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Estudante:________________________________________________Nº.____ Ano:______ Turma:_____ 2º ANO Ensino Médio Semestre: 1o Data:___/___/___ Componente: Literatura Brasileira Professora: Fernanda Borges Barroco CONTEXTO HISTÓRICO: SÉC. XVII (1601-1768) O panorama europeu do séc. XVII foi marcado por intensos conflitos políticos, econômicos, sociais, científicos e, sobretudo, religiosos. Em linhas gerais, esse período trouxe um incremento da cultura mercantilista acelerada em função das grandes navegações. Em países onde a influência da igreja católica fazia-se mais forte, como Portugal e Espanha, o poder atemporal (religioso) influenciava diretamente o cotidiano e o pensamento da população, mas o fazia a serviço do poder terreno (Estado) centralizado nas mãos do rei. Iniciada no Concílio de Trento de meados do séc. XVI, quando a Igreja Católica dividiu a cristandade entre católicos e protestantes, a Contrarreforma é também relevante neste momento histórico. Funcionando como um con- tra-ataque à Reforma Protestante de nomes como Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564), mo- vimento que abalara o catolicismo, a Contrarreforma tinha como principais objetivos retomar a compreensão teo- cêntrica medieval e restituir o prestígio do catolicismo. De maneira bastante sumária, estão lançadas as variáveis que geraram um dos mais tensos e conturbados momentos históricos da Era Moderna e que são o ponto de partida para a compreensão do Barroco. Promovendo um diálogo entre aspectos econômicos, artísticos e religiosos, o quadro abaixo, proposto pelo professor da UFRGS Sergius Gonzaga, sintetiza as características básicas do momento: FEUDALISMO MERCANTILISMO CRISE DA SOCIEDADE RENASCENTISTA CONTRARREFORMA ARTE MEDIEVAL RENASCIMENTO MANEIRISMO BARROCO Teocentrismo Valorização da vida espiritual Humanismo Valorização da vida corpórea Dilaceramentos: Alma x Corpo Vida x Morte Justiça x Injustiça Céu x Terra Volta à religiosidade Persistência dos conflitos maneiristas 2 CARACTERÍSTICAS 1. ARTE A SERVIÇO DA CONTRARREFORMA A base ideológica do Barroco ibérico foi a Contrarreforma, da qual foi um instrumento de ostentação. Arte eclesiástica, a estética barroca pretendeu basicamente propagar a fé católica desgastada pela Reforma Protestante, daí que nunca se tivesse produzido tantas igrejas, capelas, esculturas de santos e mausoléus como neste período. O discurso artístico visivelmente pagava tributo ao discurso religioso, demonstrando absoluta solenidade. O enorme respeito da arte barroca em relação a tudo quanto se relacionava ao catolicismo é explica- do pela absoluta admiração que almejava suscitar em seus espectadores. Mesmo as artes plásticas bar- rocas (pintura, escultura ou arquitetura) trazem in- variável tentativa de seduzir, convencer e impor os valores religiosos contrarreformistas. 2. BIFRONTISMO HISTÓRICO E DUALISMO HUMANO O homem do séc. XVII viu-se numa encruzilhada histórico-filosófica: herdara uma tradição de dez séculos de teocentrismo medieval contraposta por algumas, então recentes, décadas da moderna liberdade antropocêntrica. A obrigatoriedade de escolher entre a vida eterna (e a consequente tentativa de salvação da alma) e a vida terrena (símbolo dos prazeres corpóreos) tornava a vida humana um constante e insuportável conflito. No fundo, o drama é histórico: a oposição entre duas ideologias: a religiosa, típica da Idade Média, e a humanista, afeita ao Renascimento. O Barroco teve como objetivo conciliar os extremos medievais e renascentistas, não logrando, no entanto, êxito nesta tentativa. O ser barroco experimentava então a angústia de não conseguir optar plenamente pela salvação de sua alma, mantendo uma fé convencional e que não o livrava de sofrer e de penitenciar-se ao pecar. Após assumir e vivenciar os prazeres do corpo, o indivíduo sentia- se culpado e temia horrivelmente a danação no inferno. 3. A OPRESSIVA PASSAGEM DO TEMPO O dilema existencial do homem seiscentista era potencializado pela consciência da fugacidade de sua vida terrena. A implacável passagem do tempo, acompanhado pela dúvida do indivíduo entre a sal- vação da alma ou os prazeres do corpo, é um dos temas mais repetitivos do Barroco. O trágico sentimento do caminhar inexorável para a morte e de que cada instante que passa não pode mais ser recuperado é aflitivo por dois motivos para o ser barroco: i. Em última análise, a vida eterna (alma) não passa de uma aposta, já que nada garante a existência de um paraíso aguardando o indivíduo de conduta terrena impoluta. Ao optar pela salvação da alma – portanto, abrindo mão de gozar os prazeres mundanos –, o homem sentia estar deixando de lado as únicas certezas de que possuía: a de que estava vivo e a de que seu corpo pedia que fossem satis- feitos instintos que lhe eram 3 negados. Ligada ao tema renascentista do carpe diem, o eu- lírico barroco muitas vezes se mostrou consciente de que a época da vida para desfrutar os prazeres que o corpo oferece é a juventude, isto é, o auge da beleza e da força física. Temendo a perdição no inferno, o sujeito poético não conseguia apagar a sensação de que cada instante que passava levava consigo um possível prazer. ii. Embora palpável, o deleite dos prazeres profanos poderia lançar o homem eternamente no inferno, levando-o constantemente a se perguntar: “Vale a pena arriscar prazeres inimagináveis e eternos (paraíso) por alguns anos de prazeres terrenos?”; “Vale a pena ar- der para todo o sempre no fogo do inferno por alguns anos de prazeres terrenos?”. 4. AS FORMAS TORTUOSAS O Barroco apresenta uma união indissociável entre forma e conteúdo. O dilaceramento, o drama e a tensão do ser que não consegue optar entre os apelos de sua alma em oposição aos de seu corpo e que vê sua angústia aumentada pela passagem do tempo tem sua melhor expressão num estilo nervoso, empolado, solene e sinuoso. A alma labiríntica do homem dos seiscentos encontrou sua melhor tradução num estilo por si só contraditório e tortuoso, marcado por constantes inversões sintáticas, antí- teses e metáforas insólitas. Ainda que na prática as tendências muitas vezes se confundam, uma vez que são razoavelmente complementares, é praxe dividir o Barroco literário ibérico e, por extensão, o brasileiro em duas vertentes formais: o cultismo e o conceptismo. Vejamos as principais características de cada uma delas no quadro abaixo: VERTENTES CULTISMO, CULTERANISMO ou GONGORISMO CONCEPTISMO, CONCEPTUALIS MO ouQUEVEDISM O CARACTERÍSTICAS Estilo excessivo e rebuscado; Jogo de palavras; Cromatismo (realismo cru); Musicalidade (sonoridade); Antíteses, hipérbatos, hipérboles; Perífrases; Metáforas; Neologismos. Estilo enxuto, racional (visa expressar o máximo de ideias com o mínimo de palavras); Jogo de ideias (conceitos), ambiguidades, duplici- dade de sentido, sutileza de ideias; Requinte formal e expressivo; Silogismos, paradoxos; Metáforas elaboradas e alegorias. OBJETIVOS Enternecimento; Emoção. Raciocínio; Reflexão; Convencimento. 4 CONTEXTO HISTÓRICO: BRASIL Trazido pelos padres jesuítas, no Brasil, o Barroco encontrou ambiente propício para sua realização artístico-ideológica na Bahia do séc. XVII. Vivia- se o ciclo da cana-de-açúcar e os filhos dos senhores- de-engenho eram educados sob a rigidez jesuíta, aprendendo a desprezar seus desejos carnais, mas encontrando, ao voltar para suas casas, franca oferta sexual junto às escravas. Nossa realidade sócio-histórica tornava ainda mais dramático – uma vez que real, palpável e diário – o típico drama barroco alma X corpo, ilustrado pela dualidade existente entre o universo espiritualdas escolas religiosas e o mundo profano dos engenhos. Nossa literatura barroca pouco apresentou da cor local, tornando possível a afirmação de que constituiu um transplante dos dilemas éticos e religiosos europeus (exceção feita a alguns aspectos da obra do poeta Gregório de Matos, tido por alguns críticos como o primeiro escritor “brasileiro”). Finalmente, registre-se ainda o Barroco brasileiro das artes visuais, cujo líder foi Antônio Francisco Lisboa (1738- 1814), o Aleijadinho, e que se desenvolveu tardiamente em Minas Gerais do séc. XVIII. Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Ouro Preto (MG) 5 GREGÓRIO DE MATOS (1633-1695) Formalmente, o poeta é tido pela crítica como um seguidor do estilo cultista. Em relação à temática, sua obra é normal- mente dividida em três tendências: poesia sacra (religiosa), poesia amorosa e poesia satírica. 1. POESIA SACRA A forma rebuscada que caracteriza a poesia religiosa (cultista) de Gregório de Matos é fixada por meio de uma linguagem bastante figurada, cujo requinte encontra- se nas imagens evocadas e num obscuro simbolismo, não sendo raro o poeta incorrer num estilo retórico. A imagem do homem (eu poético) que, ajoelha- do diante de Jesus Cristo crucificado, confessa-se pecador, pede perdão e jura redimir-se é o tema mais recorrente da poesia religiosa de Gregório de Matos. Baseando- se na tríade pecado, pecador e penitência, esse motivo tem uma explicação histórica: em termos de imaginário popular, o homem do séc. XVII estava ainda “deslumbrado” com a possibilidade de ter absolvidos seus pecados desde que se arrependesse, realidade instituída a partir do Concílio de Trento. Abaixo, segue um exemplo claro do que fora dito anteriormente: BUSCANDO A CRISTO “A vós correndo vou, braços sagrados, Nessa cruz sacrossanta descobertos Que, para receber-me, estais abertos, E, por não castigar-me, estais cravados. A vós, divinos olhos, eclipsados De tanto sangue e lágrimas abertos, Pois, para perdoar-me, estais despertos, E, por não condenar-me, estais fechados. A vós, pregados pés, por não deixar-me, A vós, sangue vertido, para ungir-me, A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me A vós, lado patente, quero unir-me, A vós, cravos preciosos, quero atar-me, Para ficar unido, atado e firme.”. 6 COMENTÁRIOS: o poema traz a típica visão contrarreformista barroca, através do contraste entre a onipotência de Jesus e a pequenez humana. Note a subserviência de um homem que se vê abandonado diante da mesquinhez de sua vida terrena, depositando a esperança de uma possível salvação na sua fé e na proteção e bondade e divina. 2. POESIA AMOROSA A mulher é encarada basicamente de duas maneiras (opostas) na poesia dita amorosa de Gregório: a idealização da mulher branca e a erotização crua das negras ou mestiças. No primeiro caso, vemos o amor idealizado, sublimado. A mulher branca (fidalga) é tratada com total respeito por um eu-lírico que se esforça por sublimar seus instintos sexuais. Louvada a beleza da mulher branca, o eu lírico reflete sobre a transitoriedade da vida humana, incidindo no tema clássico do carpe diem. Sob um viés barroco, às vezes, a mulher é comparada a um anjo (símbolo de eternidade) e a uma flor (metáfora da fugacidade): ANGÉLICA “Anjo no nome, Angélica na cara! Isso é ser flor, e Anjo juntamente: Ser Angélica flor, e Anjo florente1 Em quem, senão em vós, se uniformara? Quem vira uma tal flor, que a não cortara, De verde pé, da rama florescente? A quem um Anjo vira tão luzente Que por seu Deus o não idolatrara? Se pois como Anjo sois dos meus altares, Fôreis o meu custódio2, e minha guarda, Livrara eu de diabólicos azares. Mas vejo que tão bela, e tão galharda, Posto que3 os Anjos nunca dão pesares, Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.”. Vocabulário: 1 Florente: florido; 2 Custódio: defesa; 3 Posto que: ainda que. COMENTÁRIOS: ainda que idealize a figura femini- na, o soneto mantém a dubiedade barroca (a tensão alma X corpo), esquematizado da seguinte maneira: Angélica é dona de uma 7 enorme e casta beleza, indicada por seu próprio nome. Logo, possui algo de divino, daí o sujeito poético adorá-la e projetar nela sua possível salvação. Todavia, mantém sua essência humana, dialogando com o mundano, simbolizado no fato dela ser uma flor. Em suma, o poema funde tortuosamente o transcendente (alma) e o efêmero (corpo): Ser Angélica flor, e Anjo florente. Em tom lamentoso, os versos abordam ainda o carpe diem. A passagem do tempo provoca a perda da beleza feminina, pois assim como a flor com que é comparada, Angélica possui uma beleza transitória, símbolo da própria finitude humana. Conforme ilustra o poema, ao tratar da mulher branca, Gregório expressa-se mediante uma linguagem elevada e de bom gosto. * * * Por sua vez, as negras ou mestiças contam com um tratamento diametralmente oposto à idealização reservada à mulher branca na lírica gregoriana, sendo descritas pelo eu poético unicamente como um objeto sexual, uma mera genitália. Interpretados historicamente, tais poemas desnudam a visão de mundo de uma elite branca: fidalgo e filho de propri etário de engenho de açúcar, Gregório ratifica a típica relação de posse entre senhores e escravos. Prova disso é que, depois da posse física (aqui a relação nunca ultrapassava o caráter meramente sexual), o sujeito poético costuma experimentar uma espécie de misoginia1 para com a escrava, sentindo-se avilta- do e diminuído por ter mantido relações com uma criatura que acredita muito inferior a si. Entretanto, há poemas onde ocorre o reverso do que fora anteriormente descrito: o contato sexual entre o eu lírico (suposto senhor-de-engenho) e a mulatinha (escrava) faz com que a ordem social seja subvertida. Agora é o homem branco a ser “escravi- zado” pelos dotes da mulher negra, a subserviência racial é burlada: “Minha rica mulatinha Desvelo e cuidado meu, Eu já fora todo teu, E tu fora toda minha; Juro-te, minha vidinha, Se acaso, minhas qués ser, Que todo me hei de acender Em ser teu amante fino, Pois por ti já perco o tino E ando para morrer.”. Vocabulário: 1 Misoginia: aversão ao contato (sexual) feminino. Já a abordagem de Gregório para o tema sexo não se dá sob a sofisticação do erotismo, mas é somente agressiva, contundente, galhofeira, conforme aponta o crítico Alfredo Bosi: 8 Aqui, sua linguagem mostra-se ofensiva, ferina, licenciosa, cheia de termos vulgares e de extremo mau gosto. Essa poesia promove uma desclassificação da mulher que nunca se tomaria por esposa, situação que a cor negra potencia, e à qual corresponde uma violência ímpar de tom, de léxico, em suma, de estilo (BOSI, 1992). 3. POESIA SATÍRICA Por meio do deboche, do escárnio e de uma fina ironia, o poeta demonstra um indiscutível senso crítico quanto à sociedade de seu tempo. Não por acaso Gregório fora apelidado de Boca do Inferno, pois desde eminentes governadores, advogados e clérigos, até populares, como prostitutas e negros forros, ninguém podia vangloriar-se de estar livre de ser ridicularizado por seus versos mordazes. Sua lírica satírica veicula algum moralismo e uma forte tendência à caricatura e à tipificação. Deste modo, os padres/freiras pecam pela luxúria; as negras pela prostituição; os escravos pela subser- viência e luxúria; os governantes pelo despotismo ou mesmo pela burrice; os milicianos pela corrup- ção; os fidalgos pela soberba; os mestiços/mulatos pelo extremo oportunismo e, por fim, os ingleses/ comerciantes pela usura. A linguagem da poesia satírica de Gregório é simples e licenciosa, às vezes, pornográfica. Porém, a aparentesimplicidade esconde uma extrema sofisticação, uma vez que se utiliza em larga escala de ironia e mordacidade. Destaque-se o nativismo linguístico ou, digamos, um abrasileiramento linguístico. Fugindo por ora do típico léxico europeiza- do do Barroco, o poeta promove uma tropicalização da linguagem, chegando a utilizar termos indígenas, africanos e gírias, além de palavras de baixo calão. Ora nomeando diretamente a figura vilipendia- da, ora praticando um ataque velado, seus poemas satíricos constituem um amplo e lúcido painel críti- co de indivíduos e instituições da Bahia de seu tem- po. O poeta denunciou com realismo e coragem os vícios pessoais e coletivos da carnavalizada sociedade baiana (por ele chamada de “canalha infernal” num de seus poemas), pintando-a como uma total inversão de todos os valores edificantes, um verdadeiro palco dos horrores. MOTE “De dois ff se compõe Esta cidade a meu ver: Um furtar, outro foder. Se de dous ff composta Está a nossa Bahia, Errada a ortografia, A grande dano está posta: 9 Eu quero fazer aposta E quero um tostão perder, Que isso a há de perverter, E o furtar e o foder bem Não são os ff que tem Esta cidade ao meu ver. Provo a conjetura já, Prontamente como um brinco: Bahia tem letras cinco Que são B-A-H-I-A: Logo ninguém me dirá Que dous ff chega a ter, Pois nenhum contém sequer, Salvo se em boa verdade São os ff da cidade Um furtar, outro foder. [...]” COMENTÁRIOS: Gregório de Matos pinta um quadro nada lisonjeiro da Bahia (Salvador) seiscentista. Reitere-se a atitude moralista do eu poético e o fato de que, por não apontar exatamente o(s) alvo(s) de sua crítica, acaba por torná-la uma legítima tábula rasa da sociedade baiana, cujo fio condutor a unir as duas possíveis filosofias de vida (furtar e foder) é a corrupção. Genericamente, pode-se dizer que a primeira postura cabe a todos os que estão investidos de qualquer forma de poder (governantes, milicianos, clérigos, mestiços e ingleses/comerciantes) e a segunda atitude, ou mesmo a indiferença, cabe àqueles alijados do poder ou esmagados por ele (escravos e clero). Note que o clero, detentor de poder, irá figurar em ambas as atitudes. Por um lado, furta ao fazer jogo de influências (simonia); por outro, fode, dando vazão à conduta luxuriosa com que a maioria dos padres e freiras é historicamente descrita na literatura. 10 ANTÔNIO VIEIRA (1608-1697) Obras principais: Sermões (1679-1718); Histórias do futuro (1718); Esperanças de Portugal (1856-1857). SERMÕES: ESTILO, ESTRUTURA E TEMÁTICA Foi o maior seguidor do conceptismo em lín- gua portuguesa. Aliás, o absoluto domínio da linguagem de Vieira fez com que o grande poeta Fernando Pessoa batizasse-o de o “Imperador da língua portuguesa”. Para legitimar seus sermões, o padre partia normalmente de exemplos e referências bíblicas, dando-lhes interpretações bastante pessoais. O objetivo era adequar as Escrituras Sagradas às necessidades momentâneas da pregação, tornando irrefutáveis seus argumentos. Ressaltemos as principais características estilísticas de Vieira: Pregador de alegorias, sua linguagem excitava a curiosidade pelo pitoresco e o imprevisto. Espírito sempre voltado para as abstrações da lógica e da metafísica escolástica, o estilo do padre Antônio Vieira, contudo, ainda que anunciando o Barroco, deliciava os ouvidos pela cadência enérgica e incisiva dos períodos ritmados. Sua imagística, denotando intensidade de visão e ideias, chegava ao clímax através de metáforas hiperbólicas, de negativas conduzindo a afirmações, de paradoxos, antíteses e preciosismos, manifestações literárias reveladoras do espírito do século, a impor à prosa e à poesia uma peculiar artificialidade. [...] A originalidade de Vieira [...] não está apenas na assimilação e técnica do barroquismo, mas no seu estilo ágil e breve a comandar uma imagística de significação simbólica, estonteante porque hiperbólica e cheia de antíteses, no domínio perfeito da língua portuguesa, que era como uma criança em suas mãos. (LITRENTO, 1974) Antônio Vieira não se limitou ao trato de causas religiosas, investindo contra as mazelas políticas de sua época. Seguindo a moral jesuíta, seu intuito era o de erradicar os vícios de seus fieis, encaminhando-os ao caminho da virtude. No entanto, Viei ra unia ao discurso religioso aspectos históricos, po líticos e econômicos de seu tempo. Foi figura ímpar na vida colonial brasileira, defendendo um tratamento mais humano para os escravos negros e colocando-se contra a escravidão indígena. No que tange à realidade imediata portuguesa, defendeu os judeus torturados pela Inquisição e saiu em defesa dos cristãos-novos (muitas vezes os próprios judeus), cujo poder aquisitivo acreditava ser imensamente útil para aquecer o mercado econômico interno de Portugal. 11 A UTOPIA DO QUINTO IMPÉRIO DE PORTUGAL Três fatos da história portuguesa elucidam a chamada Utopia do Quinto Império, defendida por Vieira: 1578 – na tentativa de aumentar as colônias lusas na costa africana, D. Sebastião, então o rei do país, empreendera uma incursão em território inimigo, o que motivou a batalha de Alcácer-Quibir, na qual D. Sebastião acabou morrendo (ou apenas sumindo, pois nunca foi encontrado o seu corpo). Como o monarca não havia deixado descendentes, Portugal caiu sob o domínio espanhol no ano de 1580. D. Sebastião era considerado uma espécie de símbolo da pátria lusitana como grande império mundial. Após sua trágica morte, os portugueses passaram a acreditar no sebastianismo, ou seja, no retorno do grande líder como uma saída mística para o ressurgimento luso enquanto grande potência política e econômica. Em 1640, enfim os lusitanos conseguiram de volta a sua autonomia política junto à Espanha, dando fim à União Ibérica. Tendo presenciado bastante de perto a retomada da soberania lusa, Vieira passou a pregar apaixonadamente as futuras glórias portuguesas. Em Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo, o padre defendeu a tese de que um príncipe português, o Encoberto, derrotaria os inimigos da fé católica, conquistando a Terra Santa e redimindo o mundo. A mítica figura do Encoberto corresponderia à ressurreição de D. João IV, rei que era o guru histórico-espiritual de Vieira, além de seu amigo pessoal e protetor. Após a morte do rei em 1656, o jesuíta passou a profetizar sua ressurreição como ponto de partida do Quinto Império de Portugal, um reino que duraria mil anos e conseguiria a façanha de unir todas as raças sob a autoridade da fé católica, representada pelo rei de Portugal, no plano temporal, e pelo papa, no plano espiritual. OS MAIS IMPORTANTES SERMÕES Das mais de duas centenas de sermões escritos por Antônio Vieira, merecem destaque: Sermão da sexagésima; Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda; Sermão de Santo Antônio (ou Aos peixes); série de Sermões da Rosa Mística (especialmente o XX, o XIV e o XVII); Sermão da primeira dominga da quaresma; Sermão da quinta dominga da quaresma; Sermão XIV de Nossa Senhora do Rosário e Sermão do bom ladrão. Vejamos, a seguir, a temática preponderante de alguns dos sermões do jesuíta. Sermão de Santo Antônio aos Peixes O padre crítica com veemência os exageros de violência contra os escravos negros, colocando-se contra a escravidão indígena. Também execra a vida mundana e viciosa dos colonos do interior (Maranhão). Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda Num texto de genial poder de retórica e eloquência, cobra de Deus que ajude os portugueses a expulsar os holandeses de solo pernambucano. Os discursos histórico e 12 religioso unem-se: Vieira argumenta junto aoTodo Poderoso que, no contexto das grandes expansões ultramarinas, coubera aos lusitanos expandir o catolicismo, vencendo, entre outros, os hereges holandeses, motivo por que agora Deus deveria dar a vitória na disputa pelo solo brasileiro aos seus desde sempre aliados. Sermão da Sexagésima Alicerçado na parábola bíblica do semeador, o jesuíta promove uma ferina crítica aos pregadores que enveredavam para o gongorismo vazio e retórico, estilo cujo acúmulo de antíteses dificultava a compreensão dos sermões, haja vista que os espectadores não possuíam a sofisticação necessária para entendê-los. Trecho do Sermão do bom ladrão (1655), de Padre Antônio Vieira Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim. — Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? — Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem et piratam, quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o Rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome. O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno(...) Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? (...)