Logo Passei Direto
Buscar

Canções escolhidas

User badge image
V Nov

em

Material
left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

Prévia do material em texto

<p>Canções escolhidas de Cartola (Angenor de Oliveira) por Renato Cardoso Poliedro AOL Sistema de Ensino Análise de Obras</p><p>Poliedro Sistema de Ensino COLEÇÃO AOL Copyright Poliedro Sistema de Ensino Ltda., 2023. Todos os direitos de edição reservados ao Poliedro Sistema de Ensino Ltda. Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal, Lei n° 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. ISBN 978-65-5613-439-0 Presidente: Nicolau Arbex Sarkis Autoria: Renato Cardoso Gerência editorial: Fabíola Bovo Mendonça Coordenação de projeto editorial: Ana Paula Enes e Juliana Grassmann dos Santos Edição de conteúdo: Marina Ribeiro Candido e Letícia Morais Dantas de Castilho Gerência de design e produção editorial: Ricardo de Gan Braga Coordenação de revisão: Rogério Fernandes Salles Revisão: Anna Carolina Garcia, Flávia Baggio, Talita Pompeu e Barbara Benevides Produção de Textos Coordenação de arte: Leonardo Carvalho Diagramação: Typegraphic Ilustração: João Gabriel Jack Adaptação de projeto gráfico e capa: Leonardo Carvalho Coordenação de licenciamento e iconografia: Leticia Palaria de Castro Rocha Analista de licenciamento: Izilda Canosa Planejamento editorial: Maria Paula Ramos Paes Poliedro Sistema de Ensino Ltda., pesquisou junto às fontes apropriadas a existência de eventuais detentores dos direitos de todos os textos e de todas as imagens presentes nesta obra Em caso de omissão, involuntária, de quaisquer créditos, colocamo-nos à disposição para avaliação e consequentes correção e inserção nas futuras estando, ainda, reservados os direitos referidos no art. 28 da Lei n° Poliedro Sistema de Ensino T. 12 3924-1616 sistemapoliedro.com.br</p><p>Canções escolhidas de Cartola (Angenor de Oliveira) por Renato Cardoso Poliedro AOL Sistema de Ensino Análise de Obras</p><p>Canções escolhidas de Cartola (Angenor de Oliveira) Cartola é exaltado como um dos maiores compositores que a música popular brasileira já teve; contudo, ele ficou cerca de uma década de sua vida longe da música, vivendo de forma empobrecida e sem reconhecimento. Homem negro do Rio de Janeiro que viveu as típicas contradições brasileiras entre cultura, classe e raca, enquanto se consolidou como um ponto de encontro das tradições musicais que nos anos 1970 constituíam a nossa música. As Canções escolhidas analisadas neste material são um recorte de suas mais de 100 músicas registradas, além das que foram perdidas. As canções de Cartola oferecem musical e riqueza poética.</p><p>5 INTRODUÇÃO Depois de ficar anos ausente da vida pública e cul- Só sinto falta dos meus versos tural do Rio de Janeiro, Cartola gravou quatro discos de Da mocidade e do meu violão estúdio como intérprete entre 1974 e 1979. As Canções Que é feito de você. Rio de Janeiro: RCA Victor, 1977. Suporte LP/CD (2m49s). escolhidas fazem parte dessa discografia, com algumas composições compostas pouco tempo antes das grava- Esses versos que fecham a canção Que é feito de ções e outras, em décadas anteriores. Os anos 1960 e você, de Cartola, sintetizam alguns dos principais temas 1970 ofereceram as condições ideais para seu ressurgi- presentes na escrita do compositor na época em que mento e reconhecimento pelo público e pela crítica. Ao passou a gravar as próprias canções como intérprete. A mesmo tempo que representa a origem do samba, como perspectiva de um homem maduro que observa a pró- um dos criadores da escola de samba Estação Primeira pria obra sendo reconhecida já ao fim de sua vida e que de Mangueira, Cartola tinha uma obra de grande com- sente saudades dos versos, da sua juventude e do seu plexidade poética e musical, que dialogava em pé de violão. A reflexão que faz sobre sua juventude revela igualdade com as conquistas da bossa nova e da MPB lições e lembranças de tempos difíceis, mas que já não (Música Popular brasileira), as quais vinham alcançan- voltam mais. Tal revisão do passado transpassa um tom do o auge. Cartola trazia a autenticidade que faltava à melancólico em sua obra. A música representa, tam- classe média branca que ocupava a cena musical no Rio bém, em muitos de seus versos, sua relação com a escola de Janeiro, enquanto fazia canções tão ou mais sofis- de samba Estação Primeira de Mangueira, retratando o ticadas que esses músicos, tratando com excelência os modo como o compositor se coloca no mundo. parâmetros da canção brasileira da época.</p><p>SOBRE 0 AUTOR PEQUENA BIOGRAFIA DO AUTOR Cartola (Angenor de Oliveira) O cantor e compositor Angenor de Oliveira, conhecido como Cartola, nas- ceu em 11 de outubro de 1908, no Rio de Janeiro, e faleceu em 30 de novembro de 1980, na mesma cidade. Angenor de Oliveira foi o primeiro dos oito filhos do casal Sebastião e Aída. Considerava que seu nome era Agenor (sem o n) até que nos anos 1960 descobriu que em sua certidão constava Angenor, passando a usar o nome dessa forma. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal do Brasil, no bairro do Catete. Na infância, mudou-se para o bairro de Laranjeiras. Depois, aos 11 anos de idade, mudou-se para o morro da Mangueira, lugar que ficaria para sempre associado ao seu nome. Ainda na infância, com 8 ou 9 anos de idade, ganhou um cavaquinho Glossário de seu pai e tinha entusiasmo pelos ranchos carnavalescos que desfilavam no bairro de Laranjeiras. Cartola lembra, já mais velho, em um encontro rancho carnavalesco: Agremiação de Carnaval, tipicamente asso- com seu pai, que este cobrava suas lições enquanto dedilhava o violão, ciado à classe média, que fazia um o que gerava confusão na cabeça do garoto, que não sabia se prestava cortejo pelas ruas ao som de mar- cha-rancho, um ritmo mais lento atenção à lição ou às artimanhas musicais do pai. Após falecimento da que o samba, acompanhado de mãe de Cartola, quando ele tinha apenas 17 anos, a relação entre pai e instrumentos de sopro e percus- filho ficou estremecida, culminando no rompimento entre eles. Um dos são. São anteriores às escolas de samba e passam por um declínio principais motivos foi a desaprovação paterna em relação à vida boêmia conforme estas ascendem como e distante dos estudos que o jovem Angenor levava. O pai chegou a se símbolo do Carnaval carioca. mudar da Mangueira, deixando o filho à própria sorte. Trabalho que consiste em manejar uma máquina im- Nessa época, Angenor já havia largado os estudos e passado a traba- pressora de pequenas proporções lhar, primeiro, como tipógrafo e, depois, como pedreiro. Para conservar os para imprimir textos, que ne- cabelos durante o serviço, passou a usar um chapéu-coco, evitando assim cessitava da escolha e da orga- nização dos tipos de fonte que o que o cimento caísse sobre sua cabeça. Foi então que os amigos passaram texto teria, em época anterior ao a chamá-lo de Cartola, apelido que carregou até o fim da vida. Foi nessa advento do computador. época que ele conheceu o amigo Carlos Cachaça (1902-1999), parceiro de boemia com quem viria a compor canções.</p><p>7 A paixão que tinha pelo Carnaval acentuou ainda Cartola. Ele passou por uma melhora nas suas con- mais com sua saída de casa. Em 1925, fez parte do Bloco dições de trabalho e começou a fazer shows, até que dos Arangueiros e, três anos mais tarde, após a reu- abriu o bar-restaurante Zicartola, batizado como uma nião desse bloco com outros que existiam no morro da fusão de seu nome com sua mulher Eusébia Silva do Mangueira, participou da fundação da Estação Primeira Nascimento (1913-2003), a Dona Zica, com quem de Mangueira, em 28 de abril de 1928, a segunda escola permaneceu junto até o fim da de samba do Rio de Janeiro. Em 1932, ocorreu o pri- Zicartola se tornou um efervescente ponto cul- meiro desfile de samba, no qual a Mangueira se consa- tural, no qual se encontravam sambistas do morro e grou com música de sua composição. Tal feito músicos de classe média ligados à bossa nova, além de é cantando por Cartola na canção Sala de recepção. jornalistas e intelectuais. clima boêmio e a boa comi- da chefiada por Dona Zica tornaram o lugar célebre. Foi Tem lá no alto um cruzeiro nesse ambiente que surgiram músicas como O sol nas- Onde fazemos nossas orações cerá e Alvorada. Apesar de sua reputação, o bar fechou E temos orgulho de ser os primeiros campeões após dois anos de existência, por problemas financeiros. Sala de recepção. São Paulo: Discos Marcus Pereira, 1976. Suporte LP/CD (3min24s). A consolidação do reconhecimento artístico de Cartola se deu a partir dos anos 1960, por ter feito parti- Em 1946, contraiu meningite. Na mesma época, cipações especiais em filmes, ter deixado canções grava- saiu do morro da Mangueira. Por cerca de dez anos, das por intérpretes famosos e por ter gravado seus quatro Cartola ficou afastado do mundo da música, sendo álbuns como compositor-intérprete dos anos 1970. Foi considerado por alguns desaparecido e, por outros, um reconhecimento tardio, pois, em 1979, ele descobriu morto. Em 1956, foi encontrado por um jornalista que um câncer que o levou a óbito no ano seguinte. velório o reconheceu e passou a divulgar o ressurgimento de aconteceu na quadra da Estação Primeira de Mangueira.</p><p>8 0 autor e seu período O ressurgimento de Cartola na vida pública musical do Rio de Janeiro nos anos 1970 perpassa um período político turbulento no Brasil. A ditadura militar (1964- -1985) levou à prisão e ao exílio diversos artistas. Os músicos que ficaram tinham que submeter suas músicas à censura prévia. Isso é particularmente sentido no mundo do samba, em que os compositores careciam de meios financeiros para se mudarem com suas famílias para o exterior. A crescente politização dos artistas e músicos impulsionou uma aproximação entre al- guns dos expoentes da bossa nova, como Nara Leão (1942-1989) e Carlinhos Lyra (1933-), com as músicas produzidas e apreciadas pelas camadas mais pobres da população. O samba é um dos focos dessa aproximação, pois reflete aquilo que a classe média de músicos politiza- dos projetava como possibilidade de mudança política: um gênero musical símbolo nacional, cantado por trabalhadores, empobrecidos sob um sistema de exploração capitalista. Vale lembrar que, ao menos desde a década de 1920, os sambistas vendiam suas músicas para os cantores do rádio e empresários, não recebendo nada do retorno comercial que esses sucessos faziam na época. Cartola foi uma das poucas exceções, pois vendia os direitos de suas músicas retendo o crédito da composição, o que tornou possível que algumas de suas canções, dos anos 1930 e 1940, fossem rastreadas posteriormente. Essa aproximação consciente entre músicos da classe média e sambistas se mostra evidente no disco de estreia da Nara Leão, em 1964, em que a cantora grava O Sol nas- cerá, de Cartola e Élton Medeiros (1930-2019), além de canções dos sambistas Zé Keti (1921-1999) e Nelson Cavaquinho (1911-1986). O bar-restaurante Zicartola também foi símbolo dessa aproximação, tendo recebido músicos como Nelson Cavaquinho e Zé Keti; novos sambistas como Paulinho da Viola (1942-) e Élton Medeiros; as cantoras Nara Leão e Elizeth Cardoso (1920-1990); os compositores Tom Jobim (1927-1994) e Dorival Caymmi (1914-2008), entre muitos outros.</p><p>Ao mesmo tempo, Cartola representava para a intelectualidade e para a crítica da época o período de ouro do samba, como um dos fundadores da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Esse expoente de um "tempo perdido", fundador de uma tradi- ção, evocava ao mesmo tempo uma celebração do ressurgimento do compositor e uma ferida profunda de um Brasil que não valoriza suas principais referências culturais. Um exemplo disso foi a dificuldade de convencer as gravadoras da época a realizar um disco de Cartola. Rejeitado pelas principais corporações, coube à gravadora Marcus Pereira apoiar a iniciativa. O disco Cartola (1974) foi um sucesso, tendo recebido prêmios e sendo considerado um dos melhores daquele ano. Tal recepção calorosa impulsionou o próximo álbum, também intitulado Cartola (1976), que fez ainda mais sucesso. De uma perspectiva analítica da linguagem musical, Cartola compunha linhas me- lódicas e harmônicas de grande complexidade, de acordo com o teor expressivo de suas músicas. Suas referências estão mais associadas ao choro, um ritmo irmão do samba, traço perceptível no arranjo e instrumentação dos seus dois primeiros discos de estúdio. Tal ar- cabouço técnico era outro fator de aproximação com os músicos da classe média carioca, que tinham sido amplamente influenciados pelas harmonias da bossa nova. Por outro lado, o modo mais empostado de cantar, a temática melancólica e o ins- trumental de choro remetiam à tradição perdida do samba, que estava fora do circuito comercial dos discos e das grandes apresentações da época. Cartola, portanto, represen- tava a síntese entre a construção de uma narrativa de origem do samba, uma linguagem musical tecnicamente arrojada e uma conciliação do samba com a classe média artística e intelectual da época.</p><p>10 A PRODUÇÃO ARTÍSTICA Obras do autor Algumas composições dos anos 1930: Cartola (1976) Que infeliz sorte (gravado por Francisco As rosas não falam Perdão, meu bem (gravado por Francisco Alves e Cordas de aço Mário Reis) O mundo é um moinho Não faz mal, amor (em parceria com Noel Rosa, Sala de recepção gravado por Francisco Alves) Divina Dama (gravado por Francisco Alves) Verde que te quero rosa (1977) Que é feito de você Discos como intérprete e as Canções escolhidas: Cartola 70 (1979) Cartola (1974) O inverno do meu tempo Alvorada Silêncio de um cipreste Disfarça e chora Sim Aspectos gerais da produção artística do autor Compositor de samba, Cartola tem duas fases bastantes distintas: a época de fundação da escola de samba Estação Primeira de Mangueira e a época do seu ressur- gimento, em que gravou como intérprete as músicas selecionadas para a coletânea Canções escolhidas. Dessa forma, Cartola é um compositor que tem a maior parte de sua obra registrada durante seus últimos anos de vida, o que traz à tona em suas letras a temática da maturidade. Ele fala sobre a finitude da vida, os anos que se passaram, oferece conselhos e advertências aos mais jovens, em geral, em um tom melancólico e sério. Mas é também em sua maturidade que ele encontra o amor, na pessoa de Dona Zica, fazendo, por vezes, a associação de que a vida vale a pena apesar de suas dificuldades. Outra visão contrastante sobre o amor em sua obra é mais distanciada de sua vida pessoal e remete ao modo como a temática do amor sofrido era tratada na década de 1930 nos sambas veiculados pelas rádios e pelos discos. Outra marca de sua poética é a oralidade, transparecida no uso de vocativos, no modo como o eu lírico conversa com o interlocutor de suas letras, na repetição de termos que auxiliam em um melhor ajuste da frase poética com a frase musical, entre outros aspectos. Por fim, vale destacar que algumas das Canções escolhidas são realizadas em parceria com outros compositores, o que nos lembra que Cartola circulava com</p><p>naturalidade na comunidade do samba, sendo bastante reverenciado em sua maturi- dade. Ele reforça esse pertencimento como sambista da Mangueira, utilizando também recursos como a metalinguagem para falar sobre a própria música em suas canções. caráter marcadamente subjetivo com que ele trata seus temas nos deixa adentrar seu universo particular e conhecer um pouco de sua perspectiva como homem negro, trabalhador, companheiro e boêmio. Entretanto, esse mundo subjetivo é envolto de uma elegância única. Cartola consegue falar sobre o sofrimento sem se expor em de- masia, utilizando metáforas e palavras bem colocadas em sintonia com o discurso mu- sical. Esse aspecto de minúcia poética é contrabalançado com as marcas de oralidade notáveis em suas canções, gerando um discurso orgânico e profundo. Isso é evidenciado pelo fato de que Cartola nunca deixou de ser acessível ao seu público principal: sua comunidade de samba, que o canta e que carrega sua memória por todo o Brasil. Aspectos gerais da obra analisada A canção O mundo é um moinho é construída em forma de conselho e advertência a uma interlocutora mulher jovem que busca sair de casa, mas sem a aprovação do pai, representado pela figura do eu lírico. eu lírico está apontando a incompatibilidade da interlocutora, imatura, em lidar com um mundo cruel, discurso este contextualizado em uma clara relação intergeracional entre pai e filha. Uma interpretação bastante popular, mas não fundamentada, entende que Cartola se dirigia a sua filha de criação Creusa, quando esta era jovem e queria sair de casa. Entretanto, Cartola fez essa música quando Creusa estava com quarenta e poucos anos de idade e a relação entre eles era saudável o bastante para que ela cantasse em seus discos. Mesmo considerando que Cartola havia criado essa circunstância fictícia e que nos anos 1970 não tinha essa relação de interpelação e rompimento com nenhuma filha jovem, a música não perde em nada seu vigor. Ao escutar a música, é possível notar que a primeira estrofe representa em várias palavras a transitoriedade da situação da interlocutora, descrita como em um momento de impulsivi- dade. É marcante como o compositor consegue esse efeito de forma tão concisa, em apenas quatro versos. As três estrofes seguintes iniciam com uma fala imperativa, seguida de um vocativo que denota afeto: "Presta atenção, querida" na segunda e terceira estrofes, e "Ouça- -me bem, amor" na segunda estrofe. Embora os três versos tenham construção poética similar, o segundo verso compõe a parte A da canção, enquanto o terceiro e o quarto verso compõem a parte B, já que são construídos com melodia e harmonia diferentes. Nas duas estrofes finais, o autor atribui a imprudência da interlocutora ao seu desco- nhecimento do mundo, enfatizando que "o mundo é um moinho" metáfora que indica que ele "vai triturar teus sonhos", "vai reduzir as ilusões a pó". Podemos entender essa metáfora em um âmbito mais prolongado da ação de "triturar sonhos", pois o mundo pode fazê-lo continuamente, como um moinho sempre em movimento. Não se trata, portanto, de buscar evitar que a interlocutora se decepcione ou se machuque com o mundo, mas de</p><p>12 alertá-la de que o mundo é cruel e vai promover sofrimentos até transformá-la em uma pessoa cínica. Porém, nem tudo nessa ação é atribuído ao mundo, pois ela também terá parte em sua própria desventura, herdando o cinismo de suas relações amorosas e findan- do em um "abismo que cavaste com teus pés". Ao mesmo tempo que a letra da canção é construída de modo meticuloso e conci- so, ela apresenta também recursos da oralidade, o que aproxima a mensagem do ouvin- te e a torna, paradoxalmente, mais complexa. Vamos analisar o emprego de diferentes tempos verbais na canção. Principais ocorrências verbais: "começaste" - pessoa do singular, pretérito perfeito do indicativo. "anuncias" - pessoa do singular, presente do indicativo. "irás" - pessoa do singular, futuro do presente do indicativo. "preste", "ouça" - pessoa do singular, imperativo afirmativo. "herdarás" - pessoa do singular, futuro do presente do indicativo. "notares" - pessoa do singular, futuro do subjuntivo. "estás" - pessoa do singular, presente do indicativo. "cavaste" - pessoa do singular, pretérito perfeito do indicativo.</p><p>13 compositor usa a segunda pessoa do singular Já na canção Disfarça e chora, o eu lírico também em "mal começaste", "anuncias", Interessante se dirige a uma interlocutora mulher, dessa vez com o notar que as ações assim descritas dizem respeito às tratamento do vocativo triste senhora", que indi- da interlocutora. eu lírico tem respeito e solenida- ca o afeto observado pelo eu lírico. Ele trata a inter- de às suas ações ao mesmo tempo em que coloca o locutora dignamente, enquanto revela a ela que sua peso delas na balança. Ele retoma a segunda pessoa situação não poderia ter outro fim, que ela deveria se do singular no segundo verso da última estrofe, no contentar com seu sofrimento e seguir adiante. tempo futuro, com "herdarás"; e no terceiro verso da uso do imperativo afirmativo nos versos que última estrofe, em "notares", implicando as consequ- abrem a canção, "Chora, disfarça e chora", vem em ências da ação de sua interlocutora. A estrofe final forma de conselho, de orientação. contexto em que merece uma análise verbal mais atenta, na medida a ação ocorre é descrito de modo sutil e recorrente em que inclui uma mistura de tratamentos típicos da ao longo da canção: a senhora está em um ensaio da oralidade. Imperativo afirmativo, segunda pessoa do escola de samba, no fim da madrugada, perto do raiar singular no futuro, no presente, e no preté- do sol, escutando um samba triste, enquanto vê a pes- rito, "cavaste". soa em que estava interessada sair com outra. Nesse</p><p>14 sentido, "a do lamento" refere-se à canção triste, ao passo que os termos "a auro- ra" e "antes mesmo de raiar dia" indicam que está amanhecendo e que o baile está chegando ao fim. A palavra "ensaio", no contexto da comunidade de samba da qual Cartola fazia parte, remete ao ensaio de escola de samba, prática corrente durante a preparação para os desfiles de Carnaval. Um aspecto particular dessa mensagem em forma de conselho escrita por Cartola é que ela parece sugerir duas coisas opostas. A primeira é que o choro em local públi- CO deve ser disfarçado, para evitar à senhora maiores constrangimentos. A segunda é que seu pranto cai "no momento mais certo", que é quando ela se sente rejeitada pela "pessoa que tanto querias". Essa aparente oposição é resolvida quando se pensa que uma ação ocorre externamente, em público, enquanto a outra ocorre em priva- do. Disfarçar o choro poderia ser entendido como "esconde" ou "engole" o choro, não fosse a reiteração feita no primeiro verso da estrofe inicial "chora, disfarça e chora" -, no qual o eu lírico incentiva que a expressão da emoção seja feita de ma- neira discreta. Em nenhum momento há uma referência ou solicitação ao "não sofri- mento". que autor parece sugerir é um decoro para o sofrimento, um modo digno e socialmente aceito para sofrer. Isso é ainda mais evidente quando consideramos outras músicas de sua produção. modo como o compositor retrata o sofrimento e o pesar nunca o expõe em demasia, havendo uma espécie de distinção entre o seu ser poeta e sua verdadeira subjetividade e história de vida. Outro recurso linguístico que vale destaque na canção é o contraste entre longe e perto, no verso "gostar só de longe/não faz ninguém chegar perto". Ambos apontam para uma ação infrutífera e sugerem que ela deve seguir adiante. Outra interpretação pode ser dada para "olhar, gostar só de longe", no sentido de que o próprio eu lírico também é um observador da situação. Em outras palavras, ele observa uma mulher que observa um casal indo embora juntos. Em sua outra canção, As rosas não falam, o autor trata do término doloroso de uma relação amorosa, narrada em primeira pessoa. A interlocutora do eu lírico é a pessoa amada, a qual ele se dirige de forma cerimoniosa, formal e metafórica. As estrofes são estruturadas de quatro em quatro versos, de forma que o segundo e o terceiro rimem entre si. Assim temos: "coração"/ "verão"; "falam"/"exalam"; Além disso, Cartola rima o último verso da primeira estrofe com o primeiro verso da segunda estrofe. Na segunda estrofe, ele rima o primeiro verso com o quarto: Outro recurso poético intercalado com essas rimas é a utilização de versos mais curtos ao final de cada estrofe. Excetuando-se esses versos mais curtos, a canção é</p><p>15 estruturada em ou seja, versos de dez sílabas poéticas. Essa métrica se encontra sempre no segundo e no terceiro verso de cada estrofe, estando também presente no quarto verso da terceira estrofe: O/ per/ fu/ me/ que/ rou/ bam/ de/ ti/ ai/ Nesse verso, o eu lírico adiciona o vocativo "ai" indicando exaltação, sofrimento por amor, e formalmente completando o verso decassílabo que, de outra forma, teria apenas nove sílabas poéticas. A grande metáfora da canção gira em torno da figura das rosas, que simbolizam o amor e a mulher amada. Quando ele diz "queixo-me às rosas", está se queixando tam- bém para a mulher amada sobre sua situação de um sujeito abandonado pelo amor. Outros termos que circundam essa metáfora são o "perfume" das rosas, "jardim" e a menção a uma estação do ano, o "verão".</p><p>16 Sim (Cartola e Oswaldo Martins) Sim Deve haver o perdão Para mim Senão nem sei qual será meu fim Para ter uma companheira Até promessas fiz Consegui um grande amor Mas eu não fui feliz E com raiva para os céus Os braços levantei Blasfemei Hoje todos são contra mim Todos erram neste mundo Não há exceção Quando voltam à realidade Conseguem perdão Porque é que eu, Senhor Que errei pela vez primeira Passo tantos dissabores E luto contra a humanidade inteira? CARTOLA; MARTINS, Oswaldo. Disfarça e chora. Discos Marcus Pereira, 1974. Suporte LP/CD Essa canção de amor e penar é escrita em primeira pessoa, com o eu lírico na situação de alguém que errou e sofreu as consequências, querendo, por fim, ser absolvido. Logo no primeiro verso, somos apresentados a sua situação ou dilema: ele quer ser perdoado, caso contrário não sabe o que será dele. Esse dilema será retomado ao longo da canção. eu lírico argumenta que outras pessoas "conseguem perdão" e que ele, que errou "pela vez primeira", ainda "luto contra a humanidade inteira". potencial exagero com o qual o personagem encara sua situação revela antes de tudo seu desespero pela absolvição. É como sua última tentativa de achar uma solução para esse dilema moral. Esse tipo de canção de autocomiseração, também conhecida como alguém que "está na fossa", era bastante comum no início da carreira de Cartola e por toda era de ouro do rádio até os anos 1950. Gravar canções assim nos anos 1970 é uma herança dessa tradição. A respeito de determinar mais especificamente qual foi seu erro, a segunda e a terceira estrofe oferecem poucos detalhes, resguardando o eu lírico da própria intimidade, mantendo um distanciamento poético na narração dos eventos. que o eu lírico nos conta na segunda estrofe é que até já viveu um grande amor, mas ainda assim não foi feliz. A terceira estrofe nos mostra a consequência de seu descontrole, mas não a situação específica que a desencadeou (como uma traição, uma discussão ou um abandono). Isso nos leva a crer que o grande erro do eu lírico se deu na sua reação à situação, que blasfemou contra Deus ou alguma entidade sa- grada, configurando-se assim como uma pessoa destemperada. Ainda assim, na última estrofe ele se dirige por</p><p>17 meio de vocativo ao "Senhor", a quem recorre nesse que todos erram e devem ser perdoados. argumento momento de súplica. se coloca da seguinte maneira: se todos erram e são Em termos poéticos, Cartola nos apresenta o di- perdoados e eu errei, logo devo também ser perdoado. lema contrapondo frases afirmativas e negativas. São Em Cordas de aço, canção narrada em primeira exemplos dessa construção: "Sim/ Deve haver o per- pessoa, o eu lírico conta para seu violão de forma bas- dão" com "Senão nem sei"; e "Consegui um grande tante convicta e esperançosa seu plano de conquistar amor" com "mas eu não fui Apenas a estrofe a mulher amada. Considerando que se trata de uma final é formulada de forma interrogativa, como se o canção, as diversas referências de Cartola ao violão eu lírico transferisse para um poder maior a decisão são feitas pelo recurso da metalinguagem. de seu destino. Isso nos remete a um discurso retórico, A música fala sobre a própria música nas refe- no qual o eu lírico tenta nos convencer de sua causa, rências ao instrumento, tais como "cordas de aço", elaborando seus argumentos, de forma a evidenciar "minúsculo braço", "meus dedos acariciam", "som da</p><p>18 madeira", "cantando". São tantas referências que elas estruturam a lógica do discurso. Sendo o violão um instrumento musical de cordas dedilhadas, en- cordoado com cordas de nylon ou de aço, Cartola descreve a ação de tanger as cordas de aço enquanto os dedos "acariciam" as cordas no braço, ou seja, pressionam as cordas com a mão esquerda, gerando acordes e melodias. Outras referências se dão à materialidade do instrumento, como "bojo" se referindo ao corpo ou caixa de ressonância do violão e "pinho" se referindo à madeira com que comumente se constrói o tampo do instrumento, que é que produz seu som a partir da ação das cordas que vibram. De todas essas especi- ficidades, a que completa definitivamente o uso da metalinguagem na canção é a palavra final "cantando", em que inclui a companheira, aceitando seu amado, participando da ação conjunta entre os três personagens: eu lírico, o violão e a companheira, juntos, cantando. A intimidade entre o tocador e o violão é outro aspecto central da can- ção, pois o violão é poeticamente reconhecido como um instrumento que se toca junto ao peito, junto ao coração, morada dos sentimentos. modo de segurar o instrumento o coloca em contato com o tórax, gerando essa associa- ção poética. Na canção, não apenas o violão é cúmplice desses sentimentos, mas ele também "compreende porque perdi toda alegria" ao presenciar o eu lírico sofrer por amor, ou seja, há um aspecto de entendimento, um aspecto cognitivo, pois o violão - - e por associação a música possibilita a compreen- são das razões do sentimento. A canção Inverno do meu tempo bem como as canções Que é feito de você e Silêncio de um cipreste tratam do tema da maturidade, pelo olhar de um com- positor experiente e em idade avançada, lançadas próximas à época do seu adoecimento. A expressão "inverno do meu tempo" é uma metáfora ao envelhecimento, sen- do o inverno uma referência ao ocaso, ao fim. compositor faz essa metáfora na primeira estrofe com referências à natureza, como "alvorada" e "folhas a voar". Os termos "brotar" e "minar" apresentam um sentido poético colocados em sequên- cia. "Brotar" significa iniciar, ter origem, enquanto "minar" significa, na forma in- transitiva, propagar-se, espalhar-se, mas também no sentido figurado como corroer, debilitar. Ao mesmo tempo em que marca o início da velhice com "brotar", esse é início do fim da vida, representado por "minar". Outro fator típico da reflexão sobre a passagem do tempo se encontra na segunda estrofe, com "no passado estão presentes", fazendo um jogo de palavras com diferentes tempos. Em Inverno do meu tempo, o eu lírico envelhecido rememora um relacionamento amoroso difícil. É por isso que o eu lírico não sente saudade, pois é na velhice que encontrou seu grande amor e ambos conseguiram ter paz. Esse tipo de reflexão tem um óbvio paralelo com a biografia de Cartola, que passou a se relacionar com Dona Zica após quase uma década de doença, pobreza e distância da vida pública.</p><p>19 reencontro com a carreira musical se deu em consonância com esse novo impul- SO em sua vida amorosa, representado à época pelo bar-restaurante Zicartola. Na canção, o eu lírico inicia falando sobre si mesmo, na primeira pessoa do sin- gular, e transita na terceira estrofe para a primeira pessoa do plural, incluindo sua amada na narrativa. Essa transição entre o "eu" e o é evidenciada na letra e ressaltada pelo arranjo da canção na gravação do seu disco. Em termos de versifica- ção, o eu lírico declara "Eu tenho paz" ao final da segunda estrofe, como conclusão da reflexão individual que acabou de fazer, e inicia a estrofe seguinte com "e ela tem paz", configurando um uso conciso da epístrofe, figura de linguagem que consiste na repetição de uma mesma palavra no fim de versos sucessivos. Na narrativa, ele passa então do "eu" para o "ela" e encerra com "nossas vidas", construindo nos versos o encontro entre ele e a amada.</p><p>20 Que é feito de você Cambaleando quase cai, não cai (Cartola) Pés inchados, passos em falso O olhar embaçado O que é feito de você, ó, minha mocidade? Nenhum amigo ao meu lado minha força, a minha vivacidade? Não há por mim compaixão O que é feito dos meus versos e do meu violão? A tudo assistindo Troquei-os sem sentir por um simples bastão A ingratidão resistindo E hoje quando passo a gurizada pasma Só sinto falta dos meus versos Horrorizada como quem vê um fantasma Da mocidade e do meu violão E um esqueleto humano assim vai CARTOLA. Que é feito de você. Rio de Janeiro: RCA Victor, 1977 Suporte LP/CD</p><p>21 A canção inicia de forma interrogativa, dirigindo-se por meio de vocativos à juventude do próprio eu lírico. Há o uso da metalinguagem com as palavras "versos" e "violão", as quais aparecem na primeira e na última estrofe. Eles re- presentam a própria música e nos indicam uma reflexão do compositor sobre seu afastamento do ambiente da música, simbolizado na sua vida pela relação com os desfiles da escola de samba. Tal reflexão é vista na palavra "bastão", que pode significar tanto um bastão de mestre de cerimônias, considerando sua posição honorária na Mangueira, como uma bengala, objeto que auxilia na mobilidade. Cartola utiliza palavras que remetem à juventude como "mocidade" e "guri- zada" enquanto se refere a si mesmo como um "fantasma", um "esqueleto huma- no" "cambaleando". Como ele próprio é o narrador do seu envelhecimento, tais formas de descrever assim mesmo ocorrem na chave da autodepreciação irônica, como "quase cai, não cai", pois, mesmo nessa condição, o eu lírico ainda está resistindo ao fim de sua vivacidade. As rimas das duas primeiras estrofes seguem a estrutura AA BB. A última estrofe segue uma estrutura mais livre, com rimas em versos sucessivos como "embaçado" e "lado"; "assistindo" e "resistindo", junto a outras terminações mais livres. Silêncio de um cipreste (Cartola e Carlos Cachaça) Todo mundo tem o direito De viver cantando O meu único defeito É viver pensando Em que não realizei E é difícil realizar Se eu pudesse dar um jeito Mudaria meu pensar pensamento é uma folha desprendida Do galho de nossas vidas Que vento leva e conduz É uma luz vacilante e cega É o silêncio do cipreste Escoltado pela cruz CACHAÇA, Carlos. Silêncio de um cipreste. Rio de Janeiro: RCA Victor, 2008. Suporte CD</p><p>22 Essa é uma reflexão da maturidade sobre o silêncio e a introspecção. Cartola contrapõe o cantar com o pensar. Nesse sentido, a palavra "silêncio" é um recurso de metalinguagem, pois também se refere ao silêncio musical, ou à ausência de música, de estar cantando. A palavra "cipreste" pode ter algumas conotações no contexto da canção. Ela é primeiro relacionada ao pensamento, à introspecção que se faz na velhice, período no qual se costuma fazer uma análise do próprio pas- sado. Também é possível entender o "cipreste" como uma árvore antiga, fazendo alusão à própria velhice do compositor. Por último, um significado religioso, no qual o cipreste é associado à cruz de Cristo, relacionando a velhice à proximidade da morte com a paixão de Cristo. A expressão "silêncio de um cipreste" usa o recurso da aliteração, usando da repetição do som consonantal "s". Na estrofe final da canção, esse recurso é usado extensamente. É uma luz vacilante e cega É silêncio do cipreste coltado pela cruz Do ponto de vista formal, a composição é estruturada como um soneto, com quatro estrofes, sendo dois quartetos e dois tercetos. Essa estruturação é pouco comum em canções da música brasileira, pois se atém mais a uma métrica literária do que musical. Assim, como uma forma fixa, é mais desafiador ao compositor encaixá-la em uma métrica musical. A canção Sala de recepção é uma homenagem de Cartola à sua escola de samba do coração, a Estação Primeira de Mangueira, da qual foi um dos fundadores. Para a gravação da versão em seu disco autoral, ele contou com a participação de sua filha de criação, Creusa, a qual cantou os versos alternadamente com ele. Composta em tercetos, o eu lírico se dirige à Mangueira, entendida tanto como Escola de Samba quanto como a comunidade do morro da Mangueira. Dessa for- ma, ele associa os problemas sociais que observa com a existência desse patrimô- nio do samba e a relação que se estabelece para a vida das pessoas no morro. A questão presente no início da canção, que utiliza o vocativo "Mangueira", indaga como pessoas simples e pobres podem cantar felizes. A segunda estrofe é uma resposta a essa pergunta. Dessa forma, a decisão artística de ter outra intér- prete cantando essa parte é justificada. Quem responde é uma pessoa representan- do a comunidade da Mangueira. Não é a escola que responde, tampouco um ente que simboliza a comunidade, mas uma pessoa, que fala em confirmando o senso de coletividade. Se na estrofe de abertura o eu lírico recorre à figura do Sol, na resposta vemos a figura da noite e da "lua prateada". Destaque também para o trecho "silenciosa, ouve as nossas canções", fazendo um contraste entre música e silêncio, mostrando que os astros reverenciam a música que é feita ali.</p><p>23 Alvorada também fala sobre a relação do compo- A terceira estrofe evidencia o cunho religioso des- sitor com a comunidade de samba da Mangueira. A sa comunidade ao mesmo tempo que homenageia o fato de a Mangueira ter sido a primeira do primeira estrofe, ao contrário da canção Sala de recep- ção, retrata um cenário idealizado em que o morro da Carnaval do Rio de Janeiro, em 1932. Essa associa- Mangueira é uma comunidade abençoada, "ninguém ção simboliza um certo destino divino de a escola ser chora, não há tristeza", e caracterizada por uma beleza grandiosa, pois até então, na letra, vemos que ela é natural, como em "a natureza sorrindo". favorecida pelos astros celestiais e pela religião cristã.</p><p>24 A segunda estrofe se converte em uma letra de amor, quando o eu lírico compara a amada à alvorada na Mangueira. A metáfora se completa quando ele comenta que ela ilumina os caminhos sem vida. A pessoa ama- da ilumina sua vida, tal qual a alvorada ilumina o morro da Mangueira. eu lírico ainda ressalta que, sem a pessoa amada, estaria "sem vida", com "pouco ou quase nada", "vagando, nesta estrada perdida", ou seja, estaria sem rumo e infeliz. Composta em duas estrofes de cinco versos cada, essa canção de apa- rente simplicidade formal une de maneira magistral dois dos mais impor- tantes temas na vida de Cartola: a Mangueira e o amor, sem deixar de fazer uma menção passageira ao pessimismo de uma existência vazia sem elas.</p><p>25 QUESTÕES 1. Meu sangue jorra das veias - 2019 E tinge um tapete Apesar de o processo de abolição ter culminado, Pra ela sambar em 1888, com a libertação dos escravizados, o racis- É a realeza dos bambas mo permaneceu com presença constante na história Que quer se mostrar do Brasil, conforme pode-se observar neste texto de Soberba, garbosa 1894, escrito por Nina Rodrigues: Minha escola é um cata-vento a girar É verde, é rosa A civilização ariana está representada no Brasil por Oh, abre alas pra mangueira passar uma fraca minoria da raça branca a quem ficou en- cargo de defendê-la, não só contra os atos antissociais BUARQUE, C.; H. B. Chico Buarque de Mangueira. os crimes de seus próprios representantes, como ain- Marola Edições Músicas Ltda. BMG. da contra os atos antissociais das raças inferiores. TEXTO II I. No combate a tradições culturais, como a capoei- Quando a escola de samba entra na Marquês de ra e várias formas de religiosidades africanas, que Sapucaí, a plateia delira, o coração dos componentes foram criminalizadas pelo código penal de 1890. bate mais forte e o que vale é a emoção. Mas, para II. Nos processos de reurbanização que desalojavam que esse verdadeiro espetáculo entre em cena, por trás famílias na maioria negras dos centros das cida- da cortina de fumaça dos fogos de artifício, existe um des, onde habitavam, muitas vezes, nos cortiços. verdadeiro batalhão de alegria: são costureiras, adere- III. Na organização de agremiações, exclusivamente, cistas, diretores de ala e de harmonia, pesquisador de brancas, como a Escola de Samba Estação Primei- enredo e uma infinidade de profissionais que garantem ra de Mangueira. que tudo esteja perfeito na hora do desfile. M.; MACEDO, G. espetáculo dos Revista Assinale a alternativa correta. de Carnaval 2010. Mangueira. Rio de Janeiro: Estação Primeira de A Somente as afirmativas I e III são verdadeiras. Mangueira, 2010. B Somente as afirmativas I e II são verdadeiras. Ambos os textos exaltam o brilho, a beleza, a tradição C Somente a afirmativa I é verdadeira. e o compromisso dos dirigentes e de todos os com- D Somente a afirmativa II é verdadeira. ponentes com a escola de samba Estação Primeira de E Todas as afirmativas são corretas. Mangueira. Uma das diferenças que se estabelece en- tre os textos é que: 2. Enem PPL 2010 A o artigo jornalístico cumpre a função de transmitir TEXTO I emoções e sensações, mais do que a letra de música. B a letra de música privilegia a função social de Chão de esmeralda municar a seu público a crítica em relação ao sam- Me sinto pisando ba e aos sambistas. Um chão de esmeraldas C a linguagem poética, no Texto I, valoriza imagens Quando levo meu coração metafóricas e a própria escola, enquanto a lingua- À Mangueira gem, no Texto II, cumpre a função de informar e Sob uma chuva de rosas envolver o leitor.</p><p>26 D ao associar esmeraldas e rosas às cores da escola, o figura-síntese da música popular brasileira do sécu- Texto I acende a rivalidade entre escolas de sam- lo 20, ao protagonizar momentos fundamentais de ba, enquanto o Texto II é neutro. sua história e fazer a ponte entre diferentes gerações E o Texto I sugere a riqueza material da Mangueira, e movimentos." enquanto o Texto II destaca o trabalho na escola CALIL, Ricardo. Ciência e arte: documentário mostra a trajetória do compositor Cartola, mestre do samba melancólico cultuado por de samba. diferentes gerações de músicos e intérpretes. In: São Paulo: Editora Abril, Ano 10, n. 116, abr. 2007, p. 70. 3. Fuvest-SP 2007 Com base no texto e nos conhecimentos sobre a cul- Leia o trecho de uma canção de Cartola, tal como re- tura nacional, considere as afirmativas a seguir: gistrado em gravação do autor: 1. O encontro do cinema brasileiro com a energia de música popular remete a essa busca permanente [...] de compreender a assimilação da diversidade Ouça-me bem, amor, cial nacional pelas diferentes linguagens da produ- Preste atenção, mundo é um moinho, ção cultural. Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos, 2. No texto, paralelo entre o sucesso do documen- Vai reduzir as ilusões a pó. tário "Vinicius" e o êxito do filme "2 Filhos de Francisco", de estilos estéticos completamente di- Preste atenção, querida, ferentes, destaca o mau gosto da maioria da popula- De cada amor tu herdarás só o cinismo ção brasileira, resultando da ausência de um padrão Quando notares, estás à beira do abismo aceitável de educação cultural. Abismo que cavaste com teus pés. 3. esforço em vincular a identidade nacional ao Cartola "O mundo é um moinho". Carnaval, em que as músicas do samba eram disse- A Na primeira estrofe, há uma metáfora que se desdo- minadas pelo país afora com o apoio dos meios de bra em duas. Explique o sentido dessas metáforas. comunicação social de massa, fazia parte de uma B Como o autor viesse a optar pelo uso sistemático estratégia inserida no projeto de nacionalização da da segunda pessoa do singular, precisaria alterar sociedade brasileira. algumas formas verbais. Indique essas formas e as 4. A alusão ao documentário do sambista Cartola respectivas alterações. exemplifica o encontro de estilos musicais que se constituiu em referência da produção cultural bra- 4. UFPR 2008 sileira, ou seja, a sensibilidade permissiva à mescla "O cinema brasileiro sempre buscou parte da sua que combina erudição musical e poesia popular. energia na música popular. Das chanchadas da Assinale a alternativa correta. Atlânticas, que levaram para as telas os sucessos do A Somente as afirmativas 1 e 2 são verdadeiras. rádio e do Carnaval [...]. De (2005), o do- B Somente as afirmativas 1 e 4 são verdadeiras. cumentário nacional mais visto em todos os tempos, C Somente as afirmativas 2 e 3 são verdadeiras. a '2 Filhos de Francisco'(200 maior sucesso da D Somente as afirmativas 1, 3 e 4 são verdadeiras. chamada fase de 'retomada'. Nessa longa e muitas E Somente as afirmativas 2, 3 e 4 são verdadeiras. vezes bem-sucedida relação, 'Cartola', documen- tário sobre o sambista carioca Agenor de Oliveira 5. UEPG-PR 2008 (1908-1980), promete ocupar posição de destaque. Sobre a música popular brasileira, assinale o que for [...] O filme defende a ideia de que Cartola foi uma correto.</p><p>27 01. O Ato Institucional n° 5 atingiu apenas alguns se- música popular brasileira se renova, rejeitando com- tores da sociedade. A música e o cinema tiveram positores tradicionais como Nelson do Cavaquinho, oportunidade de expressão e divulgação. Adoniram Barbosa e Cartola. 02. A ditadura militar encontrou a cultura brasileira numa fase de grande agitação. Movimentos esté- 6. As composições de Cartola são caracterizadas ticos e políticos, como o Tropicalismo, liderado, por linhas melódicas e harmônicas de grande comple- entre outros, pelos compositores Gilberto Gil xidade. Há uma referência musical muito presente, e Caetano Veloso, propunham uma nova leitura e qual seria ela? Justifique sua resposta. uma interpretação crítica do país. 04. Os anos do governo Médici corresponderam, no 7. Acerca da produção artística de Cartola, é pos- campo da criação artísticas, a uma fase de pouca sível afirmar que: renovação: as restrições às manifestações artísti- I. A maior parte das obras de Cartola foi registrada cas dificultaram enormemente a expressão. Por no início de sua carreira como compositor, época outro lado, predominaram músicas ufanísticas, em que fez grande sucesso com o público carioca. que procurava divulgar uma imagem nacional de II. Sua carreira é dividida em duas fases: a época da felicidade e progresso. fundação da escola de samba Estação Primeira de 08. A década de 1950 foi marcada por uma série de movimentos que, impulsionados pelo otimismo Mangueira e, anos mais tarde, seu ressurgimento advindo das transformações sociais e industriais com a coletânea Canções escolhidas. ou pela vontade de conhecer, criticar e interpre- III. As composições de Cartola costumam retratar as- tar a nova realidade urbana e rural do país, deram pectos da finitude da vida, com conselhos e adver- novos ares à cultura nacional. Nesse contexto sur- tências aos jovens, em tom melancólico. giram manifestações como a bossa nova, um movi- A Todas as afirmativas são verdadeiras. mento de modernização e internacionalização da B Somente a afirmativa I é verdadeira. música popular brasileira. C Somente a afirmativa II é verdadeira. 16. Enquanto o cinema, esgotada a fase da pornochan- D Somente as afirmativas I e III são verdadeiras. chada, produz filmes ligados à nossa realidade, a E Somente as afirmativas II e III são verdadeiras.</p><p>28 GABARITO 1. B 4. D Afirmativa III: falsa. A organização de agremiações, Afirmativa 2: falsa. êxito do documentário e do filme como a escola de samba Estação Primeira de Mangueira, reflete a qualidade de ambas as obras e sua importância não era formada exclusivamente por brancos; pelo con- cultural para a população brasileira. trário, sua concepção se deu majoritariamente por ne- 5. Soma: 14 gros, a exemplo de Cartola. Afirmativa 01: incorreta. Ato Institucional n° 5 re- 2. C fletiu fortemente no âmbito cultural, uma vez que artis- Ao ler os textos, é possível identificar que, no primeiro, tas da música e do cinema sofreram censuras e muitos a linguagem poética evidencia a metáfora e a escola de deles foram presos ou exilados por incluírem em suas samba, como é possível notar no trecho "Minha escola obras reflexões que fossem contra os princípios impos- é um cata-vento a girar/ É verde, é rosa/ Oh, abre alas tos durante a ditadura militar. pra mangueira passar". Já no segundo, há uma tendência 6. Cartola teve forte influência do choro, ritmo semelhan- de informar o leitor a respeito do trabalho envolvido em te ao samba. Os traços do choro são muito presentes uma apresentação de escola de samba, em que há "cos- em seus dois primeiros discos, principalmente no arran- tureiras, aderecistas, diretores de ala e de harmonia, pes- jo e na instrumentação. Isso também foi um fator que quisados de enredo e uma infinidade de profissionais". aproximou Cartola dos demais músicos da classe média 3. a) A metáfora é "o mundo é um moinho", que se des- do Rio de Janeiro, influenciados pela bossa nova. dobra em "vai triturar teus sonhos" e "vai reduzir as 7. E ilusões a Seu sentido é a destruição dos sonhos Afirmativa I: falsa. Na verdade, a maior parte das da interlocutora do eu lírico. obras de Cartola foi registrada em seus últimos anos b) A palavra "preste" se tornaria "presta" e a palavra de vida, portanto no fim de sua carreira. Por isso, há "ouça", "ouve". forte influência da maturidade e da finitude da vida.</p><p>29 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEINEKE, Viviane; GONZAGA, Eloisa; ROMÃO, Carlos; ZANETTA, Camila. Na Cartola de um mágico: práticas criativas e relações raciais em uma oficina de samba. In: Revista Nupeart, V. 22, p. 178-195, 2019. CARTOLA. O melhor de Cartola: melodias e letras cifradas para violão, piano e teclados. São Paulo: Irmãos Vitale, 1998. CARTOLA. In: Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Disponível on-line em: OLIVEIRA FILHO, Arthur; SILVA, Marília Trindade. Cartola: os tempos Rio de Janeiro: Gryphus, 2003. SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira. São Paulo: Ed. 34, 2008. TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Ed. 34, 2005. A</p><p>30</p><p>31</p><p>AOL Análise de Obras 0 estudo das obras promove a compreensão e o aprofundamento do texto, revela as intenções de cada autor e elucida as características da escola literária da qual a obra faz parte. Ler é condi- ção fundamental para compreender o mundo, os seres, os fenômenos e os acontecimentos. Entender e desvendar uma obra é o prazer da leitura e da busca de novos saberes. É encontrar a beleza da essência de cada autor. sistemapoliedro.com.br São José dos Campos-SP Telefone: editora@sistemapoliedro.com.br Poliedro QUE Sistema de Ensino 2023-A+P AMBIENTE 10015129</p>

Mais conteúdos dessa disciplina