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MÉTODOS PSICANALÍTICOS 
AULA 1 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Profª Juliana Santos 
 
 
 
 
2 
CONVERSA INICIAL 
 Esta caminhada, num primeiro momento, tem o objetivo de inserir o 
contexto histórico do ato de fundação da psicanálise. Para alcançar os nossos 
trilhos, percorreremos os de Freud visando estabelecer uma visão 
epistemológica dos acontecimentos que deram origem à história do movimento 
psicanalítico. 
 Em seguida, buscaremos estabalecer os métodos que compõem a prática 
psicanalítica, por meio da análise dos textos que ficaram conhecidos como os 
escritos tecnicos de Freud, sem deixar, contudo, de articulá-los aos 
desdobramentos conceituais propostos por Lacan, que foi, indiscutivelmente, o 
melhor leitor e intérprete dos pensamentos freudianos. 
 Por último, mas não menos importante, trabalharemos a questão da ética 
em psicanálise, assim como a formação do analista e o desejo do analista, que 
põe em ato a clínica psicanálitica. 
TEMA 1 – FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E EPISTEMOLÓGICOS DA 
PSICANÁLISE 
 Na origem da psicanálise encontramos o paradigma das mulheres 
histéricas, as quais, para exprimir as suas aspirações pela liberdade, não tinham 
outro recurso a não ser os seus corpos atormentados. Foi, então, por meio da 
presença estarrecedora e de seus relatos clínicos que Freud pôde erigir uma 
nova teoria que se inaugurava como uma práxis. 
 Depois de sua experiência como residente no hospital La Salpêtrière, em 
Paris, quando teve a oportunidade de atuar ao lado de seu mestre, Charcot, 
médico renomado no trato das histéricas, Freud retorna a Viena com o objetivo 
de retomar o caso de Anna O., uma antiga paciente de Breuer, que lhe deixara 
imensamente impactado. Trata-se de uma jovem paciente, de boa educação, 
que adoecera quando cuidava de seu pai acamado. Vale sublinhar que Ana O. 
era devotamente afeiçoada a seu pai. 
 Seus sintomas consistiam em um quadro de variadas paralisias com 
contraturas, inibição e confusão mental. Foi observado pelo seu médico que, 
quando Ana O. conseguia expressar com palavras as suas fantasias emotivas, 
ela tinha um alívio desses estados nebulosos de consciência, aos quais se 
encontrava submetida no momento. Por meio dessa descoberta Breuer passou 
 
 
3 
a hipnotizá-la, com o objetivo de questioná-la para fazê-la dizer o que lhe oprimia 
a mente. Dessa forma, os ataques de confusão depressiva foram separados e, 
em seguida, Breuer usou a mesma técnica para eliminar suas inibições e 
distúrbios físicos. Contudo, em seu estado de vigília, a paciente não conseguia 
fazer nenhum tipo de ligação com a origem dos seus sintomas, mas, quando 
hipnotizada, de pronto descobria a ligação que faltava. 
 O fato é que todos os seus sintomas retornavam quando ela voltava a 
cuidar de seu pai, o que fez levantar a hipótese de que eles tinham um 
significado, mas ficavam sob efeito de um resíduo ou reminiscência daquela 
situação emocional. No decorrer do seu tratamento, foi possível verificar que, 
toda vez que lhe vinha um pensamento ou impulso que ela evitava ou o suprimia 
estando na cabeceira do enfermo, o que surgia no lugar desses pensamentos 
era o sintoma. 
 O Caso Anna O. surpreendeu tanto a Freud que, quando ele retorna a 
Viena, volta disposto a construir um novo saber científico que pudesse tratar 
esse tipo de paciente, mesmo que o preço a pagar fosse a sua amizade com 
Breuer. 
1.1 Estudos sobre a histeria 
 O Estudo sobre a histeria, publicado em 1895 por Freud e Breuer, pode 
ser lembrado como o ponto de partida da psicanálise, pois de fato podemos 
afirmar que as investigações e as descobertas clínicas feitas com base nesse 
fenômeno, preparam o terreno para a prática da clínica psicanalítica. 
 As observações feitas nesse estudo de Freud e Breuer revelaram que a 
origem dos sintomas histéricos não podia ser estabelecida por interrogatório, 
mesmo que ele fosse feito de forma minuciosa, pois de fato as pacientes não 
seriam capazes de recordar da experiência vivida e, muitas vezes, não existia 
nenhuma suspeita de conexão casual entre o evento desencadeador e 
fenômeno patológico. 
 Nesse período, a principal técnica utilizada nos pacientes era a hipnose, 
pois ao hipnotizá-los as lembranças da época em que os sintomas surgiram pela 
primeira vez poderiam ser evocados por sugestão. 
 Em busca da origem dos sintomas Freud e Breuer passaram a 
estabelecer uma relação comum entre a patogênese da histérica e as neuroses 
traumáticas: 
 
 
4 
Nas neuroses traumáticas a causa atuante da doença não é o dano 
físico insignificante, mas o afeto do susto – o trauma psíquico. De 
maneira análoga, nossas pesquisas revelam para muitos, se não para 
a maioria dos sintomas histéricos, causas desencadeadoras que só 
podem ser descritas como traumas psíquicos. Qualquer experiência 
que possa evocar afetos aflitivos – tais como os de susto, angustia, 
vergonha ou dor física – pode atuar como um trauma dessa natureza. 
(Freud, 1996a, p. 41) 
Assim, o trauma psíquico ou, como especifica Freud, a lembrança 
traumática, atua no psiquismo como um corpo estranho, que, mesmo muito 
tempo depois de sua entrada, permanece como um agente em plena função, 
portanto mente e corpo não funcionam de forma separada. 
 A novidade trazida por Freud e Breuer foi que, por meio de suas 
observações, puderam constatar, com grande surpresa, que “cada sintoma 
histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, quando 
conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia 
provocado e despertado o afeto que o acompanhara” (Freud, 1996a, p. 42). 
Desse modo, quanto mais o afeto fosse transformado em palavras, maior alívio 
era experimentado pelas pacientes. De igual modo, se as lembranças não 
fossem recordadas sem afeto, invariavelmente não produziam resultados. 
Portanto, segundo essas constatações, o processo psíquico deve ser levado de 
volta à sua nascente para então ser concebido em expressão verbal. 
1.2 Clínica com as histéricas: primeiras descobertas 
 O sofrimento histérico consistiria, então, em lembranças traumáticas, cujo 
tratamento seria a rememoração do acontecimento, no entanto, para produzir 
um efeito de suspensão do sintoma, era necessário que houvesse uma reação 
energética, a qual diz respeito ao modo como o paciente descarrega os afetos, 
de ordem voluntária ou involuntária. Segundo Freud, tal reação deve ocorrer em 
grau suficiente, ou seja, a ponto de produzir um alívio; caso contrário, quando a 
reação é reprimida, o afeto permanece vinculado à lembrança. Ele ainda destaca 
que a linguagem tem a mesma característica, pois, quando reprimida, tende a 
fazer adoecer. Dessa forma, um afeto só poderia ser ab-reagido, ou seja, 
elaborado, se passasse por um processo catártico. 
Paradoxalmente as lembranças traumáticas não estariam inteiramente 
disponíveis na lembrança, sendo impossível acessá-las em estado de vigília. 
Freud então adere à técnica da hipnose, sob a declaração de que “Apenas 
 
 
5 
quando o paciente é inquirido sob hipnose é que essas lembranças emergem 
com a nitidez inalterada de um fato recente” (Freud, 1996a, p. 45). 
TEMA 2 – TÉCNICAS E MÉTODOS QUE PRECEDERAM A PSICANÁLISE 
Nos primeiros anos de trabalho clínico de Freud, momento em que 
também ocorrera a publicação do Estudo sobre a histeria, o principal método 
terapêutico utilizado era o catártico, descoberto por Breuer, cuja função se 
resumia em transformar em palavras a cota de afeto preso de uma experiência 
traumática e responsável por manter o sintoma. No entanto, para que houvesse 
uma ab-reação do afeto, era indispensável que essa produção viesse com uma 
quantidade necessária de carga energética, pois só dessa forma proporcionaria 
uma descarga emocional. O fato é que “a lembrança do trauma psíquico atuante 
não se encontra na memória normal do paciente, mas em sua memória ao ser 
hipnotizado”(Freud, 1996a, p. 47). 
2.1 Hipnose 
 A hipnose foi a principal técnica utilizada com as histéricas no período que 
precedeu a publicação do Estudo. Mas, ao contrário do modo como a utilizavam 
naquela época, via sugestão ou proibição, Freud a empregou pelo método de 
Breuer, cuja técnica era usada para determinar a origem dos sintomas. Quando 
obtinha o conhecimento da origem do sintoma, esse conteúdo era comunicado 
aos pacientes a fim de despertar o afeto que acompanhara o momento 
traumático e produzir uma catarse para que enfim houvesse uma ab-reação do 
afeto. 
 Mas, ainda que Freud tenha insistido e demostrado um grande interesse 
pela hipnose, ele apontou para algumas dificuldades ao trabalhar com ela, pois, 
em sua experiência clínica, pôde verificar que “nem todas as pessoas que 
exibiam sintomas histéricos [...] podiam ser hipnotizadas” e que, portanto, havia 
neuroses menos suscetíveis à sugestão hipnótica (Freud, 1996a, p. 272). 
 Outro ponto levantado por Freud é que nem sempre as comunicações 
feitas sobre as revelações hipnóticas suscitavam no paciente de vigília as 
mesmas reações do estado hipnótico. Assim, questionando suas habilidades 
como hipnotizador, pouco a pouco Freud foi introduzindo novas técnicas que 
pudessem substituir a hipnose. 
 
 
6 
2.2 Concentração 
 Outra das técnicas adotadas por Freud nesse período foi o método de 
concentração, que consistia em deitar o paciente, pedir que ele fechasse os 
olhos deliberadamente e fazer uma pressão sobre a sua fronte a fim de se 
concentrar e evocar novas lembranças. Nessas circunstâncias, Freud pôde se 
dar conta de que havia outro problema a ser superado – a resistência. Portanto, 
o trabalho psíquico deveria ir na direção onde pudesse superar as forças 
psíquicas que se opunham à tomada de consciência das representações 
patogênicas. 
 Com base nessa elaboração, Freud começa a pensar na ideia de defesa, 
em que uma força psíquica, por parte do ego, se oporia ao seu retorno à 
memória, afirmando que “o não saber do paciente histérico seria, de fato, um 
não querer saber” (Freud, 1996a, p. 284). 
2.3 Método catártico em Freud 
 Ao abandonar a hipnose, Freud foi se aprofundando no método catártico, 
oriundo de Breuer, e se empenha em descobrir novas formas de análise. O termo 
análise passa a ser empregado por ele para se referir a essa nova técnica clínica. 
A primeira impressão de Freud sobre seus avanços na análise com seus 
pacientes é relatada assim: 
O material psíquico patogênico aparentemente esquecido, que não se 
acha à disposição do ego e não desempenha nenhum papel na 
associação e na memória, não obstante está de algum modo à mão, e 
em ordem correta e adequada. Trata-se apenas de remover as 
resistências que barram o caminho para o material [...] O material 
psíquico patogênico parece constituir o patrimônio de uma inteligência 
não necessariamente inferior à de um ego normal. A aparência de uma 
segunda personalidade é muitas vezes apresentada de maneira mais 
enganosa. (Freud, 1996a, p. 299-300) 
 Com o desenvolvimento da técnica, agora ela visava remover as barreiras 
da resistência. Para isso, era necessário, segundo as orientações de Freud, que 
o médico se mantivesse na periferia da estrutura psíquica, ou seja, que 
acolhesse a fala sem muitos questionamentos para não criar barreiras, fazendo 
com que o paciente dissesse aquilo de que se lembrasse e soubesse. Assim, 
aos poucos suas resistências eram superadas e isso lhe abriria novos caminhos 
para uma camada mais interna, ainda que o material trazido parecesse 
desconexo, logo seria possível descobrir ligações lógicas. 
 
 
7 
 Freud passo a passo se aproximava do que, mais tarde, ele vai conceber 
como psicanálise. Por enquanto, o método catártico não vislumbrava o problema 
da etiologia das neuroses, ainda que, para ele, o caso Anna O. demonstrasse 
evidências da etiologia sexual, contudo não podia prescindir da colaboração de 
Breuer que inaugurou o método, mas privilegiava a causalidade fisiológica. 
TEMA 3 – INVENÇÃO DA PSICANÁLISE 
 O Estudo sobre a histeria permanecia incompleto, visto que o problema 
da etiologia continuava sem solução, mas com as novas descobertas de Freud, 
o terreno se encontrava preparado para as novas investigações. 
Inevitavelmente, essas investigações custariam a sua popularidade como 
médico, motivo pelo qual Breuer não estava disposto a se arriscar, pois já era 
um médico de renome. Assim, o rompimento com Breuer representou um novo 
começo para Freud, que passou a investigar a vida sexual dos neuróticos e 
fortaleceu a sua amizade Fliess, a quem endereçou muitas cartas contendo a 
sua autoanálise e falando sobre suas descobertas teóricas. 
 As correspondências a Fliess são indiscutivelmente um grande arquivo de 
notas e ideias que resultariam na invenção da psicanálise. Foram nessas 
correspondências que Freud revelou no Rascunho K o grande segredo de sua 
clínica – a experiência primária de gozo, que resultaria em duas repartições da 
clínica: a histeria e a neurose obsessiva (Freud, 1996a, p. 267). 
 O mecanismo de defesa seria responsável por essas repartições, pela 
qual a experiência de gozo na histeria provoca uma repulsa e na neurose 
obsessiva, uma autorrecriminação, pois em ambas estruturas a experiência de 
gozo sofre uma repressão. 
 A teoria da repressão assumiu o lugar central dos estudos com os 
neuróticos, em que o objetivo do tratamento não era mais ab-reação, mas revelar 
os afetos reprimidos substituindo-o por julgamentos que resultariam em uma 
aceitação. 
 Em março de 1896, Freud apresenta pela primeira vez no artigo “A 
hereditariedade e etiologia das neuroses”, o seu novo método, que deixa de ser 
chamado de catarse para ser nomeado de psicanálise. Esse novo método de 
tratamento por meio da fala, inventado por Breuer e adaptado por Freud, visava 
encontrar a origem da doença, pois uma vez revelada e confessada, com a ajuda 
 
 
8 
do terapeuta, os distúrbios psíquicos podiam ser entendidos, tratados e às vezes 
curados. 
 De início, para Freud, a origem da neurose residia em traumas sexuais 
vividos na infância, quando crianças entre dois e cinco anos de idade sofriam 
atentados precoces, acometidos por adultos do seio familiar. No entanto, essa 
teoria não se sustentava por si só. Logo Freud se viu obrigado a abandonar a 
ideia de um adulto abusador de criança na ordem da família burguesa e desloca-
se para a interpretação do discurso, passando a considerar que tais cenas de 
sedução se tratavam, na verdade, de uma fantasia, ou seja, uma representação 
imaginária. Em carta à Fliess, datada de 6 de abril de 1897, escreve sobre a sua 
descoberta: 
O aspecto que me escapou na solução da histeria está na descoberta 
de uma nova fonte a partir da qual surge um novo elemento da 
produção inconsciente. O que tenho em mente são as fantasias 
histéricas, que, habitualmente, segundo me parece, remontam a coisas 
ouvidas pelas crianças em tenra idade compreendidas somente mais 
tarde. A idade em que elas captam informações dessa ordem é 
realmente surpreendentes – dois seis ou sete meses em diante!... 
(Freud, 1996g, p. 293) 
 Sobre a fantasia, que é um material robusto de análise, não nos cabe 
agora abordá-la, mas deixamos mencionado para que se detenham sobre sua 
relevância. Por ora, vamos ao que nos importa – o inconsciente. 
3.1 O inconsciente na psicanálise 
 O termo inconsciente já era empregado muito antes de Freud e a 
psicanálise, mas a conotação do termo ganhou uma nova ordem a partir de toda 
a contribuição da psicanálise como um novo saber: “A psicanálise considera tudo 
de ordem mental como sendo, em primeiro lugar, inconsciente”, ou seja, de uma 
qualidade ulterior da “consciência” (Freud, 1996e, p. 37). 
 Para a filosofia, a consciência e o mental tinham a mesma conotação, não 
se concebendo a ideia de algo mental ser inconsciente. Assim, com o rigorque 
a psicanálise deu ao inconsciente, foi possível instaurar um novo status para a 
compreensão dessa instância psíquica. Garcia-Roza, no livro Introdução a 
metapsicologia freudiana 3, entoa a preocupação de Freud em distinguir o 
conceito de inconsciente para psicanálise da antiga noção dominante: 
A preocupação de Freud é assinalar as diferenças entre o inconsciente 
tal como é concebido por ele e o inconsciente tal como era pensado 
pela filosofia e pela psicologia, e uma das formas de se marcas a 
 
 
9 
diferença é apontando o que o inconsciente freudiano não é. Ele não é 
uma franja ou margem da consciência, também não é o profundo da 
consciência, assim como não é o lugar do caótico e do misterioso. E 
Freud em plena razão, estava preocupado em assinalar essas 
diferenças e em afirmar a irredutibilidade do seu conceito às noções 
até então dominantes. (Garcia-Roza, 2008, p. 209) 
3.2 O inconsciente: o que é isso? 
 É possível que ainda hoje encontremos pessoas querendo localizar o 
inconsciente em alguma parte do cérebro, mas o único lugar possível de localizar 
o inconsciente é na fala. Lacan, que foi o melhor intérprete de Freud, foi 
categórico ao afirmar: “o inconsciente é um fato, na medida em que se sustenta 
no próprio discurso que o estabelece” (Lacan, 2003, p. 479). 
 A dificuldade em responder de forma abrangente à questão do 
inconsciente tem sido a razão de vários equívocos. Freud, no texto Alguns 
comentários sobre o conceito de inconsciente na psicanálise, de 1912, forneceu 
um importante estudo teórico sobre o inconsciente, ele diz: 
o inconsciente é uma fase inevitável que ocorre regularmente nos 
processos que constituem nossa atividade psíquica, e todo ato 
psíquico começa com ato inconsciente e pode assim permanecer, ou 
pode desenvolver-se em direção à consciência, dependendo de 
encontrar ou não resistência. (Freud, 1996c, p. 87) 
Assim, o inconsciente postulado por Freud não se restringe apenas ao 
âmbito patológico neurótico, mas a toda região da mais legítima produção 
humana, ou seja, “nenhuma de nossas ações, escolhas, tendências, desejos 
escapam à ação do inconsciente” (Oliveira, 2013). 
 As formações do inconsciente (atos falhos, lapsos de linguagem, 
esquecimentos etc.) foram formalizadas no texto A psicopatologia da vida 
cotidiana, de 1901, em que Freud sublinha que tais acontecimentos oriundos 
dessa formação não são exclusivos do tratamento psicanalítico, mas fazem parte 
da vida comum, em que todas as escolhas revelam um “determinismo do 
inconsciente” (Jorge, 2005, p. 11) 
 A introdução da noção do inconsciente concebido pelo pai da psicanálise 
foi mais um golpe desferido sobre a humanidade, ao lado de Copérnico, que 
retirou a Terra do centro do universo e de Darwin, que tirou o homem do centro 
da criação. Freud, ao subverter o cogito cartesiano – “Penso, logo, sou”, por ele 
pensa onde não é, descentralizou o homem de si mesmo. 
 
 
10 
 A complexidade do funcionamento do inconsciente se apresenta ao 
tentarmos nos aproximar dele, visto que a única forma é por meio de desvios e 
nunca por via direta. Foi assim que Freud chegou até ele pelos sonhos e pôde 
constatar seu funcionamento. 
TEMA 4 – INTERPRETAÇÃO DO SONHO 
 O sonho é uma das facetas da formação do inconsciente, cujo conteúdo, 
segundo Freud, é constituído de mensagens cifradas, como as dos rádios 
transmissores durante a guerra, que emitiam comunicados que confundiam os 
inimigos. Essas mensagens criptografadas são construídas como um rébus ou 
uma linguagem hieroglífica, termos que foram utilizados por Freud, como nos 
lembra Colette Soler (2012), em seu livro O inconsciente: que é isso? 
 A obra freudiana A Interpretação dos sonhos, de 1900, representa um 
marco na história da psicanálise, visto que, em termos acadêmicos, trata-se, de 
fato, do ato fundante da teoria psicanalítica, pois é nesse momento que Freud 
revela um rico campo de investigação do inconsciente – os processos oníricos. 
 O sonho passou a ser objeto de investigação para Freud quando seus 
pacientes, de forma espontânea, em seus relatos de associação, citavam os 
sonhos em suas conversas. Mas a descoberta do método de interpretação do 
sonho surge com os sonhos do próprio Freud, que ele submente a uma 
autoanálise no capítulo 2 do livro e conclui: “Quando o trabalho de interpretação 
se conclui, percebemos que o sonho é a realização de um desejo” (Freud, 2001, 
p. 135). Trata-se de desejos infantis e reprimidos de caráter sexual; 
particularidade esta que excede as categorias de saúde e enfermidade e que 
permite discernir, para além das neuroses, a eficácia do inconsciente. 
4.1 Métodos de investigação do sonho 
 O sonho apresenta o conteúdo manifesto, que são as imagens de nossa 
memória. Pelo conteúdo manifesto do sonho, podemos chegar ao conteúdo 
latente, que são as conclusões da investigação. Dito de outra maneira, são os 
pensamentos do sonho que se obtêm por meio da análise. Freud (2001, p. 276) 
declara: “É desse pensamento do sonho, e não de seu conteúdo manifesto, que 
depreendemos seu sentido”. 
 
 
11 
 Transformar o sonho manifesto em sonho latente é a problemática do 
método, pois, na maioria dos casos, o sonho latente não é iminente nem para o 
sonhador. Assim, para realizar a tarefa de fazer do sonho uma comunicação, é 
necessário utilizar algumas técnicas. Em Novas conferências introdutórias sobre 
psicanálise, de 1932, Freud retoma as concepções do livro A interpretação dos 
sonhos, para uma nova reflexão sobre a técnica de interpretação e a teoria dos 
processos oníricos. 
 Sobre a técnica de interpretação do sonho, que diz respeito ao método 
psicanalítico, o psicanalista que ouve o relato do sonho deve estar disposto a 
manter-se atento ao que é narrado, mas não manter uma reflexão sobre o 
conteúdo manifesto, pois, ainda que posteriormente possam ser encontrados 
muitos elementos que contribuam com a interpretação, na hora do relato deve-
se desprezá-los. 
 Deve-se pedir ao sonhador para livrar-se das impressões que o sonho lhe 
causou num todo e referir-se a cada parte do sonho contando o que lhe vem à 
mente sucessivamente. Essas associações, providas desde aí, logo lançarão luz 
sobre diferentes partes do sonho, levando ao entendimento do porquê das 
associações com o conteúdo manifesto. Mas Freud adverte: “as associações ao 
sonho ainda não são os pensamentos oníricos latentes” (Freud, 1996f, p. 22) e 
sim o material que servirá para a interpretação da mensagem do conteúdo 
latente. Esse será, portanto, o método para a interpretação do sonho. 
4.2 Processo da elaboração onírico 
 O processo de elaboração onírica consiste em uma das mais importantes 
descobertas de Freud, visto que foi por meio dela que se revelou o 
funcionamento do sistema inconsciente: “A importância dessa constatação foi 
ainda acrescida da descoberta de que, na construção dos sintomas neuróticos, 
estão em atividade os mesmos mecanismos” (Freud, 1996f, p. 27). 
 Trata-se da metáfora, um mecanismo de trabalho do sonho, que revela o 
máximo de alcance da equivocidade da linguagem e é desde esse momento que 
se abre para o inconsciente. A esse funcionamento Freud nomeia de 
deslocamento e condensação. 
 A condensação transforma um pensamento em imagem, dando uma 
equívoca preferência a imagens que admitem um agrupamento, sujeitando o 
material a uma condensação. Freud conclui: 
 
 
12 
Em consequência da condensação, um elemento do sonho manifesto 
pode corresponder a numerosos elementos dos pensamentos oníricos 
latentes; mas também, inversamente, um elemento dos pensamentos 
oníricos pode estar representado por diversas imagens no sonho. 
(Freud, 1996f, p. 29) 
 O deslocamento, por sua vez, é, segundo Freud (1996f), o responsável 
pelas distorções oníricas, os quais estão submetidos à censura. Por meio do 
deslocamento, os afetos são despojados das ideias oníricas e deslocados paraalguma coisa no sonho que não o configurem como o principal, pois essa é a 
única forma de encontrar passagem para o sonho, visto que se trata de um 
conteúdo proibido para a consciência. 
 Mabel Levato (2012) escreve, em seu livro Matapsicología – el 
inconsciente freudiano, que o deslocamento não se esgota em seu efeito 
descentralizador, mas revela ainda um enorme esforço de subversão do que está 
em torno de uma fixação psíquica. “O deslocamento da intensidade comporta 
uma fixação de determinadas representações, demonstrando indícios do 
reprimido” e, citando a Freud, conclui que “O resultado do deslocamento é que 
[...] o sonho só devolve (reflete) uma desfiguração (desloca) o desejo 
inconsciente” (Levato, 2012, p. 80, tradução livre). 
 Com a publicação do livro A interpretação dos sonhos, a psicanálise 
ascende no meio acadêmico e para além dele, ganhando novos adeptos como 
um novo movimento de renovação da psicologia e psiquiatria, criando, 
informalmente, um círculo de discípulos em torno de Freud. 
TEMA 5 – MOVIMENTO PSICANALÍTICO 
 A I Guerra Mundial, iniciada em julho de 1914, coincide com os novos 
rumos tomados por Freud para a psicanálise, pois foi nesse período que ele inicia 
uma série de textos de revisão sobre a sua produção teórica. Paralelamente à 
guerra que se espalhava por toda a Europa, uma outra guerra em particular 
emergia dentro dos corredores da psicanálise, dessa vez travada entre Freud e 
seus principais discípulos Adler e Jung, criando instabilidade à recém-fundada 
Associação Psicanalítica Internacional (IPA). 
 As revelações sobre esse período conturbado para o futuro da psicanálise 
foram descritas por Freud no texto A história do movimento psicanalítico, de 
1914, onde retrata a necessidade de firmar o rigor da teoria psicanalítica, a fim 
 
 
13 
de que os seus desertores não a levassem para um eterno equívoco teórico e 
conceitual. 
 Na biografia de Freud escrita por Elizabeth Roudinesco, ao considerar 
esse momento histórico da psicanálise, a autora descreve a tensão e a luta 
travada pelo pai da psicanálise: 
A psicanálise, essa estranha disciplina meio caminho da arqueologia, 
da medicina, da analise literária, da antropologia e da psicologia mais 
abissal – a de um mais além do íntimo –, jamais foi reduzida pelo seu 
inventor a uma abordagem clínica da psique. [...] Numa época de 
expansão do feminismo, do socialismo e do sionismo, Freud também 
sonhava conquistar a terra prometida, tornando-se o Sócrates dos 
tempos moderno. E, para executar seu projeto, não podia se limitar ao 
ensino universitário. Precisava fundar um movimento político. 
(Roudinesco, 2016, p. 135) 
5.1 Método perigoso 
 Freud, sempre preocupado com o futuro de sua teoria, buscou um nome 
para zelar por ela quando ele partisse, e o escolhido foi Jung, um jovem médico 
que demonstrava inteligência, grandeza e afinidade com a psicanálise. A ele 
Freud entregou a presidência da recém-fundada Sociedade Psicanalítica 
Internacional, que dera início de forma muito intimista em reuniões na casa de 
Freud nas quartas-feiras à noite. 
 Com o avanço da sociedade rumo ao internacional, alguns conflitos sobre 
a doutrina começaram a surgir e o maior entre elas se deu justamente entre 
Freud e aquele que ele escolhera para ser o herdeiro da psicanálise, Jung. Sobre 
sua escolha, Freud revela a sua decepção dizendo: 
Eu não tinha, na ocasião, a menor ideia de que a escolha era a mais 
infeliz possível, que eu havia escolhido uma pessoa incapaz de tolerar 
a autoridade de outra, mais incapaz ainda de exercê-la ele próprio, e 
cujas energias se voltavam inteiramente para a promoção de seus 
próprios interesses. (Freud, 1996d, p. 42) 
 Jung pretendia uma concepção da libido entendida como energia vital, ou 
seja, uma libido estendida. Freud o acusava de ter cedido à “lama negra do 
ocultismo”. O rompimento se deu em 1912, após Jung ter voltado do EUA e 
apresentado um relatório de suas atividades onde descaracterizava 
completamente a teoria da sexualidade e negava o pulsional, justificando que 
assim a psicanálise seria mais bem aceita. 
 As modificações introduzidas por Jung na psicanálise foram comparadas 
por Freud à famosa espada de Linchtenberg, explica Garcia-Roza (2008, p. 14): 
 
 
14 
“mudou o cabo e botou uma lâmina nova, e porque gravou nela o mesmo nome 
espera que seja considerada como o instrumento original”. 
NA PRÁTICA 
 As elucubrações que foram expostas nesta etapa visam trazer uma noção 
histórica dos acontecimentos que deram origem ao ato de fundação da teoria e 
clínica psicanalíticas. A importância de conhecer a sua história e os passos 
dados por Freud na criação da psicanálise consiste, pelo mesmo método que se 
aplica a esta, em construir um saber para além da pura e simples teoria. 
 Na clínica, quando ouvimos o sonho de um paciente, devemos cuidar para 
não nos apressarmos, pois uma interpretação de sonho nem sempre tem seu 
desfecho na sessão. Imagine-se recebendo uma jovem para entrevista, mas, 
como esta já havia feito análise, ela já veio em transferência com a psicanálise 
e foi assim que ela contou o seu sonho. Ela relata que várias vezes sonha com 
uma casa em que morou na infância, e nessa casa ela tem a sensação de ter 
esquecido no terraço um cachorro, que foi muito importante para ela, pois este 
lhe fez companhia no momento mais solitário de sua vida. Então, ela acorda 
muito angustiada, tentando recordar se realmente ela esqueceu o cachorro e se 
dá conta de que é só um sonho, pois o animal já havia morrido há muitos anos. 
 A casa de infância representa a própria moça que conta o sonho; o 
cachorro representa um trauma de sua vida, que ela pôde abordar durante a 
análise; e a sensação de angústia é o que de real retorna no sonho e pode ser 
simbolizado ao falar dos seus afetos. Tudo isso levou anos de análise para 
ganhar uma simbolização. 
FINALIZANDO 
 Sigmund Freud foi um homem capaz de sucumbir às imposições morais 
de seu tempo e ouvir para além da dor orgânica a voz de mulheres que gritavam 
em silêncio por socorro, pois foi por meio desse apelo das mulheres histéricas 
que a voz do inconsciente que emergia em seus corpos contorcidos foi ouvida, 
e assim foi criada a psicanálise. 
 Com a publicação dos Estudos sobre a histeria, Freud começa a tatear 
uma nova forma de clinicar que ia para além de um diagnóstico de doença 
 
 
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biológica, pois, ao deixar o doente falar, permitia que este mesmo se conduzisse 
à sua cura. 
 
Com A interpretação dos sonhos, Freud pôde decifrar a mensagem que 
surgia em forma de um hieróglifo e conceber o funcionamento do inconsciente, 
que fala por metáfora, utilizando-se do mecanismo de deslocamento e 
condensação visando driblar as resistências, realizando no sonho um desejo 
inconsciente. 
 A duras penas Freud logrou estabelecer as doutrinas de sua teoria, mas 
morreu temendo que, com o passar dos anos, ela viesse a desaparecer pelo 
próprio conceito que ele concebeu como resistência, pois a psicanálise existe no 
que se sobrepõe a ela. Assim, o retorno a Freud é sempre um bom caminho para 
mantê-la viva. 
 
 
 
 
 
16 
REFERÊNCIAS 
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Janeiro: Imago, 1996b. v. 1. 
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_____. (1912). Uma nota sobre o inconsciente na psicanalise. In: _____. Edição 
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standard brasileira dasobras psicológicas completas de Sigmund Freud. 
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_____. (1925-1926). Um estudo autobiográfico. In: _____. Edição standard 
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Janeiro: Imago, 1996e. v. XX. 
_____. Novas Conferências Introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos 
(1932-1936). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas 
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996f. v. XXII. 
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LACAN. J. O aturdito – Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 
 
 
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LEVATO, M. Metapsicología – el inconsciente freudiano: un estudio de la 
constitución y funcionamiento del aparato psíquico en la obra de Freud. Buenos 
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OLIVEIRA, R. M. M. A hora do despertar em Clarice Lispector: A paixão 
segundo G.H. Monografia (Especialização em Teoria Psicanalítica). 
Universidade de Brasília. Brasília, 2013. 
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Janeiro: Zahar, 2016. 
SOLER, C. O inconsciente – Que é isso? São Paulo: Annablume, 2012.

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