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DEFINIÇÕES SOCIOLÓGICAS DO DIREITO SUMÁRIO: 1. Definição monista ampliada 2. Definição pluralista 3. Definição construti vista-comunicativa. Immanuel Kant observou, em 1781, que os juristas ainda estavam buscando uma definição adequada do direito (Kant, 1998, p. 625), ou seja, não sabiam qual era exatamente o objeto de seus estudos. Esta constatação foi plenamente confirmada, mais de dois séculos depois, em uma coletânea de “controvérsias” de conhecidos juristas sobre a definição do direi lo (Amselek e Grzegorczyk, 1989, p. 5) e, ainda mais recentemente, em um manual de direito alemão (Pawlowskj, 2000, p. 133). Sabem os sociólogos do direito qual é o seu objeto de estudo? A resposta deve ser também negativa. Nos dois casos, o problema é que os especialistas não podem chegar a um acordo sobre a definição do fenômeno estudado. Isto acontece em geral nas ciências humanas, que não são epistemologicamente fechadas: o posicionamento político e as escolhas teóricas de cada autor são diferentes e influem sobre os resultados do seu trabalho. No caso da sociologia jurídica, os problemas complicam-se ainda mais pelo fato de existirem hoje duas grandes famílias de sistemas jurídicos. Os sistemas fundamentados da supremacia do legislador e aqueles fundamentados na supremacia da jurisprudência. No primeiro caso, a principal fonte do direito é o conjunto das normas escritas, que corresponde à vontade das autoridades políticas. Este modelo tem a sua origem nos países da Europa continental, sendo adotado, hoje, em grande parte do mundo, inclusive na América Latina (legicentrismo). No segundo caso, o elemento mais importante do sistema jurídico é a tradição estabelecida na vida política e nos tribunais com relação a determinados problemas. Este é o sistema que se formou na Inglaterra e que continua válido em quase todas as ex-colônias da Coroa Britânica (“direito comum”, conunon law). Dependendo do sistema jurídico de cada país, os sociólogos do direito possuem uma visão sobre o que é o direito e orientam a sua pesquisa de forma diferente. Assim sendo, a sociologia jurídica nos países legicentristas interessa-se particularmente pelos mecanismos de formação e pela eficácia das leis; na tradição da pesquisa anglo-saxã prevalece, ao contrário, o interesse pelos operadores do direito. Esta diferença é tão forte que a autora de um recente manual de sociologia jurídica optou pela divisão em duas partes, estudando sepa radamente a “força da lei”, nos países de direito legicêntrico e a “força da decisão judiciária”, nos países do common law (Servem, 2000). A autora concluiu que os sociólogos do direito não podem alcançar um consenso sobre o objeto de sua disciplina, existindo grandes diferenças entre os vários países. Devemos acrescentar que as diferenças sobre a definição do direito aumentam se levarmos em consideração outras culturas jurídicas, que se fundamentam nos costumes (direito dos povos indígenas) e nos mandamentos religiosos (direito tslâmico)). Após ter estudado neste livro conceitos, aspectos e teorias da soci ologia jurídica, podemos apresentar as principais definições do direito na perspectiva sociológica, retomando elementos das precedentes aná lises. Três são as definições mais importantes para aqueles que consi deram o direito como fenômeno social. 1. DEFINIÇÃO MONISTA AMPLIADA A perspectiva monista considera que o sistema jurídico é composto por normas legais que possuem validade em determinado território, sendo estabelecidas e aplicadas pelos órgãos do Estado. Esta definição, de origem positivista, sofre uma importante ampliação no âmbito da sociologia jurídica. O jurista-sociólogo que adota a perspectiva positivista, não considera como direito somente o que determina a lei, mas também o que acontece na prática jurídica (“direito em ação”). Assim sendo, o termo “legislar” não possui o significado estrito de “ser constitucionalmente Legislação X Jurisprudência Hans Kelsen Se interessa em estudar como o direito é aplicado. habilitado para estabelecer normas jurídicas”. Na perspectiva sociológica, criar normas juridicas significa também ter o poder de determinar o sentido destas normas na prática. Assim sendo, os juristas-sociólogos que adotam a definição monista ampliada, estudam o direito estatal privilegiando os seus aspectos práticos, ou seja, as formas de sua aplicação: “o direito pode ser empiricamente observado através do comportamento dos operadores jurídicos” (Rehbinder, 2000, p. 48). 2. DEFINIÇÃO PLURALISTA A definição pluralista amplia ainda mais o conceito sociológico do direito. Considera como direito qualquer sistema de normas sociais que regule efetivamente a vida social. Um sistema de normas que adquire validade e eficácia na prática social é considerado como parte do campo jurídico, mesmo quando é contrário ao direito estatal (por exemplo, a máfia siciliana). Uma definição pluralista do direito é dada por Sousa Santos: “o di reito é um corpo de procedimentos regularizados e de padrões normati vos, con siderados justificáveis num dado grupo social, que contribui para a criação e prevenção de litígios, e para sua resolução através de um dis curso argumentativo, articulado com a ameaça de força” (2000, p. 290). As definições pluralistas enfrentam um problema. Qual é o critério que permite saber se um sistema de normas é reconhecido no âmbito de um grupo social? Foram propostos três critérios. O primeiro é o critério do constrangimento (ou da coação), adotado, entre outros, por Max Weber: existe um ordenamento jurídico quando um aparelho de poder pode aplicar violência física em caso de descum primento das normas em vigor (Lição 5, 1). Critério de juridicidade é a capacidade de exercer coação organizada em caso de violação de iormas. Nesta perspectiva, são definidos como jurídicos os sistemas de normas garantidos por uma agência que possui prestígio e força, sendo esta capaz de impor suas decisões em caso de conflito (Junqueira e Rodrigues, 1988, p. 128). O segundo é o critério da eficácia social de um sistema de normas. É considerado como “direito” o conjunto de normas que cria e confirma expectativas sobre o comportamento dos demais. Se um indivíduo sabe que os outros se comportam conforme as normas, então ele também tenderá a respeitar as leis em vigor. Neste caso, critério de juridicidade é a capacidade de um sistema normativo de influenciar o comportamen to das pessoas (Krawietz, 1988). Exemplo: um comerciante que vende a prazo sabe que a maioria de seus clientes paga as prestações regularmente. Isto lhe permite prever seus futuros rendimentos, organizar sua atividade econômica e, por exemplo, contrair empréstimos para ampliação do estoque e abertura de novas lo jas. Aqui o comportamento dos clientes e do comerciante é devido à exi s tência de normas que criam expectativas de comportamento, sendo que estas expectativas geralmente são confirmadas (a maioria dos clientes paga suas dívidas e o comerciante pode honrar seus compromissos). O terceiro critério é o individual-psicológico. Seus partidários se guem a tradição do direito natural racional (Lição 1, 1.3), que entende que a definição do direito depende do sentimento de justiça dos indivíduos. Uma das primeiras definições individuais-psicológicas do di reito na sociologia jurídica encontra-se em Ehrl ich. Em sua opinião “os diversos tipos de normas provocam diversos sentimentos”. Cada um destes sentimentos corresponde a um tipo de normas sociais. A violação de normas morais provoca indignação, o descaso em relação às regras de cortesia causa raiva e a inobservância das regras de boas maneiras expõe o transgressor ao ridículo. A violação das normas jurídicas des perta nos membros da sociedade o sentimento de “revolta” (Ehrlich, 1986, p.129).2 As definições que fazem depender o direito de sua aceitação pelo grupo social constituem o ponto de partida do pluralismo jurídico (Li ção 5, 5) e são aceitas por muitos juristas-sociólogos. Esta preferência é facilmente explicável. Sendo estes interessados pela realidade social do direito, consideram importante a eficácia das normas, isto é, sua capacidade de regular a vida social, graças ao fato de serem reconheci das pelo grupo social. 3. DEFINIÇÃO CONSTRUTIVISTA-COMUNICATIVA Uma terceira possibilidade de definição sociológica do direito é aquela que adota a perspectiva do construtivismo e da teoria sistêmica. Segundo esta visão, o direito é um sistema Pierre Bourdieu afirma que o homem tende a reproduzir o comportamento do grupo ao qual está inserido. Por outra perspectiva, de acordo com a teoria dos Fatos Sociais de Émile Durkheim, estes são externos ao ser humano, ou seja, ele não tem escolha a não ser seguir as regras impostas pela sociedade. Eficácia das normas por sua aceitação social social criado através de atos de comunicação social sobre a “juridicidade”. O sistema jurídico possui um código de funcionamento: legaL/ilegal (RechtlUnrccht). O comportamento do vizinho que não cumprimenta é ilegal ou somente mal-educado? A postura de um cientista que falsifica os experimentos fingindo ter feito uma descoberta viola somente o dever científico da verdade ou constitui também fraude? As relações sexuais extraconjugais são um ato moralmenté reprovável ou um ilícito penal (adultério)? A resposta depende do que pensa determinada sociedade. Se esta caracteriza, por exemplo, o adultério, através do código jurídico (“ile gal”), então este é um comportamento juridicamente relevante, enqua dra-se no sistema jurídico. Se a sociedade o caracteriza segundo códigos morais (imoral), religiosos (pecado) ou sentimentais (tristeza), então se trata de comportamento que não possui relevância jurídica. Assim sendo, os atributos “juridicidade” e “legal/ilegal” dependem de uma série de fatores sociais. Está fora de dúvida que, nas nossas sociedades, as normas produzidas pelo Estado possuem as maiores chances de serem consideradas jurídicas. Também a atuação dos ope radores jurídicos é primordial para a aplicação do código “legal/ilegal” e para a caracterização de uma norma como jurídica. O Estado e os operadores jurídicos produzem o direito. Toda a sociedade participa, porém, do processo que se denomina “atualização da referência ‘direi to” (Fõgen, 1997, p. 81). Seguir esta linha de definição significa estar atento ao que a socie dade pensa. O jurista- sociólogo examina assim a realidade do direito, que é historicamente mutável, colocando a seguinte questão; podemos considerar hic ei noite (aqui e agora) uma norma como jurídica? Se, por exemplo, a quota de eficácia da norma penal que pune o adultério é “zero”, este preceito não é considerado jurídico pela sociedade, apesar de possuir validade formal. O sociólogo do direito deve examinar as causas desta total,ineficá cia. Não pode, porém, considerar tal norma como parte do sistema jurídico, já que se trata de uma letra morta. Neste caso, a sociedade atualizou a sua referência jurídica. Excluiu esta norma do sistema jurí dico em vigor, julgando a relação sexual extraconjugal em base a có digos de outros sistemas sociais (moral, religião, sentimentos). O exemplo mais claro de problemas de validade do direito é ofere cido, nas últimas décadas, pelo direito internacional. Há um direito universal independentemente da vontade e da atuação dos Estados. A observação sociológica e política nos ensina que não é suficiente fazer uma “Declaração Universal de Direitos” para alcançar a validade jurí dica. Tampouco pode ser sustentado que o direito internacional “não existe” e que as Declarações e Convenções sobre direitos humanos são somente um texto político ou uma pura “ideologia”. As sociedades atuais ainda não decidiram se os textos normativos de direito intema cional possuem validade jurídica, ou seja, permitem uma comunicação social fundamentada no código legal/ilegal. A criação de tribunais internacionais, na segunda metade do século XX, e as iniciativas de proteção dos direitos humanos através de sanções internacionais (por exemplo, no caso Pinochet), anunciam uma trans formação na comunicação social sobre o direito internacional. Este é considerado, cada vez mais, um tema jurídico. Esta evolução não exclui que muitas decisões das organizações e dos tribunais internacionais continuem protegendo os interesses das grandes potências, não se co locando a serviço dos direitos humanos. Aqui interessa, porém, o fato de que os governos e a opinião pública começam a reconhecer uma legalidade internacional. Em poucas palavras, a perspectiva construtivista-comunicativa considera que a sociedade constrói, em cada momento histórico, uma “província de sentido” chamada Direito, através diatos de comunica ção social. O meio principal da comunicação social é a linguagem, que dá um determinado sentido aos comportamentos e às instituições so ciais. O código jurídico é estável. As normas e os comportamentos que, em cada momento histórico, pertencem a esta “província de sentido” são extremamente mutáveis.3 O comportamento que ontem era crime converte-se hoje em exer cício legítimo de um direito — e vice-versa. Reduzir uma pessoa à condição de escravo é hoje crime, sendo que o mesmo ato era conside rado, em muitos países, como exercício legítimo do direito de proprie dade até o século XIX. A homossexualidade constitui hoje manifestação da liberdade sexual de uma pessoa adulta, sendo que alguns séculos atrás era um “delito nefando”, passível de pena de morte, existindo ainda países que punem a homossexualidade como delito. A qualificação de uma norma como “jurídica” depende da comunicação que estabelece cada sociedade com relação ao direito (Luhmann, Bergere Luckmann, 1985. Veja, com referência específica ao direito, Luhmann, 1997, pp. 33 e ss., 54 e ss., 66 e ss., 496 e ss.; Neves, 1994, pp. 113 e as.; Faria, hic et nunc A sociedade determina a validade das normas por meio da comunicação Mutável, depende do contexto histórico/cultural 1999, pp. 183 e as.; Hespanha, 1998, pp. 261 e ss. Cfr. a definição de Baratta: “o ordenamento jurídico poderia ser definido como o conjunto dos fatos sociais pensados como normas em uma determinada sociedade” (1963, p. 99). 1997, p. 496). Por esta razão, o jurista- sociólogo deve pesquisas a realidade social, para encontrar aquilo que determinada sociedade con sidera como realidade jurídica, através dos seus atos de comunicação. Muitos autores criticam a visão construtivista do direito, afirmando que é muito abstrata ou que não consegue liberar-se do idealismo e do dogmatismo que caracterizam outras concepções. Em todo caso, a pers pectiva construtivista é aplicada, de forma bem sucedida, em estudos sobre a “realidade do direito”.4 Esta abordagem permite também tratar alguns problemas que sur gem nas recentes pesquisas de sociologia jurídica. A questão, por exem plo, de se o direito deixou de ser rígido e positivo e passou a ser pós moderno, flexível, plural e flutuante, não pode ser respondida analisan do a vontade dos legisladores e a opinião da doutrina. A resposta depende da comunicação social que se estabelece em tomo ao direito: a sociedade continua considerando como direito o sistema jurídico do Estado ou reconhece como direito as regras mutantes do capitalismo internacional e das comunidades locais? Podemos dar uma resposta fundamentada somente através da análise da “realidade do direito”, construída nas comunicações sociais sobre o sistema jurídico. Ninguém pode dizer qual definição do direito prevalecerá nas pes quisas da sociologiajurídica do futuro, já que a disciplinapassa por uma crise de orientação e desenvolvem-se acirradas polêmicas sobre a sua finalidade e identidade (Cotterrell, 1996; Tamanaha, 1999). O caminho certo é refletir sobre os três modelos de definição hoje concorrentes e testar a adequação de cada um às necessidades e aos resultados da pesquisa jurídico-sociológica. Isto permitirá à sociologia do direito afirmar-se como componente da sociologia e como elemento imprescindível para a formdção dos operadores jurídicos, com espírito (auto)crítico e em estrita conexão com os desenvolvimentos em outras áreas do saber. Boa viagem. Estudar a realidade social para saber o que é o direito