deus Zeus. Neste período, aquele que cometesse um delito deveria buscar purificação, e ocorria uma mistura entre religião e patriotismo. Já na terceira fase, as penas deixaram de se basear em fundamentos religiosos, passando a se apoiar em valores morais e civis. É importante destacar que as mudanças entre as fases não foram abruptas, com conceitos novos surgindo ao lado dos antigos, que gradualmente foram esquecidos pela consciência jurídica da sociedade. Este último período, alguns denominam de político em contraste com o religioso, é considerado significativo pelos historiadores, pois representa uma fase de transição entre as legislações do Oriente e do Ocidente, situando-se na interseção de dois mundos e marcando um momento transcendental no desenvolvimento do pensamento humano. 5 As leis consideradas mais importantes eram as atenienses, que não se baseavam nas ideias religiosas, mas sim no conceito de Estado. A pena fundamentava-se na vingança e intimidação e os delitos se diferenciavam segundo lesionassem direitos coletivos ou individuais, sendo que para os primeiros reinava o arbítrio e a crueldade e para os outros, contrariamente, havia certa benevolência. O rol de crimes não era fechado, sendo que o juiz poderia castigar fatos não previstos como crime na lei, fixando-se na equidade. (SMANIO, 2019, p. 9) No Direito Penal Romano, as leis se fundamentavam no princípio da submissão do indivíduo à autoridade estatal. Sob essa perspectiva, o crime era interpretado como uma transgressão às leis do Estado, e a punição era vista como um meio de restabelecer a ordem social. De um modo geral, segundo as palavras de Paschoal (2015), diversas teorias buscam elucidar porque o Estado não apenas pode, mas deve sancionar aqueles que violam as leis penais. É importante destacar que, frequentemente, ao tentar justificar esse poder punitivo, há uma confusão ao considerar os objetivos da punição como sendo os próprios objetivos do direito penal. De um modo geral, pode-se dizer que Roma percorreu as mesmas etapas pelas quais outras sociedades passaram, iniciando com a vingança, passando pelos estágios da lei de Talião e da composição, até chegar à imposição de penas públicas. No que se refere às penas, Roma adotou em grande escala as penas exterminadoras. Aos patrícios, a pena de morte era realizada por decapitação, aos plebeus, por meios degradantes e cruéis, como a crucificação. Outras sanções, embora não buscassem exatamente esse fim, muitas vezes acabavam ocasionando a morte, tais como: trabalhos forçados nas galés e minas, mutilação e flagelação. (SMANIO, 2019, p. 10) Todas essas características do Direito Penal antigo, desencadearam uma série de movimentos e ideias com o objetivo de tornar o Direito Penal mais claro, justo e proporcional. Foi então que após algumas décadas, surgiu um marco importante na história da teoria geral do crime foi a contribuição de juristas como Cesare Beccaria, no século XVIII, cuja obra "Dos Delitos e das Penas" (1764) questionou a aplicação arbitrária das leis e defendeu princípios como proporcionalidade entre crime e castigo, bem como a necessidade de um sistema legal claro e acessível. 6 Já por volta do século XIX, surgiram contribuições significativasde juristas como Jeremy Bentham, que propôs a teoria da utilidade como base para o direito penal, argumentando que as leis devem buscar maximizar o bem-estar geral da sociedade. Segundo Zaffaroni e Pierangeli, Bentham não aceitava que houvesse qualquer direito subjetivo natural anterior ao Estado, sendo que o único critério para estabelecer se uma ação deve ou não ser considerada criminosa é a utilidade de declará-la como tal e de sancioná-la com uma pena. (PIERANGELI; ZAFFARONI, 2006, p. 240 apud SMANIO, 2019, p. 10) Bentham enfrentou consideráveis desafios para concretizar seu projeto, sofrendo perdas significativas de seu patrimônio pessoal em alguns fracassos. No entanto, após inúmeros esforços, em 1816, uma prisão inspirada em suas ideias foi inaugurada em Millbank, na Inglaterra. Contudo, foi nos Estados Unidos que suas concepções encontraram maior receptividade, embora não de modo integral. No século XX testemunhou avanços significativos na teoria geral do crime, com o desenvolvimento de diversas escolas de pensamento, como a Escola Clássica, a Escola Positivista, a Escola Sociológica e a Escola Funcionalista, entre outras. Cada uma dessas correntes teve sua própria abordagem para entender a natureza do crime, suas causas e sua prevenção. A Escola Clássica enfatizava o livre-arbítrio e a responsabilidade individual, enquanto a Escola Positivista argumentava que fatores biológicos, psicológicos e sociais influenciavam o comportamento criminoso. Já a Escola Sociológica explorava os efeitos do ambiente social na criminalidade, enquanto a Escola Funcionalista analisava a função social do crime e do sistema de justiça criminal. Insta salientar que, mesmo diante de toda a história e sua evolução acerca do conceito de crime e suas particularidades, sempre vão existir controvérsias opinativas, mas como nos diz a autora supracitada: É bem verdade que não é fácil definir quais são os bens jurídicos dignos de tutela penal. No entanto, ter em mente a necessidade de encontrá-los, concretizá-los já implica um modo de refrear o ímpeto criminalizador do legislador, e, uma vez editada a norma, o bem jurídico se transforma em um parâmetro para a interpretação por parte do julgador. (PASCHOAL, 2015, p. 4) 7 Hoje, a teoria geral do crime continua a evoluir, incorporando novas descobertas das ciências sociais, psicologia, neurociência e outras disciplinas para fornecer uma compreensão mais abrangente e precisa do fenômeno criminal. No entanto, nosso estudo será baseado em conceitos e institutos já vigentes nas legislações e nas doutrinas pertinentes ao tema. 3 CONCEITO E ELEMENTOS DO CRIME O estudo do conceito de crime é de certa forma bem amplo, envolvendo diversas perspectivas que lançam luz sobre o tema. Entre essas abordagens estão as visões formal, material e analítica, todas fundamentais no âmbito do Direito Penal brasileiro. O conceito formal de crime centra-se na necessidade de uma definição clara e específica do comportamento criminoso dentro da legislação. Assim, para que uma ação seja considerada crime, é imperativo que haja uma norma legal que a classifique como tal. Essa abordagem direciona a atenção para a interpretação da norma penal e sua aplicação prática. Por outro lado, o conceito material de crime destaca a importância do dano ou prejuízo causado a um bem jurídico protegido pela lei. Aqui, a ênfase recai sobre as consequências concretas da conduta no mundo real, sendo fundamental a análise dos danos provocados. Finalmente, o conceito analítico de crime se debruça sobre três elementos essenciais: a conduta, a tipicidade e a ilicitude. Segundo essa perspectiva, um ato só pode ser considerado crime se preencher esses três requisitos. A conduta deve ser uma ação ou omissão voluntária do agente, deve estar prevista como crime na legislação, e não pode encontrar justificativa ou permissão no ordenamento jurídico. Contudo, apesar das concepções filosóficas que influenciaram as distintas fases da teoria do delito mencionadas anteriormente terem passado por mudanças significativas, a estrutura do conceito analítico de crime permanece a mesma desde o século XIX. O crime continua sendo tradicionalmente concebido como uma conduta típica, ilícita e culpável. 8 3.1 Da conduta No contexto do direito penal brasileiro, a expressão "conduta" é de fundamental importância, pois constitui um dos elementos essenciais para a configuração de um crime. A conduta, de maneira geral, se refere ao comportamento humano, seja ele positivo (uma ação) ou negativo (uma omissão), que viola uma norma penal, isto é, uma conduta típica. Porém, embora a conduta seja essencial para a configuração do crime, é importante notar que ao longo da evolução doutrinária do direito penal, não houve consenso absoluto sobre esse conceito. Podemos identificar uma diversidade de abordagens da ação derivadas de várias teorias sobre a conduta, as quais serão analisadas a seguir. • Teoria causalista da ação De maneira geral, a Teoria causalista da ação, que predominava no pensamento jurídico-penal no início do século XX, defendia que a ação era simplesmente um movimento corporal voluntário, ou seja, uma contração muscular provocada por impulsos cerebrais, resultando em alterações no mundo exterior. Nesse sistema, a vontade era dissociada de seu conteúdo. Para uma melhor compreensão, vejamos o que nos diz Cirino dos Santos: O modelo causal de ação possui estrutura exclusivamente objetiva: a ação humana, mutilada da vontade consciente do autor, determinaria o resultado como uma forma sem conteúdo, ou um fantasma sem sangue, conforme a expressão do próprio Beling; a voluntariedade da ação indicaria, apenas, ausência de coação física absoluta; o resultado de modificação no mundo exterior seria elemento constitutivo do conceito – e, assim, não existiria ação sem resultado. (SANTOS, 2008, p. 84) A crítica central dirigida à essa teoria, reside na sua pouca ênfase atribuída à intencionalidade do agente, a qual só é considerada de certa importância na avaliação da culpabilidade. Ou seja, nessa perspectiva, o crime é primordialmente explicado como uma simples relação causal, negligenciando-se a presença de deliberação e vontade humana subjacentes ao ato criminoso. 9 Para os causalistas, a ação é predominantemente objetiva, entendida como uma sequência de eventos que culmina em um resultado específico. Nessa perspectiva, o dolo ou a culpa são considerados apenas como indicadores do grau de culpabilidade do agente. (PASCHOAL, 2015) • Teoria finalista da ação Essa teoria surge como uma resposta à abordagem puramente causalista adotada pela teoria anterior na explicação do crime. O âmago do finalismo reside na recusa de considerar a ação humana como uma mera sequência causal, mas sim como o resultado de uma deliberação inteligente e intencional por parte do ser humano. Segundo essa teoria, o ser humano nunca realiza uma ação puramente causal, pois, graças à sua inteligência e experiências anteriores, as pessoas podem antever as consequências de seus atos e, ao optarem por agir de determinada forma, o fazem com o objetivo de alcançar um fim específico. A referida teoria foi concebida por Hans Welzel, e para explicar sobre a diferença entra uma ação causal e uma ação final, ele recorre ao exemplo de um raio mortal e de um homicídio. Enquanto a morte causada pelo raio resulta de uma série de relações puramente causais, a morte resultante do homicídio é fruto de uma sequência de atos direcionados a um objetivo predeterminado: desde a aquisição da arma até a observação da vítima, o apontamento da arma e o acionamento do gatilho, entre outros. (WEZEL, 2006, p. 41, apud SMANIO, 2019, p. 217) Observa-se, portanto, que, ao contrário da abordagem causalista da ação, a perspectiva finalista daação centra-se na intencionalidade do agente, ou seja, focaliza o objetivo almejado. Essa abordagem resulta em uma reorganização do conteúdo dos elementos constituintes do conceito analítico de crime. A sequência dos elementos do conceito analítico de crime permanece inalterada - ação, tipicidade, ilicitude e culpabilidade -, porém, o dolo e a culpa, que na concepção causalista eram componentes da culpabilidade, no finalismo são deslocados para a conduta. Segundo o finalismo, o direito penal se interessa apenas pelas ações humanas com um conteúdo subjetivo, ou seja, as ações humanas dolosas ou culposas. 10 • Teoria social da ação De acordo com os defensores dessa teoria, cada sequência de atos humanos, além de uma finalidade, carrega consigo um valor que os impulsiona, podendo esse valor estar em conformidade ou contrariedade aos valores sociais. Dito de outra forma, pode-se dizer que a ideia central da teoria social é abordar e resumir a relação entre o “comportamento humano com seu entorno”, sendo considerado como ação “um comportamento humano com transcendência social”. (JESCHECK; WEIGEND, 2002, p. 239) Considerando que a ação é o cerne da teoria do delito, a filosofia adotada para sua explicação inevitavelmente molda os conceitos atribuídos à tipicidade, à antijuridicidade e à culpabilidade. No entanto, não é uma teoria desprovida de críticas. Cabe salientar que essas teorias apresentadas não são as únicas existentes. Contudo, vamos nos limitar a estas, pois bastam para a compreensão dos próximos tópicos abordados. • Teoria adotada no Direito Penal Brasileiro No contexto das teorias anteriores mencionadas, é importante ressaltar que estas não são as únicas existentes. De fato, o estudo do direito penal é vasto e diversificado, apresentando uma variedade de abordagens e perspectivas teóricas. É crucial compreender que, embora estas teorias tenham sido abordadas, não há uma única teoria correta ou errada. Como nos diz Paschoal (2019), “é necessário deixar claro que a adoção de determinada teoria da ação está relacionada à escolha filosófica de cada estudioso do direito, que deverá ser coerente com sua opção quando da análise dos demais institutos da disciplina.” Contudo, muitos autores brasileiros argumentam que, com a reforma da parte geral do Código Penal em 1984, o Brasil adotou a teoria finalista da ação. Como resultado, a maioria dos conceitos penais foi desenvolvida, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, sob uma perspectiva finalista. 11 3.2 Da tipicidade A tipicidade refere-se à correspondência entre a conduta do agente e o tipo penal descrito na legislação. Em outras palavras, para que uma conduta seja considerada crime, ela deve se encaixar em um dos tipos penais previstos na lei. Portanto, para que uma conduta seja qualificada como criminosa, é imprescindível que ela se ajuste ao tipo objetivo descritivo estabelecido na legislação. Se a conduta do indivíduo não estiver contemplada no tipo penal, não será configurado crime. O art. 1º do Decreto-Lei nº 2.848 – Código Penal Brasileiro – corrobora, dizendo que: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.” (BRASIL, 1940) Os fatos típicos são divididos em elementos objetivos e subjetivos. Os elementos objetivos referem-se à descrição da ação ou omissão em si, como por exemplo, "matar alguém". E existe ainda uma subdivisão deles, entre elementos descritivos e normativos. Os descritivos, como o próprio nome já diz, descrevem as características da conduta proibida de maneira objetiva e precisa. Eles definem os elementos materiais do tipo penal, ou seja, os aspectos concretos da conduta que devem estar presentes para que o tipo seja configurado. Por exemplo, no crime de homicídio, um elemento descritivo seria a ação de "matar alguém". São os aspectos factuais que descrevem o comportamento do agente de forma direta e objetiva. Já os normativos, contêm termos que demandam uma interpretação jurídica ou valorativa para determinar se a conduta se enquadra no tipo penal. Eles envolvem conceitos jurídicos ou morais que necessitam de uma aplicação subjetiva por parte dos julgadores. Por exemplo, em um tipo penal que proíbe "perturbação do sossego alheio", o termo "perturbação" é um elemento normativo, pois sua interpretação depende do contexto e da avaliação dos valores sociais e jurídicos. Assim, para definir-se se uma determinada conduta é ou não típica, se faz necessário uma operação intelectual de adequação/subsunção entre o fato concreto (praticado por alguém) e o fato abstrato previsto na lei penal. Se esse juízo for positivo, ou seja, se houver uma previsão em abstrato na lei penal na qual o fato praticado em concreto se encaixe, pode-se dizer que a conduta é típica. (SMANIO, 2019, p. 232) 12 Adentrando agora nos elementos subjetivos, estes estão relacionados com a vontade de realizar o resultado proibido (dolo) ou, pelo menos, com negligência ou imprudência (culpa). • Dolo O dolo diz respeito à intenção deliberada do agente de cometer a conduta criminosa, ou seja, à sua vontade consciente de realizar o comportamento proibido pela lei. Sendo assim, é possível afirmar que o dolo é composto por dois elementos: consciência (como sinônimo de conhecimento) e vontade (como sinônimo de querer/ desejar). Age dolosamente aquele que conhece os elementos objetivos do tipo penal e deseja praticá-los. (SMANIO, 2019, p. 239) No direito penal brasileiro, o dolo pode apresentar diferentes formas ou modalidades, dependendo das circunstâncias e da intenção do agente. A seguir temos algumas dessas diferentes formas. Dolo Direto: Nesta modalidade, o agente tem a intenção direta de realizar o resultado proibido. Ele age com o objetivo específico de alcançar o resultado criminoso, ciente de que sua conduta é proibida pela lei. Por exemplo, alguém que atira em outra pessoa com a intenção de matá-la age com dolo direto de homicídio. O dolo direto pode ainda ser dividido em dolo de primeiro grau e de segundo grau. Dolo direto de primeiro grau relaciona-se com o fim proposto e com os meios escolhidos para alcançá-lo. Dolo direto de segundo grau (também chamado de dolo mediato ou dolo de consequências necessárias) relaciona-se com os efeitos colaterais da conduta, tidos como necessários. (ANDREUCCI, 2024, p. 51) Dolo indireto ou indeterminado: ocorre quando a vontade do sujeito não se dirige a certo e determinado resultado. O dolo indireto possui duas formas: eventual e alternativo. No dolo eventual, o agente prevê como possível o resultado criminoso de sua conduta, mas age mesmo assim, assumindo o risco de produzi-lo. Mesmo que não tenha a intenção direta de realizar o resultado, o agente age de forma indiferente à sua ocorrência. Por exemplo, alguém que dirige embriagado assume o risco de causar um acidente, mesmo que não tenha a intenção direta de ferir alguém. Já o dolo alternativo, ocorre quando o agente tem a intenção de realizar ao menos um dos 13 resultados previstos na descrição típica do crime, mas não se importa com qual deles ocorrerá. Por exemplo, em um incêndio criminoso, o agente pode ter a intenção tanto de destruir o imóvel quanto de causar a morte de alguém. • Culpa Segundo o disposto no art. 18, II, do Código Penal, o crime é culposo “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”. (BRASIL, 1940) Portanto, para que um crime seja considerado culposo, é necessário que o agente tenha agido com negligência, imprudência ou imperícia, causando um resultado prejudicial não intencional. Isso significa que o agente não teve a intenção de produzir o resultado, mas deveria ter agido de forma mais cuidadosa para evitá-lo. De acordo com os princípios da Teoria finalista mencionada em umtópico anterior, para que uma conduta seja considerada típica, não basta apenas se enquadrar na previsão legal; é necessário também que esteja imbuída dos elementos subjetivos. (PASCHOAL, 2019) Partindo então do pressuposto que todo tipo penal demanda uma conduta, devemos observar que, no tipo penal culposo, o foco não está na intenção com que o agente realiza sua conduta, mas sim na forma como ela é executada. A marca distintiva da culpa é a conduta inadequadamente direcionada. Se considerarmos um homicídio culposo no trânsito, por exemplo, não é relevante entender a intenção por trás da condução do veículo pelo agente (se ele tinha a intenção de chegar em casa, no trabalho, no cinema, etc.), mas sim como ele estava conduzindo, ou seja, se estava observando ou não os deveres de cuidado objetivos necessários ao dirigir um veículo automotor, como velocidade adequada, condições do veículo, orientação da via, presença de embriaguez, etc. (SMANIO, 2019) Passamos agora a analisar os tipos de culpas elencados no art. 18, II citado anteriormente. Começando pela negligência, ela está ligada à falta de precaução ou de atenção por parte do agente ao realizar uma conduta, resultando em um resultado danoso não intencional. É quando o agente não adota as medidas adequadas de cautela que uma pessoa razoável adotaria em situações semelhantes. 14 A negligência, refere-se à falta de precaução ou de atenção por parte do agente ao realizar uma conduta, resultando em um resultado danoso não intencional. É quando o agente não adota as medidas adequadas de cautela que uma pessoa razoável adotaria em situações semelhantes. É importante consignar que a caracterização da negligência também está condicionada à previsibilidade e à possibilidade de evitar o resultado.1 Existem ainda delitos que são denominados “qualificados pelo resultado. O art. 19 do Código Penal fala em agravação da pena pelo resultado. Constitui exemplo desse tipo de crime a lesão corporal, capitulada no art. 129, § 3o, do Código Penal. Pois bem, o importante é apontar que, nesses casos, o resultado que agrava a punição somente poderá ser atribuído ao agente se houver sido por ele causado, pelo menos, a título de culpa, o que implica dizer que esse resultado há de ser previsível e evitável. (PASCHOAL, 2019, p. 64) Já a imprudência, esta consiste na realização de uma conduta arriscada ou perigosa, sem a devida precaução, resultando em um resultado danoso não intencional. É quando o agente age de forma precipitada ou temerária, sem considerar os possíveis riscos envolvidos em sua conduta. Por exemplo, dirigir em alta velocidade em uma área residencial. Para que a imprudência se verifique, é ainda necessário que o resultado, nas circunstâncias fáticas, seja previsível. Não basta ser possível, pois até mesmo o mais absurdo dos acontecimentos, no limite, é possível (por mais bem alicerçada que esteja uma casa, ela pode vir a cair durante uma tempestade de força jamais vista). A previsibilidade está relacionada a uma grande probabilidade de ocorrência de determinado resultado, como consequência do desrespeito ao dever de cuidado. (PASCHOAL, 2019, p. 63) Por fim, a imperícia, que se refere à falta de habilidade ou competência técnica por parte do agente ao realizar uma conduta que requer certa destreza ou conhecimento especializado. É quando o agente não possui a habilidade ou o conhecimento necessário para realizar a atividade de forma segura. Por exemplo, um médico que realiza uma cirurgia sem a devida qualificação ou treinamento adequado. A imperícia pressupõe habilitação/autorização para o exercício de determinada atividade. Pode-se dizer que ela nada mais é do que a imprudência ou a negligência praticada dentro de um determinado campo profissional. (SMANIO, 2019, p. 246) 15 3.3 Da ilicitude A ilicitude, também conhecida como antijuridicidade, é um dos elementos do crime no direito penal brasileiro. Ela se refere à contrariedade da conduta praticada pelo agente em relação ao ordenamento jurídico, ou seja, à violação de uma norma legal ou de um dever jurídico preestabelecido. Em termos simples, uma conduta é considerada ilícita quando contraria as normas estabelecidas pelo direito, seja uma lei penal, civil, administrativa ou qualquer outra norma jurídica vigente. No contexto penal, a ilicitude ocorre quando a conduta do agente viola uma norma penal incriminadora, ou seja, quando ele pratica um comportamento proibido pela lei. É importante destacar que nem toda conduta contrária ao ordenamento jurídico é considerada ilícita. Apesar da independência dogmática dos elementos que compõem o conceito analítico de crime, há uma relação necessária entre a ilicitude e a tipicidade que estabelecem entre si uma situação de regra e exceção, ou seja, toda conduta típica será ilícita, a não ser que esteja acobertada por uma das causas de justificação. (SMANIO, 2019) • Causas de exclusão da ilicitude Conforme já mencionado, algumas situações específicas permitem que uma conduta típica não seja considera ilícita (ou antijurídica), pois são autorizadas pelo ordenamento jurídico. Considerando o princípio da ofensividade como balizador do Direito Penal contemporâneo que só se legitima por meio da proteção subsidiária de bens jurídicos, é possível afirmar que as hipóteses de exclusão da ilicitude previstas no art. 23 do CP são autorizações legais e excepcionais para lesão a bens jurídicos de terceiros. Vejamos: Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. (BRASIL, 1940) 16 Dado que a ação e a tipicidade envolvem tanto aspectos objetivos (sequência de atos), subjetivos (dolo ou culpa) quanto valorativos (contrariedade a um valor social), conclui-se que a tipicidade não mais indica a antijuridicidade. Na realidade, para ser considerada típica, a ação deve ser antijurídica, pois deve contrariar um valor social. Portanto, se alguém é obrigado a matar uma pessoa para se defender, não cabe dizer que sua conduta foi típica, tampouco antijurídica, por ter agido em legítima defesa. Essas autorizações excepcionais são justificadas pela necessidade de imediata proteção dos bens jurídicos (estado de necessidade e legítima defesa) ou necessidade de proteção do próprio ordenamento jurídico (estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito). (SMANIO, 2019) Passamos a analisar cada uma das exludentes. O estado de necessidade é a situação em que uma pessoa, diante de uma ameaça ou perigo iminente e inevitável, pratica uma conduta que seria ilícita sob circunstâncias normais, mas que é justificada pela necessidade de evitar um dano maior. Vê-se de plano que o estado de necessidade só está presente quando há um perigo atual (e não uma possibilidade de perigo) que não fora causado pelo agente, sendo que esse mesmo agente não teria outra forma de evitar referido perigo a um direito seu ou de outrem. (PASCHOAL, 2019) Da mesma forma expõe o art. 24 Do Código Penal: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.” (BRASIL, 1940) Através desse artigo, podemos concluir que existem alguns elementos essenciais para caracterizar o estado de necessidade, sendo eles: perigo atual não provocado pelo agente; direito próprio ou de terceiro; ausência do dever legal de enfrentar o perigo; e inexigibilidade de sacrifício do bem ameaçado. A legítima defesa é um instituto jurídico presente no direito penal que permite a uma pessoa agir de forma defensivapara proteger a si mesma ou a terceiros de uma injusta agressão iminente, utilizando meios proporcionais e necessários para repelir essa agressão. 17 Nas palavras de Juarez Cirino dos Santos: O princípio da proteção individual justifica ações típicas necessárias para defesa de bens jurídicos individuais contra agressões antijurídicas, atuais ou iminentes. O princípio da afirmação do direito justifica defesas necessárias para prevenir ou repelir o injusto e preservar a ordem jurídica, independentemente da existência de meios alternativos de proteção, porque o direito não precisa ceder ao injusto, nem o agredido precisa fugir do agressor – excetuados casos de agressões não dolosas, de lesões insignificantes, ou de ações de incapazes, próprias da legítima defesa com limitações ético-sociais. (SANTOS, 2020, p. 235) Resumidamente, o indivíduo que se defende pode usar os meios necessários para repelir a agressão, os quais são entendidos como os disponíveis para ele, porém deve fazê-lo de forma moderada, ou seja, sem exceder. Por exemplo, se ele é ameaçado com uma faca, é aceitável que se defenda com uma arma de fogo. Contudo, se o agressor se afasta após um tiro de advertência, não é permitido atirar nele. Da mesma forma, se o agressor não se afasta após o aviso e o defensor precisa disparar um tiro na perna, não é permitido atirar novamente quando o agressor está caído no chão. O estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de direito não estão descritos no Código Penal como o estado de necessidade e a legítima defesa. Contudo, se trata de uma ação considerada conforme os valores arraigados em dada sociedade. Quem exerce regularmente um direito não está agindo ilicitamente, pois uma conduta não pode ser simultaneamente um direito e ilícita. Portanto, mesmo que aquele que exerça regularmente seu direito esteja praticando uma conduta típica, esta não será considerada ilícita, como é o caso do médico que, ao realizar uma cirurgia, precisa fazer uma incisão no paciente e causar-lhe uma lesão corporal (conforme o art. 129 do CP). O mesmo se aplica ao boxeador que, durante a luta, causa lesões no rosto de seu oponente. (SMANIO, 2019) Importante ressaltar que, o exercício regular de um direito se distingue do estrito cumprimento do dever legal, principalmente no que diz respeito à obrigatoriedade da conduta. No estrito cumprimento do dever legal, o agente é compelido a praticar a conduta, pois a lei impõe esse dever, enquanto no exercício regular de um direito, o agente tem a opção de praticar ou não a conduta. Em ambas as situações, não é permitido que haja excessos por parte dos agentes. 18 4 RELAÇÃO DE CAUSALIDADE A relação de causalidade se refere à relação de causa e efeito entre a conduta do agente e o resultado produzido por essa conduta. Ou seja, ela estabelece que a conduta do agente foi a causa que desencadeou o resultado, de modo que, sem essa conduta, o resultado não teria ocorrido. Nesse sentido, dispõe o art. 13 do Código Penal que “o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa”, considerando-se causa “a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. (BRASIL, 1940) É importante ressaltar que a relação de causalidade pode ser complexa em certos casos, especialmente quando há múltiplas condutas ou fatores que contribuem para o resultado. Nesses casos, é necessário analisar cuidadosamente todos os elementos envolvidos para determinar se há uma relação de causalidade válida. Diversas teorias foram desenvolvidas para determinar a relação de causalidade, no entanto, o Código Penal brasileiro expressamente adotou a teoria da conditio sine qua non, também conhecida como teoria da equivalência dos antecedentes. 4.1 Teoria da conditio sine qua non Tendo em vista que se adotou, no Brasil, em relação ao resultado a teoria naturalística, é correto afirmar que poderemos ter crimes com resultado (aqueles que, na forma consumada, causam uma modificação no mundo exterior como o homicídio, por exemplo) e crimes sem resultado (aqueles que, mesmo na forma consumada, não causam qualquer modificação no mundo exterior, como a injúria ou a embriaguez ao volante, por exemplo). (SMANIO, 2019) No entanto, nos casos de um crime material consumado, é necessário, para responsabilizar penalmente o autor, demonstrar não apenas a ocorrência de uma conduta típica e um resultado típico, mas também estabelecer um nexo de causalidade entre eles. Em outras palavras, é essencial comprovar que o resultado 19 ocorreu como consequência direta da conduta realizada pelo agente, evidenciando que a conduta é a causa do resultado. Paschoal leciona que: Para que seja possível atribuir determinado resultado a alguém (morte, lesão corporal, dano ao patrimônio alheio etc.), o mínimo que se pode exigir é que esse alguém tenha, mediante uma ação, como visto, livre, final e contrária aos valores sociais, dado causa a esse resultado. (PASCHOAL, 2019, p. 51) Nos crimes materiais, será sempre imprescindível estabelecer uma relação de causalidade entre a conduta realizada pelo autor e o resultado alcançado para responsabilizá-lo. Grande parte da doutrina sugere que a maneira mais confiável de determinar se uma conduta é ou não causa de um resultado específico é por meio da aplicação do método de eliminação hipotética. De acordo com esse método, para verificar se uma conduta é a causa de um resultado, basta imaginar hipoteticamente a exclusão dessa conduta e observar se o resultado ainda persiste. Se o resultado desaparecer após a exclusão hipotética da conduta, isso indica que a conduta foi a causa do resultado, estabelecendo assim uma relação de causalidade entre eles. No entanto, se o resultado continuar presente mesmo após a exclusão hipotética da conduta, isso significa que a conduta não foi a causa do resultado e não há relação de causalidade entre eles. (PASCHOAL, 2019) Da mesma forma, um pai que deliberadamente se abstém de alimentar o filho recém-nascido, resultando em sua morte, terá o resultado atribuído a ele e poderá ser acusado pelo crime de homicídio na modalidade omissiva imprópria (art. 121, caput, combinado com art. 13, § 2º, a, ambos do CP). No entanto, um estranho que não assumiu qualquer responsabilidade em relação ao recém-nascido não pode ser responsabilizado pelo resultado fatal, mesmo que se abstenha de alimentá-lo, uma vez que não ocupa a posição de garantidor e não tem o dever jurídico de agir para evitar esse desfecho. 20 4.2 Da omissão na relação de causalidade No artigo 13, especificamente no parágrafo 2º, do Código Penal, o legislador tratou da suposta relação de causalidade em situações de omissão. Há dois principais grupos de crimes omissivos: um é denominado de crimes omissivos próprios; e o outro é chamado de crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão. Os crimes omissivos próprios são aqueles relativos a tipos penais elaborados na forma omissiva. Melhor explicando, o verbo do tipo já evidencia um deixar de fazer. Os crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão são aqueles cujo tipo penal admite tanto uma realização ativa (mediante uma ação) como uma omissiva (mediante uma omissão), mas o verbo aparece como uma ação. (PASCHOAL, 2019, p. 54) Ainda sobre os crimes comissivos por omissão, o § 2º do art. 13 do CP nos traz a seguinte redação: § 2o A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. (BRASIL, 1940) Portanto, aquele que se encontra em uma dessas três circunstânciasse caracteriza pelo que a doutrina denomina como posição de garante, ou simplesmente garantidor, uma vez que tem a responsabilidade de proteger a vítima e evitar a concretização do resultado. Por exemplo, se em um clube, uma senhora assume a responsabilidade de cuidar do filho de uma amiga enquanto ela vai ao banheiro, e a criança acaba caindo na piscina, a senhora que assumiu essa responsabilidade tem o dever de evitar o afogamento, ou seja, tem a obrigação de prevenir o resultado fatal, podendo ser responsabilizada por homicídio culposo caso não o faça. Já um terceiro que não está em posição de garante poderia, no máximo, ser responsabilizado por omissão de socorro. 21 Da mesma forma, um pai que deliberadamente se abstém de alimentar o filho recém-nascido, resultando em sua morte, terá o resultado atribuído a ele e poderá ser acusado pelo crime de homicídio na modalidade omissiva imprópria (art. 121, caput, combinado com art. 13, § 2º, a, ambos do CP). No entanto, um estranho que não assumiu qualquer responsabilidade em relação ao recém-nascido não pode ser responsabilizado pelo resultado fatal, mesmo que se abstenha de alimentá-lo, uma vez que não ocupa a posição de garantidor e não tem o dever jurídico de agir para evitar esse desfecho. (PASCHOAL, 2019) 5 APLICAÇÃO DA LEI PENAL A lei penal, como ramo do direito, está sujeita a variações temporais e espaciais que influenciam sua aplicação e interpretação. A compreensão das normas penais demanda não apenas a análise do texto legal, mas também a consideração do contexto histórico e cultural em que foram elaboradas, bem como das peculiaridades do ambiente jurídico em que são aplicadas. Assim, a lei penal, como qualquer outra expressão da vida, está sujeita à influência do tempo, passando por fases de surgimento, vigência e seu fim. Podemos afirmar, então, que o "tempo de vida" da lei corresponde ao período entre sua promulgação e sua revogação, ou seja, sua vigência. 5.1 Lei penal no tempo À primeira vista, parece lógico que as condutas praticadas durante a vigência de uma determinada lei sejam punidas conforme o que essa lei dispõe. Este é o princípio do tempus regit actum - a lei penal em vigor naquele momento rege a ação praticada naquele momento. Entretanto, no âmbito do Direito Penal, a questão não é tão simples, pois frequentemente ocorre um fenômeno conhecido como sucessão de leis penais, quando uma norma é extinta e substituída por outra. (SMANIO, 2019) Ocorre que essa lei nova – novatio legis – pode regular o mesmo fato de forma mais severa ou de forma mais branda que a lei anterior, ou ainda, simplesmente deixar de considerar aquela conduta como criminosa. 22 Portanto, na ocorrência de sucessão de leis penais, podemos encontrar as seguintes situações: (a) abolitio criminis (quando a nova lei descriminaliza uma determinada conduta); (b) novatio legis in mellius (quando a nova lei prevê uma condição mais favorável ao réu); (c) novatio legis in pejus (quando a nova lei prevê uma situação desfavorável ao réu). Após essas considerações iniciais, será possível questionar, e conseguir uma resposta sobre quando um crime foi praticado, e qual será a lei aplicada sobre ele. Neste ponto, é fundamental relembrarmos o princípio da legalidade e todas as suas ramificações, a fim de resolver os conflitos surgidos em decorrência da sucessão de leis penais. O princípio da legalidade, previsto no art. 5.º, XXXIX, da Constituição Federal, encontra-se expresso no art. 1.º do Código Penal, que estabelece que “não há crime sem uma lei anterior que o defina e não há pena sem prévia cominação legal.” (BRASIL, 1940) De acordo com esse princípio, também conhecido como "nullum crimen, nulla poena sine lege", ninguém pode ser punido se não houver uma lei que classifique o ato praticado como crime. Além disso, é chamado de princípio da reserva legal, pois apenas a lei pode definir os crimes e suas respectivas penas, excluindo outras fontes legislativas. Alguns argumentam que existe uma diferença entre os princípios da legalidade e da reserva legal. Segundo essa perspectiva, o princípio da legalidade seria o conceito mais amplo, do qual os princípios da reserva legal e da anterioridade seriam espécies distintas. Contudo, argumentos e teorias a parte, nesse tópico nos importa o que nos traz o Parágrafo único do art. 2º do Código Penal: Art. 2.º Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único. A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. (BRASIL, 1940) 23 O parágrafo único do artigo aborda o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, uma importante garantia prevista no ordenamento jurídico brasileiro. Esse dispositivo estabelece que, caso uma nova lei penal seja mais favorável ao réu, ela deve ser aplicada mesmo a fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor e mesmo que já exista uma sentença condenatória transitada em julgado. Dessa exposição, podemos salientar que as leis penais, quanto aos seus efeitos, podem ser retroativas, ou seja, aplicáveis a fatos ocorridos no passado, antes de sua entrada em vigor, ou ultrativas, quando seus efeitos persistem no tempo mesmo após sua revogação. Em complemento, acerca do tempo do crime, o nosso Código Penal adotou a teoria da atividade no art. 4.º, que diz: "Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado." (BRASIL, 1940) Cabe ressaltar, que não podemos, contudo, confundir o momento da ação ou omissão, conhecido como tempo do crime, com a consumação do delito, quando todos os elementos definidos legalmente estão presentes. Certos crimes se consumam apenas com a ocorrência da ação ou omissão, como os crimes formais e os de mera conduta, nos quais o tempo do crime coincide com a sua consumação. (ANDREUCCI, 2024) Por outro lado, nos crimes materiais, a data da ocorrência do resultado naturalístico pode ser diferente da data da conduta, o que tem relevância para a contagem do prazo prescricional. Dessa forma, o art. 111 do Código Penal estipula que um dos pontos de partida para a contagem do prazo de prescrição da pretensão punitiva é a data da consumação do delito, a qual, nos crimes materiais, ocorre no momento em que o resultado naturalístico é produzido. 5.1.1 Crimes permanentes e continuados No que diz respeito ao momento do crime, há algumas questões que merecem atenção especial, especialmente quando se trata de crimes permanentes e continuados. 24 Entende-se por crime permanente aquele que se prolonga no tempo, ou seja, a consumação não é instantânea, mas perdura enquanto durar a ofensa ao bem jurídico, como, por exemplo: os crimes de extorsão mediante sequestro e cárcere privado, em que se considera que o crime está sendo praticado enquanto houver a restrição da liberdade da vítima, podendo o autor do crime ser preso em flagrante enquanto houver essa restrição. (SMANIO, 2019, p. 174) Nesse caso, compreende-se que, seja a lei nova favorável ou desfavorável ao réu, ela deve ser aplicada ao crime em curso, uma vez que o ato criminoso ainda está em andamento. Nesse sentido, não se configura retroatividade da lei, pois o fato ainda não está consumado, mas sim em execução. 5.2 Lei penal no espaço A lei penal no espaço refere-se à aplicação das normas penais em diferentes territórios, sejam eles nacionais ou estrangeiros. A eficácia da lei penal no espaço vem regulada pelo art. 5.º, caput, do Código Penal: “Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no territórionacional.” (BRASIL, 1940) A importância da questão da eficácia da lei penal no espaço reside na necessidade de resolver situações em que um crime afeta interesses de dois ou mais países, seja porque a conduta ocorreu no território nacional e o resultado se deu no exterior, ou vice-versa. É crucial destacar que a eficácia da lei penal no espaço não deve ser confundida com a competência territorial. Enquanto a última trata do crime cometido dentro do território nacional e é regulada por normas processuais, conforme disposto nos artigos 69 e seguintes do Código de Processo Penal. Dessa forma, há alguns critérios ou princípios empregados para determinar se a lei de um país ou de outro será aplicável a um ato criminoso cometido em determinado território. Acerca dessa matéria, existem alguns princípios relevantes a serem estudados: o princípio da territorialidade; princípio da personalidade ou nacionalidade; princípio real ou da defesa e princípio da universalidade do direito penal ou da justiça penal cosmopolita. 25 • Princípio da territorialidade O princípio da territorialidade estabelece que a aplicação da lei é restrita ao território do Estado que a promulgou. Portanto, todos que se encontram dentro desse território, sejam eles nacionais, estrangeiros ou apátridas, estão sujeitos às leis penais desse Estado. • Princípio da personalidade Também chamado de princípio da nacionalidade, segundo o qual a lei penal de um país é aplicável ao seu cidadão, independentemente de onde se encontre. Esse princípio é subdividido em personalidade ativa e passiva. A personalidade ativa refere- se à aplicação da lei nacional ao delinquente que comete um crime no exterior, independentemente do bem jurídico afetado pelo delito. Já em relação aos crimes cometidos no exterior, nos quais a lei nacional só é aplicável se o delito afeta um bem jurídico do Estado ou de um de seus cidadãos, é denominado de personalidade passiva. (SMANIO, 2019) • Princípio da defesa Também conhecido como princípio real ou princípio da proteção, este estabelece que a lei do país é aplicada de acordo com o bem jurídico afetado, independentemente da localização ou nacionalidade do agente. • Princípio da universalidade De acordo com o princípio da universalidade, cosmopolita ou da justiça universal, as leis penais devem ser aplicadas a todos os indivíduos, não importa onde se encontrem, independentemente da nacionalidade do agente, da vítima ou do bem jurídico afetado. 26 Em relação à aplicação da lei penal no espaço, o Código Penal brasileiro adotou como regra geral o princípio da territorialidade, o que pode ser verificado por meio do art.5º do Código Penal: "Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional." (BRASIL, 1940) Lembrando que, grande parte da doutrina é adepta a ideia de que essa territorialidade não pode ser interpretada como absoluta, uma vez que ela comporta exceções nos casos previstos em lei e convenções, tratados e regras de direito internacional. Em relação ao conceito de território, este deve ser entendido em seu sentido jurídico. É todo espaço terrestre, fluvial, marítimo e aéreo onde é exercida a soberania nacional. (ANDREUCCI, 2024) 6 CRIME CONSUMADO, CRIME TENTADO E CRIME IMPOSSÍVEL 6.1 Consumação A diferenciação entre o crime consumado e o crime tentado com o passar dos anos se torna cada vez mais clara. O crime consumado é aquele que possui todos os elementos do tipo penal devidamente preenchidos pelo agente. Por outro lado, o crime tentado é aquele em que o agente inicia a execução do delito, mas, por razões alheias à sua vontade, não consegue consumá-lo. Art. 14. Diz-se o crime: Crime consumado I – consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal; Tentativa II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. (BRASIL, 1940) Ainda no teor da diferenciação, Paschoal nos diz que, o que diferencia o crime consumado do crime tentado é a consecução do objetivo buscado. Em ambos está presente a intenção (elemento subjetivo); nos dois casos, houve atos executórios, ou seja, a exteriorização daquela intencionalidade. (PASCHOAL, 2019) 27 No que tange a manifestação exterior abordada no artigo supracitado, entendemos então que um crime pode ser tentado ou consumado. E a melhor forma de descobrir tal fato, é analisando o Iter criminis, que é o “caminho do crime”. Para uma melhor compreensão sobre a diferença entre a consumação e tentativa, vamos antes analisar cada fase do iter criminis: a) cogitação; b) atos preparatórios; c) atos executórios; d) consumação; e) exaurimento. A cogitação é uma etapa interna, não manifestada externamente pelo agente. É o momento em que o agente pondera internamente sobre cometer ou não o crime. A cogitação é a simples vontade ou representação mental sobre o crime, sem que haja o cometimento de qualquer ato externo pelo agente. Logo, a cogitação nunca é punível, pelo simples fato de que não se pode punir o pensamento de alguém, por mais hediondo que este seja. (SMANIO, 2019, p. 300) Na fase dos atos preparatórios, o agente começa a se preparar para cometer o crime, adquirindo os meios necessários, planejando a execução e tomando outras medidas preparatórias. Portanto, se o agente planeja cometer o crime de extorsão mediante sequestro e realiza ações como alugar uma chácara para servir de cativeiro, comprar cordas para amarrar a vítima e adquirir uma faca para ameaçá-la, esses atos são considerados preparatórios. (SMANIO, 2019) Contudo, devemos nos atentar. Via de regra os atos preparatórios não são passíveis de punição, pois ainda não representam um perigo efetivo de lesão ao bem jurídico, e o agente pode optar por não prosseguir com seu intento. Em casos excepcionais, os atos preparatórios podem ser passíveis de punição, pois configuram tipos penais independentes. Nessas circunstâncias, a punição ocorre com base no 28 tipo penal que descreve o próprio ato preparatório, e não na tentativa do crime planejado. Assim, utilizando o exemplo anterior, se o agente, com a intenção de sequestrar a vítima, rouba um carro, essa conduta constitui o tipo penal de furto por si só. Portanto, o agente poderia ser punido pelo furto do veículo, mas não pela tentativa de extorsão mediante sequestro. Na terceira fase do iter criminis, temos os atos executórios. Aqui o agente inicia a execução do crime, agindo de acordo com o plano estabelecido. O crime efetivamente se inicia a partir do primeiro ato executório, momento em que se torna viável punir o agente pela tentativa. Os atos executórios se estendem até o momento imediatamente anterior à consumação. A consumação ocorre quando todos os elementos do tipo penal são preenchidos. Ou seja, o crime é consumado quando o resultado previsto na lei se concretiza, mesmo que parcialmente. O momento da consumação é diferente nos diversos tipos penais, e é importante saber identificá-la pois é da consumação do crime que se inicia a contagem do prazo prescricional (art. 111, I, do CP) e é o local da consumação que define a competência territorial para o julgamento do crime (art. 70 do CPP). Nos tipos penais materiais, a consumação se dá no momento em que o bem jurídico é lesionado, isto é, com a ocorrência do resultado. Exemplo: No tipo penal de homicídio, a consumação se dá no momento da morte da vítima; Nos tipos penais formais, a consumação ocorre no momento da prática da conduta descrita no tipo penal, independentemente da ocorrência do resultado. Nos tipos penais culposos: a consumação sempre se configurará no momento da ocorrência do resultado. Exemplo: no homicídio culposode trânsito (art. 302 da Lei no 9.503/19979) a consumação ocorre no momento da morte da vítima; Nos ttipos penais omissivos próprios, a consumação ocorre no momento da prática da conduta omissiva, ou seja, no momento em que o agente deveria ter agido, mas não o fez. Exemplo: No tipo penal de abandono intelectual (art. 246 do CP10), o crime se consuma no momento em que o agente deveria ter provido a instrução primária do filho em idade escolar, mas não o fez; 29 Por fim, nos tipos penais omissivos impróprios, a consumação se dá no exato momento em que ocorre o resultado que o autor deveria ter evitado. Exemplo: Salva- vidas de um clube não socorre criança que caiu na piscina e esta morre afogada (art. 121, caput, combinado com art. 13, § 2o, b, ambos do CP). (SMANIO, 2019) Chegamos a última fase do iter criminis, o exaurimento. Este, não se confunde com a consumação do crime, pois ocorre após esta última fase, ou seja, quando o bem jurídico já foi lesado. Tomemos como exemplo o crime de extorsão mediante sequestro (art. 159 do Código Penal), que é um tipo penal material. Sua consumação ocorre no momento em que há a restrição da liberdade da vítima, ou seja, quando ela é arrebatada pelo agente. No entanto, é possível que após esse evento ocorra o recebimento do "resgate", sendo esse ato considerado mero exaurimento. O mesmo raciocínio se aplica ao homicídio: após a consumação do crime, que ocorre com a morte da vítima, o agente pode decidir quebrar-lhe os ossos, configurando assim o exaurimento do delito. (SMANIO, 2019) 6.2 Tentativa No Código Penal brasileiro, a tentativa é tratada como uma modalidade de execução do crime. Ela ocorre quando o agente pratica atos que visam à consumação do delito, mas não consegue concretizá-lo por circunstâncias alheias à sua vontade. Para que se configure a tentativa, é necessário que haja um início de execução do crime, que o agente tenha a intenção de praticar o delito e que essa execução seja interrompida por circunstâncias alheias à sua vontade. Lado oposto, a tentativa apenas será configurada quando a não consumação do crime não for causada por circunstâncias externas à vontade do agente. Se o crime não se consumar devido à vontade própria do agente, ou seja, se ele que iniciou a execução do crime decide não prosseguir, não se caracteriza tentativa, mas sim arrependimento eficaz ou desistência voluntária. Quanto ao aspecto subjetivo (dolo), não há distinção entre o crime consumado e o crime tentado. Quando o agente inicia a execução de um crime doloso, sua intenção é sempre consumá-lo. No entanto, se, por algum motivo externo à sua vontade, a consumação não ocorre, caracteriza-se como tentativa. 30 Assim, por exemplo, se A com a intenção de matar B dispara arma de fogo atingindo-o no peito, o crime poderá ser consumado – caso B morra em virtude do tiro – ou tentado – caso B seja socorrido e sobreviva. Em qualquer das hipóteses, o dolo de A era o mesmo: vontade e consciência de matar B. (SMANIO, 2019, p. 304) Importante ressaltar, que em razão de todas essas especificações, alguns crimes não admitem a tentativa. Vejamos: a) tipos penais culposos: os crimes culposos não admitem tentativa, pois o resultado não é desejado pelo agente. Admitir-se a tentativa do crime culposo seria uma contradição lógica, pois seria admitir a possibilidade de alguém tentar obter algo que não deseja. b) tipos penais preterdolosos: sendo o tipo penal doloso composto pelo dolo no resultado antecedente e culpa no resultado consequente, também é impossível a tentativa, pelos mesmos motivos do tipo penal culposo. c) Crimes omissivos próprios: são aqueles em que a conduta omissiva é exclusiva. A consumação desses crimes ocorre no instante em que o agente deveria ter agido, mas optou pela omissão. Se o agente tentou não agir, porém foi incapaz de fazê-lo, isso implica que ele agiu, ou seja, seguiu a norma determinada, não havendo, portanto, a configuração do crime. d) Crimes habituais: são aqueles que requerem uma repetição para sua configuração. Ou seja, não se consumam com a prática de uma única conduta, mas sim com a reiteração dessa conduta. Um exemplo é o crime de casa de prostituição (art. 229 do CP). Portanto, ou houve reiteração e o crime se consumou, ou não houve reiteração, e, consequentemente, não há ocorrência do crime, tornando a tentativa impossível. 31 e) tipos penais unissubsistentes: são aqueles nos quais as condutas não podem ser divididas em atos separados, pois cada ato praticado configura um crime individual. Isso é observado, por exemplo, no caso da injúria (art. 140 do CP). f) contravenções penais: em grande parte dos casos, seria materialmente possível a tentativa. Contudo, por razões de política criminal, o legislador optou por não expressamente admiti-la, conforme previsto no artigo 4º da Lei de Contravenções Penais (Lei nº 3.688/1941). 6.3 Crime impossível Crime impossível refere-se a uma situação em que a conduta realizada pelo agente, embora direcionada à prática de um crime, esbarra em circunstâncias que tornam materialmente impossível a consumação do delito. Isso porque, do mesmo modo que não há crime sem intenção, apesar de haver objeto material e até resultado, não há crime quando está presente a intenção, mas ausente o objeto material. (PASCHOAL, 2015, p. 58) Um exemplo comum de crime impossível é quando alguém tenta furtar um objeto que, na verdade, é falso ou pertence ao próprio agente, de modo que a subtração seria juridicamente impossível. Nesses casos, a legislação brasileira considera o ato como atípico, ou seja, não se configura como crime, visto que não há lesão ou perigo efetivo ao bem jurídico protegido pela norma penal. Nestas hipóteses, simplesmente não há qualquer punição para o agente, pois não houve qualquer possibilidade de lesão aos bens jurídicos tutelados. O crime impossível é tratado no artigo 17 do CP, e diz que: “não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.” A partir desse artigo, conclui-se que existem então duas hipóteses de configuração para o crime impossível: a ineficácia absoluta do meio, e a impropriedade absoluta do objeto. 32 A ineficácia absoluta do meio, ocorre quando o meio escolhido pelo agente para execução do crime é absolutamente ineficaz, inadequado para produzir o resultado pretendido. Exemplo: pessoa tenta matar outra com arma descarregada ou de brinquedo; pessoa tenta envenenar outra, mas ministra-lhe farinha pensando ser remédio etc. Já a impropriedade absoluta do objeto, ocorre quando o objeto da ação do agente é absolutamente inadequado para a execução do tipo penal correspondente. Por exemplo: administrar um remédio abortivo em uma mulher que não está grávida; disparar com a intenção de matar uma pessoa que já está morta; ou tentar furtar ao enfiar a mão no bolso de alguém que não tem nada consigo. Em ambas as hipóteses, é preciso atentar-se para o fato de que somente será reconhecida a impossibilidade do crime se a ineficácia do meio ou a impropriedade do objeto forem absolutas, ou seja, sem qualquer possibilidade de consumação. Se a ineficácia do meio ou a impropriedade do objeto forem meramente relativas, está caracterizada a tentativa. Assim, se a pessoa ministra quantidade de veneno insuficiente para matar, a ineficácia do meio é relativa; e se a pessoa dispara arma de fogo contra vítima com morte cerebral, a impropriedade do meio é relativa. Em ambas as hipóteses, não há que se falar em crime impossível, e os agentes poderão ser penalmente responsabilizados. (SMANIO, 2019, p. 311) Finalmente, é viável que a ineficácia completa do objeto e a inadequação total do meio estejam presentes ao mesmo tempo na mesma ação, comoacontece na tentativa de aborto através da ingestão de analgésicos inócuos por uma mulher que não está grávida. 7 DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA, ARREPENDIMENTO EFICAZ E ARREPENDIMENTO POSTERIOR 7.1 Desistência voluntária Como previamente abordado, a caracterização do crime tentado requer que, após o início de sua execução, não ocorra a consumação devido a circunstâncias independentes da vontade do agente. Essas circunstâncias podem incluir a intervenção de terceiros ou simplesmente a não obtenção do resultado desejado, 33 mesmo com a utilização de todos os meios necessários para alcançar o objetivo pretendido. Contudo, há cenários nos quais, após o início da execução do crime, o resultado inicialmente almejado não se concretiza devido à ação do próprio agente. Este pode interromper os atos executórios ou, mesmo após tê-los concluído, pode agir para evitar a ocorrência do resultado. Quando o agente para os atos executórios ou decide não continuar com a execução, isso é chamado de desistência voluntária. Já quando, mesmo após concluir o delito, o agente impede que o resultado ocorra, como levar a vítima ao hospital, isso é conhecido como arrependimento eficaz. É considerado eficaz porque foi capaz de evitar o resultado prejudicial. (PASCHOAL, 2015) A desistência é voluntária se fundada em dó ou piedade, em motivo de consciência, sentimento de vergonha, medo da pena etc.; a desistência é involuntária se para evitar o flagrante, ou por receio de bloqueio das vias de fuga, ou porque o fato foi descoberto etc. (SOARES, 2008, p. 311) Uma vez reconhecida a desistência voluntária, o agente não será responsabilizado pela tentativa do crime que iniciou, mas apenas pelos atos já consumados. 7.2 Arrependimento eficaz O arrependimento eficaz está associado à tentativa acabada, pois acontece quando o agente, após ter esgotado todas as possibilidades para consumar o crime, se arrepende e toma novas ações que efetivamente impedem a consumação. Um exemplo clássico de arrependimento eficaz é quando alguém, após envenenar a vítima, se arrepende e lhe fornece o antídoto, evitando assim a sua morte. É evidente que o agente somente se beneficiará dessa circunstância se conseguir evitar o resultado, pois se, mesmo após a administração do antídoto, a vítima falecer, o agente será responsabilizado pelo crime de homicídio doloso consumado. (SMANIO, 2019) 34 Tanto na desistência voluntária quanto no arrependimento eficaz, o agente é responsabilizado pelas ações cometidas. Isso implica que, se inicialmente pretendia cometer homicídio, mas conseguiu evitar que o resultado fatal ocorresse, ele será punido pelas lesões causadas, mas não pelo homicídio tentado. É importante deixar claro que os motivos que levaram o agente a desistir ou a se arrepender de forma eficaz são irrelevantes, ou seja, não importa se o agente desistiu de praticar o estupro em razão de haver pensado na dor física e moral da vítima ou se não perpetrou o delito em razão de ter constatado que a vítima estava menstruada. (PASCHOAL, 2015, p. 60) 7.3 Arrependimento posterior O arrependimento posterior difere do arrependimento eficaz, uma vez que este ocorre antes da consumação do crime, enquanto aquele ocorre após a consumação. O arrependimento posterior está definido no artigo 16 do Código Penal, sendo: Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços. Além disso, é importante lembrar que somente restará configurado o arrependimento posterior, mediante os seguintes requisitos: a) crime sem violência ou grave ameaça à pessoa. Ou seja, esse instituto não se aplica em casos de roubo, lesão corporal, homicídio, estupro, etc. Entretanto, é aplicável em casos de furto, estelionato, falsificação de documento público, etc. b) reparação do dano ou a restituição da coisa. Essa reparação deve ocorrer antes do início da ação penal, que se dá com o oferecimento da denúncia ou queixa-crime. Após esse ponto, o benefício do arrependimento posterior não é mais cabível. c) A reparação do dano ou a restituição da coisa devem ser voluntárias, ou seja, realizadas por vontade do agente. O benefício não será concedido se os bens forem recuperados pela polícia ou se o juiz ordenar sua busca e apreensão em posse do agente. 35 8 CONCURSO DE PESSOAS O concurso de pessoas, também conhecido como concurso de agentes ou participação criminosa, é um instituto do Direito Penal brasileiro que trata da responsabilidade de mais de uma pessoa na prática de um crime. Sempre que ocorre a cooperação de mais de uma pessoa na prática de um delito, caracteriza-se o concurso de pessoas. No atual sistema do Código Penal, adotado em 1984 durante a reforma da sua Parte Geral, o concurso de pessoas assume duas modalidades: coautoria e participação. Coautores são aqueles que colaboram na execução da conduta criminosa, sendo essencial para o crime a função atribuída a cada um deles. É importante ressaltar que nem todos os coautores precisam executar todas as ações descritas no tipo penal, sendo fundamental apenas que exista um acordo prévio entre eles e uma unidade de propósitos para a realização do delito. Assim, se três homens se unem para roubar um banco, ajustando que um deles ameaçará os funcionários e clientes com uma arma, o outro pegará o dinheiro no cofre, enquanto o terceiro aguardará no carro para avisá-los da chegada da polícia e guiar durante a fuga, não se pode dizer que um pra- ticou ameaça, o segundo o furto e o terceiro não realizou nenhuma conduta delitiva. (PASCHOAL, 2019, p.73) A participação pode ocorrer de três formas distintas: por meio do induzimento, da instigação ou do auxílio, que, embora não seja explicitamente mencionado no Código, pode ser interpretado como uma forma de cumplicidade. Induz-se quando alguém faz surgir na mente de outra pessoa a ideia de cometer o crime; instiga-se quando se incentiva uma ideia já existente. A esse respeito, cabe inclusive ressaltar que a participação não sobrevive sem a autoria. Entre ambas se estabelece uma relação de acessório e principal; é até por isso que o art. 31 do Código Penal estatui que o ajuste, a determinação, a instigação e o auxílio não são puníveis na hipótese de o crime não chegar, pelo menos, a ser tentado. Todos esses atos, sem o início da execução, são considerados meros atos preparatórios, e os atos preparatórios não são puníveis. (PASCHOAL, 2019, p.73) 36 O Código Penal brasileiro tratou da questão no art. 29, caput, ao prever: quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. (BRASIL, 1940) Isso não implica que todos os envolvidos no crime receberão penas idênticas, mas sim que estão sujeitos aos mesmos limites mínimos e máximos estabelecidos no tipo penal em que incorreram. Por exemplo, os participantes de um homicídio simples (art. 121, caput, do Código Penal) estão sujeitos a uma pena mínima de 6 e máxima de 20 anos. A determinação final da pena será baseada na culpabilidade de cada um dos envolvidos. Contudo, todos serão responsabilizados pelo homicídio simples. Porém, o art. 29 do CP tem um § 1o com a seguinte redação: § 1o Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço. Isso indica que, embora o legislador tenha adotado a teoria monista em relação ao concurso de pessoas, foi necessária a diferenciação entre autor e partícipe devido ao § 1º, que estabelece a redução de pena para o partícipe de menor relevância. Dado que a figura do autor é a mais significativa, é crucial determinar sua identidade. Para isso, foram elaboradas várias teorias, cada uma utilizando critériosdistintos para definir o autor. As teorias mais frequentes sobre autoria são: a) Teoria Subjetiva: Elaborada no século XIX e creditada a von Buri, esta teoria diferencia o autor do partícipe com base na vontade do agente. O autor é aquele que deseja o fato como seu próprio, agindo com animus auctoris. Já o partícipe é aquele que deseja o fato como alheio, agindo com animus socii. Esta teoria é criticada pela imprecisão decorrente de um critério puramente subjetivo e pelo fato de que em tipos penais que não permitem autoria mediata (crimes de mão própria, como o falso testemunho, por exemplo), sujeitos não qualificados não podem ser autores e sujeitos qualificados não podem ser partícipes, independentemente de seus desejos. b) Teoria Extensiva:Esta teoria defende que todos os envolvidos na prática do crime são considerados autores, independentemente de suas funções específicas. Não há distinção entre autor e partícipes, pois todos são 37 c) considerados autores. Embora esta teoria seja simples e facilite a aplicação da pena no caso concreto, ela é criticada por diversos motivos: (i) todos os participantes do crime são equiparados, sem considerar suas diferentes contribuições objetivas e subjetivas para a lesão do bem jurídico; (ii) sujeitos não qualificados podem ser considerados autores de crimes especiais (por exemplo, um particular pode ser considerado autor de abuso de autoridade) ou de delitos de mão própria (por exemplo, o marido da testemunha que a induz a mentir seria considerado autor do crime de falso testemunho), o que pode ser considerado contraditório. d) Teoria Restritiva: Essa teoria define como autor aquele que realiza o verbo, ou seja, o núcleo do tipo penal, enquanto considera como partícipe aquele que contribui para o crime, mas sem executar o verbo, o núcleo do tipo penal. Por exemplo, em um crime de homicídio, o indivíduo que dispara contra a vítima seria o autor, enquanto aquele que fornece a arma e munição seria o partícipe. Essa construção teórica tem o mérito de fundamentar a distinção entre autor e partícipe com base na relação com a conduta típica, estabelecendo um critério formal e funcional rígido para todas as situações de autoria direta e de mão própria. No entanto, essa teoria não explica de forma satisfatória a diferenciação entre autor e partícipe em crimes de autoria mediata (por exemplo, quando um herdeiro entrega um bombom envenenado a sua tia rica usando seu filho inimputável) e coautoria (quando um herdeiro distrai a atenção da tia rica para que sua esposa possa adicionar veneno ao café dela). Segundo a teoria restritiva, nos exemplos mencionados, o herdeiro que planejou a morte da tia rica seria considerado o partícipe, pois não realizou o verbo núcleo do tipo penal: "matar". e) Teoria do domínio do fato: a teoria do domínio do fato pode ser explicada da seguinte forma: o autor é aquele que controla a realização do evento criminoso, decidindo sobre sua continuidade ou interrupção, enquanto o partícipe é aquele que não exerce controle sobre a execução do crime. Parece plenamente viável adotar a teoria do domínio do fato no sistema penal brasileiro. Como já 38 discutimos anteriormente, essa distinção entre autores e partícipes é necessária e prudente, especialmente à luz do princípio da culpabilidade. Isso ocorre porque o Código Penal, no artigo 29, não adota a teoria monista de maneira absoluta, mas sim de forma "temperada". (SMANIO, 2019) No que diz respeito ao princípio da culpabilidade, que se refere à aplicação de pena de forma proporcional à censurabilidade da conduta do condenado, o legislador previu no artigo 30 do Código Penal que as circunstâncias de natureza pessoal, exceto quando forem elementos essenciais do crime, não se comunicam, ou seja, não se estendem ao coautor ou ao partícipe. Acerca desse tema, é importante lembrar que alguns delitos que não permitem a coautoria, apenas a participação, mesmo que esta seja essencial para a realização do crime. Estes são conhecidos como crimes de mão própria. É importante não confundir os crimes de mão própria com os crimes próprios, nos quais o sujeito ativo deve necessariamente preencher certas características, como ser funcionário público, por exemplo. Nos crimes de mão própria, apenas o agente pode executar o núcleo do tipo penal. Embora ele possa ser induzido, instigado ou auxiliado, somente ele pode realizar a ação. Um exemplo disso é o falso testemunho, onde somente a testemunha pode prestar depoimento durante a audiência. Portanto, a coautoria não é admitida, apenas a participação. (PASCHOAL, 2024) 39 9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS PASCHOAL, Janaina Conceição. Direito penal: Parte Geral. 2.ed. - Barueri, SP: Manole, 2015. PARDAL, Rodrigo. Direito Penal: parte geral. 2. ed. - São Paulo: Rideel, 2023. SMANIO, Gianpaolo Poggio. Direito penal: parte geral. – 1. ed. – São Paulo: Atlas, 2019. PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal. Parte Geral. 6. ed. Editora RT. São Paulo. 2006. ANDREUCCI, Ricardo A. Manual de Direito Penal / Ricardo A. Andreucci. - 16. ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2024. SANTOS, Juarez C. dos. Direito penal. Parte Geral. 3. ed. Curitiba: ICPC, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. WELZEL, Hans. El nuevo sistema del derecho penal: una introducción a la doctrina de la acción finalista. Trad. José Cerezo Mir. Montevideo-Buenos Aires: BdeF, 2006. JESCHECK, Hans-H; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal. Parte General. 5. ed. Trad. Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Comares, 2002. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Imprenta: São Paulo, Tirant lo Blanch, 2020.