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<p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 1</p><p>GALVES, Charlotte. ReVEL na Escola: Linguística Histórica. ReVEL, vol. 17, n. 32, 2019.</p><p>[www.revel.inf.br]</p><p>REVEL NA ESCOLA: LINGUÍSTICA HISTÓRICA</p><p>ReVEL at School: Historical Linguistics</p><p>Charlotte Galves1</p><p>galvesc@unicamp.br</p><p>A linguística histórica é, como seu nome indica, a disciplina que estuda as</p><p>línguas na sua dimensão histórica. Quando esse estudo toma como central o</p><p>fenômeno da mudança linguística ao longo do tempo, podemos falar também de</p><p>“linguística diacrônica” (do grego dia, “através”, e cronos, “tempo”). Os dois termos</p><p>são muitas vezes tomados como equivalentes, mas não o são sempre nos fatos. O</p><p>linguista histórico pode focalizar seu estudo numa fase antiga de uma determinada</p><p>língua, sem considerar a dimensão diacrônica da mudança. É o caso por exemplo da</p><p>obra de Rosa Virgínia Mattos e Silva Estruturas Trecentistas, cujo objeto é o</p><p>português do séc. 14 tal como aparece no manuscrito mais antigo dos diálogos de São</p><p>Gregório. Contudo, a questão da mudança linguística é central na linguística</p><p>histórica, além de ter grande relevância na teoria linguística em geral, por constituir</p><p>uma janela preciosa sobre a natureza da linguagem. Por isso, esta apresentação</p><p>tomará a problematização da mudança como eixo principal.</p><p>Veremos que os estudos diacrônicos podem ser agrupados em dois grandes</p><p>tipos. Aqueles que estudam as mudanças no interior da mesma língua (e.g. a história</p><p>da língua portuguesa), e aqueles que consideram a gênese de uma língua a partir de</p><p>outra (por exemplo, a genealogia das línguas românicas a partir do latim). Estes</p><p>estabelecem o que se pode chamar a genética das línguas, enquanto os primeiros</p><p>tomam como objeto suas histórias. Fica, contudo, uma pergunta: até que ponto uma</p><p>1 Professora Titular, Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 2</p><p>língua pode ser considerada a mesma, dos seus primórdios documentados até ao</p><p>presente? O francês antigo ou o inglês antigo, cujos primeiros textos remontam a</p><p>períodos muito remotos – o século 9 para o primeiro e o século 8 para o segundo –</p><p>são tão opacos quanto uma língua estrangeira para os falantes modernos. O</p><p>português antigo não nos causa tanta estranheza, talvez por ser documentado</p><p>somente a partir do final do século 12. Note-se, contudo, que os documentos mais</p><p>antigos conhecidos até hoje estão na origem de uma polémica entre estudiosos,</p><p>concluindo uns que se trata dos mais antigos manuscritos em língua portuguesa</p><p>jamais encontrados, argumentando outros que não estamos senão frente a</p><p>documentos escritos em latim lusitanizado.2 Português ou latim? Essa pergunta</p><p>expressa uma questão fundamental: como datar com precisão o nascimento ou a</p><p>morte de uma língua? De maneira menos dramática: como decidir se estamos frente</p><p>à mesma língua, quando, ao longo do tempo, as mudanças são tais que as diferenças</p><p>se tornam muito grandes? Este texto não responderá a perguntas tão complexas, cuja</p><p>resposta passa, em última instância, pela definição do que seja uma língua no quadro</p><p>teórico em que se fundamentam nossas pesquisas. Ele tentará somente dar alguns</p><p>pontos de referência e sugestões de entrada dentro do campo complexo da reflexão</p><p>sobre as línguas na sua dimensão histórica e diacrônica. A primeira pergunta será</p><p>assim “O que muda nas línguas?” e a segunda “Porque as línguas mudam?”. Em</p><p>seguida, serão apresentados os métodos para o estudo da história das línguas. A</p><p>última parte focará a história da língua portuguesa, que traz para o estudioso uma</p><p>imensa riqueza de dados, por ser uma língua cuja expansão para longe do seu berço</p><p>de origem não parou de se dar ao longo dos séculos.</p><p>1. O QUE MUDA NAS LÍNGUAS</p><p>1.1 O LÉXICO</p><p>O que mais salta aos olhos são as mudanças nas palavras, ou seja, no léxico. Isso não</p><p>passou desapercebido ao primeiro gramático da língua portuguesa, Fernão de</p><p>Oliveira que, na sua Grammatica da lingoagem portuguesa de 1536, distingue as</p><p>“dições velhas” e as “dições novas”, falando da morte das palavras, e também do seu</p><p>nascimento.</p><p>2 Veja-se o debate em torno da Notícia de Fiadores, texto datado de 1175. Cf. Emiliano (2003).</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 3</p><p>As dições velhas são as que foram usadas, mas agora são esquecidas, como</p><p>Egas, Sancho, Dinis, nomes próprios, e ruão, que quis dizer cidadão,</p><p>segundo que eu julguei em hum livro antigo [...] E não somente de tanto</p><p>tempo, mas também, antes de nós um pouco, nossos pais tinham alghuas</p><p>palavras que já não são agora ouvidas, como compengar, que quer dizer</p><p>comer o pão com a outra vianda, e nemichalda, o qual valia como agora</p><p>nemigalha [...]” Fernão Oliveira 2007 [1536]: 128.</p><p>“As dições novas são aquellas que novamente ou de todo fingimos ou em</p><p>parte achamos.3 “De todo” chamo quando não olhamos a nenhum respeito</p><p>senão ao que nos ensina a natureza; para o que teveram licença os primeiros</p><p>homens quando premeiro nomearam toalha e guardanapo, e quando</p><p>disseram chorar, cheirar, espantar e muitos outros que não são tirados de</p><p>nenh˜ua parte. Nós já‟gora, para fazer vocábolos de todo assi como digo, não</p><p>temos mui franca licença; mas porém se achassemos h˜ua coisa nova em</p><p>nossa terra, bem lhe podiamos dar nome novo buscando e fingindo voz nova,</p><p>como poderiam ser as rodas ou moendas em que agora se fala, e dizem que</p><p>hão de moer com nenh˜ua e pouca ajuda. Esta tal cousa nunca ainda foi</p><p>vista; portanto não pode ter nome. Se agora de novo for achada, trará</p><p>também voz nova consigo.</p><p>Achar dições novas “em parte” e não de todo é quando, para fazer a voz nova</p><p>que nos é necessária, nos fundamos em algh˜ua cousa, como em bombarda,</p><p>que é cousa nova e tem vocabolo novo, o qual vocabolo chamaram assim por</p><p>amor do som que ella lança, que é quasi semelhante a este nome bombarda</p><p>ou o nome a elle, e daqui também tiramos estoutro isso mesmo novo,</p><p>esbombardear. Fernão Oliveira 2007 [1536]: 129-130.</p><p>É interessante notar neste trecho o reconhecimento da necessidade da criação</p><p>de palavras novas, em função do surgimento de coisas novas. Isso explica bem porque</p><p>o léxico é o componente das línguas cuja evolução podemos observar ao longo da</p><p>vida. As palavras entram e saem do uso muito facilmente por serem a parte da língua</p><p>mais permeável às condições de uso da língua, e à cultura. Além disso, quando uma</p><p>palavra é introduzida na língua, uma cascata de novas formas pode aparecer, a partir</p><p>de processos derivacionais, como esbombardear a partir de bombarda. Note-se</p><p>também que a mudança lexical pode também consistir numa mudança semântica. No</p><p>trecho acima, observamos palavras cujo sentido diverge do sentido moderno.</p><p>“Novamente” de “de novo”, por exemplo, não têm o sentido de reiteração, como na</p><p>língua contemporânea, mas expressam a novidade de um evento. “Fingir” não</p><p>significa “fazer de conta”, mas “criar”, “inventar”.</p><p>3 Em termos modernos: “as palavras novas são aquelas que criamos do nada ou das quais achamos</p><p>uma parte”. Na continuação, o autor diz que, no primeiro caso, agimos como os primeiros homens,</p><p>que inventaram vocábulos, no segundo aproveitamos uma palavra já existente para criar uma nova,</p><p>como esbombardear, a partir de bombarda.</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 4</p><p>1.2 OS SONS</p><p>As línguas mudam também na sua forma sonora, ou seja, na sua fonética e na</p><p>sua fonologia. O português antigo tinha por exemplo uma oposição entre dois</p><p>fonemas sibilantes,</p>
<p>respectivamente representados pelas grafias -ç- e -ss-. A palavra</p><p>“paço” (“palácio”) era assim pronunciada diferentemente da palavra “passo”. A perda</p><p>dessa distinção, que se dá definitivamente no século 16 (cf. Matos e Silva 2006), se</p><p>infere nos textos quando começam a aparecer confusões gráficas inexistentes</p><p>anteriormente, mostrando que os falantes não faziam mais a distinção entre as duas</p><p>pronúncias. Essa confusão permanece até hoje.</p><p>A mudança fônica teve um papel central na constituição da reflexão moderna</p><p>sobre a mudança nas línguas. Mostrou-se que as mudanças observadas, por exemplo,</p><p>na passagem do latim para as línguas românicas (também chamadas “neo-latinas”)</p><p>não se deram de maneira aleatória, mas seguiram padrões bem precisos e</p><p>sistemáticos. Por exemplo, em português, todos os /l/ intervocálicos, ou seja,</p><p>ocorrendo entre duas vogais, como nas palavras latinas “solu(m)”, “palu(m)”,</p><p>deixaram de ser pronunciados, gerando as palavras “soo” (depois “só”) e “pau”. O</p><p>mesmo aconteceu com o /n/ intervocálico, que deixou de ser pronunciado, mas</p><p>tornou nasal a vogal anterior: “manu” passando a ser pronunciado como “mão”. É</p><p>somente nas palavras emprestadas tardiamente do latim que tal processo não se</p><p>verifica. Temos assim o contraste entre uma palavra como “mágoa” e uma palavra</p><p>como “imaculada”, as duas tendo como origem “macula” em latim. Na primeira, que</p><p>evoluiu naturalmente, observa-se a perda do /l/. Na segunda, de formação erudita</p><p>tardia, o /l/ se mantém. Na linguística histórica do século 19, a noção de leis de</p><p>mudança fonética ocupa um papel de destaque na explicação da emergência de</p><p>línguas distintas a partir de uma origem comum, como as línguas românicas a partir</p><p>do chamado latim vulgar. Invertendo o caminho, as leis fonéticas permitem também</p><p>a reconstrução de línguas passadas não documentadas, como o indo-europeu, a</p><p>provável língua “mãe” da maioria das línguas europeias e de parte das línguas da</p><p>Índia.</p><p>Note-se que as mudanças que afetam a forma fônica da linguagem tendem a</p><p>ser menos frequentes e se dar em lapsos de tempo mais longos do que as mudanças</p><p>lexicais. É o caso também daquelas que afetam o componente gramatical da língua, a</p><p>morfologia e a sintaxe.</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 5</p><p>1.3 A MORFOLOGIA</p><p>A morfologia, ou seja, os padrões de derivação de palavras por meio de</p><p>prefixos e sufixos, é também um dos lugares de mudança nas línguas. O português</p><p>antigo, por exemplo, tinha particípios passados em -udo para uma classe de verbos,</p><p>como pode ser observado na seguinte estrofe de uma cantiga de amigo do século 13,</p><p>da autoria do trovador Joam Garcia de Guilhade:4</p><p>- Foi-se ora daqui sanhudo (= „irado‟)</p><p>Amiga, o voss‟ amigo</p><p>- Amiga, perdud‟ é migo</p><p>E, pero migo é perdudo,</p><p>o traedor conhoçudo</p><p>acá verrá</p><p>cá verrá</p><p>cá verrá.</p><p>Os últimos exemplos de particípios passados em -udo se encontram nas peças</p><p>de Gil Vicente (1465-1536).</p><p>No âmbito das línguas românicas, uma mudança morfológica notável é a perda</p><p>do sistema rico de casos que caracterizava o latim, sua língua “mãe”. Algumas</p><p>línguas, como o francês antigo, mantiveram algum resíduo desse sistema nos nomes.</p><p>Em francês moderno essas marcas deixaram de existir. O português, como a maioria</p><p>das línguas românicas, só mantém distinções casuais no paradigma dos pronomes.</p><p>Assim, na primeira pessoa, o sujeito (caso nominativo) é realizado como “eu”, o</p><p>objeto direto (caso acusativo) como “me”, o complemento de preposição é realizado</p><p>por “mim”. O português brasileiro falado reduziu ainda mais essas marcas casuais na</p><p>terceira pessoa, com a perda do pronome acusativo “o/a”.</p><p>4 Citada por Mattos e Silva (2006: 123). Note-se também a forma “migo”, derivada do latim “mecum”,</p><p>substituída na língua moderna por “comigo”. Para ler a cantiga inteira, veja-se</p><p>https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=787&pv=sim</p><p>https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=787&pv=sim</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 6</p><p>1.4 A SINTAXE</p><p>A sintaxe das línguas também muda ao longo do tempo. Em português, um caso</p><p>bastante emblemático de mudança sintática encontra-se na colocação de pronomes</p><p>clíticos. Em textos escritos até o século 19 em Portugal, em orações afirmativas não</p><p>dependentes em que o verbo era precedido pelo sujeito, havia variação entre a</p><p>posição pós-verbal ou “enclítica”, e a posição pré-verbal ou “proclítica”, do pronome,5</p><p>como ilustrado respectivamente nos exemplos (1) e (2), ambos tirados de sermões do</p><p>Padre Antonio Vieira (1608-1697).</p><p>(1) Elles conheciam-se, como homens, Christo conhecia-os, como Deus.</p><p>(2) O Evangelho o diz :/. Erunt signa in sole ,/, et luna ,/, et stellis .</p><p>Na Figura 1 abaixo,6 cada ponto corresponde à frequência relativa da posição</p><p>enclítica (cf. ex. 1) em textos de autores portugueses, situados ao longo do tempo</p><p>entre o século 16 e o século 20. Concretamente, 0.17 no primeiro ponto, por exemplo,</p><p>significa que 17% dos casos de colocação são enclíticos e 83% são proclíticos. Já no</p><p>segundo ponto, a ênclise não aparece em nenhum caso, o que significa que em 100%</p><p>dos casos, o que aparece é a próclise. Observa-se que, nos séculos 16 e 17, 7 a</p><p>frequência da ênclise era baixa e, consequentemente, a frequência da próclise era</p><p>alta. No início do século 18, porém, a ênclise começa a se tornar mais frequente nesse</p><p>tipo de orações, até se tornar praticamente obrigatória em meados do século 19,</p><p>quando achamos essa colocação em 97% dos casos. Hoje, em Portugal, as construções</p><p>como (1) são a regra.8</p><p>5 A não ser que o sujeito fosse um pronome indefinido como “alguém” ou “algo”. Nesse caso, a</p><p>próclise era obrigatória.</p><p>6 A figura 1 é tirada de Galves e Paixão de Sousa (2017).</p><p>7 O ponto discrepante corresponde aos sermões do Padre Antonio Vieira. Para uma discussão dessa</p><p>discrepância, veja-se Galves (2003).</p><p>8 Não se trata aqui de regra imposta pela norma, mas de regra interiorizada pelos falantes no seu</p><p>processo natural de aquisição.</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 7</p><p>Figura 1: A evolução da ênclise e da próclise na história do português europeu (1500-1850)</p><p>Há muitos outros casos de mudanças sintáticas na história do português (cf.</p><p>Seção 4), bem como nas outras línguas. Contrariamente ao léxico que, apesar da</p><p>criação de novas palavras e das mudanças fônicas, mantém um núcleo duro muito</p><p>estável ao longo do tempo, as línguas passam na sintaxe por mudanças drásticas que</p><p>fazem com que línguas da mesma família, ou seja, geneticamente muito próximas,</p><p>possam exibir propriedades sintáticas bastante diferentes. As línguas românicas são</p><p>assim sintaticamente muito diferentes do seu ancestral, o latim. Encontramos</p><p>também esse fato na evolução do português. O caráter catastrófico e imprevisível das</p><p>mudanças sintáticas explica que a reconstituição de fases antigas das línguas seja</p><p>essencialmente baseada nas palavras, e não nas frases, uma vez que não se pode falar</p><p>em leis de mudança sintática.</p><p>2. POR QUE AS LÍNGUAS MUDAM?</p><p>Para explicar a mudança linguística, duas ideias se opõem frequentemente. A</p><p>primeira é que as línguas têm uma tendência natural à mudança. Essa ideia é</p><p>expressa em termos de deriva (em inglês “drift”) pelo linguista norte-americano</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 8</p><p>Edward Sapir (1884-1939), que afirma: “A linguagem move-se pelo tempo em fora</p><p>num curso que lhe é próprio. Tem uma deriva.”9 Por exemplo, segundo Sapir, as</p><p>línguas teriam uma tendência natural em perder</p>
<p>morfologia de concordância ou de</p><p>caso e também uma tendência natural na harmonização dos processos morfológicos,</p><p>evitando irregularidades. A deriva é uma causa interna da mudança. A ideia oposta é</p><p>que a mudança tem causas externas, de natureza sócio-histórico-cultural, como o</p><p>contato entre línguas. A polarização entre esses dois princípios explicativos aparece</p><p>claramente no trecho a seguir, a respeito da história do português brasileiro, onde os</p><p>autores, Anthony Naro e Marta Scherre, opõem “herança românica e portuguesa” a</p><p>“modificações advindas das línguas africanas ... ou das línguas dos povos</p><p>ameríndios”.</p><p>O conteúdo deste livro tem uma linha mestra clara: apresentar evidências de</p><p>que características morfossintáticas e fonológicas do português brasileiro,</p><p>atualmente envoltas em estigma e preconceito social, são heranças</p><p>românicas e portuguesas arcaicas e clássicas, e não modificações mais</p><p>recentes advindas das línguas africanas, que vieram para o Brasil com seus</p><p>povos escravizados e subjugados, ou das línguas dos povos ameríndios, que</p><p>aqui já se encontravam quando vieram os colonizadores europeus.</p><p>Tampouco são o resultado de processos de simplificação ou outras</p><p>modificações espontâneas causadas pelo contato, durante o processo de</p><p>transmissão não tradicional da língua.... queremos identificar as raízes</p><p>lingüísticas românicas e lusitanas que insistem em permanecer em nossas</p><p>bocas e em nossas falas e que, com mais intensidade, se revelam nas falas e</p><p>nas bocas dos brasileiros que tiveram pouco acesso aos bancos escolares ou</p><p>que habitam as áreas rurais e as periferias das grandes cidades. (Naro e</p><p>Scherre, 2007: 17).</p><p>Note-se que a relevância do contato linguístico na história das línguas coloca</p><p>uma questão interessante para as representações da genética das línguas em forma de</p><p>árvore, onde cada língua tem um e um só ancestral imediato, excluindo qualquer</p><p>outra ascendência. Desse ponto de vista, o papel do contato, se existir, está</p><p>totalmente apagado. Nos estudos clássicos da história das línguas, o efeito do contato</p><p>é expresso na noção de substrato. Diz-se por exemplo que a evolução da vogal</p><p>posterior /u/ do latim para a vogal central /ü/ do francês se deve ao efeito de um</p><p>substrato céltico, ou seja, à influência das línguas célticas, faladas pelos gauleses, nas</p><p>regiões do império romano em que se desenvolveram os dialetos que passariam a</p><p>constituir a língua francesa. Ao aprender o latim como segunda língua, os falantes de</p><p>línguas célticas imprimiriam algumas características sonoras das suas línguas</p><p>9 Sapir, 1971[1921]: 151, em tradução de Mattoso Câmara.</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 9</p><p>maternas na língua que passariam a adotar e transmitir aos seus descendentes. A</p><p>perda do /l/ e do /n/ intervocálicos no português, mencionada na seção anterior, se</p><p>deve possivelmente também a um substrato particular que diferencia o latim</p><p>adquirido no noroeste da península ibérica pelas populações autóctones, dos outros</p><p>substratos que levaram às outras línguas ibéricas onde tal perda não aconteceu, como</p><p>o castelhano ou o catalão. Nos estudos clássicos da mudança, o efeito do substrato é</p><p>geralmente localizado nas mudanças fônicas e lexicais, muito raramente nas</p><p>mudanças sintáticas. Voltaremos a esse fato no que diz respeito ao português</p><p>brasileiro na seção 4.</p><p>O contato está na origem também do fenômeno de empréstimo lexical, muito</p><p>comum nas línguas. As “vozes novas” têm frequentemente a forma de uma palavra</p><p>oriunda de outras línguas, emprestadas em razão de novas realidades geográficas,</p><p>culturais ou tecnológicas. Pense-se na importância das palavras tupis, africanas, e –</p><p>de importação mais recente – inglesas, no português brasileiro.</p><p>Será que “deriva” e “contato” devem ser tão drasticamente opostos na tarefa da</p><p>explicação da mudança linguística? Serafim da Silva Neto (1977: 115) fala de deriva</p><p>“precipitada” pelo contato:</p><p>Na constituição do português brasileiro há desde o século XVI duas derivas: a) uma deriva</p><p>bastante conservadora, que se desenvolve portanto muito lentamente e b) uma deriva a que</p><p>condições sociais próprias imprimem uma velocidade inesperada.</p><p>Naro e Scherre (2007: 47) também articulam os dois processos em algumas</p><p>partes do seu livro, como no seguinte trecho:</p><p>1) A língua portuguesa falada em Portugal antes da colonização do Brasil já</p><p>possuía uma deriva secular que a impulsionava ao longo de um vetor de</p><p>desenvolvimento.</p><p>2) No Brasil, este vetor se encontrou com outras forças que reforçavam</p><p>e expandiam a direção original.</p><p>3) No início uma dessas forças era a pidginização, que exercia uma influência</p><p>sobre o português através da língua geral tupi e da “língua de preto”</p><p>européia, revivificada no Brasil originalmente para uso com os ameríndios.</p><p>4) Ao longo de toda a história do Brasil, o processo de aprendizado do</p><p>português como segunda língua teve seus efeitos documentados</p><p>parcialmente.</p><p>Voltaremos a essa questão na seção 4 a respeito da história do português no</p><p>Brasil.</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 10</p><p>O fato de parecer haver tendências universais de mudança – que</p><p>caracterizariam também a deriva das línguas – pode ser devido a princípios</p><p>universais de uso da linguagem. Um deles seria a gramaticalização, inicialmente</p><p>proposta pelo linguista francês Antoine Meillet (1866-1936). A gramaticalização é</p><p>um processo de mudança pelo qual se integram ao componente gramatical das</p><p>línguas palavras ou expressões de uso muito frequente inicialmente não gramaticais:</p><p>a expressão “em boa hora” se transforma na conjunção “embora”; o auxiliar latino</p><p>“habere”, que marca iminência de um evento ou sua necessidade, se torna a</p><p>desinência de futuro em muitas línguas românicas; o verbo “ir”, que expressa</p><p>movimento, se transforma por sua vez num auxiliar expressando futuro; a expressão</p><p>“a gente”, que significa inicialmente “as pessoas”, passa a ser usado no como</p><p>pronome de primeira pessoa do plural, etc... Tal processo envolve perda de carga</p><p>semântica e, na grande maioria dos casos, redução fonética. A esse respeito, observe-</p><p>se o percurso que leva “Vossa Mercê”, forma de tratamento reservada ao rei, para “cê”</p><p>e “ocê”, formas totalmente integradas ao paradigma pronominal do português</p><p>brasileiro, como forma de 2ª pessoa substituindo “tu”.10</p><p>Enfim, outro motor interno, as mudanças se dão frequentemente em cadeia,</p><p>ou cascatas. Na evolução do latim para as línguas românicas, a perda da distinção</p><p>fonológica entre sílabas longas e sílabas breves afetou o sistema casual, baseado em</p><p>parte em contrastes envolvendo duração vocálica. Os casos nominativo e ablativo na</p><p>primeira declinação dos nomes (a classe de “rosa”) só se distinguiam por ser a vogal -</p><p>a- do nominativo breve, e a vogal -a- do ablativo longa. O enfraquecimento do</p><p>sistema de casos, por sua vez, torna a ordem dos termos da oração mais relevante</p><p>para a interpretação das funções gramaticais, o que leva a uma sintaxe mais rígida.</p><p>Temos assim uma cascata de mudanças internas à língua que vai da fonologia à</p><p>morfologia, e da morfologia à sintaxe.</p><p>10 Veja-se, entre outros, Vitral (1996).</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 11</p><p>3. COMO ESTUDAR A HISTÓRIA DAS LÍNGUAS (HOJE)</p><p>Os estudos históricos envolvem em grande parte estados de língua cujos</p><p>falantes já morreram. O que nos sobra são textos escritos, cuja existência devemos</p><p>muitas vezes ao acaso.11 Não é, portanto, de estranhar que a linguística histórica</p><p>tenha muita afinidade com a filologia, disciplina cujo objetivo é a edição dos textos,</p><p>ou seja, o trabalho</p>
<p>de estabelecimento dos textos na sua originalidade e na sua</p><p>integridade. Hoje em dia, a filologia se torna digital e aproveita grandemente os</p><p>avanços tecnológicos proporcionados pelos computadores. O editor eletrônico</p><p>eDictor,12 por exemplo, permite produzir diversas versões do mesmo texto, desde</p><p>aquela mais próxima do original (também chamada de “semidiplomática”), até as</p><p>mais modernizadas.13</p><p>Os computadores também permitem a elaboração de grandes corpora (plural</p><p>do latim corpus), compilações de textos reunidos a partir de determinadas</p><p>perguntas de pesquisa. Existem hoje no Brasil e em Portugal quatro corpora</p><p>eletrônicos14 que têm a particularidade de apresentarem uma anotação</p><p>morfossintática unificada permitindo fazer buscas, ou seja, fazer perguntas aos</p><p>textos, de maneira automática.15 A cada palavra é atribuída uma etiqueta expressando</p><p>sua categoria (Nome, Verbo, etc.), bem como aspectos da sua morfologia (género e</p><p>número para os nomes e adjetivos, tempo e pessoa para os verbos, além de outras</p><p>informações). Cada frase recebe uma anotação sintática. Esses corpora totalizam em</p><p>11 Paixão de Sousa (2006:29) problematiza essa questão de maneira instigante: “O ponto principal que</p><p>precisamos lembrar, portanto, é que trabalhamos com o que o tempo deixou, não com o que</p><p>aconteceu;”</p><p>12 https://humanidadesdigitais.org/edictor/</p><p>13 Além do Projeto Tycho Brahe, no âmbito do qual e-Dictor foi idealizado e implementado, a</p><p>ferramenta está sendo usada por vários grupos membros do Projeto para a história do português</p><p>brasileiro (PHPB), projeto nacional coordenado pelo Prof. Ataliba Castilho que visa estudar a</p><p>história do português no Brasil em documentos não literários de diversas naturezas, cartas,</p><p>documentos jurídicos, editoriais e anúncios de jornais, entre outros, produzidos em todas as regiões do</p><p>Brasil.</p><p>14 São eles:</p><p>- o Corpus Tycho Brahe http://www.tycho.iel.unicamp.br/˜tycho/corpus</p><p>- o Corpus Wochwel http://alfclul.clul.ul.pt/wochwel/</p><p>- o Corpus Post Scriptum: http://ps.clul.ul.pt/pt/index.php?</p><p>- O Corpus Cordial-Sin: http://www.clul.ulisboa.pt/en/10-research/314-cordial-sin-corpus</p><p>O manual de anotação sintática desses corpora se encontra no endereço:</p><p>https://sites.google.com/site/portuguesesyntacticannotation</p><p>15 Essa metodologia está sendo usada para diversas outras línguas, como o inglês, o francês e o</p><p>islandês. A metodologia de anotação dos corpora mencionados na nota 12 segue a metodologia</p><p>elaborada inicialmente para os corpora históricos do inglês, cf. https://www.ling.upenn.edu/hist-</p><p>corpora/</p><p>http://www.clul.ulisboa.pt/en/10-research/314-cordial-sin-corpus</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 12</p><p>torno de 3 milhões de palavras e abrangem a língua escrita entre o século 14 e o</p><p>século 19, em Portugal e no Brasil, bem como transcrições de entrevistas realizadas</p><p>nos anos 70 do século 20 para estudar os dialetos regionais portugueses. Fica assim</p><p>possível investigar a história gramatical da língua portuguesa de maneira sistemática,</p><p>dos seus primórdios até suas diversas vertentes contemporâneas, com base numa</p><p>quantidade de dados inédita, impossível de compilar e explorar sem o recurso de</p><p>ferramentas computacionais. As análises quantitativas baseadas nesses dados</p><p>permitem descrever de maneira mais precisa e rigorosa as diversas dinâmicas de</p><p>mudança que compõem os diversos caminhos da língua no tempo e no espaço.</p><p>Quanto à genética das línguas, apesar de menos dominante na área do que no</p><p>século 19, ela também se beneficia do poder de cálculo dos computadores para</p><p>estabelecer, com base em quantidades maiores de dados, e com algoritmos mais</p><p>sofisticados, árvores genealógicas (também chamadas de cladogramas) mais</p><p>precisas e confiáveis.</p><p>Note-se incidentemente que estudar a história das línguas não exclui levar em</p><p>consideração o presente. Corpora orais são, portanto, relevantes também para a</p><p>pesquisa histórica e podem passar por um processo de anotação semelhante ao dos</p><p>textos escritos, depois de transcritos.</p><p>Vale lembrar enfim que, uma vez levantados e quantificados os dados, as</p><p>análises são efetuadas conforme os quadros teóricos escolhidos, não diferindo nisso</p><p>dos trabalhos privilegiando a sincronia. As explicações dadas aos fenômenos são</p><p>assim fortemente condicionadas pela concepção de língua que norteia as análises,</p><p>como veremos a seguir.</p><p>4. ESTUDO DE CASO: A HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA</p><p>4.1 A PERIODIZAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA</p><p>Uma das tarefas tradicionais dos estudos diacrônicos é o estabelecimento de</p><p>uma “periodização” para as línguas, ou seja, a definição de uma sucessão de estados</p><p>distintos, aos quais se dá uma denominação, e se atribui uma data de início e de fim.</p><p>A Tabela 1 mostra várias propostas de periodização do português europeu.16</p><p>16 As cinco primeiras foram compiladas por Mattos e Silva (1994).</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 13</p><p>Tabela 1: A periodização do português europeu (Fonte: Galves, 2012)</p><p>A última coluna à direita, baseada em trabalho conjunto com Cristiane</p><p>Namiuti e Maria Clara Paixão de Sousa (Galves et al. 2012) diverge das propostas</p><p>mais antigas ao juntar o português médio de Lindley Cintra, também chamado de</p><p>“pré-clássico” por Pilar Vasquez Cuesta e de “comum” por Serafim da Silva Neto,</p><p>com o português clássico num grande período denominado português</p><p>hispânico por ser o período em que o português e o castelhano têm o máximo de</p><p>aproximação. A razão de considerar que se trata de um único período e não de dois</p><p>como nas análises anteriores,17 não é empírica, ou seja, baseada em fatos novos, mas</p><p>interpretativa. Considera-se com efeito que o português médio representa, nos textos,</p><p>uma fase de transição entre o português arcaico, ou galego-português, e o português</p><p>clássico. E entende-se que essa fase de transição não é senão a expressão de uma</p><p>competição entre uma língua, ou gramática, antiga, cujo prestígio vai diminuindo</p><p>ao longo do tempo, e uma língua, ou gramática, nova, que se expressará com</p><p>plenitude nos séculos 16 e 17. Juntar o português médio e o português clássico</p><p>significa localizar duas grandes rupturas na história do português. Uma se dá por</p><p>volta de 1350, e é o fim do galego-português, língua dos primeiros textos e da lírica</p><p>trovadoresca. Outra se dá por volta de 1700, e é o início do português europeu</p><p>17 Com a exceção de Serafim da Silva Neto que não postula o período correspondente ao português</p><p>clássico e faz começar o português moderno já no séc. 16.</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 14</p><p>moderno, tal como o conhecemos hoje. Desse ponto de vista, o século 16 tem menos</p><p>relevância do que as análises anteriores, sendo simplesmente o momento em que a</p><p>língua que emerge em função do deslocamento do centro político e cultural para o sul</p><p>de Portugal fica definitivamente despida dos seus arcaísmos. A segunda grande</p><p>ruptura se dá no século 18, por razões que não foram completamente esclarecidas até</p><p>hoje, possivelmente ligadas a seu afastamento dos modelos castelhanos. Os corpora</p><p>mencionados na seção anterior têm contribuido fortemente para uma melhor</p><p>compreensão da dinâmica dessa segunda grande mudança acontecida na língua</p><p>portuguesa em Portugal.18</p><p>4.2 O EFEITO DO CONTATO NA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO</p><p>Na seção 2, vimos o antagonismo entre “deriva” e “contato” para explicar a</p><p>mudança linguística. Na história do português brasileiro, tanto Silva Neto quanto</p><p>Naro e Scherre argumentam que a força principal atuando sobre a língua no Brasil é</p><p>sua “deriva” românica</p>
<p>e lusitana, o contato sendo, no melhor dos casos, um elemento</p><p>acelerador da deriva. Na contramão dessa análise, outros estudiosos enfatizaram a</p><p>influência das línguas africanas sobre a emergência da vertente brasileira do</p><p>português. É o caso, por exemplo, de Renato Mendonça, que publicou em 1935 um</p><p>livro intitulado A infl , reeditado</p><p>recentemente. Na última década, novos trabalhos trouxeram evidências empíricas</p><p>dessa influência, que não se limita ao empréstimo de palavras, mas se estende para a</p><p>morfossintaxe.19 Os argumentos são de várias naturezas. Por um lado, são</p><p>comparativos. Um amplo trabalho de comparação vem sendo feito com o português</p><p>na África, mostrando que os mesmos fenômenos que caracterizam o português</p><p>brasileiro por oposição ao português europeu são também encontrados lá. O passo</p><p>seguinte é comparar as inovações africanas e brasileiras com propriedades das</p><p>línguas africanas com que o português entrou em contato, em particular as línguas da</p><p>grande família Bantu, faladas em toda a África subsaariana, e muito presentes no</p><p>Brasil colonial. Lembre-se a esse respeito que a primeira gramática da língua</p><p>quimbundo, hoje uma das línguas oficiais de Angola, foi escrita na Bahia pelo jesuíta</p><p>18 No que diz respeito ao português brasileiro, um texto recente de Dante Lucchesi (cf. Lucchesi 2017)</p><p>problematiza a questão da periodização de um ponto de vista sociolinguístico, pondo a língua</p><p>portuguesa em perspectiva dentro de um contexto multilíngue.</p><p>19 Cf. Avelar e Galves (2014) e as referências aí citadas.</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 15</p><p>Pedro Dias no final do século 18.20 Uma outra linha argumentativa é de natureza</p><p>sócio-histórica: os milhões de africanos que foram trazidos ao Brasil pelo tráfico de</p><p>escravos tiveram um papel de destaque na expansão do português no território</p><p>brasileiro,21 português que adquiriam como segunda língua, e transmitiam às</p><p>gerações subsequentes como primeira língua. Entende-se então que várias línguas</p><p>africanas tenham funcionado como substrato no processo de emergência do</p><p>português no Brasil. É o efeito do que tem sido chamado por vários pesquisadores de</p><p>“transmissão irregular”.22 Tal “irregularidade” acontece quando uma língua não é só</p><p>transmitida de geração em geração como língua materna, mas sofre a interferência de</p><p>outras línguas, que são as línguas maternas daqueles que adquirem a língua em</p><p>questão como segunda língua, e imprimem nela algumas das suas propriedades.</p><p>Desse ponto de vista, a dinâmica do português no Brasil – e nos países africanos onde</p><p>é língua nacional - tem semelhanças com a dinâmica do latim no império romano. As</p><p>populações que o aprenderam como segunda língua lhe conferiram novas feições,</p><p>tornando a língua muito diferente do que ela era antes do contato.</p><p>5. OBSERVAÇÕES FINAIS</p><p>Neste brevíssimo panorama da linguística histórica, espero ter aberto ao leitor</p><p>uma porta para a variedade e a profundidade das questões relacionadas à mudança</p><p>linguística. As novas tecnologias e o avanço das teorias linguísticas dos 20 últimos</p><p>anos contribuíram certamente a fazer dessa disciplina uma das mais produtivas no</p><p>âmbito da linguística moderna. Isso está se refletindo muito fortemente no Brasil</p><p>onde os grandes projetos de descrição do português brasileiro, que integram</p><p>competências filológicas, linguísticas e computacionais, o estudo integrado da</p><p>história do português europeu e do português brasileiro, os estudos dos efeitos do</p><p>contato envolvendo o português „afro-brasileiro‟ e o português africano, o estudo</p><p>contrastivo das línguas africanas e do português brasileiro, compõem um vasto</p><p>conjunto de estudos empíricos e análises teóricas que fazem desse campo um dos</p><p>domínios de ponta dos estudos linguísticos.</p><p>20 Cf. Rosa (2013)</p><p>21 Rosa Virgínia Mattos e Silva fala do “papel predominante da nossa população de origem africana</p><p>como difusora do que veio a ser chamado de português popular brasileiro” (Mattos e Silva, 2004: 69)</p><p>22 Cf. Lucchesi et al. (2009).</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 16</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>AVELAR, J.; GALVES, C. O papel das línguas africanas na emergência da gramática do</p><p>português brasileiro. Revista Linguística (Online), v. 30, 241-288, 2014.</p><p>CASTRO, I. História da língua portuguesa. Lisboa, Colibri, 2006.</p><p>EMILIANO, A. Sobre a questão d‟ “os mais antigos textos escritos em português”. In: Castro,</p><p>I.; Duarte, I. (eds.) Razões e Emoção: Miscelânea de estudos em homenagem a Maria</p><p>Helena Mira Mateus, Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, Vol. I, 2003, 261‐78.</p><p>DE OLIVEIRA, F. Gramática da linguagem portuguesa (1536). Edição crítica,</p><p>semidiplomática e anastática por Amadeu Torres e Carlos Assunção. Vila Real, Centro de</p><p>Estudos em Letras, Universidade de Trás-Os-Montes e Alto Douro, 2007.</p><p>GALVES, C. Sintaxe e estilo: a colocação de clíticos nos Sermões do Padre Vieira. In:</p><p>ALBANO, E.; ALCKMIM, T.; Hadler COUDRY, M. I.; POSSENTI, S. (orgs.). Saudades da</p><p>língua: a lingüística e os 25 anos do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.</p><p>Campinas, Mercado de Letras, 2003.</p><p>GALVES, C. Periodização e competição de gramáticas: o caso do português médio. In: LOBO,</p><p>T.; CARNEIRO, Z.; RIBEIRO, S.; SOLEDADE, J.; ALMEIDA, A. (Orgs.). ROSAE: linguística</p><p>histórica, história das línguas e outras histórias. Salvador, EDUFBA, 2012, 74-88.</p><p>GALVES, C.; NAMIUTI, C.; PAIXÃO DE SOUSA, M.C. Novas perspectivas para antigas</p><p>questões: revisitando a periodização da língua portuguesa. In: ENDRUSCHAT, A.;</p><p>KEMMLER, R.; SCHAFER-PRIEßT, B. (Org.). Grammatische Strukturen des Europaischen</p><p>Portugiesich. Tubingen: Calepinus Verlag, 2006, 45-75.</p><p>GALVES, C.; PAIXÃO DE SOUSA, M. C. The change in the position of the verb in the history</p><p>of Portuguese: Subject realization, clitic placement and prosody. Language, v. 93, 152-180,</p><p>2017.</p><p>LUCCHESI, D. A periodização da história sociolinguística do Brasil. DELTA, 33.2, 2017.</p><p>LUCCHESI, D.; RIBEIRO, I.; BAXTER, A. O português afro-brasileiro. Salvador, EDUFBA,</p><p>2009.</p><p>MATTOS E SILVA, R.V. Estruturas trecentistas. Lisboa, INCM, 1989.</p><p>MATTOS E SILVA, R.V. Para uma caracterização do período arcaico do português. DELTA,</p><p>vol. 10. Número especial, 247-276, 1994.</p><p>MATTOS E SILVA, R.V. Ensaios para uma sócio-historia do português brasileiro. São</p><p>Paulo, Parábola, 2004.</p><p>MATTOS E SILVA, R.V. O português arcaico. Fonologia, morfologia e sintaxe. São Paulo,</p><p>Contexto, 2006.</p><p>MENDONC A, R. . Brasília: Fundac a o</p><p>Alexandre de Gusma o, 2012.</p><p>NARO, A.; SCHERRE, M. As origens do português brasileiro. São Paulo, Contexto, 2007.</p><p>PAIXÃO DE SOUSA, M.C. Linguística histórica. Linguagem história, e conhecimento.</p><p>Linguística histórica – Sociolinguística – Aquisição da Linguagem- Linguagem e cognição</p><p>– Conhecimento sobre a linguagem. Campinas: Pontes, 2006.</p><p>ROSA, M. C.</p><p>de Angola na Arte de Pedro Dias, S.J. Rio de Janeiro, FAPERJ/Letras, 2013.</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 www.revel.inf.br</p><p>ReVEL, v. 17, n. 32, 2019 ISSN 1678-8931 17</p><p>SAPIR, E. A linguagem: Introdução ao estudo da fala. Trad. Bras. de Mattoso Câmara Jr.</p><p>2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1971.</p><p>SILVA NETO, S. História do português brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Presença, 1977.</p><p>VITRAL, L. A forma CÊ e a noção de gramaticalização. Revista de Estudos da Linguagem,</p><p>Belo Horizonte, 4.1, 115-124, 1996.</p>

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