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<p>anã se na m anciã</p><p>n na anã</p><p>Eliza Santa Roza</p><p>Eliana Schueler Reis</p><p>Partindo da reflexão sobre um</p><p>caso clínico e atravessando as</p><p>diferenças e similitudes conceituais</p><p>de vários autores, entre eles Freud,</p><p>Férenczi e Winnicott, Eliza Santa Roza</p><p>e Eliana Schueler Reis interrogam</p><p>neste livro a importância do infantil</p><p>para a psicanálise.</p><p>Assim, não só propõem que as</p><p>indagações relativas à análise de</p><p>crianças são fundamentais para a</p><p>prática da psicanálise, como tam-</p><p>bém sublinham a importância de</p><p>tornar possível a emergência do que,</p><p>mesmo estando presente como</p><p>marca do vivido, não existe como</p><p>lembrança, não se aproveita como</p><p>experiência, não se enuncia como</p><p>desejo.</p><p>Eliza Santa Roza tem como objeto</p><p>principal do estudo a temática do</p><p>brincar como forma de linguagem,</p><p>dando continuação às ideias</p><p>desenvolvidas em seu livro anterior</p><p>Quando brincar é dizer - a experiên-</p><p>cia psicanalítica na infância.</p><p>Por sua vez, Eliana Schueler Reis</p><p>repensa o trauma como fator de</p><p>estruturação e desestruíuração</p><p>psíquicas, inicialmente desenvolvido</p><p>em sua tese de mestrado Trauma e</p><p>repetição no processo psicanalítico -</p><p>uma abordagem íerencziana.</p><p>Como afirmam, "para produzir</p><p>conhecimento é preciso afetar e se</p><p>deixar afetar com intensidade pelo</p><p>outro e pelo mundo". Desde Freud e</p><p>sua elaboração das consequências</p><p>de ser surpreendido, da análise na</p><p>infância ao infantil na análise, de um</p><p>caso clínico elaborado a quatro</p><p>mãos ao estabelecimento de uma</p><p>escrita, este trabalho conjunto não se</p><p>furta às vicissitudes do brincar para a</p><p>subjetivação do que nos precede.</p><p>"A renovação da psicanálise como</p><p>teoria - lembra Joel Birman em seu</p><p>prefácio - sempre se realizou pelas</p><p>vias da clínica e da sensibilidade</p><p>para as questões atuais da cultura,</p><p>sem as quais aquela perde qualquer</p><p>gosto e interesse".</p><p>Seja através da discussão a</p><p>respeito do suicídio de crianças e a</p><p>importância da televisão no ima-</p><p>ginário infantil, seja a partir das</p><p>surpresas, dificuldades e impasses</p><p>clínicos, os artigos que compõem o</p><p>livro não deixam de insistir com a</p><p>constante retomada do que ainda</p><p>não há para se dizer. •</p><p>Eliza Santa Roza & Eliana Schuekr Reis</p><p>anã \n\~ti se na \nranc\a</p><p>isena anã</p><p>Prefacio</p><p>Joel Birman</p><p>DA ANALISE NA INFÂNCIA AO INFANTIL NA ANALISE</p><p>Copyright © 1997</p><p>EUza Santa Roza</p><p>Eliana Schueler Reis</p><p>Projeto Gráfico e Preparação</p><p>Contra Capa</p><p>5231 d</p><p>Santa Roza, Eliza</p><p>Da análise na infância ao infantil na análise / Eliza Santa</p><p>Roza St Eliana Schueler Reis; prefácio Joel Birman. -</p><p>Rio de Janeiro : Contra Capa Livraria, 1997.</p><p>190p. ; 14 x 21 cm.</p><p>ISBN 85-86011-06-1</p><p>1. Psicanálise. 2. Psicanálise infantil. I. Reis, Eliana</p><p>Schueler. II. Título.</p><p>CDD-616.8917</p><p>1997</p><p>Todos os direitos desta edição reservados à</p><p>Contra Capa Livraria Ltda</p><p>< ccapa@ easynet.com .br ></p><p>Rua Barata Ribeiro 370 - Loja 208</p><p>22040-000 - Rio de Janeiro - RJ</p><p>Tel (55 21} 236-1999</p><p>Fax (55 21) 256-0526</p><p>SUMARIO</p><p>]oel Birman</p><p>. Além daquele beijo!? - sobre o infantil e o originário</p><p>em psicanálise</p><p>Eliza Santa Roza e Eliana Schueler Reis</p><p>. De uma análise na infância ao infantil na análise</p><p>trauma, repetição e diferença em Ferenczi 43</p><p>Eliza Santa Roza</p><p>. E agora eu era o herói:</p><p>o brincar na teoria psicanalítica 75</p><p>. Tentativa de suicídio na infância:</p><p>uma hipótese acerca do eu 103</p><p>. Narcisismo, ideal do eu, criança e televisão 131</p><p>, Um desafio às regras do jogo: o brincar como proposta</p><p>de redefinição do tratamento da criança hospitalizada 161</p><p>Eliana Schueler Reis</p><p>Vida e morte do bebé sábio 57</p><p>Das palavras-coisa a esta coisa das palavras 87</p><p>Uma, três ou mais coisas que o sonho faz 119</p><p>, Múltiplos eus H5</p><p>Dedico este trabalho a minha mãe, que me ensinou mui'</p><p>to cedo a escutar as histórias de vida, e à memória de meu</p><p>pai, que me ensinou a ler e me deu livre acesso a todos os</p><p>seus livros.</p><p>Eliana</p><p>Para minha mãe, que sempre brincou comigo, e à memória</p><p>de meu pai, que me apontou a cultura como o maior bem</p><p>humano.</p><p>Nossos {agradecimentos a todas as pessoas que estão pre-</p><p>sentes de diversos modos nesses textos. Familiares e ami-</p><p>gos, colegas, alunos e professores, e particularmente nossos</p><p>pacientes, pois sem eles não haveria motivo para escrever.</p><p>ALÉM DAQUELE BEIJO!?</p><p>sobre o infantil e o originário em psicanálise</p><p>I. A QUE VIEMOS?</p><p>Desde a inauguração do discurso freudiano a referên-</p><p>cia à infância se impôs e se difundiu, tanto no campo do</p><p>saber erudito quanto no imaginário social, como um sig-</p><p>no insofismável da psicanálise. Esta imposição, diga-se de</p><p>passagem, se realizou por diferentes razões que não me</p><p>interessa aludir neste momento. Cabe destacar, por ora,</p><p>que em verdade a infância foi enunciada como o funda-</p><p>mento para a interpretação dos males do espírito, razão</p><p>em última instância para dar conta dos impasses insupe-</p><p>ráveis na existência psíquica dos adultos. Tratava-se de</p><p>indagar no sofrimento mental destes sobre a sua causali-</p><p>dade e a sua génese. Nestes termos, foi suposto que aque-</p><p>le sofrimento teria sido produzido na vida pretérita do</p><p>sujeito, na sua infância real, que deixava fendas dolorosas</p><p>no seu psiquismo e sulcos sofrentes no seu corpo.</p><p>Jcel Birman</p><p>Assim, se a infância foi concebida como o tempo pri-</p><p>mordial para a produção de um acontecimento patológico,</p><p>este foi delineado como algo de ordem sexual. A cena da</p><p>infância seria de natureza sexual, que na passagem do su-</p><p>jeito da infância para a existência adulta, na adolescên-</p><p>cia, teria o poder nefasto de produzir sintomas mentais.</p><p>Isso porque o cenário sexual da infância, de qualidade</p><p>excessiva, não poderia ser absorvido pelo psiquismo do</p><p>sujeito na suposta maturidade. O indivíduo sucumbiria</p><p>ao excesso da experiência sexual da infância, aprisionan-</p><p>do-se na teia diabólica de sua reminiscência1. Seria esta</p><p>referência axial a um acontecimento sexual ocorrido na</p><p>infância, portanto, a causa primordial das perturbações</p><p>mentais das individualidades nas origens da psicanálise2 •*</p><p>que dava caução aos procedimentos inovadores empreen-</p><p>didos pela cura catártica4.</p><p>Apesar desta evidência histórica é preciso sublinhar,</p><p>contudo, as continuidades e as descontinuidades paten-</p><p>tes que existem entre os primórdios do discurso freudiano</p><p>e os passos teóricos que foram realizados posteriormente</p><p>no seu interior. Digo isso porque as diferenças são signi-</p><p>ficativas, transformando os fundamentos não apenas</p><p>1 Freud, S. & Breuer, J. "Lês mécanismes psychiques dês phénomènes</p><p>hystériques" (1893). Em: Freud, S. & Breuer, J. Études sur ITiystérie. Pa-</p><p>ris, PUF, 1971.</p><p>2 Freud, S. "Uétiologie de 1'hystérie" (1896). Em Freud, S. Névrose,</p><p>psychose et pervenion. Paris, PUF, 1973.</p><p>3 Freud, S. "Psychothérapie de rhystárie11 (1895). Em: Freud, S, & Pjreuer, J.</p><p>Eludes sur \'hystérie. Op, cit.</p><p>4 Idem.</p><p>Prefácio</p><p>do pensamento como também da clínica psicanalíticas.</p><p>A introdução do adjetivo infantil neste contexto foi um</p><p>acontecimento crucial na discursividade psicanalítica. Não</p><p>obstante a similaridade existente entre os significantes em</p><p>pauta, o adjetivo infantil não quer dizer a mesma coisa</p><p>que o substantivo infância. Uma distância incomensurá-</p><p>vel os separa, certamente.</p><p>Além disso, é preciso considerar que se o signiíicante</p><p>infantil se introduziu pela ordem adjetiva, logo em segui-</p><p>da transformou-se num substantivo. Nestas diversas</p><p>transmutações, significantes e gramaticais, algo de fun-</p><p>damental se processou na leitura do sujeito e de seu sofri-</p><p>mento psíquico. Pode-se dizer, sem qualquer exagero, que</p><p>foi neste deslocamento entre as palavras infância e infan-</p><p>til, assim como nesta dança e nesta transmutação de gé-</p><p>neros gramaticais, que se pode circunscrever a invenção</p><p>da psicanálise como tal.</p><p>No que tange a isso, não se pode então esquecer que</p><p>as descontinuidades são muito mais importantes do que</p><p>as continuidades. Isso é inegável, sem dúvida. A ruptura</p><p>aqui açambarca as continuidades, levando-as de roldão.</p><p>Por isso mesmo, não devemos nos confundir com a seme-</p><p>lhança enganosa das palavras, apesar das facilidades que</p><p>isso implica do ponto de vista teórico. A sedução é evi-</p><p>dente, mas o horizonte que isso nos entreabre é pobre e</p><p>limitado.</p><p>podendo des-</p><p>te modo o sujeito enlutado introjetar sua relação com o</p><p>objeto perdido, transformando-a em investimentos de</p><p>objetos internos e desfazendo-se gradualmente do objeto</p><p>perdido como presença4. Os movimentos de Mário — li-</p><p>gar e desligar, ir e vir, brincar e destruir—representavam</p><p>sua tentativa de trabalho de luto pela morte da mãe, rea-</p><p>lizado na transferência à analista.</p><p>No primeiro período da análise de Mário o momento</p><p>crucial que possibilitou a reconstrução/destruição do ob-</p><p>jeto e conseqúentemente a elaboração de algum luto, deu-</p><p>se na sessão em que a analista o mandou embora. Essa</p><p>palavra, esse gesto reafirmaram a existência de Mário,</p><p>4 Freud, S. "Duelo y Melancolfan(1917). Em: Obras Completas. Volu-</p><p>me XIV. Buenos Aires: Amorrortu,1986, p.241-55.</p><p>52</p><p>Da analise na in/ância ao infantil na análise</p><p>confirmaram para ele a sua substancialidade assim como</p><p>a da analista. Não podia fazer tudo porque os dois existi-</p><p>am e ela sabia cuidar de sua (da analista, e dele, analisan-</p><p>do) segurança. Ao mesmo tempo, quando a analista ex-</p><p>pressou sua indignação, ela o reconheceu como sujeito</p><p>existente, colocando-o num plano de consistência em que</p><p>nunca se encontrara: o da responsabilidade pelos seus atos</p><p>e pelas consequências destes sobre o outro. Introduziu-se</p><p>aí a possibilidade de um desejo para Mário.</p><p>Nessa sessão em que houve uma ruptura, reafirmou-</p><p>se o laço transferencial. Já podia haver uma salvação para</p><p>Mário e seus objetos. A ruptura fazia-se necessária para</p><p>que pudesse haver uma (re)ligação dos objetos</p><p>fantasmáticos.</p><p>O que podemos pensar sobre a vivência traumática</p><p>de Mário é que ela não pode ser pensada simplesmente</p><p>como resultante da morte da mãe. Esta morte ativou vá-</p><p>rios conflitos existentes no grupo familiar, conflitos estes</p><p>que se fixaram em torno do acontecimento. Temos então</p><p>algo semelhante ao desmentido a que se refere Ferenczi.</p><p>O choque traumático produz uma reação de</p><p>"anestesia", a "comoção psíquica" que interrompe a ati-</p><p>vidade psíquica, desligando-a da percepção. A ligação só</p><p>pode ser refeita à medida que houver um outro sujeito</p><p>que atue como mediador. Desse modo, um acontecimen-</p><p>to violento que atinja uma criança, de tal modo que ela</p><p>não tenha condições de significar, terá um efeito traumá-</p><p>tico se não houver um adulto (portador da palavra) que</p><p>exerça uma função interpretante. Se o acontecimento não</p><p>puder ser repetido pela palavra, através da narrativa a um</p><p>53</p><p>Efíana Schweler Reis & Elíia Santa Roja</p><p>outro que possa servir como receptor/transmissor, sua viru-</p><p>lência não será mediada, permanecendo como uma marca</p><p>fixa inquestionável, porque não representada5.</p><p>A noção de desmentido recoloca o traumático na or-</p><p>dem da linguagem, criando porém o espaço necessário</p><p>para pensarmos aquilo que, sendo da ordem da percep-</p><p>ção, irrompe no vivido mas deixa de ser representado.</p><p>Havendo o desmentido, há trauma e há a clivagem do eu.</p><p>Mário costuma dizer agora que não confia em ninguém.</p><p>"Todos mentem para mim", diz ele.</p><p>O acontecimento traumático sendo desmentido não</p><p>tem como se inscrever no campo das representações, pas-</p><p>sando a existir como uma memória sem memória, ou seja,</p><p>suas marcas se apresentam como reais, atuais, no sentido</p><p>das neuroses atuais, identificadas por Freud como afecções</p><p>sem conteúdo psíquico, manifestadas em sensações cor-</p><p>porais, crises de cólera, de angústia e fobias.</p><p>Mário retorna para a análise em busca de sua memó-</p><p>ria. A analista de sua infância foi a testemunha de sua</p><p>história e ele crê que é com ela que ele pode reencontrá-</p><p>la, refazê-la. Vendo o computador em cima da mesa da</p><p>analista, Mário procura saber: "Você tem a vida de seus</p><p>pacientes em disquetes?(rindo) Você tem aí um disquete</p><p>de minha vida? Posso ver?"</p><p>Perguntado em ocasiões como esta sobre suas lembran-</p><p>ças da análise anterior, Mário sempre alega que era muito</p><p>pequeno e que não conseguia lembrar nada. No entanto,</p><p>no decorrer desta análise vem trazendo lembranças atra-</p><p>5 Ferenzi,S. "Análise de Crianças com AduItos"U932), op. cit., p. 79.</p><p>54</p><p>Da análise na infância ao infantil na análise</p><p>vês de situações externas relacionadas ao consultório.</p><p>Lembra das lojas que ficavam embaixo do prédio (a aná-</p><p>lise atual se passa em outro consultório), lembra da sala</p><p>"muito grande" (ele é que era pequeno), e às vezes per-</p><p>gunta. "O que é que eu fazia lá? Minha avó diz que eu</p><p>tocava o terror..." (e ri). O que Mário procura aos 19 anos</p><p>é não ter que encarnar mais uma vez em sua vida o terror</p><p>(schreclc) resultante do trauma.</p><p>Como sucedâneo da memória Mário tem a repetição.</p><p>Quando se trata dos afetos ele não tem autonomia, age</p><p>diretamente comandado pela repetição. O perigo apare-</p><p>ce nos repetitivos sonhos com cobras, que ele associa com</p><p>o veneno e por sua vez com as mulheres. "As mulheres</p><p>são veneno". O que estará sendo expresso nessa frase? O</p><p>perigo representado pela sua proximidade? A ameaça de</p><p>morte que paira sobre os seres femininos é equivalente à</p><p>ameaça que paira sobre ele de se tornar assassino e ter a</p><p>punição tão esperada, pois como nenhum sentido foi dado,</p><p>o crime permanece impune. O sentido que permanece</p><p>fixado é o do crime e castigo.</p><p>Achamos interessante ressaltar a questão de repeti-</p><p>ção, inclusive porque Mário busca a mesma analista:</p><p>"Acho que é você quem pode me ajudar" é uma das frases</p><p>da primeira entrevista da análise atual. Ele vem repetir</p><p>com ela na tentativa de fazer as ligações. No momento</p><p>atual, Mário não consegue um domínio das pulsões posto</p><p>que está preso no fluxo de repetições.</p><p>Ao mesmo tempo é nessa repetição da repetição</p><p>transferencial que ele deposita a esperança de não repetir</p><p>mais o traumático. Ferenczi fala da repetição na transfe-</p><p>55</p><p>EKanã Schueler Reis & Elija Santa Roía</p><p>rência que possibilita a inscrição de algo novo como</p><p>rememoração. A presença do analista serve de suporte à</p><p>repetição e no entanto algo é diferente.6 E através da se-</p><p>melhança e da diferença com sua vida infantil que pode</p><p>se abrir para Mário o caminho para a solução do trauma.</p><p>6 Ferenczi, S. "Princípio de Relaxamento e Nêo-catarse" (1930). Em:</p><p>Obras Completas. Volume IV, op. cit., p. 67.</p><p>56</p><p>VIDA E MORTE DO BEBÉ SÁBIO</p><p>Elicma Schueler Reis</p><p>O que sabemos nós dos bebés, principalmente dos</p><p>bebés sábios? De onde vem essa ideia que mais parece</p><p>saída de contos infantis, não tendo nada a ver com as</p><p>coisas sérias da psicanálise?</p><p>Pois bem, Ferenczi nos fala de um sonho que aparece</p><p>com uma certa frequência no relato de seus pacientes,</p><p>um sonKo no qual um bebe muito pequeno fala e diz coi-</p><p>sas doutas, ensinando aos adultos e deixando-os perple-</p><p>xos. Para ele este sonho revela muitos desejos entrelaça-</p><p>dos, entre eles o desejo infantil de suplantar os grandes</p><p>em sabedoria. Ou seja, uma inversão da situação na qual</p><p>a criança vê serem baldados seus esforços para compre-</p><p>ender os segredos da sexualidade humana, sentindo-se</p><p>diminuída diante dos adultos1. Neste artigo, acompanhan-</p><p>do a produção de Ferenczi, nos propomos a desenvolver</p><p>alguns temas para uma reflexão teórico-clínica.</p><p>l Ferenczi, S. "O sonho do bebé sábio". Em: Obras Completas. Volume</p><p>III. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 207.</p><p>57</p><p>Eliana Scfiueler Reis</p><p>A CRIANÇA DO DESEJO</p><p>O sonho do bebé sábio representa, entre outras coi-</p><p>sas, a criança das teorias sexuais que tenta elaborar, atra-</p><p>vés do estabelecimento de equivalências (entre buracos:</p><p>boca/ânus; entre conteúdos: comida/bebés), um saber ao</p><p>qual nunca poderá ter um acesso satisfatório, mas que</p><p>serve de matéria-prima para a criação de um mundo ima-</p><p>ginário e simbólico, no qual o brincar e o fantasiar atuam</p><p>como motores da produção de subjetividade.</p><p>Com o desenvolvimento de sua obra Freud vem a des-</p><p>cobrir que, antes da puberdade, a criança não tem condi-</p><p>ções — por mais que receba as informações adequadas —</p><p>de conceber o papel do pai na concepção e a existência</p><p>da vagina, pois este saber depende de uma articulação de</p><p>aspectos cognitivos e afetivos que ela não pode fazer por</p><p>si própria porque não tem ainda a experiência da sexuali-</p><p>dade genital. A partir desta constatação, Freud desiste</p><p>de</p><p>esperar que a psicanálise possa vir a ter uma função</p><p>profilática nas neuroses e afirma que este fracasso inevi-</p><p>tável da criança deixa um rastro de ambivalência em re-</p><p>lação ao conhecimento. Como consequência disto, insta-</p><p>la-se por um lado o ressentimento e o sentimento de des-</p><p>valorização intelectual, e por outro uma atitude de revol-</p><p>ta e a tentativa de superar os limites. Esta ambivalência</p><p>estará sempre presente no sujeito em suas relações afetivas</p><p>e em suas elaborações intelectuais.</p><p>O sonho do bebé sábio nos coloca ante a criança que</p><p>experimenta as marcas de um saber não submetido intei-</p><p>58</p><p>Vida e morte do bebé sábio</p><p>ramente à lei do mundo dos adultos. Esta é a criança das</p><p>teorias sexuais infantis que comete um "bom erro" em</p><p>suas avaliações sobre a sexualidade dos adultos; é o per-</p><p>verso-polimorfo, cujo prazer não se organiza segundo certas</p><p>interdições. Este bebé nos incomoda em nossos sonhos, em</p><p>nossos sintomas, ao aparecer em sua forma mais arcaica.</p><p>Para ilustrar a discussão sobre este tema, vou me uti-</p><p>lizar do relato do sonho de uma mulher, cujo processo de</p><p>análise fez emergir fantasmas de um abandono precoce,</p><p>que propiciou a organização de sistemas defensivos maci-</p><p>çamente construídos através de identificações negativas</p><p>com aspectos do feminino ligados ao prazer e à materni-</p><p>dade. De uma certa forma este sonho marcou a passagem</p><p>para uma nova etapa de sua análise e de sua vida.</p><p>Sonhei que estava tomando conta de uma criança, mas era</p><p>uma criança esquisita. Ela falava, apesar de ser um bebé</p><p>pequenininho. Falava e xingava muito. Gritava palavrões.</p><p>Era um saco, mas eu tinha que tomar conta dela. O pai</p><p>tinha deixado ela comigo.</p><p>Aí eu estou numa praia e tem uma outra terra lá do outro</p><p>lado, como se fosse uma ilha. Eu resolvo ir para lá, mas acho</p><p>melhor mergulhar e Lr nadando debaixo d'água. Quando eu</p><p>cheguei lá lembrei que o bebé estava nas minhas costas e</p><p>que ele devia ter se afogado. Quando eu pego nele percebo</p><p>que está se desfazendo, ele está morto, mas não tem mais a</p><p>mesma forma.</p><p>Então eu fiquei com medo do pai dele, do que ele ia dizer, ia</p><p>achar que eu era culpada. Mas eu não estava nem angusti-</p><p>ada, estava aliviada por ele ter morrido. Foi um alívio não</p><p>ter mais aquele bebé terrível comigo.</p><p>59</p><p>Eiítma Schueler Reis</p><p>Partindo deste sonho em particular, podemos come-</p><p>çar a explorar o tema do bebé sábio que além de nos re-</p><p>meter às questões do recalcamento, também anuncia um</p><p>outro aspecto do viver infantil abordado por Ferenczi em</p><p>seus últimos trabalhos. Estou me referindo a um outro</p><p>saber efetivo sobre o sexual que as crianças possuem e</p><p>esquecem, e que às vezes não lhes é permitido esquecer.</p><p>Em nosso exemplo podemos distinguir um aspecto do</p><p>sonho que foi ressaltado por Conrad Stein num artigo</p><p>sobre o sonho do bebé sábio em seu livro As Erínias de</p><p>uma Mãe: é a figura do bebé terrível, irado, que xinga a</p><p>todos e os persegue com seu ódio. Stein considera o bebé</p><p>sábio como a criança odiada, rejeitada, que aparece como</p><p>figura mítica superposta à figura de Édipo; segundo ele, tra-</p><p>ta-se de um mito de origem que traz à consciência, através</p><p>do sonho, a marca trágica da transmissão, no decurso de</p><p>gerações, de um saber que diz respeito às experiências carre-</p><p>gadas de paixão, culpa e ódio, assim como apresenta a trans-</p><p>missão de uma possibilidade de amor e desejo2. Stein privile-</p><p>gia o aspecto do ódio porém outros sentidos podem se des-</p><p>dobrar nesta imagem onírica, como veremos mais adiante.</p><p>A CRIANÇA DA DOR E DO ÓDIO</p><p>Ferenczi considera a sexualidade infantil como um</p><p>registro de linguagem definido como "linguagem da ter-</p><p>nura", que possui modos e intensidades próprios, enquanto</p><p>2 Stein, C. "O bebé sábio segundo Ferenczi" Em: As Erínias de Uma</p><p>Mãe. São Paulo, Escuta, 1988.</p><p>60</p><p>Vida e morte do bebé sábio</p><p>a "linguagem da paixão" caracteriza o registro da sexuali-</p><p>dade adulta. Entre a linguagem da ternura e a linguagem</p><p>da paixão existe um diferencial de intensidades que não</p><p>pode ser anulado. O desencontro entre estes dois regis-</p><p>tros do sexual é inevitável e necessário para que o psiquismo</p><p>infantil se desdobre e crie novas formas de inscrição para</p><p>aceder à complexidade da linguagem do adulto.</p><p>Vemos que a questão do sexual tal como é abordada</p><p>por Ferenczi delimita um campo de linguagem e não de</p><p>comportamentos. Não se trata somente do que cada um,</p><p>criança e adulto, pode fazer, mas como essas práticas or-</p><p>ganizam campos de significação distintos, sobre os quais</p><p>incidem os códigos culturais com suas interdições e possi-</p><p>bilidades de transgressão. A linguagem da ternura encon-</p><p>tra sua expressão principalmente através do brincar, de</p><p>um certo "faz de conta" em que a satisfação se dá pelas</p><p>pequenas descargas. Já a linguagem da paixão pressupõe</p><p>um potencial de intensidade construído pelo</p><p>recalcamento, pela inserção do sujeito na ordem da lei e</p><p>da castração. Entre estas duas línguas há um espaço</p><p>irredutível que nenhuma tradução pode alcançar, e neste</p><p>espaço se constrói o sujeito.</p><p>Em meio aos desencontros e às transgressões</p><p>estruturadoras da subjetividade há certos "tabus" que não</p><p>devem ser transgredidos, pois representam a garantia mí-</p><p>nima do reconhecimento da alteridade da criança. São as</p><p>interdições que estabelecem diferenças entre gerações,</p><p>entre sexos, entre uma subjetividade e outra subjetivida-</p><p>de, garantindo um espaço vazio, por mínimo que seja, para</p><p>que se introduza a noção de presença e ausência necessária</p><p>61</p><p>Eliana Scfiweler Reis</p><p>à instalação dos investimentos e do circuito pulsional no</p><p>processo de introjeção. Se o adulto se relaciona com a</p><p>criança sem levar em conta essas diferenças, está igno-</p><p>rando o registro próprio dos desejos infantis e anulando-a</p><p>como sujeito. E neste momento que nos deparamos com</p><p>um acontecimento de ordem traumática potencialmente</p><p>desestruturador do processo de subjetivação.</p><p>Em nosso sonho temos dois personagens em cena: um</p><p>bebé irado e a moça que dele cuida. Ela tem que carregá-</p><p>lo pois ele faz parte dela, ambos são personagens de uma</p><p>mesma história feita de ódio e amor. Stein, como já vi-</p><p>mos, privilegia a transmissão do ódio, já que este serviria</p><p>como impulsionador à produção de um saber—a criança</p><p>traumatizada torna-se extremamente sagaz e esperta para</p><p>dar conta de seu sofrimento. O ódio serve portanto como</p><p>proteção contra a fragmentação vivida na experiência</p><p>traumática. Utilizando a potência do ódio, a criança que</p><p>sofre o efeito da pressão traumatizante exercida pelo adulto</p><p>(ele é o meio ambiente que a estaria impulsionando a um</p><p>acesso brutal ao saber) tende a amadurecer precocemen-</p><p>te, tornando-se aquele que tudo sabe.</p><p>Com isto temos uma espécie de aceleração da</p><p>temporalidade, uma "queima de etapas" perturbando os</p><p>ritmos de desenvolvimento de faculdades potenciais da</p><p>criança, que experimenta o acesso abrupto a um saber</p><p>sobre a violência dos afetos humanos. Ela é lançada nesta</p><p>temporalidade através da identificação com o adulto</p><p>agressor quando este fracassa radicalmente em seu papel</p><p>de introdutor da cultura e representante da lei. A criança</p><p>vê-se então convocada a assumir o papel do adulto e se</p><p>62</p><p>Víáa e morte do bebé sábio</p><p>tornar o pai t a mãe de seus pais, ou nas palavras de Ferenczi</p><p>a tornar-se o "psiquiatra da família", assumindo a culpa e a</p><p>responsabilidade que o adulto não pôde assumir pelos seus</p><p>atos. A noção de identificação ao agressor define esta relação</p><p>em que a criança tende a se identificar com a vulnerabilidade</p><p>narcísica percebida no adulto, tentando compensá-la.</p><p>Como consequência desta aceleração no tempo do</p><p>viver, a criança se vê na impossibilidade de dar sentido às</p><p>suas vivências excessivamente intensas e transformá-las</p><p>em experiências que façam parte do seu repertório sim-</p><p>bólico. Ter sua subjetividade, ameaçada, seu espaço psí-</p><p>quico invadido por estímulos intoleráveis porque incom-</p><p>preensíveis, caracteriza o trauma. A ruptura traumática,</p><p>uma vez que se marca como excesso, não se inscreve como</p><p>representação, como traço mnêmico. O choque traumá-</p><p>tico, segundo Ferenczi, tem um efeito fragmentador do</p><p>qual o sujeito se</p><p>defende pela auto-clivagem narcísica,</p><p>criando um espaço de viver paradoxal, no qual um eu</p><p>passa a saber tudo mas não sente nada, enquanto o eu</p><p>ferido mantêm-se especialmente suscetível a tudo que</p><p>emana do sensório mas está impedido de saber. A ima-</p><p>gem onírica do bebé sábio surge como representação des-</p><p>ta clivagem, na qual dois eus convivem sem se tocarem.</p><p>O DESENCONTRO ESTRUTURATX>R</p><p>Considerando a dimensão de acontecimento traumáti-</p><p>co, a figura do bebé sábio remete à criança que adquire um</p><p>saber sobre o sexual antes do tempo para compreendê-lo.</p><p>63</p><p>Eliana Schueler Reis</p><p>A noção de trauma não se restringe, como se pode pensar</p><p>mais imediatamente, à situação clássica de uma criança</p><p>violentada sexualmente por um adulto. O trauma é sem-</p><p>pre sexual; sabemos porém que o sexual em psicanálise</p><p>diz respeito aos investimentos pulsionais, ao estabeleci-</p><p>mento de relações de equívalências entre as sensações de</p><p>um corpo que entra na vida e o mundo que o circunda.</p><p>Sexualizar é fazer ligações, é humanizar e subjetivar. O</p><p>bebé humano nasce imerso na cultura, ele não é um ser</p><p>da natureza, e o pertencimento à cultura se constrói num</p><p>processo dinâmico da relação entre o bebé e aqueles que</p><p>o recebem, que devem dele cuidar e iniciá-lo na vida.</p><p>Segundo Freud, a mãe seduz seu filho para a vida, para o</p><p>amor, ao tocá-lo, acariciá-lo e investi-lo com seu desejo. O</p><p>que deseja uma mãe para seu filho? Geralmente que ele</p><p>cresça bonito, forte, saudável, inteligente e capaz de rea-</p><p>lizar em sua vida as aspirações de que ela talvez tenha</p><p>tido que abdicar. Porém as relações dos pais com seus fi-</p><p>lhos não seguem somente este padrão. Quantas vezes apa-</p><p>rece o ódio e o desejo de morte! Quantas vezes deseja-se</p><p>não ter todas aquelas atribulações e angústias! Sim, por-</p><p>que o filho reedita para cada um de nós todas as possibili-</p><p>dades de prazer e de terror que foram experimentadas em</p><p>nossa própria história infantil.</p><p>Deste modo, a sedução realizada pela mãe não tem</p><p>um sentido unívoco de amor e prazer. Está carregada de</p><p>sentimentos ambivalentes que podem se presentificar nas</p><p>variações das tonalidades afetivas, da voz, dos gestos, do cor-</p><p>po, ou, quando a intensidade dos conflitos se revela maior,</p><p>nas ações dirigidas à própria criança. Ferenczi afirma que,</p><p>entre os objetos do mundo, os seres humanos têm como</p><p>64</p><p>Vida e morte do bebé sábio</p><p>característica própria serem instáveis, são os únicos obje-</p><p>tos que "mentem"3. E o fazem não porque sejam perver-</p><p>sos — apesar de poderem sê-lo — mas porque não sabem</p><p>de sua verdade, estão imersos na ordem do recalque, da</p><p>culpabilidade e da má consciência. Esta "mentira" torna-</p><p>se constitutiva do sujeito, deixando-o com uma brecha</p><p>entre o registro pulsional e as possibilidades de articula-</p><p>ção de seu desejo com o mundo.</p><p>Ê nessas dobras obscuras do desejo inconsciente do</p><p>adulto que a criança encontra espaço para se constituir</p><p>como nova subjetividade e não somente ser a cópia fiel</p><p>deste outro. O desencontro entre os códigos infantil e</p><p>adulto produz desintrincações pulsionais e a liberação da</p><p>potência disjuntora da pulsão de morte. Na brecha destas</p><p>disjunções têm origem os traços mnêmicos que surgem</p><p>como "cicatrizes de impressões traumáticas costuradas pela</p><p>força de Eros"4. No espaço vazio dá-se o processo de</p><p>subjetivação e é neste mesmo terreno do inesperado que</p><p>está a possibilidade do acontecimento traumático.</p><p>Consideramos portanto que o trauma não faz sua mar-</p><p>ca como fato isolado; faz parte de um conjunto de rela-</p><p>ções que dificultam ou impedem a circulação do sentido.</p><p>Quando o sofrimento torna-se indizível há como que</p><p>uma "imensidão de tempo vazio"5 que se prolonga numa</p><p>dimensão de espaço/tempo ampliada, vivida como um</p><p>"não estar lá", na qual os contornos do eu se desvanecem.</p><p>3 Ferenczi, S. "A adaptação da família à criança" (1928). Em: Obras</p><p>Completai. Volume IV. Op. cit, p- 11.</p><p>4 Ferenczi, S. "O problema da afirmação do desprazer" (1926). Em:</p><p>Obras Completas. Volume 111. Op. cit., p. 40Z.</p><p>5 Deleuze, G. Conversações. Rio de Janeiro, Editora 34,1992, p. 198-9.</p><p>65</p><p>Eliana Scíu«!er Reis</p><p>O Trauma está fora do tempo cronológico e mesmo fora</p><p>do tempo do traço mnêmico, dos sistemas de memória ]</p><p>inconsciente. Com isto altera-se a noção de a posteriori,</p><p>na qual o trauma se dá em dois tempos, instaurando um</p><p>passado que se atualiza no presente como reminiscência.</p><p>O trauma visto por Ferenczi é o que se repete num</p><p>tempo único, original, no qual não há passado nem pre-</p><p>sente, somente a repetição agida como acuai.</p><p>A CRIANÇA COMPASSIVA</p><p>Retomar o tema do trauma psíquico implica colocar</p><p>em questão o recalcamento como forma predominante</p><p>de organização de defesas na neurose. Segundo Ferenczi,</p><p>a vivência traumática leva o sujeito à comoção psíquica</p><p>que atua como um estado psicótico passageiro; neste se</p><p>rompe a continuidade do processo identificatório através</p><p>do qual o sujeito se reconhece. O sonho do bebé sábio</p><p>expressa a violência desta experiência que obriga a crian-</p><p>ça a amadurecer mais rápido, através da fixação de iden-</p><p>tificações paradoxais, para poder cuidar de si, de sua sobre-</p><p>vivência, e desempenhar o papel que caberia ao adulto.</p><p>Para escapar da fragmentação psíquica a criança tor-</p><p>na-se pai de seus pais, mas paga um preço por isso: a auto-</p><p>clivagem narcísica implica na perda de modalidades</p><p>experienciais que organizam o registro do infantil segun-</p><p>do a linguagem da ternura. Passando por um amadureci-</p><p>mento precoce, forjado de suas feridas, o eu infantil se</p><p>66</p><p>Vida e morte do bebé sábio</p><p>organiza em torno de sentidos unívocos, impedido de ace-</p><p>der à polissemia do desejo.</p><p>Deste modo, paralelamente ao ódio, o tema do bebé</p><p>sábio nos confronta com outro efeito da clivagem utiliza-</p><p>da como estratégia de sobrevivência subjetiva: o</p><p>surgimento de uma criança compassiva que cuida de si e</p><p>dos outros de várias formas, desde a auto-observação à</p><p>observação acurada das relações em processamento em</p><p>seu ambiente familiar e à interpretação compulsiva do real,</p><p>através de uma leitura semiótica de informações que cir-</p><p>culam num nível não verbal. O sujeito torna-se especial-</p><p>mente sensível às modulações afetivas emergentes que</p><p>correspondem aos afetos de vitalidade, definidos por</p><p>Stern6 como as variações de intensidades de tonalidade</p><p>afetiva presentes em todo ser vivo.</p><p>Os afetos de vitalidade se diferenciam dos afetos cate-</p><p>góricos, nomeados como alegria, tristeza, raiva, dor, medo,</p><p>etc., que se constituem como conceitos representacionais</p><p>afetivos. São estados indefiníveis de apreensão sensória</p><p>imediata, epidérmica, através da qual percebemos as va-</p><p>riações intensivas, tal como os ritmos, tonalidades de voz,</p><p>tônus corporal e de movimentos entre outros, presentes</p><p>de modo inconsciente em todas as ações que realizamos.</p><p>Segundo Stern, a integração das impressões sensíveis re-</p><p>sultantes de cruzamentos amodais dos afetos de vitalida-</p><p>de constituem a emergência de um senso de eu e do outro</p><p>que permanece como fundamento inconsciente do pro-</p><p>cesso de subjetivação.</p><p>6 Stern, D. O mundo interpessoal do bebé. Porto Alegre, Artes Médicas,</p><p>1992, p. 47-53.</p><p>67</p><p>Eliana ScKueler Reis</p><p>Baseado em dados retirados de observações e experi-</p><p>mentos dos psicólogos desenvolvimentalistas, Stern afir-</p><p>ma que os bebes, desde seu nascimento, dedicam-se à ta-</p><p>refa de organizar suas experiências, num incessante tra-</p><p>balho de doação de sentido ao seu mundo através da or-</p><p>ganização de suas primeiras percepções. O que um bebé ini-</p><p>cialmente percebe dos outros são estas variações de intensi-</p><p>dade presentes em cada gesto, em cada tom de voz, que não</p><p>são definidas por categorias afetivas mas que lhe apresentam</p><p>uma infinidade de sensações. Pela repetição cotidiana dessas</p><p>variações serão construídas pelo bebé algumas séries de</p><p>invariantes ou "ilhas de consistência", sob as quais se dá a</p><p>organização de um senso de eu e do outro emergentes.</p><p>Esta sensibilidade emergente permanece ativa de for-</p><p>ma perene, servindo de suporte às outras formas subse-</p><p>quentes de subjetivação, funcionando como uma retaguar-</p><p>da para a qual se recua ante a um sinal</p><p>de ameaça ao</p><p>equilíbrio atual. É como se esta memória sensória arcaica,</p><p>pré-verbal, nos servisse como sistema de reorientação nos</p><p>momentos de ruptura do sentido construído pelo sistema</p><p>de representações simbólicas. O senso de eu emergente</p><p>possui uma forma de saber estranha à linguagem verbal e</p><p>conceituai, estranha ao universo simbólico humano no</p><p>que este tem de histórico e cultural.</p><p>O ESTRANHO INFANTIL</p><p>Através desses conceitos procuramos nos aproximar</p><p>do que seria uma subjetividade "bebé sábio", com toda a</p><p>68</p><p>Vida e morte do bebé sábio</p><p>estranheza que esta imagem produz: a de um ser que,</p><p>mesmo sabendo, permanece sendo um bebé. Um ser meio</p><p>monstruoso fruto da hybrist assim como os seres míticos</p><p>feitos de partes de seres diferentes, que mostram em sua</p><p>ambiguidade a natureza tortuosa do espírito humano. Esta</p><p>subjetividade nos confronta com algo que permanece atu-</p><p>ando paralelamente, nem soterrado pelo recalque nem</p><p>acessível ao sentido, mas clivado do eu social.</p><p>No sonho relatado a imagem do bebé falante e irado</p><p>remete à angústia resultante dos confrontos entre os mun-</p><p>dos infantil e adulto, pois ao mesmo tempo que é bebé e</p><p>precisa de cuidados, ele tem o poder de agredir e incomo-</p><p>dar. O incómodo é causado pela presença do infantil no</p><p>que este representa para nós aquilo que não foi submeti-</p><p>do a uma ordenação simbólica. Não se trata, portanto, da</p><p>relação da criança real com o adulto real, pois a presença</p><p>do bebé sábio não se esgota num confronto intersubjetivo</p><p>entre o adulto e a criança. Trata-se primordialmente de</p><p>um confronto intra-subjetivo, já que o adulto traz em si a</p><p>presença da criança que não deixou de ser. Mesmo clivada</p><p>ou recalcada, ela retorna com os efeitos inconscientes de</p><p>uma nostalgia, expressando a memória do desamparo ex-</p><p>perimentado na primeira infância, a angústia primordial</p><p>de separação e ameaça de aniquilamento.</p><p>A imagem do bebé sábio representa uma ameaça in-</p><p>terna para o adulto quando simultaneamente o seduz e</p><p>assusta com sua onipotência. É o "estranho familiar", o</p><p>que é mais próximo e ao mesmo tempo mais desconheci-</p><p>do; a criança que não precisou crescer e passar pelas vi-</p><p>cissitudes da vida para saber-se submetida à ordem do trau-</p><p>69</p><p>Eííarm Scfmeler Reis</p><p>maciço emerge como angústia de morte e instala um tempo</p><p>que se repete sempre como presente.</p><p>O bebé sábio foi percebido por Ferenczi como o que</p><p>nos remete ao infantil, àquilo que não se deixa dizer mas</p><p>se faz presente nos atos, nas sensações inesperadas seja</p><p>através do sintoma, do sonho, seja nas possibilidades de</p><p>criação de algo novo. Não é uma questão de lembrança</p><p>do passado, mas de experiência presente, pois não somos</p><p>todos, como pensava Ferenczi, bebés sábios tentando com-</p><p>preender um mundo que sempre nos surpreende?</p><p>O QUE O SONHO TRAZ</p><p>Ferenczi considera que todo sonho tem uma função</p><p>de liquidação de traumas, já que "o estado de sono facili-</p><p>ta a tendência à repetição de impressões sensíveis trau-</p><p>máticas não resolvidas e que aspiram à resolução"7.0 ato</p><p>de sonhar permite a atualização dessas impressões através</p><p>de pequenas descargas pulsionais e de um trabalho de re-</p><p>significação realizado pelo sonho. Desta forma, o sonho</p><p>não é apenas uma tentativa de realização de desejos</p><p>recalcados, mas principalmente a possibilidade de reviver</p><p>o trauma (como assinala Freud a respeito dos sonhos trau-</p><p>máticos e dos sonhos em análise8) e através dessa repeti-</p><p>ção realizar o trabalho de ligação do excesso pulsional que</p><p>ameaça a subjetividade.</p><p>7 Ferenczi, S. "Reflexões sobre o trauma" (1934)- Em: Obras Comple-</p><p>tos. Volume IV. Op. cit., p. 111-3.</p><p>8 Freud, S. "Más alia dei principio de placer" (19ZO). Obras Completas.</p><p>Volume XVIII. Buenos Aires, Amorrortu, 1989.</p><p>70</p><p>Vida e morte do bebé sábio</p><p>No sonho da paciente vemos aparecer a clivagem atra-</p><p>vés dos dois personagens: a moça adulta e o bebé que</p><p>carrega nas costas; ela tem que cuidar dele para seu pai.</p><p>A figura compassiva deve cuidar do outro intratável. Po-</p><p>rém a figura de pai presente neste sonho garante a perma-</p><p>nência da dimensão da lei da cultura e não de uma lei</p><p>pessoal. Por isto ela não se vê paralisada de terror pela</p><p>morte do bebé, ao contrário sente alívio por não precisar</p><p>mais carregá-lo. Seu temor pela reação do pai não é mai-</p><p>or do que seu alívio, pois na presença da figura paterna</p><p>está a possibilidade de mediação dos sentimentos de ódio</p><p>e culpabilidade. Nenhuma punição absurda, nada que</p><p>tenha o poder mortal de anular o sentido virá desta figu-</p><p>ra. Ela sabe que deverá se explicar sobre a morte do bebé,</p><p>mas isto representa a inserção da destrutividade na or-</p><p>dem da linguagem.</p><p>A morte do bebé se dá por afogamento, mas ele na</p><p>verdade se desfaz, perde os contornos terríveis, vira outra</p><p>coisa. Este sonho vem como possibilidade de expressar</p><p>desejos e aspirações, o que até então fora vivido como</p><p>interditado, sendo todo o investimento concentrado na</p><p>evitação de um mal que pudesse estar causando a alguém.</p><p>A culpabilidade exacerbada é resultante da identificação</p><p>com figuras percebidas como criminosas, das quais ela</p><p>herdara diretamente a culpa, sentindo-se sem condições</p><p>de diferenciar o que é da ordem do desejo, que pertence</p><p>ao registro da pulsão sexual, e o que é da ordem da</p><p>destrutividade pura, como expressão da pulsão de morte.</p><p>Quando nos aproximamos da obra de Ferenczi, o que</p><p>primeiro chama a atenção é sua preocupação com a cura,</p><p>71</p><p>Eliana Schueler Reis</p><p>sua inquietação com o sofrimento e a consideração pela</p><p>presença concreta da dor no espaço da análise. Ele se per-</p><p>gunta que contribuição a análise pode dar àqueles que</p><p>passaram por uma desilusão desmedida e encontraram na</p><p>fragmentação de si a única medida defensiva possível. A</p><p>resposta esboçada por ele em seus últimos trabalhos e em</p><p>seu Diário Clínico é que cabe ao analista se manter dispo-</p><p>nível para admitir que esta realidade psíquica só pode se</p><p>expressar numa dimensão agida, pois não se formulou ain-</p><p>da como um código de representações simbólicas. Ou seja,</p><p>não há condições de se estabelecer equivalências do tipo</p><p>"como se" onde não existe uma mediação imaginária e</p><p>simbólica para o vivido.</p><p>Se o narcisismo do analista suportar a pressão exercida</p><p>por esta transferência em muitos momentos agida,</p><p>produz-se um mergulho em profundidade em diferentes es-</p><p>tágios desse 'estar-fora-de-si', 'estar ausente1, fora do tempo</p><p>e fora do espaço, da onísciência, da visão à distância e do</p><p>agir à distância.9</p><p>A imagem do mar pode ser vista como este mergulho</p><p>na análise e na vida, trazendo a possibilidade de recons-</p><p>truir na relação transferencial as identificações com as-</p><p>pectos da feminilidade e da maternidade que estavam</p><p>congeladas pelas marcas traumáticas de um abandono</p><p>vivido muito precocemente.</p><p>Este sonho traz à tona a possibilidade de se desfazer a</p><p>posição de criança sábia, amadurecida precocemente e que</p><p>deve se responsabilizar por tudo que ocorre ao seu redor.</p><p>9 Ferenczi, S. Diário Clínico. São Paulo, Martins Fontes, 1990, p, 66.</p><p>72</p><p>Vida e morte do bebé sábio</p><p>Tornar-se um bebé sábio atua como medida de sobrevi-</p><p>vência física e psíquica, porém permanecer para sempre</p><p>nesta posição passa a ser um impedimento para a vida e a</p><p>criação. Deixar se desmanchar este bebé odiento é abrir</p><p>mão de defesas estruturadas pelos impulsos destrutivos</p><p>da pulsão de morte e buscar novas formas de relação com</p><p>o mundo, que permitam a proximidade com o outro. Esta</p><p>morte é necessária para que o infantil possa se apresentar</p><p>como o que representa a abertura para o inesperado, para</p><p>a realização de novas introjeções, expressado aqui pelo</p><p>desejo de mergulhar no mar e chegar a outra terra.</p><p>Mas para que esta passagem possa se dar é necessário</p><p>que o analista ocupe a posição de ouvinte de uma língua</p><p>esquecida que se faz presente como ato no espaço analítico.</p><p>Neste momento o analista vê-se diante da radicalidade</p><p>da transferência, no terreno demoníaco do jogo das pulsões</p><p>de vida e morte, onde não há o que interpretar e desvelar.</p><p>Trata-se então da possibilidade de vir a se inscrever algo</p><p>novo; não um novo conteúdo psíquico, mas um novo</p><p>modo de articulação</p><p>dos temas de uma história. Não se</p><p>pode matar inteiramente o bebé sábio, fazer como se ele</p><p>nunca tivesse existido, mas talvez nós analistas possamos</p><p>ser um elemento a mais nas mãos deste bebé, um carretel</p><p>com o qual ele brinque e, através deste brincar, consiga</p><p>lançar-se numa nova aventura subjetiva.</p><p>73</p><p>E AGORA EU ERA O HERÓI...</p><p>o brincar na teoria psicanalítica</p><p>Eliza Santa</p><p>O BRINCAR É o BRINCAR</p><p>Os estudos sobre o fenómeno do brincar sob a ótica</p><p>da psicanálise são contemporâneos à construção do edifí-</p><p>cio teórico freudiano. Em 1919, Sigmund Pfeifer escreve</p><p>Manifestações das pulsões eróticas infantis nas brincadeiras:</p><p>posições da psicanálise face às teorias do brincar, que con-</p><p>tém, segundo Petot1, uma teoria completa sobre o signifi-</p><p>cado dos jogos infantis. Neste artigo o brincar é relacio-</p><p>nado às formações do inconsciente—sonhos, atos falbos,</p><p>chistes — e considerado como expressão direta da sexua-</p><p>lidade infantil.</p><p>Melanie Klein, por sua vez, a partir de 1921 inicia a</p><p>sistematização da psicanálise de crianças através do brin-</p><p>car e de sua interpretação. Suas teses são muito seme-</p><p>1 Petot, J. Melanie Klein [. São Paulo. Perspectiva, 1987, p- 90</p><p>75</p><p>liza Santa Roza</p><p>lhantes às de Pfeifer e sua teoria resulta numa proposta</p><p>para a prática da psicanálise: o brincar possui um conteú-</p><p>do manifesto que submetido à interpretação do analista</p><p>revela um conteúdo latente. Ele é regido pelos mesmos</p><p>mecanismos do trabalho onírico e invariavelmente expres-</p><p>sa fantasias construídas em torno da cena primária. Para</p><p>esta autora, o brincar também representa uma descarga</p><p>pulsional que opera como um impulso contínuo para a</p><p>atividade lúdica. O jogo portanto se oferece como um</p><p>meio de expressão e como descarga de fantasias</p><p>masturbatórias2.</p><p>A partir destas indicações, muitos autores têm se de-</p><p>tido nesta temática e na grande maioria dos trabalhos en-</p><p>contramos referências à identidade do brincar com os so-</p><p>nhos e como expressão direta das fantasias inconscientes.</p><p>Todavia esta visão pode nos fazer crer que haveria um</p><p>tipo de conduta humana na qual a sexualidade infantil se</p><p>manifestasse diretamente, ou melhor que a realidade psí-</p><p>quica — o desejo e as fantasias que o circundam — se</p><p>apresentasse de maneira inequívoca.</p><p>Ora, o sonho, o devaneio, o chiste e o ato falho não</p><p>possuem estes atributos: eles, por serem formações do in-</p><p>consciente, têm seu conteúdo manifesto deformado pelos</p><p>mecanismos de condensação e deslocamento e pela cen-</p><p>sura. Além disso o brincar não é um conceito psicanalíti-</p><p>co, não é uma formação do inconsciente, implicando por-</p><p>tanto numa sistematização de diferenças. Não se pode</p><p>aplicar ao fenómeno lúdico as mesmas caracterizações que</p><p>se dão ao sonho ou ao fantasma.</p><p>2 Klein, M. Psicanálise da criança. São Paulo, Mestre Jou, 1975, cap. l.</p><p>76</p><p>E agora eu era o herói...</p><p>Winnicott foi um dos autores que sinalizaram para esta</p><p>diferença, abrindo espaço para um enunciado inovador</p><p>acerca do brincar. Este fenómeno deve ser estudado como</p><p>um tema em si mesmo pois se passa num espaço interme-</p><p>diário entre o objetivo e o subjetivo. Assim, ele não é re-</p><p>alidade psíquica: está fora do sujeito, mas não é tampouco</p><p>mundo externo. Também não é sonho, pois a criança não</p><p>alucina ainda que haja um potencial onírico no jogo3.</p><p>Winnicott ressalta a dimensão de criatividade no brin-</p><p>car, aspecto que também Freud marca no artigo "O Cria-</p><p>dor Literário e a Fantasia". Ao discutir as relações de iden-</p><p>tidade entre o brincar, os devaneios e a criação literária,</p><p>Freud nos fornece uma direção na qual podemos situar o</p><p>lugar das fantasias e dos desejos inconscientes no brincar,</p><p>preservando sua condição de atividade essencialmente</p><p>criativa. É neste sentido que pretendemos desenvolver</p><p>uma leitura psicanalítica do fenómeno lúdico.</p><p>BRINCAR, SONHOS E DEVANEIOS</p><p>Numa das vertentes de compreensão psicanalítica do</p><p>brincar é dada uma ênfase em torno de seu paralelismo</p><p>com os sonhos. Pfeifer em seu artigo pioneiro propõe que o</p><p>brincar é regido pelos mesmos mecanismos do trabalho</p><p>onírico— a condensação, o deslocamento e o simbolismo—</p><p>e que toda a atividade lúdica da criança estaria a serviço da</p><p>realização de desejos. Para ele a única diferença entre os dois</p><p>3 Winnícotc, D. W. Playing and redity. London, Penguin Books, 1988.</p><p>77</p><p>Santa Rojrt</p><p>é que o sonho se caracteriza pela representação em imagens</p><p>enquanto o brincar é a representação em atos simbólicos4.</p><p>Num dos exemplos citados por Pfeifer, uma criança</p><p>de seis anos brincava de "furar o porco": o menino senta-</p><p>va-se sobre uma peça de madeira (o porco); grunhia como</p><p>este animal, furando-o em seguida. O autor interpreta este</p><p>jogo como a representação simbólica do assassinato do pai,</p><p>identificação com o pai-porco e o desejo de tomar o seu lu-</p><p>gar. O porco era uma sobredeterminação: tanto era o pai a</p><p>ser furado-assassinado, quanto a mãe na posição do coito5.</p><p>Exatamente da mesma forma que Pfeifer, Klein nos</p><p>oferece uma visão na qual haveria uma tradução direta</p><p>das imagens do jogo em elementos inconscientes. Eis um</p><p>exemplo: um menino brincava com duas carroças que</p><p>colidiam, de modo que as patas dos cavalos se chocavam.</p><p>Em seguida os cavalos vão dormir e o menino concluía</p><p>que estavam mortos. Esta cena é interpretada por Klein</p><p>como sendo a relação de duas pessoas — papai e mamãe</p><p>— que batiam seus órgãos genitais6.</p><p>O que estes exemplos de interpretação revelam de</p><p>imediato é uma contradição. Se de fato o brincar é regido</p><p>pelos mesmos mecanismos do sonho, o conteúdo mani-</p><p>festo não é um "retrato" do conteúdo latente, pois este</p><p>está deformado pela condensação, pelo deslocamento e</p><p>pelo simbolismo. Assim ficamos entre duas hipóteses: ou</p><p>Pfeifer e Klein não levam em consideração a complexida-</p><p>de das tramas de pensamento que resultam no conteúdo</p><p>4 Petot, J- Melaine Klein I, op. cit., p. 90.</p><p>5 Idem.</p><p>6 Klein, M. Psicanálise da criança, op. cit-, p. 43.</p><p>78</p><p>E agora eu era o herói.</p><p>final do sonho (ou do brincar), ou então o brincar, para</p><p>estes autores, é uma atividade capaz de expressar dire-</p><p>tamente a realidade psíquica e portanto é distinto dos</p><p>sonhos.</p><p>Sabemos bem que para Freud os sonhos não constitu-</p><p>em manifestações diretas dos desejos e fantasias inconsci-</p><p>entes. Estes últimos são mascarados pela ação dos meca-</p><p>nismos de formação onírica e a apresentação manifesta</p><p>do sonho é frequentemente absurda e confusa. Ainda</p><p>quando mostra coerência, o sonho se contrapõe à nossa</p><p>vida anímica como algo estranho, acerca do qual não en-</p><p>contramos explicação7.</p><p>Os jogos infantis, ao contrário, são em geral roteiros</p><p>coerentes, mesmo quando contêm elementos que se con-</p><p>trapõem à realidade material: voar, mudar de tamanho,</p><p>possuir super-poderes etc. Estes elementos não implicam</p><p>para a criança nenhum sentimento de estranheza, pois</p><p>no brincar há uma consciência da irrealidade da trama,</p><p>que é produzida intencionalmente.</p><p>O papel da consciência tem então no brincar uma</p><p>importância fundamental. O sonho é construído durante</p><p>o estado de sono, de alteração da consciência, quando a</p><p>reatividade sensorial e a atividade motora estão bastante</p><p>reduzidas. O pensamento vígil encontra-se interrompido</p><p>e o sonhador não exerce nenhum domínio consciente</p><p>sobre o desenrolar de seu sonho. Ele possui um catáter</p><p>alucinatório que implica numa indistincão da irrealidade</p><p>e do vivido, que só alcança a consciência ao despertar.</p><p>7 Freud, S. "El chiste y su lelación con Io inconsciente" (1905). Em:</p><p>Obras Completas. Volume VIII. Buenos Aires, Amartortu, 1986, p. 154.</p><p>79</p><p>Elizfl Santa Roça</p><p>O brincar é, por sua vez, uma atividade consciente,</p><p>inscrita numa realidade perceptivo-motora, mediatizada</p><p>por objetos reais, na qual o desenrolar da ação é determi-</p><p>nado pela criança. Ela sabe que se trata de algo imagina-</p><p>do, de pura ficção. Ela não alucina.</p><p>Nesta distinção parece-nos evidente que apesar dos me-</p><p>canismos presentes na formação onírica poderem estar pre-</p><p>sentes no brincar — predominantemente o simbolismo —,</p><p>sua apresentação manifesta encontra-se regulada pelo siste-</p><p>ma Pré-consciente/Consciente (Pcc./Cc.), domínio do pro-</p><p>cesso secundário. Deste modo incide sobre o conteúdo la-</p><p>tente do brincar predominantemente a elaboração secundá-</p><p>ria, aspecto que nos parece negligenciado por Pfeifer e Klein.</p><p>Ao sinalizarmos então para a prevalência da elabora-</p><p>ção secundária no brincar, em função de uma certa dife-</p><p>renciação dos sonhos, aproximamos a atividade lúdica dos</p><p>devaneios. Seria isto uma contradição, já que Freud nos in-</p><p>dica o grau de parentesco entre os sonhos e os devaneios?</p><p>De fato, eles possuem propriedades comuns: como os so-</p><p>nhos, os devaneios são realizações de desejos, baseiam-se em</p><p>grande parte em vivências infantis e gozam de um certo rela-</p><p>xamento da censura. Todavia neles a elaboração secundária</p><p>tem um papel predominante. O desejo inconsciente</p><p>subjacente ã sua produção é, pela ação da elaboração secun-</p><p>dária, reordenado e recomposto para constituir um novo</p><p>material que, segundo Freud, mantém com as reminiscênci-</p><p>as do passado a mesma relação que os palácios barrocos de</p><p>Roma possuem com as ruínas antigas. Os pilares e as colu-</p><p>nas serviram de material para uma construção moderna8.</p><p>8 Freud, S- "La interpretador! de los suenos" (1900). Em: Obras Com-</p><p>pletas. Volume V. Op. cit., p. 489,</p><p>80</p><p>E agora eu era o Herói.,.</p><p>A elaboração secundária nos sonhos é portanto efeito</p><p>da incidência do pensamento Pcc./Cc., instaurando-se</p><p>sobretudo quando o indivíduo se aproxima do estado de</p><p>vigília e no relato do sonho. Freud sinaliza para a função</p><p>inovadora, criativa, do trabalho da elaboração secundá-</p><p>ria. Em outro momento de sua obra ele ressalta as rela-</p><p>ções deste mecanismo com a atividade do pensamento</p><p>consciente e seu potencial inovador:</p><p>Uma função intelectual dentro de nós exige, de todo mate-</p><p>rial da percepção ou do pensar do qual se apodere, unifica-</p><p>ção, coerência, inteligibilidade... é possível demonstrar que</p><p>sobreveio um reordenamento do material psíquico em dire-</p><p>ção à uma nova meta.9</p><p>De qualquer modo, seja nos sonhos, seja nos devanei-</p><p>os ou no brincar, não existe uma equivalência direta en-</p><p>tre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente. A presen-</p><p>ça da fantasia sobre a qual incide a censura impede que</p><p>seja estabelecida uma redutibilidade inequívoca da mani-</p><p>festação com o desejo. Por certo não negamos as relações</p><p>entre desejo inconsciente e fantasias com o brincar. O</p><p>que nos parece problemático é a caracterização de uma</p><p>manifestação essencialmente imaginativa e consciente</p><p>como algo no qual se pudesse vislumbrar imediata e dire-</p><p>tamente a sexualidade infantil. E evidente que para a psi-</p><p>canálise o pano de fundo de toda e qualquer atividade</p><p>humana é a sexualidade infantil e seus avatares, enfim, os</p><p>destinos da pulsão. Todavia há diferenças fundamentais</p><p>no modo pelo qual ela se manifesta, por exemplo como</p><p>9 Freud, S. "Totem y tabu" (1913). Em: Obras Completas. Volume XIII.</p><p>Op. cit,p. 98.</p><p>81</p><p>Eíiía Santa Roja</p><p>sintoma (recalcamento) ou produção cultural (sublima-</p><p>ção) . Neste sentido Freud nos apontará a dominância do</p><p>desejo inconsciente nas produções culturais, traçará sua</p><p>estreita relação com o brincar e sinalizará sua</p><p>especificidade.</p><p>AS CRIANÇAS, ESSES ARTISTAS...</p><p>Num artigo de 1908, "O Criador Literário e a Fanta-</p><p>sia", Freud estabelece o elo de continuidade entre o brin-</p><p>car e os devaneios. O adulto deixa de brincar mas não</p><p>renuncia ao grande prazer que esta atividade lhe propor-</p><p>cionava. Agora constrói seus "castelos no ar", os sonhos</p><p>diurnos que possuem as mesmas características essenciais</p><p>do brincar: remodelam as coisas do mundo a sua maneira,</p><p>para que se tornem agradáveis. Apenas o apoio em objetos</p><p>palpáveis do mundo real diferencia o brincar do fantasiar10.</p><p>Detendo-se então na análise dos devaneios, Freud</p><p>delineia suas características, cujo primeiro fundamento</p><p>seria a realização de desejos. As forças pulsionais das fan-</p><p>tasias são a realização de desejos insatisfeitos através de</p><p>uma retificação imaginária da realidade insatisfatória.</p><p>Cada fantasia singular é uma realização sempre referida à</p><p>sexualidade: na mulher são francamente eróticas; no ho-</p><p>mem, vinculadas à exaltação da personalidade, à ambi-</p><p>ção, em última análise dirigidas à conquista erótica".</p><p>10 Freud, S. "El creador literário y el fantaseo (1908). Em: Obras Com-</p><p>pletas. Volume IX. Op. cit, p. 128.</p><p>l lidem, p. 130.</p><p>82</p><p>E agora eu era o fierói...</p><p>Uma segunda característica do fantasiar é o seu nexo</p><p>temporal, representando simultaneamente passado, pre-</p><p>sente e futuro.</p><p>O trabalho anímico se aproveita de uma impressão atual,</p><p>de uma ocasião do presente que foi capaz de despertar os</p><p>grandes desejos da pessoa; daí se remonta à lembrança de</p><p>uma vivência anterior, infantil na maioria das vezes, na quai</p><p>o desejo se realizava, e então cria uma situação referida ao</p><p>futuro, que se figura como realização do desejo.12</p><p>De fato, a significação do brincar como uma correção</p><p>imaginária da realidade e como uma possibilidade de rea-</p><p>lização de desejos pode ser vista como um fator que, em</p><p>última análise, determina a própria existência do fenó-</p><p>meno lúdico. Na vertente filosófica, os autores que se</p><p>dedicaram à análise do jogo dão a ele este significado.</p><p>Jacques Henriot, por exemplo, nos diz que o jogo é signo</p><p>da falência e da insuficiência do ser. A existência do lúdico</p><p>no universo humano é resultante da profunda inquietude</p><p>de um ser incapaz, por sua natureza, de encontrar a satis-</p><p>fação plena e coincidir consigo mesmo13.</p><p>O pensamento de Eugen Fink é ainda mais coincidente</p><p>com o de Freud: "De fato, no jogo nós nos regozijamos da</p><p>possibilidade de recuperar as oportunidades perdidas... Nós</p><p>podemos rejeitar o fardo de nossa própria história de vida14.</p><p>Assim podemos dizer que o brincar é o primeiro deva-</p><p>neio que põe o desejo em movimento, articulando passa-</p><p>do, presente e futuro. No jogo do Fort-Da, descrito por</p><p>IZIdem.</p><p>13 Henriot, ]. Lejeu. Paris, PUF, 1976, p. 98.</p><p>14 Fink, E. Lê jeu comme symbole du monde, Paris, Minuit, 1966, p. 80.</p><p>83</p><p>Elíza Santa Roja</p><p>Freud, os movimentos do carretel, inscritos em coorde-</p><p>nadas espaço-temporais atuais, resgata do passado o con-</p><p>trole onipotente da criança sobre o objeto ao mesmo tempo</p><p>que a lança no universo da simbolização. Como diz Freud,</p><p>jamais renunciamos a nada, apenas permutamos uma coisa</p><p>pela outra. O que poderia aparentar uma renúncia — a</p><p>passividade da criança ante a ausência da mãe — é na</p><p>realidade uma formação de substituto (o jogo).</p><p>O brincar então é sempre uma atividade criativa, uma</p><p>vez que à falta se acrescenta uma nova construção, via</p><p>simbólico. Recordemos aqui a metáfora de Freud sobre os</p><p>devaneios: sobre os pilares antigos (passado, desejo) é erguida</p><p>uma construção moderna (futuro) com o material presente</p><p>(o brinquedo). É esta dimensão simbólica do brincar que</p><p>nos parece negligenciada nas proposições kleinianas. O jogo</p><p>não está portanto confinado ao princípio do prazer.</p><p>Voltemos ao artigo de 1908. Nele Freud se pergunta</p><p>se podemos comparar o poeta ao "sonhador em pleno dia".</p><p>Sua resposta é que, embora muitas criações literárias es-</p><p>tejam distanciadas do arquétipo do sonho diurno, o mo-</p><p>delo do devaneio está presente nas obras escritas. O que</p><p>ocorre nestas últimas é que o desejo inconsciente sofre</p><p>desvios através de uma série de transposições contínuas.</p><p>Assim, uma vivência atual desperta no poeta uma recor-</p><p>dação anterior da qual retira o desejo que procura sua</p><p>realização na criação literária15.</p><p>Um pouco mais tarde, em 1911, ele nos mostra que a</p><p>arte é um caminho peculiar, no qual existe uma reconcilia-</p><p>ção entre os dois princípios do funcionamento psíquico:</p><p>15 Freud, S. "El creador literário y elfamaseo" (1908).Op. cit, p. 133.</p><p>84</p><p>E agora ew era o herói,,.</p><p>O artista é originariamente um homem que se afasta da re-</p><p>alidade porque não pode renunciar à satisfação pulsional</p><p>que esta exigiria e dá livre curso, na vida de fantasia, aos</p><p>seus desejos eróticos e de ambição. Mas aí encontra o cami-</p><p>nho de regresso ao mundo de fantasia. Ele o faz colocando</p><p>suas fantasias num novo tipo de realidade efetíva que os</p><p>homens reconhecem como cópias valiosas da realidade ob-</p><p>jetiva. Por esta via</p><p>se converte, de certa maneira, em herói,</p><p>em rei, no contemplado pela sorte que gostaria de ser, sem</p><p>empreender para isto o enorme desvio que passa pela alte-</p><p>ração real do mundo exterior,16</p><p>Ora, é Freud quem compara o jogo da criança com a</p><p>criação literária. Segundo ele, no brincar a criança se com-</p><p>porta como um escritor criativo, construindo uma nova</p><p>ordem de coisas que lhe agrade. O jogo infantil comporta</p><p>então esta reconciliação dos dois princípios presente na</p><p>dialética da desilusão/ilusão; o princípio de realidade se</p><p>instaura na perda do objeto através de sua representação,</p><p>e a partir daí é instaurado um espaço ilusório que permite</p><p>a mediação entre o desejo e sua interdição. Nesta visão o</p><p>brincar é constituinte do fantasma, reordenando-o num</p><p>fluxo permanente de deslizamento metonímico-metafó-</p><p>rico. O brincar modifica então a dinâmica do sujeito, pois</p><p>sua dimensão simbólica renova a construção fantasmática.</p><p>Mais do que uma falsa realidade, o brincar é a imagi-</p><p>nação no sentido original do termo. A criança não perde</p><p>o sentido de realidade, e é esta esfera de irrealidade cons-</p><p>ciente do jogo uma de suas principais características, como</p><p>16Freud, S. "Formulaciones sobre los dos princípios dei acaecer</p><p>psíquico" (1911). Em: Obras completas. Volume XII. Op. cit., p. 229,</p><p>85</p><p>Eiiça Santa Roza</p><p>nos fala Huizinga, um dos primeiros autores a tematizar</p><p>sobre o fenómeno lúdico17. Ê uma duplicidade real/irreal</p><p>que corresponde às características de lei e invenção pre-</p><p>sentes no lúdico. O brincar pressupõe uma livre improvi-</p><p>sação na qual o principal atrativo é o prazer de conduzir-</p><p>se "como se", em oposição ao que se é, conforme assinala</p><p>Callois18.</p><p>Submetidos desde sempre à lei da interdição, à lei do</p><p>Édipo, começamos cedo a tentar dribá-la com nossas cri-</p><p>ações. Com o corpo, as mãos, os braços, as pernas; com</p><p>tudo o que cai em nosso poder, panos, pequenos objetos;</p><p>com bonecas, carrinhos, pedaços de pau e terra, e final-</p><p>mente com palavras...</p><p>17 Huizinga, J. Home Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Pau-</p><p>lo, Perspectiva, 1980, p. 17.</p><p>18 Caillois, R. Lês jeiaet lês hommes. Paris, Gallimard, 1967, p. 40-2.</p><p>86</p><p>DAS PALAVRAS-COISA A ESTA COISA DAS</p><p>PALAVRAS</p><p>o brincar na análise de adultos</p><p>Eiicma Schueler Reis</p><p>Ames de tudo foi o abismo (Caos)</p><p>depois a Terra (Gaia) (...)</p><p>e o Amor (Eros).</p><p>Teogonia, 116-119</p><p>"Agora que ganhei o prémio da loteria acho que eu pos-</p><p>so começar a terapia". Com essas palavras F. me propôs uma</p><p>relação que ficou marcada desde o início pela magia do jogo.</p><p>Tivéramos um primeiro contato alguns meses antes,</p><p>quando ele me procurara através de um convénio com a</p><p>clínica, na qual eu trabalhava na época, que dava direito a</p><p>um atendimento mais barato. Após nossa primeira entrevis-</p><p>ta ele ligou e disse para a secretária que não viria mais. Esta-</p><p>va saindo de férias e não sabia se voltaria a me procurar.</p><p>87</p><p>Eiícma Sc/iwekr Reis</p><p>Passaram-se dois meses e ele ligou marcando uma nova</p><p>entrevista. Nesse segundo encontro, F. me contou sobre</p><p>o prémio e como isto tinha lhe dado coragem de iniciar o</p><p>tratamento. Esta sua afirmação continha dois aspectos que</p><p>deviam ser levados em conta: tinha mais dinheiro poden-</p><p>do arcar com o custo do tratamento, e por outro lado o</p><p>prémio da loteria servia como um escudo mágico que</p><p>lhe dava coragem para realizar o primeiro movimento</p><p>em direção ao confronto com seus terrores.</p><p>A prática clínica tem me proporcionado o encontro com</p><p>pessoas que, como F., conduziram-me ao confronto com os</p><p>preceitos estabelecidos sobre o setting analítico. Fui apren-</p><p>dendo por ensaio e erro o quanto esses pacientes sofriam do</p><p>temor de serem invadidos por forças poderosas, percebidas</p><p>como originadas da realidade externa e adquirindo às vezes</p><p>qualidades quase alucinatórias. Na verdade, na história de</p><p>suas vidas essas forças em alguns momentos vieram realmente</p><p>de fora, significando um excesso ou uma falta de estimulação</p><p>nas relações primárias com o mundo externo.</p><p>Essas pessoas tiveram suas análises atravessadas por</p><p>estados-limite de sua subjetividade. Não me interessa</p><p>classificá-los como "casos-limite" ou "border-lines" e sim</p><p>procurar entender esses estados psíquicos e corporais</p><p>que se apresentavam subjetivamente como ameaças de</p><p>aniquilamento e morte. Essas experiências apontam</p><p>para um território psíquico que, mesmo sendo pensado</p><p>teoricamente, desafia a clínica ao colocar analista e pa-</p><p>ciente diante do impensável.</p><p>Tentando encontrar soluções para o problema repre-</p><p>sentado por esses pacientes, Ferenczi apresentou em 1931</p><p>88</p><p>r</p><p>Dos patavros-coisa a esta coisa das palavras</p><p>à Associação Psicanalítica de Viena um trabalho, produ-</p><p>to de suas últimas reflexões teor iço-clínicas, intitulado "A</p><p>análise de crianças na análise de adultos"1.</p><p>Como analista para o qual se costumava enviar os ca-</p><p>sos mais renitentes, recusava-se a considerar os fracassos</p><p>eventuais como sinal da inanalisabilidade do paciente e</p><p>sim como resultado das dificuldades do próprio analista</p><p>em adaptar sua técnica às necessidades de cada paciente</p><p>em particular. Referindo-se às modificações técnicas</p><p>introduzidas na análise de crianças, Ferenczi revelou que os</p><p>problemas encontrados em sua prática com analisandos adul-</p><p>tos o levaram a se aproximar dos analistas de crianças.</p><p>O infantil está sempre presente no espaço analítico</p><p>seja através dos sonhos e das fantasias inconscientes de</p><p>desejo, seja de modo mais concreto através de gestos, tons</p><p>de voz, sensações corporais fugazes, até fenómenos</p><p>dissociativos. São manifestações transferenciais que se</p><p>expressam por tonalidades afeavas, não podendo ser en-</p><p>tendidas somente pelo viés da resistência. Têm a qualida-</p><p>de de atos e como tal devem ser percebidas.</p><p>O agir tem um caráter de automatismo, de hábito, de</p><p>repetição aparentemente sem sentido. Mas a aparente</p><p>ausência de sentido configura um espaço potencial em</p><p>que o gesto automático pode se tomar o gesto criador. A</p><p>transferência ao analista coloca-o como objeto catalisador</p><p>de processos introjetivos capazes de anexar ao Eu do ana-</p><p>lisando atributos (diferenças) que vêm do outro — aque-</p><p>le que é ao mesmo tempo estranho e semelhante.</p><p>l Ferencii, S. "Analyse d'infants avec dês adultes" (1931). Em:</p><p>IV. Paris, Payot, 1982,</p><p>89</p><p>Elíona Schueler Reis</p><p>O estranho se faz semelhante pela repetição. É pela</p><p>repetição das brincadeiras e das histórias que as crianças</p><p>dominam a angústia que as ameaça constantemente em</p><p>seus contatos com o mundo. O menininho que pergunta</p><p>incessantemente sobre tudo que vê e que não vê está re-</p><p>petindo uma pergunta primordial: quem sou eu, quem é</p><p>você, como eu sou eu e não você? Essas perguntas preci-</p><p>sam encontrar destinatários que as possam receber e en-</p><p>tender que não importa muito a resposta e sim a possibi-</p><p>lidade de recepção do ato de perguntar.</p><p>Da mesma forma o analista muitas vezes se defronta</p><p>com perguntas originadas da angústia provocada pelo con-</p><p>fronto entre o psiquismo e o "estranho", que está fora e pre-</p><p>cisa ser salivado, deglutido, introjetado, para se tornar Eu2.</p><p>Winnicott, interessado nos aspectos psíquicos ainda</p><p>não organizados em um sulco significante, propõe o brincar</p><p>como o ato capaz de ligar o interno e o externo pela utiliza-</p><p>ção do espaço intermediário entre o Eu e o não-Eu. O espa-</p><p>ço transicional é o vazio de sentido que permite a criação,</p><p>área que não é disputada porque nenhuma reivindicação é</p><p>feita em seu nome exceto que ela exista como lugar de re-</p><p>pouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa hu-</p><p>mana de manter as realidades interna e externa separadas,</p><p>ainda que inter-relacionadas.3</p><p>2 O estranho remete à ordem pulsional, àquilo que originário do corpo</p><p>não se constituiu ainda como psíquico. Pode ser gerado tanto como</p><p>consequência da pressão exercida por estímulos externos quanto por</p><p>excitações internas. É o que perturba a ordem, produzindo oscilações e</p><p>desintrincações pulsionais que libertam a força disjuntiva das pulsões.</p><p>3 Wiiuúcott1D,W.ObnncareareaIid^.RiodeJaneÍrD,Imago, 1975, p. 15.</p><p>90</p><p>Dos palavras-coisa a esta coisa das palavras</p><p>Reportamo-nos ao conhecido</p><p>exemplo oferecido por</p><p>Freud4 do menino brincando com o carretel. Através de</p><p>sua brincadeira a criança domina a angústia pela repeti-</p><p>ção dos gestos e dos sons, surgidos no vazio da presença</p><p>da mãe. Nesse vazio ele cria um jogo no qual se</p><p>rés significam o sentido de sua existência (separada do</p><p>corpo da mãe) e da existência do objeto (que permanece</p><p>presente enquanto ausente) simbolizados na ligação en-</p><p>tre o gesto que controla o objeto e o som que o designa.</p><p>Fazendo a aproximação entre essas concepções, per-</p><p>cebemos que Ferenczi entende o espaço analítico como o</p><p>espaço capaz de conter não só as interpretações dos senti-</p><p>dos enigmáticos para o sujeito, mas também o vazio</p><p>transicional produtor de novos sentidos. O brincar signi-</p><p>fica um trabalho de criação não somente no sentido estri-</p><p>to de criação artística, mas de invenção, de abertura de</p><p>caminhos e de investigação sobre o real.</p><p>II</p><p>Gostaria de voltar ao relato de um fragmento desta</p><p>análise, responsável em grande parte por meu interesse</p><p>pela leitura de Ferenczi, Winnicott e outros autores que</p><p>abordam as mesmas questões. Desde o início do atendi-</p><p>mento, F. me deixou perplexa com o modo como falava</p><p>de seus problemas. Não tinha muita ideia do que era fa-</p><p>zer terapia, mas dizia não suportar mais o seu sofrimento.</p><p>4 Freud, S. "Más alia dei principio dei placer" (1920). Em: Obras Com-</p><p>pletas. Volume XVIII. Buenos Aires, Amorrortu, 1989, p. 14-15.</p><p>91</p><p>Eliana Schueler Reis</p><p>A primeira queixa formulada era de que não podia dizer</p><p>"não" para ninguém, fosse no trabalho ou nas relações de</p><p>amizade. Isso trazia consequências muito concretas para</p><p>sua vida, pois convidado para várias festas numa mesma</p><p>noite, sentia-se obrigado a ir a todas; ou se lhe pedissem</p><p>para fazer vários trabalhos ao mesmo tempo, era obrigado</p><p>a cumprir todas as tarefas. Da mesma forma, quando via-</p><p>java a trabalho levava uma bagagem excessiva, temendo</p><p>que lhe faltasse alguma peça. Mantinha-se numa agita-</p><p>ção constante, cortando a cidade em todas as direções,</p><p>tentando atender a compromissos em lugares distantes</p><p>uns dos outros, sem poder descansar.</p><p>Os horários de sessão foram durante um bom período</p><p>o único tempo no qual se permitia ficat quieto, apesar de</p><p>muito vigilante. De uma certa forma, esta foi a primeira</p><p>consequência terapêutica de sua análise: fazer do settíng um</p><p>lugar no qual o espaço e o tempo adquiriam a dimensão de</p><p>repouso necessária para que algo pudesse ser inventado.</p><p>Sua queixa inicial, aparentemente simplória, trazia em</p><p>si implicações muito amplas que não serão exploradas</p><p>nesse trabalho. Pretendo somente assinalar o modo como</p><p>a transferência emergiu com toda a sua força, logo nos</p><p>primeiros dias. No final de uma sessão F. me pediu que</p><p>ficasse com os seus remédios (tranquilizantes que tomava</p><p>para dormir), estendendo-os para mim, parado na porta</p><p>do consultório. Tomada de surpresa por esse pedido, eu lhe</p><p>disse que ele estava querendo saber se estava disposta a cui-</p><p>dar dele, de suas coisas. O que eu podia dizer é que poderia</p><p>fazê-lo se ele continuasse a vir e falar delas, inclusive dos</p><p>remédios. Quanto a estes, se eu os guardasse comigo, ele</p><p>92</p><p>Das palauroí-coísa a esta coisa das palavras</p><p>não poderia toma-los, já que ficaríamos separados nos dias</p><p>entre as sessões.</p><p>Ele não tinha se dado conta desse detalhe e ficou meio</p><p>desconcertado. Mas pareceu entender que a minha recu-</p><p>sa era relativa ao remédio e não ao pedido que me fizera.</p><p>Com a continuação do atendimento as questões</p><p>subjacentes a este pedido foram aparecendo. Não preten-</p><p>do me estender sobre elas e sim utilizar o relato de um</p><p>sonho e de alguns momentos de sua análise para ilustrar o</p><p>modo como se deu o processo.</p><p>Só uns sete a oito meses depois de iniciado o nosso traba-</p><p>lho F. relatou o primeiro sonho, pois não se lembrava deles</p><p>após acordar. Este sonho ocorreu quando estava viajando a</p><p>trabalho, como fazia com frequência. Ele costumava me te-</p><p>lefonar quando ficava muito angustiado durante as viagens.</p><p>Foi um sonho muito cansativo, passei a noite inteira so-</p><p>nhando e acordei muito cansado. Sonhei que estava com</p><p>um passarinho na mão e segurava ele assim (fez o gesto de</p><p>segurar algo bem pequeno apertado junto ao peito). Ele se</p><p>mexia e eu tinha medo de apertar muito e ele morrer. Mas</p><p>se eu afrouxasse a mão, ele podia voar e eu não podia deixar</p><p>que ele fugisse. Pensava que tinha de arrumar uma gaiola</p><p>em que ele pudesse ficar em segurança sem se machucar e</p><p>sem poder escapar, mas como que eu ia poder pegar uma</p><p>gaiola se tinha que ficar segurando ele com as duas mãos?</p><p>Passei a noite inteira assim, sem saber o que fazer e apavo-</p><p>rado com medo dele morrer ou fugir de mim. Quando acor-</p><p>dei de manhã bem cedinho eu estava tão cansado que não</p><p>sabia o que fazer. Fiquei assustado pensando que não ia con-</p><p>seguir trabalhar, por isso liguei para você naquele dia.</p><p>93</p><p>Eliana Schweler Reis</p><p>De início, F. não entendeu bem meu interesse pelo</p><p>sonho e não conseguiu associar nada além das sensações</p><p>e sentimentos que experimentou enquanto sonhava.</p><p>Quando lhe perguntei se não via uma semelhança entre a</p><p>situação do sonho e a sua vida, ficou me olhando com um</p><p>ar de dúvida, sem saber se levava em consideração o que</p><p>eu estava dizendo ou se aquilo tudo era uma bobagem.</p><p>F., como o menino do carretel, vivia a angústia de</p><p>separação como ameaça à sua integridade, mas, de modo</p><p>diferente do deste, não podia jogar com o objeto, pois para</p><p>ele não havia alternância entre ir e vir; se deixasse o pas-</p><p>sarinho voar, ele próprio se perderia. Não tinha com que</p><p>construir uma gaiola simbólica que o protegesse das</p><p>vivências diretas do real. Daí precisar ocupar todos os es-</p><p>paços, não poder dizer não, não poder viver na ausência</p><p>do outro. Por outro lado a sua (do outro) presença era tão</p><p>avassaladora que o impedia de pensar os seus próprios</p><p>pensamentos.</p><p>Seu cansaço, que em um certo momento ele percebe-</p><p>ria como não sendo físico, vinha do uso excessivo de seu</p><p>corpo e de sua atividade como único ponto de sustenta-</p><p>ção da barreira de proteção contra a invasão de seu espa-</p><p>ço egóico pelas forças pulsionais.</p><p>A interpretação desse sonho se fez ao longo dos anos.</p><p>De vez em quando voltávamos a ele pois continha toda a</p><p>história de sua vida e sua análise foi o processo de cons-</p><p>trução do espaço suficiente para que o passarinho vivesse</p><p>sem um aperto sufocante: nem morte, nem escapada sem</p><p>fim (esta significava a loucura, que ele já experimentara</p><p>quando mais jovem).</p><p>94</p><p>Dos palavras -coisa a esta coisa das palavras</p><p>F. experimentava o pensar e o fazer como muito pró-</p><p>ximos. Se se permitia enunciar algo que fosse o seu dese-</p><p>jo, havia um retorno como punição. Daí estar sempre aten-</p><p>to ao desejo do outro como única forma de investimento</p><p>que lhe restava, alienado em sua palavra e sua presença.</p><p>Inicialmente F. não conseguia seguir uma linha de</p><p>associações. As minhas palavras eram tomadas como or-</p><p>dens e se fossem enigmáticas, deixavam-no num tal esta-</p><p>do de angústia, que não podia ir embora enquanto não</p><p>obtivesse um sentido, que por sua vez seria fixado e repe-</p><p>tido como medida de segurança e causa de terror.</p><p>Mas ele tinha algum humor, embora tímido, que se</p><p>expressava através das palavras percebidas em seu senti-</p><p>do ambíguo, nos ditos populares e gozações dos grupos</p><p>masculinos de esquina, muito característico da cultura dos</p><p>subúrbios cariocas. Esta ambiguidade lhe era possível por-</p><p>que vinha através da boca do povo. Era comum dizer:</p><p>"Vou no popular". E esse foi o nosso espaço de trabalho</p><p>durante um bom tempo. A linguagem popular era seu ter-</p><p>ritório, no qual ele sabia mais do que eu. Aí podia me</p><p>ensinar muita coisa e à medida que eu ia apre(e)ndendo</p><p>o jogo, podíamos trabalhar com associações nascidas des-</p><p>sa linguagem e que lhe serviam como máquina de pensar.</p><p>O espaço transferencial passou a ser propício a jogos</p><p>equivalentes a um brincar infantil. Nesse espaço de in-</p><p>vestigação e de investimentos o analista desempenha mais</p><p>de uma função: como parceiro de jogo está no meio da</p><p>brincadeira, é surpreendido em seu saber teórico e preci-</p><p>sa inventar utilizando sua própria</p><p>experiência como ana-</p><p>lisando; como mediador, é representante da lei, sua pre-</p><p>95</p><p>Elíiind Schweler Reis</p><p>sença serve como garantia que o jogo não será mortal,</p><p>mesmo sendo perigoso. O analista serve como mediador</p><p>entre o mundo externo e o mundo interno, fazendo a ponte</p><p>que torna possível a realização de introjeções.</p><p>Uma vez que F. havia conservado essa dimensão do</p><p>humor, pude introduzir um jogo de "nonsense", contradi-</p><p>zendo as minhas palavras cada vez que ele tentava fixá-</p><p>las. Procurava com isso fazer aparecer o paradoxo exis-</p><p>tente em suas expectativas de encontrar uma resposta fi-</p><p>nal que extinguisse de vez a sua angústia.</p><p>Ferenczi propõe no texto citado um jogo no qual as</p><p>perguntas devem ser feitas numa linguagem simples e não</p><p>conceituai, a linguagem de uma criança começando a fa-</p><p>lar e perguntar sobre ~p mundo. São jogos de linguagem</p><p>no qual as palavras adquirem o seu sentido, ligado às</p><p>vivências singulares. São palavras concretas, palavras-coi-</p><p>sa, que atingem sua dimensão metafórica à medida que se</p><p>constitui um espaço compartilhado através do brincar.</p><p>Ill</p><p>Durante um período F. teve medo de fantasmas. Quan-</p><p>do estava sozinho em sua casa, ouvia barulhos e via vul-</p><p>tos, sombras em cada canto, que o deixavam aterroriza-</p><p>do, vigilante, sem poder dormir. As possíveis interpreta-</p><p>ções não tinham nenhum efeito, já que para ele essas</p><p>ameaças vinham realmente de fora. Uma noite lembrou-</p><p>se de acender velas para as almas e conseguiu um pouco</p><p>de paz.</p><p>96</p><p>Dos palavras-coisa a esta coisa das palavras</p><p>Quando me contou isso, disse-lhe que estava descobrin-</p><p>do, com os seus próprios recursos, que não era necessário</p><p>ficar a mercê dos seus fantasmas. A ideia de ter recursos pró-</p><p>prios e poder fazer uso deles foi uma revelação. Nunca tinha</p><p>lhe ocorrido que isso fosse possível, pois vivera sempre obe-</p><p>decendo ordens. De uma certa forma esta também foi uma</p><p>ordem, porém com uma certa ambiguidade, pois eu, que para</p><p>ele era quase toda-poderosa, reconhecia sua capacidade de</p><p>criar algo seu, sem esperar pela minha solução.</p><p>Para Ferenczi, a transferência é algo que se dá</p><p>sincronicamente no plano económico e no das represen-</p><p>tações. O analista, como mediador de novas introjeções,</p><p>possibilita os investimentos pulsionais, a ocupação de es-</p><p>paços psíquicos, fazendo deslizar quantidades energéticas</p><p>e criando possíveis sulcos de significação. Na transferên-</p><p>cia F. pôde reinvestir e dar qualidade a sua ação,</p><p>introjetando as palavras de aquiescência do analista, o</p><p>que talvez não fosse possível se eu tivesse interpretado</p><p>seus fantasmas mais uma vez.</p><p>Com as velas os fantasmas se aquietaram, e F. come-</p><p>çou a perceber a ligação entre certos fatos que aconteci-</p><p>am com ele, certos estados de espírito e a presença dos</p><p>fantasmas. Começaram a surgir memórias e delas a ideia</p><p>de que os fantasmas eram sua criação.</p><p>O jogo entre as palavras fantasma (assombrações) e</p><p>fantasma (memória dos desejos inconscientes) foi uma</p><p>descoberta, produzindo polissemia onde só havia</p><p>univocidade. Com o deslizamento do sentido foi surgindo</p><p>a possibilidade de falar de quase tudo que é vergonhoso,</p><p>monstruoso, desconhecido.</p><p>97</p><p>Elíana Schueler Reis</p><p>O jogo em si funcionou como as velas, servindo de</p><p>barreira de proteção contra a violência da excitação</p><p>pulsional. Mas a possibilidade de falar foi um pouco além:</p><p>trouxe para o espaço analítico a questão dos limites entre</p><p>dentro e fora, eu/não eu. Passou a ser parte do espaço</p><p>psíquico algo que ficava fora, assombrando e ameaçando</p><p>invadir de forma mortífera. Com a multiplicidade do sen-</p><p>tido F. começou a descobrir que eu não sabia de antemão</p><p>o que ele pensava. Podia até me enganar, ocultar seus</p><p>pensamentos e eu suportava esse não saber, não ficava</p><p>enfurecida, nem destruída. A partir disso sua culpa co-</p><p>meçou a ser sentida e verbalizada.</p><p>Minha aceitação do seu recurso às velas como proce-</p><p>dimento válido introduziu uma dimensão super-egóica</p><p>menos persecutória. F. voltou a usar recursos desse tipo,</p><p>porém com uma visão humorística de si próprio, que lhe per-</p><p>mitiam não ficar colado ao fato real e duvidar de seus temo-</p><p>res, introduzindo a ambiguidade onde antes existia certeza.</p><p>IV</p><p>O uso do senso de humor como forma de trabalho</p><p>analítico está a serviço de uma resistência do Eu ao senti-</p><p>mento de perda de limites. Segundo Freud, o humor traz</p><p>uma possibilidade de ganho narcísico ante o sofrimento</p><p>não pela negação do sofrimento em si, mas pela sua afir-</p><p>mação como "noroense". Através do humor o analisando</p><p>introduz o paradoxo em sua fala, posto que não apresenta</p><p>98</p><p>Das palavras-coisa a esta coisa</p><p>a solução de um problema e sim um outro olhar sobre o</p><p>mesmo; um novo olhar que tem um efeito transformador</p><p>sobre a formulação do problema, tirando-lhe o excesso de</p><p>peso e gravidade.</p><p>Freud afirma que o humor difere do chiste, que se ori-</p><p>gina da elaboração inconsciente, por ser "a contribuição</p><p>ao cómico pela mediação do super-eu"5. Assim, a imagem</p><p>do objeto idealizado e perseguidor, projetada por F. sobre</p><p>o analista, era neutralizada quando ele podia fazer humor</p><p>com as minhas palavras,</p><p>Da mesma forma que foi capaz de produzir um sonho</p><p>tão perfeito em sua concisão, F. foi capaz de criar formas</p><p>de trabalhar psicanaliticamente dentro de sua linguagem.</p><p>Minha participação consistiu em ter me deixado guiar pela</p><p>sua mão, não caindo na cilada que eu armei logo no início,</p><p>quando pensei que ele não teria condições de fazer análise</p><p>por ter o raciocínio tão concreto e parecer tão embotado.</p><p>Na verdade, acredito que essa análise se deu graças à</p><p>diferença entre analisando e analista. Funcionamos como</p><p>ordens incompatíveis que, ao se encontrarem, produzi-</p><p>ram um estado de caos (no sentido de abismo, de vazio),</p><p>de desconhecimento mútuo, no qual foi inventada uma</p><p>linguagem possível.</p><p>*.</p><p>A medida que pôde usar o espaço da análise e a mi-</p><p>nha presença como figura ao mesmo tempo protetora e</p><p>provocadora, F. foi inventando vários temas ou jogos que</p><p>se repetiam durante meses até gastarem e desaparecerem</p><p>simplesmente. Num certo momento surgiu a imagem de</p><p>5 Freud, S. "El humor" (1927). Em: Obras Completas. Volume XXI.</p><p>Op. cit.,p. 157-62.</p><p>99</p><p>E Í uma Schueler Reií</p><p>uma escada pela qual ele subia, mas da qual sempre des-</p><p>pencava, o que o deixava derrotado. Comentando essa</p><p>imagem me veio a frase: "Dois passos adiante um atrás".</p><p>F. veio a fazer um importante uso dessa ideia, trans-</p><p>formando-a em uma imagem e uma forma de medida.</p><p>Cada vez que "caía", estabelecia uma relação entre os es-</p><p>paços percorridos e avaliava os prejuízos, podendo</p><p>relativizar assim suas conquistas e derrotas em diversas</p><p>situações da vida.</p><p>E preciso assinalar que em termos de organização psí-</p><p>quica F. se apresentava como um obsessivo grave, cujos</p><p>pensamentos beiravam formas delirantes nos momentos</p><p>de maior angústia. Foi a onipotência do pensamento ca-</p><p>racterística da neurose obsessiva, no entanto, que permi-</p><p>tiu o nosso trabalho nos primeiros anos, pois o pensar como</p><p>compulsão o levou à descoberta do prazer de pensar as</p><p>diversidades. O próprio ato de pensar foi sobre-invés tido</p><p>inicialmente pela descoberta da possibilidade de pensar</p><p>na presença de outro. Essa possibilidade descortinou um</p><p>novo continente, pois até então isto seria equivalente a</p><p>uma violência sexual, na qual não ficava claro em ne-</p><p>nhum momento quem era a vítima e quem era o agressor.</p><p>Durante alguns anos o pensar e o falar na análise ocu-</p><p>param praticamente toda a dimensão de prazer para F.</p><p>Era como se ele não vivesse lá fora e sua existência só</p><p>adquirisse significado durante as sessões. As reações</p><p>transferenciais surgidas nesse período foram das mais in-</p><p>tensas e muitas vezes assustadoras para ele e para mim.</p><p>Acredito que a manutenção de um espaço de jogo, de</p><p>brincadeira, de nonsense, contribuiu para tornar suportá-</p><p>100</p><p>Dos palavras-coisa a esta coisa das palavras</p><p>VQ\s intensidades, visto que se podia "fazer de conta"</p><p>como quando as crianças brincam expressando suas fan-</p><p>tasias agressivas e amorosas.</p><p>Através desses jogos de linguagem F. aprendeu a falar</p><p>"como se". Poder estabelecer diferenças</p><p>e equivalências,</p><p>utilizando-se das interferências provenientes de fora, foi</p><p>sua principal aquisição nesse processo de análise. Pensar</p><p>que quando se cai, nunca se cai no mesmo lugar, que acen-</p><p>der uma vela equivale a falar na sessão de análise, que</p><p>existe mais de um sentido possível para as palavras. O seu</p><p>pensamento pôde se enriquecer com os fantasmas exter-</p><p>nos uma vez que eles puderam ser transformados em mun-</p><p>do interno. Estabelecendo essas relações, F. pode consti-</p><p>tuir o sentido erótico de realidade6, através do</p><p>restabelecimento de relações de prazer com os objetos.</p><p>Da concretude dos pensamentos mágicos F. fez a ma-</p><p>téria-prima de seus investimentos, como o bebé que brin-</p><p>ca com as fezes, o menino que faz bolinhas e cobrinhas de</p><p>massa e depois fala em coco e xixi com grande prazer, até</p><p>poder ler e escrever aquelas bolinhas e cobrinhas que cha-</p><p>mamos de letras.</p><p>O espaço transferencial analítico serviu de palco para</p><p>essas transformações. Talvez mais do que isso: foi o espa-</p><p>ço vazio, o abismo no qual F. decidiu se lançar impelido</p><p>pelo sinal mágico da loteria. Nesse sentido, funcionou</p><p>como espaço transicional e potencial para o exercício da</p><p>6 Ferencii, S. Thalassa: ensaio sobre as origens da gerdtcdídade (1924).</p><p>São Paulo, Martins Fontes, 1989. Nesse texto Ferenczi estabelece um</p><p>paralelo entre o sentido de realidade egóico e erótico, através das equi-</p><p>valências entre as etapas de constituição do Eu e a erogeneizaçlo do</p><p>próprio corpo e do mundo externo.</p><p>101</p><p>Eli anã Schueler Reis</p><p>capacidade de brincar e criar novas significações para seu</p><p>corpo/psique, que deixou de estar sujeito a penetrações</p><p>violentas pelo mundo externo.</p><p>F. usou o espaço da análise, a presença do analista, a</p><p>regularidade das sessões, a continuidade dos anos como a</p><p>repetição do gesto de lançar e recolher o carretel. Repeti-</p><p>ção necessária para a inscrição de uma outra história.</p><p>102</p><p>TENTATIVA DE SUICÍDIO NA INFÂNCIA</p><p>uma hipótese acerca do Eu</p><p>Eliza Santa</p><p>O suicídio e os desejos inconscientes de morte que</p><p>aparecem nos sonhos, nos atos falhos e nas condutas auto-</p><p>destrutivas estão entre os problemas mais complexos e</p><p>contundentes que a clínica coloca para o analista. Quan-</p><p>do se trata de crianças, o desejo da própria morte nos pro-</p><p>voca uma emoção mais intensa, visto que a infância é</p><p>tida como o começo da vida, repleta de expectativas e</p><p>apontada para o futuro. A morte da criança é insuportá-</p><p>vel e, como diz Leclaite, "nela reencontramos o terror sa-</p><p>grado (...) o próprio Deus detém a mão de Abraão, o sacrifí-</p><p>cio será realizado, mas trocaremos Isaac por um cordeiro"1.</p><p>O senso comum tenta negar que a criança possa ma-</p><p>tar-se. Tende a responsabilizar o destino pelos aconte-</p><p>cimentos trágicos, caracterizando-os como acidentes, ou</p><p>os adultos por negligência nos cuidados com a criança.</p><p>l Leclaire, S. Mata-se uma criança: um estudo sobre o narcisismo primário</p><p>e a (jutsõo de morte. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977- -</p><p>103</p><p>Elita Santa Roza</p><p>Nem sempre, porém, isto é possível, e se muitos casos</p><p>deixam um rastro de dúvidas, algumas crianças se mos-</p><p>tram claramente suicidas, lançando-se deliberadamente</p><p>à morte, explicitando verbalmente o desejo de morrer ou</p><p>ainda adotando condutas auto-destrutivas que se confi-</p><p>guram como tentativas de suicídio.</p><p>Todavia há certamente importantes diferenças entre</p><p>o ato suicida explícito e determinados comportamentos</p><p>que podem levar à morte, sendo que entre estes últimos</p><p>também existem diferenças que os aproximam mais ou</p><p>menos do ato suicida. Pensamos que somente através da</p><p>clínica podemos tentar delinear estas distinções. Elas di-</p><p>zem respeito ao ato em suas duas vertentes: o "acting-owt"</p><p>e a passagem ao ato.</p><p>Menard observa que o "actmg-out" consiste numa re-</p><p>presentação de uma história em ação, portanto dentro de</p><p>coordenadas simbólicas, enquanto na passagem ao ato</p><p>estas coordenadas estariam ausentes2. Assim, o "actíng-</p><p>out" é provido de um sentido não acessível à consciência,</p><p>um sentido inconsciente que se revela em ato no lugar da</p><p>lembrança. Nele há uma direção, um endereçamento, uma</p><p>"fala". A passagem ao ato passaria ao largo do sentido</p><p>como puro excesso e descarga pulsional, não comportan-</p><p>do nenhuma interpretação3. O ato suicida poderia então</p><p>se configurar dentro destas duas perspectivas.</p><p>Winnicott trata da temática do suicídio ao formular o</p><p>conceito de "medo do colapso". Para ele, o suicídio é o</p><p>2 Menard, A. "Acting-out ou passagem ao ato?". Em: Falo, n. 3,1988.</p><p>3 Chemama, R. Díctíarmaire âe Ia ps>cJianal>se. Paris, Latousse, 1993,</p><p>verbete Tocie".</p><p>104</p><p>Tentativa de suicídio na infância</p><p>"envio do corpo a alguma coisa que já aconteceu na psi-</p><p>que", sendo esta coisa um colapso (breakdown) experi-</p><p>mentado nos primórdios da vida4. Como podemos com-</p><p>preender o que seria este colapso? Em primeiro lugar</p><p>Winnicott nos leva a refletir sobre os primórdios da vida,</p><p>quando a criança ainda não é suficientemente madura</p><p>para dar sentido a determinadas ocorrências. Não são</p><p>necessariamente fatos objetivos, mas acontecimentos tan-</p><p>to da ordem dos fatos como da percepção da criança das</p><p>relações com o ambiente, através do corpo ou da lingua-</p><p>gem. Tais acontecimentos, impossíveis de serem "absor-</p><p>vidos", "metabolizados", rompem com a continuidade do</p><p>ser e são vividos como experiências de aniquilamento5.</p><p>Estas experiências irrompem quando o ambiente não</p><p>é capaz de prover o cuidado necessário para evitar o</p><p>surgimento das "ansiedades inimagináveis", provenientes</p><p>da irrupção pulsional, num estádio anterior à distinção</p><p>Eu/não-Eu. Ficam portanto desprovidas de sentido, já que,</p><p>não havendo um Eu organizado, "o indivíduo não estava</p><p>lá para poder lembrar-se"6, e se configuram como sensa-</p><p>ções de "cair para sempre", "perder a conexão com o cor-</p><p>po", "perder a orientação", "desintegrar".</p><p>Nestes casos não haveriam portanto lembranças a se-</p><p>rem retomadas através do ato — "o acting-out" —, uma</p><p>memória historicizada, mas uma atualização de marcas</p><p>4 Winnicott, D.W. "O medo do colapso". Em: Explorações Psiccnalíncai-</p><p>Porto Alegre, Artes Médicas, 1994.</p><p>5Idetn, p.</p><p>6 Winnicoct, D. W. "A integração do eu no desenvolvimento da criança".</p><p>Em: O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre, Artes Médi-</p><p>cas. 1992.</p><p>105</p><p>Elíza Santa Roza</p><p>de memória, uma espécie de "borrão" na memória: em-</p><p>bora sem sentido articulado, algo aconteceu na psique. O</p><p>corpo se lançaria no ato, na tentativa de retomada da pré-</p><p>história do sujeito, trazendo sensações já experimentadas</p><p>e que deixaram seus rastros.</p><p>Ana, uma menina de cinco anos adotada aos cinco</p><p>meses, vem para a análise em função de comportamentos</p><p>inadequados e destrutivos. Estraga coisas em casa propo-</p><p>sitadamente, agride colegas na escola e fala palavrões.</p><p>Acorda todas as noites e quer a presença da mãe adotiva.</p><p>É muito "desobediente": na rua, desprende-se da mão dos</p><p>pais ou da babá, corre "feito uma louca", arriscando-se a</p><p>ser atropelada. Faz coisas "incompreensíveis", em desa-</p><p>cordo com sua idade. Recentemente matou um peixe de</p><p>seu próprio aquário.</p><p>Ana foi abandonada no hospital logo após seu nasci-</p><p>mento. Prematura e com diversos problemas orgânicos,</p><p>ficou na incubadora por quase dois meses, de onde saiu</p><p>para um orfanato religioso. Suas condições físicas ainda</p><p>exigiam muitos cuidados quando foi adotada três meses</p><p>depois e dos seis meses aos cinco anos foi submetida a</p><p>vários procedimentos médicos. Praticamente sem seque-</p><p>las orgânicas, Ana é hoje uma criança bonita e saudável</p><p>fisicamente.</p><p>O início da análise desta criança foi marcado funda-</p><p>mentalmente por atos. Ana tenta controlar a analista agin-</p><p>do todo o tempo: joga coisas pela janela, abre torneiras,</p><p>tira livros da estante, troca os móveis de lugar. Detém</p><p>assim um poder quase absoluto, fazendo com que a ana-</p><p>lista não desvie o olhar de seu corpo, siga seus passos,</p><p>106</p><p>Tentotina de suicídio na. infância</p><p>contenha, dê limites, segure. Três meses depois propõe a</p><p>primeira brincadeira organizada: encolhida debaixo de</p><p>uma cadeira diz estar num "buraco", do qual precisa sair</p><p>mas para isto a analista deve ampará-la</p><p>Deve-se, pois, evitá-la e contornar os seus per-</p><p>calços, já que entre a infância e o infantil existe não ape-</p><p>nas um intervalo abissal para a psicanálise, como tam-</p><p>bém se realizou uma transformação radical na leitura</p><p>do espírito humano.</p><p>Joel Birnum</p><p>É justamente isso que gostaria de indicar aqui, à guisa</p><p>de um esboço, com a intenção de costurar algumas das</p><p>linhas de desenvolvimento do discurso psicanalítico. Para</p><p>que isso? Para indicar certas linhas de desenvolvimento</p><p>do discurso psicanalítico que esta problemática impõe. Isso</p><p>também nos permitirá sublinhar alguns pontos de encon-</p><p>tro entre Freud e seus discípulos, sejam estes seus con-</p><p>temporâneos ou outros analistas posteriores. Pode-se vis-</p><p>lumbrar aqui um dos pilares centrais do pensamento psi-</p><p>canalítico, sem dúvida. Seria esta a razão pela qual o des-</p><p>locamento do registro da infância para o do infantil se</p><p>mostrou tão fecundo na tradição psicanalítica.</p><p>II. EVOLUÇÃO, ÍÍISTÓRIA E TEMPORALIDADE</p><p>Deve-se evocar, inicialmente, que a referência à in-</p><p>fância no discurso freudiano se impôs a partir do paradigma</p><p>teórico dominante na segunda metade do século XIX, isto</p><p>é, o paradigma da evolução. Freud retomou este paradigma</p><p>na versão forjada por Darwin, fundamentalmente. Porém</p><p>se o discurso freudiano foi marcado pelos pressupostos da</p><p>teoria evolucionista de Darwin, o que é inegável e reco-</p><p>nhecido por Freud em passagens significativas de sua obra,</p><p>isso não implica dizer que os pressupostos do paradigma</p><p>da evolução não tenham tido incidência na construção</p><p>da psicanálise por outras sendas teóricas que transcen-</p><p>dem o campo da biologia. É este tópico que pretendo des-</p><p>tacar para circunscrever a inscrição das categorias de in-</p><p>fância e de infantil na psicanálise desde os seus primórdios.</p><p>10</p><p>Prefácio</p><p>Por que insisto nesta diferença de origem teórica dos</p><p>modelos de pensamento que marcaram a construção da</p><p>psicanálise? Qual a importância disso? Porque a teoria da</p><p>evolução foi a revelação mais evidente de uma constru-</p><p>ção teórica sobre a natureza, a cultura e a sociedade que</p><p>perpassou todo o século XIX, segundo a qual as coisas do</p><p>mundo seriam atravessadas pelo tempo e marcadas no seu</p><p>ser pela história. Esta perspectiva delineou o horizonte da</p><p>modernidade, ultrapassando em muito qualquer registro</p><p>de ordem biológica. Vale dizer, restringir o alcance desta</p><p>inovação ao discurso da biologia seria não vislumbrar a</p><p>ruptura maior que então se processava, pela qual o ser do</p><p>homem foi inscrito nas ordens do tempo e da história. E</p><p>aqui que situa-se o fundamental desta problemática da</p><p>infância.</p><p>Com efeito, pode-se registrar a presença desde mode-</p><p>lo de leitura desde A Fenomenologia do Espírito5, de Hegel,</p><p>na aurora do século XDC. Neste contexto, Hegel realizou a</p><p>crítica da filosofia de Kant, empreendendo a leitura his-</p><p>tórica da natureza humana pela sua inserção na ordem do</p><p>tempo. Foi realizada assim uma epopeia do espírito e da</p><p>cultura humana, de seus primórdios até a modernidade.</p><p>Ao lado da aventura filosófica hegeliana esta constru-</p><p>ção teórica se encontrava também presente no campo da</p><p>constituição de diferentes saberes empíricos, através dos</p><p>quais se estabeleceram diferentes positividades. No cam-</p><p>po das ciências, aoruitomia comparada buscava circunscrever</p><p>a historicidade dos organismos desde o final do século XVIII,</p><p>5 Hegel, G, W. F. La phénomenologie de Fesprit. Volumes I e II. Paris,</p><p>AuMer, 1941.</p><p>11</p><p>Joel Bírmfln</p><p>a gramática comparada pesquisava as relações de derivação</p><p>das línguas a partir de um tronco comum no século XIX e a</p><p>economia política investigava os processos de formação e de</p><p>circulação de riquezas desde o século XVIII.</p><p>Além dos campos da filosofia e das ciências, entretan-</p><p>to, a temporalização e a historicidade da natureza huma-</p><p>na se revelavam também nos registros do imaginário lite-</p><p>rário, no qual a constituição do romance como género e a</p><p>sua implantação na cultura como modelo preferencial de</p><p>narrativa literária foi o signo mais evidente deste proces-</p><p>so constitutivo da modernidade.</p><p>Pode-se depreender aqui as similitudes dos procedi-</p><p>mentos de construção da escrita que se estabeleceram</p><p>entre as tradições filosófica e literária. Para evidenciar estas</p><p>semelhanças basta recordar que a história do espírito hu-</p><p>mano, empreendida no projeto grandioso de Hegel em A</p><p>Fenomenologia do Espírito, se realizou pelo viés do estilo</p><p>romanesco, advindo dos romances de formação. Desta-</p><p>cava-se aqui a incidência de Schiller e Goethe na escritu-</p><p>ra de Hegel.</p><p>Na arqueologia da modernidade realizada por Foucault</p><p>em As palavras e as coisas6, a teoria da evolução das espé-</p><p>cies e a sua derivação para as demais ciências humanas</p><p>seria somente um dos signos reveladores da episteme da</p><p>história que se constituiu na virada do século XVIII para o</p><p>século XIX. Teria se realizado assim uma ruptura radical</p><p>com a episteme da representação, que teria regulado a</p><p>produção de saberes e de conceitos na denominada Idade</p><p>6 Foucault, M. Lês móis et lês c/ioses. Paris, Gallimard, 1966.</p><p>12</p><p>Prefácio</p><p>clássica. Nesta perspectiva, tanto a vida quanto a língua e</p><p>a riqueza seriam atravessadas pela historicidade e pela</p><p>temporalidade. Estas definiriam, pois, as variações signifi-</p><p>cativas existentes nos registros do organismo, da lingua-</p><p>gem e da moeda.</p><p>Na versão de Darwin em A origem das espécies1, a hu-</p><p>manidade passaria necessariamente por um processo</p><p>evolutivo para se constituir como tal, desde os seus</p><p>primórdios no reino animal até as suas realizações mais</p><p>espetaculares. Desta maneira, o homem se inscreveria</p><p>como espécie na ordem da natureza, estabelecendo-se</p><p>nesta leitura uma descontinuidade crucial com as anteri-</p><p>ores concepções teológica e divina sobre a natureza hu-</p><p>mana. Esta seria animal nas suas origens, regulada por</p><p>ritmos vitais e pelos ciclos da natureza, de maneira que</p><p>apenas após um longo processo evolutivo se realizaria a</p><p>humanização da espécie humana tal como a conhecemos.</p><p>Enfim, existiria uma infância da humanidade que apenas</p><p>seria superada posteriormente, depois de um longo pro-</p><p>cesso evolutivo marcado por seleções naturais.</p><p>Assim, pela introdução da categoria de infância, para</p><p>explicar a causalidade das perturbações psíquicas pela</p><p>mediação da sexualidade, Freud construiu um modelo</p><p>teórico para pensar o sujeito no qual este se constituiria</p><p>pelo eixo do tempo. Com isso, o sujeito seria constituído</p><p>pela história e seus destinos. Seria esta então a marca bá-</p><p>sica que o discurso inaugurador do século XIX legou para</p><p>a constituição da psicanálise.</p><p>7 Danvin, C. Lês origines dês espèces au mo^en de Ia séíection naturelle ou</p><p>Ia lutte pour 1'existence dons Ia nature (1856). Paris, Reinwald, 1882.</p><p>13</p><p>Joel Btrmtm</p><p>Neste legado, entretanto, duas concepções se confron-</p><p>tam. Estas são diferentes, apesar de suas similaridades e</p><p>até mesmo de suas proximidades. Por isso mesmo, cabe</p><p>distingui-las pois a nuança é significativa. Por um lado a</p><p>subjetividade é historicizada, marcada que é pela ordem</p><p>do tempo; retira-se assim do sujeito qualquer</p><p>substancialidade absoluta. Em contrapartida, a subjetivi-</p><p>dade é colocada num processo evolutivo, marcado pelos</p><p>valores da seleção natural e da adaptação. Pode-se dizer</p><p>que o discurso freudiano se iniciou com a concepção</p><p>evolucionista de Darwin, através da qual encontrou os</p><p>pressupostos mais abrangentes da episteme da história, o</p><p>que lhe permitiu se decantar progressivamente de seus</p><p>valores propriamente evolucionistas. Seria esta a hipóte-</p><p>se que esboço aqui para que se possa pensar na introdução</p><p>da categoria de infância nos primórdios da psicanálise e no</p><p>seu deslocamento posterior para a categoria de infantil.</p><p>III. INFANTIL POR VOCAÇÃO?</p><p>O traço de modernidade do discurso freudiano é as-</p><p>sim evidenciado, instituindo-se por uma descontinuidade</p><p>radical em relação às concepções de subjetividade que</p><p>eram dominantes nos séculos XVII e XVHI. Com efeito, a</p><p>psicanálise revela a sua originalidade teórica frente à psi-</p><p>cologia clássica, iniciada pela filosofia de Descartes8, uma</p><p>8 Descartes, R. "MédLtations". Em: Descartes, R. Oeuvres et</p><p>na saída, "se não</p><p>vou cair". Este pedido é atendido, a brincadeira se repete</p><p>algumas vezes mas, apesar de instigada a falar, Ana nada</p><p>diz a respeito.</p><p>Durante o primeiro ano de trabalho o tema das ses-</p><p>sões e das interpretações foi praticamente o mesmo. Ana</p><p>tinha necessidade de tomar conta da analista, de contro-</p><p>lar sua presença, de fazê-la olhar, de estar perto, de estar</p><p>junto fisicamente. O que se repetia ali, na transferência?</p><p>A ausência precoce do objeto? As perdas sucessivas de</p><p>referencial dos primeiros meses? O medo de perder a mãe</p><p>adotiva? Sem dúvida havia uma necessidade de conten-</p><p>ção, de "holding" e "handlíng", no sentido winnicottiano</p><p>de cuidados primários essenciais. Todavia, ao lado do con-</p><p>trole da analista, havia um componente agressivo nas "bo-</p><p>bagens" que Ana fazia.</p><p>Um acontecimento específico durante uma sessão nos</p><p>possibilitou uma nova compreensão das agressões no com-</p><p>portamento de Ana. Ela tenta atacar os peixes do aquário</p><p>do consultório e ao ser impedida de matá-los fala consterna-</p><p>da sobre o episódio em que matou seu peixe. Dh que não o</p><p>matou de propósito e que não sabe "o que é morrer". Chora</p><p>compulsivamente — o que é raríssimo — e se recusa a con-</p><p>tinuar o assunto. Sai, pela primeira vez, deprimida.</p><p>O assassinato de seu peixe reproduz a situação vivida</p><p>para a qual foi produzido um sentido: o peixe é Ana, não-</p><p>desejada, abandonada no estádio de dependência absolu-</p><p>107</p><p>Eíiza Santa Roja</p><p>ta, numa incubadora (aquário/??), "assassinada" como</p><p>sujeito. Ao mesmo tempo ela própria é a mãe de seu pei-</p><p>xe, é ela a mãe-assassina, na tentativa de deter o controle</p><p>mágico sobre a separação,</p><p>A semelhança do menino que Freud descreve no jogo</p><p>do Fort-Da, que joga com carretel a ausência da mãe para</p><p>obter domínio sobre o impressionante, para dar sentido</p><p>ao excesso pulsional, Ana tenta se tornar aquela que co-</p><p>manda, de vítima a carrasco: na identificação com o</p><p>agressor ela ataca o peixe, pequeno, frágil, submetido ao</p><p>desejo do mais forte, assim como ela. Como bebé nada</p><p>podia fazer. Agora Ana controla o adulto com seus atos</p><p>desagradáveis e impulsivos. O que ela não consegue é</p><p>historicizar e simbolizar as marcas de seu passado através</p><p>do jogo, atualizando-o em ato na transferência.</p><p>O episódio pode ser falado porque há alguém—a ana-</p><p>lista — para impedir sua repetição e para perguntar "Por</p><p>que você quer matar meus peixes?" Há um sentido que</p><p>pode se constituir na transferência.</p><p>Por outro lado, Ana corre "como uma louca" na rua,</p><p>em direção ao nada. Lança seu corpo num espaço-nada e</p><p>diz "criança não pode correr na rua, senão morre, né?11 Qual</p><p>é o sentido deste outro ato? Ana sabe que o risco é a morte,</p><p>mas nada sabe sobre ela a não ser o vivido como experiência</p><p>de aniquilamento—algo que aconteceu na psique. Do úte-</p><p>ro à incubadora, de um processo de continuidade corporal</p><p>ao rompimento total do referencial intersubjetivo, que nos</p><p>primórdios da vida é essencialmente corporal (o ritmo do</p><p>batimento cardíaco, o cheiro, a tonalidade da voz, as sensa-</p><p>ções táteis do corpo materno), há um hiato na vida de</p><p>108</p><p>Tentativa de suicídio na infância</p><p>Ana que rompe com a continuidade do ser. Trata-se de um</p><p>acontecimento que não pode ser lembrado a não ser com o</p><p>próprio corpo em desconexão com o psíquico, pois corno</p><p>nos mostra Winnicott, esta conexão ainda não havia se es-</p><p>tabelecido. Ana não estava lá para poder lembrar-se.</p><p>O medo do colapso (breakdown) que Winnicott exa-</p><p>mina é o medo de um colapso da integração do Eu, ou</p><p>seja, da organização narcísica primária, colocada em risco</p><p>pela irrupção desta memória pré-histórica. Freud em 1914,</p><p>conceituando o narcisismo, postula que o Eu não existe</p><p>desde o início, tendo que ser desenvolvido pelo</p><p>agregamento das pulsões auto-erôticas através de uma</p><p>identificação primordial que se dá em função do investi-</p><p>mento dos pais na criança. A partir daí, constitui-se uma</p><p>dialética entre auto-erotismo e narcisismo, ou seja, a an-</p><p>gústia representando uma ameaça à integridade do Eu,</p><p>um possível retorno à anarquia pulsional7.</p><p>Nesta perspectiva, uma interpretação possível da pas-</p><p>sagem ao ato suicida diz respeito a este movimento</p><p>pendular narcisistno/auto-erotismo: o "breaJolown" como</p><p>colapso de Eu é a mais terrível das mortes. Sob o impacto</p><p>da angústia de aniquilamento (psíquico), a pulsão emer-</p><p>ge num ato, sendo o corpo dissociado da organização psí-</p><p>quica. O "correr como uma louca" expressa um momen-</p><p>to em que Ana é tomada por uma "ansiedade</p><p>inimaginável", nos termos winnicottianos, uma angústia</p><p>de aniquilamento psíquico, que a remete a estádios ante-</p><p>riores à organização do Eu e que ameaça sua integridade.</p><p>Para salvá-lo, Ana corre, expondo-se à morte corporal.</p><p>7 Freud, S. "Introducción ai narcisismo" (1914). Em: Obras Completas,</p><p>Volume XV. Buenos Aires, Amonortu, 1986.</p><p>109</p><p>Eliza Santa Roza</p><p>Leclaire propõe que a lógica do suicida resulta de um</p><p>silogismo perfeito: "para viver, é preciso que eu me</p><p>mate"8. Mas quem sobrevive e quem é morto? Freud</p><p>em 1920, a propósito da exploração de um caso de uma</p><p>jovem homossexual, entende a tentativa de suicídio</p><p>dentro da organização edípica, no jogo de forças entre</p><p>as fantasias de realização do desejo da jovem pelo pai,</p><p>culpa pelo desejo de morte da mãe e autopunição. As-</p><p>sim ele delineia no suicida uma das duas condições in-</p><p>conscientes: o retorno sobre si mesmo de um desejo de</p><p>morte sobre outra pessoa, ou o desejo de matar o objeto</p><p>da identificação9.</p><p>O objeto da identificação é primordialmente um olhar</p><p>e um desejo outro que nos constitui, com o qual se articu-</p><p>la "uma nova ação psíquica", organizadora do Eu10. Para</p><p>Leclaire, só há vida possível ao preço da morte desta ima-</p><p>gem primeira, estranha, posto que é desejo dos pais. Para</p><p>viver, diz este autor, é necessário portanto matar "esta</p><p>criança maravilhosa ou aterrorizante... extremo de esplen-</p><p>dor e também ao mesmo tempo, criança abandonada,</p><p>perdida numa solidão total, diante do terror e da morte".</p><p>Conservá-la seria então condenar-se a não viver, porém</p><p>renunciar a ela seria morrer, não encontrar mais razão</p><p>para viver11.</p><p>8 Leclaire, S. Mata-se uma criança: um estudo sobre o narcisismo primário</p><p>e a pukãa de morte. Op. cit-, p. 12.</p><p>9 Freud, S. "Sobre Ia psicogenesis de un caso de homossexualidad femi-</p><p>nina" (1920). Em: Obras Completos. Volume XVIII. Op. cit.</p><p>10 Freud.S. "Introducción ai narcisismo" (1914). Op. cit.</p><p>11 Leclaire, S. Mata-se uma criança: um estudo sobre o narcisismo primá-</p><p>rio e a pulsâo de morte. Op. cit., p. 10.</p><p>110</p><p>Tentativa de suicídio na infância</p><p>Neste ponto encontramo-nos diante de um parado-</p><p>xo. O narcisismo como imagem e semelhança do outro</p><p>da identificação opõe-se ao sujeito. Porém,</p><p>concomitante mente, sua organização fornece um sentido</p><p>de existência própria. Assim, se "para viver é preciso que</p><p>eu mate este Eu-outro da identificação", como diz Leclaire,</p><p>pensamos que por outro lado "para viver é preciso que eu</p><p>proteja e conserve esse Eu, que me fornece um sentido de</p><p>existência".</p><p>Paula aos 11 anos atirou-se da janela de um prédio,</p><p>após uma discussão com a mãe. Salvou-se por milagre,</p><p>tendo ficado vinte dias numa UTl. Na primeira entrevis-</p><p>ta, alguns meses depois do episódio e já recuperada das</p><p>graves lesões corporais, Paula nos relata o ocorrido:</p><p>Não sei o que me deu... Estava com umas amigas em casa e</p><p>briguei com elas... Minha mãe logo começou a falar de mim,</p><p>me deu um troço, saí correndo e me atirei...Não aguentava</p><p>mais, entende? Ela fica no meu ouvido, se mete em tudo,</p><p>ela não me deixa existir!</p><p>f</p><p>E porque a mãe é sentida como não deixando Paula</p><p>existir que a menina renuncia à vida jogando-se para</p><p>morte? Ou, ao contrário, para que o sentido de existência</p><p>do Eu seja preservado o corpo é sacrificado, num ato de</p><p>vontade "in extremis"?</p><p>Aqui, outro paradoxo. Se, como postula Freud, o Eu é</p><p>sobretudo corporal, como poderia em nome de sua sobre-</p><p>vivência enviar o corpo à destruição? Podemos nos apro-</p><p>ximar deste problema lembrando em primeiro lugar que</p><p>na economia psíquica todo o trabalho é realizado no sen-</p><p>tido de evitar a angústia. Vários estados</p><p>psicopatológicos</p><p>111</p><p>Eíira Santa Roja</p><p>nos mostram que a integridade corporal — fisiológica e</p><p>anatómica — é sacrificada em favor do tamponamento</p><p>da angústia, ameaça maior à integridade do Eu. O corpo</p><p>pode funcionar como receptáculo da realização do dese-</p><p>jo, servindo ao mesmo tempo à defesa contra angústia —</p><p>como na histeria — mas sua funcionalidade é sacrificada.</p><p>Nos distúrbios psicossomáticos isto é ainda mais eviden-</p><p>te: o corpo é alvo de descarga pulsional para além da rea-</p><p>lização simbólica do desejo, para além do princípio do pra-</p><p>zer, e é atingido não apenas em sua funcionalidade como</p><p>também em sua integridade fisiológica e anatómica.</p><p>É justamente este paradoxo que conduz Freud à</p><p>conceituação da pulsão de morte, através da análise do</p><p>fenómeno da compulsão à repetição. O prazer é o objeti-</p><p>vo último a ser atingido, mas a repetição do desprazer é</p><p>necessária, uma vez que reduz o excesso pulsional. As-</p><p>sim, há algo fora do circuito das representações. Na eco-</p><p>nomia dos processos psíquicos há um balanço no sentido</p><p>de promover o equilíbrio, evitando a angústia disruptiva.</p><p>O horror, o temido, diz respeito às forças de morte e des-</p><p>truição, puro excesso que provoca o surgimento da an-</p><p>gústia e o medo do "breakdown". Não suportando a incer-</p><p>teza diante do incognoscível — já que o excesso diz res-</p><p>peito ao pulsional não-ligado, sem sentido—, o sujeito se</p><p>esforça para provocá-lo com o intuito de dominá-lo. Nas</p><p>palavras de Rosset: "Mas .o pior nunca é bastante certo</p><p>aos olhos do que pretende temê-lo, mas só consegue asse-</p><p>gurar-se disso provocando ele próprio sua realização"12.</p><p>12 Rosset, C. Princípio de crueldade. Rio de Janeiro, Rocco, 1989.</p><p>112</p><p>Tentativa de suicídio na infância</p><p>Voltemos a Paula. Ela é filha única, fruto de uma aven-</p><p>tura extraconjugal do pai que desapareceu, não tendo se-</p><p>quer reconhecido a filha legalmente, Embora passasse o</p><p>dia com a avó — pois a mãe trabalhava fora —, a mãe</p><p>administrava os cuidados e sempre dormiram as duas na</p><p>mesma cama. Foi muito doente até os sete anos, tendo</p><p>tido inúmeras infecções e crises de asma. Até os nove anos</p><p>era "um doce de criança", mas quando a mãe se aposen-</p><p>tou, passando a ficar mais tempo com Paula, sobrevieram</p><p>crises de agressividade nas quais trancava-se no banheiro aos</p><p>gritos e agredia a mãe verbal e fisicamente. Estas crises se</p><p>iniciaram a partir da morte do pai de uma amiga da menina,</p><p>homem a quem era muito ligada e fazia as vezes de pai.</p><p>Paula traz, ainda na primeira entrevista, fantasias de</p><p>morte da mãe. Embora seja excelente aluna, não vai mais</p><p>à escola pois quando está afastada da mãe imagina o cor-</p><p>po desta estirado no chão e cercado de velas, o que lhe</p><p>provoca uina crise de angústia.</p><p>O embate narcísico entre mãe e filha coloca Paula</p><p>numa situação limite: a integração do Eu, que pode forne-</p><p>cer um sentido de identidade, depende do investimento</p><p>narcísico dos pais, mas para que este sentido de identidade</p><p>se sustente é necessário expulsar o outro para um lugar de</p><p>não-Eu. Para Paula, o jogo é de vida ou morte, de Eu ou o</p><p>outro. Mas este outro é entretanto vital, pois Paula só tem a</p><p>mãe como objeto de amor, impossibilitada de se voltar para</p><p>o pai, já que este é ausente até mesmo no seu nome.</p><p>A angústia, diz Freud, é o perigo de desvanecimento</p><p>psíquico do Eu, bem como o perigo da perda do objeto</p><p>num estádio inicial, quando o Eu é imaturo e a autonomia</p><p>113</p><p>não se estabeleceu13. A fantasia de Paula sobre a morte</p><p>da mãe realiza o mais temido dos horrores, atualizando</p><p>na regressão o estádio de dependência absoluta, mas tam-</p><p>bém supõe um desejo de separação radical: "Ela não me</p><p>deixa existir!"; portanto, para existir preciso matá-la. O</p><p>Eu está ameaçado pois sua manutenção depende da pre-</p><p>sença do objeto — dependência absoluta. Por outro lado, a</p><p>impossibilidade de separação impõe ao Eu a submissão ao</p><p>objeto, ameaçando sua própria existência — "ela não me</p><p>deixa existir!". E neste limite que se estabelece uma</p><p>dissociação da psique com o corpo, sendo este sacrificado</p><p>em nome da salvação, ao mesmo tempo do Eu e do objeto.</p><p>Nos processos de separação da organização psíquica</p><p>da criança estes mecanismos se revelam nas crises de bir-</p><p>ra e oposição por volta dos dois anos de idade. É a chama-</p><p>da fase do "não", quando a criança recusa tudo o que</p><p>vem do adulto, até mesmo quando lhe são oferecidas coi-</p><p>sas de que gosta. O corpo perde em importância para o</p><p>psíquico: a criança pode jogar-se no chão, bater com a</p><p>cabeça, recusar guloseimas, deixar de alimentar-se e mui-</p><p>tas vezes não é demovida nem com palmadas que lhe pro-</p><p>vocam dor física. Tais crises marcam a necessidade da dis-</p><p>tinção Eu/Mão-Eu, da afirmação da identidade do Eu. Ao</p><p>mesmo tempo elas garantem a permanência do objeto, uma</p><p>vez que demandam a presença do adulto, salvaguardado do</p><p>ódio mortal que se volta para o próprio corpo da criança.</p><p>A intensidade destas crises varia em função da maior</p><p>ou menor capacidade do ambiente em permitir à criança</p><p>13 Freud, S. "Inibición, sintoma y angústia" (1926). Em: Obras Com-</p><p>pletas. Volume XX. Op. cit-, p. 134-</p><p>114</p><p>Tentativa de suicídio na infância</p><p>a sustentação de uma identidade própria, de uma auto-</p><p>nomia, em última instância às possibilidades ou impossi-</p><p>bilidades dos pais de lidarem com sua própria angústia de</p><p>separação. Neste estádio, a angústia de separação relati-</p><p>va às primeiras experiências do bebe — que pode ter sido</p><p>experimentada como angústia de aniquilamento — se</p><p>reaviva, sendo colocado em jogo um Eu integrado.</p><p>Alessandra, de três anos e meio, encaminhada por um</p><p>pediatra, é trazida pelos pais para uma consulta de emer-</p><p>gência pois ficou 72 horas recusando qualquer tipo de ali-</p><p>mento ou líquidos. Foi internada com desidratação agu-</p><p>da, obtendo alta hospitalar após a reposição hídrica mas</p><p>sob vigilância médica, pois continua sem comer e beber.</p><p>Este sintoma teve início imediatamente após a última briga</p><p>violenta entre os pais, que, embora separados, discutem e</p><p>se agridem fisicamente sempre que se encontram e na</p><p>presença da criança. Durante as brigas, Alessandra fica</p><p>calada e com "os olhos arregalados".</p><p>A briga dos pais funciona para Alessandra como um</p><p>excesso, sendo impossível para ela compreender seu sig-</p><p>nificado. Para Winnicott, a função do ambiente facilitador</p><p>dos processos de integração do Eu é justamente a de im-</p><p>pedir este excesso, num momento em que a criança é in-</p><p>capaz de lidar com ele. O ambiente caótico produz um</p><p>estado caótico no indivíduo, "O caos ocorre em relação à</p><p>integração, e um retorno ao caos é a desintegração"14. A</p><p>irrupção da angústia diante do caos põe o Eu em perigo,</p><p>na eminência do colapso — breakdown.</p><p>14 Winnicott, D.W. Natureza Humana. Rio de Janeiro, Imago, 1990.</p><p>115</p><p>Elíza Santa Rojo</p><p>No caso de Alessandra, o Eu está em perigo não ape-</p><p>nas pela irrupção pulsional através do excesso, mas tam-</p><p>bém porque a criança não é considerada em sua identida-</p><p>de separada dos pais: as brigas violentas eliminam tempo-</p><p>rariamente a existência da criança pela total e completa</p><p>desconsideração de sua presença. Alessandra defende-se</p><p>de uma "angústia inimaginável", reafirmando-se</p><p>narcisicamente através da recusa alimentar. O corpo não</p><p>importa; importa mostrar sua existência, mostrar que está</p><p>ali, mostrar que está sendo atingida. Ela o faz também por</p><p>oposição: os pais são ambos gordos e a comida tem extre-</p><p>ma importância nesta família. É como se dissesse: "Eu não</p><p>sou vocês, eu existo, eu tenho uma identidade própria,</p><p>mostro isto fazendo o contrário do que vocês querem. Se</p><p>querem que eu coma, então eu não como nada".</p><p>Recusando-se a comer, Alessandra sustenta sua auto-</p><p>nomia, da um sentido para a angústia e se preserva do</p><p>caos, do aniquilamento psíquico. Seu sintoma também</p><p>serve como freio da loucura familiar, posto que os pais</p><p>deixam de brigar para se preocupar com a filha doente.</p><p>A família reproduz a situação vivida na primeira en-</p><p>trevista, realizada com os três. Os pais discutem violenta-</p><p>mente, com acusações mútuas, e Alessandra nada diz, nem</p><p>toca nos brinquedos, ficando com os olhos arregalados. A</p><p>analista escuta</p><p>e observa a criança e nos últimos minutos</p><p>da consulta dirige-se fisicamente para perto da menina e</p><p>diz: "Alessandra, acho que você está muito assustada com</p><p>estas brigas da mamãe e do papai. Acho que você não</p><p>está entendendo, que está com medo e não consegue gri-</p><p>tar. Se você não comer nada, eles param de brigar e olham</p><p>116</p><p>Tentativa âe suicídio na infância</p><p>para você. Esse é o jeito que você consegue dizer: 'Olhem</p><p>para mim, eu estou aqui!"</p><p>Esta construção promove uma remissão imediata do</p><p>quadro. No mesmo dia da primeira entrevista Alessandra</p><p>volta a comer e pede aos pais para ver a analista nova-</p><p>mente, A partir daí as entrevistas são realizadas sob de-</p><p>manda, sem ritmo determinado; ora Alessandra com a</p><p>mãe, ora com o pai. Os processos de separação e organi-</p><p>zação edípica retomam seu curso, aparecendo a oposição</p><p>e a rivalidade com a mãe, e o amor ao pai.</p><p>Nossa compreensão sobre estes três casos brevemente</p><p>discutidos e a abordagem da temática do suicídio e da</p><p>auto-destruição na infância é uma dentre as muitas hipó-</p><p>teses possíveis para a complexidade destas questões. A</p><p>clínica nos impõe alguns paradoxos que nos levam a re-</p><p>fletir sobre o papel do Eu frente à angústia. Se por um</p><p>lado a compulsão à repetição revela a insistência da pulsão</p><p>no sentido da inscrição, para além do princípio do prazer,</p><p>por outro a força pulsional transborda, invade o Eu, ame-</p><p>açando sua integridade. O ato suicida poderia então ser</p><p>pensado como uma medida defensiva do Eu, para além</p><p>do corpo.</p><p>117</p><p>UMA, TRÊS OU MAIS COISAS QUE O SONHO FAZ</p><p>Eliatut Schueler Reis</p><p>Imagens são palavras que nos faltaram.</p><p>Poesia é a ocupação da palavra pela imagem.</p><p>Poesia é a ocupação ãa Imagem peio Ser.</p><p>Manoel de Barres</p><p>O sonho é uma tentativa de realização de desejo. Esta</p><p>é uma afirmação que nenhum psicanalista pode contes-</p><p>tar. Constitui-se como uma das pedras fundamentais da</p><p>teoria e da prática psicanalíticas desde o momento em</p><p>que Freud definiu sua especificidade através do modelo</p><p>da interpretação dos sonhos1. Porémf como sabemos,</p><p>muito antes de Freud os sonhos sempre foram objeto do</p><p>interesse dos homens. Sua decifração era considerada</p><p>decisiva no desfecho de batalhas e no destino dos povos.</p><p>1. Na verdade são duas as afirmações. Na "Interpretação dos Sonhos",</p><p>Freud define o sonho como realização de desejo. Mas em 1932, nas</p><p>"Novas conferências introdutórias à psicanálise", na 29a conferência</p><p>sobre a revisão da doutrina dos sonhos, afirma que os sonhos são tenta-</p><p>tivas de realização de desejos, já que existem no sonho outras intenções,</p><p>tal como a liquidação dos traços mnêmicos das impressões traumáticas.</p><p>119</p><p>Eliana Schueler Reis</p><p>No Rio de Janeiro, quando as pessoas sonham com um</p><p>número ou com um animal, podem entender isso como</p><p>um sinal da fortuna. Lembro-me de um rapaz que sempre</p><p>jogava no bicho seguindo os palpites de seus sonhos. Um</p><p>dia eu lhe perguntei como era isso e ele me disse: "Mas</p><p>você não sonha? O sonho é que faz o bicho! É só você</p><p>entender o seu sonho que você ganha".</p><p>Essa afirmação "o sonho é que faz o bicho" me deixou</p><p>intrigada, pois indicava uma construção do sentido do</p><p>sonho e dos acontecimentos que invertia, de uma certa</p><p>forma, minha concepção do sonho como revelador de um</p><p>desejo oculto. Indicava que o sonho podia ser entendido</p><p>como algo que tem poder de produzir transformações no</p><p>mundo. Continuei pensando nisso, pois no cotidiano de</p><p>meu trabalho clínico percebi que certos sonhos, em cer-</p><p>tos momentos de uma análise, produzem efeitos que vão</p><p>além da revelação de um desejo inconsciente, além da</p><p>interpretação. São sonhos que têm um efeito curador,</p><p>revelam para o sonhador algo de novo, inscrevem em sua</p><p>vida psíquica novos sulcos significantes.</p><p>Em "Para Além do Princípio do Prazer" Freud se refe-</p><p>riu aos sonhos traumáticos e aos sonhos que se apresen-</p><p>tam nas psicanálises que trazem à tona recordações dos</p><p>traumas psíquicos da infância como exemplos em que a</p><p>compulsão à repetição excede os limites do princípio do</p><p>prazer. Esses sonhos apontam para algo que se processa</p><p>no psiquismo, e exercem um papel na tarefa de dominar</p><p>(ligar) as pulsões. A repetição nos sonhos teria como fun-</p><p>ção eliminar o fator de surpresa presente na situação trau-</p><p>mática, produzindo o sinal de angústia, necessário para</p><p>120</p><p>Uma, três au mais coisas que o sonho foz</p><p>desencadear o movimento defensivo que ficara ausente</p><p>no momento do choque2.</p><p>Indo mais adiante nessa linha de pensamento, Ferenczi</p><p>afirmou que os sonhos em geral têm como função não só</p><p>a realização de desejos, mas o retorno de impressões sen-</p><p>síveis traumáticas não resolvidas, que tentam uma reso-</p><p>lução. O ato de sonhar facilitaria a repetição de traumas</p><p>e em cada repetição se daria a liberação de pequenas des-</p><p>cargas energéticas, que contribuiriam para aplacar o pro-</p><p>cesso excitatório produzido pelo choque traumático3.</p><p>O TRAUMA PRECOCE DA CONFUSÃO DE LÍNGUAS</p><p>Mas de quais traumatismos estamos falando? Ferenczi</p><p>retornou à noção de trauma como fator desencadeador</p><p>das neuroses, definindo como vivência traumática aquela</p><p>em que os estímulos recebidos desencadeiam um aíluxo</p><p>de excitações pulsionais de tal intensidade, que ultrapas-</p><p>sa a capacidade do psiquismo para realizar a sua tarefa de</p><p>conter e dominar as pulsões. O psiquismo não consegue</p><p>elementos para elaborar as excitações ligando-as num pro-</p><p>cesso associativo; desse modo não se produzem deriva-</p><p>ções que permitam o escoamento e descarga gradual das</p><p>quantidades pulsionais.</p><p>2 Freud, S. "Más alia dei principio de placer" (1920). Em: Obras Com-</p><p>pletas. Volume XIX. Buenos Aites, Amorrortu, 1989, p. 32.</p><p>3 Ferenczi, S. "Réflexions sur lê traumatisme" (1934). Em: Psjdionafyse 4-</p><p>Paris, Payot, 1982, p. 143.</p><p>121</p><p>Eliana Sckueler Reis</p><p>O traumatismo psíquico não pode ser pensado sem</p><p>uma ação violenta exercida pelo meio sobre um indiví-</p><p>duo que ainda não tem condições de reagir a ela. Esta</p><p>violência não se resume a uma violência sexual stríctu</p><p>sensu, mas a determinadas formas de relação nas quais um</p><p>sujeito mais fraco é submetido aos desejos de outro sem que</p><p>os seus próprios desejos sejam levados em consideração.</p><p>A violência determinante para a fixação do trauma é</p><p>representada pelo desmentido, por parte do adulto, do</p><p>sofrimento experimentado pela criança. O adulto atua</p><p>como outro, devendo realizar a ação efetiva de nomear e</p><p>organizar as experiências infantis. Uma vez que detém o</p><p>código cultural, ele é o introdutor da linguagem e da lei</p><p>no universo infantil. Cabe a ele reconhecer a criança em</p><p>sua condição de sujeito, ouvir suas queixas e ajudá-la a</p><p>dar um sentido às vivências, para que elas possam ser</p><p>introjetadas como experiências de dor ou de prazer.</p><p>O desmentido faz cair o silêncio sobre o acontecimento</p><p>traumático, impedindo o acesso ao campo das represen-</p><p>tações. Sem isso não há como esquecer (recalcar) nem</p><p>como rememorar. O trauma se fixa como impressão pon-</p><p>tual que não se insere numa série significante.</p><p>Punições excessivamente cruéis, cuja razão a criança</p><p>não pode entender a não ser se sentindo culpada por uma</p><p>falta que não conhece, ou o "terrorismo do sofrimento",</p><p>pelo qual uma mãe torna a criança testemunha e respon-</p><p>sável por suas dores — por exemplo nos conflitos familia-</p><p>res —, transformando-a no "psiquiatra da família", são</p><p>formas de submeter uma criança, introduzindo-a à força</p><p>numa forma de sexualidade — a paixão — seja ela sádica</p><p>122</p><p>Uma, três ou mais coisas que o sonho faz</p><p>ou masoquista11. Uma relação erotizada por um amor ou um</p><p>ódio de intensidades inapreensíveis pelo psiquismo infantil.</p><p>Nesse caso, o descompasso, inevitável, entre a sexua-</p><p>lidade infantil e adulta torna-se excessivo e resulta numa</p><p>"confusão de línguas", na qual a "língua" do infantil —</p><p>marcada pelas intensidades parciais e chamada por Ferenczi</p><p>de linguagem da ternura — não encontra retranscrições na</p><p>língua do adulto — marcada pelo recalque e pela culpabili-</p><p>dade —, de uma outra intensidade. Nesta confusão fica</p><p>impedida a construção do sentido através da tradução de</p><p>um código de significações para o outro. A criança sujeita a</p><p>essas pressões,</p><p>tentando se salvar, identifica-se com o adulto</p><p>agressor e toma para si sua culpabilidade, adquirindo preco-</p><p>cemente um "saber" sexual, genital; amadurece muito rapi-</p><p>damente como forma de se curar.</p><p>Ferenczi reintroduziu a criança traumatizada no cam-</p><p>po da teoria psicanalítica, assumindo de uma certa forma</p><p>o papel dessa criança. Foi considerado o "en/ant térrible"</p><p>que trazia questões espinhosas para o interior das discus-</p><p>sões teóricas, recusando-se a abandonar os casos difíceis</p><p>em que a resistência do paciente e o seu narcisismo fazi-</p><p>am com que o considerassem inanalisável. Denunciou a</p><p>resistência do analista em buscar formas diferentes de</p><p>acesso ao universo psíquico como uma nova forma do</p><p>desmentido. Contra essa posição de resistência afirmou</p><p>que enquanto o paciente retornasse às sessões não se te-</p><p>ria rompido o fio de esperança5.</p><p>4. Ferenczi, S. "Confusion de langues entre lês adultes et Penfant"</p><p>(1932). Em: Psychaiudyse 4- Op. cit., p. 161.</p><p>5. Ferenczi, S. "Analyse d'enfants avec dês adultes" (1931). Em:</p><p>4. Op. cit., p. 100.</p><p>123</p><p>Eliana Scíiwcler Reis</p><p>Seu desejo de curar fez com que retornasse à questão</p><p>do traumatismo, que deixa no sujeito a marca do</p><p>dilaceramento do tecido psíquico, impedindo que se fa-</p><p>çam registros de sentido. Nesse caso, a reação ao sofri-</p><p>mento é a autodestruição parcial do Eu como uma forma</p><p>mais primitiva de recalcamento. Ferenczi utilizou o modelo</p><p>da autotomia—capacidade que têm certos animais de aban-</p><p>donar partes de seu corpo para escapar de perigos que os</p><p>ameaçam — como paradigma para os processos de defesa,</p><p>notadamente aqueles ligados aos choques traumáticos.</p><p>A criança mal acolhida pelo mundo (pelo outro) ao</p><p>nascer é presa fácil das pulsões de morte, pulsões em esta-</p><p>do de dispersão que devem ser contidas pela ação ligadora</p><p>e organizadora da presença do outro. Se essa ação não se</p><p>faz a contento, o psiquismo é impressionado pela marca</p><p>da fragmentação e da destruição. Com o choque traumá-</p><p>tico representado em alguns casos, pelos modos como essa</p><p>presença efetiva se faz nos primeiros tempos de vida, as</p><p>energias psíquicas são despertadas sob a forma de precau-</p><p>ções e preocupações narcísicas, impedindo que sejam</p><p>dirigidas para investimentos libidinais de objeto6.</p><p>A CRIANÇA APONTA O CAMINHO</p><p>Ferenczi relatou um tipo de sonho, contado com uma</p><p>certa frequência por seus pacientes, ao qual ele deu o nome</p><p>6. Ferenczi, S. "Notes et fragments" (1930). Em: Ps^chanafyse 4. Op</p><p>cit., p. 279-80.</p><p>124</p><p>Uma, Irei OH mais coisas que o sonho faz</p><p>de "o sonho do bebé sábio"7. Nesse sonho aparece um</p><p>bebé que surpreende as pessoas falando sobre coisas com-</p><p>plexas, demonstrando um saber inesperado sobre o mundo.</p><p>C. Stein considera o bebé sábio como uma figura mítica</p><p>que se superpõe à figura do Édipo, "criança odiada, rejeita-</p><p>da, e condenada ao saber". Mito que fala sobre a transmis-</p><p>são, de geração em geração, do sofrimento, da culpa, do amor</p><p>e do saber. Para Stein, Ferenczi não percebeu que a sua abor-</p><p>dagem do trauma, por esse viés da criança que amadurece</p><p>cedo demais à força, estabelecia um novo mito. Stein consi-</p><p>dera que, ao reafirmar a importância do fator exógeno na</p><p>etiologia das neuroses e na problemática edípica, Ferenczi</p><p>estaria marcando este fator externo como contigente8.</p><p>Porém, o exógeno para Ferenczi diz respeito à presen-</p><p>ça do outro, incómoda e fundamental. Desde a formulação</p><p>do conceito de introjeção (e sua contrapartida, a projeção)</p><p>como processo fundador do psiquismo, houve em seu pensa-</p><p>mento a preocupação com o movimento em direção ao ou-</p><p>tro, com apropriação não do objeto e sim das qualidades per-</p><p>cebidas nesse contato. Os fatores exógenos dizem respeito</p><p>ao desencontro necessário e irremediável entre o registro da</p><p>sexualidade e da linguagem do adulto imerso na cultura e o</p><p>universo infantil com sua linguagem própria. Essa relação é</p><p>traumática, ou seja, produz uma ruptura na ordem existen-</p><p>te, e representa uma exigência de trabalho, no sentido de</p><p>conter e elaborar os elementos exógenos e endógenos atra-</p><p>vés da construção de um psiquismo.</p><p>7. Ferenczi, S. "Lê revê du nourrison savant". Em: Ps-ychancdyse 3. Pa-</p><p>ris, Payot, 1992, pg. 203.</p><p>8. Stein, C. "O bebé sábio segundo Ferenczi". Em: As erínios de uma</p><p>mãe. São Paulo, Escuta, 1988, p. 74-5.</p><p>125</p><p>Eliana Sfkueler Reis</p><p>Desse modo percebemos que a noção de trauma em</p><p>Ferenczi pertence a dois registros: o trauma estruturante</p><p>de um processo psíquico, marcado pelo desamparo primor-</p><p>dial do infante diante do mundo, e o trauma desestruturador,</p><p>representado pela presença de um outro enlouquecido, que</p><p>submete a criança às suas necessidades, impedindo que</p><p>ela tenha acesso ao próprio desejo.</p><p>A figura do bebé sábio revela o conflito entre o adulto</p><p>que sabe porque esqueceu e a criança cujo saber tem algo</p><p>de estranho e inquietante. O bebé sábio re-apresenta para</p><p>o adulto o que teve de ser recalcado. Ele está presente em</p><p>cada um de nós e nos ameaça e nos seduz com sua onipo-</p><p>tência, pois "não precisou crescer e passar pelas vicissitu-</p><p>des da vida para saber".</p><p>Por outro lado, o bebé sábio é a criança do ódio, a</p><p>criança traumatizada por um excesso do outro, a criança</p><p>que amadureceu precocemente, tomando-se responsável</p><p>por esse outro agressor. Esse sonho revela a forma como a</p><p>criança, exposta à violência de uma sexualidade incom-</p><p>preensível para ela, incorpora a culpabilidade do adulto</p><p>agressor, construindo um arremedo de super-ego, extre-</p><p>mamente severo e exigente.</p><p>A marca das impressões traumáticas retomam no so-</p><p>nho, daí a irritação presente muitas vezes nesse bebé que</p><p>reclama e desacata a todos com seus ditos ferozes. Esse</p><p>sonho pode ser interpretado como um sinal de alerta</p><p>para a consciência, sinal de que algo tem de ser feito</p><p>para construir uma ponte entre um saber infantil so-</p><p>terrado e o saber atual que não dá conta da compulsão</p><p>à repetição.</p><p>126</p><p>Uma, ires ow mais coisas que o son</p><p>Como esse, outros sonhos nem sempre podem ser in-</p><p>terpretados como realizações de desejo. Às vezes, como</p><p>vimos com Freud, o sonho é uma tentativa de dar conta</p><p>de algo que se passa fora do princípio do prazer. Para que</p><p>haja realização de desejo, é preciso que o desejo possa ser</p><p>formulado. Aí o sonho tem que "fazer o bicho", ligar as</p><p>pulsões a partir da dispersão, representada na teoria pela</p><p>noção de pulsão de morte.</p><p>O estado de sono prioriza o princípio de prazer (me-</p><p>nos tensão); ao mesmo tempo, o rebaixamento da censu-</p><p>ra propicia o retorno das impressões sensíveis traumáti-</p><p>cas. Nesse sentido o sonhar faz aparecer um estado seme-</p><p>lhante ao vivido no choque traumático, ou seja,</p><p>estimulações que não podem ser contidas por uma barrei-</p><p>ra protetora eficiente. A passividade muscular caracterís-</p><p>tica do dormir impede os movimentos de fuga (vide os</p><p>sonhos nos quais o sonhador se sente perseguido e não</p><p>consegue sair do lugar). Porém, esse mesmo estado de</p><p>passividade torna possível reviver e rememorar experiên-</p><p>cias traumáticas, o que é evitado pela consciência. Nesse</p><p>sentido o sonho pode ser criador, fazer acontecer algo,</p><p>indicar caminhos, dar pistas para o fazer psíquico.</p><p>SONHANDO o PROCESSO DE CURA</p><p>O sonho contado em análise pode ter o poder de um</p><p>sonho profético não pela revelação dos desejos inconsci-</p><p>entes interditados pelo recalcamento, mas porque o pró-</p><p>127</p><p>Eliana Schueler Reis</p><p>prio ato de sonhar participa da economia do processo da</p><p>cura psicanalítica. Gostaria de exemplificar, utilizando um</p><p>sonho que me foi relatado por uma analista, sonho do</p><p>final de um processo de análise:</p><p>Era um dia de sol e eu olhava para o céu. Havia um avião e</p><p>meu pai estava lá dentro. De repente o avião explode e caem</p><p>pedaços de metal e carne... Engraçado, eu não estava cho-</p><p>rando, simplesmente olhava os pedaços brilhando no</p><p>céu...(ameaça bater na boca, gesto muito antigo e repetido,</p><p>mas desta vez contém o gesto).</p><p>Eu devia estar triste? Devia estar assustada? Não estou me</p><p>sentindo assim.</p><p>Não escava "arrasada", nem em "pânico", e diz:</p><p>Afinal era só um sonho não é? (ri) Não pude escolher as</p><p>coisas que recebi, tive a vida inteira que aceitar, entender...</p><p>Não dá para nascer de novo, não é? Mas de certa forma</p><p>sinto que nasci de novo, sim... Só que as lembranças estão</p><p>lá. Tenho raiva sim e o sonho é meu. Se é só um sonho,</p><p>porque devo me culpar?</p><p>Esta seria a última sessão de uma análise iniciada há</p><p>alguns anos, num estado de angústia e desamparo que</p><p>exigiu da analista e analisanda esforços incalculáveis9.</p><p>Neste sonho se concretiza a morte do agressor, seu</p><p>estilhaçamento não como uma vingança, mas como morte</p><p>necessária para que ela pudesse sair da fragmentação e viver.</p><p>9 Cereto, C. "Questões transferenciais: um caso clínico". Trabalho apre-</p><p>sentado na Livre Associação Psicanalftíca, 1991, cópia xerográfica.</p><p>128</p><p>Uma, Crés ou mais coisas que o sonho {az</p><p>A experiência analítica pode ter o caráter de um novo</p><p>nascimento, como a criação de um tecido psíquico</p><p>esgarçado, destruído. O efeito terapêutico da relação</p><p>transferencial reside na repetição diferencial das relações</p><p>primárias do sujeito. Há um elemento inédito em relação</p><p>aos modelos adquiridos nos primeiros anos de vida: o que</p><p>foi votado ao silêncio deve ser dito, os sentimentos de</p><p>amor e ódio podem ser revividos, as explosões corporais</p><p>podem aparecer. Essa diferença propicia a rememoração</p><p>e reconstrução, à medida que a presença do analista pos-</p><p>sa servir como suporte e mediador desse processo.</p><p>A interpretação dos sonhos como revelação de dese-</p><p>jos e conflitos inconscientes, quando se impõe como a</p><p>única forma de escuta e de verdade do sonho, atrofia a</p><p>riqueza de possibilidades experimentadas ao sonhar. Este</p><p>sonho, que tem a concisão de mito, contém todo o per-</p><p>curso realizado durante a análise. Um percurso marcado</p><p>pelo terror e pela dor, no qual a morte esteve presente</p><p>desde o início até o final, quando ela constata que algo</p><p>deve morrer sim, que as marcas permanecem e são dolo-</p><p>rosas, mas que é possível inventar um novo sentido.</p><p>Esta é uma das tarefas do bebé sábio, envolvido no</p><p>ódio e na reparação. O objeto desejado e ameaçador, alvo</p><p>das pulsões de destruição, é representado no sonho jun-</p><p>tamente com a possibilidade de construção de sentido.</p><p>Os fragmentos luminosos do avião se misturam aos pe-</p><p>daços de corpos, e com essa mistura os afetos experi-</p><p>mentados ao sonhar expressam algo de novo ("sinto</p><p>que nasci de novo, sim") surgindo da fragmentação e</p><p>da destruição.</p><p>129</p><p>Eííana Sc/iweler Reis</p><p>O trabalho de rememoração e reconstrução empre-</p><p>endido durante a análise é apresentado nesse sonho no</p><p>dia em que a paciente havia decidido que seria o de sua</p><p>última sessão, pois ela precisava ficar sozinha, separar-se</p><p>de sua analista, desfazer esse laço que fora fundamental.</p><p>Vemos que o sonho expressa o conflito da separação e a</p><p>possibilidade de introjeção vividos nesse processo, para</p><p>que ela possa viver com suas memórias e não agi-las como</p><p>sintomas.</p><p>Porém, além da interpretação do sonho no contexto</p><p>psicanalítico, existe, antes de tudo, a experiência do so-</p><p>nhar com toda a sua diversidade de possibilidades de sen-</p><p>tido. Sobre esse sonho, que foi sonhado para a separação,</p><p>que marca a ruptura com um tipo de produção de sentido</p><p>organizado em torno do amor de transferência, ela diz:</p><p>"Eu preciso (posso) ficar sozinha". O sonho lhe indica que</p><p>é possível experimentar outras produções em outros mo-</p><p>dos de relação, sem que a relação corn o analista tenha</p><p>que estar presente, concretamente, como pano de fundo.</p><p>130</p><p>NARCISISMO, IDEAL DO Eu, CRIANÇA E</p><p>TELEVISÃO</p><p>Eliza Santa Roza</p><p>Tendo sido convidada como psicanalista da infância</p><p>a falar numa mesa redonda sobre o tema "A Criança e a</p><p>Mídia", comecei a refletir sobre o que a psicanálise teria a</p><p>dizer a respeito. Não é incomum hoje em dia vermos o</p><p>corpo teórico da psicanálise sendo utilizado isoladamente</p><p>para explicar os mais variados fenómenos humanos, de</p><p>tal forma que certos psicanalistas terminam por fazer de</p><p>seu instrumento de trabalho uma 'Weltanschauung (visão</p><p>de mundo), capaz de dar conta de tudo o que nos cerca.</p><p>Certamente não compartilho com este olhar, mas creio</p><p>que alguns conceitos da teoria psicanalítica são úteis para</p><p>nos ajudar a pensar, se aliados a uma visão que não deixe</p><p>de lado o momento histórico-social dos sujeitos envolvi-</p><p>dos naquilo que pretendemos analisar.</p><p>Assim pensando, foi que me lembrei de uma crónica</p><p>escrita por Umberto Eco, semiólogo e romancista italia-</p><p>no. Ele conta-nos e comenta um fato ocorrido em Nova</p><p>131</p><p>Eliza Santa Reza</p><p>Iorque: alguns meninos brincavam perto do fosso dos ur-</p><p>sos polares no Central Parle, quando um deles desafiou os</p><p>demais a tomarem banho no fosso, nadando em volta dos</p><p>ursos. Os meninos entraram na água, nadaram em torno</p><p>de um urso plácido e sonolento, provocaram o animal, que</p><p>terminou se aborrecendo e destroçando com suas patas dois</p><p>dos meninos, espalhando pela água seus pedaços.</p><p>Os jornais comentaram o acontecimento, a polícia foi</p><p>acionada, conjecturou-se em sacrificar o urso, mas final-</p><p>mente as autoridades concluíram que o urso era inocente.</p><p>Os meninos eram de cor, afeitos à bravatas, como é co-</p><p>mum em grupos de crianças pobres, e estas característi-</p><p>cas deram origem tanto a comentários cínicos do tipo "se-</p><p>leção natural, foram idiotas o bastante para desafiarem os</p><p>ursos", quanto a interpretações de cunho social, justifi-</p><p>cando a tragédia como resultante da escassez de educa-</p><p>ção nos bolsões de pobreza.</p><p>Eco se pergunta, todavia, que escassez de educação é</p><p>essa, se até o menino mais pobre vai à escola — nos EUA</p><p>— e pode ver televisão, na qual os ursos devoram homens</p><p>e são mortos por caçadores? Levantando então uma ou-</p><p>tra hipótese, Eco nos propõe uma nova vertente</p><p>interpretativa: não teriam os meninos entrado no fosso</p><p>justamente porque vêem televisão? Os meios de comuni-</p><p>cação de massa exageram nas ações educativas quanto à</p><p>consciência ecológica, diz ele. Utilizam uma técnica per-</p><p>suasiva que distorce e omite a realidade. "Deixam-se mor-</p><p>rer as crianças do Terceiro Mundo, mas os meninos são</p><p>incentivados a respeitar não apenas as libélulas e os</p><p>coelhinhos, mas também as baleias, os crocodilos e as</p><p>132</p><p>Narcisismo, Ideal do Eu, criança e televisão</p><p>serpentes". A fim de tornar os animais mais dignos de</p><p>sobrevivência, eles são humanizados e infantilizados pela</p><p>mídia. Os ursos são apresentados como seres amáveis, en-</p><p>graçados e bonachões, não se dizendo que têm direito à</p><p>sobrevivência apesar de serem selvagens e carnívoros1.</p><p>Eco desconfia que os meninos do Central Park tenham</p><p>morrido não por falta, mas por excesso de informação,</p><p>vítimas de nossa consciência infeliz porque educamos nos-</p><p>sos filhos à base de baleias falantes, lobos que se inscrevem</p><p>na ordem terceira dos franciscanos e sobretudo Teddy Bears,</p><p>ursinhos de pelúcia.2</p><p>De fato, todos temos a oportunidade de observar que</p><p>este modo de veicular a informação pela TV, por razões</p><p>que adiante comentarei, exerce forte influência não ape-</p><p>nas sobre as crianças, mas também sobre os adultos, prin-</p><p>cipalmente em nosso país, no qual a maioria da popula-</p><p>ção não tem acesso à educação nos bancos escolares. Re-</p><p>centemente, numa praia do litoral catarinense, dois ho-</p><p>mens foram atacados ao tentar brincar com golfinhos que</p><p>surgiram no mar, tendo um deles morrido. Na linha</p><p>interpretativa de Eco, nos perguntamos se para aqueles</p><p>homens os golfinhos não foram identificados como sendo</p><p>da mesma natureza que os domesticados, mostrados pela</p><p>TV nos shows aquáticos do SeaWorld.</p><p>Então, a partir destes fatos concretos e da interessan-</p><p>te interpretação de Eco, poderíamos refletir sobre uma</p><p>importante questão da atualidade: os meios de comuni-</p><p>1 Eco, U. "Como falar dos animais". Em: Segundo diário mínima. Rio de</p><p>Janeiro, Record, 1993.</p><p>2, Idem, p. 140.</p><p>133</p><p>Eliza Santa Roza</p><p>cação de massa, através de seu poder de manipulação do</p><p>real e de sua poderosa carga pedagógica, são capazes de</p><p>alterar comportamentos e remanejar atitudes? E, como</p><p>um desdobramento desta pergunta, se consideramos que</p><p>comportamentos e atitudes são reflexos de organizações</p><p>psíquicas, teria a mídia — particularmente a televisão—</p><p>influência sobre a organização do aparelho psíquico?</p><p>v</p><p>A primeira vista</p><p>a resposta é afirmativa, notadamente</p><p>quando falamos de crianças como as maiores "vítimas"</p><p>da imposição discursiva da televisão. Pensa-se comumente</p><p>em crianças como seres ainda não completamente forma-</p><p>dos sob o ponto de vista psíquico, flexíveis, e portanto</p><p>mais vulneráveis às influências ambientais. No entanto,</p><p>esta última afirmação é apenas parcialmente verdadeira,</p><p>pois todos os seres humanos estão expostos às influências</p><p>ambientais. Para a criança, todavia, as relações familiares</p><p>iniciais são de caráter fundamental. Assim, passarei a con-</p><p>siderar as diferenças existentes entre as influências do</p><p>ambiente como relações com outros seres humanos e como</p><p>discurso televisivo.</p><p>O ser humano é um ser de linguagem, constituído</p><p>como tal por outro ser humano. O bebe é acolhido por</p><p>alguém que o nomeia e dá sentido às suas experiências e</p><p>necessidades, inserindo-as num código significativo, numa</p><p>permanente troca tntersubjetlva. Este par—mãe/bebé—</p><p>é praticamente indissociável no início da vida, de tal modo</p><p>que, conforme nos diz Winnicott, "não existe tal coisa</p><p>chamada bebé"3; o que existe é sempre o bebé e alguém.</p><p>3. Winnicott, D. W. "Desenvolvimento emocional primitivo". Em: Da</p><p>pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988.</p><p>134</p><p>Narcisismo, Ideal do Eu, criança c televisão</p><p>Neste percurso de tornar-se alguém, a criança, ainda não</p><p>falante mas falada pelo outro, vai se constituindo num</p><p>processo, onde é rigorosamente imprescindível a media-</p><p>ção deste outro em direção ao reconhecimento de si mes-</p><p>mo, através do corpo como entidade total e autónoma.</p><p>A chegada a este termo é o coroamento de um pro-</p><p>cesso de dimensões bastantes complexas, inteira e per-</p><p>manentemente perpassado pelas relações interpessoais</p><p>através da linguagem. Particularmente neste início da vida,</p><p>a linguagem não-verbal exerce um papel fundamental: é</p><p>através do brincar que a criança vai gradativamente</p><p>edificando o próprio corpo, estabelecendo as relações en-</p><p>tre continente e conteúdo, criando a dimensão de volume4.</p><p>A passagem por estas etapas é condição para que a</p><p>criança chegue ao que a psicanálise, através de Lacan,</p><p>denomina como Estádio do Espelho5. Aqui é formada a</p><p>primeira imagem de si, através da identificação ao outro,</p><p>inaugurando uma instância organizadora, o Eu. Para que</p><p>este Eu se constitua é necessário, como nos diz Freud, um</p><p>investimento dos pais (ou substitutos) na criança, que faz</p><p>com que as pulsões sejam unificadas numa nova ação psí-</p><p>quica. Freud denominou este estádio como o Narcisismo</p><p>Primário, onde é constituído um Eu Ideal, um Eu ima-</p><p>ginário, articulado aos modelos parentais sobre a cri-</p><p>^</p><p>anca. E o investimento narcístco dos pais, resultante</p><p>de seu próprio narcisismo direcionado para a criança:</p><p>4. Santa Roza, E. Quando brincar é dizer, a experiência psicanaUtica rui</p><p>infância. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995.</p><p>5. Lacan, J. "O estádio de espelho como formador da função do eu".</p><p>Em: Seixo, Maria A. (org), O sujeito, o corpo e a letra: termos de análise. Usboa,</p><p>Arcádia, 1977.</p><p>135</p><p>za Santa Ro?a</p><p>"Sua Majestade o Bebé", que não deve sofrer, que não</p><p>deve renunciar ao prazer, que não deve ter restrições, em</p><p>quem a doença e a morte não devem ter vigência6.</p><p>Assim, reflexo deste Eu Ideal, imaginariamente com-</p><p>pleto e sem falhas, a criança é onipotente, egocêntrica e</p><p>individualista. Tal modelo está sempre presente no sujei-</p><p>to; podemos supô-lo em todo indivíduo, diz Freud. Entre-</p><p>tanto, com a entrada na cultura dá-se a derrocada deste</p><p>ideal imaginário. Os limites, a educação, o controle</p><p>esfincteriano, as restrições ao livre curso do prazer e fun-</p><p>damentalmente a interdição do incesto na passagem pelo</p><p>Complexo de Édipo vão apontando para a criança as fa-</p><p>lhas deste Eu Ideal. Desta forma o Complexo de Édipo</p><p>configura-se como um momento lógico organizador, do</p><p>qual resulta a contrapartida do Eu Ideal, o Ideal do Eu,</p><p>uma vertente do Supereu que se organiza através das iden-</p><p>tificações da criança com os pais: "Não posso ter ou ser</p><p>tudo, não posso possuí-los, mas posso ser como eles, bus-</p><p>car realizar meus desejos como eles"7.</p><p>Permanece, portanto, um ideal imaginário de</p><p>completude, sinalizando para os pais como um ideal pos-</p><p>sível, no entanto já mediado por uma organização simbó-</p><p>lica, o Ideal do Eu. No processo de estruturação psíquica</p><p>articulam-se então duas instâncias, numa dialética que</p><p>tem como mediador o universo simbólico e cujo alvo é a</p><p>satisfação do desejo: Eu Ideal, narcísico, completude ima-</p><p>ginária que falha, e Ideal do Eu, um mais além do sujeito.</p><p>6 Freud, S. "Introducción ai narcisismo" (1914)- Em: Obras completas.</p><p>Volume XIV. Buenos Aires, Amorrortu, 1989.</p><p>7. Freud, S. "El Yo e el Ello" (1923). Em: Obras completas. Volume XX.</p><p>Op. cie.</p><p>136</p><p>Narcisismo, Ideal do EM, criança e televisão</p><p>Retomarei à questão que formulei inicialmente: a te-</p><p>levisão teria alguma influência nesse processo de</p><p>estruturação do sujeito? Em que medida?</p><p>Para Muniz Sodré, um dos mais importantes estudio-</p><p>sos deste tema entre nós, a televisão é um outro espelho</p><p>identificatório, que se introduz no espaço doméstico, e é</p><p>capaz de produzir processos identificatórios que têm nas</p><p>crianças seus melhores agentes. Segundo ele, estudos só-</p><p>cio-psicológicos apontam para a facilidade que as crian-</p><p>ças têm de imitar comportamentos e atitudes vistos no</p><p>vídeo, como se a representação televisiva desencadeasse</p><p>algo equivalente à presença real. O Supereu infantil seria</p><p>pressionado com incitações heróicas como modelos refe-</p><p>rentes a um Ideal do Eu, em concorrência com as figuras</p><p>parentais. Esta concorrência se daria também pelas mo-</p><p>dificações que vêm sofrendo a estrutura familiar: o enfra-</p><p>quecimento do pai como fonte soberana de discursos</p><p>morais, visto que perde seu lugar na produção; a partici-</p><p>pação cada vez maior da mãe na ideologia masculina da</p><p>competitividade; a nuclearização da família em torno de</p><p>um pai, uma mãe e poucos filhos8.</p><p>Sodré levanta a hipótese de que a antiga autoridade</p><p>familiar perde sentido num espaço regulado pelo valor</p><p>supremo da competência técnica individual, os pais dei-</p><p>xando de ser fontes seguras de orientação para o mundo</p><p>externo. Em lugar de sua palavra, entra o discurso fasci-</p><p>nante da Organização (o Estado associado à grande em-</p><p>presa) , o discurso veiculado pela mídia. A própria estru-</p><p>8 Sodré, M. A máquina de Narciso. Rio de Janeiro, Achiamé, 1984.</p><p>137</p><p>nta Roía</p><p>tura edipiana poderia vir a ser substituída por uma estru-</p><p>tura narcísica, a base de autogestão psíquica. O sujeito se</p><p>constituiria, então, como sujeito psíquico sob a égide do</p><p>controle social, que produz no vídeo o desejo, por efeitos</p><p>de fascinação, de convencimento, de persuasão9.</p><p>Ora, podemos supor que de fato as modificações dos</p><p>papéis sociais das figuras parentais certamente terão efei-</p><p>tos sobre os processos identificatórios, uma vez que estes</p><p>são também configurações da ordem do imaginário. As</p><p>alterações do imaginário social incidem sobre os adultos e</p><p>consequentemente sobre seus filhos. Acreditamos porém</p><p>que se o discurso televisivo cria ou acompanha estas alte-</p><p>rações, não são as crianças aqueles prioritariamente atin-</p><p>gidos; todos o são. Uma recente reportagem de um jornal</p><p>local comentava a espantosa venda de um determinado</p><p>modelo de blusa vestida por uma belíssima atriz de uma</p><p>novela, venda que não se restringia às adolescentes; mu-</p><p>lheres de todas as faixas etárias a compraram. Assim as</p><p>crianças são levadas a identificações com personagens</p><p>televisivos não porque são mais "frágeis" ou mais suscetí-</p><p>veis a estas influências, mas também e principalmente por-</p><p>que identificam-se com os adultos de seu ambiente, captura-</p><p>dos pelo Ideal de Eu proposto pelo discurso da mídia10.</p><p>O que é então essa máquina que habita quase todos</p><p>os lares, ou melhor o que ela representa? Como nos mos-</p><p>tra magnificamente Sodré, a televisão está a serviço das</p><p>ideologias do sistema, uma brilhante forma de controle</p><p>9Idem</p><p>10 Sodré, M. et alli "Xuxa de Neve e seus Baixinhos". Em: O Brasil</p><p>simulado e o real. Rio de janeiro. Rio Fundo, 1991.</p><p>138</p><p>Narcisismo, Ideal</p><p>do Ew, criança e televisão</p><p>social que através da eliminação da gratuidade, ou seja,</p><p>daquilo que no discurso não está comprometido com a</p><p>produção, da eliminação da liberdade, da pluralidade e</p><p>da sociabilidade do diálogo, leva o espectador a identifi-</p><p>car-se com os modelos que apresenta11.</p><p>Assim, a televisão representa o sistema e seus interes-</p><p>sados, que procuram manter o status quo através de simu-</p><p>lacros da realidade e da univocidade do discurso, no in-</p><p>tuito de manter e fomentar a ideologia capitalista, sendo</p><p>o consumo um dos principais objetivos a ser atingido, não</p><p>importa através de que meios. Para isto é necessário não</p><p>apenas saber que o desejo humano é infinito, mas tam-</p><p>bém saber direcioná-lo, apostando na tentativa do sujeito</p><p>em aproximar duas instâncias: Eu Ideal e Ideal do Eu. Por</p><p>esta via são socialmente construídos ideais, montados na</p><p>exterioridade: um corpo perfeito, em roupas maravilho-</p><p>sas, dentro de um carro importado, saindo de uma gara-</p><p>gem de um magnífico condomínio etc. é apresentado como</p><p>um dos modelos de completude e felicidade.</p><p>Por outro lado, a TV é uma máquina e neste sentido</p><p>permito-me discordar de Sodré quanto à sua influência</p><p>na constituição do sujeito psíquico. Retomarei, então, o</p><p>início deste texto, onde procuro explicitar a posição da</p><p>psicanálise em relação aos sujeitos humanos, constituí-</p><p>dos na linguagem e na intersubjetividade. Haveria trocas</p><p>subjetivas entre uma criança e o discurso televisivo? E o</p><p>próprio Sodré quem nos diz que a televisão se caracteriza</p><p>por uma produção fechada de sentido, pela não-recipro-</p><p>U. Sodré, M. OmonotxSlio da feda. Petrópolis, Vozes, 1984.</p><p>139</p><p>Eliza Santa Roja</p><p>cidade entre falante e ouvinte, impedindo assim a</p><p>multiplicidade de possibilidades de circulação simbólica,</p><p>essência da experiência e do conhecimento. Trata-se de</p><p>uma linguagem domesticada, doada, unívoca, sem troca</p><p>verdadeira ou respostas possíveis12.</p><p>Então, na relação criança-televisão a experiência</p><p>intersubjetiva está ausente, portanto impossível se pensar</p><p>na emergência do sujeito do desejo, que surge justamente</p><p>na dialética da presença e da ausência, no que emerge de</p><p>criação no "gap" existente entre a fala e a resposta. Seria</p><p>pensável um sujeito psíquico constituído com base de</p><p>autogestão? O que seria, como fala Sodré, uma estrutura</p><p>narcísica substituindo a estrutura edipiana? Não posso crer</p><p>que a máquina tenha este poder. Podemos pensar que</p><p>ela, ou melhor o discurso que veicula, se utilize do desejo,</p><p>reconfigurando as redes do imaginário coletivo, mas não</p><p>podendo produzi-lo. Pode induzir seus contornos, mas se</p><p>desejo é desejo insatisfeito, qualquer desejo é desejo e isto</p><p>caracteriza o sujeito constituído no Édipo.</p><p>Ilustro minha compreensão com um exemplo clínico:</p><p>uma moça que acabara de dar à luz, encontrava-se bas-</p><p>tante ansiosa, com insónia e nervosismo. Ela contava à</p><p>psicóloga da enfermaria de puérperas que havia visto</p><p>um programa de TV que se propõe a orientar as mães</p><p>de primeira viagem. Nele era explicado o que seria "cor-</p><p>reto" a mãe fazer nos cuidados com seu bebé: dar tais e</p><p>tais sucos de frutas, em mamadeiras com bicos assim e</p><p>assado, chupetas importadas que não prejudicam os</p><p>dentes, roupas de tecidos especiais etc. "Como vou ser</p><p>12. Idem</p><p>140</p><p>Narcisismo, Ideal do Eu, criança e televisão</p><p>uma boa mãe — perguntava ela à psicóloga — se não po-</p><p>derei comprar nada disso para meu filho?"</p><p>À primeira vista tem-se aqui um poderoso efeito</p><p>modulador e perverso da mídia, que ditaria as regras do</p><p>modelo de boa mãe, calcado na perspectiva das classes</p><p>dominantes e do consumo. Uma outra mãe com melhor</p><p>poder aquisitivo mergulharia na ilusão de estar cumprin-</p><p>do bem seu papel, se fizesse tal como orientava o progra-</p><p>ma. Mas por quanto tempo? O programa não dialoga, não</p><p>responde senão ao que se propõe. O programa não é ca-</p><p>paz de atingir o ponto fundamental de toda mulher que</p><p>pela primeira vez se torna mãe: o que é ser mãe?</p><p>Por outro lado, quem poderá responder a esta questão</p><p>senão ela própria ao longo de sua relação com o filho?</p><p>Assim, pergunto-me se a ansiedade e a insónia também</p><p>não se apresentariam nesta paciente ante um discurso de</p><p>sua própria mãe quanto às atitudes adequadas nos cuida-</p><p>dos com a criança. A ansiedade neste caso se produz pelo</p><p>contraponto permanente que mantemos entre o Eu Ideal</p><p>e o Ideal do Eu, que a mídia tão bem sabe capitalizar,</p><p>ainda que não seja responsável pela sua produção. É evi-</p><p>dente que, conforme já sinalizamos, existem profundas</p><p>diferenças entre o discurso televisivo e a troca interpessoal.</p><p>Neste caso que relatamos, a TV fecha qualquer possibili-</p><p>dade de resposta, qualquer alternativa possível, ao passo</p><p>que se a paciente estivesse ouvindo sua mãe, o diálogo</p><p>estaria em aberto. O que fez aqui a TV não foi produzir o</p><p>sujeito do desejo mas, a partir do conhecimento das dúvi-</p><p>das, das ambivalências e da busca do ideal das mulheres que</p><p>se tornam mães, tentar desenhar a seu modo o desejo.</p><p>141</p><p>Eliza Santa Roça</p><p>Uma segunda objeção que levanto em relação à posi-</p><p>ção de Sodré diz respeito à problemática das identifica-</p><p>ções. Poderia, de fato, a mídia vir a substituir os modelos</p><p>parentais? Os heróis são novidade inventada pela mass-</p><p>míàia ou sempre existiram como modelos de Ideal do Eu,</p><p>desde os tempos remotos? As crianças da favela estão mais</p><p>identificadas com os heróis da televisão — inacessíveis</p><p>para elas até em suas reproduções em brinquedos — ou o</p><p>que vemos mais comumente são as identificações com os</p><p>"heróis" reais, os poderosos traficantes que enfrentam a po-</p><p>lícia assassina, que distribuem remédios, que pagam a conta</p><p>da venda, os verdadeiros pais simbólicos das favelas?</p><p>Aproveitemos para relembrar Freud em "Psicologia das</p><p>Massas e Análise do Eu", afirmando que em nossa vida</p><p>anímica o outro conta com total regularidade como mo-</p><p>delo, como objeto, como auxiliar e como inimigo, de tal</p><p>modo que desde o começo o sujeito é legitimamente um</p><p>sujeito social. Os processos identificatórios se instalam a</p><p>partir das relações objetais, ou seja, dos laços afetivos ini-</p><p>ciais para depois serem substituídos pelos laços sociais, de</p><p>acordo com a importância que o ambiente social tem para</p><p>o sujeito13. Deste modo, a criança se identifica secundari-</p><p>amente com elementos de seu meio, como professores por</p><p>exemplo, mas neste processo estará necessariamente</p><p>implicada uma troca afetiva.</p><p>Existiria esta troca entre uma criança e a televisão?</p><p>Poderíamos refletir, por exemplo, sobre o poder que exer-</p><p>cem os apresentadores de programas infantis, levando as</p><p>crianças à dramáticas declarações de amor e a copiar seus</p><p>13 Freud, S. "Psicologia de Ias massas y análisis dei yo" (1921). Em:</p><p>Obras completas. Volume XVIII. Op. cit.</p><p>142</p><p>Narcisismo, Ideal íío Eu, criança e televisão</p><p>menores gestos. Todavia, estes apresentadores fazem efeito</p><p>porque representam por sua vez ideais para os pais destas</p><p>crianças: esbanjam beleza, distribuem brinquedos, detêm</p><p>poder. Os próprios pais não se furtam a vestir suas filhas como</p><p>a Xuxa ou a Angélica. Desejam para si e para seus filhos</p><p>sucesso igual, e é este padrão identificatório que é introjetado</p><p>pela criança a partir da troca afetiva com seus pais. Os mo-</p><p>delos parentais não são portanto substituídos pelos heróis; os</p><p>heróis equivalem aos modelos de ideal dos pais, assim trans-</p><p>mitidos aos filhos.</p><p>Seriam então as crianças presas tão fáceis da manipula-</p><p>ção da mídia ou, na realidade, o que a mídia faz é capturar os</p><p>adultos, apropriando-se de organizações do imaginário já</p><p>existentes, estas sim funcionando para a criança como estru-</p><p>turas identificatórias? A meu ver é ingénua a ideia de que a</p><p>criança é mais suscetível de dominação que o adulto. As</p><p>crianças são crianças, infantis são os adultos. Evidentemente</p><p>que, sob o ponto de vista sociológico, as influências da mídia</p><p>estão em todos nós, e nos encarregamos em nossa má consci-</p><p>ência, como nos diz Eco, de perpetuá-la em nossos filhos.</p><p>Em a Máquina de Narciso, Muniz Sodré fala da televi-</p><p>são como uma máquina que nos captura pelo olhar, capaz</p><p>de nos congelar como objeto, ob j crivando-nos</p><p>e nos do-</p><p>minando. Diz-se que a mídia está transformando a socie-</p><p>dade, alimentando o individualismo e criando seres</p><p>narcísicos, presos pela imagem, estagnados no Eu Ideal,</p><p>cada vez mais distantes da cultura, da experiência con-</p><p>creta, do conhecimento. Todavia a mídia é um efeito de</p><p>sentido de uma organização social que produz uma subje-</p><p>tividade, e não sua causadora. As crianças podem ser as</p><p>maiores vítimas desta organização.</p><p>143</p><p>A máquina e seu conteúdo são efeitos do homem;</p><p>portanto não podem substituí-lo naquilo que ele tem de</p><p>único, que é justamente produzir o humano. O monstro</p><p>comerá seu criador? Estão aí para provar o contrário os</p><p>vírus de computador, apontando para o essencial: o ho-</p><p>mem ainda é soberano. Nenhuma máquina poderá subs-</p><p>tituir o olhar do outro, constituinte do Eu Ideal; nenhu-</p><p>ma máquina poderá gerar a estrutura básica da cultura,</p><p>constituinte do Ideal do Eu.</p><p>Se não posso negar completamente a influência da</p><p>mídia no comportamento e nas atitudes dos homens, tam-</p><p>bém não posso superestimá-la, sob pena de ter que sub-</p><p>meter-me aos seus veredictos. Abandonaremos nosso su-</p><p>jeito freudiano cinquenta anos depois?</p><p>Apenas mais uma pergunta para finalizar, retomando</p><p>o texto de Umberto Eco, com todo respeito que devo às</p><p>suas interpretações: será que muito antes da moss-midia</p><p>meninos não se lançaram pelo simples desafio em fosso</p><p>de ursos polares? De que matéria eram feitos os loucos</p><p>heróis de antigamente? Quais são os conteúdos dos con-</p><p>tos de fadas, povoados de animais falantes, seres mágicos,</p><p>monstros e super-heróis? São essencialmente diferentes</p><p>dos desenhos animados e filmes de sucesso da TV, como</p><p>He-Mcm, ]aspion e Power Rangers? As fantasias de</p><p>completude do Eu Ideal, derrotadas pela castração, e a</p><p>busca da irrealizável onipotência pelo Ideal do Eu são es-</p><p>sencialmente condição humana. João sobe no pé de fei-</p><p>jão e derrota o gigante, roubando-lhe a galinha dos ovos</p><p>de ouro, He-Man diz "Eu tenho a força", Cinderela sai da</p><p>pobreza, casa-se com o príncipe e vive feliz para sempre, e</p><p>finalmente Xuxa "é tudo o que você queria ser"...</p><p>144</p><p>MÚLTIPLOS EUS'</p><p>Elicma ScKueíer Reis</p><p>De primeiro as coisas só davam aspecto</p><p>Não davam ideias.</p><p>A língua era incorporante.</p><p>Manoel de Baixos</p><p>Nós psicanalistas somos supostos trabalhar com a ques-</p><p>tão da subjetividade, pensar e teorizar sobre o sujeito. Mas</p><p>nern sempre lembramos que a subjetividade não é uma</p><p>produção individual, e sim coletiva, histórica e</p><p>contextualizada no seu tempo e em sua cultura.</p><p>Freud sabia muito bem disso quando delimitou, des-</p><p>creveu e definiu as neuroses histéricas como um fenóme-</p><p>no da alma humana, e não como uma degeneração ou</p><p>simplesmente um problema moral.</p><p>Desafiando o saber reconhecido, afirmou que a histe-</p><p>ria não era somente uma questão de mulheres, que os</p><p>homens também estavam sujeitos a este modo de subjeti-</p><p>* Publicado originalmente em Costa, Mauro Sá Rego (org). Pontos de</p><p>fuga: visão, tato e outras pedaços, Seminário Transdisciplinat da Univer-</p><p>sidade Livre. Rio de Janeiro, Taurus, 1996.</p><p>145</p><p>Eliana Schweler Reis</p><p>vidade. Percebia, porém, que as mulheres, por terem em</p><p>geral suas atividades circunscritas ao espaço interior da</p><p>casa, cozinhando, costurando, fiando, tornavam-se pro-</p><p>pensas aos devaneios e às fantasias que vinham ocupar o</p><p>lugar de atividades mais aventurosas, que lhes estavam</p><p>vedadas de um modo geral. Ora, muitas fantasias e pouca</p><p>realização concreta acabavam criando o caldo psíquico</p><p>propício ao surgimento das realizações histéricas caracte-</p><p>rísticas da subjetividade feminina naquele período.</p><p>Fenómenos semelhantes àqueles da histeria constitu-</p><p>íram em outros tempos o material dos processos</p><p>inquisitoriais contra as bruxas e feiticeiras. Na Idade Mé-</p><p>dia as questões relativas ao humano não eram pensadas</p><p>como questões subjetivas e sim como questões que dizi-</p><p>am respeito à submissão às leis do cristianismo e à salva-</p><p>ção da alma.</p><p>Os fenómenos de possessão das feiticeiras se apresen-</p><p>tavam como uma combinação paradoxal de transgressão/</p><p>submissão das mulheres aos poderes que se exerciam so-</p><p>bre o universo feminino, assim como as fantasias e os sin-</p><p>tomas histéricos foram também uma forma de cumprir e</p><p>descumprir o destino do feminino alguns séculos depois.</p><p>Ao construir sua teoria a partir do trabalho clínico e</p><p>do estudo das manifestações da histeria, Freud define a</p><p>alma humana tal como a vê. Uma alma dividida, que des-</p><p>conhece as forças propulsoras de seus desejos e de seus</p><p>atos. Esta será a principal característica do sujeito psica-</p><p>nalítico: um sujeito dividido, submetido a conflitos dos</p><p>quais sua consciência não se dá conta. Não mais o sujeito</p><p>cartesiano capaz de alcançar com sua dúvida todas as</p><p>146</p><p>Múltiplos eus</p><p>dobras da consciência, buscando assim escapar das arma-</p><p>dilhas que se colocam para a razão, mas uma alma que se</p><p>perde e se encontra em seus sintomas, em sua miséria</p><p>neurótica.</p><p>O sujeito da cultura ocidental em nosso século, que se</p><p>confunde com o sujeito p s ic analítico, reconhece-se já</p><p>como dividido, "sendo possuidor" de um inconsciente que</p><p>lhe prega peças, o faz sofrer as agruras do desejo insatisfei-</p><p>to e tudo o mais. Disso nós falamos em nosso cotidiano de</p><p>pessoas cultas ou não. A mídia se utiliza dessas noções,</p><p>assim como a indústria cultural, através de seus veículos</p><p>cada vez mais potentes e onipresentes.</p><p>Mas, mesmo se sentindo dividido e em conflito, o su-</p><p>jeito ainda se pensa como um continuam linear, coerente</p><p>em sua divisão. Tudo que for além disso no campo da</p><p>experiência pessoal nos acena com a ameaça da loucura e</p><p>da fragmentação. E disto temos medo, como os homens</p><p>medievais temiam aqueles a quem chamaram de bruxas ou</p><p>de hereges porque buscavam a comunhão com o sagrado</p><p>através de experiências que se faziam no limite do profano.</p><p>IDENTIDADE E SUBJET1VIDADE</p><p>Nosso espírito ocidental se assenta sobre a presunção</p><p>da identidade. Podemos ter aceito a ferida narcísica im-</p><p>posta pela psicanálise quando afirma que o homem não é</p><p>senhor em sua casa, que ele não comanda consciente-</p><p>mente seus pensamentos, seus atos ou seu corpo. Mas não</p><p>suportamos tão bem experiências em que os</p><p>147</p><p>Eliana Schueler Reis</p><p>atravessamentos do mundo põem em risco o nosso últi-</p><p>mo bastião: a nossa identidade coesa em sua divisão.</p><p>Tentamos nos convencer que são irremovíveis os con-</p><p>tornos de nosso corpo; para isso nos olhamos no espelho,</p><p>nos pesamos, nos verificamos a cada passo, para nos cer-</p><p>tificarmos de que permanecemos tal como somos, como</p><p>nos queremos sendo. Tal como na época de Freud, a cul-</p><p>tura de nosso tempo tem caraterísticas próprias, cultura</p><p>que, apesar das semelhanças, não é mais a mesma. As</p><p>modificações introduzidas no mundo a partir da segunda</p><p>metade do século apontam para isso.</p><p>A transformação das cidades nos põe em contato ex-</p><p>cessivo com o outro, numa invasão constante do espaço</p><p>subjetivo. Walter Benjamim1, utilizando a noção de cho-</p><p>que traumático explorada por Freud2 em "Mais Além do</p><p>Princípio do Prazer", observou que na cidade moderna a</p><p>presença da multidão faz com que as pessoas reajam ao</p><p>choque causado por um excesso de estímulos. Como con-</p><p>sequência, cria-se um sistema de proteção contra estímu-</p><p>los, uma espécie de carapaça extremamente rígida e im-</p><p>permeável às impressões e sensações, que impede sua inscri-</p><p>ção como registros experienciais, como memória. O choque</p><p>causado pelo excesso sensório tem que ser defletido.</p><p>Em Benjamin, a multidão aparece como massa, como pre-</p><p>sença uniformizadora que altera o regime do tempo, não há</p><p>o ir e vir entre as impressões sensíveis e a reflexão subjetiva.</p><p>1 Benjamin, W. "Sobre alguns temas em Baudelaire11. Em: Obras Esco-</p><p>lhidas. Volume III. São Paulo, Brasiliense, 1989, p.103-49.</p><p>2 Freud, S. "Más allá dei principio de placer" (1920). Em: Obras Com-</p><p>pletas. Volume XVIII. Buenos Aires, Amorrortu, 1989.</p><p>148</p><p>Múltiplos ews</p><p>A transformação nas relações espaciais e temporais na ci-</p><p>dade moderna cria um fluxo de corpos e de sensações,</p><p>como em O homem da multidão de Edgar Allan Põe, no</p><p>qual um homem observa a multidão da janela de um</p><p>bar</p><p>em Londres e vai relatando os movimentos da massa como</p><p>imagens parciais de um imenso corpo que se move à sua</p><p>frente, ou como no poema Um dia de Chuva de Baudelaire</p><p>Cada um, nos acotovelando sobre a calçada escorregadia,</p><p>Egoísta e brutal, passa e nos enlameia,</p><p>Ou, para correr mais rápido, distanciando-se nos empurra,</p><p>Em toda a parte, lama, dilúvio, escuridão do céu:</p><p>Negro quadro com que teria sonhado o negro Ezequiel.</p><p>(l, p-211)3</p><p>Benjamin trata dos efeitos de des-subjetivação produ-</p><p>zidos pelo desenvolvimento capitalista, no qual o homem</p><p>deixa de ser visto como o agente da ação, passando a ser</p><p>"agido" por algo que lhe escapa, seja a multidão, seja a</p><p>produção industrial. Atualmente vemo-nos diante da re-</p><p>volução da informação que produziu a globalização da</p><p>imagem, alterando o ritmo dos fluxos, que já não são mais</p><p>corporais e sim eletrônicos. Esta globalização da informa-</p><p>ção eletrônica veio alterar os limites identificatórios e</p><p>subjetivadores de cada povo e de cada região.</p><p>Quando esta identidade é tão atacada — e cada vez</p><p>mais somos atravessados por estímulos que ultrapassam</p><p>nossa capacidade de retê-los e transformá-los em memó-</p><p>ria representacional —, tentamos nos esconder em trin-</p><p>3 Baudelaire, C. Vers retrowís. Paris, Jules Mouquet, 1929, citado por</p><p>Benjamin,</p><p>149</p><p>Eliana Scfmeler Reis</p><p>cheiras defensivas que nos protejam contra a sensação de</p><p>pulverização cotidiana de nosso eu. Somos atingidos por</p><p>essa sensação a cada momento, quando andamos na rua</p><p>e temos medo, quando ligamos a televisão e vemos o jor-</p><p>nal nos mostrar a guerra ao vivo e a cores, juntamente</p><p>com os pedaços de felicidade virtual que se insinuam a</p><p>cada intervalo eletrônico. A questão é: será que as trin-</p><p>cheiras identificatórias a que nos aferramos nos defen-</p><p>dem de alguma coisa, ou só nos impedem de explorar cer-</p><p>tas dimensões da experiência, que cada vez mais se im-</p><p>põem a nós através da fragmentação das imagens?</p><p>EU EM FOCO</p><p>Vamos pensar um pouco na dimensão de eu, tal como</p><p>a entendemos em nossa experiência cotidiana: um eu que</p><p>luta para se manter como um contínuum coerente, repor-</p><p>tando-se ao tempo passado da memória para atingir o tem-</p><p>po futuro da antecipação.</p><p>Na verdade, não podemos dispensar esta continuida-</p><p>de; ela é a própria condição do movimento, pois para dar</p><p>um simples passo com nossa perna, precisamos acreditar</p><p>que outro se seguirá e mais outro. Esta função</p><p>antecipatória do eu é fundamental em nossa existência;</p><p>sem ela permaneceríamos cravados num presente eterno.</p><p>Mas onde fica minha questão? Ela se inicia justamente aí,</p><p>no presente. O que fazemos do presente, do momento, do</p><p>ínfimo instante das sensações? Será que o presente só pode</p><p>existir como passagem entre um passado do qual lembra-</p><p>150</p><p>Múltiplos eus</p><p>mós e um futuro que antecipamos? O que é estar no mo-</p><p>mento, no instante, no próprio acontecimento, antes de</p><p>sua repetição como representação mnêmica?</p><p>A noção de continuum é necessária para que não nos</p><p>percamos numa dispersão caótica de instantes, mas a cren-</p><p>ça demasiada na fixidez da continuidade pode nos lançar</p><p>na repetição de hábitos idênticos a si mesmos, que não</p><p>fazem sentido e perdem a própria memória.</p><p>Voltemos à teoria psicanalítica. Venho falando de eu,</p><p>e convém pensar que eu é esse. Para Freud o eu ou o ego,</p><p>como é mais conhecido, é a instância capaz de realizar as</p><p>trocas com o mundo. Exerce a função organizadora e</p><p>antecipadora de que viemos falando. Freud se utiliza da</p><p>imagem de uma ameba que lança periodicamente seus</p><p>pseudópodos para o mundo, explorando sensorialmente a</p><p>realidade, colhendo amostras, estabelecendo diferenciais</p><p>qualitativos. A partir destas explorações, o eu se constitui</p><p>como a instância organizadora de uma multiplicidade de iden-</p><p>tificações realizadas através das amostragens absorvidas do</p><p>mundo dos objetos, com os quais vai se esbarrando.</p><p>Um outro autor, contemporâneo de Freud, seu discí-</p><p>pulo e colega, Sàndor Ferenczi, interessou-se muito pelas</p><p>questões do eu. Tomando um caminho diferente de Freud,</p><p>que procurou definir conceitualmente qual seria a função</p><p>de uma instância egóica, Ferenczi mergulhou no turbi-</p><p>lhão de sensações e percepções constituintes do eu.</p><p>Em um livro publicado em 1924, Thalassa; ensaio so-</p><p>bre a teoria âa genitalidade*— thalassa é a palavra grega</p><p>4 Ferenczi, S. "Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade (1924).</p><p>Em: Obras Completos. Volume III. Sào Paulo, Martins Fontes, 1992.</p><p>151</p><p>l</p><p>Elíana Schueler Reis</p><p>psramar,ouKatastro{)hak, título da edição húngara—,Ferenczi</p><p>desenvolve uma teoria da sexualidade, partindo dos ero-</p><p>tismos parciais, múltiplos, ínfimos, que surgem das pri-</p><p>meiras experiências do bebé com o seu mundo. Até aí</p><p>nenhuma novidade, é claro. Mas, ao lermos seus textos,</p><p>começamos a perceber sua disposição para se deter no</p><p>instante, no gesto, no tique, nos pequenos abalos do</p><p>continuum do eu, que nos mostram como essas parcialida-</p><p>des continuam atuais e atuantes em nossa vida.</p><p>Na exaustiva descrição de situações episódicas sem</p><p>importância, que revelam alterações despercebidas pelas</p><p>próprias pessoas, vai demonstrando como o modo de</p><p>movermos o corpo, ou as tonalidades de nossa voz, nossos</p><p>cheiros e ruídos, apresentam a infinidade de variações</p><p>tonais pelas quais passa o nosso eu em sua</p><p>(dês) continuidade.</p><p>MÚLTIPLOS EUS</p><p>Ferenczi explorou esse universo de multiplicidades não</p><p>como sintomas, mas como possibilidades. Sua teoria se</p><p>baseia na ideia de que a vida se organiza e evolui a partir</p><p>de catástrofes que irrompem, provocando a destruição</p><p>parcial do que já está organizado. Esta destruição exige</p><p>dos seres vivos um constante e oscilante trabalho de reor-</p><p>ganização, no qual as catástrofes são os acontecimentos,</p><p>as variâncias do viver.</p><p>A erotização do corpo e das experiências do bebé, em</p><p>sua relação com a mãe e outros que se acercam dele, se</p><p>152</p><p>Múltiplos eus</p><p>faz por essas rupturas e suturas. Neste movimento de fa-</p><p>zer e desfazer se constitui o eu, originariamente feito de</p><p>marcas parciais, não partes de um todo, e sim partes todo.</p><p>Cada pequena parte é um pequeno eu autónomo em</p><p>sua experiência com as coisas do mundo — outras partes</p><p>que se constróem num movimento simultâneo ao eu. O</p><p>olhar constitui o olho e seu objeto, o gosto faz a boca e do</p><p>que ela gosta, as sensações táteis marcam pedaços dife-</p><p>rentes do corpo antes de criarem a pele como invólucro e</p><p>limite corporal, o cheirar cria um espaço sensório de me-</p><p>mória com o rastro dos primeiros cheiros, que se misturam</p><p>com outras memórias sensórias criando imagens sinestésicas</p><p>que conjugam cheiros, cores, texturas, sons etc.</p><p>Outro psicanalista Daniel Stern5 baseou-se nas experiên-</p><p>cias feitas com bebés pelos psicólogos desenvolvimentalistas,</p><p>para definir estágios de construção de "Sensos de Eu e de</p><p>Outro". Apesar de distantes no tempo, Stern e Ferenczi</p><p>são muito próximos em suas concepções. Ambos consi-</p><p>deram que o bebé é ativo desde seu nascimento (ou mes-</p><p>mo em sua vida fetal), sendo capaz de organizar suas ex-</p><p>periências sensórias num processo intenso de construção</p><p>de planos de sentido.</p><p>Stern define quatro planos ou Sensos de Eu: Senso de</p><p>Eu Emergente, Senso de Eu Nuclear (eu versus Outro, eu</p><p>com Outro), Senso de Eu Subjetivo e Senso de Eu Ver-</p><p>bal, cada um destes correspondendo a modos de apropri-</p><p>ação das percepções e de construção de sentido. Cada</p><p>Senso de Eu se processa, se transforma e continua em um</p><p>5 Stern, D. O mundo interpessoal do bebé. Porto Alegre, Artes Médicas,</p><p>1992, p. 42-5.</p><p>153</p><p>Efiana Schuefer Reis</p><p>outro Senso de Eu, mas seus atributos próprios permane-</p><p>cem como ordens autónomas organizadoras das experi-</p><p>ências segundo o seu próprio regime.</p><p>O Senso de Eu Emergente corresponde aos primeiros</p><p>tempos de vida de um bebé e é definido como o período</p><p>em que se iniciam os processos de apreensão do mundo e</p><p>de construção de sistemas de auto-invariâncias, através</p><p>da integração das experiências sensórias, motoras,</p><p>perceptivas e afetivas. A integração dessas experiências</p><p>permite ao bebé criar "ilhas de consistência", ou seja, or-</p><p>dens de sentido que vão se fazer segundo</p><p>as capacidades</p><p>de organização de cada bebé a cada momento.</p><p>Para o Senso de Eu Emergente as percepções funda-</p><p>mentais são as que dizem respeito às primeiras diferencia-</p><p>ções auto-perceptivas do bebé, e sua correlação com as</p><p>percepções do mundo exterior. Stern descreve experiên-</p><p>cias que mostram como os bebes de poucas semanas são</p><p>capazes de estabelecer relações entre sensações tácteis e</p><p>visuais, ou visuais e proprioceptivas, ou mesmo visuais e</p><p>auditivas. Ou seja, são capazes de estabelecer cruzamen-</p><p>tos entre informações de uma modalidade sensorial e tra-</p><p>duzi-las simultaneamente para outra modalidade sensorial,</p><p>criando percepções amodais que permitem a construção</p><p>de uma dimensão complexa de objetos.</p><p>Do mesmo modo que as percepções dos objetos inani-</p><p>mados, as experiências perceptivas do comportamento</p><p>expressivo humano também passam por esses "cruzamen-</p><p>tos amodais", possibilitando aos bebes "interpretarem",</p><p>segundo o seu modo de apreensão sensória, as variações</p><p>afetivas expressas pelos adultos com os quais se relacionam.</p><p>154</p><p>Miílííplos eus</p><p>O interessante é que Stern introduz uma dimensão afetiva,</p><p>a dos afetos de vitalidade, que seria a dimensão fundamen-</p><p>tal da emergência do Senso de Eu e do Outro.</p><p>Afetos de vitalidade são as variações intensivas ex-</p><p>pressas em cada gesto e ação que realizamos. Apesar de</p><p>nos sentirmos como contínua invariantes, oscilamos a cada</p><p>instante em variações qualitativas não categorizáveis, que</p><p>podem ser melhor definidas por termos dinâmicos como</p><p>surgindo, desaparecendo, passando rápido, explosivo, cres-</p><p>cendo, diminuindo, devagar, mole etc.</p><p>Ou seja, são qualidades experienciais sensíveis que</p><p>escapam inteiramente ao registro semântico verbal. São</p><p>sensações afetivas indefiníveis pela palavra que estabelecem</p><p>diferenciais intensivos e vão marcando o corpo/psique do</p><p>bebé. Nesse sentido, o outro funciona para o bebe como um</p><p>auto-organizador do Senso de Eu Emergente, tomando-se</p><p>parte da auto-percepção do bebe ao mesmo tempo que per-</p><p>manece como outro, como signo de exterioridade.</p><p>O que nos fica desse modo de organização emergente</p><p>por nossa vida? A capacidade de ser afetado pelas varia-</p><p>ções intensivas do outro e de nós mesmos de forma abso-</p><p>lutamente inconsciente com a potência do instante, do</p><p>ínfimo, quase imperceptível, que escapa à definição pela</p><p>palavra e na maioria das vezes escapa à nossa própria cons-</p><p>ciência. São sensações fugazes que em geral são descarta-</p><p>das pela razão, ou no máximo são entendidas como intui-</p><p>ções que fogem à explicações lógicas. Voltando à questão</p><p>do eu como possibilidade de multiplicidade s, sabemos que</p><p>este universo de sensações singulares tende a se organizar,</p><p>através da linguagem, numa memória representacional,</p><p>155</p><p>Elíana Sc/weler Reis</p><p>formada segundo moldes culturais próprios a cada grupo</p><p>de humanos. Em nossa cultura nos organizamos como</p><p>subjetividades dotadas da noção de um dentro e um fora,</p><p>de eu/não-eu, em que o universo múltiplo das sensações</p><p>se organiza como umconíirmum que se superpõe a experi-</p><p>ência da multiplicidade.</p><p>Quando a vivência de multiplicidade se apresenta em</p><p>sensações que nos lançam nestes registros de</p><p>sensorialidades intensivas, geralmente nos sentimos ame-</p><p>açados de fragmentação e de aniquilamento. Nestes mo-</p><p>mentos o que experimentamos são estados emergentes que</p><p>a linguagem verbal não consegue capturar; estamos no</p><p>terreno do indizível, do irrepresentável, não há memória</p><p>de passado nem possibilidade de antecipação.</p><p>Os loucos, os poetas e às vezes os artistas parecem ter</p><p>mantido em aberto a possibilidade de passar do contmuum</p><p>para o descontínuo, sair da ordem para o caos e fazerem</p><p>seu testemunho. No caso dos loucos, ninguém presta muita</p><p>atenção, pois nos incomoda demais sua explosão sensorial e</p><p>seu sofrimento por não conseguirem reconstituir um mo-</p><p>saico desses cacos.</p><p>Quanto aos poetas e aos artistas, nos regozijamos com</p><p>eles, às vezes nos incomodamos também, mas eles estão</p><p>lá no seu mundo das artes, das licenças poéticas, e nós</p><p>aqui no mundo comum, das pessoas comuns, respeitáveis,</p><p>que acreditam que precisam desse corttinuum para pode-</p><p>rem existir. Não podemos ser excêntricos, fugir do nosso</p><p>centro, pois tememos nos perder e não nos encontrarmos</p><p>mais. E aí o temor da loucura nos acena com todas as suas</p><p>faces loucas.</p><p>156</p><p>Múltiplos eus</p><p>EU E MUITOS OUTROS</p><p>Eu gostaria de falar desta experiência de nos sentir-</p><p>mos outros de nós mesmos, da heterogeneidade não só</p><p>dos poetas e dos loucos, mas das pessoas comuns, que vi-</p><p>vem seus dias mais ou menos rotineiros, buscando não</p><p>criar muitos problemas na vida. Quando esta identidade</p><p>sofre abalos, tentamos não perceber e nos recolhemos à</p><p>carapaça protetora de que já falamos. Mas é quando a</p><p>identidade se fecha sobre si mesma numa crença em</p><p>sua consistência, que nos tornamos mais vulneráveis</p><p>às intempéries.</p><p>Lembro-rne de uma fábula que li quando criança e</p><p>que me impressionou muito, pois, como era pequena e</p><p>me sentia frágil perante o mundo dos adultos, entendi</p><p>muito bem como era aquilo; era a fábula do carvalho e do</p><p>salgueiro: o carvalho é uma árvore imponente, majestosa</p><p>e orgulhosa de seu porte, enquanto o salgueiro é frágil,</p><p>até meio raquítico, com seus ramos quase ténues de tão</p><p>leves. Numa tempestade muito violenta, inusitada, o car-</p><p>valho não resistiu e tombou com suas raízes arrancadas</p><p>da terra. Por seu lado, o salgueiro dobrou-se sob o vento</p><p>intenso, lançado de um lado para o outro, seus ramos fle-</p><p>xíveis não se quebraram, simplesmente oscilaram; quan-</p><p>do passou a tempestade, estava vivo graças a isso.</p><p>Da mesma forma, cada vez que nos recusamos a viver</p><p>as tempestades, ou as pequenas fissuras de nosso cotidia-</p><p>no, empurramos para o lado inúmeras percepções e sen-</p><p>sações que poderiam servir de matéria-prima em nosso</p><p>viver. Acabamos nos endurecendo e correndo o risco de</p><p>157</p><p>Eííana Schweíer Reis</p><p>nos sentirmos quebrados, com as raízes arrancadas pela</p><p>violência dos acontecimentos.</p><p>Não é só na experiência da loucura ou da arte que nos</p><p>deparamos com o caos e a dispersão; a cada momento</p><p>vivido estamos saindo de um estado de equilíbrio e</p><p>redescobrindo um outro estado, sem nos darmos conta</p><p>disso. Quando essas experiências de dês continuidade se</p><p>apresentam, vivemos a explosão do sentido, a explosão</p><p>da identidade; somos lançados no caos.</p><p>Isto pode se dar numa experiência de risco, numa per-</p><p>da afetiva, ou em perdas de forma geral. Nosso mundo se</p><p>desorganiza em seu sentido anterior. São momentos de</p><p>crise, de quebra da continuidade, nos quais somos de novo</p><p>lançados no múltiplo, no parcial, no corporal. O coração</p><p>dispara, o sangue aflui, o corpo fica mole, a voz falta, a</p><p>respiração fracassa. Nestes momentos somos lançados nas</p><p>puras intensidades sem palavra, nos estados emergentes dos</p><p>afetos de vitalidade. As memórias de que dispomos como</p><p>possível traço de orientação não são representações, são</p><p>memórias sensórias de experiências emergentes do instante.</p><p>Quando conseguimos, quando não nos assustamos</p><p>demais, recomeça em seguida o processo de dar ordem ao</p><p>caos. Mas jamais se retorna para o mesmo ponto. Cada</p><p>ruptura deixa uma marca, um rastro, uma cicatriz; e nes-</p><p>te rastro, nesta cicatriz, podemos tentar trafegar para não</p><p>esquecer, para não nos perdermos tanto na estrada da</p><p>continuidade.</p><p>Mas as rupturas nem sempre são catástrofes geológi-</p><p>cas desse porte. As rupturas podem ser perceptíveis a cada</p><p>sensação que se destaca, e que geralmente nem queremos</p><p>158</p><p>Múltiplos eus</p><p>perceber e registrar. Um som, um gosto, um banho no dia</p><p>de calor, mudanças de textura das coisas desimportantes,</p><p>que vão pontuando os instantes de nosso dia, e que dei-</p><p>xamos passar porque são matéria de pré-coisas, como diz</p><p>Manoel de Barros, poeta que fala deste sensório mínimo e</p><p>só se preocupa com as coisas inúteis:</p><p>As coisas que não levam a nada</p><p>tem grande importância</p><p>Cada coisa ordinária é uru elemento de estima6.</p><p>Com as pré-coisas construímos um mundo emergen-</p><p>te, que não se faz como ordem rígida e capaz, mas que</p><p>talvez nos deixe mais à vontade para viver o instante em</p><p>toda sua força, sem ser só</p><p>lettres.</p><p>Paris, Gallimard, 1949.</p><p>14</p><p>Prefácio</p><p>vez que desloca a indagação sobre o sujeito da ordem do</p><p>pensamento para o registro da história de sua existência;</p><p>o pensamento como critério fundamental do existir é sub-</p><p>metido à temporalização de uma história.</p><p>Nesta perspectiva, as demandas corpóreas passarão a</p><p>regular as produções mais sofisticadas do espírito, que se-</p><p>rão cadenciadas pela lógica das pulsões, e as vicissitudes</p><p>do gozo, nos seus imperativos insofismáveis, serão</p><p>permeadas pelas regularidades do tempo e passarão a se</p><p>constituir numa história.</p><p>Com efeito, não importa tão somente a sexualidade</p><p>da individualidade como tal, mas a sua produção e a sua</p><p>modelagem pela mediação das teorias sexuais infantis9.</p><p>Estas se ordenam ao longo da história do sujeito, de ma-</p><p>neira a imprimir as exigências do tempo no seu corpo e</p><p>nas formações de seu espírito. Neste sentido, a leitura do</p><p>sujeito como inscrito no campo de uma história implica</p><p>definitivamente na sua encorpação, isto é, na incorpora-</p><p>ção do espírito num corpo.</p><p>Desta maneira, a incorporação do espírito na carne,</p><p>num corpo ao mesmo tempo pulsional e sexual, revela o</p><p>que existe na infância do espírito. Nas suas origens e nos</p><p>seus primórdios aquele é corpo, sem dúvida. Porém com-</p><p>prova-se ao mesmo tempo o registro infantil do sujeito,</p><p>uma vez que o corpo seria a condição de possibilidade de</p><p>uma história, pela sua insuficiência fundamental. Por isso,</p><p>o sujeito será obrigado a historicÍ2ar-se para constituir</p><p>possibilidades para a sua insuficiência vital, tendo que se</p><p>9 Freud, S. "Lês théories sexuelles infanriles" (1908). Em: Freud, S. La</p><p>vis sexiíelle. Paris, PUF, 1973.</p><p>15</p><p>Joel Birmon</p><p>assujeitar ao outro a fim de viabilizar-se para a ordem da</p><p>vida. O sujeito tem que se historicizar para que a vida de</p><p>seu organismo seja possível.</p><p>Disso se pode depreender o paradoxo existente entre</p><p>as ordens da vida e da história, pois seria pela via da</p><p>historicização do corpo, mediada pela dependência ao</p><p>outro, que a ordem da vida seria efetivamente possível.</p><p>Sem isso o organismo humano seria inviável, dado as suas</p><p>insuficiências, que seriam apenas ultrapassáveis pelo su-</p><p>porte do outro. Entreabre-se, com isso, as aventuras de</p><p>uma história que constituirá o sujeito propriamente dito,</p><p>até mesmo como corpo.</p><p>Cabe indagar agora se esta infância é a contingência</p><p>insofismável de nossa animalidade de origem, signo do</p><p>enraizamento do sujeito no registro corpóreo, sendo su-</p><p>perada por processos evolutivos e civilizadores. A infân-</p><p>cia seria, nestes termos, circunscrita no tempo e cronolo-</p><p>gicamente delimitada, sendo ultrapassada por etapas su-</p><p>periores da humanização. Ou se esta infância é insuperá-</p><p>vel, já que para além de um longo momento histórico-</p><p>evolutivo e cronologicamente circunscrito do sujeito a</p><p>infância remeteria para um infantil que se encontra sem-</p><p>pre presente na individualidade. Nesta outra leitura, en-</p><p>tão, o sujeito seria infantil por vocação e não apenas por</p><p>contingência de sua história evolutiva10.</p><p>Disso pode-se vislumbrar como o discurso freudiano</p><p>se deslocou de uma problemática do sexual centrada na</p><p>infância para uma outra onde a sexualidade reenvia para</p><p>10 Pontalis, J. B. Aí»rès Freud. Paris, Gallimard, 1968.</p><p>16</p><p>Prefácio</p><p>o infantil. Isso porque arguiu as insuficiências da ordem</p><p>vital, que colocam o humano na dependência de um ou-</p><p>tro. Nesta condição, o animal humano fica fadado a uma</p><p>história, maneira de procurar ultrapassar as suas insufici-</p><p>ências estruturais. Porém reencontra a sua finitude e a</p><p>sua mortalidade, evidenciando a perenidade do infantil.</p><p>IV. DA INFÂNCIA AO INFANTIL</p><p>Trata-se de pontuar agora este deslocamento entre a</p><p>infância e o infantil no interior do discurso freudiano,</p><p>destacando as diferentes figuras pelas quais o infantil se</p><p>apresentou na psicanálise. Em seguida, cabe indicar a re-</p><p>tomada do pressuposto do infantil na tradição psicanalí-</p><p>Cica pós-freudiana, sublinhando a importância deste per-</p><p>curso de pesquisa na tradição psicanalítica.</p><p>Assim, se ao longo dos escritos inaugurais de Freud,</p><p>publicados na última década do século XIX, a infância já</p><p>era uma referência constante para procurar dar conta das</p><p>neuroses e das demais perturbações psíquicas, foi sem</p><p>dúvida com a publicação de A interpretação dos sonhos11 e</p><p>dos Três ensaios sobre a teoria sexual12 que a tese em pauta</p><p>ganhou mais fôlego e consistência. Contudo é preciso</p><p>considerar que neste novo patamar teórico do discurso</p><p>freudiano, que se identifica como a constituição da psica-</p><p>11 Freud, S. LWerprétaton dês revés (1900). Paris.PUF, 1976.</p><p>12 Freud, S. Trots essais sur Ia théorie de Ia sexuaiité(l905). Paris,</p><p>Gallimard, 1962.</p><p>17</p><p>Joel Birmcn</p><p>nálise no sentido estrito, se enunciou um paradoxo. Este</p><p>revela a oposição entre os registros da infância e do infan-</p><p>til, assim como o deslocamento de Freud de uma indaga-</p><p>ção do primeiro para a do segundo.</p><p>Com efeito, a alusão ao universo da infância e à sexu-</p><p>alidade, que se impôs com as teorias sobre os sonhos e</p><p>sobre a sexualidade, tinha como fundamento o assenta-</p><p>mento daqueles no registro da/amasia, e não no da reali-</p><p>dade. A infância referida se inscrevia no fantasma do su-</p><p>jeito, encontrando aqui a sua eficácia etiológica nas per-</p><p>turbações psíquicas. Seria, pois, a fantasmatização do su-</p><p>jeito sobre a sua infância, sobre o seu passado, que teria o</p><p>poder de plasmar o seu imaginário e delinear as suas ma-</p><p>neiras de gozar. Conseqtientemente, esta infra-estrutura</p><p>fantasmática teria plena efetividade-na produção dos sin-</p><p>tomas neuróticos. Na constituição da psicanálise propria-</p><p>mente dita, portanto, a efetividade da infância e do sexual</p><p>migraram da realidade material para a realidade psíquica.</p><p>Em contrapartida, pela célebre teoria da sedução13,</p><p>formulada na última década do século XIX, as perturba-</p><p>ções psíquicas das individualidades se ancorariam no real</p><p>da infância, na sedução sorrida pelo sujeito. Era evidente</p><p>para Freud que o efeito patógeno da sedução se inscrevia</p><p>no campo da memória do acontecimento, pois os neuró-</p><p>ticos sofriam de reminiscências14. Apesar da mediação da</p><p>memória, era suposto que a sedução acontecida na reali-</p><p>dade seria a responsável pela construção sintomática.</p><p>13 Freud, S. "L'étiologie de l'hystérie" (1896), Em Freud, S. Névrose,</p><p>psychose et psrversion. Op. cit.</p><p>14 Freud, S. & Breuer, j. "Lês mécanismes psychiques dês phénomènes</p><p>hystériques" (1893). Em: Freud, S. & Breuer, J. Eludes sur ITrystérie. Op. cit.</p><p>18</p><p>Prefácio</p><p>Nestes termos, quando Freud numa carta a Fliess for-</p><p>mulou "não acredito mais na minha neurótica"15, uma</p><p>subversão se realizou na leitura da subjetividade pela psi-</p><p>canálise. Isso porque não seria mais pela efetividade da</p><p>sedução ocorrida que se produziriam as perturbações men-</p><p>tais, mas no fantasma forjado de um suposto aconteci-</p><p>mento. A consequência maior disso foi o deslocamento</p><p>do sexual do registro da realidade material para o da rea-</p><p>lidade psíquica, para se interpretar em novas bases a lógi-</p><p>ca do espírito humano. A partir daí a sexualidade passava</p><p>pelo fantasma que ordenaria o corpo erógeno.</p><p>Nesta perspectiva, a infância foi remanejada na sua sig-</p><p>nificação, pois se deslocou do registro genético e cronológico</p><p>para o do funcionamento psíquico. Foi aqui que se consti-</p><p>tuiu propriamente o conceito de infantil, marcando a sua</p><p>diferença com a noção evolutiva de infância. Existiria assim</p><p>um infantil no psiquismo que seria irredutível a qualquer</p><p>dimensão cronológica e evolutiva. Vale dizer, foi pressupos-</p><p>ta a existência de um infantil no psiquismo que não se dissol-</p><p>veria na infância cronológica do sujeito. Seria desta manei-</p><p>ra, enfim, que o sujeito seria marcado pelo infantil não por</p><p>acidente de percurso, pelas vicissitudes do processo</p><p>maturacional de desenvolvimento, mas por vocação.</p><p>Este infantil por vocação recebeu diferentes versões ao</p><p>longo do discurso freudiano e do pensamento psicanalítico</p><p>pós-freudiano. No intercâmbio de Freud com os seus cola-</p><p>boradores mais próximos o infantil foi remanejado na sua</p><p>significação de diferentes maneiras. É</p><p>com o canto do olho, como</p><p>normalmente fazemos para escapar de todas as imagens</p><p>doloridas que nos atropelam pelas ruas,</p><p>A clínica psicanalítica também se utiliza desta abor-</p><p>dagem, quando o analista encontra disposição para a des-</p><p>coberta do múltiplo, e acompanha o analisando em seu</p><p>percurso de descolamento da identidade como bastião</p><p>inexpugnável contra o sofrimento. O analista serve de</p><p>suporte, de catalisador de combinações, não só de intér-</p><p>prete, pois muitas vezes não há o que interpretar, pois</p><p>não há ainda o que dizer, só uma pré-coisa do dizer.</p><p>O dizer dos poetas pode nos ajudar nisso, pois eles</p><p>também não são só poetas, são pessoas que num certo</p><p>momento de sua vida, talvez logo ao nascer, ouviram,</p><p>6 Banos, M. "Matéria de poesia" (1974). Em: Gramática Exposiúva do</p><p>CKão. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1990.</p><p>159</p><p>Eííana Scfiweler Reis</p><p>como Drumond, o chamado de um anjo torto que lhe</p><p>disse para sergflitc/ie na vida, ou como Manuel de Barros</p><p>que nos diz: "Me procurei a vida inteira e não me achei—</p><p>pelo que fui salvo".</p><p>Os poetas percebem esses fragmentos e deles fazem</p><p>matéria de poesia: são os cheiros, texturas, pedaços de sons,</p><p>pedaços de coisas, que se ordenam e se organizam posterior-</p><p>mente como representações, símbolos e metáforas, como no</p><p>poema de uma poeta ainda inédita, Katia Blanco7:</p><p>Quase sempre</p><p>Da rua já se percebe</p><p>os bons e os outros</p><p>dos quartos e das salas</p><p>e cozinha</p><p>a pressão das panelas</p><p>desmacula feijões</p><p>sonorizando arrepios</p><p>nos passantes</p><p>o cheiro quente do forno</p><p>e a plena disposição do sol</p><p>expõem bandeiras de corpos</p><p>bolos e tolos</p><p>Uma casa são sentidos.</p><p>Como ela podemos dizer: uma vida são sentidos, eu</p><p>somos muitos.</p><p>7 Blanco, K. et alli. Etc poesia & tal. 1993, Cópia xerográfica.</p><p>160</p><p>UM DESAFIO ÀS REGRAS DO JOGO</p><p>o brincar como proposta de redefinição do</p><p>tratamento da criança hospitalizada"</p><p>Eliza Santa Roza</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Em que consiste atualmente a assistência pediátrica</p><p>durante a hospitalização da criança? O que visa a equipe</p><p>de saúde? Em princípio, a hospitalização se dá num con-</p><p>texto de crise: a criança apresenta uma patologia aguda,</p><p>ou uma patologia crónica que se agrava, ou ainda compli-</p><p>cações de doenças que não foram tratadas. O hospital tem</p><p>por objetivo se não a "cura"1, ao menos uma melhora sin-</p><p>tomática do paciente que permita seu retorno às condi-</p><p>ções habituais de vida, acompanhado ou não de um aten-</p><p>dimento ambulatorial. Tenta suprir a ausência, as falhas,</p><p>ou mesmo as dificuldades do tratamento ambulatorial,</p><p>num contexto controlado, mais equipado e teoricamente</p><p>com maior possibilidade de eficácia.</p><p>* Projeto de Doutoramento em Saúde da Criança no Instituto</p><p>Fernandes Figueira/FlOCRUZ.</p><p>l Aqui o termo "cuia" está sendo utilizado na compreensão médica</p><p>comum, como um "retorno à normalidade fisiológica" e não como concei-</p><p>to, o que certamente mereceria um maior aprofundamento e discussão.</p><p>161</p><p>Eliza Santa Roza</p><p>Mas o que a medicina entende por eficácia? Castiel, abor-</p><p>dando esta temática, nos diz que o termo "eficácia" é utilizado</p><p>para denotar o grau em que uma intervenção resolve, com</p><p>mínimos efeitos danosos, a questão de saúde trazida pelos</p><p>indivíduos, após serem diagnosticados e obedecerem às ris-</p><p>cas as recomendações e/ou terapêuticas propostas.2</p><p>Neste sentido, a prática da pediatria hospitalar, nos</p><p>modelos atuais, poderia ser considerada como uma práti-</p><p>ca eficaz? Quais efeitos danosos são comumente</p><p>enfatizados e quais se tenta minimizar no decorrer da</p><p>internação? Em geral, fala-se daqueles que advêm das in-</p><p>tervenções medicamentosas, e da conhecida e temida in-</p><p>fecção hospitalar, resultante dos fenómenos de resistên-</p><p>cia bacteriana e do intercâmbio dos agentes infecciosos</p><p>entre pacientes, acompanhantes e equipe técnica. Parte-</p><p>se portanto do pressuposto que, reduzindo-se a um míni-</p><p>mo estes efeitos e seguindo-se "à risca" as terapêuticas</p><p>propostas, poder-se-ia efetuar uma prática eficaz.</p><p>Entretanto, quando lançamos um outro olhar sobre o</p><p>paciente internado, podemos delinear uma série de fenó-</p><p>menos "colaterais" surgidos durante o tratamento hospi-</p><p>talar, mas que não fazem parte da investigação e do pla-</p><p>nejamento terapêutico da moderna pediatria. São sinto-</p><p>mas na esfera mental, que na infância se apresentam</p><p>comumente como distúrbios do comportamento ou do</p><p>desenvolvimento. Muitos deles são sutis, pouco perceptí-</p><p>veis, ou são atribuídos a problemas orgânicos como, por</p><p>exemplo, a anorexia, os vómitos, a insónia. Outros, como</p><p>2 Castiel, L. D. O buraco e o avestruz: a singularidade do adoecer huma-</p><p>no. São Paulo, Papirus, 1993, p. 78.</p><p>162</p><p>Um desafio às regras do jogo</p><p>as depressões, não incomodam a equipe das enfermarias,</p><p>até mesmo facilitando seu trabalho: as crianças deprimi-</p><p>das são quietas, mais passivas e submissas. Tais sintomas</p><p>raramente são observados pelos pediatras e, menos ainda,</p><p>relacionados à situação de hospitalização.</p><p>Quando a sintomatologia mental é perturbadora para</p><p>o ambiente, dificultando o tratamento ou tornando a cri-</p><p>ança incómoda na enfermaria, a equipe médica solicita a</p><p>presença de um especialista, um psiquiatra ou um psicó-</p><p>logo. Estes quadros são encarados como pertencentes a</p><p>um "outro" campo, implicando questões que não devem ser</p><p>formuladas principalmente porque não se enquadram no</p><p>espírito cientificista do modelo biomédico de causa e efeito.</p><p>Este modelo é calcado na visão do corpo como uma</p><p>máquina com defeitos a serem corrigidos — seja ao nível</p><p>fisiológico, seja ao nível celular ou molecular—, perden-</p><p>do de vista o paciente como ser humano em sua natureza</p><p>complexa. Sua eficácia é dimensionada de maneira</p><p>simplificada, adquirindo assim uma faceta imediatista: o</p><p>tratamento que debela uma infecção é eficaz. Trata-se de</p><p>um modelo pontual, restrito a uma mecânica simplista e</p><p>portanto precário. A concepção de saúde como bem-es-</p><p>tar bio-psico-social, que por definição envolve os aspec-</p><p>tos físicos, psicológicos e ambientais da condição huma-</p><p>na, aponta para os múltiplos aspectos do homem em seu</p><p>contexto vital3, e nos ajuda a questionar o conceito de</p><p>eficácia da atual medicina hospitalar, apontando para</p><p>outros efeitos danosos que esta prática pode gerar.</p><p>3 Embora esta definição da OMS já tenha sido bastante criticada, den-</p><p>tre outras coisas por ser utópica, pode servir como um ponto de partida</p><p>para um questionamento sobre a interrelação entre estes níveis.</p><p>163</p><p>Elija Sanfa Roía</p><p>Este modo de pensar encontramos em Capra, quando</p><p>afirma que, embora o desenvolvimento da ciência médi-</p><p>ca tenha contribuído para eliminar certas doenças, isto</p><p>não reestabeleceu necessariamente a saúde4. Desta for-</p><p>ma, a discussão em torno dos efeitos da terapêutica hos-</p><p>pitalar amplia-se para além das ações dos psicofármacos e</p><p>das artimanhas dos microrganismos que circulam nas en-</p><p>fermarias. Algumas questões podem ser de imediato</p><p>delineadas. O que significa, especialmente para a criança, o</p><p>adoecimento corporal e o confinamento no hospital? A</p><p>manipulação e a submissão necessárias ao tratamento</p><p>poderiam ser fatores adversos à saúde, interferindo na</p><p>evolução da doença ou produzindo novas patologias a</p><p>curto, médio ou longo prazos?</p><p>AS REGRAS DO JOGO</p><p>Para entrar nesta problemática, tentaremos nos apro-</p><p>ximar de uma compreensão das consequências do</p><p>adoecimento físico da criança. Ele comporta uma série de</p><p>modificações de ordem subjetiva, relacionadas às mudan-</p><p>ças corporais, ao medo da morte e aos remanejamentos</p><p>no contexto familiar5. Aliadas às limitações físicas que a</p><p>doença impõe, impossibilitando a criança de reagir nor-</p><p>malmente às demandas ambientais, surgem a angústia</p><p>diante do desconhecido, o sentimento de desvalorização</p><p>4 Capra, F, O ponto de mutação. São Paulo, Cultrix, 1982.</p><p>5 Ganger, R. "Psychological reactions to physLcal ilness". Em: RudolpK,</p><p>A. M. & Hoffman, J. E. Pediatrics. Califórnia, Appleton &. Lage, 1987.</p><p>164</p><p>Um desafio às regras do jogo</p><p>em relação às outras crianças e a captação da ansiedade</p><p>dos familiares6. Evidentemente, estes aspectos são inten-</p><p>sificados quando é necessária a hospitalização.7-8</p><p>O contexto institucional</p><p>hospitalar implica a criança</p><p>em uma enorme gama de perdas: do ambiente doméstico</p><p>e do aparato familiar — a casa, os irmãos, os parentes</p><p>mais próximos, os objetos pessoais, a alimentação costu-</p><p>meira, as roupas; do ritmo de vida — a escola, os amigos,</p><p>os horários habituais. No hospital, a criança é confronta-</p><p>da com a vertente deficitária de seu próprio corpo, com</p><p>outras crianças adoecidas, com a situação de morte que</p><p>muitas vezes presencia, e é submetida aos procedimentos</p><p>médicos e de enfermagem. A atividade natural da infân-</p><p>cia é então substituída pela passividade necessária ao con-</p><p>texto hospitalar, ficando a criança temporariamente desti-</p><p>tuída de praticamente tudo que a referenciava no mundo9.</p><p>Na enfermaria, a criança é "objetivada" como apenas</p><p>um corpo doente, configurado como único foco de aten-</p><p>ção sob o ponto de vista do diagnóstico e da terapêutica10,</p><p>sendo confinada a um ambiente onde predomina a</p><p>6 Ajuriaguerra, J. Manual de psiquiatria infanta. Barcelona, Toray-</p><p>Masson, 1976, cap.XX!V,</p><p>7 Perrin, J. M. &. MacLean, W. E. "Childten with chronic ilness: the</p><p>prevention of disfuntion". Tfie Pedíot. Cíin. North Am,, 1988, 35(6), p.</p><p>1325-37.</p><p>8 Aussiloux, C et alii. "l/énfant anxieux et sés milieux". Neuroftsyc.</p><p>Enfance, 1995, 43(4-5), p. 189-93.</p><p>9 Lê Vieux-Anglin, L. & Sawyer, E. H. "Incorporating play</p><p>interventions into nursing care". Pedial. Nurs., 1993,19(5), p. 459-63.</p><p>10 Maciel, E. M. A criança como objeto àe saber; os limites de um concei-</p><p>to. Dissertação de Mestrado em Saúde da Criança do Instituto Fernandes</p><p>Figueira/FIOCRUZ, 1992.</p><p>165</p><p>Elúa Santa Roza</p><p>hegemonia do discurso clínico-laboratorial11. O hospital</p><p>contemporâneo uniformiza e numera, e em nome da ob-</p><p>jetividade científica se estabelece um processo de desti-</p><p>tuição subjetiva dos pacientes: perde-se de vista o con-</p><p>texto emocional, cultural e social da criança, perde-se de</p><p>vista a subjetividade12.0 atendimento é despersonalizado,</p><p>desumanizado, sendo enfatizadas a tecnologia e a "com-</p><p>petência científica". Nas palavras de Capra:</p><p>Neste modernos centros médicos, que mais parecem aero-</p><p>portos do que ambientes terapêuticos, os pacientes tendem</p><p>a sentir-se impotentes e assustados, o que frequentemente</p><p>os impede de apresentar melhoras.11</p><p>Os hospitais, antes denominados "casas de saúde",</p><p>converteram-se em instituições de cunho técnico-estra-</p><p>tégico, com sofisticados aparatos bélicos contra a doença,</p><p>que é vista como um inimigo a ser derrotado14. No con-</p><p>texto institucional hospitalar o sofrimento humano é uma</p><p>dimensão negada: desconsidera-se as ansiedades acarre-</p><p>tadas pela doença, pela separação, pelas perdas familiares</p><p>e sociais; ignora-se a angústia decorrente da entrada num</p><p>ambiente desconhecido, o medo e as fantasias oriundas</p><p>da manipulação física e das intervenções mais violentas</p><p>como coletas de sangue e secreções, punções, dissecações</p><p>11 Ansermet, F. "Psychanalyse et pédopsychiatrie de Haison en</p><p>pédiatrie". Neuropsyc. En/once, 1994, 42(4-5), p. 173-9.</p><p>12 Oliveira, H. A enfermidade na infância: um estudo sobre a doença em</p><p>crianças hospitalizadas, Dissertação de Mestrado em Saúde da Criança</p><p>do Instituto Fernandes Figueira/FlOCRUZ, 1991.</p><p>13 Capra, F. O ponto de mutação. Op. cit., p. 141.</p><p>141dem, cap, 5.</p><p>166</p><p>Um desafio às regras do jogo</p><p>de veias, contenção física (para que os equipamentos não</p><p>sejam desconectados) etc.</p><p>Para a criança, a atmosfera hospitalar é, além de ten-</p><p>sa, ao mesmo tempo hipo e hiperestimulante. Faltam es-</p><p>tímulos adequados ao período da infância e necessários à</p><p>continuidade do desenvolvimento psíquico e sensório-</p><p>motor; excedem os estímulos gerados pela necessidade da</p><p>intervenção médica: agulhas, máscaras de oxigénio, apa-</p><p>relhos que emitem ruídos, luzes acesas dia e noite. Muitas</p><p>vezes solicita-se à criança que não reaja, que não chore,</p><p>que seja "boazinha", que entregue-se àquilo que, distante</p><p>de uma compreensão possível, lhe é estranho e ameaça-</p><p>dor. Podemos considerar como violentas as tentativas de</p><p>normatização e dessubjetivação, justamente no contexto</p><p>que se pretende terapêutico15. Sob a perspectiva do fazer</p><p>médico, o corpo é sistematicamente violentado, controlado</p><p>e codificado. O relacionamento da equipe com a criança e</p><p>seus acompanhantes, e mesmo intra-equipe, é fiel a este</p><p>modelo: burocrático-científico, nunca pessoal16.</p><p>TRAUMA E SAÚDE</p><p>Assim contextualizada, a hospitalização pode de um</p><p>modo geral se configurar como um evento traumático,</p><p>uma vez que desconsidera a complexa dimensão humana.</p><p>Qualquer ambiente ou situação que introduza maciça-</p><p>15 Foucault, M. A micTopsica do toder. Rio de janeiro, Graal, 1979.</p><p>16 OUveira, H. A enfermidade na infância: um estudo sobre a doença em</p><p>crianças hospitalizadas. Op. Cit., cap. 5.</p><p>167</p><p>Elíja Santa Roía</p><p>mente estímulos desconhecidos, que não fazem parte da</p><p>organização histórica de uma pessoa, provoca de imedia-</p><p>to o terror. É necessário que o Eu17 disponha de dispositi-</p><p>vos de interpretação para que a experiência seja</p><p>gradativamente assimilada, ou seja, articulada com ou-</p><p>tras situações já experimentadas e compreendidas18. O</p><p>trauma, portanto, não diz respeito a um fato em si mes-</p><p>mo, mas à impossibilidade do Eu em dar sentido aos fatos,</p><p>de elaborar novas circunstâncias, inserindo-as num códi-</p><p>go significativo19. Fora desta possibilidade, o trauma se</p><p>inscreve como uma marca não simbolizada, produzindo</p><p>seus efeitos, ou seja, originando sintomas20.</p><p>A despeito de suas propostas terapêuticas, o ambiente</p><p>hospitalar pode, portanto, produzir efeitos nefastos sobre</p><p>a saúde dos pacientes, principalmente na infância. A cri-</p><p>ança, diferentemente do adulto, não dispõe de experiên-</p><p>cias prévias e de recursos linguísticos21 para falar e com-</p><p>17 Trata-se aqui de uma referência psicanalítica, no registro freudiano,</p><p>à questão do trauma. O Eu na qualidade de instância articuladota entre</p><p>os processos inconscientes e pré-conscientes/conscientes e como</p><p>interpretante do real.</p><p>18 Schueller Reis, E. Trauma e repetição no processo psicanatitico: uma</p><p>abordagem ferecyana. Dissertação de Mestrado em Teoria Psicanalítica</p><p>daUFRJ, 1992.</p><p>19 Freud, S. "Más alia dei principio dei placer. Em: Obras Completas.</p><p>Volume XVIII. Buenos Aires, Amorrortu, 1986.</p><p>20 Ferenczi, S. "Confusão de Ifngua entre a criança e o adulto". Em:</p><p>Obras Completas. Volume IV. São Paulo, Martins Fontes, 1992,</p><p>21 Esta questão é discutível em Psicanálise, contudo estamos nos base-</p><p>ando na afirmação de Freud de que na infância o Consciente encontra-</p><p>se em processo de desenvolvimento, transpondo-se apenas parcialmen-</p><p>te em expressões linguísticas. Cf, Obras Completas. Volume XVII. Buenos</p><p>Aires, Amorrortu, 1986, p.95-6.</p><p>168</p><p>Um desafio às regras do jogo</p><p>preender a situação de hospitalização — mesmo quando</p><p>esta lhe é explicada—, especialmente as menores de dois</p><p>anos, que ainda não falam, estando impossibilitadas de</p><p>expressar assim o seu sofrimento. Nestas, a expressão se</p><p>dá prioritariamente através do corpo, naquilo que Wallon</p><p>denomina de "diálogo tónico", como uma função de co-</p><p>municação essencial. O diálogo tónico, em virtude das</p><p>posturas que suscita, expressa as flutuações afetívas que</p><p>constituem a maneira que a criança encontra de</p><p>interiorizar e assimilar sua experiência a dos demais22.</p><p>Por conseguinte, até os 24 meses as crianças privadas</p><p>do movimento, dos estímulos ambientais, da interação</p><p>com o meio, submetidas às sensações de agressão corpo-</p><p>ral geradas pelas intervenções médicas, tendem a apre-</p><p>sentar alterações no desenvolvimento23. Na vigência de</p><p>uma experiência inominável, portanto traumática, o diá-</p><p>logo tónico se altera, impedindo o processo de constitui-</p><p>ção da unidade de prazer sensório-motora, da imagem</p><p>corporal e consequentemente da consciência de si24.</p><p>As crianças maiores, embora possuindo o recurso da</p><p>fala, não têm na linguagem verbal seu principal meio de</p><p>compreensão, expressão e comunicação, priorizando o</p><p>brincar como linguagem fundamental da elaboração e</p><p>apreensão do mundo25. Desta forma, as crianças retidas</p><p>no leito ou cuidadas apenas sob o ponto de vista da doen-</p><p>22 Bemard, M, El</p><p>cuerpo. Buenos Aires, Paidós, 1980.</p><p>23 Ajuriaguerra, ]. Manual de psiquiatria m/amil. Op. cit., cap. XXIV.</p><p>24 Aucoututier, B. Texto apresentado no VI Congresso Brasileiro de</p><p>Psicomotricidade. Rio de janeiro, 1995. C6pia cedida pelo autor.</p><p>25 Santa-Roza, E. Quando brincar é dizer: a experiência psicanalítica na</p><p>infância. Rio de Janeiro, ReUime-Dumará, 1995.</p><p>169</p><p>ça física, inativas no ambiente hospitalar, sem estímulos</p><p>para a atividade lúdica, ficam sem recursos para a elabo-</p><p>ração das situações-limite que a doença e a hospitalização</p><p>impõem.</p><p>A hospitalização pode funcionar então como um "cal-</p><p>do de cultura" para o desencadeamento de reações psico-</p><p>lógicas, principalmente quando um elemento da família</p><p>não pode estar continuamente acompanhando a criança</p><p>na internação. Mesta situação os riscos são consideravel-</p><p>mente maiores em função da privação afetiva parcial ou</p><p>total. Diversas pesquisas, em vários países, são concor-</p><p>dantes em relação aos efeitos trágicos das separações pre-</p><p>coces ou prolongadas em função de hospitalização26. Qua-</p><p>dros como a depressão anaclítica—com retraimento, apa-</p><p>tia e anorexia —, regressões importantes no desenvolvi-</p><p>mento, suscetibilidade à infecções, e até a morte são rela-</p><p>cionados às síndromes de privação afetiva27.</p><p>Mesmo que acompanhada pela mãe ou outro parente,</p><p>a criança internada está exposta aos efeitos das perdas</p><p>secundárias ao isolamento hospitalar e aos fatores</p><p>estressantes do tratamento médico. Bemard, citando</p><p>Roíisseau, aponta para "a inequívoca nefasta influência</p><p>que exerce na conduta da criança toda a coação física"28.</p><p>Durante a internação e após a alta podem surgir diversos</p><p>quadros psicopatológicos, que permanecem como seqíie-</p><p>26 Bowlby, J. Apego e perda. Volume 1. São Paulo, Martins Fontes,</p><p>1984-</p><p>27 Spitz, R. O Primeiro ano àe vida. São Paulo, Martins Fontes, 1979,</p><p>cap. XIV-XV.</p><p>28 Beinard, M. El cuerpo. Op. cit., p. 49.</p><p>170</p><p>Um desafio às regras do joga</p><p>Ias desta experiência. Nos bebés se evidenciam inibições</p><p>psicomotoras, distonias, apatia, debilidade psicomotora,</p><p>dispraxias, distúrbios da alimentação e do sono29. Nas cri-</p><p>anças maiores, os transtornos reativos ao estresse grave</p><p>se manifestam como depressões, fobias, distúrbios de com-</p><p>portamento, agressividade, agitação psicomotora, perda</p><p>do controle esfincteriano, anorexia e insónia30.</p><p>A DIMENSÃO PLURIFACETADA DO ADOECER</p><p>Vários caminhos teóricos nos conduzem à necessidade</p><p>de ampliação das investigações sobre o adoecer, e conse-</p><p>qúentemente sobre a terapêutica. É preciso também con-</p><p>siderar que os efeitos produzidos pelas marcas traumáti-</p><p>cas não se restringem à esfera mental, podendo alterar</p><p>aspectos da própria organização biológica. Segundo</p><p>Winnicott, não é possível estabelecer uma distinção en-</p><p>tre os processos psíquicos, os somáticos e os ambientais</p><p>desde o início da vida. Com o desenvolvimento do con-</p><p>ceito de psique-soma, este autor postula que a saúde é um</p><p>estado de interrelação entre o psíquico e o somático, que</p><p>se mantém desde que a continuidade da existência não</p><p>seja perturbada, ou seja, um estado de equilíbrio depen-</p><p>dente de um ambiente perfeito31.</p><p>29 Guillaud-Bataille, J. "Réflexions cliniques à propôs de Ia dépression</p><p>avant 1'âge de trois ans". Neurojjryc. En/once, 1994, 42(3), p. 55-62.</p><p>30 Ajuriaguerta, ]. Manual de («iauiama in/anul. Op. ck., cap. XXIV.</p><p>31 Winnicott, D.W, "Amenteesuarelaçãocomopsique-soma^.Em:</p><p>Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978.</p><p>171</p><p>Eliza Santa Roja</p><p>Nos estádios iniciais, então, a adaptação do ambiente</p><p>às necessidades do bebé favorece um processo de consti-</p><p>tuição deste psique-soma, o corpo tornando-se a residên-</p><p>cia da consciência de si32'33. No entanto, é impossível que</p><p>este processo de continuidade não seja nunca perturbado,</p><p>fazendo parte da experiência vital as reorganizações</p><p>psicossômicas e o adoecer. Winnicott chama a atenção</p><p>para o crescente interrelacionamento de complexidade</p><p>entre soma e psique34.</p><p>Assim, saúde e doença podem ser compreendidos</p><p>como estados complexos, nos quais uma grande quanti-</p><p>dade de elementos estão implicados em distintos níveis</p><p>de organização, com caráter de imprevisibilidade e rein-</p><p>tegração, razões pelas quais um corpo conceituai é insufi-</p><p>ciente para abordá-los.</p><p>O pensamento que gira em torno da ideia de comple-</p><p>xidade promove uma desorientação das proposições ci-</p><p>entíficas universais, já que questiona os mecanismos de</p><p>ação e de previsibilidade dos sistemas observados. É, se-</p><p>gundo Morin, um desafio a ser aceito e um incitamento</p><p>para pensar. O complexo — aqui, especificamente o ser</p><p>vivo — contém não apenas a diversidade, a desordem,</p><p>mas abrange também as suas leis, a sua ordem, a sua orga-</p><p>3 2 Outeiral, J .O. "Comentários sobre o conceito de psique-soma". Em:</p><p>Outeiral, J-O & Grafia, R. Doralo" W .Wirmtcott: estudos. Porto Alegre,</p><p>Artes Médicas, 1991.</p><p>33 "Consciência de si" é uma das fonnas de referência ao conceito de</p><p>Se!/ em Winnicott. No desenvolvimento da criança o Sei/ designa a</p><p>constituição de uma consciência de si, uma diferenciação entre interno</p><p>e externo.</p><p>34 Winnicott, D.W. A natureza humana. Rio de Janeiro, Imago, 1990.</p><p>172</p><p>Um desafio às regras do jogo</p><p>nização, em contínua interação. Enquanto o pensamento</p><p>reducionista separa os diferentes aspectos do homem —</p><p>físicos, biológicos, sociais, psíquicos e espirituais — ou os</p><p>unifica através de uma simplificação mutiladora, o pensa-</p><p>mento complexo tenta conceber as articulações, que são</p><p>destruídas pelos cortes entre as disciplinas, entre catego-</p><p>rias cognitivas, entre diferentes tipos de conhecimento35.</p><p>Aspirando à multidimensionalidade, a complexidade</p><p>— ao contrário do pensamento vigente no modelo</p><p>biomédico — comporta fundamentalmente um princípio</p><p>de incompletude e incerteza. Morin nos fornece uma pa-</p><p>norama das várias direções que conduzem ao desafio da</p><p>complexidade: a irredutibilidade do acaso e da desordem,</p><p>a transgressão dos limites da abstração universalista, a</p><p>complicação, a desordem reorganizadora ("arder from</p><p>noise"), e a organização dentro de uma perspectiva</p><p>sistémica36.</p><p>Esta última baseia-se na visão dos fenómenos do real</p><p>como interdependentes e interrelacionados, de forma que</p><p>nenhuma teoria ou modelo comporta mais verdade do</p><p>que o outro, e todos devem ser compatíveis. Na concep-</p><p>ção sistémica o organismo é visto em termos de relações,</p><p>de integração e de processo. Assim, diz Capra, ele se mos-</p><p>tra com elevado grau de flexibilidade e plasticidade inter-</p><p>nas, e não há dois organismos rigorosamente idênticos.</p><p>Não se trata, todavia, de abandonar a universalidade de</p><p>certas leis, mas de articulá-las permanentemente com o</p><p>singular. Embora o organismo como um todo apresente</p><p>35 Morin, E. Ciência com Consciência. Lisboa, Europa-América, 1982.</p><p>36Idem,p. 137-51.</p><p>173</p><p>Eliaxx Santa Roja</p><p>certas regularidades, o formato de suas múltiplas partes</p><p>não é rigidamente determinado, podendo exibir compor-</p><p>tamentos absolutamente singulares37.</p><p>Nesta perspectiva, a teoria dos sistemas aponta para o</p><p>fracasso da visão de causa e efeito no adoecer que preten-</p><p>dem reger as terapêuticas. Múltiplos fatores estão envol-</p><p>vidos no processo e podem ampliar-se através da</p><p>interdependência e da realimentação, de modo que é</p><p>irrelevante saber qual deles foi a causa inicial. Além dis-</p><p>so, no pensamento sistémico está implicado o princípio</p><p>de auto-organização dos seres vivos, que significa que sua</p><p>ordem não é imposta pelo meio ambiente, mas estabelecida</p><p>pelo próprio sistema, sendo capaz de se auto-renovar e de</p><p>se dirigir criativamente para além das fronteiras físicas e</p><p>mentais nos processos de evolução38.</p><p>Assim é possível situarmos o paciente como um sistema</p><p>de sistemas, todos entrecruzados entre si, formando uma rede</p><p>tal que se alterados alguns aspectos, alteram-se todos os ou-</p><p>tros porque interconectados, conforme assinala Maturana39.</p><p>Esta forma de pensar implica numa nova visão da realidade</p><p>da criança: como um ser vivo num estado de interrelação e</p><p>interdependência de todos os fenómenos — biológicos, psi-</p><p>cológicos, sociais e culturais. Significa, portanto,</p><p>ampliar e</p><p>aprofundar a prática pediátrica, desde o diagnóstico da do-</p><p>ença que leva uma criança ao hospital até a consideração</p><p>dos múltiplos agentes estressores do ambiente hospitalar.</p><p>37 Capra, F. O Jxmto de mutação. Op. cit., p. 259-63.</p><p>38Idem,p.263-64.</p><p>39 Magro, C &.Santamatia, R. "Entrevista com Humberto Maturana".</p><p>Em: Conhícer o conhecer: ideias de Humberto Maturana. I Congresso de</p><p>Universidades Federais Mineiras de São João dei Rey, 1993.</p><p>174</p><p>Um desafio às regras do jogo</p><p>MUDANDO AS REGRAS DO JOGO</p><p>Para seguirmos "à risca" o conceito de eficácia em re-</p><p>lação à terapêutica hospitalar com crianças seria necessá-</p><p>rio, então, identificar os agentes estressores, considerá-</p><p>los adversos à saúde no mesmo nível, por exemplo, das</p><p>infecções hospitalares e procurar, dentro da perspectiva</p><p>denominada "terapêutica com um mínimo de efeitos</p><p>colaterais", reduzi-los a um mínimo. Dito de outra forma,</p><p>visualizar a hospitalização em seu aspecto paradoxal: como</p><p>uma situação de risco para a saúde, na qual se faz neces-</p><p>sário revisar as estratégias de intervenção.</p><p>De uma maneira geral, então, a terapêutica deveria</p><p>comportar ações direcionadas para evitar a solução de</p><p>continuidade nos processos de desenvolvimento da cri-</p><p>ança gerados pelo contexto hospitalar40-41, para possibili-</p><p>tar a manutenção de sua individualidade, para permitir</p><p>as manifestações de sua subjetividade que atuassem posi-</p><p>tivamente no organismo da criança42-43. Quais ações po-</p><p>deriam ser instituídas? É possível se redimensionar o tra-</p><p>tamento hospitalar para que ele possa, no dizer de Castiel,</p><p>se conduzir</p><p>40 Bennett, F. C. et alii. "Eftectiveness of developmental interventions</p><p>in the Erst fwe years of life". Pedíat. Clín. NortK Amer, 1991,38(6), p.</p><p>1513-29.</p><p>41 Dilks, S. "Developmental aspects of child care". Idem, p. 1529-43.</p><p>42 Danon, G-St Hervé, M. "Travail de séparation et hospitalization</p><p>pédiatrique - groupe bebe". Neurose. Enfonce, 1994, 42(8-9), p. 633-6.</p><p>43 Madelin, J.C. "Travail de séparation et hospitalization pédiatrique -</p><p>grands enfants et adolescents". Idem, p. 544-5.</p><p>175</p><p>Eliza Santa Rota</p><p>para além do habitual do discurso médico (clínico-</p><p>laboratorial), extremamente pobre não só para confor-</p><p>tar. Mais do que isso: para funcionar como agente pro-</p><p>dutor de uma atmosfera curativa44.</p><p>Muito pouco se encontra na literatura pediátrica a</p><p>respeito de intervenções coadjuvantes aos procedimen-</p><p>tos clínico-laboratoriais que possam ser utilizadas na</p><p>abordagem terapêutica abrangente das crianças hospi-</p><p>talizadas. Contudo alguns trabalhos apontam para os</p><p>efeitos terapêuticos e profiláticos da atividade lúdica,</p><p>que então se configuraria como um destes recursos. A</p><p>revisão das comunicações científicas sobre este tema</p><p>específico nos últimos cinco anos revela a escassez de</p><p>produções nesta área, principalmente realizadas por</p><p>profissionais médicos. A maioria dos textos foi escrita</p><p>por enfermeiros, e são poucos se comparados às produ-</p><p>ções na área clínico-laboratorial. Na revisão dos últi-</p><p>mos cinco anos encontramos apenas três textos de au-</p><p>tores brasileiros em revistas indexadas.</p><p>Em todos eles encontramos a afirmação de que o</p><p>brincar é uma importante forma de intervenção em</p><p>saúde mental para crianças hospitalizadas, contribuin-</p><p>do de maneira significativa para o desenvolvimento da</p><p>cognição, da linguagem, da área motora e da área social</p><p>44 Castiel, L. D. O buraco s o avestruz: a singularidade do adoecer huma-</p><p>no. Op. cit, p. 88.</p><p>176</p><p>Um desafio às regras do jogo</p><p>da criança45"50, A atividade lúdica é considerada de alto</p><p>valor nos processos de diagnóstico, de adaptação, de re-</p><p>dução da dor e da socialização51 da criança hospitalizada,</p><p>bem como importante medida para o restabelecimento</p><p>físico, psíquico e cognitivo dos pacientes52.</p><p>Todavia, uma recente comunicação americana, fazen-</p><p>do uma extensa revisão bibliogáfica do assunto, nos diz</p><p>que são necessárias medidas para validar cientificamente</p><p>os programas de assistência hospitalar que utilizam o brin-</p><p>car. Os dramáticos aumentos nos custos da hospitalização</p><p>vêm fazendo com que estes programas estejam sendo cor-</p><p>tados dos orçamentos para favorecer outros recursos</p><p>terapêuticos — tecnológicos principalmente — cuja vali-</p><p>dade está mais comprovada. Embora o brincar durante a</p><p>hospitalização seja até mesmo recomendado pela Acade-</p><p>mia Americana de Pediatria, as pesquisas existentes não</p><p>45 Marino, B.L. "Assessements of infant play:aplicatíons to research</p><p>and pratice". Iss.ComíJ.Pediai.Nurs, 1988; 11, p. 227-40.</p><p>46 Huerta, E, P. "Brinquedo no Hospital". Rev. Esc. En/erm. L/SP, 1990,</p><p>24(3), p. 319-27.</p><p>47 Ribeiro, C.A. X) efeito da utilização do brinquedo pela enfermeira</p><p>pediátrica sobre o comportamento de crianças récem-hospitaUzadas1'.</p><p>Rev. Esc. Enf. USP. ,1991, 25(1), p. 41-60.</p><p>48 Scott, G, "Children in hospital: professional play". Nim. Stand.,</p><p>1992,18-24:7(9), p. 22-3.</p><p>49 Dolan, A. "A day in life of a hospital play speciaKst".BriL J. Thnate.</p><p>Nuis.,1993,3(3):31-Z.</p><p>50 Angelo, M. "Brinquedo: um caminho para a compreensão da crian-</p><p>ça hospitalizada". Rw.Esc.En/.USP, 1985.19(3), p. 213-23.</p><p>51 Jesse, P. "Nurses, children and play". Iss.Comp.PedúitNurs., 1992,</p><p>15(4), p. 261-9.</p><p>52 Summers, K.H. "Providing of play in the caie of children".</p><p>Pediot.Ntm, 1991, 17(3), p. 266-7.</p><p>177</p><p>são capazes de provar sua eficiência curativa, necessitan-</p><p>do portanto de maior aprofundamento. Estes programas</p><p>correm então o risco de desaparecer, diz o autor, em fun-</p><p>ção da mentalidade burocrata e tecnocrata vigente na</p><p>América do Norte53.</p><p>Uma parte deste aprofundamento diz respeito a um</p><p>estudo abrangente do fenómeno lúdico em várias disci-</p><p>plinas, que iniciamos em nossa disssertação de mestrado54.</p><p>Trata-se de poder situar as funções do jogo na condição</p><p>humana e definir seu estatuto ontológico.</p><p>A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DO BRINCAR</p><p>O brincar é uma forma de comportamento caracterís-</p><p>tica da infância e pertence a um conjunto de atividades</p><p>que compõem a noção de jogo. Baseado numa manipula-</p><p>ção de imagens, o jogo representa a realidade, recriando-a</p><p>pela metáfora na realização de uma aparência: o jogo é</p><p>imaginação no sentido original do termo. Imaginação,</p><p>termo derivado do latim imago-ginú, que por sua vez deri-</p><p>va do grego phantasia, significa aparição, representação,</p><p>ação de mostrar-se. No pensamento grego, a fantasia</p><p>foi concebida como uma atividade mental através da</p><p>qual se produzem imagens equivalentes à representação.</p><p>53 Thompson, R.H. "Documenting the value of play for hospitalized</p><p>children: the challenge in playing the game". The Açaí. Advocate, 1995,</p><p>2(1), p. 11-9.</p><p>54 Santa Roza, E. Quando brincar é dizer: a experiência ÍJsicanaíítica na</p><p>m/dncia. Op. cít., p. 15-38.</p><p>178</p><p>Um desafio às regras do jogo</p><p>Para Platão, a fantasia seria uma manifestação da opinião</p><p>que, ao invés de produzir ideias, engendra imagens. Já</p><p>Aristóteles diferencia a fantasia do pensamento discursivo,</p><p>embora admita que não possa haver juízo sem fantasia. A</p><p>fantasia é antecipadora e possui um caráter de liberdade</p><p>quanto às sensações» combinando representações55.</p><p>Para o pensamento moderno a imaginação tem tam-</p><p>bém um papel crucial no pensamento. Hume enfatiza na</p><p>imaginação a capacidade de engendrar imagens, produ-</p><p>zindo o pensamento num processo criativo em função da</p><p>liberdade de transposição e modificação das impressões</p><p>recebidas. Para este autor, a imaginação é a produção de</p><p>ideias relacionadas às impressões, sendo absolutamente</p><p>essencial para o conhecimento, para a interpretação de</p><p>experiências. No pensamento kantiano, o conhecimento</p><p>também está vinculado à imaginação: ela induz uma rela-</p><p>ção entre o objeto-palavra e as experiências, de modo que</p><p>uma determinada experiência possa ser reconhecida e</p><p>identificada com a palavra. A imaginação tem, em Kant,</p><p>uma forma não só reprodutiva mas também produtiva por</p><p>uma capacidade de síntese a priorí, que ele denomina de</p><p>imaginação transcendental56.</p><p>Assim, o discurso filosófico sinaliza para a dimensão</p><p>ontológica da imaginação e, consequentemente, da ativi-</p><p>dade lúdica que permite o exercício da fantasia. Sob</p><p>a</p><p>ótica da reflexão metafísica, o fenómeno lúdico é o signo</p><p>da incompletude humana, surgindo como um movimen-</p><p>55 Ferra ter-Mora, J.F. Dicciorario de Filosofia. Madrid, Alianza, 1990,</p><p>verbetes imcgínación e fantasia.</p><p>56 Warnock, M. Imagínatían, London, Faber and Faber, 1976.</p><p>179</p><p>to no qual o homem se faz homem: no ato de jogar, o</p><p>sujeito é separado de si mesmo e, distanciando-se do que</p><p>ele é, se projeta e se inventa na produção de seu ato. Na</p><p>determinação histórica de sua existência, o homem pode</p><p>reinventar-se, através do jogo, pela imaginação57.</p><p>A essência do brincar é a sua potencialidade de trans-</p><p>formar em hábito uma experiência devastadora58, e isto</p><p>ocorre em função de sua dimensão metafórica, ou seja,</p><p>por sua capacidade de recriar a realidade, como uma</p><p>linguagem. Todavia, dizer que o brincar é uma linguagem</p><p>significa conferir-lhe um caráter de prática signifícante,</p><p>tal como Freud o postula em sua conceituação da</p><p>compulsão à repetição. A partir do jogo com o carretel</p><p>empreendido por uma criança ante a ausência da mãe,</p><p>Freud situa o brincar como um movimento estruturante,</p><p>a partir do qual a força pulsional é inserida na ordem psí-</p><p>quica, posto que inscreve-se no campo simbólico. O mo-</p><p>mento em que a criança mergulhada na linguagem é por</p><p>ela tomada, instaurada na condição humana, é represen-</p><p>tado na teoria psicanalítica por um momento de jogo59.</p><p>Neste ponto de vista o brincar vincula-se à constitui-</p><p>ção do sujeito e torna-se o protótipo de uma atividade</p><p>simbólica. O advento do símbolo estaria então relaciona-</p><p>do aos jogos de ocultação, enquanto antecipadores da</p><p>presença e da ausência, tal como postula Winnicott em</p><p>sua formulação dos objetos transicionais. Para ele, uma</p><p>57 Henciot, J. lê J&i. Paris, PUF, 1976.</p><p>58 Benjamim, W. "Brinquedo e brincadeira". Em: Obras Escolhoías.</p><p>Volume 1. São Paulo, Brasiliense, 1987.</p><p>59 Freud, S. "Más alia dei principio dei placer". Op. cit.</p><p>180</p><p>Um desafio às regras ao jogo</p><p>primeira atividade lúdica — os fenómenos transicionais —</p><p>teria o estatuto de passagem do pólo natural ao cultural,</p><p>da completude imaginária ao acesso da criança à função</p><p>simbólica. Tais fenómenos instauram uma área intermediá-</p><p>ria entre o corpo da criança e o corpo da mãe — o espaço</p><p>potencial — que se constitui como uma área de ilusão. As-</p><p>sim, os fenómenos transicionais designam um processo de</p><p>reconhecimento da diferença e a jornada do simbolismo, con-</p><p>figurando-se aí uma equivalência lógica: objeto transicional</p><p>— brincar — brincar compartilhado — cultura60. As mani-</p><p>festações lúdicas adquirem um lugat diferenciado nos es-</p><p>tádios pré-verbais como precursores das operações sim-</p><p>bólicas que caracterizam a linguagem. Os jogos de ima-</p><p>gens constituem uma protolinguagem numa etapa lógica</p><p>que marca a descoberta da diferença, da dialética da pre-</p><p>sença e da ausência.</p><p>Mas o brincar tem ainda funções fundamentais e mais</p><p>precoces, que antecedem e preparam o terreno para a</p><p>dialética da presença e da ausência, par que rege e inau-</p><p>gura o universo simbólico: a edificação do próprio corpo</p><p>através do traçado e da inscrição de uma superfície, e do</p><p>estabelecimento das relações entre continente e conteúdo,</p><p>que cria num espaço bidimensional a dimensão de volume61.</p><p>Para que estas operações se estabeleçam é necessário a</p><p>participação do ambiente e é neste sentido que Maturana</p><p>e Verden-Zoller marcam a importância da existência do</p><p>jogo entre pais e filhos. A criança adquire a consciência</p><p>60 Winnicott, D.W. Playing and reality. London, Penguin Books, 1988.</p><p>61 Rudolfo, R. O brincar e o significante. Porto Alegre, Artes Médicas,</p><p>1990.</p><p>181</p><p>Elí;a Sônia Roja</p><p>social e a consciência de si mesmo somente quando cres-</p><p>ce na consciência operacional de sua corporalidade, e esta</p><p>só se estabelece numa dinâmica de jogo62. Se tomamos,</p><p>como postula Lacan, que o que diz respeito ao humano</p><p>não pode situar-se fora de suas relações com a ordem sim-</p><p>bólica63, o brincar se configura como um fenómeno de</p><p>linguagem. Mas que linguagem é esta que pode não dis-</p><p>por da palavra, veiculando-se como gestos, ações e ima-</p><p>gens? Teremos que situá-la no conjunto que compõe a</p><p>linguagem denominada analógica, cujo estudo pertence</p><p>ao campo da semiótica, e determinar suas diferenças em</p><p>relação à linguagem verbal64.</p><p>Wilden é um dos autores que tenta estabelecer uma</p><p>distinção metodológica entre estas duas formas de lingua-</p><p>gem, apontando para suas diferenças lógicas: a analógica</p><p>é concreta, imprecisa, ambígua por comportar uma riqueza</p><p>semântica e uma pobreza sintética, sinalizando para dife-</p><p>renças de magnitude, frequência, distribuição e organiza-</p><p>ção; a digital (palavra) é abstrata, objetiva, sititática e di-</p><p>ferencia por distinção e oposição. O analógico é colocado</p><p>no lugar do referente, com os eixos paradigmáticos e</p><p>sintagmáticos ligando-se por similaridade e contiguidade,</p><p>62 Maturana, H. & Verden-Zõller, G. Amor y juego: fundamentos olvi-</p><p>dados dei humano. Santiago, Inst.Terap.Cogn., 1993.</p><p>63 Lacan, J. O seminário, livro 2: o eu na teoria de Fremi e na técnica da</p><p>psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge ZaKar Editor, 1987.</p><p>64 Embora não nos esquecendo de que a linguagem verbal também</p><p>possui aspectos analógicos, bem como os signos analógicos são penetra-</p><p>dos pelos linguísticos. Barthes, em Elementos de Semiologia (São Paulo,</p><p>Culttix, 1971, p. 74), nos diz que o encontro do analógico com o não-</p><p>analógico é indiscutível no seio de uma linguagem.</p><p>182</p><p>Um desafio às regras do jogo</p><p>enquanto a digital é metafórica e metonímica65. Na lin-</p><p>guagem analógica, então, a sequência lógica da</p><p>rememoração não se estabelece, sendo apenas memória,</p><p>e correspondendo ao que Freud denominou de represen-</p><p>tação-coisa (Sachvorstellung). Sob o ponto de vista da</p><p>psicanálise, estas representações são os primeiros investimen-</p><p>tos de objeto, imagens mnêmicas derivadas da coisa (Sache),</p><p>que consistem nas representações inconscientes. O sistema</p><p>pré-consciente nasce quando estas representações-coisa são</p><p>superinves ridas pela representação-palavra66.</p><p>No panorama da análise de Wilden a linguagem</p><p>analógica é capaz de gerar efeitos de significado, mas não</p><p>pode produzir a significação. Para ele, os jogos de ocultação</p><p>representam, numa comunicação com elevado nível de</p><p>organização, uma analogia com o que a psicanálise deno-</p><p>mina de "falta do objeto". É a descoberta primordial da</p><p>diferença entre a presença e a ausência, que é depois</p><p>digitalizada em termos de uma oposição imaginária. O</p><p>brincar abriria o caminho para a instauração do significante</p><p>linguístico, ganhando aí um estatuto de ponte para a</p><p>digitalização do análogo, necessária à linguagem67.</p><p>É neste sentido que Rosolato resgata a importância</p><p>da linguagem não-verbal, propondo o conceito de</p><p>significante de demarcação. Estes pertencem ao campo</p><p>do analógico, sentidos de experiências vividas, dificilmente</p><p>65 Wilden, A. Sustem and structure: essays in cornrnunicatioris and exchange.</p><p>New York, Tavistock, 1984.</p><p>66 Freud, S. "Lo Inconciente" (1915). Em: Obras completas. Volume</p><p>XIV. Op. cit.</p><p>67 Wilden, A. Sustem and structure: essays mcommurucaaons andexchange.</p><p>Op. cit., p. 149-51.</p><p>183</p><p>anterior69, e paralelamente a uma perspectiva de amplia-</p><p>ção de um trabalho de extensão da UFRJ, denominado</p><p>Projeto Brincar70. Este programa vem sendo realizado há</p><p>três anos no Instituto de Psiquiatria e consiste na assis-</p><p>tência aos pacientes psiquiátricos internados e seus filhos,</p><p>através da atividade lúdica. Para minimizar os efeitos das</p><p>separações prolongadas, o Projeto Brincar instituiu um es-</p><p>paço lúdico nos dias de visita, permitindo que as crianças</p><p>frequentem o hospital psiquiátrico — o que antes era proi-</p><p>bido — e proporcionando o relacionamento destas com</p><p>seus parentes internados.</p><p>Este projeto original, premiado pelo MEC e pela Funda-</p><p>ção ABRINQ Pelos Direitos da Criança, ampliou-se então ao</p><p>IFF, com a criação do Projeto Saúde e Brincar, tendo sido feito</p><p>um acordo de colaboração técnico-cientírlca entre as duas insti-</p><p>tuições. Desde agosto de 1994, foi implantado um "settmg"</p><p>lúdico nas enferrnariaspediátricas.Uma equipe interdisciplinar</p><p>de estagiários e profissionais das duas instituições71 coordena</p><p>69 Santa-Roza, E. Quando brincar é dizer: a. experiência Jjsícanalítica na</p><p>infância. Op. cit.</p><p>70 Saggese, E, G. "Piojeto Brincar" Jom.Bras.Ps4, 1995,44(4), p. 185-87.</p><p>71 Equipe do Projeto Saúde e Brincar: Eliza Santa Roza, psiquiatria da</p><p>infância, coordenação; Marcelo de Abreu Maciel, psicologia, pesquisa-</p><p>dor visitante, sub-coordenação; Maria Aparecida Bezerra, comunica-</p><p>ção visual, projeto de ambientação das enfermarias; Maria Manha Du-</p><p>que de Moura, pediatria; Carlos Eduardo Costa, psicomotricidade</p><p>relacional, mestrando; Mirna Barros Teixeira, graduação em psicologia</p><p>e bolsista de Iniciação cientifica CNPQ; Regina Kosinski, pedagoga,</p><p>doutoranda; Rosa Maria de A. Mitte, terapeuta ocupacional e</p><p>psicopedagoga; Denyse T. Lamego, psicomotricista educacional, bolsis-</p><p>ta de apoio técnico; Priscila M. de Aragão, graduação em psicologia;</p><p>Gabriela G. Albernaz, graduação em psicologia.</p><p>186</p><p>Um desafio às regras do jogo</p><p>atividades lúdicas semanais e participa também de seminári-</p><p>os teóricos e supervisões clínicas.</p><p>A partir desta nossa inserção no hospital, inúmeras</p><p>questões foram se apresentando para além daquelas que</p><p>de início tinham inspirado a criação do trabalho. Cha-</p><p>mou-nos a atenção, dentre outras coisas, a reação das cri-</p><p>anças aos procedimentos médicos que são realizados, par-</p><p>ticularmente na sala de curativos e coleta de sangue —</p><p>que as crianças denominam de "câmara de tortura"; a res-</p><p>trição das crianças no leito, mesmo aquelas que podem se</p><p>locomover; um grande número de bebés internados sem</p><p>acompanhantes, quase totalmente privados de estímulos</p><p>afetivos e cognitivos; a ausência de material lúdico ou</p><p>cultural. Verificamos que a maioria dos pacientes apre-</p><p>senta graves comprometimentos no desenvolvimento e</p><p>nas relações interpessoais, ocasionados pelo grande tem-</p><p>po de internação.</p><p>Ao lado disso, no decorrer do trabalho, fomos consta-</p><p>tando que várias crianças, após a participação nas ativi-</p><p>dades lúdicas, saíam de estados depressivos, mostravam-</p><p>se mais ativas e participantes, apresentavam melhoras sin-</p><p>tomáticas dos quadros orgânicos e redução da dor. O brin-</p><p>car coletivo estava possibilitando também o incremento</p><p>das relações entre pais e filhos, acompanhantes e equipe,</p><p>crianças entre si e destas com a equipe. Através das ob-</p><p>servações participantes, de entrevistas e da análise de</p><p>imagens de vídeo — que são colhidas sistematicamente</p><p>— foram se configurando vários problemas da</p><p>hospitalização, bem como alguns caminhos para sua abor-</p><p>dagem, transformando a experiência numa pesquisa.</p><p>187</p><p>Elica Santo Roza</p><p>Cabe portanto a nós tentar validar cientificamente a</p><p>importância do brincar dentro do hospital não como uma</p><p>atividade para ocupar as chamadas "horas ociosas", mas</p><p>como um elemento terapêutico coadjuvante, capaz de</p><p>interferir direta ou indiretamente nos processos orgâni-</p><p>cos, podendo inclusive reduzir o tempo de recuperação e</p><p>internação.</p><p>188</p><p>EXEMPLAR N°.</p><p>Esta obra foi impressa na cidade do Rio de Janeiro sobre papel</p><p>Off-set 90 g/m1 pela Imprinta para a Contra Capa Livraria em agosto</p><p>de 1997. A composição utili2ou o tipo Coudy Old Styk. A capa foi</p><p>impressa sobre papel Color Plus 240 g/m2, com filmes fornecidos pela</p><p>Huguenacolor.</p><p>tudo isso que vere-</p><p>mos em seguida.</p><p>15 Freud, S. La ntussonce de Ia psychandtyse. Paris, PUF, 1973, p, 190,</p><p>19</p><p>Joel Birnum</p><p>V. AS VERSÕES DO INFANTIL</p><p>Logo nos primórdios do pensamento psicanalftico o in-</p><p>fantil foi caracterizado como sendo o inconsciente. Foi aqui</p><p>que o infantil se transformou num substantivo, perdendo o</p><p>atributo negativo anterior, onde seria representado no regis-</p><p>tro da reminiscência. Do estado de um resto, que seria rema-</p><p>nescente no campo da memória, o infantil se substantivou</p><p>na estrutura do inconsciente. Neste, o infantil foi esboçado</p><p>por diferentes traços que circunscreviam o seu ser.</p><p>Antes de mais nada, o infantil se identificava com o</p><p>desejo. O que existia de infantil no sujeito se representa-</p><p>ria pelo universo caótico do desejo, que aquele não re-</p><p>nunciaria jamais. Como desejo o infantil se tornaria pa-</p><p>tente pelos sonhos16, pelos atos falhos17 e pelo chiste18. Isso</p><p>para nos referirmos à "psicopatologia da vida cotidiana",</p><p>pois o infantil como desejo estaria presente também na</p><p>formação do sintoma. Nesta medida, o desejo seria a for-</p><p>ma de ser por excelência do infantil, a sua matéria prima</p><p>primordial.</p><p>Com isso, o infantil se identificaria também com o</p><p>processo primário, que regularia o desejo e o inconscien-</p><p>te, contraposto ao processo secundário, que regularia a</p><p>razão, a consciência e o eu19. Ainda neste contexto o in-</p><p>16 Freud, S. L'mterprétation dês revés. Capítulos II e VII. Op. cit.</p><p>17 Freud, S. Psychojxnologie de Ia víe quolidienne. Paris, Payot, 1973.</p><p>18 Freud, S. "Jokes and their relatíon Co the unconscious" (1905). Em:</p><p>Slandard Edition of the complete {js^chologicol ivorks of Siginund Freud.</p><p>Volume VIII. Londres, Hogarth Press, 1978.</p><p>19 Freud, S. Vinterprétation dês revés. Capítulo VII. Op. cit.</p><p>20</p><p>Prefácio</p><p>fantil foi circunscrito como aquilo regulado pelo princí-</p><p>pio do prazer, que se contraporia pontualmente ao prin-</p><p>cípio de realidade, regulador dos processo racionais20. Logo</p><p>em seguida, com a formulação da teoria da sexualidade, o</p><p>infantil foi identificado com a pulsão sexual21. Como fun-</p><p>damento do inconsciente e do desejo a pulsão sexual se-</p><p>ria a matéria prima do infantil; este se consubstanciaria,</p><p>pois, pelas pulsões perverso-polimorfas, que definiriam a</p><p>essência da sexualidade e do gozo humanos.</p><p>Nos ensaios metapsicológicos de 1915o infantil con-</p><p>tinua a se identificar com o registro pulsional, porém a</p><p>pulsão começa a perder a sua identidade obrigatória e</p><p>necessária com a sexualidade; a pulsão sexual é apenas</p><p>uma das modalidades do pulsional22. A partir de agora,</p><p>com efeito, existiriam pulsões sexuais e não sexuais, já</p><p>que o discurso freudiano passou a opor a força pulsional e</p><p>sua inserção no universo da representação. Somente a</p><p>inserção do pulsional no registro da representação circuns-</p><p>creveria a pulsão sexual no sentido estrito, ao passo que a</p><p>força pulsional no sentido estrito não teria qualquer atri-</p><p>buto erógeno. Seria justamente esta força pulsional em</p><p>estado puro que neste contexto remeteria ao infantil.</p><p>A força pulsional se desdobrou na concepção de pulsão</p><p>de morte nos anos 1920, pois a pulsão de morte se enun-</p><p>cia como uma modalidade de pulsão sem representação23.</p><p>20 Idem.</p><p>21 Freud, S. Trois «saís sur Ia théoríe de Ia sexucdité. 1° ensaio. Op. cit.</p><p>22 Freud, S. "Pulsions et destins dês pulsions"(1915). Em Freud, S.</p><p>Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968.</p><p>23 Freud, S. "Au-delà du príncipe du plaisir" (1920). Em: Freud, S.</p><p>Essois de psychanaijse. Paris, Payot, 1981.</p><p>21</p><p>Joel Birmon</p><p>Na sua oposição permanente à pulsão de vida, a pulsão</p><p>de morte seria a representação do infantil por excelência,</p><p>a sua nova substancialidade. Com efeito, o infantil agora</p><p>se revela pela dimensão diabólica da repetição que, como</p><p>compulsão, dá corpo ao infantil.</p><p>Como compulsão de repetição, a pulsão de morte foi</p><p>alocada por Freud no Isso, na sua nova concepção do apa-</p><p>relho psíquico delineada em 1923M. Neste contexto, o</p><p>infantil se inscreve no Isso, pólo pulsional do psiquismo</p><p>oposto ao Eu e ao Supereu. Desta feita o infantil seria</p><p>regulado pelo principio do Nirvana, não sendo mais iden-</p><p>tificado com o princípio do prazer, já que agora aquele</p><p>remeteria para os registros da morte e da expulsão, e não</p><p>mais da vida.</p><p>No desdobramento desta concepção o infantil foi iden-</p><p>tificado com o trauma, pela superposição que se realizou</p><p>entre a tópica do Isso, a pulsão de morte e a compulsão de</p><p>repetição. Como registro do traumático o infantil passa a</p><p>ser permeado pela angústia do real, isto é, por uma moda-</p><p>lidade de angústia não inscrita no registro da representa-</p><p>ção e por isso mesmo na exterioridade do campo do desejo25.</p><p>Sendo identificado com a substancialidade do traumáti-</p><p>co, o infantil seria a condição do sujeito onde a dita an-</p><p>gústia sinal falha e não entra em cena, impondo ao sujei-</p><p>to o real açambarcador da angústia.</p><p>Nesta derivação de conceitos o infantil torna-se re-</p><p>presentado pela figura do desamparo, que passa a obcecar</p><p>24 Freud, S. "Lê mói et lê ca" (1923). Idem.</p><p>25 Freud, S. InKibition, symptôme et ongoisse (1926). Paris, PUF, 1973.</p><p>22</p><p>Prefácio</p><p>o discurso freudiano desde os anos 193026.0 infantil como</p><p>trauma revelaria a posição de desamparo do sujeito fren-</p><p>te ao que existe de imposição no impacto da força</p><p>pulsional, que lança aquele no campo da angústia do real.</p><p>Neste cenário, onde a angústia sexual não pôde ante-</p><p>cipar o perigo para o sujeito, permitindo a este lançar mão</p><p>de procedimentos simbólicos de proteção, apenas resta a</p><p>fragmentação psíquica. Pela mediação desta o sujeito se rom-</p><p>pe em pedaços, forma pela qual se realiza não apenas a inci-</p><p>dência do traumático e do pulsional, assim como procura</p><p>operar uma escaramuça definitiva para evitar o impacto da</p><p>angústia do real e a posição do desamparo. Por esta figura-</p><p>ção última o infantil se identificaria então com a clivagem</p><p>do Eu, com o esfacelamento pulverizante do sujeito27.</p><p>VI. AS PASSAGENS PELA MORTE E PELO SINISTRO</p><p>Considerando a genealogia da categoria de infantil no</p><p>discurso freudiano, pode-se evidenciar umadescontimtidade</p><p>óbvia que estaria além desta descrição e de suas diferentes</p><p>nomeações. O que me interessa sublinhar agora é adireção</p><p>que assumiu Freud na construção desta categoria no</p><p>campo psicanalítico. É esta direção de pesquisa que pode</p><p>nos indicar as passagens entre o discurso de Freud, o de</p><p>seus discípulos próximos e o da psicanálise pós-freudiana.</p><p>26 Freud, S. Moloise daru Ia cívilisaiion (1930). Paris, PUF, 1971.</p><p>27 Freud, S. "Splitting of the ego in the process of defense"(1933). Em:</p><p>Standard Edttíon of the complete ps^choíogical ivorícs of Sigmurui Freud.</p><p>Volume XXIII. Op. cit.</p><p>23</p><p>Joe[ Bírman</p><p>Assim, dos primórdios da investigação psicanalítica até</p><p>os anos 1915 e 1920 o infantil se identificava com o regis-</p><p>tro da sexualidade, isto é, com o campo do desejo e com o</p><p>que era regulado pelo princípio do prazer. Após os anos</p><p>1920, em contrapartida, o infantil passa a ser circunscrito</p><p>como o que não pode ser erotizado e como o que é regu-</p><p>lado por um além do princípio do prazer. Vale dizer, o</p><p>infantil passa a ser identificado com o real da angústia e</p><p>com trauma, com aquilo capaz de lançar o sujeito no de-</p><p>samparo e de promover o seu esfacelamento.</p><p>Depreende-se disso que o infantil se deslocou do eixo</p><p>da vida para o da morte, que passou a dar a tónica do</p><p>funcionamento primordial dos processos psíquicos. A exis-</p><p>tência psíquica não seria uma consequência automática</p><p>da condição do organismo vivo, mas implicaria numa cons-</p><p>trução complexa, na qual a pulsão de vida precisaria do-</p><p>minar o movimento espontâneo do organismo para a</p><p>morte e a imobilidade28. Nestes termos, necessário seria o</p><p>trabalho de ligação do outro, que pelos investimentos</p><p>erógenos seria capaz de possibilitar ao jovem humano a</p><p>proteção face ao desamparo primordial e o domínio de</p><p>sua prematuridade essencial.</p><p>Isso porque neste contexto a pulsão seria traumática</p><p>por excelência, esfacelante para o sujeito. A razão disso</p><p>se deve ao rato do psiquismo passar a ser concebido como</p><p>atravessado por intensidades</p><p>e marcado por um excesso</p><p>que o campo da representação não conseguiria absorver</p><p>imediatamente. O trauma se constituiria justamente nes-</p><p>28 Freud, S. "Lê problème économique du masochisme"{1924). Em:</p><p>Freud, S. Névrose, psychose et perversion. Op. cit.</p><p>24</p><p>Prefácio</p><p>te gíip, neste intervalo sempre representado entre o ex-</p><p>cesso da força pulsional e a impossibilidade de interpreta-</p><p>ção pelo sujeito daquele excesso. Com isso, os represen-</p><p>tantes-representação da pulsão (Freud) e os significantes</p><p>(Lacan) estariam sempre atrasados na sua possibilidade</p><p>de dominar o impacto da força pulsional que transborda-</p><p>ria no real da angústia. Como consequência o infantil re-</p><p>vela a posição de desamparo do sujeito frente à "exigên-</p><p>cia de trabalho da pulsão"29. Enfim, evidencia-se a razão</p><p>pela qual o indivíduo humano seria infantil por vocação e</p><p>não por acidente no seu percurso gene tico-evolutivo.</p><p>Pode-se também depreender desta genealogia da ca-</p><p>tegoria de infantil que Freud introduziu novamente o trau-</p><p>ma no seu discurso, no final de seu percurso teórico. Con-</p><p>tudo, transformou-se radicalmente o sentido do conceito</p><p>de trauma em psicanálise. Com efeito, se nos primórdios</p><p>da psicanálise o trauma estava identificado com o real da</p><p>sedução, posteriormente o trauma revelaria a dimensão</p><p>sinistra daquela. Se a sedução era erotismo, mesmo que</p><p>esta produzisse efeitos também dolorosos, em seguida se-</p><p>ria apenas dor, sem restos prazerosos. A sedução agora se</p><p>identificaria com o poder da morte, com o excesso</p><p>pulsional que o sujeito não pode absorver pela via</p><p>interpretativa, portanto com aquilo que lhe transborda e</p><p>lhe fragmenta.</p><p>Assim, se a sedução era anteriormente beijo e carícia,</p><p>erotização corpórea do sujeito, agora transmuta-se em</p><p>impacto desconcertante, anunciando a face hedionda da</p><p>29 Freud, S. "Pulsions et destins dês pulsions"(19l5). Em: Freud, S.</p><p>Métapsychologie. Op. cit.</p><p>25</p><p>Joel Birman</p><p>morte. Esta se torna presença pelo esfacelamento corpóreo</p><p>que promove, encharcando o sujeito pelo real da angús-</p><p>tia. A sedução nos reenvia para além daquele beijo, para</p><p>algo que se desloca do calor úmido da carícia para o que</p><p>há de frio e de árido no horror da morte.</p><p>VII -. O INFANTIL, O ACONTECIMENTO E A</p><p>PRESENÇA ABSOLUTA</p><p>Porém isso não é tudo. Algo mais se impõe aqui, que é</p><p>fundamental para definir as relações do sujeito com as</p><p>.ordens do tempo e da história. O trauma e a sedução seri-</p><p>am aquilo que se inscreve num registro temporal muito</p><p>particular, pois não sendo ainda algo da ordem propria-</p><p>mente da história, seriam a condição de possibilidade de</p><p>historicízação para o sujeito. Como acontecimento, o trau-</p><p>ma tem a consistência de uma presença absoluta, que se</p><p>representa permanentemente como compulsão de repeti-</p><p>ção. Esta presença absoluta, como acontecimento, seria</p><p>agora o oposto de uma história. Porém seria aquilo que</p><p>impõe ao sujeito a demanda de se historicizar, única for-</p><p>ma possível que se coloca para este de dominar o aconte-</p><p>cimento traumático. Enfim, a interpretação como traba-</p><p>lho de ligação do traumático seria a possibilidade única</p><p>que resta ao sujeito para historicizar a presença absoluta</p><p>da morte como acontecimento crucial de sua existência.</p><p>Com efeito, inscrevendo-se no território do imóvel</p><p>regulado pelo além do princípio do prazer, paralisado pelo</p><p>fascínio da ordem do inorgânico e pelo encantamento si-</p><p>nistro do Nirvana, o trauma se inscreve agora fora da</p><p>26</p><p>Prefácio</p><p>temporalidade histórica, isto é, na exterioridade do tem-</p><p>po da narrativa e da eternidade do desejo. Como presen-</p><p>ça absoluta, o trauma e a sedução evidenciam a pontuali-</p><p>dade do tempo, posto que é puro acontecimento. Como</p><p>eterno presente, que insiste em se apresentar, o trauma está</p><p>fora da dialétíca da temporalidade histórica, na qual entre o</p><p>passado, o presente e o futuro se forja o tecido intrincado de</p><p>uma história. Por isso mesmo o trauma e a sedução eviden-</p><p>ciam algo que se situa na exterioridade da história, isto é, da</p><p>temporalidade cadenciada do desejo e da narrativa</p><p>concatenada dos acontecimentos.</p><p>Seria isso que delinearia a categoria do infantil no per-</p><p>curso final do discurso freudiano. O infantil como voca-</p><p>ção fundante do sujeito estaria para além da história e da</p><p>dialética temporal do desejo. Porém o infantil seria, por</p><p>isso mesmo, a condição de possibilidade para que o sujei-</p><p>to pudesse constituir uma história e se plasmar pela</p><p>temporalização. Enfim, sem o solo fundante do infantil o</p><p>sujeito estaria fadado à imobilidade produzida pela pleni-</p><p>tude, sem ter qualquer fratura no seu ser que lhe impulsi-</p><p>onasse para a construção de uma história.</p><p>VIII. A LÍNGUA DO INFANTIL</p><p>Nestas passagens pode-se depreender como e onde se</p><p>realizaram os percursos teórico-clínicos dos discípulos de</p><p>Freud e dos analistas pós-freudianos no que concerne ao</p><p>território do infantil. As trilhas, destes e daqueles, foram</p><p>traçadas sempre para surpreender o que existia de sinistro</p><p>27</p><p>Joel Bírman</p><p>no infantil. Para delinear as fronteiras deste território</p><p>apátrida e sem nome, pois situado fora do tempo e da</p><p>história, os psicanalistas foram obrigados a aprofundar os</p><p>enunciados de Freud na direção de um além daquele bei-</p><p>jo. Isso porque o infantil enfeixava agora, nos seus desti-</p><p>nos, impasses e paradoxos, a matéria prima fundamental</p><p>da experiência psicanalítica. A direção da cura psicanalí-</p><p>tica se centrava em constituir destinos possíveis para o</p><p>infantil, de maneira a inscrevê-lo no campo do desejo e</p><p>do erotismo. Seria esta a única forma de transformar a</p><p>substancialidade sinistra do infantil em história, marcan-</p><p>do-o pela dialética da temporalidade. Trata-se, pois, de se</p><p>defrontar com o infantil em estado nascente, para</p><p>transformá-lo nos primórdios de uma história para o su-</p><p>jeito. Como origem, imobilizado pela presença absoluta</p><p>da morte, o infantil seria finalmente a condição de possi-</p><p>bilidade para ofiat lux do sujeito, numa história cadenciada</p><p>pelo desejo.</p><p>Foi nesta trilha de pesquisa que foram empreendidos</p><p>os percursos de Ferenczi no final de sua obra. Realizou-se</p><p>aqui, diga-se de passagem, o que este fez de mais criarivo</p><p>para o conhecimento psicanalítico do sujeito, tanto no</p><p>registro teórico quanto no manejo clínico de situações</p><p>consideradas impossíveis para a comunidade analítica de</p><p>então. É preciso reconhecer aqui não apenas a originali-</p><p>dade do discurso ferencziano frente aos seus contemporâ-</p><p>neos, como também o seu lugar privilegiado para delinear</p><p>o campo da psicanálise na atualidade.</p><p>Isso porque soube captar a seriedade que a questão do</p><p>infantil colocava para a teoria e a clínica psicanalíticas.</p><p>28</p><p>Prefacie</p><p>Reconhecendo, nos anos 1920, a fecundidade teórica das</p><p>novas leituras freudianas sobre o infantil, Ferenczi cons-</p><p>truiu outros conceitos que lhe permitiram seja inventar</p><p>novos procedimentos metodológicos para a experiência</p><p>analítica, seja reinventar em outros termos a versão</p><p>freudiana final sobre o infantil. É justamente aqui que se</p><p>inscreve o Lugar de criador ocupado por Ferenczi na his-</p><p>tória da psicanálise, assim como a sua imensa atualidade.</p><p>No que concerne a isso tudo é sempre o infantil que está</p><p>em questão no seu discurso, sendo esta a sua problemática</p><p>sine qua non.</p><p>Nesta perspectiva, Ferenczi retoma o início do per-</p><p>curso freudiano para inverter o seu sentido, pois agora a</p><p>sedução é uma carícia sinistra e mortífera que lança o</p><p>sujeito no trauma e na angústia do real. Nesta imersão do</p><p>sujeito no caos e no dilaceramento fragmentador, no além</p><p>daquele beijo, é preciso transformar a catarse em neo-</p><p>catarse30. Pela mediação desta atualização transferencial</p><p>o trauma poderia revelar a sua dimensão trágica pára ser</p><p>inscrito numa história. Esta, como qualquer outra histó-</p><p>ria, se faz pela corporeidade e pelo afeto que a escande</p><p>como narrativa. Foi esta retomada do afeto que Ferenczi</p><p>realizou na experiência psicanalítica, fazendo trabalhar a</p><p>hipótese freudiana da pulsão de morte. Com isso, procu-</p><p>rou dar conta do excesso que impregna o psiquismo do</p><p>sujeito, oferecendo trilhas possíveis para o seu desdobra-</p><p>mento e simbolização pela</p><p>neo-catarse. É sempre os des-</p><p>tinos possíveis para este excesso o que está em questão.</p><p>30 Ferenzi, S. "Princípio de relaxamento e neo-catarse" (1930). Em:</p><p>Ferenczi, S. Obras Ccnrtffetas. Volume IV. São Paulo, Martins Fontes, 1992.</p><p>29</p><p>Joeí Birman</p><p>Por isso mesmo, em Confusão de língua entre os adultos</p><p>e a criança pôde contrapor a dita linguagem da ternura à</p><p>linguagem da paixão, para dar conta daquele excesso no</p><p>sujeito que se materializaria como desamparo e fragmen-</p><p>tação psíquicas31. Com efeito, o infante seria marcado</p><p>traumaticamente pelo adulto justamente porque, falando</p><p>a linguagem da ternura, não poderia ter meios para domi-</p><p>nar a linguagem da paixão deste último. Esta seria marcada</p><p>pela perversidade, pela dimensão mortífera da sedução.</p><p>Com isso, se fragmentaria de maneira pulverizante, pois</p><p>buscaria num desmentido silenciar psiquicamente aquilo</p><p>que se evidencia de forma clamorosa no seu corpo, isto é,</p><p>a sedução sinistra de que foi objeto.</p><p>Neste contexto, o sujeito se constitui numa posição</p><p>de "criança sábia", maneira pela qual procura manter de</p><p>maneira idealizada as figuras parentais32. Com isso se ocul-</p><p>tam seus gestos perversos, a sua face torpe e horrenda. A</p><p>raiva provocada pela submissão masoquista e pela mani-</p><p>pulação de que foi objeto conduziria o sujeito para o reco-</p><p>nhecimento da linguagem da paixão. Seria esta a via para</p><p>se dominar o infantil, inscrevendo-o numa temporalidade</p><p>e transformando-o numa narrativa.</p><p>Este infantil por vocação estaria na base do sujeito,</p><p>fundando o seu ser, nos diz literalmente Ferenczi. Seria</p><p>por isso mesmo que qualquer análise de adulto implicará</p><p>sempre na análise do infantil33. Este fala continuamente</p><p>31 Ferenczi, S. "Confusão de língua entre os adultos e a criança" (1933).</p><p>Idem.</p><p>32 Ferenczi, S. "O sonho do bebé sábio". Idem. Volume III,</p><p>33 Ferenczi, S. "Análise de criança com adultos" (1932). Idem. Volume IV.</p><p>30</p><p>Prefácio</p><p>a linguagem da ternura, maneira pela qual o sujeito</p><p>procura salvar a face hedionda das figuras parentais e</p><p>mesmo parodoxalmente de curá-las. O exercício do</p><p>psicanalisar em última instância implicaria, pois, na</p><p>instauração de uma outra linguagem, pela qual se eva-</p><p>porariam o desmentido e a fragmentação, oferecendo</p><p>ao sujeito outros destinos possíveis para o seu excesso e</p><p>desamparo.</p><p>ix, ARCAICO E ORIGINÁRIO</p><p>Foi justamente este eixo teórico-clínico, fundado no</p><p>último Freud e em Ferenczi, que marcou a leitura pós-</p><p>freudiana sobre o infantil, no que esta teve de mais fasci-</p><p>nante e de fecunda. Esta é ainda uma das vias mais ricas</p><p>da psicanálise na atualidade, revelando a sua pujança e o</p><p>seu fôlego inventivo. Ainda hoje se mantém, em suas li-</p><p>nha gerais, esta concepção do psicanalisar.</p><p>Desta maneira, a dimensão estrutural do infantil — o</p><p>infantil por vocação, repito — passaria a revelar a leitura</p><p>do sujeito e marcar as vicissitudes do processo psicana-</p><p>lítico. Não haveria análise sem que o infantil fosse a cai-</p><p>xa de Pandora do psicanalisar, a sua finalidade. Isso se</p><p>evidencia pela obviedade de que, no fundamental, mes-</p><p>mo os oponentes teóricos vão na mesma direção da cura</p><p>psicanalítica. As contradições doutrinárias, no que</p><p>concerne a isso, são secundárias face a esta finalidade es-</p><p>tratégica imposta pelo psicanalisar.</p><p>31</p><p>Joel Bírman</p><p>Assim, se em Melaine Klein o infantil se revela dra-</p><p>maticamente pela posição esquizo-paranóide, que deve</p><p>ser dominada pela lógica da posição depressiva34, o infan-</p><p>til em Winnicott se enuncia de maneira mais suave pelos</p><p>efeitos do espaço transicional e da mãe suficientemente</p><p>boa35. Apesar das diferenças teóricas óbvias nestas con-</p><p>cepções do psicanalisar, é sempre o infantil que está em</p><p>questão para ambos. Isso para me referir à tradição ingle-</p><p>sa da psicanálise em sua face mais fecunda e criativa.</p><p>Contudo, na tradição francesa o infantil se enunciou</p><p>de maneira diferente no discurso psicanalítico, por dife-</p><p>rentes autores. Com efeito, nesta direção de pesquisa a</p><p>categoria do infantil se enunciou pelos conceitos de arcai-</p><p>co e originário em diversos discursos sejam estes de Conrad</p><p>Stein36, de Piera Aulagnier37 e de Jean Laplanche38. Nes-</p><p>te, a concepção do originário se funda na teoria da sedu-</p><p>ção generalizada, maneira pela qual Laplanche funde as</p><p>concepções de Freud e de Ferenczi para fazer a passagem</p><p>para a psicanálise da atualidade.</p><p>s</p><p>E como arcaico e originário que o infantil se apresenta</p><p>ainda na atualidade psicanalítica. Nestes termos, o infan-</p><p>til seria aquilo que se situaria fora da temporalidade do</p><p>desejo e da construção da narrativa histórica, isto é, num</p><p>tempo primordial marcado pela presença absoluta do trau-</p><p>ma e da ameaça flagrante de morte. Neste registro a mor-</p><p>34 Klein, M. Psicanálise da criança. São Paulo, Mestre Jou, 1975.</p><p>35 Winnicott, D. W- Piayingand recduy. London, Penguin Books, 1988.</p><p>36 Stein, C. Venfant imagina/ré. Paris, Denõel, 1971.</p><p>37 Aulagnier, P. La vtolence de 1'interpretatian. Paris, PUF, 1975.</p><p>38 Laplanche, J. NoiweauxfonàemenKfiMThpsydvmaiyx. Paris, PUF, 1987.</p><p>32</p><p>Prefácio</p><p>te seria soberana, na sua absoluta presença que obceca</p><p>completamente o sujeito. O infantil seria aquilo que não</p><p>se fez ainda história, estando colado como presença no</p><p>registro do acontecimento. Como tal o infantil seria do</p><p>registro do mito, daquilo que fala de maneira circular e</p><p>insistente do Mesmo, onde o Outro como alteridade radi-</p><p>cal ainda não se inscreveu pela dialética do presente, do</p><p>passado e do futuro. Porém é evidente que, como mito e</p><p>como origem, o infantil seria a condição do sujeito cons-</p><p>truir uma história, forjando pela ficção uma narrativa ca-</p><p>denciada de seus primórdios.</p><p>Com efeito, o infantil seria então a marca impressa no</p><p>corpo da impossibilidade humana, no seu esforço sempre</p><p>recomeçado para tornar possível o sujeito, que revela a</p><p>finitude humana no seu confronto permanente com a</p><p>morte. Naquela se evidencia contudo a única possibilida-</p><p>de de historização para o sujeito, que de sua incompletude</p><p>será fadado necessariamente à simbolização do seu exces-</p><p>so e de suas intensidades. Desta maneira, poderá aquele</p><p>dominar as marcas de seus traumas que lanham o seu corpo</p><p>frágil e quebradiço, para dar um destino suportável à sua</p><p>vocação para o desamparo.</p><p>X. UM BEIJO, AFINAL DAS CONTAS</p><p>É nesta linha de pesquisa que se inscreve este belo</p><p>livro, escrito a quatro mãos por duas psicanalistas inquie-</p><p>tas com os destinos atuais da psicanálise. Nos nove ensai-</p><p>os que compõem esta obra fecunda de boas ideias, ambas</p><p>33</p><p>Jocl Birman</p><p>procuram retomar, numa linguagem nova, a problemáti-</p><p>ca do infantil na atualidade do campo psicanalítico. Per-</p><p>correndo a trilha teórica que se construiu com Freud e</p><p>Ferenczi, as autoras desdobram a sua reflexão através de</p><p>Lacan, de Winnicott e de Melaine Klein, relançando o</p><p>infantil nos percursos atuais do mundo psicanalítico, e</p><p>procuram introduzir na psicanálise os desenvolvimentos</p><p>atuais da pesquisa científica com bebés, como o trabalho</p><p>de Daniel Stern, e de reflexão filosófica, como o de Gilles</p><p>Deleuze e Félix Guattari, para repensar hoje no estatuto</p><p>do infantil. Evidencia-se assim a riqueza desta obra que</p><p>procura circunscrever o deslocamento cruciai que se ope-</p><p>rou pela psicanálise da "análise da infância ao infantil na</p><p>análise".</p><p>Para a realização deste projeto, entretanto, é preciso</p><p>quebrar com as muralhas que emparedam o campo psica-</p><p>nalítico da atualidade. Com efeito, é preciso ultrapassar a</p><p>casca superficial das diferentes doutrinas, para fazê-las</p><p>dialogar entre si sobre o infantil. Com isso, promover a</p><p>interlocução entre os surdos, permitindo que os mudos</p><p>possam falar entre si de maneira inteligente. As autoras</p><p>revelam a sua grandeza de espírito ao se valerem da ri-</p><p>queza da tradição psicanalítica sem qualquer mesquinha-</p><p>ria e mentalidade de seita, para possibilitarem o diálogo</p><p>de diferentes autores sobre o infantil na psicanálise da</p><p>atualidade. Despidas de preconceitos, fazem Freud dialo-</p><p>gar com Ferenczi, apesar de suas broncas recíprocas. Da</p><p>mesma maneira, fazem ambos dialogarem não apenas com</p><p>os analistas pós-freudianos, mas também</p><p>com a tradição</p><p>científica e filosófica da atualidade. Com isso, Lacan pode</p><p>34</p><p>Prefácio</p><p>retomar o seu diálogo interrompido com Melaine Klein e</p><p>com Winnicott— algo hoje já esquecido—, para relançar</p><p>a problemática do infantil na psicanálise e delinear os des-</p><p>tinos desta na atualidade.</p><p>Porém isso não é tudo. Ainda bem! O debate teórico</p><p>e conceituai não fica preso a si mesmo, ao suposto</p><p>rigorismo da lógica teórica. As autoras pretendem sair do</p><p>suposto rigor da escolástica conceituai, que se revela de</p><p>uma grande esterilidade intelectual; dão um chega para</p><p>lá na infecundidade de certas querelas atuais do campo</p><p>psicanalítico, presas na repetição fatigante dos credos das</p><p>posições doutrinárias. Dizem em surdina: chega de</p><p>masturbação teórica! Assim nos convidam para o verda-</p><p>deiro trabalho intelectual na psicanálise. Ufa! Que alívio</p><p>poder sair desta sopa entediante que tira o gosto agradá-</p><p>vel das boas discussões e nos deixa amargos.</p><p>Para a realização disso as autoras evocam que no cam-</p><p>po psicanalítico a construção conceituai se relaciona com</p><p>o registro da clínica. Este é o segredo de Polichinelo da</p><p>produção intelectual na psicanálise, segredo que os psica-</p><p>nalistas frequentemente esquecem tal a sua obviedade.</p><p>Com efeito, para se mostrar fecunda a retórica dos con-</p><p>ceitos se nutre de seu solo, isto é, de uma reflexão sempre</p><p>recomeçada sobre a experiência psicanalítica. Esta é a</p><p>única possibilidade para a sua renovação, para dar frescor</p><p>aos conceitos e retirá-los da condição cadavérica de enti-</p><p>dades platónicas.</p><p>Desde os tempos heróicos da constituição da psica-</p><p>nálise sempre foi pela via de uma indagação inquieta</p><p>sobre a experiência analítica que a teorização se realizou;</p><p>35</p><p>Joel Birman</p><p>de maneira febril, pois o que interessava aos psicanalistas</p><p>era captar os desdobramentos e as vicissitudes daquela</p><p>experiência seminal. Nas últimas décadas do movimento</p><p>psicanalítico isso foi esquecido e a teorização em psicaná-</p><p>lise se transformou numa retórica estéril. Esta é a razão</p><p>pela qual o discurso psicanalítico se transformou em dife-</p><p>rentes doutrinas rivais, que nas suas mediocridades e</p><p>fundamentalismos não debateram mais entre si, mas se</p><p>digladiam como numa guerra de religiões.</p><p>No Brasil, esta condição pequena do campo psicana-</p><p>lítico atinge o nível do descalabro. Ao perder a ligação</p><p>orgânica com o solo fecundo da experiência, a retórica</p><p>escolástica dos conceitos atinge entre nós os pináculos da</p><p>surrealidade. Com isso, a escolástica psicanalítica se tor-</p><p>na absurda e caricata pois não diz mais nada; transforma-</p><p>se num simples jogo vazio de palavras, completamente</p><p>deserotizado e sem tempero.</p><p>As autoras deste livro nadam contra a corrente, no</p><p>que concerne a isso também. Não são as únicas, eviden-</p><p>temente. Porém engrossam o manancial daqueles que se</p><p>contrapõem a esta hipocrisia de uma parcela significativa</p><p>do campo psicanalítico da atualidade. Para isso, traba-</p><p>lham conceitualmente considerando as suas experiências</p><p>clínicas. Ousam expor as suas experiências psicanalíticas,</p><p>nos seus sucessos e fracassos, para renovar a leitura</p><p>conceituai em psicanálise e possibilitar a interlocução cri-</p><p>ativa entre as diferentes tradições psicanalíticas.</p><p>Para isso é preciso leveza. Vale dizer, é preciso um es-</p><p>pírito desprendido e lúdico. Para se trabalhar com o in-</p><p>fantil em psicanálise, encarando a finitude e o confronto</p><p>36</p><p>Prefácio</p><p>insistente com a morte, necessário é se perguntar sobre o</p><p>brincar na sua banalidade ontológica. É preciso ter hu-</p><p>mildade e grandeza para se reconhecer que esta banalida-</p><p>de não é tão óbvia assim. É por isso que o brincar ocupa</p><p>uma posição estratégica nesta obra não apenas para re-</p><p>pensar o lugar deste método na análise de crianças, mas</p><p>também para inscrevê-lo na análise de adultos. Pode pen-</p><p>sar, pois, na possibilidade de sua inserção no tratamento</p><p>de crianças hospitalizadas.</p><p>Para concluir, é preciso evocar ainda que as questões</p><p>da atualidade, além de serem o solo da experiência psica-</p><p>nalítica, são o outro do debate conceituai. A renovação</p><p>da psicanálise como teoria sempre se realizou pelas vias</p><p>da clínica e da sensibilidade para as questões atuais da</p><p>cultura, sem as quais aquela perde qualquer gosto e inte-</p><p>resse. No que concerne a isso também a obra mostra o</p><p>seu tempero, voltando-se para questões muito atuais, como</p><p>o suicídio de crianças e o impacto da televisão no imagi-</p><p>nário infantil.</p><p>Por tudo isso, em suma, trata-se de um livro renova-</p><p>dor do espírito da psicanálise no Brasil, que nos revela</p><p>que esta começa a entrar na maturidade de maneira deci-</p><p>siva, apesar de seus tropeços inevitáveis. Já era tempo,</p><p>afinal das contas. Ganhamos com isso um beijo, não si-</p><p>nistro, evidentemente.</p><p>Rio de Janeiro, 20 de abril de 1997</p><p>Joel Birman</p><p>37</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>O que leva o psicanalista a escrever? O interesse teórico,</p><p>clínico, o desejo, e mesmo a necessidade de expressar suas</p><p>ideias, compartilhá-las com outros, sair da solidão do con-</p><p>sultório? Um pouco disto tudo e mais ainda, provavelmente.</p><p>A ideia deste livro nasceu da experiência de uma es-</p><p>crita conjunta na qual duas analistas resolveram elaborar</p><p>um trabalho de reflexão sobre um caso clínico. O que nos</p><p>entusiasmou foram, dentre outras coisas — como sempre</p><p>existem muitas—, nossas diferenças, pois nossas práticas clí-</p><p>nicas e origens teóricas são distintas. Uma vem dedicando-</p><p>se ao atendimento de crianças e a outra, à clínica de adultos.</p><p>No entanto, fomos descobrindo em nossas conversas e estu-</p><p>dos que esta diferença, ao invés de nos afastar e dificultar a</p><p>discussão, trazia uma curiosa combinação de pensamentos.</p><p>Desta maneira nasceu um trabalho que buscava es-</p><p>sencialmente uma aliança no interior das diferenças em</p><p>lugar de excluí-las, pois esta é uma das grandes dificulda-</p><p>des da prática analítica. De maneira geral os analistas se</p><p>agrupam pelas semelhanças de suas escolhas e tendem a</p><p>desconsiderar as outras possíveis. Reproduz-se no campo</p><p>psicanalítico a tendência da ciência moderna de colocar-</p><p>se como a única ficção possível, passando a constituir um</p><p>campo de verdade inquestionável e fechando-se às dis-</p><p>cussões e aos diálogos teóricos.</p><p>39</p><p>nta Roza ffEliana Schweler Reis</p><p>Temos todos, inclusive, dificuldade em reconhecer a</p><p>legitimidade de outras práticas terapêuticas, reproduzin-</p><p>do um pouco a preocupação da medicina moderna em</p><p>depurar seu campo de ação para diferenciá-lo do que se-</p><p>ria charlatanismo. O que a medicina faz com o que ela</p><p>chama de "efeito placebo", nós psicanalistas tendemos a</p><p>fazer com as correntes diferentes das que escolhemos.</p><p>Acabamos por nos esquecer que fizemos uma escolha,</p><p>considerando nossa posição como a única verdadeiramen-</p><p>te psic analítica; tomamos as demais como erros e credita-</p><p>mos seus efeitos terapêuticos à incomensurabilidade da</p><p>transferência, ou seja, mera sugestão.</p><p>O que buscamos desfiar ao longo deste livro — atra-</p><p>vessando as diferenças e similitudes conceituais de vários</p><p>autores — é a ideia de que as indagações relativas à aná-</p><p>lise de crianças são fundamentais para a prática da psica-</p><p>nálise, já que o infantil se apresenta no espaço analítico</p><p>como o que não se deixou domar, muitas vezes como o</p><p>inominável, o trauma que impede a organização de senti-</p><p>dos múltiplos que possam se entrelaçar em desejos. Não</p><p>importa, portanto, se o paciente é uma criança ou não,</p><p>importa sim que o analista possa se entegrar com seu ana-</p><p>lisando à aventura de tornar visível o que se oculta, dizível</p><p>o não dito, e mais do que isso, tornar possível a emergên-</p><p>cia de algo que, mesmo estando presente como marca de</p><p>um vivido, não existe como lembrança, não se aproveita</p><p>como experiência, não se enuncia como desejo.</p><p>Falar da análise da infância é falar do infantil na aná-</p><p>lise, é falar do brincar como processo de organização, lin-</p><p>guagem, expressão e complexificação da vida. O que é a</p><p>40</p><p>Introdução</p><p>transferência senão a possibilidade de encenarmos nossos</p><p>teatros próprios, de brincarmos de "esconde-esconde", de</p><p>"mamãe-posso-ir", de "estátua", de "papai e mamãe", de</p><p>"passar anel" e tantos outros. Cada sessão de análise</p><p>põe</p><p>em jogo um novo cenário e uma nova direção que podem</p><p>modificar os antigos roteiros.</p><p>Este livro foi uma forma de brincarmos juntando nos-</p><p>sas histórias, nossa prática clínica, nossas leituras e inte-</p><p>resses teóricos com a intenção de trazer para o texto um</p><p>pouco do prazer que tivemos conversando e discutindo as</p><p>questões e os ternas tratados. O livro é também a continu-</p><p>ação e o desenvolvimento de nossos trabalhos anteriores1.</p><p>Durante sua elaboração procuramos pensar os impasses</p><p>de nossas experiências clínicas. Cada texto resultou do</p><p>que disso compartilhamos. Da análise na infância ao in-</p><p>fantil na análise, de um caso clínico elaborado a quatro</p><p>mãos configurou-se uma parceria na qual tentamos</p><p>aprofundar a reflexão sobre temas que vão desde os clas-</p><p>sicamente psicanalíticos, como sonhos, trauma, jogo, lin-</p><p>guagem, narcisismo e teoria das pulsões, até os que tratam</p><p>de questões polémicas da atualidade, como heterogênese e</p><p>complexidade.</p><p>Esperamos que o resultado deste encontro transmita</p><p>aos leitores alguma coisa deste prazer, pois acreditamos</p><p>que para produzir conhecimento é preciso afetar e se dei-</p><p>xar afetar com intensidade pelo outro e pelo mundo.</p><p>l Trauma e repetição no processo psiccmalítíco: umaobordagem/erencziana,</p><p>dissertação de mestrado em teoria pskanalítica de Eliana Schueler Reis,</p><p>e Quando brincar é dizer: a experiência psicanalíaca na infância, de Eliza</p><p>Santa Roza. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2a ed., 1995.</p><p>41</p><p>DE UMA ANÁLISE NA INFÂNCIA</p><p>AO INFANTIL NA ANÁLISE</p><p>trauma, repetição e diferença em Ferenczi</p><p>Eliana Schueler Reis & Eliza Santa Roza</p><p>Em abril de 1979 uma analista recebeu em seu con-</p><p>sultório um menino de quatro anos, indicado por uma</p><p>colega que havia sido procurada para uma orientação um</p><p>ano antes, ocasião em que Mário—é como vamos chamá-lo</p><p>— perdera sua mãe num acidente de carro. Eis seu relato</p><p>colhido na primeira entrevista com a avó paterna:</p><p>Mário e sua mãe iam à praia, o carro foi fechado por um</p><p>ônibus e, ao desviar-se, atingiu um poste. No impacto, a</p><p>mãe de Mário foi jogada contra o volante mas não ficou</p><p>inconsciente, não teve ferimentos aparentes; foi levada a</p><p>um hospital para exames e lá entrou choque e morreu, em</p><p>consequência de uma hemorragia interna. O menino nada</p><p>sofreu e foi Levado do local do acidente para casa dos avós</p><p>por uma viatura da polícia.</p><p>43</p><p>Elicna ScKucler Reis & Elica Santa Roza</p><p>A partir deste fato uma problemática familiar foi acir-</p><p>rada: sua avó materna, que sempre fora contra o casa-</p><p>mento de seus pais, tendo perdido a única filha mulher,</p><p>passou a acusar o genro — que tinha apenas 21 anos —</p><p>de ter sido o causador da fatalidade pois havia dado um</p><p>carro à esposa; o pai de Mário retornou à casa paterna e</p><p>elegeu seus pais para cuidarem de seu filho, o que desen-</p><p>cadeou uma disputa das famílias por ele. De um lado a</p><p>avó materna jogando-o contra o pai e estimulando as lem-</p><p>branças da mãe (mostrava fotos, levava-o ao cemitério</p><p>para ver o túmulo); de outro a família paterna evitando o</p><p>assunto, adiando a notícia da morte por considerarem-no</p><p>muito pequeno (diziam que a mãe havia viajado), procu-</p><p>rando "aplacar" a dor de Mário com excesso de carinho ,</p><p>presentes e poucos limites.</p><p>Mário tornou-se um verdadeiro "problema": agitado,</p><p>desobediente, provocador. Gritava, quebrava coisas à toa,</p><p>fugia na rua, xingava a todos, corria sem parar. Fazia, se-</p><p>gundo o relato da avó, "todo o tipo de bobagens" em casa</p><p>e na escola. Quando visitava sua avó materna, voltava</p><p>"pior", dizendo "barbaridades" como: "Foi meu pai que</p><p>matou minha mãe".</p><p>No primeiro contato com Mário a analista se deparou</p><p>"ao vivo" com as descrições da avó. Uma criança muito</p><p>agitada, correndo o tempo todo pelo consultório, acen-</p><p>dendo e apagando as luzes, gargalhando, derrubando li-</p><p>vros e papéis, tentando passar cola nos móveis e na roupa</p><p>da analista numa atitude francamente provocativa. Aos</p><p>limites reagia dizendo: "Você não me manda".</p><p>44</p><p>Da análise na infância ao infantil na análise</p><p>Na segunda sessão Mário se apresentou de modo se-</p><p>melhante mas já conseguiu explorar os brinquedos, e deu-</p><p>se o estabelecimento da transferência. Pegou um carri-</p><p>nho vermelho e atirou-o longe, dizendo: "O carro da mi-</p><p>nha mãe era vermelho, eu odeio vermelho". A analista</p><p>lhe disse que devia odiar tudo o que lhe lembrava que</p><p>não tinha mais urna mamãe, e Mário respondeu: "Você é</p><p>mágica? Adivinhou como?"</p><p>Após este breve diálogo Mário retornou à agitação</p><p>e às gargalhadas ante a impossibilidade do adulto de</p><p>limitá-lo; era rápido demais. Pegou o molho de chaves</p><p>na porta, correu para a janela ameaçando atirá-lo, e</p><p>disse: "Agora nunca mais vamos sair daqui, vou ficar a</p><p>vida toda aqui". A analista se aproximou lentamente,</p><p>dizendo que aquilo não iria adiantar, pois teriam que</p><p>se separar em algum momento mas que haveriam mui-</p><p>tos outros encontros entre eles. Ele ouviu, saiu da ja-</p><p>nela e entregou as chaves.</p><p>As sessões subsequentes deram início a uma série de</p><p>jogos Fort-Da: abria e fechava janelas, apagava e acendia</p><p>luzes, destacava papéis, rasgava-os e tentava colar. Em</p><p>algumas sessões seu próprio corpo era objeto: numa delas</p><p>saiu correndo da sala, voltou, foi para o corredor do pré-</p><p>dio. A avó ameaçou dar-lhe palmadas mas não o fez. A</p><p>analista sinalizou o seu desejo de sentir-se protegido con-</p><p>tra si mesmo, pedindo limites, e a avó, compreendendo</p><p>esta fala, virou-se para Mário e lhe deu umas palmadinhas.</p><p>Mário chorou, entrou na sala quietinho, encostou-se no</p><p>corpo da analista e ficaram olhando a rua.</p><p>45</p><p>Eliana Schweler Reii & Elí^a San</p><p>O controle, o desafio, o triunfo, o pedido de limites</p><p>surgiram em quase todas as sessões durante os dois pri- j</p><p>meiros anos de análise. Mário testava a capacidade da</p><p>analista de sobreviver a ele; dela não desviava seu olhar e</p><p>a capturava por inteiro ao tentar estragar coisas, sujar a</p><p>sala, espalhar os livros etc. Numa ocasião falou sobre seu</p><p>medo de monstros. Algo assustador e monstruoso dentro</p><p>dele retornava como fantasia fóbica. Ele próprio se torna-</p><p>ra uma espécie de monstro: criança insuportável e sem li-</p><p>mites. Custava-lhe muito ter que separar-se da analista e</p><p>assim instauraram-se fenómenos transictonais1. Mário leva-</p><p>va pequenos objetos a cada final de sessão e não os largava</p><p>nem para dormir. Ele dizia: "Vou levar seus negócios".</p><p>No começo do terceiro ano de análise ocorreu uma</p><p>mudança substancial em Mário imediatamente após uma</p><p>determinada sessão. Nesta sessão, pediu para ir ao banhei-</p><p>ro logo que chegou. Como demorasse, a analista foi ver o</p><p>que estava havendo e encontrou Mário manipulando o</p><p>extintor de incêndio. Tentou impedir que abrisse a vál-</p><p>vula mas já era tarde. Acionado o extintor, a espuma saía</p><p>em jatos, atingindo a analista e todo o banheiro, enquan-</p><p>to Mário dava gargalhadas. Travaram uma luta corporal</p><p>e em seguida a analista com raiva encerrou a sessão di-</p><p>zendo: "Você passou dos limites. Suma-se daqui. Não</p><p>quero mais lhe ver hoje".</p><p>Espantadíssimo com esta reação Mário perguntou baixi-</p><p>nho: "E na próxima vez, eu venho?" A analista o reassegurou</p><p>do retorno dizendo que o esperava na sessão seguinte.</p><p>l Winnicott, D.W. Pltrçing ara! reality. Londres, Penguin Books, 1988.</p><p>46</p><p>Da análise nu infância ao infantil na análise</p><p>Mário voltou com medo, tímido e assustado. Mas já</p><p>não era mais o mesmo. Propôs uma brincadeira de "cair</p><p>no poço e salvar" que consistia em dividir a sala em regi-</p><p>ões: os poços de jacarés, cobras etc.; cada um na sua vez</p><p>deveria "cair", gritar por socorro e ser salvo. Analista e cri-</p><p>ança alternavam os papéis de vítima e salvador. A dupla so-</p><p>breviveu ao ódio, e disso brincaram durante meses.</p><p>A partir daí a análise transcorreu de forma mais tran-</p><p>quila; Mário passou efetivamente a brincar e falar. Atua-</p><p>va bem menos, estava muito melhor em casa e na escola.</p><p>Aos oito anos quis interromper e aos nove pediu para</p><p>voltar, tendo ficado mais um ano e trabalhado pratica-</p><p>mente uma única temática: o novo casamento de seu pai.</p><p>Quinze anos depois do primeiro encontro de Mário</p><p>com a analista, esta recebe um telefonema seu, pedindo</p><p>um retorno à análise.</p><p>O rapaz está com 19 anos e traz</p><p>queixas de excesso de nervosismo e "descontrole"; dorme</p><p>mal e tem fortes dores no estômago. Briga com a namora-</p><p>da e tem medo de machucá-la.</p><p>Qual a questão fundamental que permeia a vida de</p><p>Mário e que o traz de volta à análise tantos anos depois?</p><p>Embora esta situação suscite a discussão sobre o final de</p><p>análise na infância, este caso, se considerarmos os dados</p><p>referentes à análise atual de Mário, também nos conduz</p><p>ao caminho da problemática do trauma. A partir das con-</p><p>cepções de Ferenczi tentaremos tecer algumas reflexões,</p><p>procurando traçar os elos entre os dois períodos de análise</p><p>deste caso.</p><p>O que vemos inicialmente é uma situação de polari-</p><p>zação, na qual uma família explora a morte da filha (mãe</p><p>47</p><p>Eliana Scliweler Reis & Eliza Santa Ro^a</p><p>de Mário), enquanto a outra evita disso falar. Porém, o</p><p>acontecimento foi negado por ambas e não houve como</p><p>realizar o luto pela morta. Como Mário poderia dar senti-</p><p>do ao seu vivido — o acidente —, se o sentido ficou esfa-</p><p>celado nessas duas versões? Se aderisse à versão dos avós</p><p>maternos, teria que encarar o pai como assassino. Como</p><p>fazer uma identificação com um pai infantil e assassino,</p><p>sem se tornar um monstro?</p><p>Por outro lado, os avós paternos, que foram designa-</p><p>dos por este pai para dele cuidar, não assumiram uma ver-</p><p>são própria, ou seja, "quem cala consente". A Mário res-</p><p>tou a dúvida crucial: Será seu pai o culpado? Ou, o pior</p><p>de tudo, será que o culpado não é ele próprio, Mário?</p><p>O que se passou no imaginário dessas duas famílias,</p><p>girando em torno de um acontecimento dramático? Má-</p><p>rio não podia elaborar sua perda, uma vez que ninguém a</p><p>sua volta pôde fazê-lo. A culpa parecia atravessar a todos,</p><p>não poupando ninguém, Mário tornou-se então o ponto</p><p>de tensão máxima de toda a história. Foi a testemunha</p><p>chave e ao mesmo tempo aquele que não morreu, que</p><p>sobreviveu no lugar do outro. Ele é culpado de viver.</p><p>Mário — "(...) Estou apavorado. Acho que minha na-</p><p>morada está grávida(...) Eu não quero filho, mas e se ela</p><p>fizer um aborto e morrer? Eu vou ser o responsável(...)</p><p>Ai, já estou até vendo, a cadeia, a polícia vindo me pé-</p><p>gar(...) Ai..."</p><p>Analista — "Polícia? O que te lembra polícia?"</p><p>Mário — "Nada(...) Nunca tive nada com a polícia,</p><p>graças a Deus(...) Pêra aí...no acidente, eu fui no carro da</p><p>polícia... só me lembro disso, eu tinha três anos".</p><p>48</p><p>De análise na infância ao infantil nfl análise</p><p>As relações entre a mulher amada, a morte e a culpa</p><p>surgiram nitidamente nesta sessão. A conduta onipoten-</p><p>te da criança transformou-se numa problemática obsessi-</p><p>va na adolescência. Controlado e controlador por sua</p><p>conta, Mário reproduz na atualidade com a namorada o</p><p>amor/ódio da relação com a mãe. Seu medo é de que, tal</p><p>como a mãe, a namorada não sobreviva ao seu ódio, que</p><p>surge na perspectiva da ideia de um filho, Identificação</p><p>com o "pai-assassino"?</p><p>Podemos nos perguntar se a angústia experimentada</p><p>por Mário chega a se delinear como angústia de castra-</p><p>ção. A angústia vivida por toda a família, e da qual Mário</p><p>sempre foi o porta-voz, diz respeito à angústia de separa-</p><p>ção, angústia de morte. Percebemos que através do me-</p><p>canismo da negação, utilizado maciçamente, eles tentam</p><p>escapar da necessidade de afirmar a perda dolorosa, po-</p><p>rém real. Quantas perdas estariam sendo condensadas</p><p>naquele acidente fatal? A hipótese que nos parece mais</p><p>plausível nesse caso é a da auto-clivagem narcísica de</p><p>Mário. Vejamos melhor esta questão.</p><p>Ferenczi, definindo sua nova abordagem sobre a ques-</p><p>tão traumática ligada ao surgimento de angústias</p><p>incontrolãveis e atuações incoercíveis, afirma que a exis-</p><p>tência do trauma torna a criança fixada em certas atitu-</p><p>des obstinadas. "A personalidade ainda fracamente de-</p><p>senvolvida reage ao brusco desprazer não pela defesa, mas</p><p>pela identificação ansiosa e a introjeção daquele que a</p><p>ameaça"2.</p><p>ZFerenczi, S. "Confusão de língua entre os adultos e acriançan(l933).</p><p>Em: Obras Completos. Volume IV. São Paulo, Martins Fontes, 1992,p.l03.</p><p>49</p><p>Scfmeler Reis & Elizo Santa Roca</p><p>Como já assinalamos, a questão da identificação sur-</p><p>ge de modo assustador posto que Mário só pode se identi-</p><p>ficar com um pai acusado da morte de sua mãe e que não</p><p>pôde se desfazer dessa acusação, pois se omitiu e não as-</p><p>sumiu o lugar de pai de seu filho. Mário não teve como</p><p>desenvolver sua capacidade de juízo, já que lhe faltaram</p><p>os elementos para elaborá-la.</p><p>A palavra, o sentido, a significação se apresentavam</p><p>muito comprometidos nessa família. A avó dizia que ia</p><p>dar uma palmada, mas não fazia um gesto efetivo nesse</p><p>sentido, ficando uma palavra vazia. O jogo de Fort-Da,</p><p>que Mário esboçava quando criança, implicava em lan-</p><p>çar a si próprio no abismo. Não havia uma simbolização</p><p>possível da angústia de separação pois estavam todos pre-</p><p>sos a ela tentando negá-la.</p><p>Mário fala de seu carro em praticamente todas as ses-</p><p>sões desde seu retorno à análise. Tem tanto medo de que</p><p>seja roubado que não consegue aproveitar uma festa. Ele</p><p>próprio é seu guardador, tendo que sak da festa inúmeras</p><p>vezes para verificar se o carro continua no lugar em que</p><p>estacionou, se não tem pessoas sentadas em cima dele etc.</p><p>O jogo de Forí-Da que Mário empreendia com o próprio</p><p>corpo na infância é agora deslocado para o carro.</p><p>Mário — "Quando estou na praia, paro o carro num</p><p>lugar que eu possa ver quando subo na onda. O pessoal</p><p>fica me sacaneando, porque às vezes não desço em onda</p><p>boa só para não perder o carro de vista".</p><p>Na verdade, desde o início Mário pareceu ser o único</p><p>do grupo a afirmar a necessidade de elaboração da perda.</p><p>Ao tornar a vida de todos insuportável quando criança,</p><p>50</p><p>Da análise na infanda ao in/tmti! na análise</p><p>ele tentava forçá-los a olhar para o seu drama. De uma</p><p>certa forma, Mário encarnava o papel de "psiquiatra da</p><p>família".</p><p>Este termo foi cunhado por Ferenczi para designar a</p><p>reação da criança a uma experiência que não pode ser</p><p>elaborada pelo grupo familiar, recaindo sobre ela a res-</p><p>ponsabilidade pelo sofrimento dos outros. Esta criança</p><p>sente-se encarregada de "cuidar" dos outros membros da</p><p>família, ficando submetida a um "saber" que não se liga</p><p>aos afetos. Há uma clivagem entre um eu machucado e</p><p>um "eu que tudo sabe e nada sente".3</p><p>Mário era o psiquiatra louco que enlouquecia a famí-</p><p>lia para que ela não se esquecesse de sua história. O pro-</p><p>blema é que ele, como criança, não podia dar sentido aos</p><p>seus afetos e aos dos outros. Desse modo, nada se ligava,</p><p>ficando somente a tentativa desesperada de Mário para</p><p>dar um sentido à perda do objeto (mãe, pai etc.)</p><p>O traumático no caso de Mário não foi o acidente em</p><p>si, mas a impossibilidade de representá-lo segundo um</p><p>código significativo para todos os envolvidos. O acidente</p><p>não encontrou um equivalente simbólico, ficando então</p><p>como puro acontecimento, fixado no seu presente, não</p><p>podendo se tornar passado, memória, e ser esquecido.</p><p>A impossibilidade de fazer ligações ameaça romper</p><p>com o sentido e estabelecer a primazia da pulsão de</p><p>morte. Seus comportamentos de criança terrível apon-</p><p>tavam para isso. Suas atuações no curso da análise atual</p><p>reforçam esta hipótese:</p><p>3 Ferenczi, S. "Análise de Crianças com Adultos"(1932). Em: Obras</p><p>Completas. Volume IV, op. cit., p. 77.</p><p>51</p><p>Elidia Schueler Reis & E\i& Santo Rota</p><p>Mário — "Vou viajar, adoro. As estradas são perigosas</p><p>mas eu ando a HO km por hora, assim me livro delas mais</p><p>rápido e corro menos perigo..."</p><p>Em sua "lógica" consciente Mário atira-se à repeti-</p><p>ção. No terceiro mês desta análise sofre um grave acidente,</p><p>porém mais uma vez não se fere.</p><p>Mário — "Acabei com o carro [descreve o acidente].</p><p>Ninguém sabe como não me machuquei... Foi milagre...</p><p>Foi o destino... Não tenho mesmo que morrer de aciden-</p><p>te de carro!"</p><p>Analista — "E você está tentando? Testando?"</p><p>Mário ri e diz: "A primeira coisa que fiz foi perguntar</p><p>ao meu pai se meu acidente foi igual ao de minha mãe".</p><p>Sabemos que o trabalho de luto normalmente é feito atra-</p><p>vés de uma ligação hiperacentuada com o objeto, para</p><p>então decompô-lo em suas mínimas partes,</p>

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