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1 ANÁLISE TEOLÓGICA DO TERMO AZAZEL A PARTIR DE SEU SIGNIFICADO E FUNÇÃO NO RITUAL DA EXPIAÇÃO EM LEVÍTICO 16 Jônatas de Mattos Leal 1 Adenilton Tavares de Aguiar 2 Resumo O ritual do dia da expiação está entre os mais elaborados do livro de Levítico. Em especial, a menção ao bode que era expulso do acampamento e enviado para se perder no deserto continua a intrigar os intérpretes bíblicos da tradição judaico-cristã. As próprias versões estão em desacordo quanto sua tradução. Enquanto algumas preferem traduzir o termo Azazel como bode emissário, outras optam por considerá-lo um nome próprio. Contudo, uma análise mais apurada que leve em conta tanto sua etimologia quanto sua função no ritual, o contexto em que aparece e os paralelos extra-bíblicos aponta para a pessoalidade de Azazel e consequentemente para a melhor tradução do termo como um nome próprio, o que se mostra mais condizente com a teologia do texto, tendo em vista que Azazel é visto como um símbolo de Satanás. Palavras-chave: Tradução, interpretação bíblica, tradição judaico-cristã. hw"hyl; dx'a, lr"ÜAG tAl+r"AG ~rIßy[iF.h; ynEïv.-l[; !ro±h]a; !t;ón"w> `lzE)az"[]l; dx'Þa, lr"ïAgw> E Arão lançará sortes sobre os dois bodes, uma sorte para o Senhor e uma sorte para Azazel. INTRODUÇÃO A tradução de textos antigos é uma ciência que vem se aperfeiçoando cada vez mais. Porém, alguns textos bíblicos continuam a desafiar até os mais experimentados tradutores, linguistas e exegetas. Um exemplo é a misteriosa figura de Azazel que desempenha papel significativo num dos mais intrigantes festivais religiosos da legislação levítica, o ritual do dia da expiação como exposto em Lv 16. Tanto as versões bíblicas modernas como as versões antigas têm divergido sobre a tradução da palavra lzEaz"[]/. Enquanto algumas 1 O autor é Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e graduado em Teologia pelo Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia, Sede Bahia (SALT-BA). Atualmente atua como professor nesse mesmo Seminário de Língua Hebraica e Exegese do Antigo Testamento, tendo publicado diversos artigos nessa área. 2 Mestre em Ciências da Religião pela UNICAP (Universidade Católica do Pernambuco). Mestrando e Bacharel em Teologia pelo SALT/IAENE e Licenciado em Letras/Português pela Universidade Estadual da Paraíba. Membro do Grupo de Pesquisa Cristianismo e Interpretações (UNICAP); Editor da Revista Hermenêutica. Professor de Grego e Novo Testamento no Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia, sede regional IAENE (Instituto Adventista de Ensino do Nordeste). 2 preferem traduzir o termo como “bode emissário”, outras por sua vez trazem apenas a transliteração do nome. De fato, pode-se concordar com Treiyer quando afirma que “poucas palavras na bíblia têm sido tão controversas através dos séculos como a palavra Azazel”. (1992, p.231). Na verdade, alguns fatores cooperam para isso. Entre eles podem ser citados: a obscura etimologia da palavra, as raras ocorrências bíblicas e o escasso material bíblico sobre o ritual em que lzEaz"[]/ está envolvido. É necessário concluir, como Helm, que quando se leva em conta apenas o texto bíblico o termo “permanece indefinido” (HELM, 1994, p.217). Tendo em vista esse quadro, uma análise que vá além do material bíblico de Lv 16 torna-se necessário. Além disso, tal análise não deve se contentar apenas com o estudo etimológico da palavra, já que o mesmo é incerto e controverso. Para tal, também é importante levar em consideração o contexto bíblico mais abrangente da Bíblia Hebraica, o uso da palavra na literatura extra-bíblica como o pseudepígrafo de 1 Enoque e Apocalipse de Adão, bem como o contexto cultural no qual Israel estava inserido. Este último oferecerá interessantes paralelos rituais entre os povos da Mesopotâmia e da antiga Hatusa, os hititas. Tais paralelos poderão elucidar o papel simbólico desempenhado pelo bode sorteado para Azazel. Assim, essa pesquisa visa em primeiro lugar propor a melhor tradução desse termo por meio da análise de todas as questões acima mencionadas. Como se verá, o tempo encarregou- se de viabilizar conhecimento e instrumentos mais apropriados para a escolha mais adequada do que aqueles que estavam disponíveis aos primeiros tradutores bíblicos tais como os autores da Septuaginta e da Vulgata, embora o valor dessas obras permaneça incalculável ainda hoje para a interpretação bíblica. Em segundo lugar, este estudo tem como objetivo analisar teologicamente o termo a partir de sua função no importante festival religioso do dia da expiação descrito em Levítico 16. Como se verá a interpretação adventista da função e simbologia de Azazel no contexto levítico é uma voz destoante, embora não solitária, no consenso geral entre a erudição evangélica cuja análise conclui que tanto o animal sorteado para o Senhor quanto para a Azazel é um figura de Cristo. Azazel no rito do Dia da Expiação Inicialmente será necessário revisar a descrição de Lv 16 do dia da Expiação. Os poucos comentário tecidos aqui servirão para situar o leitor sobre o lugar do bode para Azazel 3 no ritual. Também conhecido como Yom Kippur, o dia da expiação era a penúltima das grandes festas do calendário religioso israelita como descrito na Torah. Segundo a legislação levítica ele ocorria no décimo dia do sétimo mês (tishri) do calendário religioso (primeiro mês do calendário civil) e envolvia grande solenidade, incluindo uma convocação ao jejum, oração e “aflição de alma”. O Yom Kippur era precedido por dez dias pela festa das trombetas que segundo a tradição judaica servia como alerta de sua aproximação. Uma semana após o Yom Kippur deveria ocorrer a festa dos tabernáculos, que além de comemorar o fim da colheita também festejava o perdão alcançado no Dia da Expiação. Do ponto de vista da estrutura literária do livro de Levítico, a lei do Yom Kippur está no centro da obra (Lv 16). Sendo antecedida pelas leis dos sacrifícios (cap. 1-15) e seguida pelo Código de Santidade (cap.17-27). Sendo assim, é possível perceber a importância que o ritual assume na perspectiva do autor da obra, já que, na organização literária do Antigo Testamento, a parte central geralmente é considerada climática e essencial para algum argumento ou produção literária, como no caso de estruturas quiásticas envolvendo porções menores como capítulos ou até mesmo livros inteiros. Segundo o Levítico, esse era o único dia que o sumo sacerdote entrava na presença imediata da Arca da Aliança dentro do lugar santíssimo do tabernáculo/templo israelita. Todo o povo deveria estar preparado moral, espiritual e cerimonialmente nesse dia. Suas faltas deveriam ser confessadas e abandonadas, a fim de que pudessem permanecer em pé diante da presença divina através de seu representante, o sumo sacerdote. Além disso, paradoxalmente, esse dia envolvia dois conceitos teológicos centrais para o Antigo Testamento: juízo e perdão. Nesse dia, o povo era julgado e ao mesmo tempo absolvido no tribunal cósmico de Javé, ou seja, seus pecados eram expiados (em hebraico: kipper, por isso yom kippur) e o acampamento ficava livre da culpa do pecado pelo sangue derramado do bode sorteado para o Senhor bem como da presença do pecado através do envio do “bode para Azazel” para a terra solitária. É exatamente nesta parte do ritual que se encontra a discussão proposta para o artigo. Uma das partes mais importantes do rito era a separação de dois bodes. Segundo Lv 16, lançavam-se sortes pelos animais. Aquele que fosse sorteado para Javé deveria ser morto e seu sangue aspergido no tabernáculo-templo. Por sua vez, o bodesorteado para Azazel deveria ser enviado para o deserto e de lá não voltar. De modo geral, apesar dos procedimentos rituais em geral estarem bem claros, ainda há divergência no mundo da interpretação bíblica quanto ao papel desempenhado pelo bode 4 para “azazel” no Dia da Expiação. Portanto, qualquer possível elucidação sobre a questão deve começar pela correta tradução ou pelo adequado significado do termo “azazel”. Assim, na primeira parte desse estudo buscar-se-á estabelecer a tradução mais apropriada para esse termo. O primeiro passo para isso será apresentar, de forma breve, o modo como as principais versões portuguesas e inglesas traduziram o termo lzEaz"[]/. Logo após isso, será proposto, então, o papel teológico da figura do bode na simbologia do santuário israelita no contexto bíblico e teológico adventista. Análise das versões Uma rápida análise das diferentes versões modernas da Bíblia será suficiente para mostrar o grau de discordância entre elas quanto à tradução da palavra lzEaz"[]/. Para uma amostra dessa disparidade está separado a seguir um grupo de versões bíblicas modernas portuguesas e inglesas até onde o tempo, o espaço e o escopo desse artigo permitem. A tradução do termo nessas versões pode ser dividida em dois grupos diferentes. No grupo A estão as versões que traduzem lzEaz"[]/como “bode emissário”, nas bíblias brasileiras, e as versões inglesas, que optam por “scapegoat” (bode expiatório), “goat of departure” (“bode de partida” ou “bode que parte”), “emissary goat” (“bode emissário”) ou “goat that carries the people's sins away” (“bode que retira os pecados do povo”). No grupo B estão as versões tanto inglesas quanto portuguesas que traduzem o vocábulo como um nome próprio, a saber, Azazel. A versão New Living Translation apresenta uma opção diferente daquelas localizadas no grupo A e B. Instrutivamente, essa versão traduz o termo como “wilderness of Azazel” (deserto de Azazel), implicando que o nome diz respeito ao lugar para o qual o bode era enviado. O mesmo ocorre na New English Bible (NEB) que traduz o termo como “precipício”. Através da tabela abaixo, um quadro mais geral pode ser visualizado. Nela, estão divididas as versões portuguesas e inglesas disponíveis para essa pesquisa conforme a observação e classificação (grupo A e grupo B) do parágrafo anterior. Versões e traduções portuguesas Grupo A “bode emissário” Almeida Revista e Atualizada Almeida Revista e Atualizada. Edição Contemporânea. Almeida Corrigida e Fiel Almeida Revista e Corrigida 5 Nova Versão Internacional Grupo B Nome próprio: Azazel Bíblia Judaica Completa Bíblia Sagrada. Edição Santuário Bíblia de Jerusalém Bíblia Hebraica. Edição Sêfer. Tradução na Linguagem de Hoje. Nova Tradução na Linguagem de Hoje Sociedade Bíblica de Portugal Tradução Ecumênica da Bíblia Versões e traduções inglesas Grupo A “scapegoat”; “emissary goat”; “scape goat”; “scape-goat” Douay-Rheims American Edition Geneva Bible King James Version Septuagint with Apocripha New American Standard Version New International Version New International Reader’s Version New King James Revised Webster Bible Today’s New International Version English Noah Webster Bible Young’s Literal Translation Grupo B Nome próprio: Azazel American Standard Version Bible in Basic English Complete Jewish Bible Christian Standard Bible English Darby Bible English Revised Version English Standard Version God’s Word to the Nations Jewish Publication Society New Jerusalem Bible New Revised Standard Revised Standard Version Como se percebe, há uma clara divisão de opinião entre as versões quanto à tradução do termo em questão. Entre as versões de língua portuguesa, cinco traduzem o termo como “bode emissário” e oito como o nome próprio “Azazel”. No caso das versões inglesas, doze se referem a Azazel como o próprio bode, e doze traduzem o mesmo termo como um nome próprio. Vale ressaltar que o balanço perfeito entre as versões de língua inglesa não passa de mera coincidência, já que nenhum número específico foi planejado. Tendo em vista esse quadro, torna-se necessário inquirir acerca da origem de tal divergência entre as versões analisadas. Um breve olhar no Texto Massorético, na Septuaginta 6 e na Vulgata Latina poderá ser muito útil para se obter tal entendimento. Esse é o passo a seguir. O termo nas antigas versões Tendo em vista que o Texto Massorético acabou se tornando “padrão” tanto para o estudo acadêmico do Antigo Testamento quanto para as diversas traduções e versões das Bíblias modernas (Códice de Leningrado), vale a pena indagar qual seria a origem da tradução “bode emissário” ou “bode expiatório”. Pois, como exposto em epígrafe, o Texto Massorético traz a palavra lzEaz"[]/que não significa “bode” nem “emissário”, como a interpretação da passagem deixará mais claro. Essa informação é confirmada pelos principais dicionários hebraicos 3 . Ademais, a primeira tradução da Bíblia Hebraica na Palestina, o Targum, também concorda com esta conclusão. Tanto o Targum de Onkelos quanto o de Pseudo-Jonathan traduzem o termo como um nome próprio. 4 Então, nesse ponto, resta a questão sobre a origem dessa tradução usada pela ARA e por outras versões contemporâneas. A origem da tradução do termo como “bode emissário” provavelmente remonta à Septuaginta (LXX) e à Vulgata Latina. Na Septuaginta, lzEaz"[]/é traduzido como avpopompai,w|/ o dativo masculino singular do adjetivo avpopompai/oj|/. Esse adjetivo deriva do verbo avpope,mpw|/ que significa “afastar” (LIDDEL, SCOTT). Não é possível determinar com certeza se o adjetivo carrega o sentido passivo “aquele que é afastado” ou ativo “aquele que afasta”, já que no ritual o bode ao mesmo tempo sofre o afastamento para o deserto (Lv 16:10), bem como desempenha a função de afastar os 3 Admitindo a dificuldade de tradução do termo, Kirst sugere como tradução “demônio do deserto” (KIRST et al, 2004, p. 176). 4 Targum Pseudo-Jonathan: dx abd[ !ywv !ybd[ !yrypc !yrt l[ !rha !tyw !wnyqypnyw yplyqb @yrjyw lzaz[l dx abd[w yyyd amvl ` ayrypc l[ !wnyqljyw Tradução: “E Arão lançará sobre os bodes sortes iguais; uma sorte para o nome do Senhor, e uma sorte para Azazel: e ele as lançará no vaso, e as retirá, e as porá sobre os dois bodes”. Versão disponível do Bible Works Bible Software. Onkelos am'vli dx; ab'd[; !ybid[; !yrIypic. !yrEt. l[; !rha !yteyIw> `lzEaz"[.l; dx; ab'd[;w> yyy ~dq ywyd: Tradução: E Arão porá sortes sobre os dois bodes; uma sorte para o nome do Senhor e a outra para Azazel. Versão disponível do Bible Woks Bible Software. 7 pecados simbolicamente para fora do acampamento. Assim, numa tradução literal, o termo poderia significar algo como “afastado” ou, por assim dizer, “afastante”5. A escolha da forma adjetiva mais ambígua, em vez da forma participial mais objetiva com terminações da voz passiva ou ativa, pode denotar que o(s) tradutor(es) entendia(m) que os dois sentidos estavam presentes no papel do bode no ritual do dia da expiação. Daí a tradução de “bode emissário” denotando o sentido passivo do adjetivo (aquele que é enviado ou afastado) e de “bode expiatório” no sentido ativo (aquele que afasta). A dificuldade em traduzir o termo da Septuaginta pode ser explicada pelo fato de se tratar de um neologismo (EYNIKEL, 1992, p. 54) criado pelo(s) tradutor(es) da LXX num esforço de traduzir o termo hebraico lzEaz"[]/. Nesse ponto, parece ficar claro que a tradução da LXX considerou que a origem da palavra era o verbo hebraico , que significa “ir-se embora”, “desaparecer” (KIRST, 2004, p. 6). Sendo assim, do ponto de vistada LXX, lzEaz"[]/é formado pela junção de z[e/ (bode) e de lz:a'/ (desaparecer). Um importante testemunho de apoio à tradução da LXX está na escolha de Jerônimo, ao optar por “capro emissario”, na Vulgata. E isso se torna mais instrutivo quando é recordado que a novidade da tradução de Jerônimo estava na dependência das escrituras hebraicas originais e não na LXX (GEISLER, 1997, p.214). Assim, embora estivesse traduzindo o Antigo Testamento diretamente do hebraico, ele optou conscientemente pela LXX ao traduzir o termo lzEaz"[]/ em Lv 16:8. Tendo em vista a discussão até aqui empreendida, cabe agora examinar a interpretação do termo considerando tanto suas ocorrências na Bíblia Hebraica como na literatura extrabíblica, bem como na tradição judaica com o objetivo de propor a melhor tradução para o termo em Lv 16:8. Interpretação do termo lzEaz"[]/ Evidentemente que a escolha da tradução mais adequada para a palavra envolve a compreensão do termo em seu contexto bíblico imediato ou mais amplo bem como na literatura extrabíblica. Tal tarefa será levada a cabo a seguir. 5 Estamos conscientes de que essa forma do particípio presente do verbo “afastar” não foi perpetrada na língua portuguesa. 8 Como se sabe, as ocorrências do termo restringem-se apenas ao capítulo 16 de Levítico (v.8, 10[2x], 26) 6 . Tendo em vista esse fato, será necessária uma breve visão das ocorrências da palavra na literatura extrabíblica. As principais posições sobre a interpretação de lzEaz"[]/ são resumidas a seguir. A primeira propõe que (1) o termo é uma declaração simbólica através de um nome abstrato que significa “destruição” ou “remoção completa” (BROWN, DRIVER, BRIGGS, 1907). As demais são bem sintetizadas por Janoviski (1999) como segue: (2) a designação geográfica para a qual o animal era enviado; (3) uma combinação de termos que significa “o bode que parte”; (4) o nome ou um epíteto de um demônio. Tais posições surgem principalmente de um entendimento diferente da origem etimológica da palavra. Por isso, os aspectos etimológicos do termoserão primeiramente levados em consideração7. Etimologia Vale ressaltar, em primeiro lugar, que “tanto a etimologia quanto o significado do nome não são completamente claros, e o significado permanece controverso” (JANOWISKI, 1999, p. 128). Por isso, a etimologia será apenas o ponto de partida. Até porque, como deixa claro Osborne, a mesma sempre será serva do contexto e não o contrário (2010, p. 102-112) 8 . A primeira posição, que defende que lzEaz"[]/ é um termo abstrato (WRIGHT, 1992, p. 536), baseia-se na ideia de que o mesmo descreve a função do bode no ritual do dia da expiação. Segundo Woods e Rogers esta interpretação se harmoniza melhor com o capítulo 16 e 22 9 (2006, p.103). Segundo essa visão, etimologicamente a palavra vem de uma forma intensiva do verbo (banir), que pela duplicação das consoantes () reforçaria a ação verbal através da repetição, e assim significaria “alguém que retira por meio de uma série de atos” (TREIYER, 1992, p. 236). Porém, alguns problemas com essa visão são apontados por Treiyer (1992, p. 237-238) e são brevemente transcritos aqui: (a) a letra /a (alef) é ignorada, (b) a letra /[ (‘ayin) da raiz lz"["/ não é duplicada tornando a repetição 6 Do ponto de vista dessa pesquisa este capítulo será considerado a partir de sua unidade literária muito bem demonstrada por Rodrigues (1996). 7 A melhor discussão disponível sobre a etimologia do termo é esboçada por Alberto Treiyer (1992, p. 231-265), e por isso sua obra será de especial relevância neste momento. 8 No seu livro A Espiral Hermenêutica, Osborne alerta instrutivamente sobre o perigo da falácia lexical e do uso indevido da etimologia (2010, p.103-112). 9 “Assim, aquele bode levará sobre si todas as iniquidades deles para terra solitária; e o homem soltará o bode no deserto” (Lv 16 e 22 ARA) 9 da palavra incompleta 10 e (c) a raiz lz"["/ não existe em hebraico, o que torna qualquer tipo de conexão insustentável. A segunda posição concebe que o termo designa o nome do lugar para o qual o bode era enviado. E, neste caso, está em paralelo com a expressão “no deserto” do verso 10 (ROOKER, 2001, p. 216). Essa é a interpretação rabínica presente na Mishna e no Talmude (NEUSNER, 2011, p.250-251), a qual dá ao termo o sentido de “lugar acidentado ou difícil” (NEUSNER, 2011, p. 250-251). A base etimológica para essa interpretação se fundamenta na concepção de que lzEaz"[]/ seria composto por dois termos hebraicos: z[;/ (duro) e lae/ (forte), descrevendo a rocha da qual o bode era empurrado (TREIYER, 1992, p. 233). Contudo, do ponto de vista linguístico é difícil explicar a ausência do a (álefe) e do l (lamed) na raíz arábica , da qual o termo hebraico teria se originado (TREIYER, 1992, p. 234). Assim, o termo seria mais uma discrepância criada pela tradição mishnaica para fugir da possibilidade de os israelitas estarem oferecendo um sacrifício a demônios. A etimologia da terceira posição, na qual a palavra descreve o próprio bode e deve ser traduzida como “o bode que parte” já foi apresentada na discussão do termo nas antigas versões. Como visto, ela foi popularizada pela antiga versão grega do AT, a LXX. Na verdade, todas as versões que traduzem o termo como “bode emissário” ou “scapegoat” (em inglês) são influenciadas por esta versão, inclusive a antiga e célebre Vulgata de Jerônimo. Contudo, conforme salienta Treiyer, “a derivação de Azazel do verbo lz:a'/ não existe em hebraico, o que não nos permite fazer esta conexão” (1992, p. 236). Por fim, a quarta posição também não fica sem subsídio etimológico. Para os defensores dessa posição, lzEaz"[]/ é a figura de um demônio e, por isso, deve ser traduzido como nome próprio transliterado, a saber, Azazel (LEVINE, 1989, p.102). Há diversas raízes apresentadas para a origem do termo 11 . Porém, devido ao espaço e propósito desse trabalho apenas duas serão destacadas aqui. O termo pode ter se originado da junção das raízes z[e/ (bode) e lae/ (deus) resultando em uma expressão que designa algo como um “deus-bode” (TREIYER, 1992, p. 242). Uma segunda possibilidade indica que a palavra se origina da junção das raízes zz;["/ (ser feroz, cruel) e la e/, formando uma expressão do tipo “deus feroz” (TREIYER, 1992, p. 244). Embora sejam diferentes, as duas possibilidades 10 O mesmo não é o caso com os exemplos hebraicos apontados pelos defensores dessa visão como em kabkab e babel (Treiyer, 1992, p. 236) 11 Em sua discussão Treiyer apresenta seis possibilidades (cf. 1992, p.241). 10 não excluem-se mutuamente. A “ferocidade” () e o comportamento violento dos bodes () selvagens são suficientemente conhecidos. Como se verá a seguir, a última posição etimológica parece ser preferível quando se leva em conta o contexto bíblico, extrabíblico e cultural da passagem. Essa será a tarefa a seguir, visto que a discussão etimológica se mostra insuficiente para qualquer tipo de posicionamento mais seguro quanto ao adequado entendimento do termo em questão. Contexto bíblico Em primeiro lugar, serão consideradas as incorreções das três primeiras posições tendo em vista o contexto bíblico da passagem. Logo após, a quarta posição será levada em consideração separadamente apontando de que forma ela se encaixa mais com o contexto bíblico. A compreensão de que lzEaz"[]/ é um termo abstrato carece de apoio contextual. Por exemplo, é impossível traduzir o termo como “remoção total” em Lv16 e 1012 sem fazer qualquer emenda textual para dar sentido à expressão como o faz a LXX 13 . Ademais, conforme destaca Hartley, há poucos termos abstratos em Levíticos (2002, p. 237), o que conspira contra essa interpretação. A visão de que a palavra denota o lugar para o qual o bode era enviado não parece provável já que esse local é chamado no verso 22 de hr"+zEG> #r<a,/ que as versões traduzem como “terra solitária”, “desolada”, “desabitada”. Além disso, essa interpretação popularizada na tradição mishnaica parece ser mais uma fuga da possibilidade de uma oferta dedicada a uma pessoa diferente de Javé. A terceira posição sugere que lzEaz"[]/ é um nome para descrever o bode e deve ser traduzido como “bode emissário” como na LXX e na Vulgata. No entanto, a ocorrência da 12 Lv 16:10: ynEp.li yx;-dm;[\y" lzEaz"[]l; lr"AGh; wyl'[' hl'[' rv,a] ry[iF'h;w> hr"B'd>Mih; lzEaz"[]l; Atao xL;v;l. wyl'[' rPek;l. hw"hy> Versão disponível no Bible Works Bible Software. E o bode que caiu a sorte para Azazel (remoção completa) será posto vivo diante do Senhor para expiação por meio dele ao enviá-lo para Azazel (remoção completa) no deserto (tradução dos autores). 13 Aparentemente a LXX recorre à emenda textual para manter a coerência da tradução com o verso 8. Mesmo embora não resolva o problema e a tradução continue bem truncada. O verso 10b é traduzido como “avpostei/lai auvto.n eivj th.n avpopomph,n avfh,sei auvto.n eivj th.n e;rhmon”: “a fim de enviá-lo ao deserto e deixá-lo ir ao (bode) emissário”. Como se vê, a tentativa de traduzir lzEaz"[]/ como bode emissário (avpopomph,n) fica inviável aqui. 11 palavra no capítulo 16 torna essa possibilidade inviável. Em todas as ocorrências (nos versos 8,10 e 26) o termo azazel aparece em conexão com a palavra “bode”. Assim, o bode é “para azazel” (lzEaz"[]l;/) e deve ser enviado “para azazel” (lzEaz"[]l;/). Por isso, na concepção de Hartley é “difícil entender como o bode pode ser para si mesmo ou enviado a si mesmo” (2002, p.237). Isso fica bem claro no verso 26a, onde as palavras “bode” e “azazel” aparecem lado a lado, e onde, seguindo essa interpretação, deve ser lido assim: “aquele que tiver levado o bode (ry[iF'h;/) para o bode emissário (lzEaz"[]l;/) lavará as suas vestes...”. Uma última observação a ser feita diz respeito ao contexto no qual o termo aparece no verso 8: “E lançará sorte sobre os dois bodes, uma sorte para o Senhor e a outra para Azazel”. Como se vê, a forma na qual o texto foi construído indica que deve haver algum tipo de equivalência entre os termos “Senhor” (hw"hyl;/) e “Azazel” (lzEaz"[]l;/), já que as sortes deveriam ser lançadas “para o Senhor” e “para Azazel”. Sendo assim, “como a primeira sorte é para um ser sobrenatural, Javé, então a segunda sorte deveria ser lançada para um ser sobrenatural de algum tipo” (WRIGHT, 1992, p. 536). Essa equivalência não pode ser encontrada quando qualquer uma das posições acima for assumida: (1) termo abstrato: “para o Senhor e para remoção completa”; (2) nome do lugar: “para o Senhor e para a terra escarpada”; e (3) descrição do bode: “para o Senhor e para o bode emissário”. Ademais, escavações arqueológicas têm desenterrado muitos objetos com nomes inscritos com o lamed (l./) preposicional indicando os nomes de seus proprietários (LEVINE, 1989, p.102). Essa preposição lamed (l./), geralmente chamada lamed possessivo ou auctoris, aparece no verso 8 prefixando termos envolvidos (hw"hyl;/ e lzEaz"[]l;/) e provavelmente tem esse sentido. No que diz respeito à quarta opção, que lzEaz"[]/denomina uma espécie de ser sobrenatural e deve ser traduzido como um nome próprio, o contexto bíblico parece tornar patente sua adequabilidade. Como se viu, embora a origem etimológica da palavra seja incerta é provável que o termo tenha em sua raiz o vocábulo “bode” (z[e/)14. Além disso, a própria palavra hebraica para “bode” (ry[if'/) aparece em conexão com lzEaz"[]/ em todas as suas ocorrências. Essas observações são importantes porque no próprio livro do Levítico, em 17:7, a raiz para “bode” (ry[if'/) é usada no sentido de demônio em “forma de bode”, 14 Embora z[e/ seja uma palavra feminina, ou seja, cabra o contexto sugere aqui o uso masculino. 12 só que no plural (~rIy[if./)15, sem qualquer disputa textual.16 Aliás, a raiz ry[if'/ é homógrafa e tem quatro significados diferentes: (I) peludo, (II) bode peludo, (III) demônio ou ídolo em forma de bode, (IV) tormenta (VAN PELT; KAIZER, 1997, p.1260). Com o terceiro sentido, a raiz aparece, além de em Lv 17:7, em 2 Cr 11:15; Is 13:21; 34:14 e, provavelmente, em 2Rs 23:8. Essa conexão parece se mostrar instrutiva nesse caso e pode ajudar na compreensão do enigmático personagem do capítulo 16. 17 Portanto, levando-se em consideração o contexto bíblico, é possível concluir que lzEaz"[]/deve ser um tipo de ser sobrenatural ou mítico que povoava o imaginário dos povos nômades do deserto. Não só pela inadequação das três primeiras posições apresentadas, mas por respeitar a equivalência gramatical e semântica entre os termos Javé e Azazel. Além disso, o uso bíblico da raiz ry[if'/aponta para a relação entre a figura do “bode peludo selvagem” com o deus em forma de bode adorado no Egito, Mesopotâmia e Síria, como se verá a seguir. No contexto do monoteísmo israelita, a raiz tem o significado de demônio nos textos bíblicos acima mencionados 18 . Essa conclusão poderá ser corroborada pela análise do termo no contexto extrabíblico e no contexto cultural do Antigo Oriente Próximo, onde rituais semelhantes ao de Levítico 16 também eram realizados e, por sua vez, onde um papel semelhante ao de Azazel no dia da expiação pode ser percebido. Isso será visto a seguir. Contexto extrabíblico O uso do termo lzEaz"[]/ na literatura extra-bíblica ajuda a esclarecer suas escassas ocorrências bíblicas. Como o espaço não permite uma elaboração maior sobre a questão nesse ponto, serão levadas em consideração apenas as fontes judaicas primitivas, como os pseudepígrafos de “1 Enoque” e “O Apocalipse de Abraão”, ambos oriundos da apocalíptica judaica. No livro de 1 Enoque 19 8,1 Azazel é apresentado como aquele que 15 “Nunca mais oferecerão os seus sacrifícios aos demônios (~rIy[iF.l;), com os quais eles se prostituem; isso lhes será por estatuto perpétuo nas suas gerações” (Lv 17:7 ARA). 16 Conferir aparato crítico da Bíblia Hebraica Stuttgartensia. 17 Essa conexão entre Lv 16:8 e 17:7 esclarecendo o significado de Azazel também é salientada por Levine em seu importante comentário de Levítico (1989, p.102). 18 M.V. Van Pelt e W. C. Kaiser Jr esclarecem o significado de III: “os eruditos sugerem que este nome retrata algum tipo de demônio que exibia semelhança com um bode e estava intimamente associado com a idolatria e os lugares altos” (1997, p. 1260). 19 Sengundo Helms, “ é uma obra composta, produzida por vários autores que provavelmente escreveram durante os três séculos que precederam a era cristã. Em sua forma atual, 1Enoque é uma coleção de cinco documentos 13 ensinou as pessoas a fazer espadas, armadura, escudos e peitorais, lições dos anjos, e ele os mostrou os metais e sua manufatura, os braceletes, os enfeites, pinturas dos belos olhos, todos os tipos de pedras selecionadas e as coisas necessárias ao tingimento (EVANS, 2008) 20 . Além disso, 1 Enoque 10,4-6 descreve a punição de Azazel nos seguintes termos: E, além disso, o Senhordisse a Rafael, prenda Azazel pelos seus braços e pés, e o lance nas trevas. E abra o deserto que está em Dudael e o lance ali. Jogue sobre ele pedras afiadas e dentilhadas, e o cubra de escuridão; deixe-o permanecer ali para sempre, cubra a sua face para que não veja a luz, a fim de que no grande dia do Senhor possa ser arremessado ao fogo (EVANS, 2008). Como se vê, no livro de 1 Enoque, Azazel é o “foco do mal, uma representação visível do que é demoníaco” (HELM, 1994, p. 221). É interessante notar que uma comparação mais detida entre a última citação de 1Enoque e o envio do bode ao deserto no dia da expiação “sugere que o imaginário associado à punição de Azazel é adaptada da descrição da expulsão do bode em Lv 16” (HELM, 1994, p. 221). Por isso é necessário concordar com a conclusão de Helm Várias referências à Azazel ainda aparecem em 1Enoque. Contudo, todas o descrevem como cumprindo o papel do arcanjo caído, que pretende enganar a raça humana. Assim, 1Enoque confirma o fato que "Azazel" era entendido em termos demoníacos por um segmento dos apocalípticos judaicos (1994, p. 221). Além da ocorrência em 1 Enoque, Azazel também aparece no pseudoepígrafo “Apocalipse de Abraão”.21 Há um número de referências ao termo no livro. Na primeira, Azazel é descrito como uma ave que sobrevoa as carcaças divididas do sacrifício de Abraão em Gn 15. Mas não é uma ave comum, já que a mesma tece um diálogo com Abraão. No meio do diálogo, Azazel recebe uma interessante repreensão de um anjo Escute companheiro, envergonhe-se de si mesmo e vá. Pois tu não foste designado para tentar todos os justos. Deixe este homem sozinho: tu não podes enganá-lo porque ele é teu inimigo, e inimigo daqueles que te seguem. A veste que desde a antiguidade estava separada nos céus para ti, está agora reservada para ele; e a corrupção que era dele foi transferida a ti. (Apud. HELM 1994, p. 224). menores: "O livro dos Vigias" (cap. 1-36), "O livro das Parábolas " (cap. 37-71), "O livro Astronômico " (cap. 72-82), "O livro dos Sonhos" (cap. 83-90) e "A epístola de Enoque (caps. 91-107) (HELM, 1994, p. 217). 20 Tradução para o inglês disponível no Bible Works Softwear. 21 A origem do Apocalipse de Abraão é mais incerta do que a de 1Enoque. No que diz respeito à data de composição parece que o livro existia em sua presente forma por volta do século VI A.D. Quanto à autoria, é impossível determiná-la, porém parece claro que o livro usa diversas fontes judaicas para sua composição. Embora alguns admitam uma interpolação no capítulo 29 (HELM, 1994, p. 223). 14 É muito interessante perceber o conceito de transferência presente nesse trecho do livro. A mesma ideia é encontrada no ritual da expiação envolvendo Azazel em Lv 16. O caráter demoníaco do ser fica evidente quando o autor se refere a ele no capítulo 13:8 como “impiedade” (EVANS, 2008). Numa segunda ocorrência, na visão de Abraão da tentação de Adão e Eva, ele é descrito assumindo uma vez mais “o papel de tentador, que aparece na forma de serpente alada, seduzindo o casal a comer o fruto proibido” (HELM, 1994, p. 224). Assim, nesta obra pseudoepígrafa, Azazel está associado “a dois temas que a tradição judaico-cristã aplica a Satanás, a saber, sua expulsão do céu e a tentação de Adão e Eva sob o disfarce de uma cobra” (HELM, 1994, p. 224). Como já mencionado, embora a tradição mishnaica interprete o termo como o nome do local para o qual o bode era enviado, vale ressaltar que a terminologia no tratado Yoma possui semelhanças implícitas com a expulsão escatológica de lzEaz"[]/ em 1Enoque. O mesmo acontece na tradição targúmica, como é o caso da versão de Lv 16 no Targum Onkelos. 22 Assim, apesar das diferentes compreensões, pode-se afirmar, como Helm, que “as antigas tradições judaicas parecem estar de acordo com a interpretação que acha, na expulsão do bode emissário, um tipo ou modelo da derrota escatológica do poder demoníaco” (HELM, 1994, p. 226). Contexto cultural O pano de fundo cultural que circundava Israel ajuda a corroborar a posição que trata lzEaz"[]/ como um ser pessoal, e portanto, que a melhor forma de traduzir o termo é fazê-lo através de um nome próprio. Há rituais, tanto na Mesopotâmia quanto no Egito e outros países vizinhos, muito parecidos com o procedimento que envolve o bode para Azazel em Lv 16, embora, ao mesmo tempo, haja diferenças notórias que precisam ser levadas em consideração. Alguns exemplos são apontados abaixo. Antes, porém, uma palavra de precaução deve ser mencionada. Quando se trata de paralelos entre o material bíblico e extrabíblico, como é o caso nas situações abaixo, deve-se evitar dois extremos. O primeiro é conceber que Israel estava num vácuo cultural e que não era influenciado religiosa ou culturalmente pelos seus vizinhos do Antigo Oriente Próximo. Na sua formidável 22 Para mais detalhes ver HELM, 1994, p.225. 15 obra “Ancient Near Eastern Themes in Biblical Theology”, Jeffrey J. Niehaus (2008) expõe com clareza impressivos paralelos entre a religião de Israel e a de seus vizinhos. Tais paralelos implicam tanto numa teologia parcialmente comum quanto em aspectos rituais, sacrificais ou cerimoniais semelhantes. Assim, é inegável o fato de que o javismo e seus vizinhos compartilhavam de um pano de fundo teológico e cultural comum. Em outras palavras, a religião javista não era completamente singular em seu meio geográfico e cultural. Contudo, a segunda posição extrema a ser evitada é a de que o sistema ritual israelita tomou tudo emprestado de seus vizinhos, negando assim qualquer aspecto singular dentro dele. Essa é a posição, por exemplo, de S.H. Hooke (1935) em seu ensaio “The Origens of Early Semitic Ritual”. Entretanto, pensar assim parece não apenas negar qualquer tipo de peculiaridade dentro do javismo, mas também dentro de qualquer das religiões circunvizinhas. Na mesma obra mencionada acima, Jeffrey Niehaus (2008, p. 13-33) propõe que, quando comparados entre si, tais paralelos também possuem limitações. 23 Com isso em mente, uma visão mais equilibrada poderá surgir no estudo desses paralelos. Treiyer divide os exemplos em dois grupos: os paralelos babilônicos e os paralelos hititas. Em cada grupo, ele salienta as similaridades e diferenças com o ritual israelita. No grupo dos paralelos babilônicos, ele cita três exemplos. O primeiro envolve o mashultuppû que poderia ser um bode ou um porco. No ritual, as partes do corpo do animal eram passadas sobre os membros correspondentes de pessoas doentes, a fim de que os animais pudessem remover os demônios que causavam o mal. Essas partes dos animais eram levadas para fora da cidade em regiões áridas que ficavam ao ocidente, que representavam o submundo dos demônios (TREIYER, 1992, p. 261). Como se vê, a imagística da remoção do domínio de um demônio ou de um mal (neste caso uma enfermidade) através de um bode, que era um símbolo dos demônios está presente aqui. Apesar das diferenças, tais como o tratamento do animal (na Babilônia era sacrificado), a abrangência do ritual (em Israel envolvia uma coletividade, enquanto na Babilônia apenas indivíduos) e a categoria do ritual (na Babilônia, era mágico enquanto que, em Israel, era simbólico) (TREIYER, 1992, p. 262), esse pode ser um interessante paralelo que ilumina a discussão sobre lzEaz"[]/. Um segundo exemplo apresentado por Treiyer diz respeito ao ritual de purificação dos templos de Nabû e Bêl, que era realizado no quinto dia do ano novo. Nele, a cabeça de um carneiro jovem era cortada e seu cadáver era esfregado notemplo a fim de limpá-lo de 23 Angel Manuel Rodrigues em seu artigo “Ancient Near Eastern Parallels to the Bible and the Question of Revelation and Inspiration” também apresenta uma visão equilibrada sobre esse assunto (2001, p. 43-62). 16 suas impurezas. As semelhanças são notórias: ambos os rituais estão ligados a festivais de ano novo, ambos os rituais envolvem uma purificação do templo, e, nos dois casos, os homens que participam dos rituais tornam-se impuros. Porém, da mesma forma, as diferenças são tão significativas que a independência de ambos os materiais são autoevidentes (TREIYER, 1992, p. 262). Um terceiro exemplo é oriundo das cartas escritas em Babilônia sobre os substitutos assírio-babilônicos. Antes de um período ameaçador como um eclipse, por exemplo, um substituto era escolhido para permanecer no lugar do rei por cem dias, nos quais o rei ficava escondido com um pseudônimo a fim de se livrar dos maus presságios. De acordo com esse costume, se imagina que o rei carregava os pecados do seu povo e, para livrá-los da morte, eram necessários periodicamente esses substitutos, os quais eram mortos após o rei reassumir seu posto, fazendo assim expiação dos possíveis pecados do povo e de seu rei. Na verdade, embora esteja presente também a ideia de um substituto, em nenhum momento os textos babilônicos falam da transmissão de pecados da assembleia para o rei e nem de sua consequente expiação (TREIYER, 1992, p. 263). Entre os paralelos hititas também se encontra a prática de substituir reis. Um prisioneiro era escolhido para morrer ou ser enviado para a terra do inimigo como bode expiatório. Além disso, com o propósito de apaziguar os deuses inimigos, que presumiam estar causando algum mal, um carneiro era enviado vivo com um cordão de lã de diversas cores. O ritual também era acompanhado de sacrifícios. Assim como na Babilônia, um animal vivo era enviado para remover o infortúnio de uma pessoa doente (TREIYER, 1992, p. 264). Por fim, vale apenas ressaltar alguns vínculos imagísticos e linguísticos entre o ritual dos bodes descrito em Lv 16 e a fraseologia religiosa canaanita, que podem ajudar a elucidar o significado de lzEaz"[]/. Em primeiro lugar, a relação da imagem do bode com uma figura demoníaca está presente tanto na Grécia, quanto na Mesopotâmia, no sudoeste da Ásia e no Delta Egípcio. Na mitologia grega, por exemplo, o deus Dionísio é retratado circundado por antigos demônios da natureza em forma de bodes. Da mesma forma, um número considerável de deidades em forma de bodes é encontrado nas regiões mencionadas acima (TREIYER, 1992, p. 242). Essa conexão parece estar presente também no texto bíblico não só no caso de Azazel, mas também em outras passagens (cf. Lv 17:7; 2Cr 11:15; Is 13:21; 34:14 ). Em segundo lugar, algumas palavras encontras em Lv 16 em relação a Azazel podem ser achadas na terminologia demonológica do mundo antigo. Por exemplo, os termos 17 “deserto” e “terra desolada” como morada mitológica dos espíritos inferiores ou demônios. De fato, na própria cosmologia bíblica “o deserto e os lugares desolados são mencionados em outro lugar como habitação de espíritos maus (Is 13:21; 34:14; Mt 12:43; Lc 11:24; Ap 18:2)” (KEIL; DELITZSCH, 2002, p.586). 24 Além disso, na religião canaanita o deserto é o lugar de habitação de Môt, o deus da morte (TREIYER, 1992, p. 244). Assim, como o bode era solto para vaguear sem rumo pelo deserto, Tammuz dos babilônios, Môt dos cananeus e Satanás da Bíblia (cf. Jó 1:7; 2:2) são descritos como perambulando e vagueando pelo deserto e pela terra (TREIYER, 1992, p. 245). Por fim, cabe ressaltar que o adjetivo “feroz” (da raiz zz;["/ ) é usado em textos ugaríticos como um epiteto de Môt, formando assim o título ou “o deus da morte é feroz” (TREIYER, 1992, p. 246). Vale lembrar que esse adjetivo aparece numa possível explicação etimológica da palavra lzEaz"[]/ como visto acima. Uma objeção Como se sabe nenhuma teoria ou interpretação fica sem contestação, e isso também é verdade no que diz respeito à compreensão de lzEaz"[]/ como um ser pessoal ou figura demoníaca. Embora haja mais de uma objeção, aqui se mencionará apenas uma, que do ponto de vista dessa pesquisa se julga ser a principal. Hartley a expõe muito bem quando afirma que “muitos contestam essa identificação, porque não imaginam que as escrituras prescreveriam um sacrifício ou uma oferta a um demônio” (2002, p. 238). Porém, quando essa identificação é vista mais de perto se percebe que não é esse o caso. Antes de qualquer coisa, o bode para lzEaz"[]/ não era morto. De fato, não há “nenhuma indicação que ele era oferecido como um sacrifício” (HARTLEY, 2002, p. 238). Nenhum procedimento sacrifical era seguido no caso desse bode, pois como se vê não há manipulação de sangue. Tendo isso em vista, nenhum sacrifício é oferecido a Azazel. Assim, o papel desempenhado por Azazel é meramente passivo. Ao que parece nem mesmo essa figura é reconhecida nesse contexto como uma deidade. Antes, “o envio do bode era, como declarado por Naḥmanides, uma expressão simbólica da ideia de que os pecados do povo deveriam ser enviados de volta ao espírito e 24 Keil e Delitzsch ainda acrescentam que o “deserto, considerado como imagem de morte e desolação, corresponde à natureza dos espíritos maus, que perderam o contato com a fonte da vida, e em sua hostilidade a Deus devastaram o mundo, que foi criado bom, e trouxeram morte e destruição em sua trajetória” (2002, p. 586). 18 desolação e ruína, a fonte de toda impureza”.25 Sendo assim, ele era “considerado simplesmente uma personificação da impiedade em contraste com o justo governo de Yahweh”.26 Contudo, vale ressaltar que “embora o AT seja cuidadoso em não personificar o mal numa figura tal como Satanás, ele reconhece que há forças cósmicas hostis a Yahweh. Estas forças são representadas ou como monstros marinhos, tais como o leviatã (ex.: Is 27:1), ou os sátiros que habitavam o deserto (ex.: Is 13:21)” (HARTLEY, 2002, p.238). Hartley oferece ainda uma declaração muito elucidativa sobre essa questão que merece ser mencionada aqui: Se Azazel era o líder dos demônios ou precursor de Satanás, não há maneira de saber, mas pode ser afirmado que tal identificação não é a intenção do uso do nome nessa passagem. Se Azazel era um demônio, este rito significa que os pecados carregados pelo bode estavam retornando para este demônio com o propósito de removê-los da comunidade e abandoná-los em sua fonte a fim de que seu poder ou efeito na comunidade pudesse ser completamente quebrado (HARTLEY, 2002, p. 238). Tendo em vista a discussão acima conduzida, é possível com mais acuidade ponderar sobre a função ou papel teológico do bode no ritual do dia da expiação no contexto da cerimônia descrita em Levítico 16. Essa é a proposta da parte final desse artigo. Análise teológica da função de Azazel em Levíticos 16 Percebe-se muita confusão teológica quando o assunto é relacionar os bodes de Lv 16 às entidades as quais eles representam. Richardson (2008, p. 126), por exemplo, interpreta que João Batista “identificou Jesus Cristo como o cumprimento perfeito e pessoal do simbolismo hebreu do bode expiatório”. Ao mesmo tempo em que esse autor falha ao conceber Azazel como meramente um animal, ele diverge da opinião compartilhada por um grupo cada vez maior de que esse ser representa uma espécie de personificação do mal. Ele ainda afirma que “eram necessários dois animais para representar o que Cristo iria realizar sozinho quando morresse pelos nossos pecados. Não satisfeito em simplesmente expiar nossos pecados, Jesus também removeria a própria presença deles! 27”.25 JEWISH ENCYCLOPEDIA. Azazel. Disponível na internet. Http:// http://www.jewishencyclopedia.com /articles/2203-azazel. Acesso em: 10 de maio 2012. 26 Ver nota de rodapé 22. 27 Grifos acrescentados 19 Esse tipo de pensamento revela a noção de que a obra de expiação de Cristo foi concluída na cruz. Tal ideia é partilhada por quase todo o mundo evangélico. Expressar uma opinião diferente é colocar-se sob os alvos de exacerbada crítica, como se pode ver nas palavras do próprio Richardson (op. cit., p. 126): Uma determinada seita tentou desenvolver uma interpretação diferente: concordavam que o primeiro animal era uma sombra ou tipo de Cristo, mas insistiam em que o bode expiatório representava Satanás. Eles entendiam que o autor do pecado deveria ser o último a levá-lo embora. Essa teoria torna-se irrelevante por ignorar um detalhe que aparece como uma advertência em seu caminho. Ambos os bodes, e não só o primeiro, tinham de ser apresentados perante o Senhor, sem apresentar qualquer defeito, como era costume em todas as ofertas dos hebreus. A conclusão que se faz dessa afirmação é que, de acordo com essa linha de raciocínio, é um equívoco associar Azazel a Satanás tendo em vista que o texto bíblico afirma que não apenas ambos os bodes eram perfeitos como também deviam ser apresentados perante o Senhor. Discutiremos mais detidamente essa questão mais adiante; antes, porém, vale a pena ressaltar a opinião de diversos teólogos não adventistas. O ministro anglicano J. Russell Howden afirma que “o bode para Azazel [...] simboliza o desafio que Deus faz a Satanás”; Samuel M Zwemer, líder presbiteriano, defende que “o diabo tem um nome próprio – Azazil”; o luterano E. W. Hengstemberg enfatiza que “a maneira em que a expressão ‘para Azazel’ é contrastada com ‘para Jeová’ requer forçosamente que Azazel designe um ser pessoal, e, nesse caso, só pode representar Satanás”; J. B. Rotherdan, do movimento Disciples of Christ [Disípulos de Cristo], raciocina: “supondo que Satanás seja representado por Azazel – e não parece existir outra coisa que possamos aceitar biblicamente –, é muitíssimo importante observar que aí não se faz alusão a qualquer sacrifício oferecido ao espírito maligno”; Guilherme Jenks, um congregacionalista, compartilha da mesma ideia; o comentário bíblico metodista Abingdon Bible Commentary ressalta que “o significado da palavra é desconhecido, mas deve ser lembrada como o nome próprio de um demônio do deserto”. Outros nomes ainda podem ser mencionados, tais como os presbiterianos William Milligan, James Hasting e William Smithj; os luteranos Elmer Flack e H. C. Alleman; os congregacionalistas Charles Beecher e F. N. Peloubet; os metodistas John M’Clintock e James Strong, (KNIGHT, 2009, p. 286, 287), entre outros autores já mencionados neste trabalho. Como se vê, os adventistas do sétimo dia não são os únicos a defender a ideia de que Azazel é uma representação de Satanás. 20 Uma vez que a figura de Azazel deve ser vista como um símbolo de Satanás, a preocupação agora se dirige para o significado do termo expiação em Levíticos 16:10. O texto diz que “o bode emissário será apresentado vivo diante do Senhor, para fazer com ele expiação a fim de ser enviado ao deserto”28. No entanto, dois bodes eram tomados para oferta pelo pecado (16:5) e ambos eram postos perante o Senhor (16:7). Para Levine (apud ROSA, 2009, p. 15), Não está inteiramente claro porque ambos os bodes, o bode emissário e o designado ‘para o SENHOR’, eram submetidos como para oferta pelo pecado. Talvez porque neste ponto a sorte ainda não tinha sido lançada para determinar qual bode deveria ser feito ‘para o SENHOR’ e qual ‘para Azazel’. Possivelmente, então, ambos eram oferta para o pecado. Os versos 9-10 explanam que somente o bode feito ‘para o SENHOR’ servia como uma verdadeira oferta pelo pecado. De fato, existe muita discordância quanto à interpretação desses versos. Duas questões frequentemente elaboradas podem ser resumidas da seguinte forma: 1) se ambos os bodes eram tomados para oferta pelo pecado, a qual exigia um animal perfeito (4:23), como um deles poderia representar Satanás? 2) Teria Satanás alguma participação na expiação dos pecados do povo? A fim de responder essas questões, não se podem perder de vista as afirmações do próprio texto. Embora no verso cinco encontremos a afirmação de que dois bodes eram tomados para oferta pelo pecado, após serem lançadas sortes sobre eles (v. 8), não temos mais referências a dois bodes, porém apenas a um para oferta pelo pecado do povo (v. 9, 15, 18). Enquanto segue todo o processo do sacrifício e manipulação do sangue do novilho oferecido como oferta pelo pecado de Arão e sua casa, bem como do bode oferecido pelo pecado do povo, o bode cujas “sortes” caíram para Azazel simplesmente aguarda a conclusão do processo (v.10), e só voltará a ser mencionado no verso vinte. O texto insiste numa característica desse bode: o bode “vivo” (v. 10, 20, 21), a qual a distingue radicalmente do bode oferecido como oferta pelo pecado. A ênfase que o texto dá ao sangue do bode sacrificado para oferta pelo pecado (v. 9, 15, 18, 19) nos traz à memória o texto de Hebreus 9:22: “sem derramamento de sangue, não há remissão”. Ademais, entre a imolação do bode para o Senhor, no verso quinze, até a afirmação de que a purificação do santuário havia sido concluída, no verso vinte, precisamos 28 Grifos acrescentados 21 considerar os eventos relacionados à manipulação do sangue, após o seu derramamento: “trará o seu sangue para detrás do véu” (v.15); “o espargirá sobre o propiciatório e diante do propiciatório” (v.15); “tomará do sangue do novilho e do sangue do bode, e o porá sobre as pontas do altar ao redor” (v. 18); “daquele sangue espargirá com o seu dedo sete vezes sobre o altar, e o purificará das impurezas dos filhos de Israel, e o santificará” (v. 19). Essa sequência de eventos relacionados ao tratamento que o sumo-sacerdote dava ao sangue demonstra que a expiação não era concluída com a morte do animal, mas com a ação do sumo-sacerdote de, por assim dizer, “ministrar” o sangue dentro do santuário, espargindo-o sobre o propiciatório e o altar. Conforme nos declara o texto, somente depois de finalizado o processo de purificação do santuário é que o bode vivo volta à cena (v.20). Hasel (1989, p. 119) destaca seis aspectos- chave sobre a atuação do bode Azazel em Levíticos 16: 1) O rito que envolve Azazel é o último dos ritos do Dia da Expiação [...]; 2) o bode vivo não é imolado e não funciona como um sacrifício; 3) o bode vivo não é engajado num rito expiatório, mas é um veículo no rito de eliminação que livra Israel da presença do pecado; 4) o pôr as mãos e a confissão dos pecados sobre o bode emissário pelo sumo-sacerdote é o ato simbólico de transferência de todos os pecados de Israel que foram acumulados no santuário; 5) o envio do bode vivo para o deserto a fim de que ele morra indica a remoção permanente do pecado; 6) o bode vivo é um tipo de Satanás, e o primeiro bode é um tipo de Cristo. Desse modo, sendo o primeiro bode um tipo de Cristo, e o bode vivo um tipo de Satanás, abstraímos duas implicações teológicas importantes: 1) Satanás não tem qualquer participação na expiação dos pecados do povo; 2) embora o sacrifício de Cristo na cruz seja a oferta de perdão suficiente em si mesma, existe um trabalho que ele continua realizando no céu que tem a ver com a ministração de seu “sangue” em benefício de todos aqueles que decidiram aceitar essa oferta de perdão. “Geralmente, os que ensinam que na cruz foi efetuada uma completa expiação encaram a expressão em seu sentido teológico-popular, mas em realidade o que querem dizer é que no Calvário foi oferecido por nossa salvação o todo- suficiente sacrifício expiatóriode Cristo”. No entanto, “aqueles que consideram esse aspecto da obra de Cristo uma expiação completa aplicam esse termo apenas ao que Cristo realizou na cruz. Em sua definição, não incluem a aplicação dos benefícios da expiação efetuada na cruz ao pecador individualmente” (KNIGHT, 2009, p. 250-251). Teológica e didaticamente, chamamos essas duas fases do mesmo processo do trabalho retentivo de Cristo 1) de expiação objetiva (o sacrifício todo-suficiente de Cristo na cruz) e 2) expiação subjetiva (a aplicação 22 dos benefícios do sacrifício de Cristo na cruz, através de Seu ministério no santuário celestial, a cada pecador que aceita a sua oferta de graça). Contudo, precisamos compreender ainda a razão para que Levíticos 16 mencione que o bode Azazel seria apresentado vivo perante o Senhor “para fazer com ele expiação” (v. 10). A questão agora diz respeito a qual seria a natureza dessa expiação mencionada no verso dez, uma vez que, conforme foi discutido acima, o bode vivo só entra em cena após Arão ter concluído a purificação do santuário (v. 20). Knight (2009, p. 251-253) menciona quatro exemplos do uso da expressão “fazer expiação” sem que ela tenha relação direta com o ritual do santuário. O primeiro está em Êxodo 32:30, em que Moisés faz expiação pelo povo, sem que haja derramamento de sangue, e isto ocorre pelo simples fato de que ele assume o lugar do povo. O segundo se encontra em 2 Samuel 21:3, em que Davi pergunta: “Que quereis que eu vos faça? Com que farei expiação 29?”. Nesse caso, “a expiação ocorreu” quando sete descendentes de Saul foram enforcados. O terceiro se encontra em Números 16:46, em que Arão “faz expiação pelo povo” atuando como um mediador entre o povo e Deus. O quarto exemplo vem de Números 25, em que uma praga incorreu sobre o povo em face de sua desobediência. Fineias, neto de Arão, mata os ofensores, fazendo cessar a praga (verso 13). Com relação a esse último exemplo, comenta-se que esse sacerdote leal fez expiação removendo os ofensores incorrigíveis 30 . Esse aspecto do plano de Deus era ensinado a Israel no serviço do santuário, com a chegada anual do Dia da Expiação. O ato final nesse grande dia era a remoção do bode emissário (Azazel), que representava o instigador do mal (KNIGHT, p. 253). Assim, a “expiação” realizada pelo bode vivo está relacionada com a transferência dos pecados para seu verdadeiro originador e o consequente afastamento definitivo dos mesmos pelo banimento de Azazel. Neste ponto um conceito mais amplo de expiação como apresenta o texto bíblico é importante. A visão bíblica de expiação é muito mais abrangente do que o sacrifício vicário de Cristo. Inclui todo o processo desde à encarnação, vida, morte, ressurreição de Cristo bem como seu ministério no santuário celestial e a erradicação final e total do mal em sua vinda escatológica. Tal processo tem como fim conduzir a uma “reconciliação” (Rm 5:11). Deste modo, a reconciliação (expiação) total entre Deus e o 29 Apesar de a palavra “expiação” não aparecer nas edições brasileiras da Bíblia, o verbo hebraico kaphar (fazer expiação” é o mesmo que aparece em Levítico 16:10. 30 Os grifos foram acrescentados no texto original. 23 homem só será possível quando o mal em todas as suas formas for eliminado. Deus fará isso, quando Satanás como instigador e originador do pecado for destruído. Knight é muito elucidativo sobre essa questão. Segundo ele, “eram empregados dois bodes no Dia da Expiação por existir dupla responsabilidade” (2009, p. 289). Em primeiro lugar, a responsabilidade do pecador como “perpetrador”, agente ou instrumento do pecado que usou seu livre-arbítrio de forma equivocada. E em segundo lugar, a responsabilidade de Satanás como instigador ou tentador, onde o pecado foi gerado primeiramente. Ele continua explicando que pela transgressão dos pecadores penitentes há uma provisão divina, Jesus Cristo, cuja morte vicária é prefigurada na morte do bode ao Senhor. Já no que diz respeito ao pecado de Satanás não lhe é provida nenhuma salvação. Ele precisa ser castigado por causa da responsabilidade que lhe coube. Não existe salvador ou substituto para suportar o seu castigo em seu lugar. Ele precisa “expiar” seu pecado em levar os homens à transgressão (KNIGHT, 2009, p. 289). Então, não há lugar para a acusação de que e teologia adventista vê Satanás como um salvador no ritual de Lv 16 que faz expiação em favor dos pecadores penitentes. Tal acusação é absurda e injusta. Claramente, ela não busca levar em conta a correta interpretação adventista da passagem. A expiação que o bode para Azazel representa (Lv 16:10) aponta para a destruição do mal em todas as suas formas, a qual desde os tempos remotos faz parte do plano de Deus em purificar a terra de toda a sua impureza restaurando assim não só Seu relacionamento com a humanidade, mas a harmonia universal interrompida pela irrupção do grande conflito iniciado no céu por Satanás. Para dizer de outro modo, são as sombras de uma realidade ainda distante para aqueles peregrinos do deserto. Em todo caso, a contraparte para o ritual de Azazel se completará na destruição de Satanás, e, juntamente com ele, na erradicação do pecado, por ocasião do fim do milênio (Apocalipse 20). CONCLUSÃO A presente discussão procurou propor a melhor tradução do termo lzEaz"[]/ em Lv 16. Como se percebeu, há um desacordo notório entre as principais versões portuguesas e inglesas da Bíblia. De fato, tal desacordo não passa de mero reflexo da acalorada discussão hermenêutica sobre o vocábulo e seu significado no contexto do ritual do dia da expiação na tradição judaico-cristã. 24 Embora tão disputado no passado, atualmente uma grande parte dos intérpretes bíblicos tem chegado a um consenso quanto ao seu significado. Verdadeiramente, as ocorrências da palavra na Bíblia são extremamente raras e se restringem a Lv 16. No entanto, quando a etimologia do termo, o contexto bíblico mais amplo, bem como os contextos extra- bíblicos e culturais são levados em consideração, há suficiente evidência para sugerir que lzEaz"[]/ é uma personificação do mal e da impureza. Embora sua personalidade seja incerta ou impossível de determinar, parece suficientemente claro que no ritual da expiação ele se tornava a personificação do mal sobre o qual todos os pecados e impurezas de Israel eram simbolicamente transferidos, como que voltando para sua fonte original. Por isso, a tentativa de traduzir o termo como um substantivo abstrato com o sentido de “remoção completa”, ou o nome do lugar para o qual o bode era enviado, ou ainda como uma designação para o próprio bode, ou seja, “bode emissário” (em inglês “scapegoat”), como o fazem várias versões consultadas, é no mínimo improvável do ponto de vista etimológico, textual e contextual. Portanto, as traduções que preferem simplesmente transliterar o termo e traduzi-lo como “Azazel”, isto é, um nome próprio, fazem a melhor escolha nesse caso. O debate acima exposto é um bom exemplo de como a tradução de um texto bíblico pode ser desafiadora. Nesse processo, não apenas as ferramentas linguísticas são necessárias, mas também uma boa dose de análise histórica, exame de outros documentos do mundo antigo ou extra-bíblicos, tais como aqueles oriundos da tradição judaica primitiva, além de um adequado estudo de religiões comparadas e de uma apropriada e abrangente análise do material bíblico. Por fim, destacamos que uma teologia que se fundamenta numa hermenêutica infiel ao texto bíblico redundará em conclusões que não encontram respaldo nele, ao passo que, conforme buscou se demonstrar na última seção deste trabalho, de uma interpretação coerente com a gramática e a história do texto dimanará uma teologia que é bíblica em sua essência. REFERÊNCIASLIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert; JONES, Henry Stuart. A Greek-English Lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1996. BROWN; DRIVER, S. R; BRIGGS, C. A. A Hebrew and English Lexicon of The Old Testament. Oxford, 1907. KIRST, Nelson et al. Dicionário Hebraico-Português. São Leopoldo: Sinodal, 2004. 25 EVANS, Craig E. The Pseudepigrapha. 2008. Disponível no Bible Works Software. EYNIKEL, E. A Greek - English Lexicon of the Septuagint. Germania, Alemanha: Deutsche Bibelgesellschaft, 1992. GEISLER, Norman; NIX, William E. Introducão bíblica: como a Bíblia chegou até nós. Tradução de Oswaldo Ramos. São Paulo: Vida, 1997. HARTLEY, J. E. 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