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MÉTODOS PSICANALÍTICOS AULA 1 Profª Juliana Santos 2 CONVERSA INICIAL Esta caminhada, num primeiro momento, tem o objetivo de inserir o contexto histórico do ato de fundação da psicanálise. Para alcançar os nossos trilhos, percorreremos os de Freud visando estabelecer uma visão epistemológica dos acontecimentos que deram origem à história do movimento psicanalítico. Em seguida, buscaremos estabalecer os métodos que compõem a prática psicanalítica, por meio da análise dos textos que ficaram conhecidos como os escritos tecnicos de Freud, sem deixar, contudo, de articulá-los aos desdobramentos conceituais propostos por Lacan, que foi, indiscutivelmente, o melhor leitor e intérprete dos pensamentos freudianos. Por último, mas não menos importante, trabalharemos a questão da ética em psicanálise, assim como a formação do analista e o desejo do analista, que põe em ato a clínica psicanálitica. TEMA 1 – FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E EPISTEMOLÓGICOS DA PSICANÁLISE Na origem da psicanálise encontramos o paradigma das mulheres histéricas, as quais, para exprimir as suas aspirações pela liberdade, não tinham outro recurso a não ser os seus corpos atormentados. Foi, então, por meio da presença estarrecedora e de seus relatos clínicos que Freud pôde erigir uma nova teoria que se inaugurava como uma práxis. Depois de sua experiência como residente no hospital La Salpêtrière, em Paris, quando teve a oportunidade de atuar ao lado de seu mestre, Charcot, médico renomado no trato das histéricas, Freud retorna a Viena com o objetivo de retomar o caso de Anna O., uma antiga paciente de Breuer, que lhe deixara imensamente impactado. Trata-se de uma jovem paciente, de boa educação, que adoecera quando cuidava de seu pai acamado. Vale sublinhar que Ana O. era devotamente afeiçoada a seu pai. Seus sintomas consistiam em um quadro de variadas paralisias com contraturas, inibição e confusão mental. Foi observado pelo seu médico que, quando Ana O. conseguia expressar com palavras as suas fantasias emotivas, ela tinha um alívio desses estados nebulosos de consciência, aos quais se encontrava submetida no momento. Por meio dessa descoberta Breuer passou 3 a hipnotizá-la, com o objetivo de questioná-la para fazê-la dizer o que lhe oprimia a mente. Dessa forma, os ataques de confusão depressiva foram separados e, em seguida, Breuer usou a mesma técnica para eliminar suas inibições e distúrbios físicos. Contudo, em seu estado de vigília, a paciente não conseguia fazer nenhum tipo de ligação com a origem dos seus sintomas, mas, quando hipnotizada, de pronto descobria a ligação que faltava. O fato é que todos os seus sintomas retornavam quando ela voltava a cuidar de seu pai, o que fez levantar a hipótese de que eles tinham um significado, mas ficavam sob efeito de um resíduo ou reminiscência daquela situação emocional. No decorrer do seu tratamento, foi possível verificar que, toda vez que lhe vinha um pensamento ou impulso que ela evitava ou o suprimia estando na cabeceira do enfermo, o que surgia no lugar desses pensamentos era o sintoma. O Caso Anna O. surpreendeu tanto a Freud que, quando ele retorna a Viena, volta disposto a construir um novo saber científico que pudesse tratar esse tipo de paciente, mesmo que o preço a pagar fosse a sua amizade com Breuer. 1.1 Estudos sobre a histeria O Estudo sobre a histeria, publicado em 1895 por Freud e Breuer, pode ser lembrado como o ponto de partida da psicanálise, pois de fato podemos afirmar que as investigações e as descobertas clínicas feitas com base nesse fenômeno, preparam o terreno para a prática da clínica psicanalítica. As observações feitas nesse estudo de Freud e Breuer revelaram que a origem dos sintomas histéricos não podia ser estabelecida por interrogatório, mesmo que ele fosse feito de forma minuciosa, pois de fato as pacientes não seriam capazes de recordar da experiência vivida e, muitas vezes, não existia nenhuma suspeita de conexão casual entre o evento desencadeador e fenômeno patológico. Nesse período, a principal técnica utilizada nos pacientes era a hipnose, pois ao hipnotizá-los as lembranças da época em que os sintomas surgiram pela primeira vez poderiam ser evocados por sugestão. Em busca da origem dos sintomas Freud e Breuer passaram a estabelecer uma relação comum entre a patogênese da histérica e as neuroses traumáticas: 4 Nas neuroses traumáticas a causa atuante da doença não é o dano físico insignificante, mas o afeto do susto – o trauma psíquico. De maneira análoga, nossas pesquisas revelam para muitos, se não para a maioria dos sintomas histéricos, causas desencadeadoras que só podem ser descritas como traumas psíquicos. Qualquer experiência que possa evocar afetos aflitivos – tais como os de susto, angustia, vergonha ou dor física – pode atuar como um trauma dessa natureza. (Freud, 1996a, p. 41) Assim, o trauma psíquico ou, como especifica Freud, a lembrança traumática, atua no psiquismo como um corpo estranho, que, mesmo muito tempo depois de sua entrada, permanece como um agente em plena função, portanto mente e corpo não funcionam de forma separada. A novidade trazida por Freud e Breuer foi que, por meio de suas observações, puderam constatar, com grande surpresa, que “cada sintoma histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, quando conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertado o afeto que o acompanhara” (Freud, 1996a, p. 42). Desse modo, quanto mais o afeto fosse transformado em palavras, maior alívio era experimentado pelas pacientes. De igual modo, se as lembranças não fossem recordadas sem afeto, invariavelmente não produziam resultados. Portanto, segundo essas constatações, o processo psíquico deve ser levado de volta à sua nascente para então ser concebido em expressão verbal. 1.2 Clínica com as histéricas: primeiras descobertas O sofrimento histérico consistiria, então, em lembranças traumáticas, cujo tratamento seria a rememoração do acontecimento, no entanto, para produzir um efeito de suspensão do sintoma, era necessário que houvesse uma reação energética, a qual diz respeito ao modo como o paciente descarrega os afetos, de ordem voluntária ou involuntária. Segundo Freud, tal reação deve ocorrer em grau suficiente, ou seja, a ponto de produzir um alívio; caso contrário, quando a reação é reprimida, o afeto permanece vinculado à lembrança. Ele ainda destaca que a linguagem tem a mesma característica, pois, quando reprimida, tende a fazer adoecer. Dessa forma, um afeto só poderia ser ab-reagido, ou seja, elaborado, se passasse por um processo catártico. Paradoxalmente as lembranças traumáticas não estariam inteiramente disponíveis na lembrança, sendo impossível acessá-las em estado de vigília. Freud então adere à técnica da hipnose, sob a declaração de que “Apenas 5 quando o paciente é inquirido sob hipnose é que essas lembranças emergem com a nitidez inalterada de um fato recente” (Freud, 1996a, p. 45). TEMA 2 – TÉCNICAS E MÉTODOS QUE PRECEDERAM A PSICANÁLISE Nos primeiros anos de trabalho clínico de Freud, momento em que também ocorrera a publicação do Estudo sobre a histeria, o principal método terapêutico utilizado era o catártico, descoberto por Breuer, cuja função se resumia em transformar em palavras a cota de afeto preso de uma experiência traumática e responsável por manter o sintoma. No entanto, para que houvesse uma ab-reação do afeto, era indispensável que essa produção viesse com uma quantidade necessária de carga energética, pois só dessa forma proporcionaria uma descarga emocional. O fato é que “a lembrança do trauma psíquico atuante não se encontra na memória normal do paciente, mas em sua memória ao ser hipnotizado”(Freud, 1996a, p. 47). 2.1 Hipnose A hipnose foi a principal técnica utilizada com as histéricas no período que precedeu a publicação do Estudo. Mas, ao contrário do modo como a utilizavam naquela época, via sugestão ou proibição, Freud a empregou pelo método de Breuer, cuja técnica era usada para determinar a origem dos sintomas. Quando obtinha o conhecimento da origem do sintoma, esse conteúdo era comunicado aos pacientes a fim de despertar o afeto que acompanhara o momento traumático e produzir uma catarse para que enfim houvesse uma ab-reação do afeto. Mas, ainda que Freud tenha insistido e demostrado um grande interesse pela hipnose, ele apontou para algumas dificuldades ao trabalhar com ela, pois, em sua experiência clínica, pôde verificar que “nem todas as pessoas que exibiam sintomas histéricos [...] podiam ser hipnotizadas” e que, portanto, havia neuroses menos suscetíveis à sugestão hipnótica (Freud, 1996a, p. 272). Outro ponto levantado por Freud é que nem sempre as comunicações feitas sobre as revelações hipnóticas suscitavam no paciente de vigília as mesmas reações do estado hipnótico. Assim, questionando suas habilidades como hipnotizador, pouco a pouco Freud foi introduzindo novas técnicas que pudessem substituir a hipnose. 6 2.2 Concentração Outra das técnicas adotadas por Freud nesse período foi o método de concentração, que consistia em deitar o paciente, pedir que ele fechasse os olhos deliberadamente e fazer uma pressão sobre a sua fronte a fim de se concentrar e evocar novas lembranças. Nessas circunstâncias, Freud pôde se dar conta de que havia outro problema a ser superado – a resistência. Portanto, o trabalho psíquico deveria ir na direção onde pudesse superar as forças psíquicas que se opunham à tomada de consciência das representações patogênicas. Com base nessa elaboração, Freud começa a pensar na ideia de defesa, em que uma força psíquica, por parte do ego, se oporia ao seu retorno à memória, afirmando que “o não saber do paciente histérico seria, de fato, um não querer saber” (Freud, 1996a, p. 284). 2.3 Método catártico em Freud Ao abandonar a hipnose, Freud foi se aprofundando no método catártico, oriundo de Breuer, e se empenha em descobrir novas formas de análise. O termo análise passa a ser empregado por ele para se referir a essa nova técnica clínica. A primeira impressão de Freud sobre seus avanços na análise com seus pacientes é relatada assim: O material psíquico patogênico aparentemente esquecido, que não se acha à disposição do ego e não desempenha nenhum papel na associação e na memória, não obstante está de algum modo à mão, e em ordem correta e adequada. Trata-se apenas de remover as resistências que barram o caminho para o material [...] O material psíquico patogênico parece constituir o patrimônio de uma inteligência não necessariamente inferior à de um ego normal. A aparência de uma segunda personalidade é muitas vezes apresentada de maneira mais enganosa. (Freud, 1996a, p. 299-300) Com o desenvolvimento da técnica, agora ela visava remover as barreiras da resistência. Para isso, era necessário, segundo as orientações de Freud, que o médico se mantivesse na periferia da estrutura psíquica, ou seja, que acolhesse a fala sem muitos questionamentos para não criar barreiras, fazendo com que o paciente dissesse aquilo de que se lembrasse e soubesse. Assim, aos poucos suas resistências eram superadas e isso lhe abriria novos caminhos para uma camada mais interna, ainda que o material trazido parecesse desconexo, logo seria possível descobrir ligações lógicas. 7 Freud passo a passo se aproximava do que, mais tarde, ele vai conceber como psicanálise. Por enquanto, o método catártico não vislumbrava o problema da etiologia das neuroses, ainda que, para ele, o caso Anna O. demonstrasse evidências da etiologia sexual, contudo não podia prescindir da colaboração de Breuer que inaugurou o método, mas privilegiava a causalidade fisiológica. TEMA 3 – INVENÇÃO DA PSICANÁLISE O Estudo sobre a histeria permanecia incompleto, visto que o problema da etiologia continuava sem solução, mas com as novas descobertas de Freud, o terreno se encontrava preparado para as novas investigações. Inevitavelmente, essas investigações custariam a sua popularidade como médico, motivo pelo qual Breuer não estava disposto a se arriscar, pois já era um médico de renome. Assim, o rompimento com Breuer representou um novo começo para Freud, que passou a investigar a vida sexual dos neuróticos e fortaleceu a sua amizade Fliess, a quem endereçou muitas cartas contendo a sua autoanálise e falando sobre suas descobertas teóricas. As correspondências a Fliess são indiscutivelmente um grande arquivo de notas e ideias que resultariam na invenção da psicanálise. Foram nessas correspondências que Freud revelou no Rascunho K o grande segredo de sua clínica – a experiência primária de gozo, que resultaria em duas repartições da clínica: a histeria e a neurose obsessiva (Freud, 1996a, p. 267). O mecanismo de defesa seria responsável por essas repartições, pela qual a experiência de gozo na histeria provoca uma repulsa e na neurose obsessiva, uma autorrecriminação, pois em ambas estruturas a experiência de gozo sofre uma repressão. A teoria da repressão assumiu o lugar central dos estudos com os neuróticos, em que o objetivo do tratamento não era mais ab-reação, mas revelar os afetos reprimidos substituindo-o por julgamentos que resultariam em uma aceitação. Em março de 1896, Freud apresenta pela primeira vez no artigo “A hereditariedade e etiologia das neuroses”, o seu novo método, que deixa de ser chamado de catarse para ser nomeado de psicanálise. Esse novo método de tratamento por meio da fala, inventado por Breuer e adaptado por Freud, visava encontrar a origem da doença, pois uma vez revelada e confessada, com a ajuda 8 do terapeuta, os distúrbios psíquicos podiam ser entendidos, tratados e às vezes curados. De início, para Freud, a origem da neurose residia em traumas sexuais vividos na infância, quando crianças entre dois e cinco anos de idade sofriam atentados precoces, acometidos por adultos do seio familiar. No entanto, essa teoria não se sustentava por si só. Logo Freud se viu obrigado a abandonar a ideia de um adulto abusador de criança na ordem da família burguesa e desloca- se para a interpretação do discurso, passando a considerar que tais cenas de sedução se tratavam, na verdade, de uma fantasia, ou seja, uma representação imaginária. Em carta à Fliess, datada de 6 de abril de 1897, escreve sobre a sua descoberta: O aspecto que me escapou na solução da histeria está na descoberta de uma nova fonte a partir da qual surge um novo elemento da produção inconsciente. O que tenho em mente são as fantasias histéricas, que, habitualmente, segundo me parece, remontam a coisas ouvidas pelas crianças em tenra idade compreendidas somente mais tarde. A idade em que elas captam informações dessa ordem é realmente surpreendentes – dois seis ou sete meses em diante!... (Freud, 1996g, p. 293) Sobre a fantasia, que é um material robusto de análise, não nos cabe agora abordá-la, mas deixamos mencionado para que se detenham sobre sua relevância. Por ora, vamos ao que nos importa – o inconsciente. 3.1 O inconsciente na psicanálise O termo inconsciente já era empregado muito antes de Freud e a psicanálise, mas a conotação do termo ganhou uma nova ordem a partir de toda a contribuição da psicanálise como um novo saber: “A psicanálise considera tudo de ordem mental como sendo, em primeiro lugar, inconsciente”, ou seja, de uma qualidade ulterior da “consciência” (Freud, 1996e, p. 37). Para a filosofia, a consciência e o mental tinham a mesma conotação, não se concebendo a ideia de algo mental ser inconsciente. Assim, com o rigorque a psicanálise deu ao inconsciente, foi possível instaurar um novo status para a compreensão dessa instância psíquica. Garcia-Roza, no livro Introdução a metapsicologia freudiana 3, entoa a preocupação de Freud em distinguir o conceito de inconsciente para psicanálise da antiga noção dominante: A preocupação de Freud é assinalar as diferenças entre o inconsciente tal como é concebido por ele e o inconsciente tal como era pensado pela filosofia e pela psicologia, e uma das formas de se marcas a 9 diferença é apontando o que o inconsciente freudiano não é. Ele não é uma franja ou margem da consciência, também não é o profundo da consciência, assim como não é o lugar do caótico e do misterioso. E Freud em plena razão, estava preocupado em assinalar essas diferenças e em afirmar a irredutibilidade do seu conceito às noções até então dominantes. (Garcia-Roza, 2008, p. 209) 3.2 O inconsciente: o que é isso? É possível que ainda hoje encontremos pessoas querendo localizar o inconsciente em alguma parte do cérebro, mas o único lugar possível de localizar o inconsciente é na fala. Lacan, que foi o melhor intérprete de Freud, foi categórico ao afirmar: “o inconsciente é um fato, na medida em que se sustenta no próprio discurso que o estabelece” (Lacan, 2003, p. 479). A dificuldade em responder de forma abrangente à questão do inconsciente tem sido a razão de vários equívocos. Freud, no texto Alguns comentários sobre o conceito de inconsciente na psicanálise, de 1912, forneceu um importante estudo teórico sobre o inconsciente, ele diz: o inconsciente é uma fase inevitável que ocorre regularmente nos processos que constituem nossa atividade psíquica, e todo ato psíquico começa com ato inconsciente e pode assim permanecer, ou pode desenvolver-se em direção à consciência, dependendo de encontrar ou não resistência. (Freud, 1996c, p. 87) Assim, o inconsciente postulado por Freud não se restringe apenas ao âmbito patológico neurótico, mas a toda região da mais legítima produção humana, ou seja, “nenhuma de nossas ações, escolhas, tendências, desejos escapam à ação do inconsciente” (Oliveira, 2013). As formações do inconsciente (atos falhos, lapsos de linguagem, esquecimentos etc.) foram formalizadas no texto A psicopatologia da vida cotidiana, de 1901, em que Freud sublinha que tais acontecimentos oriundos dessa formação não são exclusivos do tratamento psicanalítico, mas fazem parte da vida comum, em que todas as escolhas revelam um “determinismo do inconsciente” (Jorge, 2005, p. 11) A introdução da noção do inconsciente concebido pelo pai da psicanálise foi mais um golpe desferido sobre a humanidade, ao lado de Copérnico, que retirou a Terra do centro do universo e de Darwin, que tirou o homem do centro da criação. Freud, ao subverter o cogito cartesiano – “Penso, logo, sou”, por ele pensa onde não é, descentralizou o homem de si mesmo. 10 A complexidade do funcionamento do inconsciente se apresenta ao tentarmos nos aproximar dele, visto que a única forma é por meio de desvios e nunca por via direta. Foi assim que Freud chegou até ele pelos sonhos e pôde constatar seu funcionamento. TEMA 4 – INTERPRETAÇÃO DO SONHO O sonho é uma das facetas da formação do inconsciente, cujo conteúdo, segundo Freud, é constituído de mensagens cifradas, como as dos rádios transmissores durante a guerra, que emitiam comunicados que confundiam os inimigos. Essas mensagens criptografadas são construídas como um rébus ou uma linguagem hieroglífica, termos que foram utilizados por Freud, como nos lembra Colette Soler (2012), em seu livro O inconsciente: que é isso? A obra freudiana A Interpretação dos sonhos, de 1900, representa um marco na história da psicanálise, visto que, em termos acadêmicos, trata-se, de fato, do ato fundante da teoria psicanalítica, pois é nesse momento que Freud revela um rico campo de investigação do inconsciente – os processos oníricos. O sonho passou a ser objeto de investigação para Freud quando seus pacientes, de forma espontânea, em seus relatos de associação, citavam os sonhos em suas conversas. Mas a descoberta do método de interpretação do sonho surge com os sonhos do próprio Freud, que ele submente a uma autoanálise no capítulo 2 do livro e conclui: “Quando o trabalho de interpretação se conclui, percebemos que o sonho é a realização de um desejo” (Freud, 2001, p. 135). Trata-se de desejos infantis e reprimidos de caráter sexual; particularidade esta que excede as categorias de saúde e enfermidade e que permite discernir, para além das neuroses, a eficácia do inconsciente. 4.1 Métodos de investigação do sonho O sonho apresenta o conteúdo manifesto, que são as imagens de nossa memória. Pelo conteúdo manifesto do sonho, podemos chegar ao conteúdo latente, que são as conclusões da investigação. Dito de outra maneira, são os pensamentos do sonho que se obtêm por meio da análise. Freud (2001, p. 276) declara: “É desse pensamento do sonho, e não de seu conteúdo manifesto, que depreendemos seu sentido”. 11 Transformar o sonho manifesto em sonho latente é a problemática do método, pois, na maioria dos casos, o sonho latente não é iminente nem para o sonhador. Assim, para realizar a tarefa de fazer do sonho uma comunicação, é necessário utilizar algumas técnicas. Em Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, de 1932, Freud retoma as concepções do livro A interpretação dos sonhos, para uma nova reflexão sobre a técnica de interpretação e a teoria dos processos oníricos. Sobre a técnica de interpretação do sonho, que diz respeito ao método psicanalítico, o psicanalista que ouve o relato do sonho deve estar disposto a manter-se atento ao que é narrado, mas não manter uma reflexão sobre o conteúdo manifesto, pois, ainda que posteriormente possam ser encontrados muitos elementos que contribuam com a interpretação, na hora do relato deve- se desprezá-los. Deve-se pedir ao sonhador para livrar-se das impressões que o sonho lhe causou num todo e referir-se a cada parte do sonho contando o que lhe vem à mente sucessivamente. Essas associações, providas desde aí, logo lançarão luz sobre diferentes partes do sonho, levando ao entendimento do porquê das associações com o conteúdo manifesto. Mas Freud adverte: “as associações ao sonho ainda não são os pensamentos oníricos latentes” (Freud, 1996f, p. 22) e sim o material que servirá para a interpretação da mensagem do conteúdo latente. Esse será, portanto, o método para a interpretação do sonho. 4.2 Processo da elaboração onírico O processo de elaboração onírica consiste em uma das mais importantes descobertas de Freud, visto que foi por meio dela que se revelou o funcionamento do sistema inconsciente: “A importância dessa constatação foi ainda acrescida da descoberta de que, na construção dos sintomas neuróticos, estão em atividade os mesmos mecanismos” (Freud, 1996f, p. 27). Trata-se da metáfora, um mecanismo de trabalho do sonho, que revela o máximo de alcance da equivocidade da linguagem e é desde esse momento que se abre para o inconsciente. A esse funcionamento Freud nomeia de deslocamento e condensação. A condensação transforma um pensamento em imagem, dando uma equívoca preferência a imagens que admitem um agrupamento, sujeitando o material a uma condensação. Freud conclui: 12 Em consequência da condensação, um elemento do sonho manifesto pode corresponder a numerosos elementos dos pensamentos oníricos latentes; mas também, inversamente, um elemento dos pensamentos oníricos pode estar representado por diversas imagens no sonho. (Freud, 1996f, p. 29) O deslocamento, por sua vez, é, segundo Freud (1996f), o responsável pelas distorções oníricas, os quais estão submetidos à censura. Por meio do deslocamento, os afetos são despojados das ideias oníricas e deslocados paraalguma coisa no sonho que não o configurem como o principal, pois essa é a única forma de encontrar passagem para o sonho, visto que se trata de um conteúdo proibido para a consciência. Mabel Levato (2012) escreve, em seu livro Matapsicología – el inconsciente freudiano, que o deslocamento não se esgota em seu efeito descentralizador, mas revela ainda um enorme esforço de subversão do que está em torno de uma fixação psíquica. “O deslocamento da intensidade comporta uma fixação de determinadas representações, demonstrando indícios do reprimido” e, citando a Freud, conclui que “O resultado do deslocamento é que [...] o sonho só devolve (reflete) uma desfiguração (desloca) o desejo inconsciente” (Levato, 2012, p. 80, tradução livre). Com a publicação do livro A interpretação dos sonhos, a psicanálise ascende no meio acadêmico e para além dele, ganhando novos adeptos como um novo movimento de renovação da psicologia e psiquiatria, criando, informalmente, um círculo de discípulos em torno de Freud. TEMA 5 – MOVIMENTO PSICANALÍTICO A I Guerra Mundial, iniciada em julho de 1914, coincide com os novos rumos tomados por Freud para a psicanálise, pois foi nesse período que ele inicia uma série de textos de revisão sobre a sua produção teórica. Paralelamente à guerra que se espalhava por toda a Europa, uma outra guerra em particular emergia dentro dos corredores da psicanálise, dessa vez travada entre Freud e seus principais discípulos Adler e Jung, criando instabilidade à recém-fundada Associação Psicanalítica Internacional (IPA). As revelações sobre esse período conturbado para o futuro da psicanálise foram descritas por Freud no texto A história do movimento psicanalítico, de 1914, onde retrata a necessidade de firmar o rigor da teoria psicanalítica, a fim 13 de que os seus desertores não a levassem para um eterno equívoco teórico e conceitual. Na biografia de Freud escrita por Elizabeth Roudinesco, ao considerar esse momento histórico da psicanálise, a autora descreve a tensão e a luta travada pelo pai da psicanálise: A psicanálise, essa estranha disciplina meio caminho da arqueologia, da medicina, da analise literária, da antropologia e da psicologia mais abissal – a de um mais além do íntimo –, jamais foi reduzida pelo seu inventor a uma abordagem clínica da psique. [...] Numa época de expansão do feminismo, do socialismo e do sionismo, Freud também sonhava conquistar a terra prometida, tornando-se o Sócrates dos tempos moderno. E, para executar seu projeto, não podia se limitar ao ensino universitário. Precisava fundar um movimento político. (Roudinesco, 2016, p. 135) 5.1 Método perigoso Freud, sempre preocupado com o futuro de sua teoria, buscou um nome para zelar por ela quando ele partisse, e o escolhido foi Jung, um jovem médico que demonstrava inteligência, grandeza e afinidade com a psicanálise. A ele Freud entregou a presidência da recém-fundada Sociedade Psicanalítica Internacional, que dera início de forma muito intimista em reuniões na casa de Freud nas quartas-feiras à noite. Com o avanço da sociedade rumo ao internacional, alguns conflitos sobre a doutrina começaram a surgir e o maior entre elas se deu justamente entre Freud e aquele que ele escolhera para ser o herdeiro da psicanálise, Jung. Sobre sua escolha, Freud revela a sua decepção dizendo: Eu não tinha, na ocasião, a menor ideia de que a escolha era a mais infeliz possível, que eu havia escolhido uma pessoa incapaz de tolerar a autoridade de outra, mais incapaz ainda de exercê-la ele próprio, e cujas energias se voltavam inteiramente para a promoção de seus próprios interesses. (Freud, 1996d, p. 42) Jung pretendia uma concepção da libido entendida como energia vital, ou seja, uma libido estendida. Freud o acusava de ter cedido à “lama negra do ocultismo”. O rompimento se deu em 1912, após Jung ter voltado do EUA e apresentado um relatório de suas atividades onde descaracterizava completamente a teoria da sexualidade e negava o pulsional, justificando que assim a psicanálise seria mais bem aceita. As modificações introduzidas por Jung na psicanálise foram comparadas por Freud à famosa espada de Linchtenberg, explica Garcia-Roza (2008, p. 14): 14 “mudou o cabo e botou uma lâmina nova, e porque gravou nela o mesmo nome espera que seja considerada como o instrumento original”. NA PRÁTICA As elucubrações que foram expostas nesta etapa visam trazer uma noção histórica dos acontecimentos que deram origem ao ato de fundação da teoria e clínica psicanalíticas. A importância de conhecer a sua história e os passos dados por Freud na criação da psicanálise consiste, pelo mesmo método que se aplica a esta, em construir um saber para além da pura e simples teoria. Na clínica, quando ouvimos o sonho de um paciente, devemos cuidar para não nos apressarmos, pois uma interpretação de sonho nem sempre tem seu desfecho na sessão. Imagine-se recebendo uma jovem para entrevista, mas, como esta já havia feito análise, ela já veio em transferência com a psicanálise e foi assim que ela contou o seu sonho. Ela relata que várias vezes sonha com uma casa em que morou na infância, e nessa casa ela tem a sensação de ter esquecido no terraço um cachorro, que foi muito importante para ela, pois este lhe fez companhia no momento mais solitário de sua vida. Então, ela acorda muito angustiada, tentando recordar se realmente ela esqueceu o cachorro e se dá conta de que é só um sonho, pois o animal já havia morrido há muitos anos. A casa de infância representa a própria moça que conta o sonho; o cachorro representa um trauma de sua vida, que ela pôde abordar durante a análise; e a sensação de angústia é o que de real retorna no sonho e pode ser simbolizado ao falar dos seus afetos. Tudo isso levou anos de análise para ganhar uma simbolização. FINALIZANDO Sigmund Freud foi um homem capaz de sucumbir às imposições morais de seu tempo e ouvir para além da dor orgânica a voz de mulheres que gritavam em silêncio por socorro, pois foi por meio desse apelo das mulheres histéricas que a voz do inconsciente que emergia em seus corpos contorcidos foi ouvida, e assim foi criada a psicanálise. Com a publicação dos Estudos sobre a histeria, Freud começa a tatear uma nova forma de clinicar que ia para além de um diagnóstico de doença 15 biológica, pois, ao deixar o doente falar, permitia que este mesmo se conduzisse à sua cura. Com A interpretação dos sonhos, Freud pôde decifrar a mensagem que surgia em forma de um hieróglifo e conceber o funcionamento do inconsciente, que fala por metáfora, utilizando-se do mecanismo de deslocamento e condensação visando driblar as resistências, realizando no sonho um desejo inconsciente. A duras penas Freud logrou estabelecer as doutrinas de sua teoria, mas morreu temendo que, com o passar dos anos, ela viesse a desaparecer pelo próprio conceito que ele concebeu como resistência, pois a psicanálise existe no que se sobrepõe a ela. Assim, o retorno a Freud é sempre um bom caminho para mantê-la viva. 16 REFERÊNCIAS FREUD. S. (1893-1895) Estudos sobre a histeria. In: _____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. II. _____. (1886-1889). Publicações pré-psicanalíticas. In: _____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996b. v. 1. _____. (1900). 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Rio de Janeiro: Imago, 1996g. GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. v. 1. LACAN. J. O aturdito – Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 17 LEVATO, M. Metapsicología – el inconsciente freudiano: un estudio de la constitución y funcionamiento del aparato psíquico en la obra de Freud. Buenos Aires: Letra Viva, 2012. OLIVEIRA, R. M. M. A hora do despertar em Clarice Lispector: A paixão segundo G.H. Monografia (Especialização em Teoria Psicanalítica). Universidade de Brasília. Brasília, 2013. ROUDINESCO, E. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. SOLER, C. O inconsciente – Que é isso? São Paulo: Annablume, 2012.