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<p>AULA 1</p><p>CONVERSA INICIAL</p><p>Acredito que já seja do seu conhecimento algumas características do método psicanalítico e conceitos introdutórios, chamados por Freud de metapsicologia. Tradicionalmente a clínica psicanalítica se volta para a compreensão do psiquísmo do indivíduo, mais especificamente sobre os processos inconsciêntes do aparelho psíquico do indivíduo, ou seja, o principal objeto de intervenção da psicanálise é o sujeito do inconsciente.</p><p>Muito do que você já sabe sobre psicanálise deve ser sobre processo psíquico individual, que, coim base em sua relação com os outros, se constitui como sujeito e estrutura a sua personalidade.</p><p>O que este estudo vai trazer de diferente é uma concepção teórica psicanalítica que reconhece os processos psíquicos de um grupo de pessoas e considera o grupo como tendo uma identidade única, em que se operam processos psíquicos singulares e vai nos dizer que o grupo tem uma mentalidade própria, uma mentalidade grupal.</p><p>O psicanalista Wilfred Ruprecht Bion será nossa referência teórica para o estudo da dinâmica dos grupos; ele que em sua visita ao Brasil em 1973 foi saudado pela imprensa como “o pai da psicoterapia de grupos”.</p><p>A proposta é abordar este tema inicialmente conhecendo um pouco mais sobre quem foi Bion em sua época, suas origens, sua formação e contexto de vida. A seguir, compreender a relação que teve com outros psicanalistas e pensadores que o influenciaram, identificar alinhamentos e distanciamentos nos pontos de vista entre eles; apontar de que maneira Bion deixou sua marca na histórica da psicanálise e, a partir de então, explorar as suas principais contribuições teóricas e metodológicas, especialmente para compreender a dinâmica de grupos e os desdobramentos da psicoterapia de grupos com base nele.</p><p>TEMA 1 – QUEM FOI WILFRED RUPRECHT BION?</p><p>Bion nasceu na Índia, em 1897. Neste período histórico, Freud estava escrevendo seus estudos sobre histeria e primeiras publicações psicanalíticas. Podemos dizer que Bion nasceu junto com a psicanálise.</p><p>A família Bion morava na Índia porque seu pai, engenheiro do serviço público inglês, estava em uma missão de prestação de serviços de irrigação ao governo indiano. Bion morava com os pais, uma irmã mais nova e uma ama indiana (a sua querida Ayah), que exerceu bastante influência por ter sido a mediadora da cultura indiana e do misticismo na vida e na obra de Bion. Perto dos seus 8 (oito) anos de idade Bion foi morar na Inglaterra para estudar, morou sozinho no colégio interno e recebia poucas visitas dos pais.</p><p>Quando em sua autobiografia, Bion alude à sua separação da mãe, por ocasião do seu internato no colégio, ele relata que não chorou, mas observou-a se afastando, com um chapéu que parecia uma espécie de bolo flutuando contra a paisagem verde, e essa imagem ficou fortemente gravada em sua memória. À noite, ao deitar-se, evocou aquela cena, cobriu a cabeça com as cobertas e só então chorou. (Zimerman, 2011, p. 23)</p><p>Aos 17 anos, após terminar o colégio, Bion ingressou nas forças armadas, participou de ações bélicas durante a 1ª Guerra Mundial (que durou de 1914 a 1918), depois disso foi professor de História e Literatura, período em que leu um livro de Freud e ficou fascinado. Decidiu fazer medicina, formou-se psiquiatra e trabalhou na Clínica Tavistock em Londres. Bion fez um primeiro período de análise pessoal, entre 1937 e 1939, com J. Rickmann, um ex-analisando de Freud. Esse processo foi interrompido pelo contexto da Segunda Guerra Mundial, que durou de 1939 a 1945. Em 1945, iniciou um segundo processo de análise pessoal com Melanie Klein, que se prolongou por oito anos. Neste período, Bion estudava psicanálise no Instituto de Psicanálise de Londres, foi aceito como membro da Sociedade Britânica de Psicanálise e foi considerado um dos mais brilhantes discípulos de M. Klein (Zimerman, 2011).</p><p>Ao longo dos anos 40 Bion escreveu alguns de seus textos mais importantes para o fortalecimento da dinâmica com grupos. Na década de 50 e 60 dedicou-se ao atendimento de pacientes esquizofrênicos e psicóticos, quando escreveu uma teoria sobre o pensamento (teoria do pensar). Na década de 70 suas publicações passaram a ter importante conteúdo místico, de difícil compreensão aos leitores.</p><p>Bion se distanciou dos seus pares na Inglaterra, especialmente com base na publicação de textos místicos, que desagradavam o establishment (os defensores da psicanálise clássica). Passou a morar nos Estados Unidos, em que não foi inserido no grupo de psicanalistas, pois lá a psicanálise era muito influenciada pela psicologia do ego, de Anna Freud, de maneira que Bion e Klein eram considerados pouco alinhados. Nos primeiros anos da década de 1970 Bion veio ao Brasil e a outros países da América Latina, onde foi admirado por uns, e por outros, criticado. Bion por vezes surpreendia seus pares pelo seu jeito pouco convencional, inovador, ousado, algumas vezes deixando claro que falava de improviso, espontaneamente e sem a formalidade esperada.</p><p>Após a morte precoce de sua primeira esposa em 1945, Bion se casou com Francesca Bion em 1951, que foi sua companheira inseparável ao longo da vida e com quem teve outros dois filhos. Aos 82 anos, durante uma viagem à Inglaterra, Bion faleceu devido à rápida evolução de uma leucemia.</p><p>Podemos perceber como a questão do alinhamento para obter pertencimento, pareceu uma constante na vida de Bion. Ao mesmo tempo em que percebemos que para ele essa rigidez de alinhamento não parecia fazer muito sentido. Bion tinha mais compromisso com o valor de uma experiência significativa do que em repetir padrões. Ele rompeu padrões ao dar as bases para a Psicanálise de Grupos e de Instituições, para recomendar como achava que deveria ser a postura do analista, para a análise da transferência, dentre outras lições.</p><p>A identidade psicanalítica de Bion foi influenciada, especialmente por:</p><p>1. Cultura oriental hinduísta, observada na sua obra pelo uso de paradoxos, contradições e atitudes de romper com o pensamento lógico;</p><p>2. Seus próprios traumas emocionais ao longo da vida;</p><p>3. Discípulo de Freud e Klein;</p><p>4. O trabalho com grupos, com pacientes esquizofrênicos e com temas relacionados à psicologia social;</p><p>5. Ampla cultura e conhecimento das ciências humanísticas, esportes, serviço militar.</p><p>TEMA 2 – O QUE NOS ENSINOU WILFRED BION?</p><p>Quando se lê o autor diretamente pela sua produção bibliográfica original, é bastante frequente que o leitor iniciante fique como que perdido, pois se depara com algumas contradições, reformulações e falta de respostas claras para questões que foram levantadas. Com Bion não é diferente. A leitura de um livro escrito a posteriori, ou seja, que já é parte do legado deixado pelo autor, sempre parece ser mais didático para os iniciantes.</p><p>Ao escrever um livro didático ou dar uma aula sobre um autor tão relevante, causa uma sensação desconfortável pelo risco de estar oferecendo uma visão reducionista demais ou parcial. Mas se justifica pela intencionalidade pedagógica, que é aproximar o estudante de Bion. David Zimerman (ano) relata que sempre pensava nisso quando ouvia seus alunos falando “este Bion, o do David, eu entendo e gosto”. Mas atenção. Essa sugestão serve apenas para os iniciantes. Para qualquer aprofundamento na leitura de Bion, é fundamental que se vá à fonte original, ou seja, lendo o que o próprio autor escreveu.</p><p>Obras de Bion:</p><p>· 1948 – Experiências em grupos;</p><p>· 1950 – O gêmeo imaginário;</p><p>· 1952 – Uma revisão da dinâmica de grupo;</p><p>· 1954 – Notas sobre a teoria da esquizofrenia;</p><p>· 1955 – Linguagem e esquizofrenia;</p><p>· 1956 – O desenvolvimento do pensamento esquizofrênico;</p><p>· 1957 – Diferenciação entre personalidades psicóticas e as não psicóticas;</p><p>· 1958 – Sobre a alucinação;</p><p>· 1958 – Sobre a arrogância;</p><p>· 1959 – Ataques ao vínculo;</p><p>· 1962 – Uma teoria do pensamento;</p><p>· 1962 – Aprendendo da experiência;</p><p>· 1963 – Elementos em psicanálise;</p><p>· 1964 – A grade;</p><p>· 1965 – Transformações;</p><p>· 1966 – Mudança catastrófica;</p><p>· 1967 – Estudos psicanalíticos revisados;</p><p>· 1970 – Atenção e interpretação;</p><p>· 1973 –</p><p>típica das personalidades psicóticas, a experiência será de inveja e voracidade, com sensações de esvaziamento.</p><p>TEMA 5 – COMUNICAÇÃO DO ANALISTA</p><p>A capacidade de ser continente é muito mais uma atitude do que um conhecimento. Ela precisa ser desenvolvida, pela pessoa do analista, por meio de exercícios práticos deliberados e repetitivos. Trata-se de uma habilidade de comunicação que todos temos em nossa vida pessoal. Porém, na vida profissional ela precisa ser planejada e treinada, para que favoreça o método e não o atrapalhe ou o comprometa.</p><p>Acredito que você conhece ou convive com pessoas reativas, que rebatem tudo o que ouvem, mesmo quando não se sentem agredidas. Às vezes, isso acontece porque elas acham que podem ajudar dando bons exemplos, conselhos ou orientações.</p><p>Uma maneira de treinar o nosso estilo de comunicação, se você deseja ser um bom psicanalista, é aproveitando as oportunidades para exercer a capacidade de conter. Freud recomendava que as primeiras consultas psicanalíticas fossem consideradas “preliminares”, durante as quais o analista deveria esperar para oferecer interpretações mais abrangentes.</p><p>A Política Nacional de Humanização, conhecida como política HumanizaSus (Brasil, 2003), recomenda que, antes de ser efetivamente atendido em um serviço de saúde, o usuário seja acolhido. O acolhimento é a diretriz mais importante dessa política. Ele não tem local nem hora certa para acontecer, nem profissional específico para fazê-lo. Acolher é uma escuta qualificada, capaz de reconhecer o que o outro traz enquanto legítima e singular necessidade de saúde. Objetiva a construção de relações de confiança, compromisso e vínculo. (Brasil, 2003).</p><p>A psicanálise ocupa um lugar de escuta e representação, que situa o sujeito em sua fala. Contudo, não cabe ao processo de acolhimento em saúde mental iniciar um processo analítico, mas sim conduzir este usuário em seu primeiro contato com o serviço a uma relação que o oriente e o acolha, viabilizando o manejo em relação ao desejo de recuperação. O acolhimento é o acontecimento primeiro que facilita esse processo de inserção no serviço, e que com todo o cuidado deve ser manejado por aquele que recebe e escuta esse sujeito. (Silva et al., 2021, p. 236)</p><p>Nesse primeiro contato, o mais importante é ser continente para o sujeito, sem questionários para preencher ou responder, sem anotações, sem computador no meio da mesa, sem o compromisso de resolver o problema da pessoa ou de concordar e discordar do que se ouve.</p><p>Acolher não é analisar, acolher não é atender necessidades ou dar uma resposta, acolher não é concordar. Acolher é só conter, aceitar, qualificar como válido o que o outro traz ou diz. É dar lugar para a fala verbal e não verbal, é não reprimir. Como consequência do acolhimento, a pessoa tende a se sentir mais motivada para buscar o tratamento de que precisa.</p><p>O acolhimento inicial aos usuários e seus familiares torna-se fundamental na construção do vínculo transferencial, onde já em seu início é apresentada uma demanda que necessita ser interpretada. Assim, o silêncio e a dificuldade de fala podem vir a evidenciar que o sujeito não encontra palavras para seus sintomas. (Silva et al., 2021, p. 239)</p><p>Podemos destacar duas finalidades quanto às intervenções do analista.</p><p>· Compreensivas: dirigidas ao inconsciente do paciente. Geralmente indutoras de ansiedade.</p><p>· Supressivas: dirigidas à parte conscientes do ego. Por exemplo: psicoterapias de apoio, sugestão, coesão, aconselhamento, esclarecimento, ampliação do ponto de vista, pedagógicas, comportamentais. Geralmente supressoras de ansiedade.</p><p>A entrevista de acolhimento é um exemplo de intervenção supressiva. É um momento no qual o analista é continente, para aceitar o paciente (ou o grupo) tal como ele se apresenta, fazendo perguntas abertas para que ele próprio escolha a maneira e o conteúdo que quer comunicar.</p><p>Ao lidar com luto, por exemplo, o acolhimento das famílias poderia ser organizado em três momentos:</p><p>· Acolhimento;</p><p>· Esclarecimento; e</p><p>· Encaminhamentos.</p><p>Vejamos os objetivos terapêuticos em cada um desses momentos. No primeiro momento, temos: acolher, aceitar a pessoa como ela é e não confrontar. Comentários adequados:</p><p>· “Eu gostaria de poder te ajudar, mas nem sei como” (comunica solidariedade).</p><p>· “O que você tem feito nesses dias?” (chance para o outro falar livremente: "Só choro, nem levanto da cama, só penso... não como nem tomo banho... penso em morrer”.</p><p>· Comentar apenas: “Na verdade não posso nem imaginar o tamanho da sua dor”.</p><p>· “Tem horas que a gente acha que é mentira né? Não dá para acreditar. Me imaginando no seu lugar, eu estaria da mesma maneira”.</p><p>· Observação: a pessoa não gosta de ouvir a palavra “aceitar”, pois é um termo muito próximo de “concordar”. É melhor falar em “acreditar”.</p><p>Segundo momento: favorecer a percepção da rede de apoio social. Motivar a pessoa a aceitar ajuda. Comentários:</p><p>· “De onde você está tirando forças para aguentar?”</p><p>· Respostas comuns: “Nem sei”, “Deus”, “Tenho outros filhos”, “Ela não iria querer que eu me entregasse”.</p><p>· “Com quem você prefere ficar/conversar/passar o dia?”</p><p>· “De ontem para hoje o que você já conseguiu fazer (comer, dormir, banho...)?”</p><p>· “Quem está ajudando você nesses últimos dias?”</p><p>· Estimular a pessoa a aceitar ajuda: “Que bom que você tem a quem pedir ajuda”; “Imagino que eles também precisam de você.”</p><p>Terceiro momento: encaminhamentos. Comentários:</p><p>· “O que você precisa fazer agora?”</p><p>· Estimular a pessoa a pensar em necessidades, não em vontades.</p><p>· Ajudar a pessoa a ampliar o foco de atenção para outras áreas da vida que precisam de atenção nesse momento: trabalho, filhos, autocuidado. Nesse momento, motivar a pessoa a continuar o atendimento psicológico/psicanalítico, oferecendo opções de serviços públicos, convênio ou serviços privados, conforme os recursos do contexto. Opção de encaminhamento: serviço de assistência psicossocial do hospital ou da rede de atenção psicossocial local (CAPS, CRASS).</p><p>Todos os profissionais de saúde são responsáveis pelo acolhimento, pois temos aqui um diálogo afetivo com foco na percepção da realidade e no comportamento da pessoa. O acolhimento realizado por um psicanalista ou psicólogo tende a se constituir em uma escuta mais qualificada. As intervenções apresentam a intencionalidade terapêutica de diminuir a ansiedade, reforçar mecanismos de defesa saudáveis e ampliar pontos de vista para a percepção de áreas da vida livres de conflito, motivando para a busca de ajuda e tratamento.</p><p>NA PRÁTICA</p><p>Quando consideramos a utilização prática dos modelos de Bion, podemos imaginar o relato de uma sessão. É sempre melhor quando o psicanalista faz anotações apenas depois que termina de atender o paciente, não durante a sessão.</p><p>Quanto à capacidade de ser continente, o psicanalista pode exercitar essa habilidade em práticas de acolhimento. Ao conversar com uma pessoa fragilizada pelo enfrentamento da morte ou do luto, podemos identificar se ela apresenta maior ou menor fragilidade a partir do que ela fala e do modo como ela fala. Às vezes, uma única sessão de acolhimento é suficiente para ajudar a pessoa a retomar o autocuidado. Em outras situações, será necessário encaminhá-la para atendimentos em serviços especializados.</p><p>O quadro a seguir apresenta exemplos pertinentes. Se for necessário, tome providências para que a pessoa receba ajuda psicossocial da família ou de amigos – ou, se necessário, ajuda profissional.</p><p>Quadro 2 – Exemplos de enfrentamento</p><p>Mais frágil / vulnerável</p><p>Mais fortalecida</p><p>Pessoa fala em frases curtas e desconexas. Períodos de silêncio ou fala muito devagar.</p><p>Esquece do que estava falando, choro, gagueira, repetições.</p><p>Se culpa ou culpa alguém pelo desfecho.</p><p>Relações sociais frágeis ou inexistentes, tendência ao isolamento.</p><p>Discurso pessimista.</p><p>Pensamentos do tipo: “agora acabou”.</p><p>Aceitar o próprio sofrimento e sentir-se merecedor.</p><p>Orientação no tempo e no espaço</p><p>(sabe onde está, sabe o que tem que fazer depois, lembra-se do tempo de internamento ou de tratamento da pessoa que morreu,</p><p>além da idade e outros fatos reais).</p><p>Bom curso e fluxo de pensamentos.</p><p>Referência a antes, durante e depois.</p><p>Relações estáveis (afetivas/trabalho).</p><p>Queixa-se por estar sofrendo.</p><p>Desejo de melhorar.</p><p>FINALIZANDO</p><p>Perceba que a recomendação de continência já estava nas entrelinhas do que Freud escreveu em 1912. O que Bion fez foi tornar concreto uma abstração. Ele ajudou os estudantes do método a visualizar esse arcabouço a partir do modelo continente-conteúdo. “Sem memória, sem desejo e sem compreensão”: essa frase ficou famosa, de modo que sempre aparece como uma das principais recomendações aos psicanalistas.</p><p>Bion criou modelos no lugar de teorias, para evitar que eles fossem aplicados rigidamente. Bion utilizou as letras L, H e K para se referir aos vínculos de amor, ódio e conhecimento. Tais vínculos favorecem a identificação e a grupalidade, quando as pessoas deixam de simplesmente ficar juntas e passam a se constituir como um grupo.</p><p>As letras representam as iniciais das palavras escritas em inglês:</p><p>· L = Love (amor);</p><p>· H = Hate (ódio);</p><p>· K = Knowledge (conhecimento).</p><p>Podemos destacar duas finalidades quanto às intervenções do analista.</p><p>· Compreensivas: dirigidas ao inconsciente do paciente. Geralmente indutoras de ansiedade.</p><p>· Supressivas: dirigidas à parte conscientes do ego. Por exemplo: psicoterapias de apoio, sugestão, coesão, aconselhamento, esclarecimento, ampliação do ponto de vista, pedagógicas, comportamentais. Geralmente supressoras de ansiedade.</p><p>A entrevista de acolhimento é um exemplo de intervenção supressiva. O acolhimento de alguém que está em luto, por exemplo, pode ser organizado considerando em três momentos:</p><p>· Acolhimento;</p><p>· Esclarecimento;</p><p>· Encaminhamentos.</p><p>A CLÍNICA EM BION</p><p>AULA 4</p><p>Já sabemos que Bion escolheu ser médico e psiquiatra por influência de Sigmund Freud e que foi marcado pela sua experiência no exército e na guerra, tendo sido paciente de Melanie Klein e feito contribuições importantes para a psicanálise de grupos.</p><p>Bion viveu forte influência da instituição militar. Esteve envolvido diretamente na Primeira Guerra Mundial, e na Segunda participou na seleção, treinamento e reabilitação de soldados. Assim com Freud, Bion também queria entender como é que o eu se estrutura em função do movimento das massas, ou do grupo, do coletivo. Esse estudo tem uma interface muito grande com a cultura. Não há como considerarmos o indivíduo sem considerar esse coletivo no qual o indivíduo está inserido e que dele faz parte.</p><p>Crédito: Kovalov Anatolii/Shutterstock.</p><p>Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud (1976b) estudou o funcionamento das massas para poder entender o que e de que maneira interfere no funcionamento psíquico do eu. No texto, Freud nos diz que a psicologia individual é simultaneamente psicologia social, dada a importância que o grupo sociocultural interfere na formação do eu.</p><p>Desde a gestação, o outro é fundamental para o ser humano. Um bebê é incapaz de existir sem um outro ser humano que lhe dá vida e o mantém vivo pelo ato de cuidar, de nutrir, de criar. Desse modo, o tempo todo iremos considerar a relação eu-outros.</p><p>Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud (1976) aborda as conclusões de escritores seus contemporâneos, especialmente Gustave Le Bon (1918), autor de Psicologia das multidões, tais como:</p><p>· As pessoas civilizadas, quando estão em turma, perdem a civilidade e passam a agir como autômatos, sem vontade própria, de acordo com a vontade do grupo. Atualmente também observamos o efeito manada, quando há um movimento coletivo por determinado ato e todos seguem sem necessariamente entender o motivo de estar fazendo aquilo. Ex.: consumir um produto que se torna uma onda na música, na política, na moda etc. Mulheres são mães, homens não choram, meninos usam azul e meninas usam rosa. Nos dogmas seguidos por fé.</p><p>O grupo sustenta a existência do sujeito. Há uma diminuição da repressão quando se está em grupo, como se fosse mais seguro, em nome de um grupo, manifestar o que está latente no aparelho psíquico, algo que não seria dito ou não seria feito se fosse em nome próprio. Ouvimos isso quando há uma reclamação do tipo “Ninguém gostou deste professor”. Quando perguntado “Quem não gostou?”, o que se observa é que não aparecem os indivíduos. Isso porque nas massas, não há indivíduo, ou melhor: a massa é o indivíduo. Todos formam 1 (um).</p><p>Os grupos, ou a massa, podem ser organizados ou caóticos. Dentre os grupos organizados temos o exército, as igrejas, os times esportivos, os partidos políticos, os clubes e associações, as turmas (de amigos, de trabalho), as famílias. Algumas frases que ouvimos nesses grupos:</p><p>· Todos reunidos como um só corpo e uma só alma;</p><p>· Um por todos e todos por um.</p><p>Quando o grupo adquire uma vida e uma identidade própria, há um movimento de expulsão se alguém destoar da identidade do grupo, ou discordar. Quando aparece o ímpar, o diferente, o interesse individual, ameaça a identidade do grupo. Nesse caso, o que se observa é hostilidade, punição, e o famoso cancelamento que se dá atualmente. Alguns exemplos históricos desse movimento de massa que condena e anula quem se mostra diferente: queimar bruxas na fogueira, jogar pedra em Maria Madalena, deserdar. Na psicanálise temos exemplos clássicos, como a briga entre Freud e Jung, ou ainda a expulsão de Lacan feita pela IPA.</p><p>Feita essa introdução, vamos avançar com os objetivos de:</p><p>· Conhecer os conceitos de Bion para então:</p><p>· Compreender o comportamento com base nos processos mentais inconscientes;</p><p>· Compreender a relação transferencial entre paciente e psicanalista;</p><p>· Compreender os processos do grupo.</p><p>TEMA 1 – MODELO DAS FUNÇÕES ALPHA E BETA</p><p>A técnica de observação passiva é muito importante para compreender a teoria psicanalítica. Aproveite oportunidades de observar um bebê recém-nascido. Você irá notar que a principal maneira de expressão dos bebês é o choro. Eles choram por fome, desconforto, dor, angústia, sono e agonias de todo tipo. Mas é possível perceber que o bebê não diferencia um motivo do outro. Ele só tem dois estados: um bom e um mau. Da mesma maneira que meses mais tarde ele fala au-au para todos os animais, sem diferenciar o que é cão, gato, vaca, cavalo.</p><p>Isso nos diz que o bebê não dá significado específico ao choro, mas sim que se expressa pelo choro para todos os motivos, sem saber o que, especificamente, motiva o choro, se é dor, fome ou desconforto pela fralda suja, por exemplo.</p><p>1.1 FUNÇÃO ALPHA – Α</p><p>A função do outro, que está assumindo a função materna, seja ele a mãe, o irmão, o pai, a avó, um cuidador ou um profissional da enfermagem por exemplo, será a de traduzir os sentimentos sem nome para o bebê. A pessoa que está com a função materna entra em sintonia com o bebê (empatia) e dá nome a cada mal-estar:</p><p>“Oi bebê, você está com sono? Esse choro é de sono! Você sempre dorme neste horário”;</p><p>“Já sei, já sei, você deve estar agoniado porque a fralda está suja. Já vou trocar.”</p><p>“Quer arrotar, não é? Está agoniado(a), ok vou te colocar no colo para arrotar e depois você vai ficar tranquilo para dormir”.</p><p>Essa capacidade da pessoa que exerce a função materna é chamada por Bion de função alpha, que ele resume como representada pela letra grega α – alpha.</p><p>1.2 ELEMENTOS BETA – Β</p><p>Os elementos beta (β) são todos os conteúdos que o bebê projeta na mãe. O bebê chora para a mãe. Ele chora e esse conteúdo precisa de um continente. Quando a pessoa que exerce a função materna consegue ser continente, ela fará a função alpha, que vimos acima, ou seja, recepciona, assume, acalma, desintoxica, compreende e devolve de maneira organizada: nomeada, traduzida, diferenciada. O conteúdo sem nome projetado na mãe é recebido novamente só que agora já de forma possível de ser simbolizada: “a fralda está suja e por isso está ruim, desconfortável”.</p><p>Por vezes a mãe não consegue diferenciar, e um exemplo disso é que a cada choro a mãe dá o peito para amamentar, achando que é assim que o bebê vai se acalmar. O que o bebê simboliza a partir desse modelo de constituição</p><p>é: “preciso comer para me acalmar”.</p><p>· β = conteúdo do bebê, sem nome, evacuados na mãe,</p><p>· α = função materna que acolhe os elementos β, desintoxica, compreende, e devolve nomeado ao bebê, em doses homeopáticas, ou seja, no momento certo, na quantidade certa. Até que não seja possível compreender, a mãe é continente. Ela guarda para si a angústia enquanto tenta entender o que está acontecendo ali.</p><p>É assim que Bion insere na grade, evitando escrever uma longa explicação, ele simplesmente escreve α β</p><p>TEMA 2 – CONTINENTE, RÊVERIE, HOLDING</p><p>Continente, rêverie e holding são conceitos muito próximos, mas não são sinônimos. Em um primeiro momento, é possível, para facilitar a compreensão, imaginar que são similares, mas, em um nível mais aprofundado, precisamos diferenciá-los.</p><p>Continente e rêverie são conceitos da clínica de Bion, enquanto holding é um conceito da clínica de Winnicott. Apesar de parecidos, eles têm suas especificidades e se referem a processos diferentes, ainda que complementares.</p><p>· Continente – Bion;</p><p>· Rêverie – Bion;</p><p>· Holding – Winnicott.</p><p>2.1 CONTINENTE</p><p>Continente é um processo psíquico ativo de recepcionar as angústias do bebê ou do paciente em análise. O movimento é do bebê para a sua mãe ou do paciente para o psicanalista. Há na mãe/psicanalista a capacidade de suportar sem se desintegrar, sem reagir de modo refratário. É um movimento de conter, por um tempo variável, o que o outro projetou. Não há uma comunicação, pois não há retorno. É uma via só do bebê para a mãe. Conteúdo para continente. Corresponde ao mecanismo de defesa da projeção.</p><p>A função continente da mãe para as angústias do filho é essencial para o crescimento deste e que, da mesma maneira, é vital para o êxito da análise que o psicanalista tenha uma boa capacidade de continência, e essa importância obedece a uma proporção direta com o grau de regressividade do paciente. (Zimerman, 2011, p. 166).</p><p>Essa experiência com a capacidade de continência do psicanalista dará ao paciente a oportunidade de aprender a suportar suas próprias angústias, a ser menos impulsivo, a ser mais tolerante consigo mesmo.</p><p>2.2 RÊVERIE</p><p>Rêverie é uma comunicação entre o bebê e sua mãe, ou entre o paciente e o psicanalista. É uma via de mão dupla: sai do bebê/paciente, vai para a mãe/analista e volta para o bebê/paciente. Corresponde ao mecanismo de defesa da identificação projetiva. Um pouco mais evoluído do que a projeção.</p><p>É importante saber que, apesar de semelhante, quando isso acontece na relação entre paciente e psicanalista, não chamamos de rêverie, pois o analista não teve com o paciente uma gestação. Considere que são apenas processos semelhantes: o psicanalista contém o que é projetado pelo paciente (conteúdos beta), exerce a função alpha e tem uma relação parecida com o rêverie, mas quando ocorre no setting analítico, serão estudados como relações transferenciais.</p><p>Rêverie é um estado de mente que está aberto à recepção de quaisquer objetos vindo do objeto amado, e é, portanto, capaz de recepção das identificações projetivas do infante, sejam elas sentidas pela criança como boas ou como más (Bion, 1957). Rêverie se refere à prática da função alpha.</p><p>É por meio da capacidade de Rêverie que a mãe vai conseguir que a criança reintrojete novamente aquilo que foi projetado nela. Ao receber o conteúdo digerido (nomeado), o bebê passa a ser capaz de criar memórias, aprendizagem com a sua experiência, começa a conseguir diferenciar, ou seja, vai adquirindo a capacidade de simbolizar, de sonhar, de imaginar. As emoções deixam de ser tão caóticas e passam a ser toleradas sem medo dentro de si mesmo, sem a necessidade de projetar no outro qualquer sinal de alerta.</p><p>Os infantes, por assim dizer, tomam emprestada a função α. de suas mães. Desta forma, a mãe desintoxica os elementos β da criança, sendo eles devolvidos ao infante numa forma digerida. (Sandler, 2005, p. 27)</p><p>Fazendo assim, a mãe ajuda o bebê no desenvolvimento da capacidade de sonhar, de armazenar memórias, de construir seu próprio aparelho de pensamento e assim, vai sendo desenvolvida a capacidade de simbolizar.</p><p>2.3 HOLDING</p><p>Holding é um conceito desenvolvido por Winnicott e quer dizer: sustentar, manter uma rotina de cuidados ao longo do dia e ao longo dos dias, que permite o bebê continuar vivo. O bebê é completamente dependente da mãe e esta se responsabiliza por este bebê. Na medida do possível, a mãe vai deixando de existir, vai faltando, falhando, para que o bebê assuma suas capacidades: comer sozinho, pegar um brinquedo, suportar a espera para a gratificação. O objetivo da mãe vai desde a completa sustentação (preocupação materna primária) até a emancipação do seu filho.</p><p>Uma criança que não recebeu essa sustentação (holding) como uma constante ao longo dos primeiros anos de vida, que correspondem ao período da dependência absoluta, e nem nos anos seguintes, que correspondem ao período de dependência relativa, mesmo que episodicamente tenham tido relações saudáveis com experiências de rêverie, pode ter estruturação psicótica de personalidade.</p><p>A criança psicótica será aquela que sofreu falhas ambientais severas de holding no período da dependência absoluta, ou relativa, ou que formou ao longo desses períodos uma estrutura de personalidade precária que permaneceu, no período posterior ao Complexo de Édipo. (Naffah Neto, 2011, p. 127)</p><p>TEMA 3 – DESENVOLVIMENTO PSÍQUICO DO BEBÊ</p><p>Bion construiu sua compreensão sobre o desenvolvimento infantil com base em de Melanie Klein. Bion recebeu muita influência de Klein, por ter sido seu paciente em análise, por ter sido seu discípulo e por fazerem parte de um mesmo grupo de iguais conhecido como Escola Inglesa de Psicanálise.</p><p>Melanie Klein foi uma seguidora de Freud, que se dedicou à análise de crianças desde os anos 1920. Foi ela que estabeleceu os fundamentos da análise de crianças. Klein iniciou estudando o Complexo de Édipo, mas sua experiência clínica com crianças bem pequenas permitiu que ela produzisse conhecimentos sobre processos mentais dos bebês bem pequenos. Melanie Klein acreditava que os bebês já têm um ego ao nascer e que este ego cria mecanismos de defesa para se proteger da angústia.</p><p>Um desses mecanismos de defesa deu partida para Bion construir sua teoria, ou melhor dizendo, seus modelos. Bion teorizou sobre as funções alpha e beta a partir do conceito de identificação projetiva, que é um mecanismo de defesa descrito por Klein, típico da posição depressiva do bebê, que se inicia por volta dos 4 ou 6 meses de idade.</p><p>Melanie Klein nos disse que, ao nascer os bebês, já têm ego, ainda que seja rudimentar, pois são capaz de experimentar ansiedade, usar mecanismos de defesa e fantasiar (Segal, 1975). Com esse ego imaturo, a polaridade se dá entre instintos primitivos de vida e morte. Podemos relacionar vida com gratificação e morte como desconforto. Ao nascer, os bebês não sabem diferenciar o que sentem, então o que fazem é reunir toda sensação de fome, dor, desorganização, medo como morte evidenciando uma angústia de aniquilação, e, pelo contrário, quando são amamentados, acalentados, aquecidos e protegidos, experimentam o que está relacionado com vida, por isso na teoria aparece essa polaridade vida-morte.</p><p>O que Kein nos explica é que o bebê separa, faz um splitting (que é divisão em inglês), entre o que é bom e mau. Por meio do mecanismo de defesa projeção, coloca isso para fora de si, localizando no seio (que o alimenta). Klein chamou de “seio bom” e “seio mau” (Segal, 1975).</p><p>O bebê separa (splitting) e com isso mantém o mau longe do que é bom. Com isso, ele dirige ao seio mau toda sua agressividade e ao seio bom todo o seu amor. Por isso dizemos que as primeiras emoções, as mais primitivas, são amor e ódio.</p><p>No início, o bebê acha que consegue separar desta forma: idealiza o que bom, nega o que é mau e fica tudo bem. O que acontece é que não demora muito para o bebê passar a ter ansiedade de perseguição por medo de que o seio mau ameace o seu ego imaturo e o destrua. Para se livrar da ansiedade, o ego do bebê desenvolve mecanismos</p><p>de defesa, para introjetar o bom e projetar o mau. Os mecanismos de defesa vão evoluindo junto com a maturidade emocional dos bebês. O mais importante aqui é o mecanismo de projeção (mais arcaico) e de identificação projetiva, típico da posição depressiva que acontece a partir dos 4 ou 6 meses de idade, quando o bebê já percebe a relação que tem com a mãe.</p><p>Retomando a sequência do desenvolvimento infantil conforme apresentado por Klein (Segal, 1975), temos que a primeira fase é a posição esquizo-paranoide e depois vem a fase depressiva:</p><p>1. Posição esquizo-paranoide: do nascimento até por volta de 4 a 6 meses de idade. Dirige ao seio mau toda sua agressividade e ao seio bom todo o seu amor. Introjeta ou incorpora em si o seio bom e projeta toda sua angústia (medo de morrer, fome, dor...) no seio mau. Tem medo, pois o que resulta disso é uma ansiedade persecutória, ou seja: fantasia de que o ódio projetado volte e o aniquile. Quem recebe toda essa projeção é a pessoa que cuida do bebê, só que o bebê não os vê como pai e mãe, mas sim como um seio bom, que conforta e um seio mau, que demora. Por isso, o que caracteriza essa fase é oposição: bom-mau, amor-ódio, prazer-desprazer. O bebê sente que é dele tudo que é bom e projeta para fora tudo que é ruim;</p><p>2. Posição depressiva: inicia entre 4 e 6 meses. No processo de desenvolvimento, de maturidade do bebê, o que acontece é que o bebê percebe que o objeto ideal (seio bom) é o mesmo que o seio mau, ou seja, o objeto externo que gratifica é o mesmo que frustra. A mãe (função materna) que alimenta é a mesma que demora, que não acolhe.</p><p>A partir do momento que o bebê percebe o objeto como total, ele sai da posição esquizo-paranoide e entra na posição depressiva, quando a mãe é percebida como um objeto total. O bebê passa a ter medo de retaliação, pois ele odiou o bom. Além disso, começa a sentir culpa, por ter odiado a pessoa amada. O principal mecanismo de defesa nessa fase é a Identificação projetiva. O bebê precisa do que retorna do outro para se organizar e tem medo de perder esse “ego auxiliar”, então, desenvolve sua capacidade de amar mesmo percebendo que o outro o decepciona as vezes. Ama (a pessoa inteira) para não perder.</p><p>Esses mecanismos de defesa primitivos continuam fazendo parte dos nossos recursos internos durante a vida inteira.</p><p>Pessoas com estrutura psicótica de personalidade terão predominância de defesas típicas da posição esquizoparanoide: idealização, projeção, negação.</p><p>TEMA 4 – IDENTIFICAÇÃO PROJETIVA</p><p>Foi a partir do conceito de identificação projetiva que Bion teorizou sobre a função alpha e beta, conteúdo e continente.</p><p>· β = conteúdo do bebê, sem nome, evacuados na mãe, projetado;</p><p>· α = função materna que acolhe os elementos β, dá continência, desintoxica, compreende, e devolve nomeado ao bebê;</p><p>Na identificação projetiva, o bebê se identifica com o resultado do conteúdo que ele projetou e que agora retorna da mãe, como sendo seu. A mãe funciona como um ego auxiliar para o bebê.</p><p>Para Bion, identificação projetiva é uma forma de comunicação entre mãe e bebê (Zimerman, 2011). É a forma de comunicação mais primitiva, em que o bebê envia (projeta) uma confusão de sentimentos que ele não sabe o que é, na mãe. A mãe recepciona aquilo, se envolve em compreender, digere e, depois de processados, devolve em doses homeopáticas ao bebê, já decodificado, nomeado e significado. O bebê se identifica com o que volta da mãe para ele, toma-o como seu conteúdo novamente, só que agora já está mais organizado.</p><p>A identificação projetiva também é uma das formas de comunicação do paciente para o psicanalista. Da mesma forma que acontece na comunicação entre mãe-bebê, também acontecerá no setting terapêutico.</p><p>A psicopatologia dos sofrimentos e transtornos mentais nos mostra que nem sempre a relação ocorre de modo esperado, ou seja, pode ser que não exista a capacidade de rêverie (relação entre α e β).</p><p>Essa falha pode acontecer na mãe ou no psicanalista, que precisam ter capacidade para a função α, ou no bebê ou paciente, por conta de não conseguirem fazer identificação projetiva.</p><p>A identificação projetiva requer que o bebê recupere para si aquilo que projetou no outro; caso contrário, será apenas projeção e não identificação projetiva.</p><p>Nos quadros psicopatológicos mais graves, com estrutura psicótica, os bebês não conseguem receber o que vem do outro (mãe), eles não estabelecem relação com o outro e ficam presos nas suas próprias produções mentais. Para Bion, essa não é uma falha na relação mãe-bebê, mas sim se deve a condições inatas do bebê.</p><p>Por outro lado, pode ser que esteja tudo certo com o bebê, mas aconteça uma falha relacionada com a mãe, por exemplo, quando a mãe tem uma intensa confusão mental que a impeça de desempenhar a função alpha e, com isso, não aconteça a comunicação primitiva entre bebê-mãe, ou ainda que a mãe não esteja presente para o holding (sustentar o período de dependência do bebê e assumir uma rotina de cuidados).</p><p>Quando a falha é no ambiente, Winnicott e Bion discordam quando a ser esta uma condição suficiente para determinar uma personalidade psicótica no bebê. Bion tem um ponto de vista mais biológico e entende que somente se houver pré-disposição inata no bebê a psicose ocorrerá, sem desprezar os efeitos do ambiente, mas sem considerá-los tão relevantes quanto Winnicott.</p><p>· Bion: ênfase maior para o genético;</p><p>· Winnicott: ênfase maior para o ambiente.</p><p>Winnicott (1982) considera que as falhas na provisão ambiental e a falta de holding podem ter efeito para a estruturação da personalidade borderline ou psicótica. Entende ainda que na relação com o psicanalista no setting terapêutico, o paciente regride à fase em que ocorreu a falha de provisão ambiental (o que Freud chamaria de período de fixação) e terá uma oportunidade de ressignificá-las se o psicanalista oferecer esse holding na relação transferencial.</p><p>Oferecer holding na relação transferencial significa saber interpretar na hora certa, na medida certa das capacidades de compreensão do paciente. Significa ter feeling, ou seja, sentir intuitivamente a relação, ter empatia, saber em que momentos precisa alongar mais uma sessão ou interrompê-la, em que momentos intensificar a ansiedade e em que momentos permitir o uso de mecanismos de defesa (suportar a resistência) até que o vínculo aconteça.</p><p>TEMA 5 – DESENVOLVIMENTO HUMANO PARA BION</p><p>Bion desenvolveu seus modelos com base nas teorias kleinianas, e até hoje são aceitos e foram completamente incorporados na teoria psicanalítica. Mas Bion também avançou, mais para a fase final de sua obra, para um tema que gerou desconforto entre seus pares. Bion surpreendeu seu grupo quando defendeu que o desenvolvimento humano deve incluir o período de gestação. Todos os cientistas consideram o estudo do desenvolvimento humano compreendido entre o nascimento até a morte. O dado importante é a data de nascimento, e não a data de fecundação. No entanto, Bion considerava que já há personalidade antes do nascimento.</p><p>Não vejo razão para duvidar que o feto a termo tenha uma personalidade. Parece-me gratuito e sem sentido supor que o fato físico do nascimento seja algo que cria uma personalidade que antes não existia. É muito razoável supor que este feto, ou mesmo o embrião, tenha uma mente que algum dia possa ser descrita como muito inteligente. (Bion, citado por Zimerman, 2011, p. 136).</p><p>A defesa da vida psíquica antes do nascimento foi bastante conturbada no meio médico psicanalítico, e foi definida como a fase mística de Bion. Já com um histórico de ter sido isolado quando defendeu o trabalho com grupos, Bion passou a ser aceito quando teorizou sobre a relação mãe-bebê e quando transpôs esse modo de relação para a relação analista-paciente, mas voltou a ser ignorado por causa de sua fase mística, quando fazia defesas de pontos de vista diferentes daqueles do seu grupo.</p><p>Para além do que foi polêmico, Bion fez importantes contribuições para a compreensão do desenvolvimento dos bebês, e o descreveu em 3 (três) tempos:</p><p>· Preconcepção: quando o bebê não tem</p><p>experiência nem com suas emoções e nem com seu corpo. Tudo é irreconhecível, incognoscível (aquilo que não é conhecido);</p><p>· Concepção: quando o bebê passa a ter noção do seu corpo e das sensações dele decorrentes. Há uma articulação entre corpo e emoção. Exemplo: quando está chorando de fome e se acalma quando a mãe o coloca em posição de amamentação. A mãe lhe dá o seio e ele ingere o leite. Experiência de satisfação;</p><p>· Pensamento: quando o bebê passa a reconhecer as sensações emocionais e fisiológicas. Ele já sabe o que sente, pois aprendeu com sua mãe. Agora, quanto a criança tem sono, ela já pode se aconchegar e dormir; quando tem fome, ela pode buscar algo que lhe esteja perto para ingerir.</p><p>NA PRÁTICA</p><p>Um exemplo da capacidade de continência do psicanalista é o de quando o paciente relata uma situação vivida de muita angústia, por exemplo:</p><p>“Eu estava ali sozinha com ele, sendo ameaçada de morte. Ele disse que me violentaria e eu tinha mais medo de que os meus filhos chegassem. Fui ficando cada vez mais em pânico e me veio à cabeça todas as vezes que meu pai também me abusou, me obrigou a fazer coisas horríveis e eu ainda sinto cada detalhe daquela dor em mim”</p><p>Um psicanalista iniciante, sem análise pessoal, ou um psicanalista sem capacidade de ser continente, poderia facilmente se perceber com a frequência respiratória aumentada, ou fazer alguns respiros profundos para tentar se acalmar, ou ainda demonstrar angústia e ansiedade por meio de expressões faciais, de pequenos comentários, tais como: “Ai”, “Nossa, não consigo nem ouvir”, “Meu Deus”, ou ainda interromper o paciente com perguntas irrelevantes, tais como: “A que horas foi isso, onde você estava, ele estava armado?”.</p><p>Pela capacidade de continência, o psicanalista suporta a angústia e assim ensina o paciente a suportar a sua angústia. Mas se ele não suporta as suas próprias angústias, será incapaz de suportar a do outro. Isso também fala do quanto é indispensável o processo de análise pessoal do analista.</p><p>Agora vamos a alguns exemplos sobre os mecanismos de defesa de projeção e identificação projetiva, que podemos identificar na idealização de algumas pessoas:</p><p>Quando idealizamos um objeto, por exemplo, em uma paixão, ou um ídolo, uma crença, um mito, é comum fazermos um splitting, essa divisão ou polarização que nos leva a acreditar que aquele que idealizamos é só bom, e o outro é só mau. Quando se trata de uma paixão, os colegas podem ver defeitos na pessoa, mas quando está idealizado, não adianta tentar “abrir os olhos da pessoa apaixonada”. É possível até que o colega que faz advertências seja considerado o mau.</p><p>No mecanismo do cancelamento típico dos movimentos de massa, há uma idealização de um ídolo, mas quando esse ídolo faz algo que a massa condena (por exemplo, estupro), há imediatamente um cancelamento. A massa passa a criticá-lo, deixa de segui-lo em redes sociais e com isso fica evidente que atua da seguinte forma: ele é só bom, ou ele não presta. Na posição depressiva, há um pouco mais de civilização, pois a atitude, nesse exemplo, seria: “É horrível o que ele fez, mas continuo gostando das músicas dele”.</p><p>A posição depressiva é muito representativa da nossa capacidade de amar, de identificar coisas boas e ruins na mesma pessoa, na mesma ideia. O que se observa nos movimentos de grupo é muito sobre isso: se o grupo perde a capacidade crítica, ele estaria mais próximo dos mecanismos de negação e idealização, mas se consegue identificar prós e contras, dá sinais de que não está em um nível de funcionamento de massa tão primitivo, clivado, dividido, polarizado, por isso deprime, pois se decepciona quando percebe que a mesma pessoa é boa e ruim.</p><p>Ser este outro, o ídolo, é uma função de muita responsabilidade, assim como é a mãe para o bebê. Por isso se fala da responsabilidade social do ídolo. Quando um influenciador famoso na mídia se manifesta dando significado a uma emoção, é bastante frequente que muitas pessoas o sigam, ou seja, se identifiquem com a emoção nomeada pelo outro que é idolatrado. A perversidade acontece quando o ídolo faz uso pessoal desse poder sobre outro. Não para benefício coletivo, mas sim para atender a seus próprios interesses individuais, e, nesse caso, os membros do fã-clube são apenas inocentes úteis.</p><p>Os mecanismos de defesa que surgem e são saudáveis lá nos bebês nos acompanham pela vida toda. O esperado é que evoluam junto com o desenvolvimento humano, mas em diversos momentos pode haver regressão e o uso de mecanismos de defesa bastante primitivos, especialmente quando estamos em grupo, ou em um movimento de massa, em que predominam a negação do diferente, a idolatria e idealização do seio bom, a agressão ao seio mau. Isso pode representar uma passagem ao ato, com comportamento de agressão e violência.</p><p>FINALIZANDO</p><p>Termos que foram estudados nesta etapa:</p><p>· β = conteúdo do bebê, sem nome, evacuados na mãe;</p><p>· α = função materna que acolhe os elementos β, desintoxica, compreende, e devolve nomeado ao bebê, em doses homeopáticas, ou seja, no momento certo, na quantidade certa;</p><p>· Continente – Bion: processo psíquico ativo de recepcionar as angústias do bebê ou do paciente em análise;</p><p>· Rêverie – Bion: uma comunicação entre o bebê e sua mãe, ou entre o paciente e o psicanalista. É uma via de mão dupla: sai do bebê/paciente, vai para a mãe/analista e volta para o bebê/paciente. Corresponde ao mecanismo de defesa da identificação projetiva. Um pouco mais evoluído do que a projeção. Refere-se à prática da função alpha (α);</p><p>· Holding – Winnicott: sustentar, manter uma rotina de cuidados ao longo do dia e ao longo dos dias, que permitam o bebê continuar vivo.</p><p>A CLÍNICA EM BION</p><p>AULA 5</p><p>Olá! Já sabemos que Bion escolheu ser médico e psiquiatra por influência de Sigmund Freud; que foi marcado pela sua experiência no exército e na guerra; que foi paciente de Melanie Klein; e que fez contribuições importantes para a psicanálise de grupos.</p><p>Atualmente, os psicanalistas são cada vez mais convocados para atendimento de grupos em escolas, hospitais e em times esportivos, para além de outras intervenções sociais. Durante a pandemia da Covid-19, novamente sentimos a necessidade de ampliar o olhar do individual para o coletivo, tomar o grupo como paciente, pois as questões eram muito parecidas: pessoas enlutadas; pessoas vulneráveis, assustadas pela instabilidade econômica e sanitária, pelo isolamento social; crianças sem convivência social e tantas outras questões que eram coletivas. E Bion é um autor psicanalista que nos serve de referência para planejar intervenções justamente nos contextos grupais e sociais.</p><p>A teoria de Bion sobre os grupos apresenta duas formas de organização ou dois modos de funcionamento.</p><p>1. Grupo de trabalho: mentalidade ajustada (adaptada) à realidade.</p><p>2. Grupo de pressupostos básicos (SB): mentalidade regredida, inconsciente, que tem medo e ansiedade e busca segurança e proteção.</p><p>Segundo Bion, esses dois modos de funcionamento existem nos grupos e se alternam. Quando não reconhecido, o modo de funcionamento primitivo pode levar à autodestruição do grupo pelos conflitos que se impõem dentro dele mesmo, no que se refere ao modo de funcionamento SB. Uma das maneiras de identificar o modo de funcionamento dos grupos é pela maneira como cada qual tolera a frustração e pela maneira como utiliza o pensamento para simbolizar as suas experiências.</p><p>Assim sendo, o objetivo aqui é explorar as contribuições teóricas de Bion sobre a teoria do pensamento, ou simplesmente teoria do pensar, ou do conhecimento. Com isso, esperamos que, ao final, você consiga identificar a aplicabilidade da clínica de Bion não apenas em contextos clínicos, mas também para a compreensão de conflitos em contextos institucionais e sociais.</p><p>TEMA 1 – TEORIA DO PENSAMENTO</p><p>Teoria do conhecimento, ou simplesmente teoria do pensar, é uma das contribuições mais importantes de Bion. Ele a escreveu com base em sua experiência com o atendimento de pacientes psicóticos. Já sabemos que Bion teve como referência a obra de</p><p>Freud, especialmente nestas considerações sobre os princípios do prazer e da realidade.</p><p>· Princípio do prazer: processo primário, em que se visa à satisfação imediata das tensões e não se toleram as frustrações.</p><p>· Princípio da realidade: processo secundário, em que se tem capacidade de adiar a satisfação, com o início da simbolização.</p><p>Segundo Bion, o que está entre esses dois processos (primário e secundário) é o desenvolvimento da capacidade de tolerar frustrações. Para Bion, o pensamento surge como uma solução para lidar com a frustração. Um aparelho psíquico saudável vai começar a simbolizar, ou seja, vai encontrando uma certa organização em meio à frustração, vai entendendo as relações, as regras, o contexto, vai conseguindo se organizar com base nos elementos que a mãe lhe dá, entendendo o que cada sensação corporal quer dizer: fome, medo, sono etc. Bion entende que isso ainda não é um pensamento como o entendemos, no sentido cognitivo, de inteligência, mas sim um protopensamento, que é protótipo do que depois dará origem à capacidade de aprendizagem cognitiva. Por outro lado, se o aparelho psíquico não for capaz de tolerar a frustração, se não desenvolver essa capacidade de se organizar com base na relação com a mãe (cuidadora, função materna), o que se observa é uma eclosão de agressividade e agitação, que evidencia o quanto não há capacidade de se conectar a sensação corporal com o pensamento.</p><p>Fochesatto (2013, p. 119-120) sintetiza uma explicação dada por Zimerman (2011) sobre a teoria do pensamento:</p><p>Se o ódio resultante da frustração não exceder a capacidade do ego do lactante de suportá-lo, o resultado será uma sadia formação do pensamento através do que Bion denominou de função alfa, a qual integra as sensações provindas dos órgãos dos sentidos com as respectivas emoções. No entanto, se o ódio for excessivo, protopensamentos denominados por Bion de elementos beta – experiências sensoriais primitivas e caóticas que não puderam ser pensadas – encontram saída através do alívio imediato de descarga, o que é feito por meio de agitação motora, atuações ou somatizações, mas que sempre utiliza a identificação projetiva como mecanismo.</p><p>Quando problematizamos a questão da violência e do suicídio, podemos considerar a possibilidade de eles terem como origem comum essa psicodinâmica antes descrita, pela não integração de sensações provindas dos órgãos dos sentidos com as respectivas emoções. Há uma desconexão entre sensações físicas e psíquicas, e esse sentimento, quando não é simbolizado pelo pensamento e pela linguagem, resulta em reações impulsivas que podem ser hetero ou autoagressivas (dirigidas ao outro ou a si próprio).</p><p>Para Bion (citado por Zimerman, 2011), os pensamentos são indissociáveis das emoções e é preciso haver na mente uma função vinculadora que dê sentido e significado às experiências emocionais. Tempos depois, na clínica lacaniana, se entenderá que essa capacidade de simbolizar é o que favorecerá a estruturação sadia da personalidade. Quando a predominância é de processos imaginários, da ordem da fantasia, temos estruturas perto da psicose. A capacidade de simbolizar, de articular emoções com pensamentos, é o que eleva o ser humano a um estado mais organizado, em termos de estrutura de personalidade.</p><p>Um exemplo que se refere ao desenvolvimento dessa capacidade de simbolizar, de articular pensamento com as sensações e emoções é a curiosidade das crianças. Elas perguntam sobre tudo, querem saber de onde vêm os bebês, com base no que fantasiam elas completam lacunas, demonstrando uma tendência a ter o domínio cognitivo sobre as coisas. Isso, para Bion, faz parte do pensamento, que busca compreensão para dar conta da frustração, das coisas que faltam e que não são confortáveis.</p><p>O que Bion identificou na clínica é que as pessoas lidam de diferentes maneiras com as frustrações, com as privações, com as faltas. Desse modo, algumas enfrentam e tentam modificar a realidade para que essa fique mais satisfatória; outras pessoas fogem, evitam o problema, tentando evitar também a angústia. Vale diferenciar estes comportamentos.</p><p>· Luta: maior tolerância à frustração, tendência a interferir na situação até modificá-la para melhor.</p><p>· Fuga: pouca tolerância à frustração, tendência de evitar o conflito, pelo não enfrentamento da situação.</p><p>Esse movimento de luta ou fuga também acontece nos grupos. Precisamos lembrar que uma das mais importantes contribuições de Bion é tomar o grupo como uma unidade, tirando o foco dos membros individuais e analisando a mentalidade grupal. Nesse sentido, mesmo nos grupos de trabalho colaborativos, que se engajam e se ajudam para que juntos alcancem um objetivo em comum, há também um modo de funcionamento primitivo com sintomas de ansiedade persecutória, medo, angústia e fantasias inconscientes, entre os seus participantes. Evitar ou fugir a esse reconhecimento não faz com que os conflitos deixem de existir.</p><p>Aquilo que não queremos conhecer vamos substituindo por estruturas falsas e mentirosas, fantasiosas; criamos uma história para cada uma das situações desagradáveis. Justificamos o injustificável. Enfrentar a realidade tal como ela é, bastante frequentemente, trata-se de um grande desafio.</p><p>Para Bion, essa é mais uma das funções maternas – e também é uma tarefa do psicanalista. Bion considera que a mãe que consegue pensar sobre suas emoções vai conseguir ensinar seu filho a fazer o mesmo, ou seja: a criança vai aprender com as experiências, vai aprender a entender o que sentiu, as suas vivências. Bion chamou essa capacidade de função K. Se a capacidade de rêverie da mãe foi insuficiente, irá acontecer o denominado vínculo -K, ou seja, o que a criança tentar projetar na mãe (♂ – conteúdo) não encontrará continência (a mãe não é ♀ – continente), e a angústia voltará para a criança como um terror sem nome, muito pior do que era antes. Dessa maneira, a função K não é introjetada. O resultado é que a mãe não consegue ajudar a criança a vincular a emoção com o pensamento.</p><p>Bion ainda considera casos mais graves, que chamou de não K, que se referem a um esvaziamento da capacidade de pensar, perceber, conhecer; e que tem prognósticos de levar a delírios ou alucinações: “Simplificando, pode-se dizer que o -K serve para evitar a dor das verdades intoleráveis, ou para não enfrentar o medo do desconhecido, ou para não transgredir as proibições etc.” (Zimerman, 2011).</p><p>Em condições saudáveis, as pessoas têm como meta conectar pensamentos com emoções, ou seja, entender o que sentem, saber, construir pequenas teorias para explicar seu modo de ser, simbolizar. Quando em estado patológico, a pessoa evita as verdades, não quer saber delas. Em uma ponta do espectro estão as personalidades delirantes, onipotentes, oniscientes, que criam uma outra versão para si e acreditam nisso: pessoas que dizem serem o enviado de Deus, o novo Messias; e, na relação com essa pessoa, percebe-se claramente o quanto ela está fantasiando.</p><p>Entre a condição saudável e a patológica, o que se encontra são altos e baixos, que não configuram psicose, mas que, em diversas situações, o ego se defende de frustrações por meio da fuga, da evitação. Uma crise, que faz com que a pessoa rompa com a realidade, muitas vezes é para evitar entrar em contato com algo que o ego não consegue suportar. No setting psicanalítico, pode acontecer de vir à tona um excesso de emoções e de pensamentos em que a sensação seja de caos associativo. Bion recomenda que o psicanalista ajude a identificar o fato selecionado, para dar um pouco de ordem e coerência quando está tudo disperso e sem nome. É esperado que o psicanalista o discrimine e que o paciente possa aprender a fazer o mesmo, com base nessa relação transferencial.</p><p>É de absoluta importância que se tenha bem claro a diferença que há entre o paciente querer conhecer a verdade e de quando ele pretende ter uma possessão absoluta da sua verdade. No primeiro caso, o indivíduo chega ao conhecimento através de um enfrentamento doloroso, e a aquisição da verdade lhe estimula novas</p><p>descobertas, enquanto, no segundo caso, ele a utiliza a serviço de -K. Esses aspectos têm uma decisiva importância tanto em relação ao tipo e destino das interpretações e dos insights, como de algumas resistências que podem se manifestar no curso da análise. (Zimerman, 2011)</p><p>Geralmente, quando o paciente pretende ser o dono da sua verdade, o discurso é pronto, e ele o explica sempre da mesma maneira ou, ainda, chega à sessão contando ao analista algo que o próprio analista tinha lhe dito na sessão anterior, como se estivesse levando algo novo ao analista, sem reconhecer que foi o analista quem lhe oferecera aquela interpretação. Já nos casos em que o paciente não tem essa relação de –K com a verdade, ele costuma oscilar entre ter clareza e dúvida sobre o que sente e pensa e, assim, experimenta analisar isso sob diversos pontos de vista, comunica sua angústia e diz se sentir perdido.</p><p>Para os pacientes que chegam ao consultório já apresentando sua verdade, com todos os pontos fechados, como se fosse um álbum de figurinhas com todas elas coladas, sem faltar nada, as interpretações não têm efeito, até que o paciente dê algumas brechas. Para tanto, são necessários pequenos questionamentos, que coloquem em dúvida suas verdades. Por exemplo, ao final de uma explicação do paciente, o psicanalista lhe perguntar: Haveria uma outra maneira de pensar sobre isso? Ou outra explicação para essa sensação?</p><p>Logo, a função materna e a função do analista é favorecer a conexão do paciente, entre emoção e pensamento.</p><p>TEMA 2 – PSICANÁLISE INSTITUCIONAL</p><p>Voltando para nosso interesse de compreender as intervenções sociais e institucionais da psicanálise com base nas contribuições de Bion, o que se observa é que essa interface entre psicanálise e instituições contribui para se diminuir a alienação, ou seja, há um resgate da subjetividade, em meio à padronização. A padronização típica das instituições eleva o risco de o indivíduo perder a sua subjetividade. Em que outro lugar o discurso é tão protocolar quanto nas instituições, sejam elas bancos, hospitais, exércitos, igrejas, partidos políticos, escolas, por exemplo?</p><p>Nesse contexto institucional, já há uma verdade estabelecida e todos os que lá estiverem serão alinhados a essa verdade, que pode até ser questionada; mas, assim como um paradigma, as verdades são estáveis, redigidas em protocolos, regras, leis, normas e modos de ser que tendem a se perpetuar. Não queremos com isso dizer que as verdades institucionais são erradas, apenas que são rígidas. Relembrando o que foi apresentado no texto sobre a psicologia das massas: há uma supressão das individualidades, das subjetividades, para surgir o grupo. Podemos observar, por exemplo, como isso é em uma escola: todos usam um uniforme, são chamados de alunos, de turma. O individual deixa de existir (fica em segundo plano), para que surja o grupo como sendo uma unidade.</p><p>Romanini e Roso (2012), discorrendo sobre o tema instituição e psicanálise: notas sobre diferenças, recuperam as expressões discurso do mestre e discurso do analista para dizer que as instituições operam com o discurso do mestre quando ousam dizer o que é bom para o indivíduo. E, nesse sentido, indivíduo é o sujeito de direitos e não o sujeito do inconsciente. Já a psicanálise opera com base no discurso do analista.</p><p>Já o discurso do mestre parte de um modelo preestabelecido com base em um saber prévio e universal sobre o que é bom para o sujeito. Um exemplo desse discurso é o calendário escolar, que se encerra a cada ano, da mesma forma, para todos os alunos. É o tempo cronológico institucional que rege o processo de ensino-aprendizagem, e não o tempo de cada um dos alunos. Apesar das suas singularidades, todos começam e terminam o calendário escolar juntos. Os que não se encaixam bem nisso recebem notas vermelhas e são reprovados.</p><p>Outro exemplo é o tratamento da dependência química em instituições que sabem como fazer isso, pela via da medicalização e da abstinência para adaptação ao tratamento proposto. O sujeito é chamado de paciente, e há a recomendação de que se desligue da sua vida lá fora e siga o tratamento que o corpo clínico lhe indicou como sendo o melhor para ele. Esse saber institucional se fortalece de exames laboratoriais para provar o seu êxito quando a cura, ou a desintoxicação, é alcançada. Por outro lado, a psicanálise considera o uso e/ou abuso da droga com base na relação que o sujeito estabeleceu com esse objeto (droga), como uma via de subjetivação, e não apenas como um desvio às normativas sociais e biológicas.</p><p>Por esta introdução, poderíamos concluir que a psicanálise é avessa à instituição, que ambas são excludentes; contudo, constata-se a crescente presença de psicanalistas nesses serviços, o que evidencia a necessidade de se estabelecer uma relação entre psicanálise e instituição; e, mais especificamente, a psicanálise na instituição (Romanini; Roso, 2012). Rinaldi (2006, p. 146) considera que</p><p>o psicanalista precisa sustentar o seu trabalho dentro da instituição, não contra ela, nem apesar dela, mas procurando transmitir algo dessa dimensão do sujeito, sem a qual o discurso da cidadania corre o risco de reproduzir o modelo tutelar e excludente – nesse caso, do sujeito – que pretende combater.</p><p>2.1 O TRABALHO COM A EQUIPE</p><p>Tomando a instituição como um grupo, fazendo parte dela o psicanalista, é importante analisar a diferença na direção do tratamento, que pode aparecer como um conflito entre os diversos profissionais envolvidos e que, quando não reconhecido, pode impedir o crescimento desse grupo de trabalho. Nesse sentido, e com base na teoria de Bion sobre os grupos, podemos dizer algumas considerações.</p><p>· Há pontos de convergência e de divergência entre os diversos profissionais que compõem o grupo, entendido aqui como instituição (com diversos saberes). Quando os conflitos não são reconhecidos, podem se avolumar ao ponto de gerar, nos integrantes do grupo, ansiedades persecutórias, reações de fuga, de não querer olhar para as contradições e angústias inconscientes que também caracterizam o grupo.</p><p>· Em toda psicodinâmica grupal, haverá pontos de afinidade e de diversidade. Isso caracteriza um conflito: assim como ele acontece no aparelho psíquico de um sujeito singular, também acontece na mentalidade grupal.</p><p>· Um mesmo grupo funcionará tanto como um grupo de trabalho (organizado) quanto, em outros momentos, dará sinais de um funcionamento primitivo (SB).</p><p>· A sensação de pertencimento será maior quando o grupo estiver vinculado pelos seus pontos de convergência, que são os objetivos que, afinal, eles têm em comum.</p><p>O desafio que pode ser assumido por psicanalistas institucionais é trabalhar com o grupo para que, apesar das posições distintas quanto à direção do tratamento e, por vezes, contraditórias, o grupo possa reconhecer as diversas verdades, ou diversos pontos de vista válidos, e conseguir mediar esse conflito que se apresenta como um jogo de forças para que, ao invés de ele levar à destruição do grupo, leve a uma elaboração e a um crescimento conjuntos.</p><p>Para que se chegue a um resultado de grupo, frequentemente os seus membros precisarão tolerar alguma frustração por não terem suas preferências individuais atendidas; precisarão se relacionar em condições de ausência de confiança, reconhecendo a existência de conflito; precisarão assumir compromisso (commitment) com um objetivo comum, cujo movimento é regido pelo princípio da realidade e não pelo do prazer (accountability – responsabilidade), na intenção de alcance de resultados coletivos e não individuais.</p><p>Crédito: Whale Design/Shutterstock.</p><p>A presença crescente de psicanalistas nas instituições públicas de assistência à saúde mental indica não somente uma ampliação no campo de trabalho, mas, também, um aumento crescente no interesse dos psicanalistas em trabalhar em instituições de saúde. Romanini e Roso (2012, p. 359) reconhecem essas instituições como um contexto emergente para a atuação de psicanalistas:</p><p>esse movimento produz um deslocamento do psicanalista do seu consultório</p><p>privado para um espaço onde ele está entre muitos, tanto em uma equipe multidisciplinar quanto entre as diversas pessoas a quem se dirige o tratamento. A entrada de um novo “olhar” e de uma escuta diferenciada nas instituições provoca, no mínimo, a necessidade de rearranjo institucional.</p><p>Os autores resgatam o dispositivo da clínica ampliada para nortear a ideia de atuação interprofissional, sendo esse um novo arranjo para que o tratamento aconteça, sem desconsiderar as contradições entre os membros dos grupos desse tipo de instituição, mas conseguindo identificá-las, problematizá-las e usá-las para se planejar a organização de um grupo de trabalho possível (Romanini; Roso, 2012).</p><p>TEMA 3 – A INSTITUIÇÃO HOSPITALAR</p><p>Por muitos anos, o hospital foi lugar de tratamento médico. Alinhado ao paradigma biomédico, o tratamento era do corpo (bio), realizado por um médico. A atuação de voluntários religiosos, a psicossomática, a psicanálise, a psicologia e todas as outras psicoterapias conseguiram inserir o âmbito do cuidado da saúde mental no contexto hospitalar, como parte indissociável do indivíduo, que, como o nome já diz, trata-se de ser não divisível.</p><p>Quando se apresenta o tema hospital, já se seguem diversas associações tais como: dor, doença, separação, medo, morte. As emoções se vinculam a pensamentos e, em decorrência do que se observa comumente naquele ambiente, em geral causam ansiedade nas pessoas. A palavra hospital vem do latim hospes, que significa hóspede e deu origem a hospitalis, que designavam o lugar onde se hospedavam, na Antiguidade, além dos enfermos, os viajantes e peregrinos. Quando o estabelecimento se ocupava dos pobres, incuráveis e insanos, a designação era hospitium, ou seja, hospício, que por muito tempo foi usado para intitular um hospital de psiquiatria (Brasil, 1965). O objetivo inicial desses tipos de estabelecimentos era segregar, retirar da sociedade os loucos e os que tinham doença contagiosa. O objetivo de cuidar só surgiu na era cristã (por volta do ano 360) quando os fiéis se sentiram convocados ao famoso amar o próximo como a si mesmos.</p><p>Escrevendo sobre o nascimento da clínica, Michel Foucault (1980) nos conta que, até o século XVIII, o que se fazia nos hospitais era mais uma obra de caridade, que assegurasse salvação eterna aos voluntários (religiosos ou leigos) e garantisse os últimos cuidados a quem estava morrendo, dando-lhes o último sacramento, que era a unção dos enfermos para aliviar o sofrimento e perdoar seus pecados. O tratamento e a cura que se ofereciam eram limitados a cuidados básicos e de acordo com os recursos disponíveis na época, atendendo-se aos gladiadores e à população em geral com intervenções pontuais e ambulatoriais.</p><p>O compromisso com a restauração da saúde surgiu, porém, já a partir do ano de 1084, com a abertura do St. John, primeiro hospital-geral da Inglaterra; e, em 1123, com a inauguração do primeiro hospital de especialidades, St. Barthlomew, hoje chamado carinhosamente de Barts ou St. Barts, um dos hospitais públicos vinculados ao National Health System – NHS (o equivalente ao nosso Sistema Único de Saúde – SUS) e campo de prática para a formação de novos profissionais de saúde em Londres.</p><p>No Brasil, os primeiros hospitais foram as chamadas santas casas, fundadas a partir de 1538. Os profissionais eram vinculados a programas assistenciais e de caridade e o atendimento médico profissional era oferecido somente para os mais privilegiados e poderosos, que recebiam atendimentos domiciliares. Nos hospitais-asilos, o atendimento era disciplinar, para manutenção de uma ordem social, num local em que a emoção não era bem-vinda.</p><p>Foi apenas a partir dos avanços científicos do Iluminismo no século XVIII que os hospitais passaram a operar com um nível mais complexo de atendimento. Michel Foucault (1980) considera que o avanço tecnológico e a gradativa complexidade das intervenções médicas nos corpos humanos foram acompanhados de uma ideologia positivista e mecanicista, que fundamentaram o modelo biomédico. Essa ciência positivista gerou o saber biomédico como uma verdade incontestável, o que levou a uma subordinação da subjetividade à objetividade. Isso quer dizer que a medicina sabia mais sobre a pessoa do que a própria pessoa sabia, e era essa a verdade que prevalecia. Quando a subjetividade se apresentava (em forma de medo, choro, terror, ansiedade...), isso causava desconforto, “atrapalhava” o tratamento. Esse foi o cenário que marcou o nascimento da clínica nos hospitais, em uma análise foucaultiana: com foco na fragmentação, na redução em especialidades e com intervenções tecnicistas, organizadas por um poder disciplinar sobre o corpo com vistas à produtividade, para ser útil a um modelo de produção que exigia adaptação.</p><p>O modelo de pensamento determina, assim, o modelo de atenção que o profissional vai ofertar aos pacientes, no cotidiano dos serviços. E são dois os principais modelos de atenção à saúde que, historicamente, se mantêm presentes, apesar de serem contraditórios:</p><p>1. Modelo biomédico; e</p><p>2. Modelo biopsicossocial</p><p>Quadro 1 – Modelo biomédico e modelo biopsicossocial: características</p><p>Modelo Biomédico</p><p>Modelo Biopsicossocial</p><p>Práticas individuais</p><p>Ênfase no corpo biológico</p><p>Supremacia da prática médica</p><p>Medicalização dos problemas</p><p>Foco na cura do doente</p><p>Participação passiva e submissa do paciente</p><p>Práticas interprofissionais</p><p>Ênfase no corpo psicossomático</p><p>Visão integral do ser e do adoecer, que compreende dimensões física, psicológica e social de um indivíduo</p><p>Foco no cuidado da pessoa</p><p>Estabelecimento de vínculo e comunicação efetiva</p><p>Autonomia do paciente</p><p>Apesar de, atualmente, o modelo de atenção psicossocial ser considerado um diferencial que agrega valor e qualidade aos serviços de saúde, a história da medicina e dos hospitais é muito determinada por influências do modelo biomédico. Ainda hoje, se observa a imposição do saber institucional sobre os pacientes.</p><p>TEMA 4 – PSICANÁLISE E TOXICOMANIA</p><p>Uma das atribuições dos psicanalistas em serviços de saúde é lidar com a questão do abuso das drogas. Mas o psicanalista não trata a dependência química e, sim, trata um sujeito que consome droga, em uma sociedade que estimula esse consumo.</p><p>Crédito: Lomb/Shutterstock.Crédito: Stik/Shutterstock.</p><p>A sociedade estimula a busca pela felicidade, e a pessoa é levada a acreditar que a felicidade pode ser adquirida, pelo consumo. Temos, portanto, um exemplo de como a psicologia individual e a social são indissociáveis. Tratar de um sujeito que está em tratamento para desintoxicação leva o psicanalista a estimular a verbalização (sua fala), para que venha à tona o que amarra a pessoa às drogas. O que muito se ouve é que a pessoa se sente livre quando escolhe usar droga, que obtém um prazer total e imediato e que a droga é a única maneira de ela se sentir bem. E a pergunta que se impõe é: há liberdade na dependência?</p><p>Nesse cenário, o que motivou o uso da droga foi a busca de prazer (princípio do prazer); e, posteriormente, o que se impõe é o princípio da realidade: abstinência, internamento, medicalização, reclusão, vergonha, estigma, desamparo. As substâncias psicoativas podem proporcionar prazer imediato e momentâneo, mas não conseguem exercer a função alpha, de comunicação, de conectar emoção e pensamento, deixando o sujeito desamparado e ainda mais angustiado.</p><p>Enquanto as instituições são criadas para curar ou excluir os sintomas, a psicanálise considera que o sintoma é a forma possível, ao sujeito, de se conectar à realidade. É pelo consumo que ele participa do mecanismo da sociedade, ou seja, toma-lhe de fato parte, vai em busca dessa integração. É como se a droga tivesse uma representação social para o sujeito: eu tenho relação com meus pais, meus irmãos, meus amigos e com a droga. A droga, assim como a comida, o jogo, o álcool e o trabalho, pode, assim, ser o principal objeto com o qual um dado sujeito se põe em relação. E pode ser que, na relação com esses tipos de objetos, ele encontre a continência que lhe dê amparo; mas não há rêverie.</p><p>A droga é tanto um objeto quanto um significante. Quando uma pessoa diz: Meu pai é uma droga!, nenhum psicanalista deveria se sentir satisfeito com o entendimento do que ele quis dizer com isso. Com essa afirmação, se abre é uma brecha para se falar sobre o que é ser uma droga. Romanini e Roso (2012, p. 360) defendem que, por meio do uso de grupos como um dispositivo de tratamento psicanalítico nas instituições, seja possível “[...] enriquecer o trabalho nas instituições e estas, por sua vez, ao mesmo tempo em que questionam o saber da psicanálise, desafiam e estimulam os psicanalistas a criar novos dispositivos.”</p><p>Um desses dispositivos de cuidado é a clínica ampliada. Com base em um projeto terapêutico, todos os profissionais envolvidos no tratamento ampliam suas interfaces, para potencializar o tratamento. O paciente fica no centro do tratamento e cada profissional estabelece suas relações para que suas ações sejam complementares e não excludentes.</p><p>TEMA 5 – DIFERENTES MÉTODOS PSICOTERAPÊUTICOS</p><p>A depender do contexto, a psicanálise precisará ter clareza sobre seus limites. No método clássico, a psicanálise acontece no um a um, na relação presencial, que envolve análise e interpretação da relação transferencial, e isso exige do paciente um grau de tolerância à frustração, pois não se trata de uma conversa entre amigos e sim de um processo complexo, ambíguo, que visa ao enfrentamento de conflitos. De maneira geral, o paciente não chega pronto para iniciar esse tipo de processo. Por isso usamos o termo entrevistas preliminares para designar essa fase inicial de contato, em que o perfil do paciente e alguns esclarecimentos sobre o motivo da queixa/demanda e do processo psicanalítico precisam ser compreendidos.</p><p>Em um contexto institucional, é provável que a intervenção seja breve, de modo a serem alcançados objetivos parciais do método psicanalítico, mas que podem ser bastante significativos para os pacientes. No Quadro 2 se diferencia cada um dos métodos psicoterapêuticos que podem ser empregados.</p><p>Quadro 2 – Psicanálise, esclarecimento e formas de apoio ao paciente</p><p>Psicanálise</p><p>Esclarecimento</p><p>Apoio</p><p>Objetivos</p><p>Reestruturação, a mais ampla possível, da personalidade</p><p>Melhora dos sintomas; fortalecimento de defesas úteis; modificação parcial de atitudes</p><p>Recuperação do equilíbrio homeostático, alívio da ansiedade, atenuação ou supressão de sintomas</p><p>Estratégia básica</p><p>Desenvolvimento e elaboração sistemática da regressão transferencial</p><p>Compreensão de atitudes e conflitos mais diretamente ligados a sintomas e áreas de descompensação</p><p>Tranquilização, por meio do vínculo e da experimentação de comportamentos diferentes</p><p>Enquadramento temporal</p><p>Término não estabelecido no começo</p><p>Com frequência, limitação temporal fixada desde o começo</p><p>Com frequência, limitação temporal fixada desde o começo</p><p>Setting (enquadramento espacial)</p><p>Uso de divã</p><p>Face a face</p><p>Face a face</p><p>Vínculo objetal que tende a se instalar</p><p>Transferencial</p><p>Reforço da relação real</p><p>Papel real e diretivo do terapeuta, que se oferece como modelo de aprendizagem</p><p>Discurso do terapeuta</p><p>Complexo, ambíguo</p><p>Com duplo sentido</p><p>Simples</p><p>Papel do terapeuta</p><p>Ambíguo, com potencial para ser depositário de múltiplos papéis</p><p>Definido</p><p>(principalmente como docente/tutor)</p><p>Definido (principalmente como protetor)</p><p>Terapeuta (em termos de atitudes)</p><p>Passivo, interpretativo</p><p>Ativo, participante, mantenedor do diálogo, discretamente próximo</p><p>Ativo, participante, diretivo, muito próximo</p><p>Intervenções</p><p>Interpretações transferenciais</p><p>Interpretações atuais e históricas de vínculos básicos conflituosos, complementadas com relações transferenciais</p><p>Intervenções sugestivo-diretivas.</p><p>Fonte: Adaptado de Fiorini, 2013, p. 59-60.</p><p>A avaliação do paciente e das condições do contexto onde se dá a relação terapêutica é muito importante para se indicar o melhor método terapêutico. Em algumas situações, a oferta de assistência é de sessões de acolhimento para retirar a pessoa da crise, como em serviços de urgência. Nesses casos, não haverá um processo, mas sim uma intervenção, um ou dois encontros apenas, de forma que o psicanalista precisará planejar as intervenções que usará sabendo que não haverá continuidade.</p><p>Alguns episódios, ao longo da história, marcaram a importância dessas intervenções breves, como no acolhimento de pessoas envolvidas no incêndio da Boate Kiss, em 2013, e no acolhimento de pessoas vítimas da pandemia de Covid-19. Apesar de esses não serem tratamentos longos, eles podem ser bastante significativos para o sujeito ou para o grupo, que tem a oportunidade de falar sobre sua experiência (conteúdo) e encontrar no grupo uma continência.</p><p>NA PRÁTICA</p><p>Damos, agora, um exemplo de sobre o quanto o tratamento, no modelo biomédico, pode reprimir a subjetividade do sujeito: uma bebê estava internada em uma enfermaria, para tratamento de uma pneumonia, acompanhada de sua mãe, e fazia uso de antibióticos e diariamente os médicos a examinavam. A sua rotina de cuidados era feita pela equipe de enfermagem. Por vezes, a presença da mãe ao lado do berço, na enfermaria, era motivo de desconforto para a equipe, pois a mãe ocupava um lugar por onde os profissionais precisavam circular. A mãe percebia que sua presença era recomendada pelo programa de humanização do hospital, mas também sentia que, às vezes, consideram que atrapalhava, raramente lhe perguntavam algo e ela acabou concluindo que quem sabe são os médicos. Permanecia passiva e só assumia os cuidados com a filha (holding) quando não havia profissional por perto, pois, em um hospital, o paciente é do médico (e não da mãe).</p><p>No hospital, todas as crianças internadas tomavam banho antes das 7 horas da manhã, pois, para a rotina da instituição, assim era melhor. Com isso, os médicos que realizavam visitas nas primeiras horas da manhã já encontravam as crianças limpas. Nesse horário, as mães geralmente não estavam no quarto, pois saíam para tomar o café da manhã servido pela instituição a todos os acompanhantes no mesmo horário, na cantina do hospital. Certo dia, porém, a mãe chegou à enfermaria enquanto a enfermeira ainda estava dando banho na bebê. A enfermeira compartilhou com a mãe que não conseguia entender por que a bebezinha chorava tanto, cada vez que tomava banho. A temperatura da água estava adequada, a enfermeira a segurava com conforto e segurança, tentava acalmá-la com um tom de voz tranquilo... Mas, dia após dia, a angústia da bebê era percebida, durante o banho, e a enfermeira confessou que estava triste por não conseguir entender e confortar a criança. Disse, ainda, que acreditava que a bebê não gostava de tomar banho. A mãe, observando o procedimento, lhe explicou: “Ela gosta de tomar banho, mas não gosta quando vai água na orelha. Quando você joga água com a mão, molha a orelhinha dela e ela se assusta com o barulho.”</p><p>Compartilhar o saber com a mãe mudou tudo, portanto, na relação da enfermeira com aquela díade, dali para frente. Ela passou a ver a mãe e a bebê como uma coisa só. Uma estava em sintonia com a outra e, se a equipe do hospital deixasse de considerar a mãe ao cuidar dos bebês, os conflitos surgiam com muito mais frequência.</p><p>Outro exemplo é o de uma criança de 5 anos que não tinha a companhia de ninguém da família. Estava sozinha, aguardando para fazer uma cirurgia da qual tinha medo, mas o que ouvia eram apenas incentivos: não tenha medo. Essa criança apresentava febre sem motivo orgânico. Ela precisava fazer uma cirurgia de fimose (no pênis). Não tinha infecção e, portanto, a febre não se justificava, sob o ponto de vista biomédico. Ao ter a oportunidade de falar sobre seu medo, sobre a solidão, a febre “sumiu”, o que fez o psicanalista parecer um feiticeiro.</p><p>Esses são exemplos de como a psicanálise pode entrar em um hospital. Os saberes e fazeres podem ser diferentes, mas não são excludentes. São complementares.</p><p>FINALIZANDO</p><p>Como vimos, a teoria de Bion sobre os grupos apresenta a existência de duas organizações: grupo de trabalho e grupo de SB. Segundo Bion, esses dois modos</p><p>de funcionamento existem nos grupos e se alternam e, quando não reconhecidos, o modo de funcionamento primitivo pode impedir o crescimento do grupo. É o que se percebe em grupos que têm potencial para crescimento, se trabalhassem apenas sob o modelo do grupo de trabalho, mas que podem se autodestruir pelos conflitos que em seu seio se impõem, que remetem ao modo de funcionamento SB. É bastante importante se analisar os grupos com base nesses dois pontos de vista, e portanto, a teoria bioniana é referência para a psicanálise institucional.</p><p>Para Bion, o que faz com que o modo de funcionamento secundário se imponha sobre o modo de funcionamento primário/primitivo é a capacidade de se tolerar frustrações e de se criar simbolizações para conectar sensação e pensamento.</p><p>O pensamento surge como uma solução para lidar com a frustração. Enfrentar o princípio da realidade requer tolerância à frustração e capacidade de pensar. Quando isso não acontece, o que se observa são atitudes violentas, que buscam dar vazão à emoção de raiva. Bion chamou de função alpha essa capacidade de ajudar o sujeito a conectar sensação/emoção com pensamento/simbolização. Para Bion, essa é mais uma das funções maternas – e também uma tarefa do psicanalista.</p><p>A CLÍNICA EM BION</p><p>AULA 6</p><p>Já sabemos até aqui que a teoria sobre psicanálise de grupos ainda causa um mal-estar na tradição psicanalítica que sempre considerou o inconsciente como estrutura individual. No texto “Psicologia das massas”, ou “Psicologia de Grupo e Análise do Eu” (conforme diferentes traduções), Freud (1921) reconheceu que a psicologia individual é indissociável da psicologia social. Os psicanalistas de grupo defendem a ideia da existência de uma mentalidade grupal.</p><p>Freud construiu sua metapsicologia (teoria psicanalítica) tendo como elemento principal a libido, que é um investimento afetivo na relação entre a mãe e seu bebê. Também bastante central na teoria freudiana é o conceito de castração, significando a interferência de um terceiro na relação entre a mãe e seu bebê.</p><p>Bion se fundamentou em Freud, concluindo que este evidenciou a importância do vínculo de amor (libido), e em Melanie Klein, cuja contribuição foi dizer que existe também uma relação de ódio além de amor, apresentando que há um seio bom (amor) e seio mau (ódio). Com base nesses pressupostos teóricos, Bion compreendeu que não existe estruturação psíquica que não precise de pelos menos duas mentes. Esses investimentos afetivos de amor e ódio, Bion chamou de “vínculo”. Ainda, acrescentou mais um: o vínculo K (conhecimento), que deu origem à teoria do pensar, destacando a importância de simbolizar.</p><p>As duas guerras mundiais foram horríveis do ponto de vista social, assim como foi a pandemia de Covid-19, mas tanto as guerras como as pandemias sanitárias se apresentaram como contexto para a valorização da saúde mental das pessoas, para a boa formação de psicoterapeutas, e, em momentos como este, a necessidade de profissionais da saúde que façam atendimentos de grupos fica mais evidente. Por isso, a proposta desta etapa é apresentar a situação atual das grupoterapias na psicanálise.</p><p>Nesta etapa, vamos compreender como esse dispositivo de cuidado acontece na prática e o que se tem concluído sobre o grupo na psicanálise.</p><p>TEMA 1 – GRUPOTERAPIA</p><p>Com o objetivo de síntese, nesta etapa, vamos resgatar os principais marcos teóricos que fundamentam a psicanálise de grupos, com base no livro de David Zimerman (2000, 2011).</p><p>· Origem: grupos homogêneos de autoajuda no contexto da saúde pública, a exemplo do médico estadunidense J. Pratt, em 1905, considerado o primeiro grupoterapeuta. Ele realizava grupos com cerca de 50 pacientes com tuberculose em uma enfermaria. Começava dando informações sobre questões relativas ao tratamento, depois abria para perguntas e permanecia com os pacientes mediando uma interação entre eles. Outro exemplo é o grupo de Alcóolicos Anônimos, iniciado em 1935, que continua até hoje.</p><p>Os textos de Freud que fundamentam a psicanálise de grupos são:</p><p>· Projeto – “o indivíduo e seus semelhantes” (1895);</p><p>· Leonardo – “a criança e a mãe” (1910);</p><p>· “As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica” (1910);</p><p>· “Totem e tabu” (1913);</p><p>· “Psicologia das massas e análise do ego” (1921);</p><p>· “O futuro de uma ilusão” (1927);</p><p>· “Mal-estar na civilização” (1930).</p><p>Outros autores importantes que são referência para a grupoterapia são</p><p>J. Moreno, S. H. Foulkes, K. Lewin, Pichon Rivière, Grimberg, D. Anzieu e</p><p>R. Käes. No Brasil, se destacam o contemporâneo Lazslo Antônio Ávila e o médico David E. Zimerman, reconhecido no cenário psicanalítico brasileiro como estudioso, conhecedor e divulgador da obra de Bion.</p><p>Com base em Zimerman (2000; 2011), sintetizamos algumas das principais contribuições de Bion para a grupoterapia psicanalítica.</p><p>· Em todo grupo, coexistem duas forças contraditórias permanentemente em jogo: uma tendente à sua coesão e a outra à sua desintegração.</p><p>· A dinâmica grupal movimenta-se em dois planos: 1) grupo de trabalho, que opera no plano do consciente e está voltado para a execução de alguma tarefa; 2) grupo de pressupostos básicos (SB), que opera sob influência do inconsciente, com manifestação de conflitos primitivos.</p><p>· O grupo precede o indivíduo, isto é, as origens da formação espontânea de grupos têm suas raízes no grupo primordial, tipo a horda selvagem, tal como Freud a estudou. O grupo forma o indivíduo. É por meio dos vínculos que acontece a constituição do sujeito.</p><p>· A cultura grupal consiste em uma permanente interação entre o indivíduo e o seu grupo.</p><p>· A cultura exige uma organização, que é processada por meio da instituição de normas, leis, dogmas, convenções e um código de valores morais, éticos e estéticos.</p><p>· O modelo de relação que o indivíduo tem com o grupo é o de continente-conteúdo e se dá pelos vínculos de amor (L), ódio (H) e conhecimento (K).</p><p>· Quando um indivíduo ameaça o establishment do grupo (por ser portador de ideias novas boas ou ruins), o movimento que o grupo faz é de: vetar sua entrada, expulsão (“bode expiatório”), ignoram sua presença, desqualificam suas ideias, ou o grupo o aceita, mas o mantém em atividade de pouca influência decisória.</p><p>· Qualquer indivíduo, necessariamente, participa em diferentes grupos, em que será influenciado e também influenciará outras pessoas.</p><p>· Pela dinâmica grupal, é possível perceber a presença dos conflitos estruturais, ou seja, aqueles que resultam da desarmonia das instâncias do id, ego, superego.</p><p>· O grupo é um campo ativo de identificações projetivas (relação continente – conteúdo) e se constitui como o essencial elemento formador do sentimento de identidade e pertencimento.</p><p>Em relação aos indivíduos do grupo e os seus papéis, Zimerman (2000) destaca alguns que são típicos nos grupos, tais como:</p><p>· radar – indivíduo mais regressivo do grupo que capta mais rapidamente os primeiros sinais de ansiedade que emergem e, por não ter capacidade psíquica de processar simbolicamente (simbolizar) o que captou, expressa essa ansiedade em sua própria pessoa por meio de inquietação, abandono da atividade e somatizações;</p><p>· sabotador –procura obstaculizar o andamento do grupo com conversas paralelas, negações aos assuntos debatidos, mudanças no foco do assunto, trazendo demandas fora do contexto do grupo e demonstrando intolerância com os demais membros do grupo. Apresenta atitudes que estão à serviço da resistência;</p><p>· porta-voz – manifesta aquilo que está latente no grupo, pode ser uma necessidade, uma queixa, um pedido. O porta-voz assume a comunicação em nome do grupo.</p><p>Zimerman (2007) reconhece que fica evidente no grupo os vínculos de amor (L), ódio (H) e conhecimento (K), e acrescenta mais um: o de reconhecimento (R), que justifica a busca por aprovação e o sentimento de autoestima.</p><p>TEMA 2 – COORDENAÇÃO DO GRUPO</p><p>Do ponto de vista da coordenação do grupo, ao grupoterapeuta cabe funções bastante específicas. Conforme Zimerman et al. (1997, p. 40), os principais requisitos, que em termos ideais são indispensáveis na formação e prática</p><p>Conferências Brasileiras 1;</p><p>· 1976 – Evidência;</p><p>· 1977 – A Censura;</p><p>· 1977 – Turbulência emocional;</p><p>· 1978 – Quatro discussões com Bion;</p><p>· 1980 – Bion em Nova Iorque e em São Paulo;</p><p>· 1979 – Como tornar proveitoso um mal negócio;</p><p>· 1975 – Uma memória do futuro I. O Sonho;</p><p>· 1977 – Uma memória do futuro II. O passado presente;</p><p>· 1979 – Uma memória do futuro III. A Aurora do Esquecimento.</p><p>Homenagens póstumas:</p><p>· 1985. Bion W. R. (autobiografia póstuma, editado pela sua esposa com base em seus esboços);</p><p>· 1990. Cogitations (coleção de apontamentos e frases de Bion, coletados e editados pela sua esposa).</p><p>· 1981. Ousarei perturbar o Universo? (editado por James Grodstein, um ex-analisando, supervisionando e discípulo de Bion, nos Estados Unidos).</p><p>Bion gostava mais das reflexões geradas pelas perguntas do que das respostas. Uma das frases mais utilizadas por Bion era a citação que fazia do filófoso Blanchot: “A resposta é a desgraça da pergunta”. Bion também se incomodava com as certezas e com o saber do psicanalista. Bion recomendava que os psicanalistas se preocupassem mais em ser do que em saber.</p><p>O psicanalista Luiz Alberto Py, ao contar sobre sua experiência pessoal com Bion, relata ter sido um divisor de águas na sua prática clínica o momento em que passou a ter conhecimento do pensamento de Bion. Uma dessas grandes mudanças na forma de clinicar foi em relação à interpretação da transferência. Ao longo de sua formação para ser psicanalista Py entendeu que os comentários dos pacientes durante a sessão deveriam ser tomados como expressão da relação transferencial e interpretados. Dessa forma, Py relata que se sentia bastante desconfortável quando, seguindo fielmente a teoria do método tal como tinha aprendido em seus estudos teóricos. Algo que o fazia se sentir bastante desconfortável e inseguro era a interpretação da transferência negativa, como nos exemplos a seguir:</p><p>1. Se o cliente chegar à sessão falando que está irritado com o guardador de carros, por achar que tinha sido roubado por ele ter lhe cobrado muito caro:</p><p>a. Um psicanalista deveria interpretar a relação transferencial dizendo a ele que provavelmente se sentia (o cliente) roubado pelo psicanalista.</p><p>2. Se o cliente falar na sessão que está com raiva da namorada que não o compreende:</p><p>a. Um psicanalista deveria interpretar que o cliente está com raiva do psicanalista por achar que este não o compreende.</p><p>Essa compreensão, que se baseia unicamente no cumprimento fiel de um protocolo, com base no que o método psicanalítico orienta que deve ser feito, deixa de lado algo muito importante na relação entre psicanalista e cliente: o aqui e agora. Ao entrar em contato com o pensamento de Bion sobre isso, Py passou a ouvir mais as motivações do cliente do que simplesmente ficar nesse jogo de tênis ou ping-pong, rebatendo uma bola cada vez que o cliente manifestasse uma emoção negativa, recuperando os exemplos acima, Py (citado por Zimerman, 2011, p. 55) concluiu que:</p><p>Ou seja, em vez de entender que nosso cliente se sentia roubado por nós pelo mero fato de chegar no consultório se queixando do carro, tentaríamos entender o que o levava a optar por fazer esta queixa em vez de qualquer outra coisa que poderia estar dizendo. A pergunta que passei a me fazer era: “O que será que faz com que essa pessoa saia de sua casa para vir aqui me falar de sua irritação com um guardador de carros que ela acha que está lhe roubando? Quando passei a prestar atenção nesses aspectos, aconteceram coisas surpreendentes no meu trabalho. Comecei a perceber que eu e o meu cliente não sabíamos o que estávamos fazendo; tentávamos ‘Fazer psicanálise’. Ele ficava no papel de analisando e eu no papel de analista”.</p><p>Bion recomendou que os psicanalistas evitassem seus desejos de saber, de curar, de entender, de lembrar, ou seja, o psicanalista precisava se libertar desses compromissos para que pudesse viver o momento presente com seus clientes, sem sacrificar o momento presente para garantir que não fosse esquecer nada no futuro e dessa forma, passar a sessão inteira escrevendo o que o cliente fala para ter o controle do que precisa ser lembrado, conhecido, interpretado. Dessa maneira, podemos entender que a cura é consequência e não objetivo de uma análise bem-feita.</p><p>Em cada consultório, deveria mais precisamente haver duas pessoas amedrontadas, o paciente e o analista. Se não estão, então seria o caso de se perguntar por que estão se incomodando em descobrir o que cada um já sabe. É tentador se ocupar com algo familiar. (Py, citado por Zimerman, 2011, p. 58)</p><p>Bion sempre se preocupou em como a psicanálise era na prática. Para ele, a teoria psicanalítica é fácil, a aplicação na prática clínica é que é difícil.</p><p>TEMA 3 – PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS DE BION COM GRUPOS</p><p>No contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os distúrbios emocionais eram a causa mais importante da inativação de militares. Havia constante necessidade de selecionar mais pessoas para a guerra ao mesmo tempo em que, de um modo geral, a sociedade sofria os traumas pela desagregação das famílias. A psiquiatria e a psicanálise ascenderam a um plano de muita importância e foi nesse contexto que Bion se destacou pelo trabalho com grupos, tendo sido reconhecido mundialmente por meio de seus estudos sobre dinâmica dos grupos (Zimerman, 2011).</p><p>Dentre os psicanalistas da época, foi especialmente com Wilfred Bion, na Inglaterra, que a psicanálise ampliou sua atenção para a psicodinâmica dos grupos. Junto com Anzieu e Käes, na França, e Pichón-Rivière, na Argentina, na década de 1950, o pensamento psicanalítico avançou do individual para o grupo, com bastante resistência da comunidade psicanalítica da época, como era de se esperar quando se trata de algo inovador na psicanálise. Psicanálise de grupos sempre foi um tema que ainda hoje causa resistência.</p><p>Precisamos considerar os acontecimentos que caracterizavam o contexto em que Bion iniciou seu trabalho com grupos. Londres, na Inglaterra, era a sede do conflito na guerra declarada pela Inglaterra e França contra a Alemanha nazista, que deu origem à Segunda Grande Guerra Mundial.</p><p>Bion criou os primeiros grupos, com membros do exército inglês, para seleção de oficiais e também nas atividades de treinamento.</p><p>Em relação à seleção de oficiais, Bion deixou de lado o método habitual de priorizar as qualidades militares dos postulantes ao oficialato e propôs a técnica de “grupo sem líder”. Tal técnica consistia na proposição de uma tarefa coletiva aos candidatos, como, por exemplo, a construção de uma ponte, enquanto os observadores especializados avaliavam não a capacidade de cada um deles para construir uma ponte, mas sim a aptidão do homem em estabelecer inter-relacionamentos, em enfrentar as tensões geradas nele e nos demais pelo medo do fracasso da tarefa do grupo, e o desejo do êxito pessoal. (Zimerman, 2011, p. 105)</p><p>A aplicação dessa técnica trouxe quatro vantagens que foram reconhecidas por todos:</p><p>· Economia de um tempo que era habitualmente despendido na seleção individual;</p><p>· Possibilidade de uma avaliação compartilhada coletivamente com outros técnicos selecionadores;</p><p>· Observação de como os candidatos interagiam entre si</p><p>· Facilitação da importante observação dos tipos de lideranças</p><p>Naquele cenário de guerra, eram grandes as demandas por suporte biopsicossocial à população em geral e ao exército combatente. Bion também trabalhou com grupos em contexto hospitalar, onde estavam internados membros do exército em processo de reabilitação.</p><p>Ele (Bion) se reunia diariamente numa sala com 15 pacientes e promovia uma discussão grupal, com o objetivo precípuo de readaptá-los à vida militar ou de julgar se eram capazes de voltar ativamente a essa vida. Um fruto visível desse trabalho grupal foi Bion ter conseguido restabelecer a disciplina e manter uma ocupação útil dos seus homens; com isso, constituiu-se um verdadeiro “espírito de grupo”. Por razões que nunca ficaram bem esclarecidas (a mais provável é que a cúpula dos oficiais superiores teria</p><p>de um grupoterapeuta, são:</p><p>· gostar de grupos e acreditar nessa modalidade terapêutica;</p><p>· capacidade de ser continente;</p><p>· capacidade de empatia;</p><p>· capacidade de intuição;</p><p>· capacidade de discriminação;</p><p>· capacidade de manter-se inteiro em sua identidade pessoal e de grupoterapeuta;</p><p>· senso de ética;</p><p>· ser um modelo de identificação;</p><p>· capacidade de comunicação;</p><p>· capacidade de extrair um denominador comum da tensão grupal; e</p><p>· capacidade de síntese.</p><p>Em relação ao contrato de trabalho, Kaës e Anzieu (1976) nos orientam sobre as instruções e regras dadas ao grupo, que devem estar alinhadas ao tipo de grupo e à finalidade. De modo geral, é importante esclarecer no início que, no grupo, a proposta é:</p><p>· falar sobre o que é sentido aqui e agora, e falar na sessão o que é dito sobre o grupo durante os intervalos de sessão;</p><p>· esclarecer que, na sessão, a relação do coordenador é com o grupo e não haverá relação individualizada entre o coordenador com algum participante;</p><p>· definição do lugar em que acontecerá a sessão, horário, duração, frequência;</p><p>· esclarecer qual é a função do coordenador e dos monitores ou observadores (se houver).</p><p>O trabalho com grupos pode acontecer com diferentes pacientes e em diferentes contextos. Quando se tratar de pacientes neuróticos e fora de situação de crise, em que não se observe vulnerabilidades importantes, as sessões podem ter duração de aproximadamente duas horas, o equivalente a duas sessões individuais de 50 minutos. No entanto, quando se tratar de grupos com pacientes hospitalizados ou psicóticos, é conveniente que não seja ultrapassado o tempo de uma sessão (50 a 60 minutos).</p><p>No relato de experiência de um grupo de acadêmicas na coordenação de grupos em hospital psiquiátrico com pacientes psicóticos, são feitas as seguintes constatações (Santos; Rodrigues; Fay, 2014).</p><p>· No início de cada sessão, por tratar-se de grupo aberto por causa de altas e novas internações, é necessário retomar o contrato, explicar a proposta e o modo de funcionamento do grupo.</p><p>· Proteger o setting, definindo como local um lugar que possa funcionar como continente, com pouca interferência externa. Por exemplo: um lugar de passagem de funcionários não é adequado. Especialmente no trabalho com psicóticos, o setting precisa ser estável, seguro e protetivo (continente).</p><p>· Quanto mais desorganizada a mentalidade grupal, maior a necessidade de minimizar o conflito e salientar o apoio.</p><p>· Não é adequado que o grupo tenha caráter obrigatório ou compulsório. Cada um participa se for do seu desejo.</p><p>· No paciente psicótico, existe a dificuldade de acesso ao social e ao simbólico, ou seja, àquilo que o faria reconhecer-se como componente de um grupo no qual se estabelecem os laços sociais. No entanto, ele pode se servir da estruturação lógica do laço social sem necessariamente estar inserido nele.</p><p>As autoras relatam que os principais fenômenos analisados no campo grupal foram: ansiedades, defesas e identificações. Além disso, o grupo parecia funcionar sob uma constante ameaça de desintegração que precisava a todo o momento ser trabalhada pela coordenadora no sentido de garantir a existência daquele espaço, por meio de sua presença atenta e constante.</p><p>Na análise das atividades grupais, as autoras destacam as seguintes considerações (Santos; Rodrigues; Fay, 2014, p. 147).</p><p>· Na mentalidade dos pacientes e do grupo, havia evidências de fortes influências do contexto social atual (estilo de vida contemporâneo).</p><p>· É possível perceber que entre os membros do grupo há falência da função paterna, falha de representantes simbólicos significativos na constituição do sujeito, perda de referência à tradição.</p><p>· No contexto de vida dos membros do grupo, há um crescente clima de violência, dominância de valores e ideais provindos da mídia, estilo de vidas estressantes e dinâmicas familiares adoecidas.</p><p>· Grupos com pacientes sofrendo da mesma condição facilitam a identificação, a revelação de particularidades e intimidades, o oferecimento de apoio ao semelhante, o desenvolvimento de objetivo comum, a resolução das dificuldades e dos desafios que se assemelham.</p><p>· A participação no grupo reduz o isolamento social e o estigma. As autoras também fazem considerações sobre o embasamento teórico quanto à questão do apoio fornecido no grupo, ao grupo e pelo grupo.</p><p>TEMA 3 – CONFIGURAÇÕES VINCULARES</p><p>Lazslo Ávila, escrevendo sobre a perspectiva psicanalítica acerca dos grupos, se utiliza da metáfora da cebola para explicar que o indivíduo é formado por meio das relações subjetivas que estabelece ao longo da vida: “a teoria dos grupos nos diz que se formos descascando tudo do indivíduo não acharemos núcleo nenhum, pois não há ‘eu verdadeiro’. No mais íntimo do indivíduo encontraríamos a relação e os vínculos com os demais.” (Ávila, 2008, p. 28).</p><p>Essa teoria atua como a quarta ferida narcísica para a humanidade e é especialmente desconfortável para a psicanálise tradicional, pois põe em questão o conceito de identidade. Reconhecer os vínculos como determinantes para a estruturação da personalidade é diferente de dizer que é por meio dos vínculos que o inconsciente atua no indivíduo. A ideia mais cara da psicanálise é a existência do inconsciente em cada pessoa. Contudo, com base no que estudamos, já podemos compreender que ao nascer não se tem um aparelho psíquico nem personalidade prontos, de maneira inata. O inconsciente sim, pois ao nascer já se observa um funcionamento psíquico rudimentar que corrobora o que Freud definiu como inconsciente. No entanto, toda a estruturação do psiquismo que chamamos de constituição do sujeito se dá mesmo por meio de configurações vinculares. Foi a teoria de dinâmica de grupo que caracterizou as relações parentais como grupo primário de relação do indivíduo, abrindo caminho para a teorização das configurações vinculares no grupo secundário (amigos, colegas de trabalho, membros de um mesmo time, partido, religião, escola, por exemplo).</p><p>Zimerman (2010) explica as configurações vinculares usando o exemplo das notas musicais – dó, ré, mi, fá, sol, lá, si. Cada uma, tocada isoladamente, produz um som, mas quando vinculadas entre si formam uma música. O mesmo pode ser pensado sobre as letras de um alfabeto e os números que, quando vinculados, produzem novos sistemas, novos signos, novas configurações. Isso mostra o quanto um elemento interfere na identidade do outro quando em grupo. As notas musicais não deixam de ser o que são individualmente, mas elas também podem ser parte de outro sistema quando vinculadas às demais.</p><p>Vínculo significa união, ligadura, atadura de características duradouras. Em sua raiz, encontramos a palavra “vinco” que nos remete a pensar em marcas, rugas, delimitando de alguma maneira as partes que fazem parte do mesmo tecido. Em seu livro Os quatro vínculos, Zimerman (2010) reconhece que foi</p><p>W. Bion quem aprofundou, sistematizou e divulgou, por todo universo psicanalítico, as múltiplas facetas dos vínculos e das respectivas configurações vinculares.</p><p>Os vínculos podem ser de natureza intersubjetiva (entre duas ou mais pessoas), intrassubjetiva (as diferentes partes dentro de uma mesma pessoa), ou transubjetiva (em cujo caso, o vínculo atravessa fronteiras e adquire uma dimensão bastante mais ampla, como seria o caso de nações em litígio). (Zimerman, 2010, p. 26)</p><p>O que Bion chamou de vínculo, Freud chamava de libido. O Complexo de Édipo, por exemplo, que envolve intenso investimento libidinal, poderia ser definido por Bion como vínculo edípico ou de configuração edípica.</p><p>Assim como Freud explorou o investimento libidinal (amor), Melanie Klein explorou os mecanismos de defesa de projeção de ódio quando tratou da clivagem do seio bom e do seio mau, que seriam todos os conteúdos angustiantes projetados para fora. Bion resgatou essa fundamentação teórica em Freud e Klein, e elaborou sua teoria, chamando de vínculo e acrescentando o conhecimento (vínculo k).</p><p>· Vínculo L (amor/love): acolher, recepcionar, desintoxicar e devolver o conteúdo oportunamente, de forma nomeada e organizada. Função</p><p>alpha. Rêverie (comunicação).</p><p>· Vínculo H (ódio/hate): conteúdos angustiantes evacuados/projetados no outro;</p><p>· Vínculo K (conhecimento/knowledge): conexão entre emoção e pensamento. Modo primitivo de pensar e de simbolizar.</p><p>Entre os psicanalistas contemporâneos, o brasileiro David Zimerman (2010) propôs um quarto vínculo, o qual chamou de reconhecimento (R):</p><p>· Vínculo R (reconhecimento/recognition): ânsia que todo ser humano apresenta de ser reconhecido pelos demais como uma pessoa querida, aceita, desejada e admirada pelos seus pares. Implica autoestima.</p><p>É pela relação entre continente e conteúdo que esses vínculos acontecem, e a depender da competência do continente para acolher e processar as angústias (conteúdo) do filho, os vínculos serão sadios ou patológicos, o que implicará o comportamento social das pessoas e na própria qualidade de vida (Zimerman, 2010).</p><p>Bion usou o sinal de menos ( – ) para simbolizar a ocorrência de vínculos patológicos.</p><p>TEMA 4 – DESENVOLVIMENTO DA CAPACIDADE SIMBÓLICA</p><p>Com base na teoria do pensar, ou teoria do pensamento, sabemos que é por meio do vínculo K que, segundo Bion, se dá a passagem do processo primário (princípio do prazer) para os processos secundários (princípio da realidade) e que, para isso, o psiquismo precisa ser capaz de tolerar frustrações. Sabemos também que será por meio de um cuidador que, exercendo a função materna, ajudará o bebê a conectar sensação, emoção com pensamento. O que está acontecendo nesse processo é o desenvolvimento da capacidade de simbolizar.</p><p>O pensar é resultante de um processo que se inicia com a elaboração das experiências sensoriais e emocionais, colocando dessa forma a emoção no centro do significado da vida psíquica, o que contraria tudo o que até então se afirmara sobre o pensar como um processo intelectual (Mélega, 2008).</p><p>· A mãe, operando com rêverie (empatia, capacidade de receber as identificações projetivas realistas do bebê) e elaborando-as em significados pela sua função alpha, devolve ao bebê, o qual introjeta e se identifica com o funcionamento mental da mãe.</p><p>· A função alpha da mãe vai dar sentido às experiências do bebê, o que gera elementos alpha que serão introjetados pelo bebê no lugar dos elementos beta (emoção sem sentido).</p><p>· Para conseguir pensar, é preciso que tenha acontecido essa “comunicação” entre mãe e bebê.</p><p>· A mãe devolve o conteúdo de forma simbolizada e o bebê começa a formar imagens oníricas (entre o sonho e o pensamento), que representa a passagem do biológico para o mental.</p><p>Vamos acompanhar alguns trechos do relato de um caso clínico em que o desafio foi passar do vínculo amor-ódio para o vínculo conhecimento.</p><p>4.1 EXEMPLO CLÍNICO</p><p>Informações sobre o paciente:</p><p>· Paciente: Ugo, um menino de oito anos.</p><p>· Queixa: dificuldade de aprendizagem.</p><p>A história de Ugo contada pela mãe na primeira entrevista de avaliação:</p><p>· Ameaça de aborto no primeiro trimestre, que deixou a mãe insegura dali por diante; amamentação desde a maternidade, mas Ugo demorava muito para mamar e chorava tanto que, após quinze dias, passou a receber o leite na mamadeira. No terceiro mês, os pais acrescentaram sopa e insistiam muito para ele comer, forçavam e ficavam furiosos com a recusa. Até hoje é uma guerra na hora das refeições.</p><p>· Impressões iniciais: atividade projetiva dos pais no bebê. Pais não tinham capacidade de aguardar, de suportar a demora do bebê.</p><p>Com a analista, no lugar de um diálogo, Ugo fazia um jogo de adivinhações. Por causa da dificuldade de aprender, passava horas fazendo lições com a mãe do lado, emoção que poderia ser semelhante à insistência para engolir as colheradas.</p><p>Durante as sessões, Ugo tinha atitude violenta, atirando uma bola de massinha com força nas almofadas, batendo nas almofadas com uma luva de boxe. Quando a analista pedia uma pausa para tentarem entender o que estava acontecendo ali, ele tolerava muito mal e a apressava para continuar o jogo. Se a analista não retomasse a atividade com os brinquedos, ele interrompia o contato e parece que entendia a atitude da analista como uma recusa a acompanhá-lo na atividade prazerosa (a luta).</p><p>Em determinado momento do processo, a analista sugere substituir a luta com almofadas e dramatizar com uma família de bonecos. Ugo agrediu os bonecos violentamente até que disse: estão todos mortos, só sobrou o bebê. Nas sessões seguintes, ele esvaziou uma caixa e pediu à analista que jogasse uma bola (que era a luva de boxe) tentando acertar a caixa vazia, enquanto ele defendia colocando-se na frente da caixa.</p><p>· Intervenção da analista: “Estamos começando de novo. Tem um bebê que está começando a comer, mas resiste, e tem uma mãe que tem que ser esperta para conseguir que ele pusesse algo dentro da sua boca”. Ugo escutou e, na sequência, defendia menos de modo que a bola entrava mais vezes na caixa. Nas sessões seguintes, seguiram as brincadeiras de incorporação (fazer entrar), luta; em alguns momentos Ugo ia até a pia tomar goles de água e manifestou raiva e frustração. Aos poucos, foi acontecendo um diálogo. Ugo passou a ouvir mais a analista (deixar entrar) e isso o ajudou na capacidade de simbolizar. Ugo simbolizava por desenhos. Na vida escolar, passou a se envolver mais com esportes, melhorou a expressão de sentimentos e o aproveitamento escolar.</p><p>· Conclusão: Ugo aprendeu a pensar por meio das suas próprias emoções, aprendeu a criar símbolos, a representar por meio de imagens gráficas, pela dramatização.</p><p>O desafio terapêutico é passar do vínculo amor-ódio para o vínculo conhecimento. O vínculo H (ódio) pode ser representado por arremesso de objetos, brincadeiras de luta, falas agressivas, violência, sadismo, sacarmos. A principal intervenção para passar do vínculo H para o vínculo K é convidar o paciente a entender o que está acontecendo ali.</p><p>É da relação entre a experiência (sensações corporais, biológicas, emocionais) com o pensamento, que será construída a capacidade de simbolizar (pensar por meio das emoções).</p><p>Saiba mais</p><p>O relato do caso pode ser lido na íntegra no artigo disposto no link a seguir.</p><p>· MÉLEGA, M. P. Vínculo K (Knowledge) e o desenvolvimento da capacidade simbólica. Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 435-448, 2008. Disponível em: <https://www.fepal.org/images/2004ninos/v_241nculo_k_marisa_pelella.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2023.</p><p>TEMA 5 – GRUPOTERAPIA HOJE</p><p>Lazno Antônio Ávila é uma das referências atuais no Brasil para o estudo da teoria psicanalítica de grupos e nos atualiza resgatando a contribuição histórica de diferentes psicanalistas. Ávila destaca uma diferença muito importante a ser observada: grupo e pessoas reunidas. Para ajudar nessa diferenciação, ele usa a metáfora da taça de sorvete.</p><p>Ao colocar algumas bolas de sorvete de diferentes cores e sabores em uma taça, é possível observar que na superfície as bolas não se confundem, cada uma mantém seu sabor e contornos definidos. No meio da taça, é possível observar que as bolas se mesclam, mas ainda mantendo suas cores e sabores facilmente distinguíveis. Já no fundo da taça as cores e os sabores estão completamente misturados e não é possível identificar nem pelo paladar nem pelo olhar os sabores originais. O autor faz uma analogia para explicar os três planos constitutivos dos grupos (Ávila, 2008, p. 32):</p><p>Crédito: Fanfo /Shutterstock.</p><p>1.º cada pessoa tem uma identidade própria e sua singularidade a distingue dos demais;</p><p>2.º as trocas estabelecidas entre os membros deixam evidente o plano das identificações; as identidades se confundem, pois, pela convivência, uns passam a portar características dos outros. É o momento em que acontecem as trocas, a comunicação e a dinâmica de grupo.</p><p>3.º plano em que já não se observa mais a individualidade, e sim, a massa.</p><p>Mesmo na psicanálise individual (análise pessoal), estão envolvidas as relações transferenciais e todas as relações que “habitam” no indivíduo: sua história de vida, suas tradições culturais, sociais. Ainda que a análise se dê predominantemente no primeiro plano (sujeito singular),</p><p>a proposta de Ávila é que o indivíduo também seja considerado em suas identificações e no que nele aparece como massa, ou seja, como eu-coletivo. O mesmo autor adverte que isso não é o mesmo que defender a ideia de inconsciente coletivo de Jung. Ávila justifica seu alinhamento com a psicanálise freudiana e se fundamenta principalmente no texto “Totem e tabu”, escrito no mesmo ano em que houve a ruptura entre Freud e Jung. Ainda sobre esse tema, vamos sintetizar algumas conclusões dadas por Ávila (2008, p. 34-37):</p><p>· quando pensamos no grupo, temos que desfazer a ideia de que o grupal é feito pelos indivíduos; o correto é reconhecer que o indivíduo é feito pelo grupal;</p><p>· não falamos por conta própria, e sim, “somos falados”;</p><p>· é quando o ego fracassa que emerge o sujeito do inconsciente (no ato falho que mostra o desejo), mas ninguém suporta ficar o tempo todo no inconsciente;</p><p>· o indivíduo aparece no ego, que já é um produto das configurações vinculares;</p><p>· o mais difícil é conceber o transubjetivo, aquilo que é produto da massa em nós, que nos faz perder os contornos e a singularidade.</p><p>Com base na percepção anteriormente apresentada, podemos identificar o quanto ainda é um desafio a institucionalização das grupoterapias nas Escolas de Psicanálise. Quando se trabalha com grupos, é bastante frequente observar que a concepção teórica do psicanalista o faz analisar singularmente cada um dos membros (psicanálise em grupos) ao invés de analisar a mentalidade grupal como sendo um único paciente (psicanálise de grupo).</p><p>Fica mais fácil quando os grupos são homogêneos e se formam já na origem, por conta das suas identificações, que seria o plano intermediário da metáfora da taça de sorvete. Por exemplo: pacientes enlutados pelo Covid, grupo de Alcóolicos Anônimos.</p><p>Se a psicanálise surgiu em um contexto epidemiológico marcado pela histeria, o que temos hoje é um contexto marcado pela ansiedade e depressão. Um dos objetivos para o desenvolvimento sustentável é a saúde e o bem-estar (ODS 3), e um dos indicadores é análise e monitoramento da Taxa de mortalidade por suicídio.</p><p>ODS é a sigla para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que fazem parte da chamada “Agenda 2030”. Trata-se de um pacto global assinado durante a Cúpula das Nações Unidas em 2015 pelos 193 países membros. A agenda é composta por 17 objetivos ambiciosos e interconectados, desdobrados em 169 metas, com foco em superar os principais desafios de desenvolvimento enfrentados por pessoas no Brasil e no mundo, promovendo o crescimento sustentável global até 2030. (ONU, 2023)</p><p>Em outros objetivos, a exemplo do ODS 5, 8 e 10, a psicanálise de grupos encontra alinhamento e, por ser um dispositivo para potencializar o alcance das metas, pode ser este um campo de atuação que a sociedade nos convoque a participar e para o qual será necessário que os psicanalistas se especializem por meio da experiência analítica com grupos, estudos e debates entre seus pares. Disso, que se resulte a atuação em diferentes cenários para além da clínica individual.</p><p>NA PRÁTICA</p><p>Um primeiro exemplo prático que precisa de destaque é a clínica do autismo. Precisamos compreender que a formação do vínculo K não depende só da capacidade materna de rêverie, da habilidade para exercer a função alpha. No autismo, há outros determinantes que limitam a capacidade do bebê para a formação de vínculo K quando ocorre em casos mais graves. As mães de crianças autistas sofreram muito quando prevalecia a hipótese de ser “culpa da mãe” ou de serem acusadas de “mães geladeira”. Bion e outros médicos psicanalistas reconhecem condições clínicas inatas no bebê que podem impedir ou limitar o desenvolvimento da capacidade de simbolização.</p><p>Conectar emoção com pensamento é uma experiência diária e muito frequente. Quando o bebê tem as condições biológicas suficientes, aprendem a simbolizar com suas mães e repetem o resto da vida.</p><p>Já um exemplo prático em relação aos grupos: são diversos os grupos dos quais participamos, um deles e cada vez mais necessário na atenção à saúde mental é a participação do psicanalista como membro de uma equipe em que atuam outros profissionais. Uma equipe de trabalho é um grupo do qual participamos como membros e nem sempre temos um líder. Será preciso negociar funções, expectativas e o modo de funcionamento do grupo. Em grupo, exercemos a capacidade de ser continente e de projetar nosso conteúdo esperando continência. A cada conflito ou angústia, precisamos parar para entender o que está acontecendo ali.</p><p>Já existem algumas experiências muito bem-sucedidas para o trabalho de psicanalista como membro de uma equipe/grupo multiprofissional. O dispositivo da Clínica Ampliada é um deles. Por meio desse modelo de atuação, o psicanalista amplia sua interface com outros profissionais envolvidos no processo de cuidado, sem perder sua identidade e sua ética. É um exemplo de atuação em equipe, interprofissional, da qual o psicanalista faz parte.</p><p>Saiba mais</p><p>Para saber mais sobre isso, recomendamos a leitura do folheto “Lembretes e sugestões para orientar a prática da clínica ampliada e compartilhada”, disposto no link a seguir. Disponível em: <https://www.pucsp.br/prosaude/downloads/bibliografia/folheto_clinica_ampliada.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2023.</p><p>FINALIZANDO</p><p>Nesta etapa, demos destaque para exemplo de situações práticas que acontecem nos grupos e no atendimento clínico individual. Em todos os casos, há evidências de mecanismos de defesa do tipo identificação projetiva que podem resultar em processos saudáveis, evolutivos, de simbolização (+K) ou podem perpetuar e cronificar mecanismos de defesa primitivos, principalmente a projeção e a identificação projetiva, que aparecerá com mais evidência quando a criança deixar de conviver exclusivamente com seus pais (grupo social primário) e passar a ter relações sociais com outros grupos (secundários): escola, amigos, clubes, e mais tarde, trabalho.</p><p>Pela teoria aqui apresentada, é possível resgatar em análise o vínculo K e produzir avanços na capacidade de simbolização por meio da ajuda do psicanalista, que atuará favorecendo a passagem do vínculo de amor-ódio para o vínculo do conhecimento, pela atividade reflexiva e analítica, procurando o que está acontecendo no aqui-agora. É esta a tarefa do psicanalista: favorecer a simbolização, conectar emoção e pensamento.</p><p>image5.jpeg</p><p>image6.jpeg</p><p>image1.png</p><p>image2.jpeg</p><p>image3.jpeg</p><p>image4.jpeg</p><p>ficado alarmada com a mudança do clima do hospital), essa experiência durou ape- nas seis semanas. Uma das sementes que germinou dessa curta experiência foi o hospital Northfield tornar-se o berço da “comunidade terapêutica”, cujo modelo, após a guerra, ganhou uma enorme expansão, principalmente nos Estados Unidos. (Zimerman, 2011, p. 105)</p><p>Dar oportunidade para a manifestação do sujeito e para a formação de grupo, em uma instituição marcada pela centralização da hierarquia, pela autoridade vertical (e não horizontal) entre seus membros pode ter sido realmente assustador.</p><p>A sociedade psicanalítica também não se sentia confortável pelo que chamava de “pressão de circunstâncias” para que a psicanálise fosse adaptada para atender necessidades decorrentes da guerra. Isso também aconteceu com a psicoterapia breve, que, mesmo tendo sido desenvolvida por psicanalistas, precisou se separar dela, criando um referencial teórico próprio e constituindo-se como outra modalidade psicoterapêutica, diferente do método clássico da psicanálise. Käes (2000, p. 9) escreve sobre uma recomendação que Melanie Klein fez a Bion para que renunciasse ao seu interesse por grupos.</p><p>Logo após a Segunda Guerra Mundial (terminada em 1945) foi muito maior a demanda social por tratamentos à saúde mental e, ainda assim, a psicoterapia de grupos e a psicoterapia breve eram vistas pela sociedade psicanalítica como “uma rendição humilhante às pressões de circunstâncias que levam a resultados transitórios, superficiais, pro forma” (Malan, 1981, p. 19).</p><p>Muitos dos princípios usados por Bion nos grupos com os oficiais do Exército durante a Segunda Guerra e que causaram insegurança, por exemplo: a observação do relacionamento interpessoal entre comandante e seus liderados, atualmente configuram como critério de seleção não apenas no exército, mas também em todas as instituições que se pautam pelo modelo de liderança, governança e gestão participativa.</p><p>No pós-guerra, mesmo nos atendimentos clínicos individuais, a psicanálise precisou enfrentar algumas dificuldades que levou a sociedade psicanalítica a expandir seu campo de atenção do indivíduo para a família, especialmente no tratamento da psicose e para a escuta clínica de famílias.</p><p>Durante longos anos a psicanálise ficou centrada nas teorias sobre o sujeito. Só posteriormente é que surgiram as teorias sobre o grupo para, nas últimas décadas, passar a existir todo um investimento na construção de teorias vinculares, que fazem confluir as teorias de grupo e as do sujeito (Kaës, 2000).</p><p>Paralelamente a este período histórico, se fortalecia a abordagem sistêmica especialmente nos Estados Unidos desde a década de 1940. Até a década de 1970 já estava bem delimitada a teoria do método para o atendimento de grupos. Casais e famílias passaram a ser atendidos clinicamente como organizações grupais.</p><p>No pós-guerra, Bion desenvolveu novos conceitos metapsicológicos com base em seu trabalho na clínica Tavistok em Londres. Passou a se dedicar ao trabalho com grupos terapêuticos que se caracterizavam por não ter um objetivo nem regras pré-definidas. Bion fazia poucas intervenções e esperava que a organização surgisse do grupo.</p><p>TEMA 4 – GRUPO SEM LÍDER</p><p>Pela sua experiência com a técnica de “grupo sem líder”, segundo Zimerman (2011), Bion chegou a algumas conclusões importantes:</p><p>1. Nem sempre uma liderança que é formalmente designada coincide com a que surge espontaneamente no grupo;</p><p>2. São muitos os tipos de lideranças espontâneas;</p><p>3. Um grupo sem nenhuma liderança tende à dissolução.</p><p>Podemos compreender que a técnica grupo sem líder não quer dizer que o grupo não terá um líder, mas sim que não será necessariamente o psicanalista o líder, ou que o líder não será determinado pelo psicanalista. Dependendo da intencionalidade, será mais adequado esperar que a liderança surja do grupo ou reconhecer a liderança que já existe no grupo.</p><p>Da experiência com a técnica grupo sem líder no hospital se desenvolveu a ideia de comunidade terapêutica. Outra situação bastante atual é reconhecermos nas nossas comunidades quais são as lideranças que emergiram sem que tivessem sido instituídas. Observem na sua comunidade quais são os movimentos sociais e a quem se confere autoridade. É possível que vocês percebam que a pessoa que tem o cargo de “autoridade sanitária” não seja tão reconhecida socialmente como líder, quanto uma benzedeira, por exemplo, a quem a população recorre quando precisa de tratamento à saúde.</p><p>Atualmente estamos vivendo uma crise nas autoridades tradicionalmente constituídas, tais como pais, padres, juízes, professores, por exemplo. Há um movimento social de seguir líderes não por relações verticais, mas sim por relações horizontais, de afinidade. As pessoas são gregárias e elas tendem a identificar seus líderes e buscar neles um pertencimento, uma filiação, uma associação ou qualquer outro nome que se constitua assim como se fosse uma família. Alguns exemplos são aqueles em que a pessoa refere a si mesma como se o seu sobrenome fosse o grupo ao qual pertence: Carlinhos da Beija-Flor.</p><p>Da mesma maneira com que os agrupamentos acontecem por afinidade, também os líderes surgem da psicodinâmica do grupo. Segundo Bion (2017), os grupos podem assumir características de:</p><p>1. Dependência em relação a um líder,</p><p>2. Defensivas (luta ou fuga com o líder inimigo) ou</p><p>3. Pareamento, quando acreditam que o líder será o redentor e que fará desaparecer todas as dificuldades dos seus seguidores (Messias).</p><p>TEMA 5 – TRABALHO COM GRUPOS</p><p>Conforme sintetizados por Zimerman (2011, p. 106), com base nos estudos com grupos, Bion delimitou os seguintes conceitos:</p><p>· Mentalidade grupal: alude ao fato de que um grupo adquire uma unanimidade de pensamento e de objetivo, o qual transcende aos indivíduos, e se institui como uma entidade à parte;</p><p>· Cultura do grupo: resultado do conflito entre duas forças a necessidade do grupo (mentalidade grupal), e as necessidades individuais dos membros do grupo;</p><p>· Valência: termo utilizado pela Química para se referir ao número de combinações que um átomo tem com os outros. Bion se refere aqui à aptidão de cada indivíduo combinar com os demais;</p><p>· Cooperação: se refere à combinação de duas ou mais pessoas que interagem de modo racional. É uma designação própria para Grupos de Trabalho (GT);</p><p>· Grupo de Trabalho (GT): está voltado para aspectos conscientes e racionais que as pessoas combinam para realizar uma tarefa;</p><p>· Grupo de pré-supostos básicos (SB): é o modo de funcionamento de grupo mais primitivo, funcionando sob os moldes dos processos primários mais inconscientes. Bion observava se a psicodinâmica dos liderados em relação ao líder era por: dependência, defensivas ou por pareamento;</p><p>· Dimensão atávica de grupo: o ser humano tem a tendência inata a unir-se a outros humanos e formar famílias, tribos ou clãs;</p><p>· Grupo de Trabalho Especializado: se refere a Instituições tais como a Igreja e o Exército que acabam por estimular na população uma reação de dependência, perseguição (luta ou fuga), por exemplo;</p><p>· As lideranças: para Bion, o líder emerge do grupo. Usou como exemplo a frase de Churchill na Inglaterra: “se vocês me elegeram como líder, só me cabe fazer o que todos esperam de mim”;</p><p>· Grupo sem líder: técnica utilizada para a seleção de oficiais por dinâmica de grupos quando o objetivo era avaliar a aptidão para liderança e/ou subordinação;</p><p>· Relação do gênio como o Establishment: Gênio seria o inovador, contestador, já establishment seria tudo aquilo que já vem sendo perpetuado como tradição no lugar. Para explicar, Bion usou o exemplo de Jesus, que era o gênio, portador de ideias novas, mas que ameaçava o establishment, ou seja, aquilo que já era tradicionalmente aceito naquela época e lugar. O establishment reage segregando o gênio (bode expiatório) ou tenta absorvê-lo para o próprio establishment.</p><p>· O grupo e os mecanismos psicóticos: Bion estudou os mecanismos psicóticos e primitivos, e seu foco não eram os mecanismos neuróticos tais como Freud priorizou.</p><p>· A transferência do grupoterapeuta:</p><p>Bion considerou indispensável que o grupoterapeuta funcione como um continente adequado para as identificações projetivas do grupo uns nos outros. A transferência do grupoterapeuta é chamada de contratransferência e pode ser mais bem reconhecida na atividade de supervisão da prática clínica. O esperado é que o grupoterapeuta reconheça as sensações que o grupo lhe causa, e com base nisso, consiga ser empático.</p><p>NA PRÁTICA</p><p>Com relação ao modo como Bion recomendava a interpretação da transferência na relação psicanalítica, o psicanalista Py, que foi seu paciente, conta uma experiência em que relatou a Bion sobre a viagem para chegar ao seu consultório, tendo saído do Brasil para encontrá-lo no interior da França, local onde seria realizada a sessão. Isso envolveu um trecho de avião, dois trechos de trem, outro de ônibus e mais um trajeto caminhando pedindo por informações mais precisas aos moradores locais ao longo do caminho.</p><p>Ao relatar essa experiência na primeira sessão (e única) que teria com Bion naquela ocasião, Py iniciou o relato de sua odisseia para dizer o quanto foi difícil chegar lá. Ao final do relato Bion falou: “Difícil, mas você chegou; o que você não está conseguindo mesmo é fazer análise.” (PY, citado por Zimerman, 2011, p. 266).</p><p>Este é um exemplo que nos mostra o quanto Bion não estava comprometido em analisar o discurso em relação à figura do analista, mas sim em relação ao momento com o analista, colocando atenção em “o que faz com que ele tenha passado por tudo isso para fazer uma sessão e chegar aqui para me contar esses detalhes ao invés de falar sobre o que interessa”. Assim Bion interpretou a resistência, falando sobre a dificuldade de entrega do conteúdo principal na análise, que são emoções, processos subjetivos, e não fatos concretos que aconteceram no dia.</p><p>Tempos depois, nos Estados Unidos, Py teve a oportunidade de fazer sessões frequentes com Bion e também descreve a maneira como Bion interpretava a transferência: Em algumas situações em que manifestou insatisfação com o trabalho de Bion, ouviu como resposta que se ele (paciente) conseguisse suportá-lo e suportar seus defeitos e ineficiências, talvez pudesse tirar algum proveito de sua companhia (PY, citado por Zimerman, 2011, p. 268).</p><p>FINALIZANDO</p><p>Wilfred Bion foi um psiquiatra e psicanalista inglês e se dedicou ao estudo das dinâmicas grupais. Iniciou seu trabalho no exército inglês, depois trabalhou como psiquiatra e psicanalista na Clínica Tavistock, em Londres. Foi paciente de Melanie Klein por oito anos e na sua obra é possível identificar a influência de Sigmund Freud e Melanie Klein para a compreensão da personalidade e para definir o que ele entendia ser a função do analista.</p><p>Bion tinha preferência por falar sobre a psicanálise tal como era na prática. Para Bion, a teoria é simples, mas a prática da psicanálise é muito difícil. Enquanto Freud nos ensinou a compreender a psicanálise, Bion nos ensinou a aplicar a psicanálise em diferentes contextos. Bion também rompeu com a padronização da psicanálise clássica, cujo tratamento era em atendimentos clínicos individuais, e inovou aplicando a psicanálise para o trabalho com grupos e em contextos institucionais.</p><p>O trabalho com grupos deu visibilidade a Bion, mas sua proposta terapêutica não era aceita por todos os psicanalistas. Bion sofreu represálias da Sociedade Psicanalítica por seu método pouco convencional, especialmente quando passou a dar mais espaço para o místico em seus escritos, e assim como Jung, foi acusado de fazer algo fora do que era psicanálise.</p><p>Bion, junto com Anzieu e Kaës, na França, e Pichón-Rivière, na Argentina deram as bases para a psicanálise de grupos, para a psicanálise institucional e para o que mais recentemente vem sendo desenvolvido, que é a psicanálise das configurações vinculares.</p><p>A CLÍNICA EM BION</p><p>AULA 2</p><p>Nesta etapa, temos como objetivo situar a experiência com grupos de Bion no contexto de outras experiências com psicoterapia de grupos, considerando a história e o desenvolvimento desse método de tratamento.</p><p>Inicialmente vamos recordar o histórico de desconfortos que a psicanálise já provocou na humanidade e dentro de sua própria instituição. Diversos são os consensos e dissensos, dentre eles o reconhecimento da psicanálise de grupos como parte do método clássico psicanalítico.</p><p>Há diferenças teórica e metodológica quando se fala em psicoterapia de grupos e psicanálise de grupos. Vamos destacar alguns dos pioneiros no tratamento psicoterapêutico com grupos, especialmente falando de Jacob Moreno, que foi um aluno de Freud, alinhado com a noção de inconsciente, mas que se distanciou em outros pontos e deu início ao psicodrama, sem perder a conexão com a psicanálise em diversas questões.</p><p>Especificamente falando do trabalho com grupos na psicanálise, vamos ver que houve um período em que a instituição da “psicanálise clássica” acolheu o método, mas depois o evitou, de modo que ainda hoje não é um consenso essa modalidade de tratamento, não pelo seu fracasso terapêutico, pelo contrário, mas pela sua ameaça a o que está estabelecido como técnica pura, ou método clássico da psicanálise.</p><p>Desde que Freud escreveu a Psicologia das massas, ou Psicologia de grupo e a análise do eu, publicado em 1921, há sustentação teórica para o trabalho com grupos na psicanálise freudiana. Foi nessa base que Bion se sustentou para desenvolver os seus modelos conceituais, também influenciado por outros estudiosos sobre as dinâmicas dos grupos, tais como Jacob Moreno.</p><p>É esperado que ao final desta etapa cada um de vocês consiga situar historicamente o atual momento do trabalho psicanalítico com grupos e em instituições, para que seja possível, com base nisso, imaginar os desafios e as perspectivas possíveis.</p><p>TEMA 1 – A QUARTA FERIDA NARCÍSICA</p><p>A psicanálise é revolucionária desde sua origem. É inovadora, contestadora e incômoda por subverter o establishment, ou seja, o estabelecido, o que é considerado correto. Foi assim quando Freud situou a psicanálise entre a medicina e a religião, quando desenvolveu um método de tratamento que escapava à ciência positivista da época e também não permitiu que fosse incorporado pela mitologia ou pela fé.</p><p>A psicanálise é caracterizada como uma revolução epistemológica que produziu uma grande mudança diante da medicina neurológica e das psicologias centradas na consciência.</p><p>Segundo Marcondes (2010), três teorias a partir do Renascimento até os dias atuais constituem rupturas em relação à concepção de centralidade do homem como centro do universo, como centro das espécies e finalmente como o centro de si mesmo.</p><p>1. Teoria heliocêntrica de Copérnico, que desloca a Terra como centro do universo e a coloca em movimento entorno do Sol. Segundo o autor (2010, p. 258), “[…] esse novo modelo de cosmo abala profundamente as crenças tradicionais do homem da época, não só quanto à ordem do universo, mas também quanto ao seu lugar central nessa ordem”.</p><p>2. Publicação da obra de Darwin A origem das espécies, que consiste em uma teoria da seleção natural que afirma que a espécie humana resulta de um processo de evolução natural, tendo o macaco como ancestral.</p><p>3. Teoria psicanalítica, de Sigmund Freud, fundamentada com base na concepção do conceito do inconsciente. A teoria freudiana (metapsicologia) afirma que não temos controle pleno de nossas ações e que há causas determinantes da nossa ação que nos são desconhecidas (Marcondes, 2010).</p><p>No livro Grupos: uma perspectiva psicanalítica, de 2016, o autor Lazslo Antonio Ávila apresenta textos contemporâneos de R. Kaës e D. Anzieu que definem grupalidade como a quarta ferida narcísica da humanidade, junto com a revolução copernicana, o darwinismo e a psicanálise:</p><p>4. O fato novo é a consideração do “eu” como decorrente da psique grupal, ou seja, o eu como indivíduo surge com base nas relações intersubjetivas precoces. A ideia de eu nasce dentro da configuração de um desejo do outro, afirmativa que ainda não foi aceita e ainda é bastante polêmica para a psicanálise clássica.</p><p>TEMA 2 – PSICOTERAPIA DE</p><p>GRUPOS</p><p>Os pressupostos da psicologia social já podem ser identificados nos ensinamentos dos filósofos Platão (428-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) e mais recentemente em Augusto Comte (1793-1847).</p><p>Em tempos de guerra, os pesquisadores buscam entender os fenômenos sociais, tais como a motivação humana e os padrões de comportamento, no entanto o interesse científico nas relações sociais era muito mais para atender necessidades dos países que precisavam ser reconstruídos do que para atender necessidades individuais das pessoas. As pesquisas sobre a dinâmica de grupos se popularizaram após a II Guerra Mundial (1939-1945), mas o interesse e a sistematização teórico-metodológica surgiram muito antes.</p><p>Por ocasião do 1º Congresso Latino-americano de Psicoterapia de Grupo, que ocorreu em Buenos Aires, na Argentina, em setembro de 1957, o professor e psicanalista brasileiro David Zimmermann atribuiu a Joseph H. Pratt o início desse método psicoterapêutico, em 1905 nos Estados Unidos.</p><p>Em um artigo de revisão sobre o panorama histórico do surgimento e da evolução da psicoterapia de grupo, os autores Bechelli e Santos (2004) também apontam Joseph H. Pratt como o fundador da psicoterapia de grupo, em 1905, terapia empregada em pacientes tuberculosos, no Massachussetts General Hospital (Boston/EUA).</p><p>Ao mesmo tempo que Pratt desenvolvia suas atividades na América, do outro lado do Atlântico Moreno começava a lançar as sementes da psicoterapia de grupo e do psicodrama. Entre 1910 e 1914, formou grupos com crianças nos parques de Viena e improvisou representações nas ruas com prostitutas, procurando desenvolver grupos de discussão e de autoajuda.</p><p>Bechelli e Santos (2004) classificam historicamente o desenvolvimento da psicoterapia de grupos da seguinte maneira:</p><p>· Fase de expansão teórica, nos anos 50 e 60.</p><p>· Fase de consolidação, na década de 70.</p><p>· Fase de amadurecimento, nos anos 80 e 90.</p><p>Finalmente, examina-se sua evolução recente, dando ênfase especial à construção de novos modelos. Nos últimos anos, diversas técnicas desta modalidade de tratamento têm sido desenvolvidas para atendimento de populações específicas de pacientes, com as mais diversas condições médicas e psicossociais, o que sugere uma tendência crescente rumo a uma maior especificidade de sua aplicação. (Bechelli; Santos, 2004, p. 242)</p><p>Pela psicanálise, Sigmund Freud publicava em 1921 o texto Psicologia das massas ou Psicologia de grupo.</p><p>Quando Bion teve suas primeiras experiências com grupos no exército inglês, foi especialmente com Freud e Klein que manteve alinhamento teórico, no entanto, para o alinhamento metodológico, a experiência de Jacob Moreno (psicodrama) com a sistematização da psicoterapia de grupos também foi considerada.</p><p>· Jacob Levy Moreno a partir de 1910 teve experiências com psicoterapia de grupos nas praças. Em 1921 criou o teatro da espontaneidade. Em 1932, sistematizou o método da psicoterapia de grupo: psicodrama.</p><p>· Freud em 1921 publicou Psicologia de grupo e a análise do eu.</p><p>· A teoria geral dos sistemas (1930), de Ludwig Bertalanffy.</p><p>· Sherif em 1936 publica A psicologia das normas sociais, na qual aponta como os sujeitos se aproximam no grupo para criar normas para situações ainda não estruturadas.</p><p>· W. Bion (1948): Experiência com grupos na psicanálise.</p><p>· Kurt Lewin, psicólogo alemão, criador da teoria de campo, fundou após a 2ª Guerra Mundial, nos Estados Unidos, o Centro de Pesquisa para Dinâmicas de Grupo, na Universidade de Michigan, desenvolvendo estudos experimentais sobre o relacionamento humano. Lewin popularizou a expressão dinâmica de grupo e a introduziu no discurso das ciências sociais.</p><p>· Serge Moscovici (1978), com a publicação do livro A representação social da psicanálise, na França.</p><p>· S. H. Foulks, a partir de 1948, em Londres, cria a prática da psicoterapia psicanalítica de grupo com enfoque na Gestalt: o grupo forma uma nova identidade diferente da soma das identidades individuais.</p><p>· Pichon-Rivière, da Escola Argentina de Psicanálise, sistematizou o trabalho com grupos operativos. Grande interface com processo de ensino-aprendizagem.</p><p>· D. Anzieu e R. Kaes, membros da Escola Francesa de Psicanálise, na década de 60, propõem o conceito de aparelho psíquico grupal.</p><p>No Brasil, com abordagem psicanalítica, foram institucionalizados serviços de psicanálise de grupos em diversos estados por iniciativa dos psicanalistas: Alcyon Baer Bahia, Walderedo Ismael de Oliveira, David Zimmermann, Werner Kemper, Júlio Gonçalves dos Santos, Oscar Rezende de Lima, Luis Miller de Paiva, Lygia Amaral, Bernardo Blay Neto, dentre outros.</p><p>No entanto, para Silveira (2015, p. 257), essa parte da história corre risco de ser esquecida, pois, a partir dos anos 1970, a busca pela "verdadeira psicanálise" marca o início do afastamento entre o trabalho com grupos e o movimento analítico, principalmente o ligado à IPA. A partir desse momento, o grupo cada vez menos será uma questão para essas “sociedades de psicanálise”.</p><p>TEMA 3 – PSICODRAMA</p><p>Moreno é o criador do psicodrama. Estudou filosofia e medicina em Viena e teve Sigmund Freud como professor. “Elaborou suas ideias em Viena, à sombra de Freud e da psicanálise” (Marineau, 1992, p. 9).</p><p>O contexto no qual desenvolveu o seu trabalho era o de pós-guerra, em que Viena vivia um ambiente confuso e tenso, sem uma liderança definida. Moreno coloca uma cadeira vazia no palco, com uma coroa, e propõe como tema que cidadãos experimentassem ocupar o papel de líder, cabendo à plateia o julgamento.</p><p>O estilo de Moreno era provocativo, tanto na maneira de ser quanto na de agir. Criava polêmicas com seu trabalho, por exemplo: fazia grupos com prostitutas vienenses com o objetivo de ampliar a conscientização de sua situação e fortalecê-las como grupo, além do seu trabalho em campo de refugiados.</p><p>Nos Estados Unidos, Moreno sistematizou o psicodrama como um método alternativo de psicoterapia (Marineau, 1992). O psicodrama é um método prático, e seu aprendizado inicial é pela prática, buscando posteriormente a sua compreensão teórico-metodológica, assim como os psicanalistas recomendam que idealmente deve ser compreendida a psicanálise: primeiro pela experiência prática de se envolver com a análise pessoal e depois buscar compreensão teórica e metodológica.</p><p>O psicodrama tem um ritual: aquecimento, dramatização e compartilhamento. Essa ritualística é resultado da influência que Moreno recebeu do teatro. Suas referências eram no teatro grego, no teatro mambembe e em antigos rituais tribais.</p><p>O psicodrama tem três etapas básicas e uma complementar, que acontece apenas em grupos quando o objetivo é o ensino-aprendizagem do método:</p><p>· Aquecimento: primeiro momento da sessão, quando o diretor avalia como o grupo ou ocliente/paciente está e promove estimulações para gerar espontaneidade e emergir o tema protagonista ou a pessoa protagonista de um grupo.</p><p>· Dramatização: segundo momento da sessão, em que o protagonista coloca sua história em cena, por meio da ação dramática.</p><p>· Compartilhamento: terceiro momento, quando o grupo (ou, no caso de uma sessão bipessoal, o cliente/paciente) é convidado a refletir sobre como a dramatização o impactou.</p><p>· Processamento: quarto momento, acontece opcionalmente em grupos de aprendizagem, em que todos são convidados a olhar para a sessão de psicodrama sob os aspectos técnicos-metodológicos.</p><p>Em uma sessão de psicodrama, o terapeuta é o diretor e tem várias funções: produtor, terapeuta e analista.</p><p>Para Moreno, o ser humano é um ser espontâneo e criativo. Ele discordava de Freud em relação ao nascimento ser considerado uma experiência traumática. Para Moreno, “o ato natal é o oposto do trauma. É uma catarse de profundo alcance tanto para a mãe como para o bebê” (Moreno, 1975, p. 118).</p><p>Moreno considerava, concordando com Freud, que existem processos inconscientes individuais. No entanto, para ele, além do inconsciente individual, há processos inconscientes que englobam a inter-relação. Moreno também criou o conceito de brecha entre a fantasia e a realidade, considerando que,</p><p>em determinado momento da vida, a pessoa começa a fazer a distinção entre o que é real e o que é imaginário. Antes, a realidade e a fantasia são uma coisa só (Moreno, 1975, p. 84).</p><p>Moreno fala em estados conscientes e inconscientes, contrapondo-se à ideia de entidade psíquica. Para ele, os estados conscientes e inconscientes são como um corredor, em que a pessoa anda indo e vindo, passando por estados conscientes e inconscientes, sem separação topográfica. Para Moreno (1975), a maneira como me vejo e a maneira como enxergo o mundo são construídas socialmente. Na perspectiva do psicodrama, aquilo que chamamos de realidade é, na verdade, uma realidade social. Pode-se perceber que Moreno coloca uma ênfase maior nas relações sociais, enquanto Freud coloca ênfase maior nas relações significativas, nas relações parentais (grupo social primário), enquanto as relações sociais já seriam um grupo secundário.</p><p>· Grupos sociais primários: aqueles formados pela família nuclear, pois desde o nascimento o bebê interage com membros de sua família, estabelecendo relações que vão se ampliando à medida que crescem e expandem suas atividades (creche, família de amigos próximos). Nesse caso, os membros possuem contato pessoal direto e estabelecem laços mais íntimos de relação (Zimerman, 2011).</p><p>· Grupos sociais secundários: a relação é impessoal e ocorre pelas trocas de interesses mútuos. As relações são mais racionais, o contato social geralmente é temporário e determinado por trabalho, as comunicações são temporárias e podem ser anônimas. Os canais de comunicação são presenciais, por telefone, e-mail etc. Como exemplo, podemos citar grupos políticos, colegas de sala de aula ou de trabalho (Zimerman, 2011).</p><p>TEMA 4 – PSICOLOGIA DAS MASSAS</p><p>Pelo título do livro, pode-se criar uma expectativa de que Freud se posicione em relação à psicanálise de grupos, quando na verdade não é exatamente sobre isso que os textos tratam, no entanto é um fundamento teórico essencial especialmente para psicanálise social e institucional.</p><p>Publicado em 1921, o livro tem a tradução para o inglês e a tradução brasileira definindo como título Psicologia de grupo e a análise do ego, quando no original a referência era para as massas, e não para os grupos.</p><p>Freud (1976, p. 92) inicia esclarecendo que a psicanálise não despreza as relações do indivíduo com os outros e que a psicologia individual não se distingue da psicologia social ou coletiva e diz que a psicologia de grupo se interessa “pelo indivíduo como membro de uma raça, de uma nação, de uma casta, de uma profissão, de uma instituição, ou como parte componente de uma multidão que se organizaram em grupo, numa ocasião determinada, para um intuito definido.” Cada indivíduo participa de vários desses grupos, e, sendo assim, são várias mentalidades grupais, algumas delas contraditórias.</p><p>Freud falou em mente grupal e considerou que ela fica evidente quando há alguma homogeneidade, ou alguma afinidade, um laço que una os membros do grupo. A questão importante, para Freud, era entender por que as pessoas cedem ao contágio quando estão em grupo. O texto de Freud foi especialmente importante para o estudo do que Hittler, na década de 20, conseguiu fazer, ao tornar-se chefe supremo do Partido Nazista e comandar a nação em um regime completamente totalitário de dominação.</p><p>Ao longo dos capítulos que compõem esse livro de Freud, o que se fortalece é o delineamento conceitual de uma teoria da identificação. Freud apresentou a suposição de que as relações amorosas ou os laços emocionais estão na essência da mente grupal. Acreditava que os membros se deixavam influenciar pelos outros para se manter em harmonia com eles, o que seria um impulso de amor.</p><p>Considerando que os grupos podem se diferenciar em temporários ou permanentes (ou duradouros), homogêneos ou não homogêneos, naturais ou artificiais, primitivos ou altamente organizados, com ou sem líder, Freud escolheu problematizar os grupos altamente organizados, permanentes e artificiais, tais como: o exército e a igreja católica. Nesses dois casos, há um líder (comandante/Cristo), e habitualmente seus membros são tratados como iguais/irmãos. Com isso, Freud aponta uma relação de amor entre eles: um laço que os une. Esse laço prende as pessoas e implica em restringir a liberdade das pessoas em um grupo. Especialmente no exército, quando essa relação libidinal deixa de existir, quando um membro já não se orienta com base no comando do líder e preocupa-se apenas consigo mesmo, frequentemente se observaram sintomas de ansiedade e medo/pânico. O perigo parece maior quando se está sozinho.</p><p>Para Freud (1976), é a presença do laço que caracteriza um grupo. Se não houver essa relação libidinal, haverá apenas uma reunião de pessoas, mas não um grupo. Será pelo laço/libido que as antipatias e peculiaridades indesejadas serão toleradas, concluindo que o amor atua como fator civilizatório no desenvolvimento da humanidade. Freud (1976, p. 133) vai dizer que “a identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa.” E continua dizendo que a simpatia surge da identificação e relaciona comportamentos sociais de massa com esse mecanismo da identificação, tais como os sintomas de massa: quando há uma aparente imitação do sintoma ou do comportamento do outro.</p><p>Poder-se-ia dizer que os intensos vínculos emocionais que observamos nos grupos, são inteiramente suficientes para explicar uma de suas características: a falta de independência e iniciativa de seus membros, a semelhança nas reações de todos eles, sua redução, por assim dizer, ao nível de indivíduos grupais. (Freud,1976, p. 127)</p><p>Sobre a premissa de alguns escritores contemporâneos de Freud de que o homem é um animal gregário, Freud discorda dizendo que “o homem é um animal de horda, uma criatura individual numa horda conduzida por um chefe” (Freud, 1976, p. 154).</p><p>Zimerman (2011) reconhece nítida influência do texto Psicologia das massas e análise do ego. Bion parte dos modelos do exército e da igreja, considerando que são “grupos de trabalho especializados”. O que Bion definiu como “supostos básicos” é uma referência ao funcionamento do processo primário nos grupos desestruturados, caracterizados por Freud.</p><p>TEMA 5 – PSICANÁLISE DE GRUPOS</p><p>A premissa da psicanálise de grupos é que o indivíduo forma o grupo, e o grupo forma o indivíduo. A realidade psíquica não é apenas individual. “Na verdade, nenhum indivíduo, por mais isolado que esteja no tempo e no espaço, deve ser encarado como externo a um grupo ou não possuidor de manifestações ativas de psicologia de grupo” (Bion, 1970, p. 156). Com base nas referências psicanalíticas, Ávila (2016) resgata alguns elementos para construir o conceito de grupo:</p><p>· O indivíduo não existe.</p><p>· O eu é feito de relações.</p><p>· O eu é múltiplo.</p><p>· O eu é “eu – outro”.</p><p>· O eu é plural.</p><p>Ávila (2016) considera que o indivíduo e o grupo são como as duas faces de uma mesma moeda. Os processos humanos são processos de participação. Um ato agressivo, por exemplo, tem que ser entendido com base nas relações em que o individuo está imerso quando se forma esse ato. A agressividade,embora expressa no indivíduo, manifesta-se como fenômeno interacional, produto do contexto, ato superdeterminado pela história do seu autor e dos coparticipantes. Grupo e indivíduo são, então, fenômenos imbricados.</p><p>Desta maneira, o eu (unitário, individual) só existe em relação ao outro, e isso também é reconhecido pela psicanálise clássica, de forma que a ideia de indivíduo é ilusória, pois o indivíduo nunca foi sozinho nem independente, mas sim sempre afetado pelos outros e os afetando. O “indivíduo” não é o mesmo em todos os grupos. “Cada sujeito carrega uma grupalidade antes de vir para o grupo e uma vez em grupo ele, interagindo, gera uma nova totalidade. Esta é a realidade psíquica grupal” (Ávila, 2009, p. 46). O autor também afirma que o grupo é invisível, pois o que nos interessa no grupo é uma dimensão latente.</p><p>Bion nos mostrou que os indivíduos contribuem anonimamente</p><p>para produzir o grupo e que o grupo tem experiências emocionais através do indivíduo. A realidade do indivíduo é grupal e o que é grupal é gerado pelos indivíduos em suas inter-relações. Em um grupo existem indivíduos com as suas mentes, emoções e capacidades, mas a partir do momento que estão em grupo passam a ter experiências que os coletivizam. (Ávila, 2009, p. 50)</p><p>A psicanálise de grupos se insere no campo das relações humanas, ampliando assim a interface da psicanálise clássica individual com outras ciências e com a sociedade. O conceito de indivíduo passa a ser utilizado psicanaliticamente para se referir ao grupo. Os indivíduos são parte do grupo, que por sua vez também pode ser estudado em sua individualidade.</p><p>NA PRÁTICA</p><p>Podemos identificar diversos exemplos em que o livro sobre a psicologia das massas se aplica à realidade: Revolução Francesa, movimento nazista, polarização de eleitores durante eleições presidenciais, torcidas de futebol durante um campeonato e aparência física são exemplos de como se pode observar o laço emocional (libido) que une seus membros. É da identificação que surge a empatia e a grupalidade. Cada grupo, com seu líder, protege sua verdade. Vivendo em uma sociedade livre e democrática, é frequente a existência de tensões entre grupos que defendem pautas ou times diferentes.</p><p>Mesmo se tratando do grupo psicanalítico (sociedade psicanalítica), alguns de seus membros, tais como Sándor Ferenczi, Carl Jung e W. Bion, inicialmente foram incorporados como membros do grupo de psicanalistas, mas, quando começaram a defender pontos diferentes daqueles do grupo, sofreram represálias e ameaças de serem expulsos do grupo. Os que continuam defendendo seus próprios ideais, mais do que os ideais do grupo, rompem o laço que os une e desintegram-se do grupo. Não é fácil bancar essa posição. Há muita ansiedade, medo e pânico envolvido. Por isso é fácil encontrar quem recue para não perder a segurança e a proteção do grupo, que também pode ser um casamento, um trabalho. Quando suportam sair do grupo, é possível que outro grupo seja criado, e foi assim com o método da psicoterapia breve, reconhecido por volta de 1950 como outro método de tratamento, fundamentado na psicanálise de Ferenczi, mas se diferenciando do método clássico; foi assim com Jung, que fundou a psicologia analítica, e o desenvolvimento da psicanálise de grupos que atualmente vêm sendo apresentada como psicanálise vincular ou grupanálise.</p><p>FINALIZANDO</p><p>A principal premissa da psicanálise de grupos é a noção de indivíduo. A questão em discussão é que o eu se forma com base nas inter-relações e que o grupo também é um indivíduo.</p><p>Nesta etapa, foi possível perceber o quanto o método de tratamento de grupos é desconfortável para a psicanálise clássica, pela ameaça que causa a esta de perder sua especificidade. O problema não é por desmerecimento, mas sim por ser diferente do que está preestabelecido para o que a psicanálise deve ser. Bion foi recomendado a deixar de lado o trabalho com grupos para se manter como membro da sociedade psicanalítica.</p><p>Este movimento de grupo se dá pela manutenção de laços que unem seus membros, e esses laços só são mantidos se houver identificação. A psicologia social, a filosofia e outras ciências sociais, assim como outras abordagens psicológicas, tais como gestalt, sistêmica e psicodrama, têm nos grupos o seu objeto principal de intervenção, mas a psicanálise sempre teve o indivíduo como objeto principal de intervenção e ainda resiste em considerar o grupo como um indivíduo e pensar em tomá-lo como cliente em um processo psicanalítico.</p><p>Desta etapa, também podemos destacar que reunião de pessoas não é necessariamente um grupo e que as primeiras relações significativas do bebê são com o seu grupo primário (os de casa) para só depois se expor a relações com o grupo social secundário.</p><p>Com base em Freud (Psicologia das massas), os grupos podem se diferenciar em:</p><p>· Temporários ou permanentes (ou duradouros).</p><p>· Homogêneos ou não homogêneos.</p><p>· Naturais ou artificiais.</p><p>· Primitivos ou altamente organizados.</p><p>· Com ou sem líder.</p><p>É importante diferenciar o estudo dos grupos, tal como Freud fez em Psicologia das massas, do método de tratamento psicanalítico de grupos terapêuticos. Uma coisa é o estudo, e a outra é a finalidade terapêutica. O estudo dá base teórica (fundamentação) para o método. No entanto, nossa regra é que a clínica é soberana à teoria, pois é a clínica que afirmará ou não o que foi teorizado sobre ela. Neste caso, Bion contribuiu mais sobre o tratamento psicanalítico de grupos do que Freud, pois a experiência de Bion foi prática, enquanto a de Freud, não. O que Bion escreveu surgiu da sua clínica, da mesma forma como aconteceu com a produção teórica de Freud sobre a histeria e de Lacan sobre a psicose.</p><p>O psicanalista francês René Kaës está entre as referências contemporâneas mais relevantes, junto com Didier Anzieu (falecido em 1999). No Brasil, temos importantes publicações sobre o tema feitas por psicanalistas membros do Núcleo de Estudos em Saúde Mental e psicanálise das configurações vinculares – NESME, dentre os quais estão: Pablo Castanho e Lazslo Antônio Ávila.</p><p>A psicanálise de grupos é especialmente importante para pensar em intervenções em diferentes contextos, para além da clínica individual em consultório, mas também em instituições, em escolas e na sociedade.</p><p>A CLÍNICA EM BION</p><p>AULA 3</p><p>Olá. Já sabemos quem foi Bion e compreendemos a sua relevância para a psicanálise de grupos. Sabemos que a experiência de Bion com grupos se desenvolveu com um tipo de grupo ligado ao exército, considerado organizado, homogêneo, o que chamamos de grupos de trabalho especializados. Freud, ao avaliar a psicologia das massas, teorizou sobre grupos altamente estruturados, como a Igreja e o exército, mas também sobre grupos desestruturados, naturais, que funcionam com base em processos primários. Nesses grupos, as pessoas são facilmente contagiadas pelo movimento da massa. Em grupos desestruturados, as pessoas não se conhecem, mas demonstram a mesma identificação a uma ideia, uma causa, seja por amor ou por ódio. Você poderá estudar mais sobre a psicologia no volume XVIII das Obras Completas de Sigmund Freud.</p><p>Vamos iniciar esta etapa avaliando a identificação, a empatia e o laço social que existe nos grupos, sejam eles em relação a um líder ou a uma causa em comum. Buscamos, com isso, nos aprofundar na teoria de Bion, avaliando o que acontece entre as pessoas, tema que será útil para compreender, posteriormente, a relação interpessoal no grupo, os seus conflitos, além da relação transferencial no momento psicanalítico entre psicanalista e paciente, seja ele um indivíduo ou um grupo.</p><p>Vocês irão perceber que Bion não pensou em teorias, mas sim em modelos. Como ele gostava muito de se comunicar de forma prática, fazendo com que os leitores se envolvessem pessoalmente com o que ele apresentava na teoria, Bion fazia referência a situações já conhecidas das pessoas, usando metáforas para explicar algo. Por exemplo: o processo da digestão e a relação entre um continente e um conteúdo.</p><p>Esperamos transmitir a você um pouco da intenção de Bion, com a compreensão pragmática do que ele quis nos ensinar. Ao final desta etapa, esperamos que você perceba a contribuição teórica de Bion tem aplicabilidade tanto na clínica individual quanto em psicanálise de grupos, psicanálise institucional e também na análise de questões sociais, como temas étnico-raciais e ideológicos.</p><p>TEMA 1 – MODELOS PSICANALÍTICOS DE BION</p><p>Bion sempre se comprometeu com a aplicabilidade prática da teoria psicanalítica. Ele chamava seus pensamentos de modelos, buscando representar um arcabouço mais flexível e adaptável do que a teoria. Durante uma conferência em Buenos Aires, em 1968, Bion estabeleceu:</p><p>Agora queria começar a referir-me aos modelos. São apenas estórias imaginárias, idealizadas com o propósito de que exerçam uma porção de efeitos psicológicos sobre nós, no sentido de ajudar-nos a ter uma ideia sobre uma teoria, uma</p><p>ideia mais abstrata, porém que, não obstante, se mantém a uma distância reconhecida com respeito ao que podemos enfrentar em um consultório. (citado por Zimerman, 2011, p. 47)</p><p>Bion usou o termo modelo para evitar que seus ensinamentos fossem tomados pelos analistas como teoria e, consequentemente, como algo definitivo e rígido. Sendo assim, tais modelos teriam aplicabilidade em todos os casos da prática clínica. Bion sempre recomendou que o uso dos modelos fosse transitório, pois deveriam ser utilizados enquanto fossem úteis, em consonância com a experiência emocional real de cada psicanalista em particular. Depois, deveriam ser descartados (Zimerman, 2011).</p><p>Os modelos se apresentam com características das metáforas, como exemplos práticos, lógicos, conhecidos ou concretos, que levam os psicanalistas a imaginar a psicodinâmica na prática. Para isso, recorreu, entre outros, a modelos biológicos, místicos e matemáticos (Zimerman, 2011). Vejamos alguns deles.</p><p>Modelos biológicos:</p><p>· Para favorecer a compreensão dos processos de pensar e sentir, Bion usou a metáfora de um aparelho gastrointestinal, sugerindo que existe um processo de digestão do pensamento e do sentimento (introjeção, absorção e expulsão). Para Bion, há um processo linear e temporal, como ocorre com o alimento que entra pela boca, é digerido e sai pela evacuação. A mente se assemelha a um aparelho digestivo que digere experiências emocionais, o que propulsiona: crescimento, atrofia, expulsão das fezes, infecções, inflamações e até mesmo morte.</p><p>· Para compreender o processo de satisfação por meio das realizações, podemos partir do modelo sexual de concepção, que inicia na fecundação, passa pela gestação e termina no nascimento.</p><p>Modelos científicos:</p><p>· Bion utilizou as letras L, H e K para se referir aos seguintes vínculos: amor, ódio e conhecimento. As letras representam as iniciais das palavras em inglês: L = Love (amor); H = Hate (ódio); K = Knowledge (conhecimento).</p><p>· Para a compreensão do tempo, na prática clínica, para além da compreensão cronológica, Bion se refere ao tempo por meio do signo O (letra O) ou 0 (número zero), que designam uma abstração, representando um ponto de origem no espaço infinito.</p><p>TEMA 2 – MODELO DA GRADE</p><p>Segundo David Zimerman (2011), a grade é um modelo desenvolvido por Bion, inspirado pelas coordenadas cartesianas (eixo x e y, na vertical e na horizontal). A partir da grade, ele faz uma leitura da relação entre um e outro. Bion usava tabelas, com linhas e colunas, como se fossem coordenadas matemáticas, buscando monitorar e registrar os momentos dos seus pacientes ao longo da análise. Quando preenchidas, elas serviam de imagem mental ao analista, para que ele pudesse identificar avanços e retrocessos em termos de organização psíquica, considerando ainda a maneira de pensar ao longo do processo analítico. Era assim que Bion estudava os seus casos clínicos: analisava e fazia registros em grade ao final das sessões, ao invés de relatar o conteúdo das sessões na forma de texto.</p><p>Quadro 1 – Utilização do pensamento</p><p>A grade de Bion articula oito linhas com seis colunas.</p><p>· Eixo vertical: representado pela quantidade de linhas em uma tabela. Bion registrava o que era evolutivo, genético. Cada linha é um estágio do desenvolvimento do pensamento. A grade de Bion é composta de 8 linhas com letras, iniciando na letra A, que representa o pensamento mais primitivo, e evoluindo até a letra H, que representa o pensamento mais evoluído.</p><p>· Eixo horizontal: representado pelo número de colunas da tabela, de 1 a 6. Aqui, Bion registrava conteúdos referentes à utilização dos pensamentos e das emoções. Posteriormente, Bion orientou que fossem criadas outras linhas ou colunas, a partir da necessidade de cada psicanalista, para a análise de seus casos clínicos, buscando deixar aberta a possibilidade de ampliação do conhecimento científico sobre os processos genéticos e evolutivos do ser humano.</p><p>Vejamos alguns dos objetivos com o uso da grade.</p><p>· Dispor de um método científico de notação dos fenômenos que se passaram na sessão de análise, com a substituição de anotações trabalhosas.</p><p>· Possibilitar uma comunicação semântica mais precisa entre os psicanalistas, ou ainda entre um autor e seus leitores.</p><p>· Possibilitar que o psicanalista seja supervisor de si mesmo. Estímulo ao exercício de reflexão psicanalítica, com uma avaliação mais clara do que está acontecendo: crescimento, estagnação ou involução do paciente.</p><p>· Visualizar o nível e a qualidade de utilização dos pensamentos, tanto por parte do paciente como por parte do analista, considerando a comunicação entre ambos.</p><p>Com seus modelos, Bion evitava que a prática psicanalítica se perdesse em abstrações teóricas sem relação com fatos concretos. O seu modelo é eficaz porque devolve o sentido do concreto para uma investigação que pode ter perdido o contato com o seu background (acontecimentos anteriores), por meio da abstração e de sistemas dedutivos teóricos que estejam associados. O modelo é a concretização de uma abstração.</p><p>Existem ainda diversos outros modelos, mas o mais conhecido de todos é o modelo continente-conteúdo.</p><p>TEMA 3 – MODELO CONTINENTE-CONTEÚDO</p><p>Conteúdo é o que preenche um continente, não é mesmo? O conteúdo desta etapa está sendo recebido por todos vocês, e depois será digerido, até o momento em que será compreendido e assim vocês poderão expulsá-lo, como acontece com as fezes, seja em uma prova ou explicando-o para alguém – ou seja, em algum momento o conteúdo será posto para fora novamente. Nesse momento, podemos entender ainda que nasceu algo que estava sendo gestado. O que estava sendo gestado é o processo de aprendizagem. Quando você atesta que aprendeu e que consegue aplicar ou ensinar o conteúdo para outras pessoas, é porque nasceu uma competência. Trata-se de um momento de realização!</p><p>É possível imaginar esse processo todo, não é mesmo? Eis a intenção de Bion: que a teoria pudesse ser imaginada. O conteúdo é depositado no continente, ao mesmo tempo em que o continente precisa conter o conteúdo, assim como o psicanalista acolhe a angústia do seu paciente. Podemos pensar ainda na relação mãe-bebê, quando a mãe acolhe o choro do rebento. O analista ou a mãe acolhem o conteúdo e depois o devolvem a quem o projetou, mas em doses homeopáticas. É muito lindo poder entender a teoria – ou, melhor dizendo, os modelos de Bion – de maneira concreta, quase visual, não é mesmo?</p><p>Na prática clínica, segundo Zimerman (2011), o modelo mais conhecido, mais divulgado e de maior aplicabilidade prática é o modelo continente-conteúdo, que avalia o destino das identificações projetivas (conteúdo) de um bebê ansioso para dentro de sua mãe (continente). Bion usou os símbolos de gênero para identificar o continente e o conteúdo:</p><p>· ♀ Continente</p><p>· ♂ Conteúdo</p><p>Esse modelo é especialmente importante para representar o vínculo entre o conteúdo dirigido (projetado) por alguém e a capacidade dessa pessoa de ser continente para esse conteúdo. Podemos acompanhar o pensamento de Bion em três possibilidades de desfecho.</p><p>· Quando não há continência: o bebê chora e a mãe não sabe o que fazer: “Não sei o que ele (bebê) quer, não sei o que está acontecendo”. A ansiedade do bebê deixa a mãe ansiosa. A mãe não faz por mal, ela apenas não compreende o bebê. Por vezes, ela também chora ou fica impaciente. O que acontece aqui? O bebê projeta na mãe a sua angústia/desprazer, mas a mãe não dá continência a esse conteúdo. A mãe é refratária, o conteúdo chega nela e acaba voltando para o bebê.</p><p>· Quando há continência: o bebê chora e a mãe o acolhe no colo, dizendo: “Bem, bem, não é para tanto...” A mãe se mantém calma, sorri, usa um tom de voz tranquilo e em poucos instantes o bebê se acalma. O que aconteceu aqui? O bebê projetou o seu medo de morrer (seio mau) e o depositou na mãe. A mãe aceita ser portadora da angústia, a desintoxica, e com isso a criança se acalma. A mãe foi capaz de desintoxicar o seio mau e de manter o seio bom. Desse modo, ao se identificar (identificação projetiva) com a mãe,</p><p>o bebê já não apresenta mais o medo anterior. O bebê pode continuar sentindo fome (desprazer/seio mau), mas já não se mostra tão desorganizado, como se estivesse à beira da morte.</p><p>· Quando há hostilidade: o bebê chora e a mãe não ama o filho. Existe um problema de hostilidade, por parte do bebê ou da mãe. Ocorre em estruturas psicóticas, impedindo o acolhimento do conteúdo projetado. Quem precisava ser continente também projeta um conteúdo hostil no bebê. O que aconteceu aqui? O bebê projeta na mãe o seu medo de morrer, mas a mãe não está ali (desamparo), ou o bebê experimenta hostilidade por parte da mãe ou ele próprio teme a mãe. Ao se identificar com quem deveria ser continente, o bebê acaba por recuperar um terror sem nome, muito pior do que o medo de morrer anterior.</p><p>Para compreender a aplicabilidade prática dessa explicação na clínica, não entenda a mãe como a mulher que deu à luz um bebê, mas faça uma generalização. O ♀ continente pode ser entendido como o grupo, o coletivo, o contexto; pode ser um médico, pode ser Deus, um líder, o analista etc.</p><p>A complexidade de Bion fica ainda maior quando todos os modelos são considerados ao mesmo tempo. Mas não se preocupe, pois assim como qualquer habilidade, essa competência vem com a persistência. Comece pelo conhecimento, passe para a aplicabilidade prática dos modelos em separado, e só então busque estabelecer relações entre eles. A grade é o exemplo de maior complexidade, por isso o melhor a fazer é deixar esse modelo para um segundo momento.</p><p>Lembre-se de que a competência clínica vem da reunião dos seguintes fatores.</p><p>· Conhecimento: estudo teórico; saber.</p><p>· Habilidade: relacionar teoria e prática, problematizar a realidade, analisar casos clínicos de outros psicanalistas e iniciar a sua própria atividade clínica; fazer.</p><p>· Atitude: entregar-se ao processo analítico com o paciente, para que seja possível entender na pele o que a teoria diz; ser.</p><p>TEMA 4 – FUNÇÃO CONTINENTE DO ANALISTA</p><p>Bion nos ensina que todas as pessoas apresentam, em sua personalidade, uma parte neurótica e uma parte psicótica. A parte psicótica é mais primitiva, aquele estado de indiferenciação, de confusão que predomina nos anos iniciais do desenvolvimento, mas que nunca deixa de existir nas pessoas. Assim como um corredor, o que somos é um mesmo continuum, ou seja, alcançamos um equilíbrio na parte neurótica da personalidade, mas se vivemos o extremo encontramos a nossa parte psicótica.</p><p>Para compreender a função continente do analista, vamos recorrer à Melanie Klein e a Winnicott. No um período de maior desorganização da personalidade, típico em bebês, a pessoa está em uma condição de dependência absoluta. Nesse caso, o holding é o primeiro estágio de cuidado necessário.</p><p>Na fase da dependência absoluta, o cuidado materno satisfatório é o de conter, de satisfazer para que o bebê tenha a ilusão de ser onipotente, de dominar a realidade. Isto possibilita que o bebê desenvolva, posteriormente, a capacidade de sentir confiança e segurança. A função continente é uma parte do holding.</p><p>1. Holding (dependência absoluta).</p><p>2. Viver com (junto, mas não tão misturado).</p><p>3. Função simbólica estabelecida (diferenciação entre pai, mãe, bebê).</p><p>A capacidade de continência do psicanalista, segundo Zimerman (2011), refere-se à capacidade de poder conter dúvidas, incertezas, angústias e sentimentos de ódio, tanto em relação a seu paciente, quanto em si próprio, para depois poder devolvê-los em doses mitigadas e modificadas. É só através do modelo de seu terapeuta que o paciente é capaz de desenvolver a sua capacidade de ser continente de suas próprias angústias e de suportar as suas dores, ao invés de simplesmente evitá-las.</p><p>A fase de dependência absoluta pode ser identificada em pacientes em estado de regressão intenso na relação transferencial, situação que demanda do analista a função de holding. Freud também valorizava essa capacidade do analista: o pai da psicanálise estabeleceu que a regra fundamental da prática é a atenção flutuante, ou atenção uniformemente suspensa em relação a tudo o que escutamos. Esse o pressuposto básico para que seja possível conter e sustentar o conteúdo do paciente.</p><p>Bion (citado por Zimerman, 2011) refere-se à função continente como uma capacidade negativa, que implica em uma atitude interna do terapeuta, que entra na sessão sem memória, sem desejo e sem compreensão. Isso porque se o analista entra na sessão com a mente saturada de coisas (saberes, lembranças de sessões passadas, anseios de cura, pressão para ser capaz de interpretar corretamente), ele não será o continente adequado, pois já está lotado de conteúdos próprios. O terapeuta deve estar disponível para escutar, deve estar inteiramente aberto para a experiência com o paciente. O único desejo deve ser garantir que o processo de análise aconteça. A cura pode ser uma consequência, mas nunca um objetivo, muito menos um compromisso.</p><p>Freud (1976, p. 154) utilizou a metáfora do telefone, que consiste em aceitar que o outro entre em sua casa, dentro de você, e lhe fale. O analista se oferece como um órgão receptor ao inconsciente do paciente, que transmite, fala, projeta. “Ele deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente”.</p><p>O receptor retransforma em ondas sonoras as oscilações elétricas e da linha telefônica, que tinham sido produzidas com as ondas sonoras do emissor. A capacidade de interpretação do analista decorre da capacidade de receber (ouvir e sentir) e de ser continente. Às vezes, as emoções serão muito violentas, de modo que será preciso aceitar a projeção, deixá-la descansar dentro de si. Frequentemente, a projeção será tema da análise pessoal do psicanalista, que deve digerir e diferenciar o que é seu do que é projeção do outro. Dessa maneira, desintoxicado, ele é capaz de decifrar a comunicação do paciente, e então interpretar.</p><p>Por isso, dizemos que o inconsciente do analista é um instrumento de trabalho, ou seja, ele é convocado para que seja utilizado durante a sua prática clínica como psicanalista. Fica claro, nesse exemplo, o motivo pelo qual é indispensável que o psicanalista também faça uma análise pessoal, antes e durante o exercício profissional de psicanalista clínico.</p><p>Muitas vezes, o psicanalista se sente irritado, confuso, impaciente, intimidado, erotizado; sente ainda ciúmes, inveja ou impotência; outras vezes, percebe que está agindo mecanicamente com o paciente. O modelo continente-conteúdo nos ajuda a compreender a relação de transferência e contratransferência, bem como para compreender o mecanismo de identificação projetiva, conforme desenvolvido por Bion e Winnicott (que já não é exatamente o mesmo das proposições de Freud e Klein). Os tipos de pensamento e de emoção utilizados nessas situações serão determinantes para os avanços ou os retrocessos do processo psicanalítico.</p><p>Muitos conflitos podem surgir da não capacidade de ser continente. Nas manifestações acaloradas de torcidas ou eleitores em campanha, é comum que os grupos se juntem por afinidade, por compartilhar de uma identidade. O grupo se retroalimenta das suas certezas, pois cada um tem para si um conjunto de verdades. Quando alguém de fora apresenta uma crítica, outro ponto de vista, contrário ao nosso, isso ameaça a nossa sensação de certeza, plenitude, ideal. Essa situação aponta um furo no que antes era belo. A tendência do grupo é hostilizar o invasor e voltar ao grupo que o contém plenamente.</p><p>O mesmo acontece quando ainda não há uma relação de parceria, uma aliança terapêutica entre paciente e analista, nas primeiras entrevistas, e o analista faz uma interpretação que desagrada o paciente. A interpretação pode estar certa, mas como não havia nenhum L = Vínculo Love (amor), ela não surte efeito. Pode acontecer, assim, de o paciente procurar outro analista.</p><p>Em especial na psicanálise de grupos, o mecanismo de identificação projetiva determina a qualidade da comunicação entre os membros. Bion nos diz que, quando predomina a identificação projetiva patológica,</p>