Logo Passei Direto
Buscar
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.
left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

Prévia do material em texto

<p>O Banquete</p><p>Mario de Andrade</p><p>Cn3 Livraria</p><p>Cn3, Duas Cidades</p><p>E q u ip e de realização:</p><p>P ro je to g ráfico de L úcio G . M achado e E d uardo J. R odrigues</p><p>Assessoria e d ito ria l de M ara Valles</p><p>Revisão de H erb ene M a tt io li e V a lé ria C . Salles</p><p>Todos os d ire ito s reservados por</p><p>L ivraria Duas Cidades L td a .</p><p>Rua B ento F re itas , 1 5 8 — São Paulo</p><p>1 9 7 7</p><p>1. M úsica — Brasil 2 . M úsica — F ilo s o fia e estética</p><p>I. T ítu lo .</p><p>\</p><p>C IP -B ras il. C atalogação-na»^onte</p><p>C âm ara Brasileira do L iv ro , SP</p><p>A n d rad e , M ário de, 1 8 9 3 -1 9 4 5 .</p><p>A 5 6 8 b O ban qu ete . São Pau lo , Duas C idades, 1 9 7 7 .</p><p>7 7 -1 2 5 5</p><p>C D D -7 8 0 .1</p><p>-7 8 0 .9 8 1</p><p>índices para catálogo sis tem ático:</p><p>1. Brasil : M úsica 7 8 0 .9 8 1</p><p>2. Estética musical 7 8 0 .1</p><p>3. M úsica : Estética e filo s o fia 7 8 0 .1</p><p>S U M Á R IO</p><p>Sobre O B a n q u e te ................................................................................ 9</p><p>C a p ítu lo I — A b e r tu ra .......................................................................... 43</p><p>C a p ítu lo II — E n c o n tro no P a r q u e .............................................. 55</p><p>C a p ítu lo I I I — J a rd im de In v e r n o ................................................. 71</p><p>C a p ítu lo IV — O A p e r it iv o .............................................................. 95</p><p>C a p ítu lo V — V a t a p á .......................................................................... 117</p><p>C a p ítu lo V I — S a la d a .......................................................................... 157</p><p>C a p ítu lo V I I — Doce de C oco — F ru ta s ..................................... 165</p><p>C a p ítu lo V I I I — O Passeio em Pássaros ..................................... 167</p><p>C a p ítu lo IX — Café P e q u e n o ................................................. ... 169</p><p>C a p ítu lo X — As Despedidas — N o t u r n o .................................. 171</p><p>D evem os a G ild a de M e llo e Souza a</p><p>sugestão de p u b lic a r esta im p o r ta n te re fle xã o</p><p>esté tica — in fe liz m e n te inacabada — de</p><p>M á rio de A n d ra d e , até hoje</p><p>p ra tica m e n te in é d ita .</p><p>Os E d ito re s</p><p>Sobre O Banquete</p><p>"P a r t ir eu p a rto . . .</p><p>Mas essa m úsica é m e n tira .</p><p>Mas p a r t ir eu p a rto .</p><p>Mas eu não sei o nde v o u .”</p><p>M . de A n d ra d e — L ira Pau lis tana</p><p>S ituação d '0 B anque te</p><p>Em m a io dév 1 9 4 3 3 ^ á r io de A n d ra d e com eça a escrever</p><p>c rón icas m usica is naTTo/ha da M a n h ã : te x to s h ebdom adá rios</p><p>que vão aparecendo reg u la rm e n te às q u in tas -fe iras sob o t í t u lo</p><p>de “ M u n d o M u s ic a l" , até a m o rte do a u to r, em 1945 . M á rio</p><p>a dve rie desde o p r im e iro a rtig o : não se tra ta de c r ít ic a</p><p>p ro fis s io n a l, ligada aos a co n te c im e n to s e m an ifestações</p><p>co n te m p o râ ne os e loca is ; não se tra ta de co m e n tá rio s sobre a</p><p>v ida m usica l pau lis ta na . E s tru tu ra m u ito m ais liv re , o “ M u n d o</p><p>M u s ic a l" p e rm it iu a apa rição dos mais d iversos te x to s :</p><p>abordagem de fe nó m e n os ou p rob lem as gerais ( "D o te a tro</p><p>c a n ta d o " , "P s ico lo g ia da c r ia ç ã o " e tc .) ; estudos ou re flexões</p><p>sobre aspectos espe c íficos ("C la u d e D e b u ssy ", "Pe lléas et</p><p>M é lis a n d e ", " S c a r la t t i" e tc .) ; sobre o fo lc lo re ( "C a n ta d o r" ,</p><p>"D a nça s d ra m á tic a s " e tc .) ; e m esm o p o r vezes excedendo ao</p><p>d o m ín io p ro p r ia m e n te m us ica l, co m o em " A r te ing lesa ",</p><p>no táve l panoram a que releva a im p o rtâ n c ia da In g la te rra não</p><p>som ente no d o m ín io da m úsica, mas das artes p lásticas,</p><p>a rq u ite tu ra e c inem a.</p><p>A n u n c ie m o s logo que , na m a io r p a rte dos casos, ta is</p><p>te x to s não são estudos assépticos, a fastados da co n ta m in a çã o</p><p>co n te m p o râ ne a . Apesar de não se lançar nos p ro b le m a s de</p><p>co nc re ta e p ró x im a a tu a lid a d e m us ica l, M á rio liga</p><p>fre q u e n te m e n te suas re fle xõe s sobre o passado, sobre as</p><p>a tiv idades estrange iras, ou sobre o fo lc lo re , à s ituação precisa</p><p>da criação m usica l b ras ile ira , aos p rob lem as de in fra -e s tru tu ra</p><p>(ens ino , pesquisa), à evo lução dos a co n te c im e n to s do seu</p><p>te m p o . O "M u n d o M u s ic a l" , em p r in c íp io tra ta n d o de</p><p>assuntos d is tan tes da rea lidade im e d ia ta de m úsica e a rte , é</p><p>p o r essa razão mesma um m e io c ó m o d o de s itua r questões</p><p>a tua is im p o rta n te s , de d is c u tir ca m inhos , de castigar erros.</p><p>A lg un s desses te x to s são longos dem ais para serem</p><p>tra ta d o s num a ún ica p u b lic a ç ã o : po r essa razão M á rio</p><p>ins tau ra séries que p o r vezes são in te rro m p id a s p o r o u tro s</p><p>te x to s , para serem re tom adas m ais a d ia n te : "C a n ta d o r " ,</p><p>" A r te ing lesa " etc.</p><p>O B anque te está neste caso e é m esm o a m ais longa</p><p>série. E le d ife re sensive lm ente dos o u tro s te x to s p o r seu</p><p>cará ter de fic ç ã o : um "d iá lo g o " e n tre c inco - personagens</p><p>im aginárias d u ra n te um ja n ta r, co n ce b id o em dez c a p ítu lo s</p><p>que não ra ro serão fragm en tados , de m o d o a se adap ta r à</p><p>pub licação semanal. O p lano es tabe lec ido p o r M á rio data de</p><p>fe ve re iro de 1944 , e a p rim e ira p ub lica ção de 4 de m a io do</p><p>m esm o ano : um p ro je to que se destinava seguram ente à</p><p>p ub licação em vo lu m e , com o " A r te ing lesa " — te x to aliás</p><p>bem m enos a m b ic io so —, que aparecera em liv ro d u ra n te a</p><p>v ida de M á rio , fa zen do p a rte do B a ile das q u a tro a rtes.</p><p>In fe liz m e n te , q ua nd o sobrevêm a m o r te d o a u to r em 1945 , o</p><p>p ro je to está inacabado , in te r ro m p id o na p rim e ira p a rte do</p><p>c a p ítu lo sexto — "S a la d a ", p u b lic a d o em 2 2 -2 -1 9 4 5 , v igés im o</p><p>te rc e iro "e p is ó d io " .</p><p>É este fra g m e n to que dam os ho je ao le ito r que se convencerá</p><p>co m o nós, estam os ce rtos , de seu interesse e im p o rtâ n c ia . Ele</p><p>p e rm ite um a com preensão mais aguda d o pensam en to de M á rio ,</p><p>e a inda p rovoca e a u x ilia a re fle x ã o sobre p ro b le m a s da m úsica,</p><p>da a rte e da criação na sociedade b ras ile ira .</p><p>P o r que "B a n q u e te ” ?</p><p>T o m a n d o este t í t u lo e d a n d o à obra a fo rm a de um</p><p>d iá log o e s té t ic o -f ilo s ó fic o , M ário de A n d ra d e nos rem ete ao</p><p>ev iden te m od e lo p la tó n ic o . À questão que se im p õ e</p><p>im e d ia ta m e n te ao e s p ír ito — qua l é a d ív id a d o te x to que</p><p>tem os em mãos para com a sua re fe rênc ia clássica? —,</p><p>podem os responder que as ligações são lo n g ínq ua s e gerais,</p><p>onde fic a m d if íc e is as separações e n tre as (raras) co in c idê nc ia s</p><p>e as derivações.</p><p>Podem os co ns ta ta r a sem elhança da s ituação g loba l —</p><p>um ja n ta r lu xu oso o nde os conv ivas d isco rre m sobre um</p><p>assunto preciso, num caso o a m o r, no o u tro a m úsica. Mas</p><p>M á rio não se d e ixa de m o d o a lgum levar p o r o u tra s</p><p>in flu ên c ias m ais d e te rm in a n te s ou p ró x im a s , que</p><p>tra n s fo rm a ria m seu te x to num pas ticho a tu a liz a d o , a inda que</p><p>som ente insp ira do pela o rgan ização fo rm a l. Em lugar de</p><p>co rrespondênc ias precisas, podem os evocar um a espécie de</p><p>sem elhança de ca rá te r: o d isco rre r f lu e n te e fa m ilia r da</p><p>narração p la tó n ica m arca-nos pela sua f le x ib ilid a d e , pela sua</p><p>iro n ia e pe lo seu fra n c o h u m o r: assim o p razer de im ita r os</p><p>d iscursas das personagens con tem po râneas — c o m o M ário</p><p>im ita rá a fa la d o p o lí t ic o ou a so fis ticaçã o da g rã -fina — ou</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>brunomaciel</p><p>áticos , d ire to s ,</p><p>sobre os qua is não há nenhum a hesitação, a tin g id o s pelo</p><p>e s tilo fu lm in a n te de M á rio . E são so b re tu d o esses aspectos</p><p>que in d ispo rã o Jan jão , a rtis ta ve rd ad e iro , c o m a "classe</p><p>d ir ig e n te " , esses e lem en tos co nc re to s são o passo que</p><p>de te rm in a o que fa ta lm e n te estava p re v is to :</p><p>"E stava exausto d o es fo rço que fize ra pra vencer seus</p><p>interesses jús tos , d ize n d o a verdade, m esm o na certeza</p><p>de recusar pra sem pre a p ro teçã o dos d on os da vida</p><p>que co m ia m a Ii" (O B anque te , p. 145).</p><p>E Jan jão , no c a p ftu lo X , não escrito , mas in d ic a d o no</p><p>p ro je to de M á rio , recusando a c u m p lic id a d e , será jogado na rua.</p><p>P asto r F id o</p><p>Jan jão , c o m p o s ito r b ra s ile iro , opõe-se assim aos</p><p>"d o m in a n te s " . Mas ao m enos num p rim e iro m o m e n to ele não</p><p>estará so z in h o : e nco n tra rá no parque uma personagem um</p><p>p o u c o ’ m is te riosa , b ra s ile iro ta m b é m , es tudan te , que d e fin e</p><p>a si m esm o co m o um s ím b o lo : ele é a m oc ida d e que espera e</p><p>investe no p o rv ir — é vendedor de apó lices da C om panh ia de</p><p>Seguros a In fe lic id a d e , e é tam bém a "m osca a z u l" cantada</p><p>por M achado de Assis. O poem a, m e tá fo ra das ilusões da</p><p>ju ve n tu d e , p ro m e te as g ló rias e os sucessos do fu tu ro</p><p>Eu sou a v ida, eu sou a f lo r</p><p>Das graças, o padrão da eterna m en in ice ,</p><p>E m ais a g ló ria , e m ais o a m o r" .</p><p>Mas os versos m esm os nos advertem — não te n tem os</p><p>dissecar esse Pastor F id o — Mosca A z u l sob pena de d e s tru ir</p><p>o que ele é: um se n tim e n to p ro fu n d o e in d e fin ív e l.</p><p>P rocurem os antes apreender a sua p a rtic ip a ção no te x to .</p><p>Ele está num a posição mais geral que o un ive rso</p><p>es trita m e n te m usica l de Jan jão , e po r vezes lem bra ao</p><p>c o m p o s ito r a obrigação de re lac ionar-se com o resto do</p><p>m u n d o ; no m o m e n to por e xem p lo em que Jan jão ,</p><p>c o m p o s ito r "m o d e rn o " , a firm a detestar a a rq u ite tu ra</p><p>"m o d e rn a " ; ou no m o m e n to em que Jan jão reclam a uma</p><p>c r ít ic a que repouse num a análise essencia lm ente m usica l e</p><p>técn ica , o que não é uma so lução, mas um re fú g io que</p><p>esconde o c r í t ic o dos p rob lem as mais im p o rta n te s das</p><p>funções da arte . A í , Pastor F id o p ro tes ta :</p><p>"T é c n ic a , técn ica , só té cn ica ! Si vocês exigem uma</p><p>c r ít ic a técn ica em vez de uma c r ít ic a boa, é p o r</p><p>ignorânc ia ou esquec im en to do que seja a m úsica</p><p>in teg ra l, a A r te e n fim . C rít ic a não é a po n ta r as q u in tas ,</p><p>co m o bem caçoava S c h u m a n n " (O B anque te , p. 1 0 3 ).23</p><p>Is to é um assunto que lhe interessa m u ito , po is o</p><p>d es tin o de Pastor F id o era o jo rn a lis m o . A fin id a d e já m u ito</p><p>grande com o a u to r, que dissera no p r im e iro a rtig o do</p><p>"M u n d o M u s ic a l" :24</p><p>" . . . daquela vez em que tiv e de escolher e n tre os meus</p><p>sete in s tru m e n to s , o que me desse um n úm ero</p><p>p ro fiss io n a l na b icha p á tr ia , esco lh i o jo rn a lis m o " .</p><p>E n tre ta n to , d iz F id o , a im prensa in fe liz m e n te e n tro u</p><p>para o G E L O , e não é m ais possível "d iz e r a verdade</p><p>verdade ira ao p o v o " (O B anquete , p. 5 7 ) : o reg im e de</p><p>2 ^~ C r ít ic a que vai buscar o sentido das m anifestações m esm o em</p><p>elem entos e x tra -a rtís tico s , p ro cu ran do situar o s en tid o , o papel da</p><p>m anifestação ela m esm a. C f. a série "M ú s ic a de p an c a d a ria " , in</p><p>M ú s ic a d o c e m ú s ic a , o p . c it .</p><p>"O m aio r m ú s ic o " , 2 0 de m aio de 1 9 4 3 , p. 1 4 .</p><p>repressão e censura condenara a m oc ida d e — “ ou apó ia os</p><p>don os da vida ou v ira a q u ilo que você sabe" (O B a n q u e te ,</p><p>p. 5 7 ). N o e n ta n to , apesar de tu d o , essa m oc idade guarda</p><p>sem pre um s e n tim e n to de esperança no p e ito .</p><p>Mas M á rio , ve lho e d esco n fia do d ia n te dos</p><p>co n fo rm is m o s , faz de Pastor F id o um le ito r de M atias A ires ,</p><p>e na sua digressão sobre os clássicos portugueses o o põe à</p><p>A r te de fu r ta r que , com suas certezas e seguranças</p><p>co rros ivas , castiga e denunc ia ao invés de c o rr ig ir ou superar,</p><p>e que p ro p õ e co m o m o to r a Esperança, “ v ir tu d e esverd inhada</p><p>e c o n fo rm is ta ” . A v ir tu d e de Pastor F id o é antes a C haritas —</p><p>“ incend iada de a m o r" .</p><p>A m o r. Que é m o la dos se n tim en tos p o lít ic o s surg idos</p><p>n 'O B anque te . É Pastor F id o que vai traze r fre q u e n te m e n te</p><p>à baila a s ituação con te m p o râ ne a de repressão, de censura, de</p><p>b ru ta lid a d e . É ele que , p o n tu a n d o um a conversa ab jeta e</p><p>od iosa e n tre os d o m in a n te s , lem bra rá o go lpe de 1937 e</p><p>um a d ra m á tica m an ifes tação a n tig o ve rn a m e n ta l, re p e tin d o</p><p>co m o um d o b re : "n o v e de n o v e m b ro " (O B a nque te , p. 125 ).</p><p>A m o r. E le ro m p e n um ch o ro desesperado de ju v e n tu d e ,</p><p>revo lta e im p o tê n c ia , bem o m esm o que M á rio concebera na</p><p>sua m oc ida d e m o d e rn is ta , v in te e do is anos antes:</p><p>" — (. . . C aiu a n o ite , a liás, e na so lidão da</p><p>n o ite das m il estrelas as Ju ven ilida d es A u r iv e rd e s ,</p><p>tom badas no so lo , ch o ra n d o , ch o ra n d o o</p><p>a rre p e n d im e n to do tresva rio fin a l.)</p><p>M in h a lo u cu ra</p><p>(. . .)</p><p>Espa lha i vossas alm as sobre o verde!</p><p>G uarda i nos m an tos de som bra dos manacás</p><p>os vossos vagalum es in te r io re s !</p><p>Inda serão um sol nos o iro s do am anhã!</p><p>C h o ra i! C ho ra i! D epois d o rm i!</p><p>{Pau licé ia desvairada, op. c it . , p. 62 e 6 3 ).</p><p>A m o r. Esperança. O c h o ro de Pastor F id o é e rrado,</p><p>m al a p ro p ó s ito , desa je itado — mas, co m o jo ve m , te m o</p><p>d ire ito de e rra r, co m o a firm a ra num a conversa a n te rio r</p><p>Sarah L ig h t. E Jan jão se irm ana com ele nesse c h o ro .</p><p>Mas ju v e n tu d e te rá m esm o esse d ire ito ? Pastor F id o é</p><p>a m b ígu o , a h ip o teca do fu tu ra não é segura, e ele se de ixa</p><p>conso la r "g o s to s o " p o r Sarah L ig h t, que já lhe interessara antes:</p><p>"O in s t in to m ais que a expe riênc ia o fazia pender pra</p><p>Sarah L ig h t, em bora m enos b o n ita e m ais v e lh a " (O</p><p>B anque te , p. 105 ).</p><p>E Jan jão se desso lidariza dessa m oc idade que se deixa</p><p>seduzir na sua inconsc iênc ia s e n tim e n ta l. Pastor F id o não</p><p>resiste à salada am ericana e t r iu n fa l is ta :</p><p>“ Mas não conseguia res is tir à a tração daque la salada</p><p>enceguecedora. N ão se entregara a inda , e tenham os a</p><p>esperança de que não se entregue nunca a um a salada</p><p>em que havia até sorve te de crem e e suco de</p><p>ped regu lho . Esperem os que ele saiba escolher dela</p><p>apenas o que era ú t i l à sua saúde hum ana. (. . .)</p><p>T ín h a m o s que esperar até que a m oc idade nossa</p><p>m adurasse a expe riênc ia e soubesse ace ita r ta lvez o</p><p>sorvete de crem e, e recusar o suco de p e d re g u lh o "</p><p>(O B anque te , págs. 161 e 162 ).</p><p>E vo luçã o apa re n tem en te estranha da personagem : é que</p><p>M á rio te m e as concessões que são fe ita s à ju v e n tu d e e que a</p><p>ju v e n tu d e faz a si m esm a. Há sem pre, e n tre ta n to , um a</p><p>esperança de a m a d u re c im e n to — e m esm o, ta is c o m o são,</p><p>os im pu lsos , pa ixões da ju v e n tu d e , agem co m seu e s p ír ito</p><p>" f r o n d e u r " , c o n te s ta d o r. Ta lvez n '0 B anque te M á rio se de ixe</p><p>m ais en te rnecer pelos "vaga lum es in te r io re s " da sua</p><p>ju v e n tu d e que no m o m e n to da a u to c r í t ic a im p iedosa do</p><p>"M o v im e n to M o d e rn is ta " . Mas basta. Não c o n tin u e m o s nesses</p><p>jogos s im b ó lico s perigosos: c o m o já lem bram os, o poem</p><p>a de</p><p>M achado d iz bem — não d issequem os a mosca azul sob pena</p><p>de perdê-la para sem pre.</p><p>A le go ria s</p><p>Porém fica o p ro b le m a da a legoria . Já evocam os o</p><p>cansaço de M á rio d ia n te das lu tas d ire tas e o repouso que</p><p>representava o d is fa rce das várias personagens. Havia tam bém</p><p>o G E L O , d ig o , o D IP e a censura : as personagens im aginárias</p><p>são a inda escudos eficazes.</p><p>Mas m etá fo ras e s ím b o lo s nem sem pre têm a mesma</p><p>in tens idade . Por e xe m p lo , os p ra tos são o m o m e n to mais</p><p>ev id en te dessas alegorias. A liá s , m e tá fo ra s gastronóm icas não</p><p>são nov idade em sua obra . A ss im , ao inverso dessa Salada que</p><p>se dá desavergonhadam ente para t ra ir depo is , está a d ia lé tica</p><p>d o ca ju , cu ja degustação "é um a verdadeira tro c a de posses</p><p>pessoa is",25 que M á rio pensou em 1928 . E a Salada, M ário</p><p>C itad o por T e lê P o rto A n co n a L o p ez , M á r io d e A n d ra d e , ram a is e</p><p>c a m in h o , São Pau lo , L iv r. Duas C idades, 1 9 7 2 , p. 5 3 . T e x to de 1 9 2 8 .</p><p>a declara m esm o e x p lic ita m e n te co m o a legoria . Mas até nesses</p><p>m om en to s mais eviden tes os s ím b o lo s têm vá rios sentidos.</p><p>Lem brem os sobre a Salada que ela, além de " t r iu n fa l is ta " ,</p><p>s im b o liza n d o a g ló ria com to d o s os co m prom issos que ela</p><p>c o m p o rta , é ta m b ém am ericana . E sua tra içã o de salada nos</p><p>faz pensar na "N o v a canção de D ix ie " , sobre os E U A ,</p><p>con tem po rânea d 'O B a nq u e te (25 de fe ve re iro de 1944 ) que</p><p>Te lê P o rto A n con a L op ez p u b lic o u no liv ro de la :</p><p>"É a te rra m aravilhosa</p><p>Cham ada pe lo A m ig o Urso</p><p>Lá n inguém não cobra entrada</p><p>Se a pessoa é conv idada</p><p>D epois lhe dão um d iscurso</p><p>A b ra ç o tão a pe rtado</p><p>Que você m o rre a s fix ia d o ,</p><p>F e liz de ser es tim ado .</p><p>N o. I ' l l never never be</p><p>In C o lo u r L in e L a n d " .26</p><p>Tais s ím b o lo s c o m p le x o s , a lém de não u n ívo co s , têm</p><p>um a fo rça expressiva p ró p r ia , eles são mais que s ím bo los .</p><p>Mais ou m enos am b íguos , ganham no m e io m is té r io em que</p><p>se e n co n tra m , e seria bana lização im perdoáve l (e sem pre fa lsa)</p><p>estabelecer co rrespondênc ias d o género — is to q ue r d ize r</p><p>a q u ilo . Por o u tro lad o , so luções evidentes co m o o nom e de</p><p>M e n tira , que se presta a tro c a d ilh o s tão fe lizes, não</p><p>necessitam exp licação .</p><p>E n fim , não nos p reocupem os em saber se M á rio to m o u</p><p>da rea lidade ta l ou qua l personagem . Pouco nos im p o r ta , p o r</p><p>e xe m p lo , a p lausíve l h ipó tese de que M ário deve te r t id o no</p><p>fu n d o da lem brança um a g rande p ian is ta in te rn a c io n a l</p><p>b ras ile ira (p a rt ic ip a n te aliás dos tu m u lto s in ic ia is m odern is tas )</p><p>ao c o n s tru ir a personagem de S iom ara Ponga. A s personagens</p><p>u ltrapassam m u ito o m o d e lo lo n g ín q u o e se d e ixa m</p><p>fre q u e n te m e n te pene tra r pe lo a u to r, que evita esquemas</p><p>s im ples e p re fe re no-los o fe rece r num a co m p le x id a d e rica .</p><p>E que o le ito r se regale q u a n to qu iser na segurança que ta is</p><p>riquezas são inesgotáveis.</p><p>Jorge C o li e</p><p>L u iz C arlos da S ilva Dantas</p><p>A ix -en -P rovence , se tem bro de 1977</p><p>26 O p ' c iu , p. 2 3 0 .</p><p>C o lh id o pela m o rte que o su rpreendeu a 2 5 de fe ve re iro</p><p>de 1945, M á rio de A n d ra de não teve te m p o de te rm in a r a</p><p>redação de O B anque te , que v inha p u b lica n d o parce ladam ente</p><p>em seu rodapé semanal d o M u n d o M usica l. A série se</p><p>in te rro m p e co m o te x to de 2 2-2 -45 e nesse d ia o e sc rito r</p><p>anotava nb ú n ico d iá r io que não d es tru iu :</p><p>“ Saiu m eu 19 a rt. cap. Salada, do Banquete . Ins is tir?</p><p>P referia faze r o u tra coisa mas não sei o quê. V o u e xam ina r os</p><p>papéis. E xa m in e i e o rgan ize i as partes do c a p ."</p><p>Poucos dias antes — a 18-2-45 — havia reg is trado no</p><p>m esm o d iá r io :</p><p>" ( . . . ) R ed isponho assuntos do “ B a n q u e te ". Passo a</p><p>m anhã to d a reestudando co m m eia angústia as notas e fichas.</p><p>C om o d ese nvo lv im en to , à m ed ida que escrevia os a rtigos ,</p><p>em bora tivesse um su m á rio geral, tu d o f ic o u ca ó tic o e</p><p>su pe rlo tad o . Só consegui de m ais e fic ie n te esta m anhã f ix a r 5</p><p>assuntos gerais, pra 5 c a p ítu lo s . S in to que com a e bu liçã o de</p><p>ta n ta le itu ra , p od ia , neste m o m e n to , f ix a r o sum ário do cap.</p><p>Salada, mas me s in to fa tig a d o . D e ixo pra a m a n h ã ."</p><p>As duas notas te s te m u n h a m que M ário de A n d ra d e</p><p>traba lhava , c o m o era seu h á b ito , servindo-se de fich as e</p><p>anotações prévias — acum uladas às vezes através dos anos — e</p><p>de le itu ras do m o m e n to , d itadas pe lo d ese nvo lv im en to dos</p><p>assuntos; èm segundo lugar, que em bora seguisse um p lano</p><p>p reestabe lec ido , ia re d ig in d o os a rtigos um a um , de acordo</p><p>com as im posições do rodapé semanal. J u n to co m os o rig in a is</p><p>encon trou -se um a fo lh a d a tilog ra fa da co m correções fe itas a</p><p>m ão e data de "S ão Paulo, fe ve re iro , 1 9 4 4 " , onde o te x to é</p><p>d iv id id o em 10 c a p ítu lo s e cada c a p ítu lo tra z a ind icação do</p><p>assunto que nele deveria ser tra ta d o . E ncarando essas anotações</p><p>co m o a ú lt im a fo rm a do p ro je to do e sc rito r, a presente edição</p><p>a do tou o c r ité r io de d is tr ib u ir a m a té ria dos a rtigos de a co rdo</p><p>co m o ín d ice a í p ro p o s to , acrescen tando no fin a l a ind icação</p><p>dos c a p ítu lo s p rogram ados, que não chegaram sequer a ser</p><p>esboçados e deveriam a rrem ata r a grande com pos ição .</p><p>V em os pelo d iá r io que, já a m e io da ta re fa e co m uma</p><p>certa perspectiva do c o n ju n to , M á rio de A n d ra d e lam entava,</p><p>com a sua aguda exigência fo rm a l, que o te x to não fosse mais</p><p>e n x u to .</p><p>O B a n q u e te , ta l c o m o nos fo i legado, não pode se a lin h a r</p><p>ju n to aos liv ro s fe ito s d o e s c rito r; mas pela im p o rtâ n c ia e</p><p>tra ta m e n to a pa ixo na d o dos seus tem as, é, sem d úv ida , um dos</p><p>m om en tos mais a ltos da m ed itação esté tica no B rasil.</p><p>Abertura</p><p>Apresentação dos</p><p>personagens</p><p>classe-dom inante.</p><p>Ora se deu que naquela ta rde boa de d o m in g o , a</p><p>m ilio n á ria Sarah L ig h t o fe rec ia um banque te em seu so lar de</p><p>inve rno , que ficava n u m s u b ú rb io de M e n tira , a s im pá tica</p><p>c ida d in ha da A lta Paulista. Iam se e n c o n tra r à mesa dela o</p><p>c o m p o s ito r Jan jão , a cé lebre can to ra S iom ara Ponga e o</p><p>im p o rta n te p o lí t ic o F e lix de C im a, su b p re fe ito de M en tira . Oh</p><p>meus am igos, si lhes d ou este re la to f ie l de tu d o q u a n to</p><p>sucedeu e se fa lo u naquela ta rde boa, boa e tr is te , não</p><p>a c re d ite m não, que q u a lq u e r semelhança destes personagens, tão</p><p>nossos conhec idos, co m q ua lq ue r pessoa do m u n d o dos vivos e</p><p>dos m o rto s , não seja mais que pura co in c id ê n c ia ocasiona l. E é</p><p>tam bém ce rto , ce rtíss im o , que ao m enos desta vez, eu não</p><p>podere i me responsab iliza r pelas idéias expostas aqu i. Não me</p><p>pertencem , em bora eu sustente e p ro c la m e a responsab ilidade</p><p>dos autores, nesse m u n d o de am biciosas reportagens estéticas,</p><p>vu lg a rm en te cham ado Belas A rte s .</p><p>O fa to é que a m ilio n á r ia Sarah L ig h t estava fran cam e n te</p><p>apa ixonada pe lo c o m p o s ito r Janjão . Este, ao m enos p o r</p><p>e n q u a n to , se de ixava am ar sem grandes exigências, em bora não</p><p>lhe fossem in d ife re n te s aquelas carnes abundan tes e já um</p><p>bocado crepuscu lares de Sarah. Nos seus v in te -e -o ito anos de</p><p>m u ita e vária expe riê nc ia , Jan jão bem perceb</p><p>ia que p o r detrás</p><p>dessas coch ilhas amansadas, esperava um sol fu r ib u n d o . Mas po r</p><p>e n q u a n to ele se de ixava apenas ado ra r, na sem -cerim ôn ia</p><p>insaciável com que a to d o s os a rtis tas le g ítim o s , a m o r, g ló ria ,</p><p>adoração, êxtase, aplauso e até d in h e iro , é o m ín im o ing ra to</p><p>que podem lhes dar os hom ens desse m u n d o . E m bora não</p><p>tivesse a m enor consc iênc ia disso, co m o to d o s os a rtis tas</p><p>le g ítim o s , Jan jão era um m o n s tro c a m u fla d o em coisa na tu ra l.</p><p>M on s tro manso e desgraçado, mas m o n s tro d e n tro desta nossa</p><p>v ida. E Sarah L ig h t, já e ru d ita p o r dem ais em am ores, estava</p><p>descam bando para aquela fraqueza dos anos em que a gente se</p><p>bo ta am ando exo tism os , os ve lhos as m en in o tas im púberes , e as</p><p>qua ren tonas os m ons tros . Ora Jan jão era v io le n ta m e n te e x ó tic o ,</p><p>o ú n ico hom em b ranco , que ro d ize r, m es tiço de apenas</p><p>q u a tro ce n to s anos, naquele m eio p re m a tu ro de M e n tira em que</p><p>a p ró p ria Sarah L ig h t era um a is rae lita ir re d u tív e l, nascida em</p><p>Nova Y o rk , S iom ara Ponga v inha de pais espanhóis, e F e lix de</p><p>C im a era de o rige m ita lia n a e n a tu ra lm e n te fa ch is ta . Sarah</p><p>L ig h t se a p a ixo n o u pelo e x o tis m o de Jan jão , m o n s tro po r</p><p>ser a rtis ta avis ra ra envergonhada de um a pureza racia l que</p><p>só tin h a sangue b ra s ílic o , nègro e lu s ita n o se la s tim an d o por</p><p>d e n tro daque le c o rp o de zebu ossudo, pele m orena , cabelo</p><p>mais liso que o d u m gê e linhas duras ca in d o no chão</p><p>co m o a fa ta lid ad e .</p><p>Parece fá c il a rgum en ta r que n u m caso de a m o r ta m a n h o ,</p><p>o m ais in s t in t iv o era Sarah L ig h t mesma p ro teg e r o a rtis ta , lhe</p><p>fo rn e c e n d o sem dem ora algum as m igalhas dos seus c inco con tos</p><p>d iá rio s de renda, e lhe co m p ra r o a m o r na ba ta ta . T a n to mais</p><p>que em bora v iven do co m o m a rid o m u ito às boas, p o r causa da</p><p>d ispersão das rendas que um d iv ó rc io q u a lq u e r tra r ia , Sarah</p><p>L ig h t co nq u is ta ra a sua libe rdade poucos meses depo is de</p><p>casada, a p rim e ira vez n u m p ile qu e . Mas a is rae lita t in h a o senso</p><p>da rea lidade, e fu g ira sem pre de com p licações com os artis tas,</p><p>p o rq u e estes são os m elhores té cn ico s da chan tagem . Não que</p><p>eles p repa rem escândalos, e x ija m d in h e iro , ro u b e m cartas,</p><p>c o n te m , am eacem , nada disso que se enco n tra co m bana lidade</p><p>nos rom ances e na vida. Mas Sarah L ig h t era bastan te esperta</p><p>pra perceber que os a rtis tas são chantag istas p o r na tu reza e</p><p>co nd içã o . Não pedem nada, mas a só presença deles é já uma</p><p>chan tagem no a m o r r ica ço . Ressumam pobreza, m isé ria m esm o;</p><p>ressum am exigências inesgotáveis de adoração, g ló ria e posições</p><p>de m ando . E ta is presenças Sarah L ig h t não conseguia aguentar,</p><p>era ch a to . De fo rm a s que tra tava com a lgum a d is tân c ia a Janjão .</p><p>E q ua nd o os em purrões d o desejo eram dem ais, ela o fe rec ia</p><p>um a fa rr in h a a do is com tão preciosos v inh os , que Jan jão se</p><p>em briagava e ela pod ia lhe alisar os cabelos com m e lanco lia .</p><p>Mas tin h a a inda um a o u tra razão que p ro ib ia so c ia lm en te</p><p>Sarah L ig h t de p ro tege r o c o m p o s ito r e as artes, co m o de ra ro</p><p>em ra ro lhe v inha na idé ia . Era o a m b ie n te em que ela v iv ia , o</p><p>m e io dos m ilio n á rio s de M en tira . M e io in fe c to de es túp idos, de</p><p>g ra n fin os , de in d ife re n te s às artes; m e io que apenas p rin c ip ia va</p><p>reconhecendo que era um a boa ap licação de d in h e iro co m p ra r</p><p>liv ro s an tigos, gravuras antigas aquareladas co m sabença pelos</p><p>b o tic á rio s de “ a n tig u id a d e s " e a lgum G u id o R eni fa lso . Si a</p><p>m ilio n á ria fornecesse d in h e iro a n inguém , que não fosse na</p><p>obed iênc ia à tra d iç ã o p o rtug a de acalm ar o céu, p ro tegendo</p><p>santas-casas, m endigos ou a inda algum a bem rara creche</p><p>inven tada pelos jo rn a lis ta s , si em vez protegesse as artes, ela</p><p>sabia m u ito bem que se to rn ava logo um m o tiv o de riso . O</p><p>m e io era su fic ie n te m e n te snob pra gostar de um fá c il A n a to le</p><p>F rance e dem ais rom anc is tas franceses que chegassem até isso, e</p><p>ta m b ém a lgum H u x le y banal de pa radoxos n o v in h o s , que</p><p>w ild ia n a m e n te dourasse a francesia . Mas o esnob ism o de</p><p>M e n tira jam ais não chegara à consequência da sua u tilid a d e . Si</p><p>Sarah L ig h t protegesse as artes, ou apenas Jan jão , não é que a</p><p>incu lcassem de p od re , co m is to ela não se im p o rta v a e a té lhe</p><p>da ria u m lus tre p a r tic u la r , mas se to rn a va r id íc u la . E Sarah</p><p>L ig h t era su fic ie n te m e n te delicada em seu re fin a m e n to</p><p>educad íss im o , pra não te r o m en o r gosto do r id íc u lo .</p><p>Por causa destas com p licações que lhe to m a va m horas de</p><p>pensam en to grave, a m ilio n á r ia tive ra um a des inência fe liz . É</p><p>que a sua ansiedade de salvar Jan jão , dera pra c o m p ra r discos.</p><p>Sarah L ig h t jam ais se p reocupa ra de m úsica, mas desde o d ia</p><p>em que lhe apresen ta ram Jan jão p a rtic ip a n te dum a festa de</p><p>ca ridade , se apa ixo na ra pela m úsica. C o m p ro u logo um a v itro la</p><p>que era a m e lh o r d o m u n d o , se in fo rm o u co m o c o m p o s ito r,</p><p>ped iu conse lhos e a rre b a n h o u tu d o o que havia de b om em</p><p>discos da m úsica d o p resente e do passado, ôh B ach! "O h</p><p>B a c h !" ela é que exc lam ava , p o rqu e logo a m ilio n á r ia se f ix o u</p><p>no grande João Sebastião. Possuía dezenas de s in fo n ia s de</p><p>M o za rt, de H ayd n , todas as de B eethoven em várias versões,</p><p>sonatas e q u a rte to s , tu d o o que havia dos ita lia n o s</p><p>in s tru m e n ta is , mas Bach era de m u ito o p re fe r id o . H ayd n ,</p><p>M o za rt, co m o d e se n vo lv im e n to da libe rdade m e lód ica e a</p><p>va lo riza ção expressiva dos acordes, posta em re levo pela</p><p>co n ce itu a çã o d e f in it iv a da h a rm o n ia , eram já um a m úsica po r</p><p>dem ais p a rla n te e não apenas in co n sc ie n te m e n te agente co m o a</p><p>p o lifo n ia de Bach. Só Bach, d e n tre os clássicos, punha Sarah</p><p>L ig h t de a co rd o cons igo m esm a, e ela possuía to d o s os discos</p><p>de Bach. Era um a d isco teca co lossal. E co m isso os rem orsos e</p><p>os desejos sossegaram.</p><p>N ão de to d o p o ré m , e e n fim as ansiedades e x p lo d ira m</p><p>naquela idé ia lu m in o sa : o G o ve rn o e os v irtuo ses é que deviam</p><p>p ro tege r Jan jão , c o ita d o . E co m o estas coisas im p o rta n te s só</p><p>se reso lvem a golpes de banquetes, Sarah L ig h t o fe rec ia aquele</p><p>a lm o ço a jan ta rad o de d o m in g o ao im p o r ta n te p o lí t ic o F e lix de</p><p>C im a e à c a n to ra fam osa S iom ara Ponga. Jan jão ta m b é m devia</p><p>com parece r, p o rq u e nada convence mais d o que a presença</p><p>encard ida . Por o nde se vê que Sarah L ig h t ta m b é m sabia ser</p><p>chan tag is ta .</p><p>F e lix de C im a a lém de m u ito b u rro , era to ta lm e n te</p><p>ig n o ra n te . A c ircu n s tâ n c ia nada ocas iona l que o g u inda ra à alta</p><p>posição p o lí t ic a que u s u fru ía em M e n tira , era. . . p o r isso</p><p>m esm o. T in h a qua lidades isso t in h a , co m o p o r e x e m p lo gostar</p><p>de co m e r e conhece r até c o m su tileza a data d u m v in h o ru b ro e</p><p>a gota de le ite escorregada a m ais n u m c o z im e n to de p e rd iz .</p><p>Era um p ro d íg io de s im p a tia , de ta l m aneira que ficava</p><p>im possíve l a gen te não acabar g os tando dele. T in h a u m je ito tão</p><p>n a tu ra l, tã o espon tâneo e esquecido de ign o ra r a sua posição</p><p>a lta , dava a m ão a um p</p><p>e d re iro co m gen tile za ta m a n h a que</p><p>parecia um líd e r o p e rá rio , ia-se ver. . . A in d a t in h a o u tra</p><p>q ua lid ad e m u i s im p á tica em M e n tira que era gosta r das</p><p>m ulheres. D iz ia m m esm o (sem p rova) que ele t in h a certas</p><p>p re fe rênc ias c ro m á tica s bem m ais co rda tas e fáce is na te rra que</p><p>as d if ic u ld a d e s v irtu o s ís tic a s da /enha rm o n ia voca l dos helenos.</p><p>Mas não devem os nos perde r no la b ir in to m usica l da HeTãcfè^"''y</p><p>clássica: F e lix de C im a gostava m u ito das m u lhe res , e isso basta.</p><p>Mas ta lvez tenha a lgum interesse c o n ta r p o rqu e o ilu s tre</p><p>p o lí t ic o fo ra esco lh id o p o r Sarah L ig h t, de p re fe rê nc ia aos</p><p>o u tro s m u ito s que p ro life ra v a m na b o n ita M e n tira . É que F e lix</p><p>de C im a era o p ro te to r in d is p u ta d o das artes na c idade . Isso</p><p>não se pode co n tes ta r. T o d o s os a rtis tas re c o rr ia m a ele e jam ais</p><p>um só não saíra do e s c ritó r io do p o lí t ic o sem um a p e rto de</p><p>m ão g o rd o , um a risada aberta e t i l in ta n d o nas o iças o si bem o l</p><p>d u m “ ta lv e z ” , d u m “ vam os v e r" o u d u m "p ro v a v e lm e n te " . E é</p><p>c e rto que as m ais das vezes, as “ Despesas V á r ia s " dos</p><p>o rça m e n tos pagavam as cem p o ltro n a s , o q u a d ro de paisagem</p><p>o u a "B a n h is ta " a inda em gesso e co n ó m ico . E d 'a í ve io a noção</p><p>de que F e lix de C im a gostava das artes.</p><p>Isso po rém era uma fa ls idade. F e lix de C im a gostava das</p><p>artes não; as p ro te g ia , isso s im . N o fu n d o ele estava co n ve n c id o</p><p>que os a rtis tas eram uns fro u x o s loquazes e nem tive ra</p><p>in ic ia lm e n te a im aginação de p ro teg e r co is íss im a nenhum a. Mas</p><p>q uem p r im e iro se socorreu dele, fo i um m aestro es trange iro de</p><p>passagem, que logo lhe p ro pô s um a te m p o ra d a de doze</p><p>co nce rtos a c in q u e n ta c o n to s cada. F o i o d ia m ais su b lim e da</p><p>ca rre ira p o lí t ic a de F e lix de C im a. S e n tir aque le m aestro</p><p>e u ropeu , tã o cé lebre e poss ive lm en te g lo rio s o , a seus pés</p><p>p e d in d o um a coisa tão fá c il para o G o ve rno que , sabia onde</p><p>estava o d in h e iro . F e lix de C im a fic o u . . . f ic o u to m a d o de</p><p>vergonha. Era im possíve l que um m aestro estrange iro se</p><p>hum ilhasse desse m od o , te n d o ta n to s em presários que o</p><p>d ispu tavam e tan tas riquezas de co nce rto s já co n tra ta d o s na</p><p>A m é rica do N o rte , em Nova Y o rk , na Á s ia , na E u rop a , na</p><p>Á fr ic a , na O ceânia, em T o k io . Isso não! F e lix de C im a g r ito u</p><p>d e n tro consigo , isso não! Precisam os p ro teg e r os m aestros</p><p>europeus de passagem, pra m o s tra r que som os m u ito</p><p>h osp ita le iros , e depo is não ire m fa la r m al da nossa te rra ! Pois</p><p>não! seu G r ig o r ie v itc h ik a S te in m a n , tu d o q u a n to Vossa</p><p>E xce len tíss im a q u ise r! Porque o senhor não pede logo</p><p>c in q u e n ta co n to s a t r in ta co nce rto s cada? Percebeu que tin h a se</p><p>enganado e já estava conse rta n do a prom essa, mas o m aestro</p><p>estrange iro era m odes to e g a ra n tiu que depo is precisava ir pra</p><p>A rg e n tin a . F e lix de C im a en tão p ro m e te u tu d o , co m um pavor</p><p>in fe liz de não fazer má fig u ra d ia n te do m aestro estrange iro .</p><p>V iro u , m exeu, mas to pa ra co m a m u ra lha ch inesa dos o u tro s</p><p>p o lít ic o s . Não havia co m o in c lu ir seiscentos c o n to s , assim sem</p><p>mais nem m enos, nas “ Despesas V á r ia s ". A f in a l o m aestro</p><p>es trange iro re d u z iu tu d o pela m etade, e fa lo u p o u co m al de</p><p>M e n tira lá fo ra , los m acaqu itos . Pois sucedeu que p ouco depois</p><p>ve io um a diseuse da V irg ín ia , com láb ios tã o esclarecedores, que</p><p>isso F e lix de C im a f ic o u m a luco . A diseuse coube m e lh o r d e n tro</p><p>das "Despesas V á r ia s ", e até levou o d u p lo do que ped ira . E</p><p>desde esta c o n tra p ro va , f ic o u sabido e p ro c la m ad o que F e lix de</p><p>C im a gostava das artes p lásticas.</p><p>Mas gostava um a ova. Não que ria saber de quadros nem</p><p>de estátuas no a p a rta m e n to , só gravuras p o rno g rá fica s ; e com o</p><p>os a rtis tas , depo is de co m p ra d o o q u a d ro do G o ve rno ,</p><p>presenteavam co m um a te la bem grá tis o p ro te to r das artes,</p><p>F e lix de C im a, descob riu a generosidade. M andava tu d o pra</p><p>P inacoteca de M en tira . Só gua rdou um q u a d r in h o , p o rque esse</p><p>era m u ito p rec ioso , d iz ia m , um a Vênus a rge lina , em e s tilo</p><p>persa v inda d u m salon de Paris e que era a tr ib u íd a a R a ffae llo</p><p>Sanzio . A liás , fo i assim que ele descobriu , p o r c iênc ia in fusa , os</p><p>te rm o s té cn ico s da p in tu ra . T oda m anhã, c o n te m p la n d o aquele</p><p>nu m ou risco que ele co locara em fre n te da sua cama de d o rm ir ,</p><p>F e lix de C im a m urm urava u m id a m e n te : que co r, que tons , que</p><p>vo lum es, q u a n to va lo r — sem que, no e n ta n to , lhe possamos</p><p>a tr ib u ir a firm e za co n c e itu a i d u m L u ís M a rtin s ou d u m Sérgio</p><p>M ill ie t.</p><p>A in d a fica por esclarecer co m o era a p ro te çã o das artes</p><p>pe lo G o ve rno de M e n tira , o r ie n ta d o p o r F e lix de C im a. O</p><p>p o lí t ic o não gostava nada de arte , nada co m p re en d ia , e até</p><p>ficava h o rro r iz a d o d ia n te de q u a lq u e r m an ifes tação u m pouco</p><p>mais m oderna . Si já não sabia d ize r um is to d ia n te de q ua lque r</p><p>R o d o lfo A m o e d o , im ag inem co m o ficava d ia n te d u m Lasar</p><p>Segall, era um a ago n ia i. . . A té um a fe ita , o b rig a d o a fa la r</p><p>a lgum a coisa d ian te d u m Pablo Picasso de que lhe ped iam a</p><p>o p in iã o , a ta l de nob/esse ob tige o sa lvou, lhe assoprando três</p><p>palavras geniais. O p o lí t ic o agon iado sussurrou : "C o m o é</p><p>ç ç p a n h o l!" . E os repórte res , que em M en tira eram to d o s</p><p>educados pe lo G E L O (G ru p o Escolar da L ib e rdade de O p in iã o ),</p><p>ca íra m pra trás, e s tu p id ifica d o s com a fin eza da c r ít ic a . Mas</p><p>"c o m ig o não, v io lã o !" , era de fa to o que F e lix de C im a estava</p><p>im ag inando . Para o ilu s tre dem ocra ta fa ch is ta a q u ilo e to d a a</p><p>a rte m oderna era c o m u n ism o . Na ba ta ta .</p><p>De m aneira que do is fica ra m sendo os p r in c íp io s</p><p>educa tivos que F e lix de C im a im p r im iu à p ro te çã o o f ic ia l das</p><p>artes, em M en tira . 19: p ro tege r tu d o q u a n to é a rtis ta estrange iro</p><p>que p ed ir água, pra não ire m lá fo ra fa la r m al do país e pra</p><p>m os tra r que somos m u ito h o sp ita le iro s , co m o d iz ia S a in t-</p><p>H ila ire ; 2 9 : não p ro tege r as artes m odernas p o rq u e não se</p><p>entende mas é co m u n ism o . Q u a n to aos a rtis tas nac iona is , a</p><p>te rra é fa rta e boa, que m o rra m de fo m e .</p><p>A fam osa ca n to ra S iom ara Ponga era fam osa co m jus tiça e</p><p>era o p ro tó t ip o d o v irtuo se . E era ta m b ém o x o d ó de M en tira .</p><p>Da mesma fo rm a co m o no Brasil havia gente que considerava a</p><p>p ro to fo n ia do "G u a ra n i” a m úsica m a io r do m u n d o , havia em</p><p>M en tira gente encanecida que mesm o com g ripe p ne um ôn ica</p><p>não perd ia um só re c ita l de S iom ara Ponga, p o rqu e , m eu Deus!</p><p>tin h a m v is to ela de pequena b rin ca n d o na rua, tã o engraçad inha!</p><p>Porém S iom ara Ponga m erecia a fam a in te rn a c io n a l que</p><p>tin h a . Estudara m u ito , traba lha ra e traba lhava c o tid ia n a m e n te a</p><p>voz. P oderíam os sem fa vo r reconhece r que a lcançara uma</p><p>c u ltu ra le g ítim a . Não só a vo n ta de de vencer a levara a estudos</p><p>gerais que a excep tuavam no p o le iro dos a rtis tas , co m o</p><p>rea lm ente</p><p>ela sabia m úsica, coisa a inda mais rara e n tre os</p><p>in té rp re te s da m úsica. Mas apesar d isso, ela não passava dum a</p><p>v irtu o se da mesma qua lidade péssima dos v irtuoses</p><p>in te rna c ion a is . A is to a re d u z iu a sua inco n ce b íve l va idade, e os</p><p>interesses com erc ia is que a escravizavam ao seu p ú b lic o .</p><p>Não se pode fa la r que a va idade de S iom ara Ponga era</p><p>exc lu s ivam en te dela; to d o s os a rtis tas são m onstros ta m b é m</p><p>pela va idade. Mas a de S iom ara era " in c o n c e b ív e l” , ju s ta m e n te</p><p>p o rqu e a c u ltu ra que alcançara a deveria levar a esse processo</p><p>de superação da va idade, de d ig n ifica çã o da va idade, que a</p><p>fecunda , e a tra n s fo rm a num o rg u lh o mais ú t i l . C om o o dos</p><p>v irtuoses que se ded icam s is tem a ticam en te à educação do seu</p><p>p ú b lic o , o u dos que trava m bata lha pela m úsica do seu te m p o ,</p><p>que em to d o s os te m p os fo i cham ada de "m o d e rn is ta ” , "a rs</p><p>nova” , "m ú s ica do fu tu r o " ou " fu tu r is m o " ju s to p o r ser a do</p><p>presente. Mas S iom ara Ponga se entregara p o r c o m p le to ao</p><p>"a ca d e m ism o ” da v irtu o s id a d e .</p><p>Ela conhecia m u ito su fic ie n te m e n te a h is tó r ia e o m u n d o</p><p>das artes, pra reconhece r co m o era b a ix o e indecen te o</p><p>"a ca d e m ism o ” de todas elas. B a ixo p o r fazer da a rte um a</p><p>in d ú s tr ia reles. Esses a rtis tas académ icos na verdade não</p><p>passavam duns cava lhe iros de in d ú s tr ia , e assim se dev iam</p><p>cham ar, p o rque v iv ia m da exc lu s iv id ad e do d in h e iro , dessa paga</p><p>cu tta ou gorda (c o n fo rm e a "c e le b r id a d e " de cada u m ) que a</p><p>i<|norância pregu içosa dos se m icu lto s pod ia lhes ceder. E só</p><p>disso. N em com a g ló ria , com a va lo rização pessoal, eles se</p><p>inco m o d ava m mais, achapados na exc lus iva fo m e do seu</p><p>d in h e ir in h o . O academ ism o não era neles, nem nunca jam ais fo i,</p><p>um a co nv icção , um a fé . A prova mais crue l disso é a veem ência</p><p>iid íc u la co m que os académ icos mais esperta lhões b lasonam de</p><p>com preensivos, assim co m um ar de su p e rio rida d e bem pensante</p><p>ji<:«!Ítando os m odernos do te m p o . E ta m b é m a lim e n ta m ,</p><p>id io tiz a d o s pela va idade, a ânsia to n ta de serem conside rados</p><p>pelos m odern is tas , m od erno s ta m b é m . A o passo que bastaria</p><p>d en u n c ia r um q u a lq u e r academ ism o d im in u to n u m m oderno</p><p>ve rd ad e iro pra este receber a ressalva na cara, c o m o um</p><p>b o fe tã o .</p><p>S iom ara Ponga lia m u ito as revistas de a rte pra não se</p><p>in te ira r dessa d ig n id ad e da a rte . As revistas todas, de to d o o</p><p>m u n d o , co m raríss im as e fin an c is tas exceções, só tra ta v a m da</p><p>a rte h is tó r ic a do passado, fe n ó m e n o im p o s it iv o de c u ltu ra ou</p><p>das m an ifestações m odern is tas , fe n ó m e n o im p o s it iv o de c u ltu ra</p><p>ta m b é m . S iom ara perceb ia que essas eram as únicas revistas</p><p>vivas; ao passo que um a " I l lu s t r a t io n " , um " S tu d io " m esm o,</p><p>e ram revistas m orta s , a subserv iência escandalosa aos in s tin to s</p><p>ba ixos da s e m ic u ltu ra burguesa e do academ ism o. E eram tão</p><p>poucas! ao passo que as revistas vivas abundavam . . .</p><p>T u d o isso no ín t im o S iom ara chegava a reconhecer. Às</p><p>vezes lhe v inh am aspirações m elancó licas de. . . v ive r! Que</p><p>bobagem , po is ela não v iv ia ! N ão v iv ia . E si eu desse ao menos</p><p>um re c ita l das p rim e ira s can ta tas ita lianas, das p rim e iras</p><p>pastora is?. . . Si eu desse em M e n tira , a fin a l p á tr ia dele, ao</p><p>m enos um a parte de re c ita l ded icada às canções de Jan jão? A</p><p>ca n to ra sentia o va lo r de Jan jão , a fo rç a c r ia d o ra dele, a</p><p>c o n tr ib u iç ã o h is to r ic a m e n te im p o rta n tís s im a que ele traz ia para</p><p>a m úsica de M e n tira , mas. E en tão ela se apegava a um a</p><p>rea lidade té cn ica , no fu n d o tã o falsa co m o as o u tra s : As</p><p>canções de Jan jão p o d ia m ser lindas, mas vo ca lm e n te não</p><p>" re n d ia m " , não fica va m bem prá voz. P od iam estragar a voz</p><p>dela, co m o já se fa lo u de W agner.</p><p>F a ls ificação pura , p o rq u e assim que os can to res</p><p>"s o u b e ra m " ca n ta r W agner, ele não estragou a voz de n inguém</p><p>mais. O m esm o se dava co m as canções de Jan jão . Escritas em</p><p>lín g u a n ac io n a l, elas e x ig iam to d a um a emissão nova, to d o um</p><p>tra b a lh o de linguagem e de im p os taçã o , to d o e n fim um</p><p>"b e lc a n to " novo e n ac ion a l, que va lorizasse essa fo n é tic a</p><p>ignorada dos be lcan tos europeus. E, co nse qu en te m e n te ,</p><p>valorizasse ta m b é m essas linhas m elód icas e m itid a s voca lm en te ,</p><p>e que necessariam ente de rivavam dessa fo n é tic a , da mesma</p><p>fo rm a que a m e lod ia ita lia n a não pode ria te r jam ais nascido da</p><p>fo n é tic a francesa, nem a a lem ã da espanhola . Uns te m p os a inda</p><p>S iom ara Ponga te n to u . Porém as fo né ticas a r t if ic ia is e as</p><p>im postações do ca n to de a p ito g e rm â n ico , as nasalações</p><p>francesas, os g rupos consonan ta is ita lia n o s , tu d o isso ela</p><p>aprendera m u ito bem , mas c o m professores alemães, franceses,</p><p>ita lia no s . Ela pegou nas regras de p ro n ú n c ia can tada propostas</p><p>pe lo D e p a rta m e n to de C u ltu ra de São Paulo , e que, co m poucas</p><p>m od ifica çõ es ind icadas p o r m a io r e xp e rim e n ta çã o e c u lt iv o .</p><p>fo rn e c e r ia m u m b e lcan to em lín gu a n ac ion a l, tã o , d igam os, tã o</p><p>a n tro p o g e o g rá fic o co m o os europeus. Mas tu d o isso ex ig ia ta n to</p><p>tra b a lh o n ovo , tan tas expe riênc ias, a d q u ir ir técn icas novas. . .</p><p>E dem ais a m ais ela cantava tã o pouco em lín gu a n a c io n a l, só</p><p>um a pec inha em cada c o n c e rto , e só m esm o p o rq u e o governo</p><p>obrigava a isso p o r le i. . . P re fe riu ca n ta r essas pecinhas de</p><p>q u a lq u e r je ito , em geral co m o te x to e scon d ido na pa lm a da</p><p>m ão, pra não se dar ao tra b a lh o nem de deco ra r duas quadras,</p><p>ela que sabia to d o s os te x to s de S ch um a nn , de S c h u b e rt, de</p><p>W o lf, de B rahm s, de Fauré, de Chausson, de D up a rc d e co r! Era</p><p>um a v irtu o se , no m ais degradante s e n tid o da palavra. Um a</p><p>escrava desse p ú b lic o banal de rec ita is caros, que ta n to aplaude</p><p>um B ra ilo vsqu i co m o um cava lo de c o rr id a . S iom ara Ponga era</p><p>um cavalo de c o rr id a , fin ís s im o o lé !, escrava desse p ú b lic o</p><p>d e tr ita l que bó ia no e n x u rro das se m icu ltu ras . P ú b lico que si</p><p>lhe p ro p o rc io n a va m o m e n to s de ilusão de g ló ria nas ovações, ela</p><p>não p od ia pensar sequer um m in u to mais pensado ne le que não</p><p>lhe desse repugnância .</p><p>Mas co n tin u a va . A ún ica h ones tidade em que ela se</p><p>d e tive ra , cons is tia em e x ig ir de si mesm a, fa ze r bem fe ito o que</p><p>ela sem pre fize ra . . . bem fe ito . P orque, c o m o co m to d o s os</p><p>v irtuoses in te rn a c io n a is , as m aravilhosas q ua lidades de S iom ara</p><p>Ponga eram inatas. L in da , e legante, expressiva, que lind a voz,</p><p>m eu Deus! que voz lin d a ! que a finação p e r fe ita ! que</p><p>vocalizações irrep reens íve is ! Mas tu d o isso lhe v inh a do berço</p><p>já. E o tra b a lh o de la , tra b a lh o severo, fa tig a n te e c o tid ia n o , fo ra</p><p>apenas se escravizar a isso tu d o . Ela apenas, c o m o a m a io ria</p><p>in f in ita dos v irtuoses in te rn a c io n a is , não fize ra m ais que</p><p>d esv irtua r a sua su b lim e predestinação .</p><p>E deste d e s v irtu a m e n to se pod ia d e d u z ir , m esm o não a</p><p>conhecendo nem lhe conhecendo a ca rre ira , to d a a v ida de</p><p>a rtis ta de S iom ara Ponga. Os seus rec ita is eram aquela</p><p>pachochada f ix a : um a p rim e ira p a rte co m a lguns c lass iqu inhos</p><p>pra bancar c u ltu ra ; um a segunda p a rte ded icada ao lied</p><p>ro m â n tic o ou fe ita de franceses; e um a te rce ira parte de</p><p>variedades, em que ela glissava pra cham uscar p a tr io tis m o s , um a</p><p>peçazinha o u duas de c o m p o s ito r da te rra em que estava e pra</p><p>cham uscar sensualidade, no f in a l, um a peça m a la b a rís tica ,</p><p>in d e c e n te 'c o m o va lo r a r tís t ic o , mas que faz ia a casa v ir aba ixo .</p><p>T in h a m sido sem pre assim os já o ito c e n to s e sessenta e</p><p>q u a tro rec ita is que esperd içara p o r esse m u n d o fo ra . E co m isso</p><p>se vang lo riava de já te r can tado em v in te e seis línguas. Mas na</p><p>verdade ela conhec ia apenas c in co , o ita lia n o , o francês, o</p><p>a lem ão, sabidos de verdade, um espanhol de o it iv a e u m inglês</p><p>de a rg e n tin o . A lín gu a nac iona l não se pode d ize r que ela sabia</p><p>não. Mas cantara até em japonês, íd iche e árabe. O processo é</p><p>co n h ec ido . Chegando no Japão, co m o co m o v ia os o u v in te s ela</p><p>can ta r em fa ch ism o , S iom ara Ponga se aconselhava sobre os</p><p>co m p os ito re s da te rra , escolh ia um a co is inha bem fá c il do a u to r</p><p>p re fe r id o do p ú b lic o , e tom ava um p ro fesso r que lhe ensinasse a</p><p>p ro n ú n c ia das palavras e o que s ign ificava m . O re su lta d o era a</p><p>bobagem mais la rvar que já se v iu em m úsica de ca n to .</p><p>P ronúncia p e rfe ita , com preensão ps ico lóg ica geral da tr is teza ou</p><p>da a legria do te x to , mas acentuações ps ico lóg icas todas erradas,</p><p>va lo rização to n ta de palavras, pon tuações todas falsas, o</p><p>escancara m en to su m á rio do ca b o tin is m o . Porém , m eu Deus!</p><p>co m o ela traba lha ra honestam en te essa desonestidade ! E</p><p>S iom ara Ponga d o rm ia sem rem orsos. Não tin h a a m enor</p><p>inq u ie taçã o . Jamais se propusera com lea ldade que a rte não</p><p>que r d ize r fazer bem fe ito , mas fazer m e lh o r. O fazer bem e</p><p>c e rtin h o lhe sossegava uma consc iênc ia fá c il, o c o n fo rm is m o</p><p>dom es tica do , a subserviência às classes d om in a n te s . Era adorada</p><p>dos p o lít ic o s e dos m ilio n á rio s , a quem não causava o m enor</p><p>in c ó m o d o , rica. Era adorada das m ocinhas que estudavam</p><p>ca n to , que se p ro je ta va m nela, e pelas ve lh ices que a t in h a m</p><p>v is to b rin ca r de esconde-esconde em pequena. Praquê mais?</p><p>V irtuoses assim não ex igem mais.</p><p>Encontro no Parque</p><p>Apresentação dos dois</p><p>personagens não</p><p>conf ormistas. Ser artista</p><p>responsabilidade atual.</p><p>Técnica e artesanato.</p><p>Cepticism o de Janjão</p><p>atacado por Pastor Fido.</p><p>O c o m p o s ito r Jan jão se d ir ig ia para o so lar de inve rno da</p><p>m ilio n á ria Sarah L ig h t. la ca lçân tibus , passo irre g u la r e</p><p>apressado. Estava nervoso. Mais que nervoso: a perspectiva</p><p>daque le banque te em que ia se e n co n tra r co m o ilu s tre p o lí t ic o</p><p>F e lix de C im a e a grande can to ra S iom ara Ponga, lhe dava um</p><p>s e n tim e n to c o n tra d itó r io de so lidão . Jamais o c o m p o s ito r não</p><p>se sentira tã o so z in ho co m o naquele d o m in g o em que vários</p><p>personagens das'classes d om in a n te s o a co lh ia m para p ro tegê -lo .</p><p>Ele consta tava m u ito bem que p ro teg iam as artes po r causa da</p><p>m iséria dele, e não ele p o r causa das artes, co m o deve ser. A</p><p>sensação da esm ola ba tia na cara dele, e amargava.</p><p>Jan jão atravessava o parque. Não havia n inguém nos ja rd ins ,</p><p>nem ope rá rios nem crianças recebendo vida d o ar p o rqu e c o n fo rm e</p><p>os costum es da te rra , to d a a gente se conservava fechado em casa</p><p>aos d om in g os , pra e v ita r resfriados. O parque estava dese rto na</p><p>sua co m p o s tu ra a lin ha da , sem árvores, sem som bras, com seus</p><p>gram ados in s íp id o s e a d isc ip lin a das a rvore tas tosadas.</p><p>De repen te Jan jão escu tou um susp iro e em seguida a f lo r</p><p>fe liz d u m pa lavrão, pa rou . A lgum as hastes da m o ita a inda</p><p>m exeram um bocado no ar sem ve n to , depo is tu d o ca iu na</p><p>im o b ilid a d e o u tra vez. Jan jão se a p ro x im o u , e com os braços</p><p>c o m p rid o s a p a rto u a m o ita pe lo m eio .</p><p>— O que você está fazendo a í!</p><p>— Você está vendo.</p><p>N o chão da m o ita vicejava um rapaz de seus v in te anos,</p><p>r in d o pra ele.</p><p>— Você rião te m onde d o rm ir , rapaz! O u isso é fa rra? . . .</p><p>— É tu d o ju n to .</p><p>— Q uem é você?</p><p>— Eu?. . . (O m oço espregu içou, sem pre s o rr in d o ). Eu sou</p><p>a m oc idade , eu sou o a m o r. . . Eu sou a Mosca A z u l, de</p><p>M achado de Assis, você já conhece. . . Pra to d o s os e fe itos</p><p>p ú b lico s e ju r íd ic o s , sou b ra s ile iro , m a io r, q u in ta n is ta de</p><p>D ire ito , vendedor de apó lices da C om panh ia de Seguros A</p><p>In fe lic id a d e , e me cham o Pastor F id o .</p><p>— E studan te e vendedor de apó lices. . .</p><p>— Pois é, senhores ju rad o s : o réu precisava v iver.</p><p>— Mas p o r que você não escolheu um a p ro fissão mais</p><p>a fim com os seus estudos!</p><p>— O m eu d es tin o era a im prensa, eu s in to ! D ize r a verdade</p><p>ve rdadeira ao p ovo , depo is que o te a tro d e ix o u de ensinar e o</p><p>c inem a fa z questão de não ensinar. O m eu d e s tin o é a im prensa,</p><p>mas nem a im prensa d iz a verdade m ais, depo is que e n tro u para</p><p>o G E L O ! Q ual a m ig o !. . . A m oc idade de ho je está condenada.</p><p>O u apó ia os donos da v ida ou v ira a q u ilo que você sabe.</p><p>— E você, o que p re fe riu?</p><p>— V ire i a q u ilo (M u ito b a ix in h o , já não r in d o ) . Eu sou a</p><p>m oc idade , sou o am or. . . V e n d o apó lices da C om pa n h ia de</p><p>Seguros A In fe lic id a d e , Mas, e você, am igo? Você q ue m é?</p><p>— Eu sou c o m p o s ito r.</p><p>O m oço ca iu na risada.</p><p>— Puxa! c o m p o s ito r co m um co rp o desses!</p><p>— Que te m o m eu co rp o co m a m in h a m úsica?</p><p>— De fa to não te ria nada e até com esse c o rp o a gente</p><p>pode ser m ús ico b om , mas d u v id o . V ocê, pra m ús ico , é</p><p>a n tip á tic o à p rim e ira v is ta , co m o é que vai re u s s ir? V ocê não</p><p>te m o "p h y s iq u e du ró le " , am igo . C om esse co rp ã o e sq u ip á tico ,</p><p>fe ito aos pedaços, dos quais nen hu m pertence a um m ús ico seu</p><p>fado é fe ito o m eu, desgraça. O lh e : eu já te n h o um a expe riênc ia</p><p>e no rm e da v ida, m e s in to o c to g e n á rio . . . A f in a l das con tas não</p><p>sou fe io , você está vendo , e te n h o a m oc idade a m eu fa vo r. Mas</p><p>lhe ju ro que já estava num em prego bem m e lh o r, si não tivesse</p><p>esta ve rrug u in ha no n a riz , co m o R ona ld de C arva lho . Eu a inda</p><p>hei-de fazer um ensaio sobre a p redestinação fis io ló g ic a dos</p><p>in fe lizes . Já a rran ja ram isso p ro c r im in o s o n a to , mas Lom broso</p><p>é um a besta. E x is te um a in fe lic id a d e m o to ra . A in fe lic id a d e</p><p>m o to ra está nas verrugas, d ou m inha palavra de hon ra . Você</p><p>é fe io , seu m úsico.</p><p>— Vam os andando . . .</p><p>O c o m p o s ito r estava m e io desapon tado . P r in c ip io u</p><p>a ju n ta n d o as coisas do Pastor F id o , esparsas, um a pastaz inha de</p><p>c o u ro de que escapavam apó lices, um a escova de den tes, um</p><p>p o n tin h o , e um liv ro que eram as "R e fle x õ e s sobre a V a id a d e ".</p><p>F o ra m andando . Pra d is fa rça r, Jan jão p e rg u n to u :</p><p>— V ocê a inda lê M atias A ires?</p><p>— Não sei. . . M atias A ires é cam arada. E le causa um mal</p><p>cistar gostoso d e n tro da lite ra tu ra portuguesa . M atias A ire s</p><p>in tro d u z a in te lig ê n c ia em P ortuga l. . . N ão! não q u e ro d ize r</p><p>quo os clássicos portugueses não possuam m u ita s qua lidades de</p><p>e n te n d im e n to , mas a in te ligê nc ia não é apenas isso.</p><p>I*i in c ip a lm e n te a in te ligê nc ia a rtís tic a , que há-de sem pre</p><p>lu n c io n a r im p u ls io n a d a por um grande am or.</p><p>Os clássicos portugueses são bem m o n ó to n o s . . . As vezes</p><p>dum a suavidade e s tilís tic a m arav ilhosa co m o Fre i L u ís de</p><p>Sousa, às vezes d um a v ivac idade adunca que nem V ie ira , dum a</p><p>a ir te z a de expressão so la r que nem João de Barros, mas, com a</p><p>oxct?ção m iracu losa de Camões, não são in d iv íd u o s am orosos,</p><p>não são sensuais. A fa lta de a m a b ilida de d ia n te da v ida é uma</p><p>ca ra c te rís tica d o clássico lus ita n o , em co n tra s te com a</p><p>in te lig ê n c ia portuguesa no geral, que é tã o sensível. G osto de</p><p>português. Já nem fa lo d u m C as tilh o , d u m H ercu la no</p><p>fic c io n is ta , d u m F e lin to , que são bu rríss im os , mas que d ia bo !</p><p>esses clássicos portugueses não co m p re en de m ! N ão lhes fa lta</p><p>sexua lidade in te le c tu a l, mas sensualidade, gozo , a m o r, am or da</p><p>v ida , e desse a m o r se m o rre . Si Gonzaga nasceu em Portuga l e</p><p>G onçalves Dias no B ras il: este é bem mais p o rtug a co m o</p><p>in te ligê nc ia que o p r im e iro . Gonzaga, apesar da d is tânc ia da</p><p>expressão lin g u ís tic a que nos separa dele, a gente percebe que</p><p>ele ama a in fe lic id a d e que so fre , da mesma fo rm a que Á lvares</p><p>de A zevedo am a a in fe lic id a d e que im agina. O am or é um a</p><p>fa cu ld ad e p rin c ip a lís s im a da in te lig ê n c ia seu Jan jão .</p><p>— Eu se i!. . .</p><p>— Veja bem que não fa lo o sexo, mas o A m o r ! Ele é que</p><p>fo rm a a in te lig ê n c ia co m p le ta d a , o e q u ilíb r io v io le n to de todas</p><p>as facu ldades e d e s tró i no in d iv íd u o , que é p o r na tu reza um</p><p>"c o n s e rv a d o r" , esse p r in c íp io repugnan te de jog a r no ce rto , o</p><p>academ ism o. M atias A ire s levou p ro classic ism o português a</p><p>sensualidade, a sens ib ilidade in te le c tu a l. E d isso p ro vém a</p><p>q ua lid ad e curiosa dele, que é te r s ido um m o ra lis ta am o ra l. Não</p><p>fo i de fa to um m o ra lis ta , e s im um obse rvado r a pa ixo na d o dos</p><p>se n tim en to s hum anos. N ão te m nada dessa co n te m p la çã o</p><p>in d iv id u a lis ta que faz ce rtos e s p ír ito s desam orosos, e p o r isto</p><p>inseguros de si, reag irem c o n tra tu d o e c o n tra si m esm os, pelo</p><p>h u m o u r, pela d ú v id a , pela in d ife re n ça falsa. M atias A ires não</p><p>tin h a nada disso, mas ta m b é m não t in h a nada dessa falsa von tade</p><p>a po s tó lica , s im p lesm en te c réd u la , s im p lesm en te superstic iosa, que</p><p>faz os m ora lis tas a p o n ta re m os males socia is ou in d iv id u a is na</p><p>in te n ção de co n se rta r a lgum a coisa. M esm o d e n tro da " A r te de</p><p>F u r ta r " a gente percebe o in d iv íd u o im p o r ta n tã o , que pre tende</p><p>exercer na te rra a t ira n ia d iv in a d u m a V erdade in a m o v íve l. Não</p><p>co nv ida à co rreçã o : castiga. N ão p ro põ e um a superação: denunc ia .</p><p>Não está do lado da C aridade , está d o lado da Esperança, que é</p><p>um a v ir tu d e esverd inhada e c o n fo rm is ta . Eu c re io até que a</p><p>Esperança fo i e nxe rtada e n tre as v ir tu d e s apenas pra co m p le ta r</p><p>essa obsessão hum ana d o n ú m e ro três. Só e x is te um a v ir tu d e , com</p><p>que a Fé se c o n fu n d e , é C haritas, ve rm e lha , incend iada de am or!</p><p>V ie ira c o n c lu i em fa v o r dum a crença, c o n c lu i p e lo Bem , é</p><p>co n c lu s ivo . Mas M atias A ire s é a p r io r ís t ic o , c o m o as verrugas. Ele</p><p>ama e se p ro je ta . E le não ataca, nem p o r assim d ize r denunc ia a</p><p>va idade, p o rque se c o m p ra z s u tilm e n te em observá-la . As</p><p>"R e f le x õ e s " são um liv ro de in trospecção que se hum an iza . Fez</p><p>a rte ve rdade ira — que é o a m or da v ida , segundo T ilg h e r. . .</p><p>— V ocê é bem lev iano . . .</p><p>— Sou leve. Eu sou a m oc idade , eu sou o am or. . . Mas,</p><p>papagaio ! você não cham a Jan jão !</p><p>— C ham o.</p><p>— E ntão você é o grande c o m p o s ito r Jan jão , nem tin h a</p><p>ligado. T am bém só de ra ro em ra ro se escuta um a obra de</p><p>você. A ú lt im a vez fo i aquele im pagável "E s q u e rz o</p><p>A n tifa c h is ta " , não fo i? Porque não e xecu ta ra m mais o</p><p>esquerzo?</p><p>— Porque co m o ele não em prega as cordas, os p rim e iro s</p><p>v io lin o s da o rq ues tra p ro tes ta ram pe r não aparecer.</p><p>— Janjão , o nosso grande c o m p o s ito r n ac io n a lis ta !</p><p>— Não sou n ac iona lis ta , Pastor F id o , sou s im p lesm en te</p><p>n ac iona l. N ac io na lism o é um a te o r ia p o lí t ic a , m esm o em arte .</p><p>Perigosa para a sociedade, p recária co m o in te lig ê n c ia .</p><p>— V ocê conhece aquela frase de V la m in c k ? “ Em arte ,</p><p>as teo rias têm a mesma u tilid a d e que as rece itas dos m éd icos:</p><p>pra a c re d ita r nelas é preciso estar d o e n te " . . .</p><p>— Não é bem isso. O u p o r o u tra , a a rte é que está</p><p>sem pre doen te . Pois da mesma fo rm a que a doença é uma</p><p>fa lta de in teg ridade fís ica : é um a das fa lta s de p e rfe içã o da</p><p>v ida hum ana que nós buscam os rem ed ia r p o r m e io da arte .</p><p>Mas não exis te um só a rtis ta genia l que não te nh a um a te o ria</p><p>de a rte , que podem os d e d u z ir através das obras e dos atos</p><p>dele. O a rtis ta não precisa nem deve te r um a “ e s té tic a ",</p><p>e n q u a n to esta palavra im p lic a um a f i lo s o f ia do Be lo in te ir in h a ,</p><p>um a organ ização m e tó d ica e c o m p le ta . Mas si não deve te r</p><p>um a esté tica , o a rtis ta deve sem pre te r um a estesia. Uma</p><p>esté tica d e lim ita e a tro f ia , um a estesia o r ie n ta , d e fin e e</p><p>com bate . A a rte é um a doença, é um a insa tis fação hum ana : e</p><p>o a rtis ta co m b a te a doença fa zen do m ais a rte , o u tra a rte .</p><p>"F a z e r o u tra a r te " é a única rece ita para a doença estética da</p><p>im p e rfe içã o . O a rtis ta que não se p reocupa de fazer a rte nova</p><p>é um c o n fo rm is ta , tende a se academ izar. O im p o r ta n te , num a</p><p>te o r ia de a rte , é saber u ltrapassá-la. R epare: M achado de Assis</p><p>nunca fo i um m achad iano ; mas W agner sossobra quase sem pre,</p><p>q uando se to rn a e s tr ita m e n te w agne riano . O a rtis ta não deve se</p><p>p ro p o r o p ro b le m a de fazer " d ife r e n te " eu sei, mas não existe</p><p>um a só obra -de -a rte genia l que não seja d ife re n te . O p rob lem a</p><p>não é fazer d ife re n te , mas fa ze r m e lh o r, que é o que p rovoca</p><p>a d ife re n ça das obras. O a rtis ta que não se co lo ca o p ro b le m a</p><p>do fa ze r m e lh o r c o m o base da criação , é um c o n fo rm is ta .</p><p>P io r! é um fo lc ló r ic o , com o q u a lq u e r hom em do povo .</p><p>— Bolas! você despreza assim o p ovo !</p><p>— Não.</p><p>— Mas despreza o fo lc lo re ?</p><p>— Não.</p><p>— -,Mas, c o n tra p o n ta n d o aquela m oda de v io la com o</p><p>“ G io v in e z z a " no “ Esquerzo A n t ifa c h is ta " , vocé não fez arte</p><p>p ro povo !</p><p>— Não. In fe liz m e n te não. Pelo m enos e n q u a n to o povo</p><p>fo r fo lc ló r ic o p o r d e fin iç ã o , is to é: a na lfa b e to e conservador,</p><p>só e x is tirá um a a rte para o povo, a do fo lc lo re . E os artistas,</p><p>os escrito res p r in c ip a lm e n te , que im ag inam estar fazendo arte</p><p>p ro povo , não passam duns te ó ricos cu rto s , incapazes de</p><p>"ultrapassar a -px fíp rja te o ria 1yÒ ^cfêstihõ~ 'ggra rtis ta e ru d ito não é</p><p>fazer_,arte p ro povo , mas pra m e lho ra r a v id ^J A a rte , mesmo</p><p>a a rte mais pessim ista, po r isso m esm o que não se co n fo rm a ,</p><p>é sempre uma p ro po s ição de fe lic id ad e . E a fe lic id a d e não</p><p>pertence a n inguém não, a nenhum a classe, é de to do s . A arte</p><p>p ro povo , pe lo m enos e nq ua n to o povo fo r fo lc ló r ic o , há-de</p><p>ser a que está no fo lc lo re .</p><p>— Mas você em prega e lem entos fo lc ló r ic o s nas suas</p><p>músicas.</p><p>— Está c la ro ! Em prego às vezes, em bora nem sempre.</p><p>Mas</p><p>sem pre faço m úsica à fe ição das tendências m usicais do meu</p><p>povo, veja bem . O povo é a fo n te , e n q u a n to fo r fo lc ló r ic o . . .</p><p>As águas da fo n te são sem pre as mesmas, p o rém os rios</p><p>co rrem d ife re n te m e n te . E eu sou o r io . Eu nunca m e m etere i</p><p>fazendo isso que cham am por a í de "a r te p ro le tá r ia " , ou "d e</p><p>tendênc ia s o c ia l" . Isso é co n fu s io n ism o . T oda a rte é social</p><p>p o rqu e to d a obra -de -a rte é um fe nó m e n o de relação entre</p><p>seres hum anos. U m m in u e to de salão, um sone to sobre a</p><p>amada, um a na tu re za -m orta , tu d o é socia l. Você fa lo u no m eu</p><p>"E squ e rzo A n t ifa c h is ta " , e só vendo os e log ios e os ataques</p><p>que recebi p o rque estava fa zen do “ m úsica s o c ia l" , beste ira ! O</p><p>que eu fiz , co nsc ien te m e n te f iz , fo i a rte de co m ba te isso sim ,</p><p>a rte de com ba te p o lí t ic o . “ S o c ia l" não te m d úv ida , mas tão</p><p>social com o q u a lq u e r o u tra . D is to é que os a rtis tas precisavam</p><p>fica r bem conscien tes, nem ta n to pra e v ita r esse c o n fu s io n ism o</p><p>da palavra "s o c ia l" q u a lif ic a n d o certas m aneiras de a rte , e a</p><p>a rte de com ba te , co m o porque isso lhes d e fin ir ia a concepção</p><p>do assunto, e a p ró p ria técn ica .</p><p>— A p ró p ria té cn ica !</p><p>— A p ró p ria técn ica . Você se esquece, p o r e xe m p lo , do</p><p>va lo r d in â m ico do inacabado? E x is tem técn icas do acabado,</p><p>com o e x is tem técn icas do inacabado. As técn icas do acabado</p><p>são e m ine n tem en te dogm áticas, a firm a tiva s sem discussão,</p><p>credo qu ia a bsu rd u m , e é p o r is to que a escu ltu ra , que é por</p><p>ps ico log ia do m a te ria l a mais acabada de todas as artes, fo i a</p><p>mais ensinadora das artes d ita to r ia is e re lig iosas de antes da</p><p>Idade M oderna. B íb lia s de pedra. . . Pelo c o n trá r io : o desenho,</p><p>o te a tro , que são as artes mais inacabadas p o r na tu reza as</p><p>m ais abertas e p e rm ite m a m ancha, o esboço, a a lusão, a</p><p>d is c ussão, o conse lho , o co n v ite , è o te a tro a inda essa curiosa</p><p>v itó r ia f in a l das coisas hum anas e tra n s itó r ia s co m o " ú l t im o</p><p>a to " são artes do inacabado, mais p ró p rias para o</p><p>in te n c io n is m o do com ba te . E assim co m o e x is te m artes mais</p><p>p ro p íc ia s para o co m ba te , há técn icas que pela p ró p ria</p><p>insa tis fação do inacabado, m a ltra ta m , e x c ita m o espectador e</p><p>o põem de pé. C om o em certos quadros d o p in to r pau lis ta</p><p>A lfre d o V o lp i, você já v iu? As técn icas do inacabado são as</p><p>m ais p ró p rias do com bate . V ocê repare a evo lução da</p><p>d issonância e da escala d issonante p o r exce lênc ia que é a</p><p>escala c ro m á tica . O c ro m a tis m o na G récia era só p e rm it id o</p><p>aos g ra n fin o s da v irtu o s id a d e , in cu lcad o de sensual e</p><p>d isso lven te , p ro ib id o aos m oços, aos so ldados, aos fo rte s ; e</p><p>P itágoras já descobrira a sensação da d issonância , a " d ia fo n ia "</p><p>c o m o ele fa lo u no grego dele. Mas a re p u d io u . E de fa to o</p><p>d ita to r ia lis m o , o d o g m a tism o grego não qu is saber das</p><p>d issonâncias. N em o C ris tia n ism o p r im it iv o , c r ia d o r do</p><p>d o g m a tism o em uníssono do can tochão . Porquê? P orque a</p><p>d issonância era e m in e n te m e n te re v o lu c io n á ria , era, p o r assim</p><p>d ize r, um a consonância inacabada, bo tava a gente num a</p><p>"a rs is " ps ico lóg ica , botava a gente de pé. E de fa to , a técn ica</p><p>que iria se f ix a r no a taque da d issonância e x ig iu</p><p>p re lim in a rm e n te o m o v im e n to o b rig a d o de três acordes,</p><p>p reparação da d issonância , a taque dela, e reso lução num a</p><p>consonância f in a l e a firm a tiv a . E agora repare h is to r ic a m e n te :</p><p>Q uando que a d issonância se s is tem atiza na m úsica ca tó lica?</p><p>Q u ando que o som c ro m á tic o , que de ixa inacabado o</p><p>d ia to n is m o d ita to r ia l, p r in c ip ia se n o rm a liz a n d o , usado para</p><p>m e lh o r m o v im e n to das partes? Pois é ju s to na au ro ra do</p><p>R enasc im en to , nos séculos X I I I e X IV , co m a Escola de Paris,</p><p>co m a A rs Nova, co m a "m ú s ica f ic ta " de F e lip e de V it r y . É</p><p>a m úsica que fa z iam os padres da un ivers idade de Paris, que</p><p>abre as po rtas a to d a essa técn ica re v o lu c io n á ria do inacabado,</p><p>p o rq u e naque le te m p o e em quase to d o s os te m p os , as</p><p>un ivers idades, sem pre fo ra m fo n te s de re vo lu c io n a rid a d e do</p><p>e s p ír ito . Só agora é que te r e s p ír ito u n iv e rs itá r io s ign ifica ser</p><p>bem -pensante e c o n fo rm is ta . É a revo lução do pensam ento</p><p>liv re d o R enasc im en to que em pregou na m úsica as técnicas do</p><p>inacabado das d issonâncias e do c ro m a tis m o . T oda obra de</p><p>c ircu n s tâ n c ia , p r in c ip a lm e n te a de co m ba te , não só p e rm ite</p><p>mas exige as técn icas mais v io le n ta s e d inâm icas do inacabado.</p><p>O acabado é d o g m á tic o e im p o s i t iv o . i n a c a b a d o é</p><p>c o n v id a tiv o e in s in ua n te . É d in â m ic o , e n fim . A rm a o nosso</p><p>b raço.</p><p>— Mas você pode faze r um a a rte de co m b a te que</p><p>alcance o p ovo . . .</p><p>— Não c re io , in fe liz m e n te , que seja esse o m eu papel de</p><p>a rtis ta e ru d ito . Pelo m enos e n q u a n to o p ovo fo r fo lc ló r ic o ,</p><p>co m o fa le i. Seria m e ada p ta r fa lsam en te a se n tim en to s e</p><p>tendênc ias que não pode rão nunca ser os m eus. Eu sou de</p><p>fo rm a çã o burguesa cem p o r c e n to , você esquece? E pela a rte ,</p><p>pe lo c u lt iv o do e s p ír ito e re fin a m e n to g ra d a tivo , eu me</p><p>a ris to c ra tiz e i cem p o r ce n to . M o ra l, in te le c tu a lm e n te , é</p><p>incon tes táve l que eu sou um a ris to c ra ta , m esm o no sentido</p><p>re lig io so desta palavra . Q uero d iz e r: o h om e m que fa z a "s u a ''</p><p>m o ra l, só aceita a "s u a " verdade, num a lib e rta çã o in d ife re n te</p><p>a qua isque r. . . "re p resen tações c o le tiv a s " . O que , tu d o , não</p><p>im pede , está c la ro , a ex is tên c ia d u m e levado senso m o ra l, dum a</p><p>m o ra l e levadíss im a em m im , e um a verdade co le tiva . C om o em</p><p>E p ic u ro . . . C o m o em R ik iú . . . S im p le sm e n te p o rq u e , po r isso</p><p>m esm o que só resp e ito a " m in h a " libe rd ad e e não posso me liv ra r</p><p>dela, sucede que em sua a lt ive z ela d ita p ra m im um a verdade e</p><p>um a m o ra l que c o in c id e m necessariam ente em m u ita s partes,</p><p>com o Bem e a V e rdade . Essa c o in c id ê n c ia não pode siquer me</p><p>despe ita r, s iquer m e ir r i ta r , po is o que im p o r ta é exc lus ivam en te</p><p>a consc iênc ia , o s e n tim e n to , ou m e lh o r: a ev idênc ia da m inha</p><p>libe rdade . E n f im : sou m esm o um in d iv id u a lis ta , na m a io r</p><p>desgraça e grandeza d o te rm o , n a q u ilo que posso, que devo</p><p>cham ar, sem m od és tia fa lsa : m in h a sabedoria . . .</p><p>— Mas en tão p o rq u e você escreveu o "E s q u e rz o</p><p>A n t ifa c h is ta " ou aquela "S in fo n ia do T ra b a lh o " tã o p op u la r</p><p>c o m o concepção do assun to , e x a lta n d o as fo rm a s p ro le tá rias</p><p>da v ida !</p><p>— M eu Deus! M eu Deus! que a titu d e to m a r d ia n te das</p><p>fo rm a s novas, co le tivas e socia lis tas da vida que encerram pra</p><p>m im quase todas as vozes verdadeiras d o te m p o e do fu tu ro ?</p><p>. . . Mas vozes "c o le t iv a s " que não in teressam ao m eu</p><p>in d iv id u a lis m o nem p od em me faze r fe liz nem d es in fe liz? . . .</p><p>Mas de que te n h o de p a r tic ip a r, p o rq u e a isso m e ob riga a</p><p>m in ha p ró p r ia sa tis fação m o ra l de in d iv íd u o ? . . . É a</p><p>superação do boneco . Pastor F id o , é a superação do boneco !</p><p>Me f iz b</p><p>on eco , en tregue às mãos das fo rm a s novas e fu tu ra s</p><p>da v ida , fo rm a s de que te n h o a certeza, sem te r a convicção .</p><p>T u d o está em ser b on eco co nsc ien te da sua b on e q u ice , o que</p><p>ta m b é m é um a p a ixão , é a m o r e desse a m o r se m o rre . . . É a</p><p>“ se rv itu d e e g ra n d e u r m i/ ita ire s ” do a rtis ta que só pode estar</p><p>s a tis fe ito da sua lib e rd a d e e da sua in d ife re n ç a ao Bem e ao</p><p>Ma*, n essa c o n tra d iç ã o trág ica de c u m p r ir o seu dever. Você</p><p>fa lou no a m o r, faz p o u c o . Pois não se esqueça que o A m o r</p><p>p a r t ic ipa das m an ifestações da p ró p r ia in te l igência . Q uando</p><p>voce fa íò u nisso, eu senti co m o que um a ilu m in a ç ã o em m im .</p><p>Eu não am o o povo , e n q u a n to este é um a pessoa m ais uma</p><p>pessoa, m ais um a pessoa. Estas pessoas só pod em desagradar</p><p>ao m eu re fin a m e n to pessoal, ao m eu a ris to c ra c ism o e sp ir itu a l.</p><p>N em que ro te r com iseração delas, p o rq u e is to seria me</p><p>a n iq u ila r na ba lo fa caridade esm o le r dos c ris tãos , que</p><p>s u b s titu íra m in teressadam ente C haritas pela esm ola. Eu apenas</p><p>e x ijo um a ju s tiça mais su pe rio r, que não consegue negar a</p><p>fa ta lid a d e das classes enq ua n to c lass ificação da va lidade</p><p>in d iv id u a l dos hom ens em g rupos co le tiv o s — coisa que quase</p><p>pertence à H is tó r ia N a tu ra l — mas ju s tiça a que repugna e</p><p>suja a p re de te rm ina ção classista, m an tida pelas classes</p><p>d om in a n te s . P orque isso não está de a co rd o , não poderia</p><p>nunca estar de a co rd o com a " m in h a " verdade. N em é</p><p>questão de ju s tiç a ! A jus tiça , essa ju s tiça dos hom ens, tão</p><p>bem desenhada na a legoria da m u lh e r co m vendas nos o lh os ,</p><p>me repugna. P orque _CQ.ro.P- a rt is ta , co m o in te le c tu a l eu sou um -</p><p>fo ra -da -le i, tã o fa ta liza d a m e n te in c o n fo rm a d o c o m o você co m</p><p>à verruga do seu nariz . T a lvez seja h o rrív e l d iz e r: mas eu am o</p><p>o povo p o rq u e ele é uma p ro jeção de m im , am o ele e nq ua n to</p><p>ele fa z p a rte apenas dessa h um an ida de que eu não sou, mas</p><p>que e x ijo , p o rqu e só e x is to po rqu e f iz ela e x is t ir . O a rtis ta é</p><p>rea lm en te o ú n ic o p ro fiss io n a l que cria a h um an ida de , e é</p><p>co n d ic io n a d o pela sua c r ia tu ra . Os co n q u is ta d o re s de povos,</p><p>que r p o r m e io da guerra q ue r p o r m e io do c a p ita lis m o , não</p><p>concebem a hum an idade , nem eles! Porque são p o r natu reza</p><p>in te rna c ion a is . Só o a rtis ta in ve n ta a h um an ida de . Porque</p><p>sendo o u t- la w , e x tra -e co n ô m ico p o r na tu reza , sem classe p o r</p><p>natu reza, sem povo p o r na tu reza , sem nação, o a rtis ta não</p><p>de ixa p o r m enos: o que ele exige é a hum an ida de . Eu sou um</p><p>desgraçado, Pastor F id o . Eu sou o desgraçado, c o m o Deus. A</p><p>m inha consciência m ora l e in te le c tu a l ex ige de m im p a r tic ip a r</p><p>das lu tas hum anas. E eu p a r t ic ip o . S o lic ito a verdade e pela</p><p>sín tese das obras de a rte , p ro p o n h o um a v ida m e lh o r e c o m b a to</p><p>po r. Eu, re p u d ia n d o os nac iona lism os, pela m in h a p ró p r ia</p><p>ex igência de hum an idade no e n ta n to me es fo rço em ser nac ion a l,</p><p>co m o Deus se constrange n o "n a c io n a lis m o " das re lig iões . O</p><p>C a to lic ism o , neste se n tid o , é tã o in te lig e n te e a rtis ta , que se</p><p>cham ou de " c a tó l ic o " , "c a th o lik ó s ” , co m p re e n d e n d o a</p><p>un ive rsa lidade , a h um an idade d o Deus. . . E eu p a r t ic ip o !</p><p>— C on s tran g id o . . .</p><p>— Não, Pastor F id o , eu não estou co n s tra n g id o não!</p><p>Ta lvez nem Deus esteja co ns tran g id o . . . Eu não estou</p><p>co ns tran g id o , mas " e x ig id o " pela m inha p ró p r ia verdade de</p><p>m im , de a rtis ta . Eu am o essa hum an idade que eu inve n te i, eu</p><p>am o co m ra iva ! Eu am o apavoradam ente , Pastor F id o , eu</p><p>te n h o m edo! eu te n h o m edo dessa rea lidade m onstruosa que</p><p>é m ais fo r te que eu!</p><p>O c o m p o s ito r Jan jão parara no m e io da estrada,</p><p>m o rd e n d o a m ão pra e v ita r a fraqueza da lágrim a. O m oço</p><p>teve dó . S o rr iu sem e v ita r um pouco da iro n ia , o lh a n d o</p><p>aqueles ossos, ossos fís ico s , ossos in te le c tu a is , ossos m orais,</p><p>m o n tu ro de ossos, tã o sensual, tã o c o n tra d itó r io e bem</p><p>m esqu inho . F e riu , p o r p iedade:</p><p>— E os artis tas académ icos?</p><p>O c o m p o s ito r Jan jão a b riu para o rapaz, os o lh os</p><p>úm idos. A os poucos um a expressão fe ia de asco lhe</p><p>desm anchou a cara to d a . M u rm u ro u hes itan te , che io de</p><p>egoísm o a m o ro so :</p><p>— Esses não são p re lim in a rm e n te a rtis tas. Não são</p><p>a rtis tas , à m aneira fa ta l co m que as verrugas são verrugas. . .</p><p>Se fiz e ra m a rtis tas p o r ca p ita lism o . Não são a rtis tas , são</p><p>cap ita lis tas . Mas e x is tem até cap ita lis tas genia is, R afae l, por</p><p>e xem p lo . . . Paganin i, Ravel. . . V am os a nd an do !</p><p>Jan jão estava bastante enve rgonhado co m a fraqueza que</p><p>tive ra de m os tra r as suas co n trad içõe s de a rtis ta , consc ien te da</p><p>servidão socia l das artes mas incapaz de se lib e r ta r d o seu</p><p>in d iv id u a lis m o . C o n tin u o u andando , p e rd id o lá no seu m undo</p><p>nebu loso , m u rm u ra n d o in d ife re n te ao m oço que o seguia:</p><p>— . . . Já não consegu iria mais c o n s tru ir um a a rte que</p><p>interessasse d ire ía m e n te as massas e as movesse. . . O m e lh o r je ito</p><p>de m e u t i l iz a r , de acalm ar a m in h a consc iênc ia liv re , im a g in o que</p><p>será fazer o b ra malsã. . . Malsã, se co m p re en de : no se n tid o de</p><p>c o n te r germes d e s tru id o re s e in to x ica d o re s , que m a les ta rizem a</p><p>v ida a m b ien te e a judem a b o ta r p o r te rra as fo rm a s gastas da</p><p>sociedade. Obras que entusiasm em os m ais novos, a inda capazes</p><p>de se c o le tiv iz a r. e os dec idam a um a ação d ire ta . . .</p><p>. . . Na verdade o p e r ío d o d e s tru t iv o das artes a inda não</p><p>acabou. N em m esm o para os m oços que já tiv e ra m o u tras</p><p>fa c ilita çõ e s co le tivas e beberam co m o le ite m a te rn o , os leites</p><p>e venenos das ideo log ias socia is novas. Eles ta m b é m , nestas</p><p>paragens, só podem d e s tru ir , só agem d e s tru in d o . O ra si pra</p><p>eles que já são socia listas de fa to , já são " f is io lo g ic a m e n te "</p><p>co le tiv is tas , a ação te m sido d es tru içã o e co m b a te , q u a n to</p><p>m ais pra um co m o eu, que p o r mais c o le tiv is ta de</p><p>pensam ento , não passo d u m burguês de fa to ,</p><p>" f is io lo g ic a m e n te ” burguês. Pra m im as fo rm a s d o fu tu ro</p><p>serão sem pre um me a tira r no ab ism o. . . Eu não posso me</p><p>id e n t if ic a r com esse fu tu ro que eu sei, que to d o s sabem,</p><p>há-de v ir. Só fazer ob ra malsã. . . T eo rism os, c o n s tru ir , seria</p><p>um a fa ls ifica çã o insu p o rtá ve l de m im . . .</p><p>O engraçado é que os que cham aram aos m odern is tas de</p><p>"d e s tru id o re s " assim co m o os m odern is tas que se im ag inaram</p><p>ta is, to do s se enganaram . Na verdade, em bora d e s tru in d o</p><p>cânones e escolas de a rte , em bora d e s tru in d o certa b u rr ic e da</p><p>rig idez m o ra l e in te le c tu a l, já inú te is , da burguesia, o que se fez</p><p>fo i sem pre co ns truçã o a serviço dessa mesma burguesia. Só o</p><p>" s in to m a " , Pastor F id o , só o " s in to m a " re v o lu c io n á r io teve</p><p>fu n c io n a lid a d e d e s tru tiv a para o e s p ír i to d e revo lta e d es tru içã o</p><p>de agora. P or onde a inda se prova que as técn icas d o inacabado</p><p>são com bativas . . . Mas n inguém fo i m ais sensato que aquele</p><p>poeta que no seu p r im e iro liv ro m od e rn is ta , a firm o u que o</p><p>verso liv re não v inha acabar com o m e tr if ic a d o , mas se</p><p>acrescentava a este co m o um a riqueza a mais. E is to é</p><p>co ns trução . Pastor F id o ! É riqueza "a m a is ", c a p ita lis m o !</p><p>Sem d ú v id a , é possíve l c o n tin u a r c o n s tru t iv o n a q u ilo em</p><p>que a m inha obra a inda terá de técn ica . E x is te um a técn ica</p><p>p o p u la r, um a técn ica de e s p ír ito fo lc ló r ic o , fa ta lm e n te</p><p>tra d ic io n a l, artesanal p o r p r in c íp io . É o a rtesanato . Mas esta</p><p>técn ica , nascida do m a te ria l e da obra -de -a rte , não é</p><p>e xc lu s ivam en te p o p u la r, po is não deriva do h om em mas do</p><p>o b je to . P orém mesm o a técn ica expressiva e in d iv id u a lis ta , não</p><p>é necessariam ente burguesa co m o não é necessariam ente</p><p>a ris to c rá tica ou p ro le tá ria . É a-classista, é para-classista, po r</p><p>isso m esm o que a sua fa ta lid a d e é o in d iv íd u o . O que sucede</p><p>po rém é que m uitas vezes os donos da vida se apoderam</p><p>dessas técn icas ind iv id u a is , as a u x ilia m e p ropagam , ju s to</p><p>po rque elas podem ser desenvolvidas para o p ro v e ito da scra^</p><p>classe deles. Os " fa u v e s " de todas as artes, não sãá^ fa u v e s ^</p><p>e xa tam en te po rqu e t in h a m um a visão ir re d u tív e l do m un do ,</p><p>mas po rqu e essa visão não era ap rove itáve l nem ú t i l aos donos</p><p>da vida. T od os os in ic iad o re s de técn icas e escolas de a rte ,</p><p>são " fa u v e s " a p r in c íp io . T ão " fa u v e s " eram J e ró n im o Bosch,</p><p>um G reco , um S ca rla tti D o m ê n ico co m o in ic ia lm e n te o fo ra m</p><p>um G io t to , um B u x te h u d e , um C lem en ti. Mas se você observar</p><p>o e s p ír ito , o e s tilo , a o b ra destes ú lt im o s , que fo ra m criadores</p><p>de escolas, e a dos p rim e iro s , que não consegu iram c r ia r</p><p>trad ições, você observa que num B u x te h u d e c o n tin u a d o por</p><p>Bach, n um C lem e n ti c o n tin u a d o p o r Beethoven , n um G ôngora</p><p>co m o num M ane t, p ro life ra m os germes do academ ism o. Não</p><p>germes artesanais, que u ltrapassam os hom ens e as escolas, mas</p><p>os germes da fa c ilita ç ã o , do gostoso, do e ru d itis m o fa lso.</p><p>Não estou a tacando um G io tto , não! Ele fo i tão</p><p>" fa u v e " co m o D om ingos S c a rla tti que n inguém pôde seguir</p><p>nem a d o ta r. Mas o que te m de mais trá g ic o no "p o p u lis m o "</p><p>desses a rtis tas fa ta lm e n te a ris to c rá tic o s p o rq u e in te le c tu a is e</p><p>e ru d ito s , é que esse m esm o p o p u lism o vai ser c o n v e rtid o</p><p>im e d ia ta m e n te pelas classes d om in a n te s , em processos de</p><p>d is ta n c ia m e n to socia l. D esprestig iam o que t in h a de</p><p>essencia lm ente p o p u la r na obra e no e s tilo desses a rtis tas , e só</p><p>a ce itam o que tin h a neles de " p o p u lí s t ic o " , um a te o r ia !</p><p>A m eta desses c ria do res in ic ia is de escolas era sem pre o</p><p>assunto , na in ten ção de se to rn a re m mais e fic ie n te m e n te</p><p>co m u n ica n te s co m a h u m an ida de que sonhavam . Mas as</p><p>exigências dos d o n o s da v ida logo escam ote iam essa in tenção</p><p>p r im o rd ia l de assun to , e x a lta n d o os prazeres es té ticos da</p><p>técn ica de m od o a m ascarar o São F rancisco de G io t to num a</p><p>d e f in it iv a M adonna de R afae l, d e fo rm a r o p ia no de C lem en ti</p><p>no p ia no fin a l de L isz t, o u a o rques tra de B ee thoven na de</p><p>Tscha icovsqu i. O u m esm o de M ende lssohn. . .</p><p>Você repare. Pastor F id o : um M ende lssohn, um</p><p>T scha icovsqu i, u m Sant-Saens, m esm o um R im sq u i, são a</p><p>expressão mais abusiva, d ig o até mais gen ia l da m ed io crid ad e ,</p><p>do academ ism o e da esperteza. Mais p e rfe ito s , m u ito ! que um</p><p>B eethoven , da mesma fo rm a que Rafael é, d e n tro do mesmo</p><p>e s p ír ito , m ais p e r fe ito que G io t to . Sem d ú v id a , esses</p><p>m ed íocres genia is traze m um a c o n tr ib u iç ã o v ir tu o s ís tic a</p><p>eno rm e . Mas apenas. C om pare um M ende lssohn co m um</p><p>B e rlio z . C om o este é mais im p e r fe ito , mas que c r ia d o r</p><p>le g ít im o ! A h , Pastor F id o , co m o eu p re firo os au to res</p><p>m enores aos gén ios m ed íocres ! Não se pode, seria im possíve l</p><p>co lo ca r M ende lssohn, T scha icovsqu i e n tre os m estres m enores.</p><p>Eles a rro m b a m a m odéstia fe liz destes. Mas ta m b é m seria</p><p>im possíve l co locá -los no p r im e iro t im e d u m B eethoven , dum</p><p>P a lestrina , d u m Ram eau. . . Por is to m esm o é que a gente</p><p>percebe a es tup idez fu n c io n a l de les: não pe rtencem ao segundo</p><p>tim e dos m estres m enores, mas ta m b ém não p e rtencem ao</p><p>p r im e iro t im e d u m V e rd i, d u m M o n te v e rd i, d u m M oza rt.</p><p>— E n tão esses T scha icovsqu is e M endelssohns são</p><p>reservas do p r im e iro t im e ! São necrófagos à espera da fa lta ou</p><p>da m o rte dos grandes, pra to m a re m esfom eadam en te o lugar</p><p>deles, e os s u b s titu íre m em ú lt im a ins tânc ia . Isso é que eles</p><p>apenas são. V ocê estará ce rto . . . A técn ica expressiva do</p><p>a rtis ta e ru d ito não é classista p o rq u e é p re lim in a rm e n te</p><p>in d iv id u a l. N em ta m b é m a té cn ica artesana l, que não depende</p><p>d o h om em , mas do o b je to . A técn ica pode no e n ta n to se</p><p>to rn a r classista, q u a n d o se repete , v ira escola e se academ iza.</p><p>A í , ela se to rn a um a v irtu o s id a d e . Mas o d ia b o é que o</p><p>p ró p r io a rtis ta se repete . . . V ira um v irtu o s e de si m esm o. . .</p><p>— Se repete , não te m d ú v id a , e este é um dos p rob lem as</p><p>mais ir r ita n te s da criação a rtís tic a . Na m a io r ia dos casos, po rém ,</p><p>é fá c il a gente perceber que isso deriva de interesses</p><p>a n tia rtís tic o s . O c r ia d o r p r in c ip ia bem , c o m o um C arlos G om es,</p><p>na evo lução G uaran i Fosca, mas não consegue lu ta r c o n tra si</p><p>m esm o e o m e io , se academ iza, v ira ca p ita lis ta , a b a nd on an do</p><p>aquele p r in c íp io de " fa z e r m e lh o r " que já a p o n te i. V o cê veja o</p><p>caso de W agner, que alcança a m arav ilha de T ris tã o e m esm o</p><p>dos M estres C an to res, qua nd o o seu ideal a r tís t ic o consegue</p><p>e n fim se d e f in it iv a r . Mas depo is W agner d o rm iu na v irtu o s id a d e</p><p>de si m esm o, v iro u w ag ne ria no ! E o A n e l e o Pars ifa l são obras</p><p>fracassadas, m era re p e tiç ã o , apesar das passagens genia is que</p><p>W agner não pôde. . . e v ita r. S im p le sm e n te p o rq u e era gên io , era</p><p>m a io r que si m esm o. . .</p><p>— Se dá igual com os génios da c iênc ia , que m u ita s vezes</p><p>se academ izam . . . Há hom ens que se to rn a ra m e te rna m en te</p><p>d ignos da nossa veneração p o r te rem d esco be rto a lgum as</p><p>verdades essenciais. Porém m u ita s vezes eles f ic a m co m o que</p><p>des lum brados pela verdade que d esco b rira m , a genera lizam , a</p><p>ap licam a tu d o . C om o um F reud , p o r e x e m p lo . . .</p><p>— F reud e W agner se equ iparam .</p><p>— E se to rn a m po r isso ind ignos , não da nossa</p><p>veneração, mas das verdades que d esco b rira m . Eu im a g in o</p><p>sim , a in su fic iê n c ia do lo rosa em que você vive Ja n jão : eu</p><p>agora co m p re en do m e lho r p o rq u e , fa z p o u co , você quase</p><p>e xc la m o u , com o si fosse um ideal, essa necessidade d o a rtis ta</p><p>te r um a te o ria , mas dever sem pre u ltrapassá-la em seguida.</p><p>— T e r um a te o ria . . . te r m esm o um a persona lidade e saber</p><p>u ltrapassar tu d o isso! esta ânsia esfom eada de superação. . .</p><p>— Mas então p rocu ra ao m enos se supera r fa zen do a rte</p><p>pra esse povo que você ta m b ém exige.</p><p>— Não p ro c u ro , não te n to . Eu p ro c u ro é envenenar,</p><p>so lapar, d e s tru ir , p o rqu e eu acho, mais p ress in to que acho,</p><p>que o p r in c íp io m esm o da a rte</p><p>Realce</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>traços irres is tíve is co m o o so luço de A r is tó fa n e s ou a entrada</p><p>tem pestuosa de A lc ib ía d e s . Mas se essa escritu ra d 'O</p><p>B anque te evocada é um caso um p o u co especial na obra</p><p>p la tó n ic a , ao c o n trá r io a flu ê n c ia e h u m o r são um a das</p><p>ca rac te rís ticas im p o rta n te s que se e nco n tra m na m a io r parte</p><p>dos te x to s de M á rio , m esm o quando tra ta de p rob lem as</p><p>co m p le xo s e á rduos. E, a lém disso, num a o u tra d ireçã o , O</p><p>B anque te pau lis ta no é m u ito m enos risos e à vo n ta de que seu</p><p>m od e lo clássico e que os escritos hab itua is de M á rio . Um</p><p>c lim a c o n tín u o de m al-esta r e angústia , p o r vezes</p><p>in tens íss im o , envo lve os risos e as com idas — é que o a u to r</p><p>se a tira p ro fu n d a m e n te n a q u ilo que faz suas personagens</p><p>d ize rem , lançando p rob lem as para ele essenciais e para os</p><p>qua is não vê resposta concre ta a lgum a.</p><p>Mas não an tec ipem os. S obre P la tão a inda nos resta</p><p>d ize r a semelhança acusada e n tre a ju v e n tu d e , a "g raça do</p><p>c o rp o n o v o " no d ize r de M á rio , o es tabanam ento , a</p><p>im pe tuos idade a d m ira tiv a e en tus iástica (e ao m esm o te m p o</p><p>d is tan te ) que ex is te e n tre A lc ib ía d e s e Pastor F id o . E</p><p>resta-nos tam bém lem bra r o p ro b le m a da m úsica grega. Uma</p><p>das preocupações fre q u e n te s de M á rio são os e fe ito s</p><p>p s ico fis io lóg icos da m úsica e a sua in te rvenção , seu papel</p><p>m u ito a tiv o na sociedade co n te m p o râ ne a : estão ligados a</p><p>esses prob lem as a discussão sobre as d issonâncias e o</p><p>inacabado nas artes (O B anque te — págs. 62 e 63) e a</p><p>evocação dos "e th o s " m usica l grego:</p><p>" o c ro m a tis m o na G récia era só p e rm it id o aos g ra n fin os</p><p>da v irtu o s id a d e , in cu lca d o de sensual e d isso lven te ,</p><p>p ro ib id o aos m oços, aos soldados, aos fo r te s " .</p><p>Esta ú lt im a questão já a tra íra bastante M á rio , à qual</p><p>ded ica páginas im p o rta n te s na Pequena h is tó r ia da m úsica.</p><p>Nesse ca m in h o , a le itu ra de P la tão deve te r- lh e fo rço sam e n te</p><p>interessado, mas m u ito m ais o liv ro II das Le is ou o liv ro I I I</p><p>da R ep úb lica que o B anque te , cu ja ún ica m agra re fe rênc ia</p><p>m usica l é a passagem ráp ida que se e nco n tra no d iscu rso de</p><p>E r ix ím a c o . E essa passagem poderia ser s ig n ific a tiv a com</p><p>relação ao estado de in q u ie tu d e , de espera, ao se n tim e n to de</p><p>inacabado d in â m ic o e fe c u n d o que M á rio a firm a ser</p><p>ca ra c te rís tico da d issonância , pois E r ix ím a c o d iz de m od o</p><p>o p o s to , que a a rte m usica l é a co n c ilia çã o de sons</p><p>d isco rdantes pelo acorde , o que p ro d u z a consonânc ia ,</p><p>c ria n d o um estado de "a m o r e c o n c ó rd ia " .1 Mas to da essa</p><p>1 187 a b c , p. 1 1 9 a 121 da tradu ção do p ro f. J. C ava lcan te de</p><p>S o u za , São Paulo, D ifusão E u ro p é ia do L iv ro , 1 9 6 6 .</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>ginástica é in ú t i l: a idéia de M ário — dissonância = inqu ie tude</p><p>— corre as teorias clássicas da música. Para darmos um</p><p>exem plo, citem os o velho e conhecido manual de Danhauser,</p><p>de 1872:</p><p>"L es intervales dissonants (. . .) sont ceux qui fo rm e n t</p><p>entre eux deux sons que Tore ille éprouve le besoin de</p><p>m o d ifie r, en les rem plaçant par d 'autres sons; la</p><p>dissonance donne une impression d 'in s ta b ilité , les sons</p><p>ayant une tendence à se dissocier pour a b o u tir à une</p><p>consonance".2</p><p>Deste m odo, O Banquete de Platão se revela com o um</p><p>padrinho de pouca ou nenhuma in fluênc ia , e o te x to de M ário se</p><p>insere antes numa linhagem de diálogos filosó ficos , fo rm a que</p><p>desde o filó s o fo ateniense pontua a h istória das idéias.</p><p>Diálogo, fo rm a adequada</p><p>Pontuação d iscreta, porém . E lem ento essencial da</p><p>filo so fia p la tón ica (não há, no Fed ro , o elogio da palavra</p><p>o ra l, viva, e a c rítica da fixação escrita?), a form a</p><p>dialogada, na sua h is tó ria , acomodar-se-á em funções menores:</p><p>fac ilitação pedagógica (já Santo A gostinho a u tiliza com o</p><p>m eio apropriado de ensino, com o em De musica, onde as</p><p>personagens se reduzem sign ifica tivam ente a Mestre e</p><p>D iscípu lo ) ou exposições de argum entação, ocasionais e</p><p>secundárias, com o os diálogos de Berkeley ou Le ibn iz. Nos</p><p>dois casos, en tre tan to , ela depende de um corpo filo s ó fic o já</p><p>solidam ente estabelecido, e no fu n d o a fo rm a do d iá logo não</p><p>é senão um m eio . . . fo rm a l. E que justam ente reaparecerá,</p><p>vív ida e necessária, num pensamento que se ajeita mal com</p><p>tratados, que faz apelo con tinuam ente à experiência para se</p><p>a lim en ta r, que não gosta de fa lar abstratam ente e constru ir</p><p>sistemas áridos: será o m eio de expressão de D ide ro t, por</p><p>excelência, por vezes mesmo se d is tingu indo pouco do te x to</p><p>de tea tro .</p><p>Na música, a fo rm a dialogada possui um grande</p><p>m om en to : os escritos de Schum ann. Ele a havia inaugurado</p><p>com um célebre artigo sobre C hopin , onde in terv inham qua tro</p><p>personagens, F lorestan, arro jado e rfnpetuoso, Eusebius,</p><p>m elancó lico e con tem p la tivo , Mestre Raro, espécie de</p><p>2 T héo rie de ta M u s iq u e , Paris, ed. de 1 9 2 9 , p. 4 2 . Esse'problem a</p><p>vem já m encionado em "Terapêutica Musical'' (in N a m oro s co m a</p><p>M e d ic in a , Porto A legre, L ivr. G lobo , 1 9 3 9 , p. 4 8 ) .</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>m ediador cheio de sabedoria, e o narrador, que escreve na</p><p>prim eira pessoa. Logo Schum ann fundará sua própria</p><p>revista, onde essas personagens assinarão artigos ou</p><p>conversarão sobre os mais d iferentes problem as musicais,</p><p>d irig indo-se contra as a titudes estreitas e demagógicas da</p><p>c rftica do tem po, de intérpretes, da falsa arte, dos m odismos</p><p>estrangeiros (carregando consigo o sonho da criação de uma</p><p>ópera alemã; in tro d u z in d o — com o proporá tam bém M ário —</p><p>a substitu ição dos term os expressivos ita lianos — allegro,</p><p>cantabile etc. — por ou tros nacionais) e exaltando a criação</p><p>verdadeira, honesta consigo mesma e sempre à procura de um</p><p>auto-u ltrapassam ento. No entan to , F lorestan, E u s e b iu s e Raro</p><p>não são apenas m arionetes postiças que in trigam os leitores</p><p>e que fa c ilita m os debates; ao co n trá rio , são personificações</p><p>de aspectos opostos do esp írito do a u to r, das contradições de</p><p>seu tem peram ento, de suas d iferentes facetas d iante de</p><p>problemas que está longe de perceber com a frieza do</p><p>pro fissional e que antes tom am pro fundam ente seu ser. Por</p><p>vezes mesmo, sua p rópria produção musical será assinada</p><p>por Eusebius ou por F lorestan.</p><p>Se O Banquete de M ário não tem nenhuma pretensão</p><p>em cria r uma filo so fia através do seu desenvo lvim ento</p><p>d ia lé tico , com o em Platão, ou se o d iá logo não tem para ele</p><p>uma função essencialmente pedagógica ou expositiva , ele se</p><p>m ostra, com o em D ide ro t, um m eio pe rfe ito de expressão</p><p>para seu pensamento pragm ático, concre to : se Le rêve de</p><p>d 'A /e m b e rt é quase tea tro , O Banquete é quase um conto</p><p>filo só fico . É uma fo rm a que possui — com o em Schum ann —</p><p>de m odo priv ileg iado , um poder adapta tivo aos con to rnos do</p><p>real, uma incisiva maneira de com bater, de d iscu tir problemas</p><p>vibrantes da atua lidade e ao mesmo tem po de cria r</p><p>contradições den tro do p ró p rio discurso, de não provocar</p><p>polémicas diretas, lu tando por in te rm éd io das suas</p><p>personagens, lançando-se de m odo mais p ro fun d o na fala</p><p>desses fantasmas, e neles ten tando isolar as facetas de seu</p><p>p ró p rio esp írito . Na sua m ob ilidade e na m u ltip lic id a d e das</p><p>suas vozes, a escritura dialogada perm ite as ambivalências.</p><p>Um</p><p>deste nosso te m p o é o</p><p>p r in c íp io de revo lução . Os a rtis tas e ru d ito s que se b o ta m</p><p>fazendo essa ta l de "a r te p ro le tá r ia " , c o n fu n d e m o p r in c íp io</p><p>de revo lução com se n tim e n ta lism o . C o n fu n d e m C haritas com</p><p>a caridade esm oler. O povo, pra eles, não passa d um a</p><p>superstição . É c e rto que o h um ano , o u t i li ta r ia m e n te hum ano ,</p><p>é que eu p re te n d o . Não o "h u m a n o " a c o m o d a tiv o dos</p><p>a rtis tas que tu d o c o n ve rte m a va lores gerais, os "va lo re s</p><p>e te rn o s ", mas o c o m b a tiv o e tra n s itó r io . M esm o o tra n s itó r io ,</p><p>m esm o a a rte de c ircu n s tâ n c ia , m o rta c in c o anos depo is . Que</p><p>va lo r m ais terá esse "E s q u e rz o A n t ifa c h is ta " , depo is que</p><p>M usso lin i v iro u pó de traque? N e n h u m . N em m e interessa que</p><p>tenha m ais a lgum . A gora o que me interessa é isso: envenenar,</p><p>angustia r, so lapar, n um v o lta ir is m o e s té tico que a jude ou</p><p>apresse um novo O ite n ta e Nove. M eu in d iv id u a lis m o</p><p>desum ano, sabedor do que há de safadeza na In te ligênc ia (até</p><p>na m in h a !) , me tra z logo ante a vista h is tó r ic a , a fig u ra</p><p>repugnante dos napoleões do passado. Mas m inha libe rdade</p><p>m ora l não te m nada co m isso. C on ta r com napoleões no</p><p>fu tu ro é se e s te riliza r. É e rig ir a d úv ida co m o p r in c íp io de</p><p>a rte , coisa que não pode se c o n fu n d ir co m o " fa z e r m e lh o r" ,</p><p>que deriva da certeza e da verdade. Já teve g ra n fin o s e</p><p>pedantes da estética que disseram ser a a rte uma m en tira .</p><p>A a rte será sem pre um a p ropos ição de verdades. Porque é um</p><p>fe n ó m e n o de a m o r. Não de a m or sexual mas dessa C haritas</p><p>ve rm e lha , incend iada , que você tão bem a d iv in h o u . Chegamos.</p><p>— Que casa lin d a ! Mas onde é que você me leva!</p><p>— Você te m onde a lm oçar?</p><p>— N em onde nem com que.</p><p>— E n tão venha com igo . Esse m o n s tro que você cham ou</p><p>de lin d o , é a res idência da m ilio n á ria Sarah L ig h t, m inha</p><p>am iga.</p><p>— E você cham a de m o n s tro essa casa!</p><p>— D etesto a a rq u ite tu ra m oderna . Isso nem te m je ito de</p><p>casa!</p><p>— Pois é: no e n ta n to a sua m úsica é a mais m oderna</p><p>possível po rque você busca o " fa z e r m e lh o r " , esquecendo</p><p>que os passadistas m usicais ta m b é m d ize m que "isso nem te m</p><p>je ito de m ú s ic a " . /Ess^s .d es eq u i I í b r i o s é que são desonestos em</p><p>vocês, ar t is ta s. / ^ n d a_hej;^e_fi&crever um p a n fle to b o ta nd o</p><p>isso no r id íc ú T ò /S e re s im p e rfe ito s , in c o m p le to s!} Uns só</p><p>en tendem de p in tu ra , nunca vão a um c o n c e rto ; o u tro é</p><p>m úsico m od e rno mas detesta a a rq u ite tu ra m oderna . Se</p><p>esquecem, igno ram que só ex is te um a a rte , é a A r te , de que</p><p>as artes não passam de processos de representação. O u tros</p><p>esquecem que a época é um a só, revelada, exp licad a ta n to</p><p>pela m úsica m oderna co m o pela a rq u ite tu ra m oderna . Vocês</p><p>são uns d ese qu ilib ra do s ! Mais que isso, uns desca lib rados, que</p><p>p o r causa de não se to rn a re m o A r t is ta , mas p in to re s ,</p><p>lite ra to s ou m úsicos são incapazes dum a a titu d e c r ít ic a única.</p><p>V ocê em m úsica me fa la rá de d issonâncias, de processos de</p><p>ins tru m e n taçã o , de p o lito n a lis m o s , n um e x ib ic io n is m o té cn ico</p><p>le g ít im o , mas pra fa la r dum a a rq u ite tu ra , fa la rá de</p><p>sensib ilidade , ro m a n tis m o , rea lism o, e x ib irá co nh e c im e n to s de</p><p>h is tó r ia , c r it ic a n d o os m odernos por a n titra d ic io n a is . Vocês</p><p>não tê m ca lib re ! m a tam onça de avião, mas pra m ata r</p><p>p e rn ilo n g o a inda ign o ra m a ex is tênc ia do f l i t . V am os en tra r.</p><p>w u | J l t U I U � � �</p><p>Jardim de Inverno</p><p>A sensação estética;</p><p>ensinada por Siom ara Ponga</p><p>à milionária e ao político.</p><p>Janjão chegava ta rde , eram p ouco m enos de q ua to rze</p><p>horas. Desde m u ito que Sarah L ig h t estava co m os do is</p><p>o u tro s conv idados, no seu lin d o ja rd im de in ve rn o com o</p><p>chão em largos quadrados de m árm ores fr io s verde e b ranco ,</p><p>peles imensas de tig res, um a esplêndida m o b ília de c ip ó - t it ic a</p><p>fe ita em Manaus, e a mais d if íc i l co leção de o rq u íd e as e de</p><p>avencas que nunca se v iu .</p><p>A l i pelas doze e tr in ta , Sarah L ig h t de ixa ra a mesa de</p><p>tu a le te , e d e fin it iv a m e n te p ro n ta fo ra se c o n te m p la r no</p><p>espe lho grande. A criada grave m udava o d isco te rm in a d o , que</p><p>a m ilio n á ria só se vestia ao som da m úsica. Era R u b in s te in na</p><p>"C a th é d ra le E n g lo u t ie " . Sarah L ig h t fez um gesto de</p><p>im pac iênc ia :</p><p>— T ire isso, F rau G lu cks te in , não me enerve ho je ,</p><p>descu lpe. Ponha m úsica mais franca . Os A n tig o s .</p><p>— V iva ld i? . . . C o re lli? . . .</p><p>— N ão! N ão !. . . Preciso de ó rgão. V io lin o , p ia no , não</p><p>sei. . . me suavizam dem ais, os seios descem, me</p><p>hum an izam . . . Ponha Bach.</p><p>E assim que es tou ra ram no ar as o rdens sopradas do</p><p>órgão num a u o c a ta m a rte lada ) a m ilio n á r ia pôde se</p><p>co n te m p la r. A go ra aquela m úsica lhe faz ia bem , e sem m u ita</p><p>condescendência mas sem pre a lgum a, Sarah L ig h t conseguiu</p><p>se achar lind a . Não estaria linda , mas estava bela. Não pod ia</p><p>mais asp ira r à beleza da ca n to ra S iom ara Ponga, que era ao</p><p>m esm o te m p o lind a e b o n ita ; mas a u x ilia d a pelos franceses</p><p>que ouv ia sem escutar e n q ua n to se a rran java , dera à tu a le te</p><p>um a m in uc io s ida de de cravista . Mais de D aq u in que de</p><p>D andrieu po rém , mais do a lt iv o Ram eau tã o p u ro , que do</p><p>precioso C ou pe rin le G rand. Só D aq u in lhe consegu ira ev ita r</p><p>mais as p rim e iras rugu inhas dos o lhos. E Ram eau escolhera</p><p>um vestido b ranco sem e n fe ite nenhum , apenas na c in tu ra o</p><p>b o tã o p re to que se repe tia nos sapatos e um deco te tã o</p><p>esquecidam ente h u m ild e que apenas deixava e n treve r umas</p><p>três grossas pérolas do co la r. Mas a seda do ves tido era ainda</p><p>um a fazenda rara, eu ropé ia , não desse b ranco de um a nú nc io</p><p>despudorado das sedas am ericanas, mas sujada de re fle xo s</p><p>d u m azul c in z e n to . Os anéis, o ru b i fa m o so que lhe dera o</p><p>m a rid o , a esm eralda quadrada. . . p o rém Ram eau num a gavota</p><p>quase honesta lhe castigava a tr iu n fa lid a d e das jó ias com</p><p>ta n ta energia que Sarah L ig h t re t iro u os anéis envergonhada.</p><p>Mas Ram eau a inda estava descon ten te , ela sentia . A to n a lid a d e</p><p>com m u ito s bem óis lhe dem onstrava que na sua idade</p><p>crepuscu la r as mãos deixadas sozinhas, fica va m co m e s p ír ito</p><p>de p o rco . A f in a l consegu iu co m preende r o conse lho da</p><p>m úsica. Esqueceu na m ão esquerda, que a m ão d ire ita não</p><p>enxerga mas de que se o rg u lh a , um d ia m a n te apenas, quase</p><p>sem a ro , de o ite n ta co n to s . E en tão no da-capo, depo is do</p><p>t r io , a gavota soou sa tis fe ita co m o a verdade. A g o ra estavam</p><p>avisando que a ca n to ra S iom ara Ponga chegara, mas Bach já</p><p>não tin h a indecisão a lgum a e respondeu c o m o quem m anda:</p><p>“ Q ue espere". Sarah L ig h t v iro u o p e r fil para o espe lho e fic o u</p><p>fe liz mas tr is to n h a . A q u e la linh a apenas o n d u la n te de ven tre ,</p><p>apesar de bem m ais nova, jam ais que a ca n to ra te ria , ob rigada a</p><p>se desm anchar num a barriga de ten is ta c in q u e n tã o p o r causa dos</p><p>e xe rc íc io s vocais. O c o rp o de Sarah era m il vezes m ais p e r fe ito .</p><p>Mas tra b a lh a d o po rém . E o ven tre ado lescente lhe era dado por</p><p>aquela c in ta , apenas um a viagem de avião, m ais a c riada , a Nova</p><p>Y o rk . F icara pelo p reço do b rilh a n te . Mas</p><p>Bach in ic ia ra o</p><p>os tre to , in s is tin d o no tem a. A m ilio n á ria encheu os pu lm ões de</p><p>ar e d e c id iu cons igo : fosse ar ou não, c in ta ou não, era mais</p><p>poderosa que a ca n to ra . "F a z fa vo r, pare essa m úsica, F rau</p><p>G lu c k s te in " . Não precisava da m úsica m ais. Desceu.</p><p>E n tra n d o no ja rd im de inve rno teve um d e s lu m b ra m e n to</p><p>e logo um a iro n ia . A ca n to ra , sempre c iu m e n ta de tu d o ,</p><p>reso lvera dar um a b o fe ta d a na amiga. Era aquele ves tido</p><p>in te ir in h o am are lo . S iom ara Ponga estava de a m a re lo ! Era um</p><p>h o rro r su b lim e que ela aguentava bem , apenas in s is tin d o um</p><p>boca do m ais no ruge e no b a to n . S iom ara Ponga estava de</p><p>um a beleza louca e Sarah L ig h t bem que se n tiu o b o fe tã o .</p><p>— O h, m in h a am iga, co m o você está ch iq u e !</p><p>A ca n to ra percebeu a m alvadez da o u tra , desv iando o</p><p>q u a lif ic a t iv o . C u rvou a cabeça na g ra fia d u m p u d o r c o n fu n d id o ,</p><p>qu is f in g ir mas p re fe r iu a audácia de m o s tra r suas in tenções:</p><p>— Mas q ue rid a , eu não p re ten d i f ic a r " c h iq u e " e sim</p><p>m arav ilhosa ! As m inhas extravagâncias de tu a le te , a c red ite , são</p><p>bem conscien tes, sou a rtis ta . Não devo te r o bom gosto</p><p>e q u ilib ra d o co m que o seu a rran jo de ho je dem on stra séculos</p><p>de. . . de sangue e de c u ltu ra , Sarah L ig h t. O b o m gosto só</p><p>pisa em te rre n o bem firm e e p rovado. Em a rte a gente precisa</p><p>se joga r no ab ism o. É p re fe rív e l fracassar dum a vez a</p><p>perm anecer no cu idadoso da m ed iocridade .</p><p>Se a rrependeu da palavra "m e d io c r id a d e " , dem asiado</p><p>in s u lta n te . Sarah L ig h t a p ro v e ito u o s ilên c io da o u tra e</p><p>reso lveu se m ostra r su p e rio r. Ela ta m b ém sabia coisas! A in d a</p><p>ince rta do que iria d ize r, d is fa rço u :</p><p>— Vam os sentar. . . Sente m ais p e rto , pra conversarm os</p><p>sossegado, e n q u a n to esses hom ens não chegam . . . Mas. . . você</p><p>te m razão: Em a rte , não d ig o na vida que é o m eu caso, mas</p><p>na a rte que é o seu: em a rte o b om gosto é um . . .</p><p>— U m academ ism o sem pre, Sarah. Desse p o n to de vista</p><p>eu p re firo de m u ito um a T ars ila a u m Lasar SegaII, um V iIla</p><p>Lobos a u m Ravel.</p><p>— Mas eu não posso co m p re en de r bem : você só fa la nos</p><p>m odernos e no e n ta n to os seus rec ita is são tã o . . . tã o</p><p>m ansos. . .</p><p>— A m ansados, Sarah L ig h t , am ansados: questão de serv ir o</p><p>m eu p ú b lic o . Mas a c re d ite , a m in h a s ituação já está se to rn a n d o</p><p>in q u ie ta n te . C in co anos atrás, eu vestiria este am are lo sem pensar,</p><p>faz ia p a rte da m in h a v ida de a rtis ta . Mas agora, passados os t r in ta</p><p>anos, eu hes ito . M e s in to ve lha p o r dem ais e te n h o um m edo do</p><p>fracasso que nunca tiv e . E s tou ve lha, Sarah.</p><p>— E ngraçado. . . (Sarah p re fe r iu não co rresp on de r à</p><p>a lf in e ta d a pe lo m esm o assun to , perigoso pra ela. D esv iou :)</p><p>Engraçado, um mês a trás se re a lizo u no B ras il, não sei se você</p><p>o u v iu fa la r, um Congresso da M oc idade C a tó lica . Eu fu i</p><p>patronnesse, me co n v id a ra m . Já sabe: precisavam de d in h e iro ,</p><p>tiv e que dar. Eu não a c re d ito em nada, parece in c rív e l que</p><p>um a pessoa cu lta a c re d ite , mas e n fim sou c a tó lica . T ive que</p><p>êstar lã T P ó r S iftaTque fo i um a d em on straçã o im press ionan te</p><p>de fé . . . Mas estive im a g in a n d o , m ais ou m enos na o rd e m do</p><p>pensam ento de você: e n fim te r fé , te r co ragem , está c e rto nos</p><p>m oços, mas o que eu censure i naquela m oc ida d e ca tó lica fo i a</p><p>ausência da b u rrada , pa rec iam ve lhos! A n d o u tu d o m u ito em</p><p>o rd em m u ito e xa to não só d e n tro d o dogm a c a tó lic o — o que</p><p>a inda a gente pode cons ide ra r so c ia lm e n te lin d o — mas d e n tro</p><p>d o senso-com um c a tó lic o , u m b ea tism o la rvar. Isso depõe</p><p>c o n tra a a tiv id ad e , a p a ixão re lig iosa e a in te lig ê n c ia desses</p><p>m oços. U m a das m an ifes tações bem ca rac te rizadoras do</p><p>"e s ta d o da ju v e n tu d e " é a b u rrada , sou d o id a p o r isso. O</p><p>exagero in te m p e s tiv o , áspero, sa ltando pra fo ra d o b o m senso:</p><p>co ice em f lo r da sens ib ilidade ou da in te lig ê n c ia . . . Isso até</p><p>re p e rcu te no co rp o da gente. E n f im : b u rra d a !. . .</p><p>— Pois é. V o lta n d o à a rte : a m a io r co n q u is ta do</p><p>m o d e rn ism o b ra s ile iro fo i s is te m a tiza r no B ras il, co m o</p><p>p r in c íp io m esm o de a rte , o d ire ito de errar. Q u an do a gente</p><p>estuda a ps ico log ia de tra b a lh o dos a rtis tas b ras ile iros</p><p>a n te rio re s ao 1920 de São Paulo , percebe n í t id o que a</p><p>p reocupação deles fo i sem pre fa ze r não p ro p r ia m e n te o já</p><p>fe ito , o já te n ta d o , mas o f ix a m e n te d e fin id o . Poucos se</p><p>exce tu am a essa ca rn e ir ice castrada, quase que só o gên io de</p><p>M achado de Assis. P orque a m ais a traen te aven tu ra in te le c tu a l</p><p>b ras ile ira , Á lva res de A zevedo , não chegou a se f irm a r . Se</p><p>pode m esm o p rova r que o que m an do u nos a rtis tas b ras ile iros</p><p>até 1920 , nem fo i ta n to a aspiração de acerta r, mas a</p><p>preocupação de não errar. É a "C a rta pras Ica m ia b a s " do</p><p>M acuna ím a, conhece?</p><p>— Não. N ão gosto de ler em português. De m ais a mais,</p><p>eu d e sco n fio que a no rm a liza ção na ps ico log ia a rtís tic a</p><p>b ras ile ira do d ire ito de errar, não ve io sem confusões. Não são</p><p>as estéticas que estão me in te ressando a q u i, mas um va lo r de</p><p>o rd e m socia l, de o rd e m m ora l. Por causa da bu rra da ser um a</p><p>ca ra c te rís tica do estado de ju v e n tu d e , m u ito s desses</p><p>m odern is tas c o n fu n d ira m isso que você cham a " d ir e i to de</p><p>e r ra r " co m a burrada . V em d a í essa espécie de slogan</p><p>de ju v e n tu d e de ser "e s p ír ito m o ç o " dos que não souberam</p><p>enve lhecer. T u d o con fusão . O m oço faz b u rra da e possui po r</p><p>consequência da idade o d ire ito de e rra r. Mas nem to d o</p><p>d ire ito de errar dá d ire ito à b u rrada . O d ire ito de e rra r te m</p><p>co m o consequência a pesquisa, a inovação mas nunca, p o r si</p><p>m esm o, a desorgan ização m ora l, a irre sp o n sa b ilid a d e , o</p><p>c in is m o , a ind ign id a de . T am anhos ve lhos a lguns, sem a m enor</p><p>in te ligê nc ia de enve lhecer. . . Não consegu iram de fo rm a</p><p>a lgum a re a d q u ir ir o estado de ju v e n tu d e , está c la ro , mas lhe</p><p>m acaquearam a v irtu o s id a d e . S o b re tu d o na b u rra d a . . . A liás ,</p><p>eu não goste i de ver você a tacar o academ ism o. Si essa gente</p><p>não tivesse o p re c o n c e ito d o a n tia cad em ism o , não c o n fu n d ia</p><p>o d ire ito de errar na criação a rtís tic a , co m a m isé ria de v iver</p><p>no e rrado co m o fo i o que fiz e ra m . O academ ism o é m o ra l.</p><p>— Você se interessa ta n to assim p e lo que é m ora l?</p><p>— Me in teresso, sim senhora! De re s to : mansa ou</p><p>"a m a n sa d a " co m o você d iz , você é um a académ ica.</p><p>— Mas eu sou v irtu o se , Sarah, não sei c o m p o r!</p><p>— Mas você jam ais canta as obras de Ja n jão !</p><p>— O ra, mas isso é o u tra co isa, m in ha am iga, não é</p><p>questão de academ ism o. Você não é ca n to ra , não pode saber:</p><p>esses co m p o s ito re s m odernos não são apenas d if ic í l im o s , são</p><p>quase sem pre irrea lizáve is . V ocê conhece as duas séries de</p><p>"C anções P o pu la res " de L uc ia n o G a lle t? São d e líc ias</p><p>verdadeiras essas o b rin h as , mas não são apenas escabrosas de</p><p>se consegu ir um a boa execução voca l, c o m bastan te ca rá te r: o</p><p>p io r é que o a com pa nh am e n to é tã o d if í c i l que não só exige</p><p>um a co m pa nh ad o r v irtu</p><p>o se ve rd ad e iro , c o m o c o m p le ta m e n te</p><p>escolado no je ito m usica l b ra s ile iro de r itm a r . T o c a n d o apenas</p><p>co m o está, sem dengue, sem o ru b a to fo lc ló r ic o dos</p><p>b ras ile iros fica d u ro , c o m p lic a d o , m ed on ho . N ão resu lta ! Eu</p><p>can te i a co leção to d a um a vez, no R io pra agradar o pob re</p><p>do G a lle t. F o i um a ’ m arav ilha p o rq u e ele me acom pa nh ou .</p><p>Mas depo is jam ais consegu i, m esm o no B ras il, e n c o n tra r</p><p>acom pa nh ad o r que soubesse fazer co m o o G a lle t faz ia .</p><p>N inguém quer fa ze r p ro fissão de acom pa nh ad o r no Brasil.</p><p>Q uem se pega to c a n d in h o um bocado m e lh o r, já pensa que é</p><p>so lista . Não te m um a com panhado r que preste lá. Só o</p><p>M ignone e o G u a rn ie r i, mas estes são co m p os ito re s . E não</p><p>pense que is to se dá só co m a voz. A m úsica m oderna</p><p>in s tru m e n ta l é in te ressantíss im a na le itu ra , não co n te s to , mas</p><p>vão to c a r e m u itas vezes não “ rende ” , po rqu e esses</p><p>c o m p os ito re s a tua is na m a io ria c r ia m em a bs tra to , sem se</p><p>d o b ra r às exigências n a tu ra is dos in s tru m e n to s , nem lhes</p><p>a p ro v e ita r as qua lidades p róprias . E m u ito m enos da voz.</p><p>— V iva P u cc in i!</p><p>— V iva P u cc in i, pois não! Esse va lo r im enso ele teve,</p><p>co m o o tiv e ra m Bach, M o za rt, Pa lestrina, V iv a ld i, to d o s os</p><p>an tigos, e um ra ro Ravel, um ra ro Strauss em nossos dias.</p><p>— Você está m u ito esté tica dem ais.</p><p>— Não estou , Sarah L ig h t! Esté tica só pode ser a</p><p>f i lo s o f ia do B e lo , ao passo que eu sou é técn ica . Da estética</p><p>se destacou um a c iênc ia exata bem p o b rin h a aliás, a estética</p><p>e x p e rim e n ta l, que p ro cu ra d is c r im in a r os e lem en tos o b je tivo s</p><p>que nos causam o p razer de beleza. A esté tica é para os</p><p>f iló s o fo s e os c ien tis tas . A técn ica é para os a rtis tas.</p><p>— Não estou de a co rdo . Em 1926 , q ua nd o eu morava</p><p>no B rasil, e a inda não tín h a m o s fe ito a T ra m w a y e as fábricas</p><p>de p e rfum a ria de M e n tira , fu i conv idada a fre q u e n ta r um</p><p>curso de E sté tica C om parada das A rte s , rea lizado p o r um</p><p>p ro fessor M ário A n d ra d e pra ex-alunas do C o lég io des</p><p>O iseaux. . .</p><p>- r O a u to r d o "M a c u n a ím a ” !. . .</p><p>— Não sei. . . Era em 1926 e logo largue i o cu rso , pra</p><p>ir estudar na A le m a n h a . Mas me le m b ro m u ito bem que ele</p><p>a firm ava a u t ilid a d e da esté tica co m o d is c ip lin a do e s p ír ito de</p><p>q u a lq u e r um e que "p a ra os a rtis tas en tão , a esté tica faz</p><p>parte da p ró p ria técn ica , é ló g ic o " , frase te x tu a l, que eu cop ie i.</p><p>— Ele re p e tiu isso co m o u tras palavras no "B a ile das</p><p>Q u a tro A r te s " . O u p o r o u tra : a aula inaugura l sobre " o</p><p>A r t is ta e o A r te s ã o " im p lic a isso, po is que ele está ensinando</p><p>estética e a firm a n d o no e n ta n to que o a lu n o só pode aprender</p><p>técn ica . Mas ele m esm o d iz que a esté tica , e n q u a n to d isc ip lin a</p><p>f ilo s ó fic a c o m p le ta e m e tó d ica , é para os f iló s o fo s e c ien tis tas, e</p><p>a a rte é para os a rtis tas . N unca jam ais , Sarah, um a rtis ta , nem</p><p>gu iado p o r um a f ilo s o fia co m p le ta da beleza, nem u tiliz a n d o</p><p>todos os e lem entos do prazer e s té tico d e te rm in a d o s pelos</p><p>la b o ra tó r io s , consegu irá fazer um a obra -de -a rte gen ia l. A n d ré</p><p>L h o te se to rn o u dep lo ráve l q ua nd o p re tendeu consegu ir isso.</p><p>A liá s ele é m u ito m ais in teressante na c r í t ic a que na p in tu ra .</p><p>— Mas então eu não en tendo bem o que você cham a de</p><p>" té c n ic a ” .</p><p>— Técn ica será, d igam os: o c o n ju n to de co nh ec im en tos</p><p>p rá ticos co m que o a rtis ta m ove o m a te ria l pra c o n s tru ir a</p><p>obra -de -a rte .</p><p>— E a estética entra nisso de c o n h e c im e n to s p rá tico s e</p><p>do m ate ria l?</p><p>— E n tra sem pre, da mesma fo rm a que não beber</p><p>veneno , que não te m nada de in ic ia lm e n te o b je t iv o , e ta n to é</p><p>um a defesa técn ica com o um ideal. A esté tica fa z parte da</p><p>té cn ica , não co m o um sistema f ilo s ó f ic o , mas ao m esm o</p><p>te m p o co m o um a pesquisa, um a vo n ta de p re lim in a r e uma</p><p>e xpe riênc ia a d q u ir id a e consen tida . Da mesma fo rm a que o</p><p>ve rso -liv re é in ic ia lm e n te um p r in c íp io e s té tico que depois vai</p><p>m o v im e n ta r to d a a r í tm ic a ps ico lóg ica do verso; da mesma</p><p>fo rm a que a noção de consonância e d issonância fo i</p><p>in ic ia lm e n te um p re co n ce ito e s té tico que desenvo lveu to d a a</p><p>c riação m aravilhosa da p o lifo n ia : a p ró p ria ideo log ia estética</p><p>do nac ion a lism o na Rússia dett-vO re v o lu c io n á r io M ussorgsqui e</p><p>a p ró p r ia ideo log ia daHr-aaédia t y ega cantada deu a Cam erata</p><p>F lo re n tin a e a ó jaé&x Você repare : não eram exa tam en te</p><p>ideo log ias, mas " id e o lo g ia s ” . Não eram um a f ilo s o f ia ,</p><p>co m um o b je t^_ c í> m m é to d o p ró p r io e p r in c íp io , m e io e</p><p>f im ; não era um a idé ia estética desenvo lv ida em suas</p><p>consequências, mas um ideal es té tico , f r u to dum a von tade</p><p>e dum a p re fe rênc ia consen tida . N o caso: a le itu ra da</p><p>tragéd ia grega ou o a n ti-re a lism o russo da m úsica russa</p><p>ita lia n iz a n te que deu, co m o consequência , o es tudo da</p><p>fo n te p o p u la r. Um a leg ítim a técn ica e n fim .</p><p>— Mas e a a rte onde é que fica nisso tu d o !</p><p>— A a rte é um c a p ítu lo da Esté tica . O m ais im p o rta n te</p><p>si você q u ise r, mas só si você fa z m u ita questão . Na verdade</p><p>devia ser apenas um c a p ítu lo co m o os o u tro s ; e em geral os</p><p>estetas fi ló s o fo s que tra ta m excessivam ente da a rte avançam</p><p>pelos cam inhos da soc io log ia , da ps ico log ia , da h is tó r ia , não</p><p>só num a con fusão g rande de m étodos, co m o p rin c ip a lm e n te</p><p>num a escam oteação do o b je to . A r te é o u tra coisa. A estética ,</p><p>co m o f i lo s o fia do be lo e co m o c iênc ia do p razer de beleza,</p><p>co n d u z d ire tam errte ao bem e à verdade. Da a rte , são apenas</p><p>a u x ilia re s e para os génios sem pre fo ra m a u x ilia re s</p><p>d iscre tíss im as. Da mesma fo rm a que a acústica para a m úsica.</p><p>E n f im . . . estética é um processo de co n h e c im e n to , da mesma</p><p>fo rm a que a a rte , mas jam ais a estética nos levará a gozar da</p><p>a rte e a vivê-la em to d a a sua p le n itu d e e fin a lid a d e . E co m o</p><p>f ilo s o f ia , ela d e te rm in a m u ito m ais um c o m p o rta m e n to m ora l,</p><p>um c o n h e c im e n to a b s tra to d o b e lo , que um a com preensão</p><p>c r í t ic a da ob ra -de -a rte e a apreensão da beleza.</p><p>— V ocê leu O ka ku ra Kakuso?</p><p>— N o " L iv r o do C há "? li.</p><p>— Ele d iz lá, goste i m u ito , que "n o u s c lass ifions tro p et</p><p>ne jou issons pas assez". . .</p><p>— Eu não sei p o r que você c ita O ka ku ra K akuso em</p><p>francês. . .</p><p>— Eu li em francês, não li em inglês.</p><p>— N ão é isso! Me ir r ita é essa m ania de c ita r alemães,</p><p>russos, japoneses, em francês ou inglês. Si já não pode ser o</p><p>e scrú pu lo do o r ig in a l, po is se tra ta de tra d u ç ã o , o m e lh o r é</p><p>t ra d u z ir já dum a vez pra nossa língua . N unca tiv e m a io r</p><p>sensação de r id íc u lo l in g u ís t ic o do que a b r in d o um liv ro de</p><p>A lb e r t in a B e rta , que p rin c ip ia v a com um a e p íg ra fe de</p><p>N ie tszche em francês.</p><p>— A c e ito o p ito . Mas m inha am iga, não sei si é o</p><p>am are lo que está d e ix a n d o você tã o ir r ita d iç a !</p><p>— D escu lpe Sarah L ig h t deve ser cansaço te n h o lid o</p><p>m u ito esses dias.</p><p>— Você se cansa de ler? eu não!</p><p>— S im , mas você lê</p><p>p rin c ip a lm e n te rom ances, revistas.</p><p>— N ão diga isso, não senhora! A té que u lt im a m e n te</p><p>quase só le io so c io log ia , e q ua nd o te n h o te m p o fre q u e n to os</p><p>cursos de f i lo s o f ia , na Facu ldade de C iências e Letras.</p><p>A té já co m p re i a "E n c y c lo p a e d ia o f th e Socia l S c iences",</p><p>que parece m eia co m u n is ta , mas e n fim é um c o m u n is m o</p><p>m oderado . T en ho me d iv e r t id o m u ito . V ocê precisa ler,</p><p>S iom ara Ponga.</p><p>— Eu estou m esm o co m von tade de es tudar soc io log ia ,</p><p>a té já li G ilb e r to F re y re , mas no m o m e n to não posso. A lé m</p><p>do grego m o d e rn o que esto u ap ren de nd o a p ro n u n c ia r po r</p><p>causã dum as canções popu la res, um a m o r! que vou can ta r no</p><p>C o c k ta il da G récia E scrav izada, m inha p a ixão agora é a</p><p>esté tica . T e n h o lid o tu d o , s o b re tu d o a resp e ito da sensação</p><p>estética. C om o se aprende , Sarah L ig h t! f ic a tu d o tã o c la ro !</p><p>— Mas não é o p ró p r io G roce que d iz que a beleza é</p><p>a q u ilo que a gente já sabe o que é? . . .</p><p>— Isso é blague, em bora seja de fa to um a blague</p><p>p ro fu n d a . F is io lo g ica m e n te to d o s tem os as sensações estéticas</p><p>ex is ten tes, esparsas no m u n d o ou reagrupadas no to d o das</p><p>obras-de-arte. A b r in d o os o lh os , recebendo um som se p ro du z</p><p>na gente um a co m o ção que a in te lig ê n c ia d e te rm in a , d ize n d o :</p><p>is to é be lo . A q u i te m um jog o de palavras que precisa f ix a r</p><p>bem : A sensação esté tica é f is io ló g ic a , to d o s tê m a mesma</p><p>d ia n te do m esm o caso, mas o a fe to o- s e n tim e n to e s té tico é já</p><p>um fe n ó m e n o mais c o m p le x o que não ex is te , sem a</p><p>co labo ração d e te rm in a n te d o e s p ír ito : A liás , eu fa le i que to d o s</p><p>tê m a mesma com oção esté tica d ia n te do m esm o caso, o que</p><p>já está e rrado , essas coisas são delicadas. É fá c il d e c id ir que</p><p>d ia n te da co r verm elha to d o s tem os um a sensação mais fo r te</p><p>que d ia n te do rosa, e que cada uma delas p ro d u z irá um a</p><p>com oção mais ou m enos agradável. Porém m esm o este</p><p>"m a is ou m e n o s " já é g rand iss im am ente d e te rm in a d o pelo</p><p>estado f is io ló g ic o de cada um , e cada qua l te m um fís ic o</p><p>d ife re n te e m esm o tra n s itó r io . O v e rm e lh o é reco nh ec id am en te</p><p>e x c ita n te , mas quem precisa de e xc ita n te s se agradará mais do</p><p>ve rm e lh o do que um o u tro que não carece disso. Mas. . .</p><p>O p o lí t ic o F e lix de C im a irro m p e u pe lo ja rd im de inve rno .</p><p>Sarah L ig h t que estava se d e lic ia n d o co m a exp licaçã o da ca n to ra ,</p><p>não pôde e v ita r o pensam ento espontâneo de que F e lix de C im a</p><p>jam ais seria um a sensação esté tica de n in gu ém . S im p á tic o ele</p><p>era s im , até bem aprove itáve l num a n o ite desm azelada de a m o r,</p><p>fe ita m ais pelo á lco o l que pela escolha d o c o rp o . Is to fo i a</p><p>m ilio n á r ia que pensou. Porém ju s ta m e n te p o r causa d o a lm oço ,</p><p>o b u rro do p o lí t ic o se vestira m e lh o r, e estava péssim o.</p><p>— Meu caro, caro am igo , co m o vai?</p><p>Sarah L ig h t se acostum ara a cham ar to d a a gente de</p><p>"a m ig o ” p o r causa da le itu ra de rom ances franceses. S iom ara ,</p><p>ju n to dela ia na onda , mas a F e lix de C im a a q u ilo sem pre</p><p>causava m alestar. "A m ig a ” pra ele sem pre t in h a o u tra</p><p>ressonância, e o va lo r do se n tim e n to d o "a m ig o " e le ignorava.</p><p>A palavra só se aplicava a c o rre lig io n á rio s p o lít ic o s , fosse um</p><p>v o ta n te c o m p ra d o , fosse o p re fe ito . Esses eram os "a m ig o s "</p><p>dele. S e n tiu logo uma coisa desagradável, de c u m p lic id a d e que</p><p>não desejava. Não gostava de ep iderm es m u ito alvas, já</p><p>sabemos. B e ijo u a m ão da casada, b e ijo u a m ão da so lte ira ,</p><p>(aliás S iom ara Ponga não era s o lte ira e xa ta m e n te , era a rtis ta )</p><p>e d is fa rço u estabanado:</p><p>— Pois é, cá estam os para t ir a r da m iséria o seu</p><p>c o m p o s ito r.</p><p>Sarah L ig h t f ic o u com raiva daque la inde licadeza , que</p><p>e s tú p id o !</p><p>— Mas m eu am igo , você não acha m esm o que o</p><p>G ove rno te m obrigações de p ro tege r os co m p o s ito re s nac iona is !</p><p>— D ece rto que te m ! o n a c io n a lism o é um a bela coisa. . .</p><p>Mas e n fim , nós to d o s nos sa crificam o s pela p á tr ia . . . F ranqueza :</p><p>eu não sei o que vocês duas d esco b rira m nesse Jan jão . . .</p><p>— Não se tra ta de Jan jão , se tra ta da m úsica dele!</p><p>in te rro m p e u S iom ara Ponga irr ita d a .</p><p>— Se a q u ilo é m úsica, m inha ilu s tre ca n to ra , só si é</p><p>m úsica do ta l de "b e lo h o r r ív e l" .</p><p>— O be lo h o rrív e l não ex is te ! Isso é bobagem que</p><p>m u ito s estetas ace ita ram p o r confusão .</p><p>— Ué! sem pre o u v i fa la r em be lo h o rr ív e l!</p><p>— A d m it ir o be lo h o rrív e l assim, co m o no e x tre m o</p><p>o po s to , e be lo . . . be lo , a d m it ir e n fim um be lo este ticam ente</p><p>q u a lif ic á v e l, im p lica ace ita r toda uma escala de belos que</p><p>do " h o r r ív e l" subisse até o " b e lo " . E havíam os de passar pelo</p><p>"b e lo fe io " , o que é absurdo . T a n to na a rte co m o na</p><p>natu reza , o belo nunca está soz inho , F e lix de C im a. O que,</p><p>aliás, c o n firm a a fixa çã o de que a beleza não é a fin a lid a d e</p><p>da arte . . .</p><p>Na obra -de -a rte que castiga, que sa tiriza , que c r it ic a ou</p><p>m esm o s im p lesm ente re tra ta , o a rtis ta se vê m u itas vezes</p><p>o b rig a d o a representar um a coisa h o rrív e l, repugnan te , ou</p><p>apenas fe ia .</p><p>— Pois en tão ! Isso é o be lo h o rr ív e l!</p><p>— A b so lu ta m e n te não. A coisa representada pode ser</p><p>h o rrív e l, repugnan te , fe ia co m o a d o r de R ig o le to ou a</p><p>in fâ m ia de "Q ues ta ou q u e lla " , mas a representação a rtís tica ,</p><p>o o b je to c r ia d o não o será jam ais, pra que haja obra-de-arte</p><p>de va lo r. O assunto pode ser h o rrív e l. A rea lização estética</p><p>dele não pode. Por onde se vê ta m b ém que si o be lo não é a</p><p>f in a lid a d e da arte , ele é im p resc ind íve l pra que se rea lize a</p><p>obra-de-arte . E da mesma fo rm a na natureza. Uma erupção do</p><p>V esúv io , um a enchen te d o Paraíba e tc. não são be lo h o rríve l.</p><p>São fenóm enos que p o r serem da natu reza , c o n tê m</p><p>necessariam ente m u itas parcelas do be lo n a tu ra l, cores,</p><p>vo lum es, ru íd os , m ov im en tos . . . As parcelas na tu ra is serão</p><p>o b je tiva m e n te belas, mas o assunto, o caso é h o rr ív e l.</p><p>— Puxa co m o você sabe coisas! Eu sem pre fa le i que é</p><p>um a pena eu não poder estudar ta m b ém . . .</p><p>— S iom ara Ponga até estava me c o n ta n d o co m o é que</p><p>se rea liza a com oção estética , é in te ressan tíss im o . V ocê não</p><p>que r o u v ir?</p><p>— Q uero , ora si! Isso até vai m e a u x ilia r pra co m p ra r</p><p>quadros p ro Estado. Inda agora te m a í um a expos ição de</p><p>p in to re s ba lcân icos e que rem p o r fo rç a vender p ro G overno</p><p>um N u de cem con tos , até eu não gosto ! aquelas carnes</p><p>brancas, sem rea lism o. . . Mas eles tê m ta n ta p ro teçã o . . .</p><p>A ss im você me a juda a recusar isso. Porque não v ie ram ped ir</p><p>d ire ta m e n te pra m im ! desa fo ro . . .</p><p>O su b p re fe ito estava su focado de despe ito . S iom ara</p><p>a inda o lh o u pra ele com von tade de desprezar, mas e n fim</p><p>sem pre era um su b p re fe ito e p ro te to r das artes. P r in c ip io u</p><p>m eia sem vo n tade , mas c ien te de d o m in a r o seu p ú b lic o :</p><p>— É tã o sim ples. . . O hom em pelos sen tidos está em</p><p>c o n ta c to co m as ondas lum inosas, acústicas, etc.</p><p>F e lix de C im a z u rro u despeitado.</p><p>— P orque só o hom em ? a m u lh e r ta m b é m !</p><p>— Pois é. . . o h om</p><p>em e a m u lh e r estão, pelos sentidos</p><p>em c o n ta c to co m as ondas lum inosas, acústicas e tc . Esse</p><p>c o n ta c to é levado ao cé rebro pelos nervos c o n d u to re s para os</p><p>d iversos cen tros , v isua l, a u d it iv o , de ta c tilid a d e , e só en tão é</p><p>que a sensação se d e te rm in a . Porém o e fe ito não pára a í. Si</p><p>parasse não p od ia se dar com oção de beleza. O cé rebro</p><p>reg istrava apenas o que os sen tidos receberam , e a idéia</p><p>nascida nele seria apenas um a ve rificaçã o , um c o n h e c im e n to . E</p><p>se c o n fu n d ia co m a verdade: ca ch o rro , ve rm e lh o , m archa r. Mas</p><p>depo is da v ib ração te r a tin g id o o c e n tro ce rebra l que lhe</p><p>co rresponde , ela se d ifu n d e p o r to d o o cé reb ro e pelos nervos</p><p>e feren tes, se espalha por to d o o o rgan ism o h u m an o da cabeça</p><p>aos pés. De m aneira que to d o o co rp o fica v ib ra n d o p o r causa</p><p>de la ; Ba in d iz que não só os órgãos do m o v im e n to mas até as</p><p>vísceras. V ocês estão vendo? isso cria n a tu ra lm e n te no c o rp o</p><p>um a a tiv id ad e , d iversa c o m o in tens idade e q ua lid ad e , da que</p><p>e x is tia nele antes de e n tra r em c o n ta c to com a v ib ração</p><p>e x te r io r . Essa a tiv id ad e , co m o q u a lq ue r a tiv id a d e aliás, p ro d u z</p><p>no o rgan ism o uma criação e em prego de fo rças a que</p><p>gera lm en te dão o nom e de d inam ogen ia . E este em prego novo</p><p>de fo rças faz com que as funções v ita is se a tivem ou am oleçam .</p><p>Esta a tivação ou pac ificação que depende d o estado fís ic o de</p><p>cada u m , é re co lh id a de n ovo , reconhec ida e ca ta logada , pela</p><p>nossa consc iênc ia que a q u a lif ic a en tão co m o um p razer ou</p><p>desprazer. A este prazer ou desprazer é que cham am de</p><p>com oção esté tica . E p o r ela, en tão , se cria esse s e n tim e n to de</p><p>"e m p a t ia " co m o fa lam os ingleses, pe lo qua l a gente</p><p>reco nh ec id am en te se entrega ao o b je to que causou o estado</p><p>de p razer ou recusa o que causou desprazer. S i fo i p razer a</p><p>gente cham a o o b je to de be lo . S i fo i desprazer, de fe io .</p><p>— Mas e n tão , pe lo que você d iz , até escu tando a Paixão</p><p>segundo S. M atheus, de Bach, que to d o s sabem ser uma</p><p>o b ra -p rim a , uma pessoa c o n fo rm e o seu fís ic o pode achar</p><p>a q u ilo fe io . . .</p><p>— A bem d iz e r não pode, Sarah L ig h t. Se as com oções</p><p>estéticas fossem tã o fis icam en te decisórias assim , elas</p><p>pe rte n ce ria m mais à te ra p ê u tica da m ed ic ina que à libe rdade</p><p>do prazer. O estado fís ic o im p o rta sem pre. Mas so b re tu d o na</p><p>co m p le x id a d e e no rm e da obra -de -a rte , ele jam ais seria</p><p>d e c isó rio es te tica m e n te , em bora possa ser d e c isó rio com o</p><p>verdade ou co m o bem .</p><p>— Eu não e n te n d o nada do que vocês estão d izendo . . .</p><p>A q u i a frase de F e lix de C im a fo i um a q u e ixa tão</p><p>h u m ild e que ele re a d q u ir iu to d a a s im p a tia que irrad iava . Esse</p><p>é um go lpe bem co n h e c id o dos que tê m a bossa da p o lít ic a .</p><p>N ão há nada que to rn a a gente mais s im p á tic o do que fazer</p><p>co m que os o u tro s se lem bre m p o r si m esm os que se</p><p>esqueceram da gente . Isso era m anha in co nsc ie n te em F e lix</p><p>de C im a, mas de que ele abusava. S iom ara o lh o u o gostoso, e</p><p>teve pac iênc ia dessa vez:</p><p>— Im ag ine , F e lix de C im a, que ao chegar n u m co nce rto</p><p>você te m um desastre de a u to m ó v e l que m ata um a m u lhe r</p><p>carregando o f i lh in h o . O u im ag ine que depo is do co nce rto</p><p>você vai te r u m e n c o n tro de a m or. Está c la ro que a verdade</p><p>daque le ó rfã o q ue f ic o u o u a im p ac iê nc ia d o seu a m o r, não</p><p>só o cup am o seu e s p ír ito , mas p ro voca m no seu c o rp o estados</p><p>d in â m ico s tã o im p o s itiv o s , que você não poderá se entregar à</p><p>passiv idade necessária à c o n te m p la çã o esté tica . Si levarem a</p><p>Pa ixão de Bach nesse c o n c e rto , si você não a conhece , nunca</p><p>poderá apreciá -la . Mas si a conhece , ela poderá até p ac ifica r</p><p>você. Dos do is lados: sendo um a p ac ificaçã o boa no caso do</p><p>desastre e. . . um a p a c ifica çã o perigosa no caso do am or.</p><p>F e lix de C im a deu um a gargalhada. T in h a e n te n d id o um</p><p>m e io de m u ita s vezes recusar co n ce rto s e exposições de p in tu ra .</p><p>— . . . Na verdade a co m o ção esté tica é fis io lo g ic a m e n te</p><p>fa ta l, mas pode ser casual p r in c ip a lm e n te pela p a rtic ip a çã o do</p><p>e s p ír ito . Sendo um fe n ó m e n o fis io -p s íq u ic o , ela te m</p><p>c o n ju n ta m e n te caracteres f is io ló g ic o s e p s ico lóg icos . Os</p><p>fis io ló g ic o s são: A co m o ção esté tica é im e d ia ta ; é d in â m ic a ; é</p><p>fa ta l; e te m um a ta c til id a d e geral. Os caracteres ps ico lóg icos</p><p>fazem que ela seja u m prazer; não tenha um a necessidade</p><p>im e d ia ta ; seja casual; e não tenha in te lig ê n c ia , não ex ija</p><p>com preensão nenhum a . E e n fim que possua um</p><p>d e s lu m b ra m e n to que é ine re n te a ela. C re io que não me</p><p>esqueci de nen hu m dos p rin c ip a is . . .</p><p>As com oções de p razer e desprazer que nós te m o s são</p><p>m u itas , in f in ita s m esm o, p o rqu e a fin a lid a d e do h om e m sendo</p><p>a lcançar a fe lic id a d e , tu d o pra nós se resum e em a lcançar o</p><p>p razer. n .</p><p>— Por isso que eu sc*u e p ic u r is ta ! JG osto de co m e r</p><p>bem . . .</p><p>— É. . . você é e p icu ris ta s im . . . Porém nem to da s as</p><p>com oções de p razer são com oções estéticas, e o que d is tingue</p><p>estas das o u tras é o ca rá te r f is io ló g ic o de im ed ia teza . Si tem os</p><p>fo m e e com em os, se dá co m o ção de p razer. Si tem os fé e</p><p>m o rre m os no m a r tír io ta m b é m tem os um a co m o ção de prazer.</p><p>— Fresco p razer!</p><p>— Mas nenhum a destas com oções é esté tica , p o rqu e</p><p>nenhum a delas é im ed ia ta . O prazer, a qu i, de riva , é uma</p><p>consequência de interesses p rá ticos , co m o no caso de com er,</p><p>ou de interesses m ais su tis , co m o o s a c r if íc io d o c ren te . Já</p><p>não se dá o m esm o com a co m oção esté tica , que , sendo</p><p>im e d ia ta em seu sensacionism o a bem d ize r independe da</p><p>gente, não vem de n enhum in s t in to , de n e n h u m ra c io c ín io e</p><p>de nen hu m interesse p rá tic o . Si estou saciado e co m o , não</p><p>te n h o m ais p razer. Já p o rém , si lhe m o s tro , F e lix de C im a,</p><p>u m pano ve rm e lh o , você, que ira o u não q ue ira , te m um a</p><p>sensação esté tica já d e fin it iv a m e n te p rovada pelas expe riênc ias</p><p>de la b o ra tó r io . Que a co m o ção esté tica é d in â m ica , isso vocês</p><p>já sabem, v ida é m o v im e n to . Porém o d in a m is m o em bora</p><p>sendo fis io ló g ic o , te m um a im p o rtâ n c ia ps ico lóg ica decisiva</p><p>em arte . Pode-se d ize r que ele é que convence do assunto.</p><p>D a í as obras-de-arte de assunto m u ito in teressado, as obras</p><p>de co m b a te p o r e xe m p lo , h inos , m archas, ca rica tu ras , sátiras</p><p>te re m um r itm o m ais v io le n to . C ertos au to res , m esm o, chegam</p><p>a im ag ina r que a a rte nasceu do d in a m is m o . C om o Spencer,</p><p>p o r e xe m p lo , que d iz ia do c a n to ser o resu ltad o d um a lei</p><p>f is io ló g ic a : a in ten s id ad e do s e n tim e n to a ju s ta nd o de m aneira</p><p>p a r tic u la r os órgãos de resp iração e da voz. W allaschek chegou</p><p>a d ize r mais s im p lo r ia m e n te que o ca n to é f i lh o d o tra b a lh o ,</p><p>p o r causa do tra b a lh o e x ig ir para o seu re n d im e n to , a</p><p>rep e tiçã o dos m o v im e n to s iguais.</p><p>— M inha am iga , você aceita o ve rso -liv re?</p><p>— Está c la ro que a ce ito ! E c o m p re e n d o , Sarah.</p><p>— Pois eu não co m p re e n d o nem a ce ito , a f irm o u F e lix</p><p>de C im a co n ve</p><p>n c id o . De resto eu não a c e ito verso nen hu m ,</p><p>poesia !. . . Mas é você mesma que está negando o ve rso -liv re ,</p><p>dona , a firm a n d o a necessidade dos m o v im e n to s iguais.</p><p>— Eu não a firm e i a necessidade de m o v im e n to s iguais,</p><p>de m e tr if ic a ç ã o f ix a em poesia nem a rte nenhum a , em bora</p><p>não a recuse ta m b ém .</p><p>— Mas c o m o é que pode haver r itm o sem a repe tição</p><p>do m o v im e n to ?</p><p>— Sarah, você d e co ro u a lgum a d e fin iç ã o errónea d o</p><p>r itm o , p o rq u e de fa to a m a io ria dos te o ris tas d o r itm o ,</p><p>in flu e n c ia d o s pela lição das artes tra d ic io n a is , não puderam se</p><p>l ib e rta r da idé ia dele ser um a rep e tiçã o . Mas na verdade,</p><p>r itm o é to d a e q u a lq u e r "o rg a n iz a ç ã o ” d o m o v im e n to . Veja</p><p>bem que fa le i "o rg a n iz a ç ã o ", is to é, u m va lo r sinão</p><p>consc ien te , pe lo m enos "se n s íve l” , pra pode r in c lu ir en tre os</p><p>c riado res de r itm o ta m b ém os irra c io na is e as p ró p rias p lantas.</p><p>M u ito s chegam a d ize r que a resp iração, a sucessão d ia -n o ite ,</p><p>ou das estações, são r itm o , bobagem ! Essas fo rm a s fa ta is e</p><p>sem escolha, podem co n te r e lem entos do r itm o , so b re tu d o o</p><p>e le m e n to repe tição dos r itm o s u t i l itá r io s , mas a inda não são</p><p>r itm o . Mas você já v iu fo lh a crescer? Às vezes é plena calm a</p><p>do d ia , não te m ve n to nenhum , o a rb us to está parad íss im o, e</p><p>no e n ta n to um a fo lh a m exe d u m lado pra o u tro , às vezes</p><p>com um a v io lê nc ia adm iráve l.</p><p>— É verdade, já repare i! mas nunca pensei nisso. . .</p><p>— F o i um a pena, F e lix de C im a. Será um a audácia</p><p>m inha d ize r que nisso eu já ve jo um r itm o , mas ve jo . Em</p><p>to d o caso, pra não p ro voca r d iscussão, d e ix o isso de lado. Na</p><p>verdade, só o hom em pode "o rg a n iz a r” r itm o s c o m p le to s e</p><p>co m p le xo s , le g ítim a co n fo rm a çã o consc ien te do m o v im e n to no</p><p>te m p o . V ocê v iu o f i lm e "S to rm y W ea the r” ? Pois lá tem</p><p>um r itm o liv re , a bso lu ta m e n te adm iráve l. É q ua nd o na cena</p><p>em que m ostram ao negro f in g in d o r ic o , o que vai ser o</p><p>espetácu lo dessa n o ite . E n tre as am ostras dos núm eros da</p><p>revista , vem um n eg rin ho espigado, m u ito e legante de fo rm a ,</p><p>que dança um sapateado. Pois te m um m o m e n to em que pra</p><p>dançar to d a uma frase m usica l, ele bate co m a p on ta da m ão</p><p>esquerda no pé d ire ito e vem su b ind o co m o b raço enquan to</p><p>a frase m usica l se expõe, e q ua nd o ela acaba, o negro acabou</p><p>de sub ir o b raço no ar. Não te m um só e le m e n to que se</p><p>re p ita , e no e n ta n to o gesto c o re o g rá fico de le é d u m r itm o</p><p>fo rm id á v e l, chega a ser m arav ilhoso . A liá s já A r is tó te le s , na</p><p>"R e tó r ic a " , a firm ava ser co nve n ien te que o d iscu rso tivesse</p><p>" r i tm o , po rém não tivesse m e tro , pra não se to rn a r poes ia ". E</p><p>po r is to m esm o que eu consigo e x p lic a r e ju s t if ic a r o</p><p>ve rso-livre . Da mesma fo rm a co m o o d iscu rso é um interesse</p><p>e sp iritu a l d o m in a n te , em que o se n tid o das palavras te m va lo r</p><p>dec is ivo , que o m e tro co m o seus balanços en to rpecen tes</p><p>d isfarçava, ta m b é m e x is te m estados de poesia que p o r</p><p>dem asiado livres da consc iênc ia d o se n tid o "s u b c o n s c ie n te "</p><p>das palavras, em bora eu não goste de fa la r em subconsc ien te</p><p>de que tem-se abusado ta n to : essa espon tane idade para-lóg ica</p><p>desses estados de poesia exige a não p re d e te rm in a çã o m étrica</p><p>pra se va lo riza r es te ticam en te . E a rtis tic a m e n te ta m b é m :</p><p>a d q u ir ir to d a a sua va lidade co m o assunto. Na verdade o</p><p>ve rso-livre é tã o o rg an izado co m o o m e tr if ic a d o , em bora seja</p><p>u m m o v im e n to liv re in te r io r , do poe ta . E de fa to , o</p><p>ve rso -liv re só pode ser co n ce b id o e a p lica d o , co m a</p><p>exacerbação in d iv id u a lis ta do século passado. A ss im , eu</p><p>e n te n d o que verso é o e lem en to da linguagem o ra l que im ita ,</p><p>o rgan iza e tra n s m ite a d in âm ica d u m estado lí r ic o . Fale i</p><p>" lin g u a g e m o ra l" , p o rque e x is tem m il e um a linguagens no</p><p>hom em . E em belas artes, a rq u ite tu ra , m úsica, p in tu ra ,</p><p>co re og ra fia , tu d o são linguagens especiais. Mas já estou</p><p>pensando m e lh o r: o verso se d e fin ir ia c o m o o e le m e n to da</p><p>linguagem o ra l que tra n s fig u ra e s te ticam en te o m o v im e n to do</p><p>estado lí r ic o . Esta d e fin iç ã o já m e satisfaz. Porém , si em vez</p><p>dum a d e fin iç ã o que encerre o co n c e ito p s ico lóg ico do verso,</p><p>si p re fe r ir um a d e fin iç ã o desc ritiva , mas que não im p liq u e a</p><p>d e lim ita ç ã o fo rm a l da m é trica e da rep e tiçã o , pod ia-se d ize r</p><p>que verso é o e le m e n to de poesia que d e te rm in a as pausas do</p><p>m o v im e n to r í tm ic o . Mas isso a inda não in c lu i bem o</p><p>ve rso -liv re , que seria a r r í tm ic o pe lo c o n c e ito geral dos</p><p>r itm ó lo g o s . D igam os: o verso é o e le m e n to de poesia que</p><p>d e te rm in a as pausas de m o v im e n to da linguagem lír ic a . O u : da</p><p>expressão o ra l do estado p o é tic o , que fica m e lh o r. Mas a inda</p><p>se pode m e lh o ra r: verso é a e n tid ad e r í tm ic a (ou , d in âm ica )</p><p>d e te rm in a d a pelas pausas d o m in a n te s da linguagem lír ic a . Ou,</p><p>fx )é tica . Esta d e fin iç ã o me satisfaz.</p><p>— Meu Deus! eu não estou en te nd e nd o nada!</p><p>— M eu caro am igo , você é um a m o r! ( r iu Sarah L ig h t</p><p>se e rguendo . H es ito u :) eu te n h o . . . Se d ir ig iu a um a pequena</p><p>escrivan inha esquecida num ca n to , rem exeu um a das gavetas e</p><p>d esen te rrou um cade rno já bastan te am are lec ido pela idade.</p><p>V e io tra ze n d o , era ta rd e pra esconder. S iom ara o lhava o</p><p>cade rno co m um so rriso .</p><p>— Que caderno é esse, Sarah !. . .</p><p>— Este cade rno fo i de m inha avó, Sarah L ig h t, m e n tiu .</p><p>Estava em b ra nco e a p ro ve ite i nos meus estudos de m oc inha .</p><p>Por isso. Eu co p ie i a qu i um e sc rito de S eura t, que me deram</p><p>pra c o p ia r no ta l cu rso do C o lég io des O iseaux. O pro fessor</p><p>deu m u ito s exem p los dos estudos fe ito s nos la b o ra tó r io s sobre</p><p>esse d in a m is m o das com oções estéticas. De certas experiênc ias</p><p>se estabeleceram norm as gerais que, p r in c ip a lm e n te nas artes</p><p>p lásticas, fo ra m de bastante u tilid a d e . Seura t s in te tiz a assim:</p><p>" A r te é h a rm o n ia . A h a rm on ia p lástica se rea liza pela analogia</p><p>de c o n trá r io s ( is to é: con tras tes), ana logia de sem elhantes (is to</p><p>é: as gradações), e de to m , de co lo ração e de linh a . De to m</p><p>quer d iz e r de c la ro e escuro ; de co lo ração , q u e r d iz e r as</p><p>co m p le m en ta re s : v e rm e lh o e sua c o m p le m e n ta r verde, o</p><p>a la ran jado com o azu l, o am are lo com o ro x o ; e, e n fim , de</p><p>lin h a , is to é: as d ireções sobre a h o r iz o n ta l. Estas ha rm on ias</p><p>diversas são com b inadas de fo rm a a se to rn a re m calm as,</p><p>alegres ou tr is te s ( is to é: podem dar com oções estéticas de</p><p>ca lm a, de a legria ou tr is te z a ). A a legria de to m é qua nd o o</p><p>to m d o m in a n te d o c la ro -escuro é lu m in o s o ; de co lo ra çã o é a</p><p>d o m in a n te de co r q u e n te ; de linha são as d ireções ascendentes</p><p>sobre a h o r iz o n ta l. A ca lm a se dá pela igua ldade de to ns</p><p>so m b rio s e c la ros, de cores quentes e fr ia s , e da</p><p>h o r iz o n ta lid a d e das d ireções lineares. A tr is te za de to m é a</p><p>d o m in a n te so m b ria ; de co lo ra çã o é a d o m in a n te f r ia ; de linha ,</p><p>as d ireções descendentes.</p><p>. . "</p><p>— T u d o isso h o je é, c o m o se d iz , can ja , está</p><p>u n ive rsa lm en te p ro vad o e a ce ito , in te rro m p e u a ca n to ra</p><p>despe itada . E nunca se poderá fazer coisa sem elhante para a</p><p>m úsica: basta ver o p ro b le m a in tr in c a d ís s im o da d issonância</p><p>que si d u ra n te uns três séculos fo i in co n te s ta ve lm e n te o to m</p><p>lu m in o s o , a co lo ra çã o q ue n te , o va lo r ascendente do</p><p>p o lifo n is m o e da h a rm o n ia , h o je não é nada disso m ais, co m</p><p>a d e s tru içã o d o to n a lis m o h a rm ó n ic o . E o mais d iv e r t id o é</p><p>que se pod ia bem fa la r que si a consonância a bem d ize r</p><p>d e ix o u de e x is t ir d e n tro do p o lito n a lis m o e do a ton a lism o ,</p><p>po is que to d o s os acordes, m e lh o r será d iz e r apenas: todos os</p><p>c o n ju n to s de sons s im u ltân e os , c o n tê m som e x te r io re s ao</p><p>acorde to n a l e são d issonânc ia : o d ua lism o perm anece,</p><p>to rn a n d o f r io o c o n ju n to que te m m enos sons e x te rio re s ao</p><p>acorde to n a l, e q ua n to s mais sons d issonantes m ais quente ,</p><p>m ais lu m in o s o , m ais ascendentem ente d in â m ic o o c o n ju n to .</p><p>Ora é o c o n trá r io que parece se dar. Os acordes de undécim a,</p><p>de déc im a -te rce ira , usados p o r Debussy e os im pression istas</p><p>que o segu iram , fiz e ra m ju s ta m e n te a m úsica se to rn a r mais</p><p>nebu losa , m ais d in a m ica m e n te suave, m ais senso ria lm en te</p><p>indecisa. De m aneira que os m odernos pra to rn a re m a sua</p><p>m úsica m ais c lara , m ais fran ca , e tirá - la do " f o g "</p><p>im p ress ion is ta , não só abusaram dos r itm o s b a tid os , com o ,</p><p>co m a negação da d issonância h a rm ó n ica , na verdade se</p><p>to rn a ra m m u ito mais s im p lis tas e até s im p ló r io s ,</p><p>h a rm o n ica m e n te , que um D ebussy.</p><p>— Mas na p in tu ra , im p lo ro u Sarah L ig h t, decepcionada.</p><p>— Na p in tu ra m esm o, Sarah, a coisa é m ais s u til que</p><p>essa exposição d id á tic a de Seura t. P o r tin a ri a tinge p o r vezes</p><p>ce rtos azues que só p o r si, e não em re lação ao c o n ju n to , são</p><p>va lores p o s itiva m e n te quentes. E xc ita n te s m esm o. Me lem bro</p><p>dum a co m e rc ia n te n o rte am ericana cé lebre que p os itivam e n te</p><p>ca iu . . . ca iu no c io , d ia n te d u m re tra to de P o rtin a ri em que,</p><p>apesar do ro s to q ue n te , m u ito a m orenado d o h om em , o</p><p>a rtis ta consegu iu to d o o e fe ito a rd en te pela d o m in a n te em</p><p>co n tra s te de do is azues m u ito d iversos de co lo ra çã o . "Ces</p><p>b leus! ces b le u s !" g ritava a m od is ta de ros tos , e xc itad fss im a .</p><p>São azues p o s itivam e n te quentes pela p ro fu n d e za . E no</p><p>e n ta n to , repare : a p ro fu n d e za ps ico lóg ica na prosa o u na</p><p>poesia, um P roust um R ilk e , é m u ito m ais fr ia , m enos</p><p>d in âm ica , que o s im p lism o d ire to dos "h e ró is " ro m â n tic o s e</p><p>clássicos. U m W erthe r, um h e ró i de M an zon i, um C h ild</p><p>H a ro ld , sem serem mais possantes co m o personagens a rtís tic o s ,</p><p>nos d o m in a m e ilu m in a m nos "q u e im a m " m ais que a senhora</p><p>de G uerm antes. Mas si no caso do q u a d ro de P o rtin a ri a inda</p><p>se pode a rg um en ta r com a q u a n tid a d e d o m in a n te de azu l que</p><p>to m a to d o o q u a d ro quase, a inda há que d is c u tir o d in a m ism o</p><p>das linhas. V ocê co lo qu e um a linh a o b líq u a em re lação a uma</p><p>h o r iz o n ta l. Si a o b líq u a p a rte da h o r iz o n ta l na d ire ita do</p><p>papel e se afasta de la , nós to do s sen tirem os que essa linha</p><p>"s o b e " . Si a o b líq u a se une co m a h o r iz o n ta l na esquerda do</p><p>papel, sen tim os que ela "d e s c e ". Mas isso será um a verdade</p><p>pura, to ta l, perm anen te , e n fim c ie n tif ic a m e n te un iversa l? is to</p><p>é o que eu p e rg u n to e nunca vi n inguém responde r. Porque</p><p>im a g in o que si as linhas nos parecem su b ir ou descer, isso é</p><p>po rque o nosso a to tra d ic io n a l de visão, na le itu ra , se p ra tica</p><p>da nossa esquerda para a d ire ita . E de fa to , a palavra " le i t u r a "</p><p>é bastante em pregada na te rm in o lo g ia da p lás tica . Mas eu</p><p>p e rg u n to : E pra esses povos que tê m um a escrita que vai da</p><p>d ire ita do c o rp o para a esquerda: será que eles tê m a mesma</p><p>sensação que nós, ou a oposta? Vocês fiq u e m co m a cabeça</p><p>im ó ve l e m exam só com os o lh o s : Reparem co m o descer com</p><p>os o lh os do a lto pra b a ix o é bem mais d if í c i l e sacud ido que</p><p>m over co m eles de b a ixo pra c im a . Da mesma fo rm a , é</p><p>fa c ílim o , quase in s t in t iv o em nós, o c id e n ta is , m ove r co m os</p><p>o lhos da esquerda para a d ire ita , ao passo que o c o n trá r io</p><p>quase não consegu im os num m o v im e n to des lizado.</p><p>— Puxa! é verdade!</p><p>— Eu não sei si lá fiz e ra m , pe lo que eu li parece que</p><p>não: mas dev iam fazer pesquisas a respe ito da sensação</p><p>ascendente e descendente das o b líq u a s sobre a h o r iz o n ta l, não</p><p>só nos povos que tê m escrita em m o v im e n to c o n trá r io ao da</p><p>nossa, mas com crianças de to d o s os povos, de do is , três anos,</p><p>a inda não in flu en c iad as não só pela le itu ra mas pela</p><p>te rm in o lo g ia e e x e m p lo dos pais.</p><p>Eu não estou negando o d in a m is m o da co m o ção</p><p>estética , ve jam bem ! Porque seja ele in s t in t iv o , o u herdado ,</p><p>ou a d q u ir id o na p rá tica da v ida , e le não de ixa de ser rea l. É</p><p>fa ta l. Tão fa ta l co m o ou tras com oções de prazer e desprazer</p><p>que sejam e xc lu s ivam en te fis io ló g ica s . Essas que M a rio P ilo</p><p>teve a to lic e de cons ide ra r "b e la s " ta m b é m , p o rq u e eram</p><p>prazeres fis io ló g ic o s : o be lo v iscera l, o be lo m uscu la r, o be lo</p><p>o lfa t iv o , co m o eie d iz ia . N ão senhor! N o b e lo , na com oção</p><p>estética en tra im p re sc in d ive lm e n te um a e no rm e co labo ração</p><p>do e s p ír ito , e de ca rá te r espec ífico , que é o que d e te rm in a</p><p>a " fa ta l id a d e " fis io ló g ic a da com oção esté tica mas ao m esm o</p><p>te m p o a sua "c a s u a lid a d e " ps ico lóg ica . Parece c o n tra d iç ã o</p><p>a firm a r que a co m oção esté tica é ao m esm o te m p o fa ta l e</p><p>casual, mas não é. M u itas vezes o e s p ír ito não a reg is tra ,</p><p>apenas isso, p o r q u a lq u e r m o tiv o p s ico lóg ico m ais fo r te que a</p><p>com oção esté tica , c o m o p o r e xem p lo o desastre de a u to m ó ve l</p><p>que fez F e lix -de C im a m ata r a m u lh e r p ob re , o u a fa lta de</p><p>educação ou re fin a m e n to do e s p ír ito etc. D a í a d ife rença</p><p>en tre a co m o ção esté tica e o u tra s com oções em que a</p><p>co labo ração do e s p ír ito é ta m b é m m u ito g rande c o m o o</p><p>a m or, a saudade, a que fa lta p o rém o ca rá te r fis io ló g ic o da</p><p>im ed ia teza . Fa le i em " a m o r " mas posso d im in u ir ele ao</p><p>s im ples interesse sexua l. . . São com oções m esm o o interesse</p><p>sexual, que só se rea lizam q uando me e n trego a elas ou</p><p>rea jo co n tra . O ra eu não posso reagir c o n tra a co m o ção</p><p>estética , p o rq u e ela é liv re e ind ependen te de m im .</p><p>Mas aqu i é que a casua lidade p s ico lóg ica da com oção</p><p>estética te m um a im p o rtâ n c ia m u ito co m p le xa . É co m u m essa</p><p>a firm açã o de que um q u a d ro num a parede p o r que passamos</p><p>to d o s os d ias, de ixa de p ro voca r em nós a mesma com oção</p><p>que p ro v o c o u da p r im e ira vez. Não é verdade, exa tam en te .</p><p>Nada ex is te pra nós sem a reg istração d o e s p ír ito . R eparem :</p><p>Paris. Paris até neste m o m e n to não e x is tia para o nosso</p><p>m u n d o e s p ir itu a l de nós três, mas p r in c ip io u e x is t in d o desque</p><p>p ro n u n c ie i a palavra.</p><p>Porém daqu i a p ou co , q u a n d o estiverm os</p><p>fa la n d o n o u tra coisa, Paris de ixará de e x is t ir de novo para a</p><p>im agem do m u n d o que nós tem os em nossa tra n s ito r ie d a d e ,</p><p>até precisarm os e s p ir itu a lm e n te dela o u tra vez. O u a ten ta rm os</p><p>nela po r q u a lq u e r m o tiv o . Ora a co m oção esté tica é com o</p><p>Paris: ex is te sem pre, fa ta lm e n te , im e d ia ta m e n te e</p><p>p e rm a ne n tem en te , apesar de to d o s os nazis in fam es desse</p><p>m u n d o , da A le m a nh a co m o do B rasil. Porém de ixa</p><p>ps ico log ica m en te de e x is t ir e n q u a n to não puserm os reparo</p><p>nela, e, e n tã o não nos será possíve l reag ir c o n tra . A o passo</p><p>que é possíve l reag ir c o n tra o a m o r, o ó d io , e m esm o a</p><p>exc itação sexua l, não só c o m o a fe tos , mas c o m o com oções.</p><p>(A h ! p e r f il d u ro , p e r f il d u ro . . . H o je , m esm o q u a n to te</p><p>c o n te m p lo , parece im possíve l re co b ra r o passado a ressentir</p><p>ta n ta ve n tu ra irrea lizada que s o fr i. . . Mas. . . m ud a ria o Natal</p><p>ou m ude i eu? . . . B om .) A ss im a co m o ção esté tica não se</p><p>em bota nunca, em bora possa se tra n s fo rm a r q u a n to à</p><p>qua lidade .</p><p>— Porque o a p u ra m e n to da in te lig ê n c ia , co m a</p><p>educação, a idade, a expe riênc ia , tra n s fo rm a m não só o</p><p>e s p ír ito mas as reações fis io ló g ica s . Em criança , q u a n d o eu ia</p><p>a pé para o co lé g io , era ob rigada a atravessar o c e n tro da</p><p>c idade , eu era pob re . . . Mas parava sem pre em tu d o q u a n to</p><p>era exposição de p in tu ra . Um a fe ita , num a dessas, me engracei</p><p>d o m in a d o ra m e n te p o r um q u a d ro do p in to r D o n a to Bossi.</p><p>Pois não pude, era m en ina a inda : fu i p e rg u n ta r o p reço ao</p><p>p in to r , que ta m b é m se engraçou pela m in ha ado lescência</p><p>g os tando d o q u a d ro dele. E ram umas n in feáceas roxas, num a</p><p>água p ro fu n d a , e co m um te c id o de a rvo re do ve rde-negro no</p><p>segundo p lano . H o je eu r io , mas co m o eu achava aquela água</p><p>m o rta ve rdade ira . . . O q u a d ro custava c in q u e n ta m ilré is , mas</p><p>o p in to r acabou d e ixa n d o pelos q u inze que eram to d a a</p><p>m inha mesada. . . D epois, co m o a p u ra m e n to dos estudos,</p><p>p r in c ip ie i te n d o vergonha d o q u a d ro sem p in tu ra que acabei</p><p>dando não le m b ro a quem . H oje , nem sei q u a n to pagava pra</p><p>o b te r o q u a d ro o u tra vez, só pra sonhar d ia n te d o m eu</p><p>p r im e iro passado de vida rea l. . . Mas já fe ita , no e n ta n to ,</p><p>o b tiv e um q u a d ro de A n ita M a lfa tt i, o fa m o so "H o m e m</p><p>A m a re lo " , que causou aquela b riga danada na expos ição que</p><p>ela fe z em São Paulo , em 1 9 1 6 * . T en ho ele no m eu es túd io .</p><p>Mas esse é p in tu ra ve rdade ira , e si não o observo to d o s os</p><p>dias e às vezes o o lh o sem ver, a sensação es té tica perm anece</p><p>e rev ive to d a vez que c o n te m p lo o q u a d ro o u penso nele.</p><p>Ora vocês estão vendo aqu i fo rm a s im p o rta n te s , algum as</p><p>leg ítim as , o u tra s ile g ítim a s , da oscilação de v a lo r, até</p><p>e xc lu s ivam en te es té tico , das obras-de-arte . Está c la ro que um</p><p>va lo r se n tim en ta l supe rva lo riza agora em m im as n infeáceas de</p><p>D o n a to Bossi, e me fa ria a tu a lm e n te dar p o r esse q u a d ro que</p><p>não vale os q u inze m ilré is que me custaram , ta lvez c in co co n to s !</p><p>Só resta saber, dos do is va lores m eus, o s e n tim e n ta l que agora</p><p>d o m in a e o a n tie s té t ic o que a s im ples re lem brança d o quadro</p><p>já causa em m im , qua l dos d o is seria m ais fo r te , na presença</p><p>do q u a d ro e na fo rç a da p o te n c ia lid a d e e m o tiv a dele.</p><p>Desses pesos que supe rva lo rizam n u m dado m o m e n to</p><p>um a o bra -de -a rte , o m ais im p o rta n te e pode-se d iz e r que</p><p>legitime^, é a m oda. C om a fa lta de m e lod ias gostosas nessa</p><p>espécie de in fe c u n d id a d e m e lód ica da m úsica m oderna , se deu</p><p>um a v itó r ia cu riosa da m e lod ia , que fo i a m oda V e rd i que</p><p>d o m in o u , não só o p ú b lic o geral (que V e rd i a inda c o n tin u a</p><p>* M ário de A n d ra d e faz aqu i um a confusão de data ; a exposição realizou-se,</p><p>na verdade, em 1 9 1 7 .</p><p>d o m in a n d o sem pre) mas os m úsicos e ru d ito s , os c r ít ic o s e os</p><p>m us icó logos. Mas eu c re io que isso fo i um a m oda necessária,</p><p>um a le g ítim a "c o m p e n s a ç ã o ", não apenas no se n tid o</p><p>p s ico ló g ico do te rm o , mas f is io ló g ic o . O c o rp o nosso precisava</p><p>de m e lod ia e c o m o a m úsica m oderna não a pod ia dar com a</p><p>necessária a bu nd ân c ia , o gên io m e ló d ico m arav ilhoso de V e rd i</p><p>v o lto u à to n a d e n tro da p ró p r ia m úsica e ru d ita . E a mesma</p><p>ex igênc ia de m e lo d is m o se m a n ife s to u no abuso da te m á tica</p><p>tira d a do fo lc lo re , em m úsicos a bso lu ta m e n te g ra n fin o s e sem</p><p>o m enor interesse pela causa p o p u la r nem nac iona l. Porque si</p><p>o tra b a lh o e ru d ito d o fo lc lo re é p e rfe ita m e n te exp licáve l e</p><p>louváve l na o b ra de um V iIla Lobos, d u m F ranc isco M ignone,</p><p>d u m Pascal de R oga tis na A rg e n tin a , p o rq u e estes pertencem</p><p>a escolas m usica is que a inda não f irm a ra m d e fin it iv a m e n te a</p><p>sua q u a lif ic a ç ã o e caracteres naciona is, e se tra ta aqu i de um</p><p>fe n ó m e n o le g itim a m e n te de socia lização dos a rtis ta s ; o mesmo</p><p>não se dá co m u m ju d e u co m o D a rio M ilh a u d , e o p ró p r io</p><p>S tra v in sq u i, e o p ró p r io Ravel, que abusaram do fo lc lo re</p><p>ta m b é m . No caso destes não houve nenhum a socia lização</p><p>necessária do c o m p o s ito r c u lto , desejoso de fu n c io n a r d e n tro</p><p>dum a co le tiv id a d e , mas pura g ra n fin ag em de fa tigados , que</p><p>tin h a m chegado ao impasse m e ló d ic o da m úsica a ton a l ou</p><p>p lu r ito n a l. A "c o m p e n s a ç ã o " neles é p e rfe ita m e n te exp licáve l,</p><p>mas não se pode d e fe n d e r d ize n d o que é le g ítim a .</p><p>— Eu não sei si você te rá razão. . . Eu ado ro a música</p><p>fo lc ló r ic a , me e x c ita , m e b ru ta liz a , acho es tupendo . Mas quando</p><p>trab a lh ad a p o r um c o m p o s ito r , entenda-se! U m a vez, passando</p><p>de a u to m ó ve l em P irap o ra , escute i um b a tu q u e de negros, achei</p><p>um a coisa h o rr ív e l, que m úsica id io ta , que palavras vulgares!</p><p>Mas o "B a tu q u e " de L o re n z o F ernandez acho um a m arav ilha ,</p><p>assim co m o a d o ro re le r os liv ro s fo lc ló r ic o s de Leo na rd o M ota</p><p>e C o rn é lio Pires, tê m coisas engraçad íssimas.</p><p>— Pois é, Sarah L ig h t. . . Eu co m p re e n d o que você goste</p><p>da m úsica do p ovo , mas. . . trab a lh ad a , a lim pa da de sua fo rça</p><p>e da sua d o r. . . Q uando o povo canta " F u i passar na p o n te —</p><p>A p o n te tre m e u — Água te m veneno — Q uem bebeu m o rre u "</p><p>a gente acha bobagem e c o n c lu i que as frases não te m ligação.</p><p>O u apenas acha graça sem se co m o ver com tu d o o que existe</p><p>de p ro fu n d o , de que ixa , de fraq ue za , de aviso so m b rio nessa</p><p>quadra . E nos d iv e rt im o s co m entus iasm o vendo isso bem-</p><p>educadam en te tra n s p o rta d o p o r um c o m p o s ito r num gordo</p><p>co ra l a q u a tro vozes. Si R a iner M aria R ilk e , bem d e n tro do</p><p>e s tilo e da pe rsona lidade de le , escrevesse n um poema "O h</p><p>rose ira , m urchaste a ro s a ", to d a a gente ficava assombrada</p><p>com a fo rça sugestiva e d o lo ro sa desses versos. Mas co m o isso</p><p>é re frã o d u m coco n o rd e s tin o , a té fo lc lo r is ta s já o u v i fa la r que é</p><p>paro lagem boça l! . . . Por onde se vê que a co m o ção esté tica tam</p><p>bém</p><p>depende de casual idades. . . le g itim a m e n te ile g ítim a s , não há d úv ida .</p><p>Mas essa casua lidade ps ico lóg ica da co m o ção esté tica , é que</p><p>faz a d ife ren ça de re co n h e c im e n to dela en tre , p o r e x e m p lo , um</p><p>ca ip ira a na lfab e to e um estudan te de lite ra tu ra . A liá s , está c la ro :</p><p>cada um dos caracteres da co m o ção esté tica ta m b é m é ca rá te r de</p><p>várias o u tra s espécies de com oções. Não a firm e i que eram exc lus ivos</p><p>dela. Mas o g ru p o de caracteres fis io ló g ic o s e p s ico lóg ico s que</p><p>enum ere i a trás é que , em seu c o n ju n to , pe rtencem e xc lu s ivam en te</p><p>à com oção esté tica , são só dela e a su bs tan tivam . Mas a inda q u a n to</p><p>à casua lidade c o n tra d itó r ia da sua fa ta lid a d e , vocês reparem na</p><p>d ife re n ça e n tre um ca ip ira a na lfab e to e um e s tud ioso de lite ra tu ra</p><p>escutando um tre c h o de Shakespeare. A m b o s tê m a mesma com oção</p><p>esté tica , co m o va lo r f is io ló g ic o . Q uero d iz e r: ela age nos do is da</p><p>mesma fo rm a co m o va lo r im p o s it iv o da obra -de -a rte , é fa ta l. Mas</p><p>ao passo que o ca ip ira v iverá quase e xc lu s ivam en te , ou</p><p>exc lus ivam en te o assunto, a com oção esté tica fu n c io n a n d o nele</p><p>in co nsc ie n te m en te co m o um a fo rça que im p õe o assunto e vai</p><p>d e c id ir a verdade m e n ta l, m o ra l d o ca ip ira ; o es tud ioso re fin a d o</p><p>vai a ten ta r quase que exc lu s ivam en te na co m oção esté tica que te m ,</p><p>se desinteressando do assunto e não t ira n d o dele nenhum a</p><p>conclusão que lhe d ir ija a a titu d e , p o u co im p o rta si p ró x im a ou</p><p>perm anen te . E até que p o n to is to não é um a d e fo rm a çã o errónea</p><p>da fu n c io n a lid a d e da o bra -de -a rte . . .</p><p>— Não c o n c o rd o , m in ha am iga. A o b ra -de -a rte deve</p><p>sem pre fu n c io n a r co m o a rte p u ra ! Os ca ip iras, os a na lfabe tos</p><p>não exercem as belas artes, é o que nos d is tin g u e deles. E, eu</p><p>a firm o , a recom pensa pe lo nosso va lo r p ró p r io , pe lo s a c rifíc io</p><p>que fize m o s pra c o n q u is ta r a nossa posição. A s belas artes,</p><p>são um fe n ó m e n o de a p r im o ra m e n to d o e s p ír ito , de va lo r</p><p>pessoal. As artes do p ovo nunca serão a rte pura , mas artes</p><p>interessadas. Meu avô saiu do povo . . . em bora fosse de fa m ília</p><p>tra d ic io n a l. P orque os o u tro s hom ens do p ovo não sub iram</p><p>com ele? Si eu ho je gozo Bach, gozo M ig ue lan jo e gozo da</p><p>mesma fo rm a esta casa que fo i p ro je ta da p o r Oscar N iem eye r,</p><p>isso é um a su pe rio rida d e que eu c o n q u is te i, um a recom pensa</p><p>do m eu es fo rço !</p><p>— A p o ia d o s ! quase g r ito u F e lix de C im a, que e n fim</p><p>co m p re en d ia a lgum a coisa. Isso de fa la re m em classes, em lu ta</p><p>de classes, é bobagem de gente despe itada , que só q ue r sub ir</p><p>mas só v ive no seu gab ine te . Conhecessem a v ida c o m o eu! Tem</p><p>gente que sobe e gente que não fa z o m en o r e s fo rço pra su b ir!</p><p>Isso é 'q u e é! N ão é classe. A gen te tra ta bem deles, co itados ,</p><p>não tem ta n ta in s t itu iç ã o de ca ridade p o r a í! A g o ra não estamos</p><p>co n c lu in d o a P o lic lín ic a m a io r do m u n d o ! Pobre e r ic o , grandes</p><p>e pequenos, isso não é classe, é reg is tro de va lo r.</p><p>S iom ara Ponga estava aba tida co ita d in h a , uns o lh os</p><p>saudosos, longe. R ecom eçou fa tigada :</p><p>— Eu tam bém . . . Ta lvez to da a a rte " e r u d ita " seja um e rro</p><p>in fam an te dos donos-da-v ida. . . Ta lvez seja um e rro . . . V ocê d iz</p><p>que está lendo soc io log ia , Sarah L ig h t. Talvez a a rte e ru d ita , com</p><p>suas consequências de "be las a rte s ", de "a r te p u ra " , seja um avanço</p><p>indev ido da " c iv il iz a ç ã o " sobre a " c u ltu r a " , no sen tido soc io lóg ico</p><p>dessas palavras. Não se tra ta de conceber com o a rte e ru d ita a</p><p>pe rfe ição e m esm o o re fin a m e n to té cn ico . Isso a inda é artesanato .</p><p>E é, "s e n s o r ia l" , n o te , o hom em do povo a " re c e b e " da mesma</p><p>fo rm a que eu. Já a técn ica in d iv id u a lis ta a bem d ize r só</p><p>consc ien tizada do R o m a n tism o pra cá, o es tilo pessoal, são sempre</p><p>d e fo rm a do re s da fu n c io n a lid a d e da obra-de-arte . F id ias não teve,</p><p>nem P a lestrina. N em o p ró p r io Bach, nem o p ró p r io M o za rt, nem</p><p>o p ró p r io M ig ue lan jo , nem os renascentes ita lianos, que se</p><p>d is tin gu em m u ito m ais p o r escolas, e cu ja persona lidade in d iscu tíve l</p><p>era neles apenas um a fa ta lid a d e . Da mesma fo rm a que é fa ta lid ad e</p><p>o n ac iona lism o da a rte fo lc ló r ic a , e d e n tro dum a mesma região de</p><p>cantadores popu lares, um deles a fe içoar mais ta l ve rso -fe ito , ta l</p><p>m o tiv o r í tm ic o -m e ló d ic o , e m esm o inven ta r coisas só dele. Mas</p><p>observe a a rte flam enga, so b re tu d o na p in tu ra . Um a c o n s titu iç ã o</p><p>de sociedade m u ito m ais burguesa tam bém to rn a esses p in to re s ,</p><p>m esm o d e n tro da mesma escola m u ito mais d is tin g u ív e is e n tre si,</p><p>m u ito mais pessoais. A d ife ren ça en tre um R em bra nd t e um</p><p>Ten iers, en tre um F ranz Hals e um R ubens já são um a o b ra de</p><p>von tade de especificação pessoal, ao passo que a d ife rença</p><p>en tre um Rafael e o p ró p r io M igue lan jo , en tre um T ic ia n o</p><p>e um Veronese é m u ito mais uma fa ta lid a d e do in d iv íd u o , que</p><p>uma consciência do in d iv id u a lis m o . O p ró p r io Da V in c i, um</p><p>te o ris ta inve te rado , um "p e rs o n a lis ta " se c o n fu n d in d o m u ito</p><p>com os o u tro s p in to re s an te rio res e poste rio res a ele da mesma</p><p>escola donde ele saiu. A té que p o n to a consc ien tização dum a</p><p>a rte " e r u d ita " é um a escam oteação m onstruosa da verdade</p><p>da arte , p ro du z ida pelos m ov im e n to s sociais, isso é que eu</p><p>nem que ro pensar. . .</p><p>F o i neste m o m e n to que o c o m p o s ito r Jan jão e o</p><p>es tudan te de D ire ito Pastor F id o assom aram à p o rta d o ja rd im</p><p>de inve rno . E ta n to a m ilio n á r ia Sarah L ig h t, co m o a célebre</p><p>v irtu o se S iom ara Ponga e o p o lí t ic o F e lix de C im a,</p><p>s u b p re fe ito de M en tira , a s im pá tica c idad inha da A lta Paulista,</p><p>tive ra m a mesma idé ia. O te m p o passara e eles m u ito</p><p>e n tre tid o s naquele le ro -le ro es té tico . Não tin h a m c o m b in a d o</p><p>nada a respe ito d o c o m p o s ito r !</p><p>O A peritivo</p><p>Situação atual, técnica e</p><p>prática da música e do</p><p>com positor brasileiros. O</p><p>m undo oficial. O ensino.</p><p>A crítica, sua desorientação,</p><p>ignorância e com adrism o.</p><p>Sarah L ig h t que estava um bocado irr ita d a com o atraso</p><p>de Jan jão , antes m esm o de esperar que este se d irig isse a ela</p><p>e a saudasse, os tens ivam ente se ergueu e fo i dar a lg um sinal</p><p>na cam painha escondida na parede. Só então de ixou -se saudar,</p><p>m u ito vaga. Jan jão se v o lto u para apresentar o co m p a n h e iro ,</p><p>mas o rapaz fica ra esperando lá na p o rta .</p><p>— Venha cá. Pastor F id o .</p><p>— Q uem é esse, fa lo u c la ro Sarah L ig h t, sem nenhum a</p><p>surpresa p o rqu e já estava acostum ada a ta n ta gente que vinha</p><p>lhe f i la r as com idas.</p><p>— Sarah, lhe apresento o m eu am igo . Pastor F id o ,</p><p>es tudan te de D ire ito .</p><p>— E passador de apó lices da C om panh ia de Seguros A</p><p>In fe lic id a d e m inha senhora. Mas ve rdade iram en te , co m o d iz</p><p>M achado de Assis eu sou a m oc idade , eu sou a a m or para. . .</p><p>descu lpe, ia d ize r "p a ra se rv i-la ", mas co m o a senhora não</p><p>precisa do meu a m o r, d ep o n h o aos vossos pés a m inha</p><p>adoração.</p><p>Era uma desenvo ltu ra falsa que fazia o rapaz ser tão</p><p>desastrado assim, num m eio esco lad fss im o, em que</p><p>toda</p><p>aquela paro lagem não tin h a a m enor fo rça . Só d 'a í a pouco,</p><p>q uando a s ituação dele fosse aclarada e aceita por to do s .</p><p>Pastor F id o re a d q u ir ir ia a sua desenvo ltu ra n a tu ra l. Sarah</p><p>L ig h t fez uma careta pra s ign ifica r que so rria , mas estava</p><p>ind ignada. Ind ignada consigo mesma, entenda-se. A estup idez</p><p>do m oço não a apiedara um isto , mas aquela m oc idade ,</p><p>aquela graça de co rp o novo , sujo de saúde, a d e rro to u .</p><p>A p ro ve ita va as saudações de to d o s pra sentar com ra c io c ín io ,</p><p>to da desnorteada em seu a m or por Jan jão . Não tin h a mais</p><p>vo n ta de nenhum a de p ro tege r esse id io ta que em vez de se</p><p>d e fe nd e r, lhe punha casa a d e n tro a irre s is tív e l promessa dpm</p><p>rom ance de mãe. F e lizm e n te o b u rro do p o lí t ic o F e lix de</p><p>C im a não sabendo aguentar o s ilên c io que ca íra , ve io com</p><p>uma beste ira :</p><p>— C om que en tão , te n h o m u ito prazer em conhecê-lo ,</p><p>m eu caro c o m p o s ito r. A m inha boa am iga já t in h a me fa lado</p><p>de você e fa re i o possível pra p ro tegê -lo , vam os a ver.</p><p>Jan jão f ic o u b ranco com a b o fe ta da . S iom ara qu is se</p><p>m exer mas não se m exeu. A m ilio n á ria até se n tiu vo n ta de de</p><p>ch o ra r. Fo i fa la n d o com uma calm a que enganou fá c il Jan jão :</p><p>— Eu c re io , F e lix de C im a que você fa rá bem , você</p><p>não! mas o Estado de M en tira em se u t i l iz a r de um a grande</p><p>fig u ra de a rtis ta nac iona l, mas (ia hesita r, mas m e n tiu com</p><p>uma coragem m ascu lina) nunca lhe fa le i que Jan jão precisava</p><p>da sua p ro teçã o .</p><p>— E n tã o !. . . en tão eu não e n te nd o nada!</p><p>— E n tendeu tu d o , m eu am igo ( ir ro m p e u Sarah bem</p><p>depressa), eu conheço a boa o rien ta ção que você im p r im e às</p><p>artes de M e n tira , e por isso qu is lhe apresentar o nosso m a io r</p><p>co m p o s ito r.</p><p>— N em to d o s são da mesma o p in iã o . . .</p><p>Sarah vo ltou -se es tupe fac ta . E n fim S iom ara Ponga saíra</p><p>do seu s ilên c io , e o fize ra esco lh idam en te co m aquela frase</p><p>d ú b ia , que n inguém sabia bem si atacava a o rie n ta çã o do</p><p>p o lí t ic o ou o Valor do m ús ico . Jan jão se n tiu um f r io na</p><p>barriga , p o rqu e t in h a consciência da fo rça in te le c tu a l da</p><p>v irtuo se . E p o r causa disso m esm o a n tip a tiza va com ela,</p><p>reconhecendo num ín t im o jam ais confessado que m esm o em</p><p>m úsica ela sabia m u ita coisa que ele, p o r des le ixo e ta m b ém</p><p>por m iséria , não se devo tara em saber. S iom ara , sem pre</p><p>im ó ve l, não conseguia t ir a r os o lh o s dos pés de Jan jão . O</p><p>c o m p o s ito r seguiu-lhe os o lh o s e percebeu que estava com os</p><p>pés su jíss im os de poe ira , ah m eu Deus! ele jam ais conseguirá</p><p>o rgan iza r d ire ito aquele m o n tã o de ossos que era, andava</p><p>espalhado, e a cam inhada lhe de ixa ra os sapatos naquela</p><p>inde licadeza. F ico u m o rto de vergonha. Mas a v irtu o s e fo i a</p><p>p rim e ira coisa que v ira . Era fr ia S iom ara Ponga. Era h ig ién ica</p><p>po r dem ais. P orque era fr ia . Estava tã o bem d isposta a</p><p>respe ito de Jan jão , mas aqueles pés sujos a repugnaram e</p><p>fica ra a n tip a tiz a n d o a lém do hum ano com ele. T o d o s lhe</p><p>tin h a m seguido os o lh os , era n a tu ra l. F e lix de C im a não se</p><p>im p o r to u , mas Sarah L ig h t sen tiu um gosto de s a c rifíc io</p><p>o lh a n d o aqueles pés sujos d o hom em . Pôs-se a am ar com</p><p>fra g o r. A frase da can to ra era m esm o co n tra Jan jão , mas</p><p>Pastor F id o que e n fim vo ltava à sua n a tu ra lid a d e tro p e ç o u no</p><p>G o ve rno :</p><p>— A senhora te m razão, eu ta m b é m não acho que o</p><p>Estado esteja bem o r ie n ta d o nessa h is tó r ia de p ro teg e r, aliás,</p><p>o que eu que ro saber é no quê ele está bem o r ie n ta d o nesta</p><p>T e r ra !</p><p>— Em m u ita coisa, rapaz! b e rro u F e lix de C im a o d ia n d o</p><p>o p ir ra lh o . Q uisera g a ra n tir que o G overno estava bem</p><p>o rie n ta d o "e m tu d o " , mas sem saber p o rqu e , não g a ran tiu ,</p><p>p re fe r iu o "m u ita co isa ".</p><p>— Mas eu não fa le i d o G overno . . .</p><p>— F a lo u !</p><p>— Não fa le i!</p><p>— Mas será que vocês vão b riga r na m inha casa! disse</p><p>Sarah L ig h t, sa tis fe ita . Pastor F id o a vingava da inconven iênc ia</p><p>da o u tra . Lhe deu um a von tade imensa de alisar os cabelos</p><p>do m oço . Mas este não perceb ia nada e ela se v o lto u pra</p><p>Jan jão d e s ilu d id a :</p><p>— Jan jão você está in co m o d a d o a toa com a poe ira dos</p><p>seus pés. Vá lá d e n tro , peça ao L in o que lhe passe um pano</p><p>nos sapatos. V ocê sabe o ca m inh o .</p><p>Era m e n tira dela só pra dar a perceber que Jan jão lhe</p><p>conhecia a in t im id a d e do lar. Jan jão ped iu licença e fo i,</p><p>a p ro v e ita n d o a ca m inhada , fica ra tã o desan im ado, pra ver si</p><p>as unhas estavam lim pas. Estavam sim , disso ele não esquecera</p><p>naquela m anhã cu idadosa . Mas S iom ara com entava im p lacáve l:</p><p>— V ocê fe z bem , Sarah em m andá-lo lim p a r os sapatos,</p><p>eu já não conseguia me vencer. O que eu louvo é sua</p><p>h ab ilida d e , co m ta n ta delicadeza p o n do na consciência de</p><p>Jan jão que andar co m pé su jo é fa lta de educação. Você é</p><p>e x tra o rd in á r ia Sarah (Estava surpresa cons igo mesma em</p><p>louva r Sarah L ig h t mas o e log io viera irre s is tíve l. Sentia agora</p><p>um a vo n ta de de agradar a m ilio n á r ia , não sabia porque . Mas</p><p>a raiva p o r Jan jão c o n tin u a v a ). Eu não posso com preender</p><p>essa estranha fa cu ld a d e de esquec im en to de si m esm o, que faz</p><p>ta n ta gente v iver sem desespero na fa m ilia r id a d e do h o rro roso .</p><p>Na D inam arca , só ve nd o ! to d a a gente anda lim p a , tu d o é</p><p>a rra n ja d in h o com b o m gosto , m esm o na casa dos camponeses</p><p>m ais ba ixos.</p><p>— Os cam poneses não são b a ixos !</p><p>— N ão, Pastor F id o ! eu qu is d ize r. . . É co m o toda a</p><p>gente fa la !</p><p>— Eu sei, mas fa la m al. A senhora que é bem b o n ita</p><p>devia te r bastan te se ns ib ilida de de in te lig ê n c ia pra inven ta r</p><p>o u tro m odo de d ize r.</p><p>— Mas a fin a l m e n in o , o que você ve io faze r aqu i?</p><p>— Isso não é da sua co n ta , eu só d o u sa tisfação à dona</p><p>da casa.</p><p>Mas fa lava s im p les, boca risonha , o lh o s de espelho, voz</p><p>tã o sensível de s ince ridade , e a inda m ais a beleza irra d ia n te</p><p>da ju v e n tu d e , era im poss íve l de testa r o Pastor F id o . S iom ara</p><p>sen tiu que to d a a raiva dela se d ilu ía num a h um ilh açã o sem</p><p>d o r. Sarah so rria m a te rna l. F e lix de C im a estava im ag inando</p><p>que se tra tava d u m rapaz m u ito a p ro ve itá ve l. T a lvez ele</p><p>conseguisse que q u a lq u e r F undação norte -am ericana desse uma</p><p>bolsa p ro m oço ir se educar nos Estados U n idos . V o lta r ia</p><p>co m o u tra visão d o m u n d o , m enos soc ia lis ta , que era o que</p><p>o estragava. A ve rdade p o lí t ic a estava na dem ocrac ia de</p><p>W a ll-S tree t. F ico u indec iso . . . Era tã o ig n o ra n te que não se</p><p>lem brava d ire ito si a cam ara dos d ep u ta d os de lá se chamava</p><p>W a ll S tre e t o u G rand C an yon .</p><p>Os do is c riados chegavam com o a p e r it iv o e Jan jão .</p><p>Sarah L ig h t avisou logo :</p><p>— S iom ara Ponga o escuro é P o rto . V ocê deve de testa r</p><p>as beb idas mais fo r te s e o b ra nco é o " c o c k ta i l " V e rde e</p><p>A m a re lo .</p><p>F e lix de C im a, f in g in d o d is tra ção ia se apossando d u m</p><p>P o rto ta m b é m , mas a m ilio n á ria desapontada esclareceu que</p><p>m andara fazer o " c o c k ta i l " p o rq u e te r ia m a lguns p ra tos fo rte s</p><p>do B rasil. O p o lí t ic o susp irando , c u m p riu o desejo da</p><p>m ilio n á ria . P rovou com paciência mas logo a cara dele se</p><p>ilu m in o u to d a .</p><p>— Você fa lo u que era " c o c k ta i l " , is</p><p>te x to sem constrang im ento</p><p>Um dos papéis essenciais do "M u n d o M usica l" e</p><p>d 'O Banquete é o seu caráter de orientação c rítica .</p><p>A im portância que a inte ligência , os conhecim entos e a</p><p>personalidade de M ário de Andrade tiveram no desenvolver</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>das artes brasileiras fo i imensa e é desnecessário lem brar o</p><p>que a nossa criação artís tica lhe deve. Escrito por uma</p><p>personalidade a ltam ente prestigiosa, veiculado pelo jo rna l,</p><p>logo por uma publicação não especializada, acessível e de</p><p>grande penetração, a função pedagógica d 'O Banquete devia</p><p>realm ente ter um alcance considerável. E pela sua natureza e</p><p>co n te x to , as polémicas levantadas, a v iru lência do estilo , o</p><p>ardor das defesas, sempre ligadas às reflexões es.téticas mais</p><p>gerais, têm esse sabor de vida que e fe tivam ente !a tax ide rm ia</p><p>universitária , mais rigorosa, segura, ou o que quer que se</p><p>queira, não possui.</p><p>Já vim os que n '0 Banquete a fo rm a dialogada é um</p><p>meio que pela sua fle x ib ilid ad e pode e xp rim ir o tim am ente</p><p>um pensamento que seguiu pelos trancos e barrancos do</p><p>concreto e que não se fecha num cristal sem contradições.</p><p>Ora, ao caráter jo rna lís tico e pragm ático se associam</p><p>projeções co n flitu a is interiores do au to r, que confundem a</p><p>clareza dos desenvolvim entos, a precisão das intenções. Pois</p><p>especialmente neste d iá logo, M ário decide não dissertar, mas</p><p>lançar-se com suas ambiguidades. O que acarreta forçosam ente</p><p>uma perturbação da pedagogia e das idéias que poderiam vir</p><p>claras. Mas elas não são claras, e no m om ento em que</p><p>escreve, M ário está se questionando, por vezes inseguro.</p><p>N '0 Banquete não pretende colocar apenas um programa</p><p>e x p líc ito ou uma direção operatória im ediata. A o con trá rio ,</p><p>seu te x to nasce de suas contradições. E as d ificu ldades de</p><p>le itu ra começam.</p><p>M ário vai ten ta r exprim ir-se sem os fre ios do rigor e,</p><p>por vezes, sem mesmo os fre ios da coerência. Para isso</p><p>prepara o te rreno escudando-se por trás de suas personagens,</p><p>sobre as quais recaem as responsabilidades, e cu jo</p><p>com portam ento ou caráter explicam ou desculpam o</p><p>descosido. E por eles o auto r pode descarregar seu coração.</p><p>Logo de in íc io , esse jogo de reenvios anuncia as cores</p><p>de sua ambiguidade com a nota irón ica :</p><p>"O h meus amigos, si lhes dou este re la to fie l de tudo</p><p>quanto sucedeu e se fa lou naquela tarde boa, boa e tris te ,</p><p>não acreditem não, que qualquer semelhança destes</p><p>personagens, tão nossos conhecidos, com qualquer pessoa</p><p>do m undo dos vivos e dos m ortos, não seja mais que</p><p>pura co incidência ocasional. E é tam bém certo ,</p><p>certíssim o, que ao menos desta vez, eu não poderei me</p><p>responsabilizar pelas idéias expostas aqu i. Não me</p><p>pertencem, embora eu sustente e proclam e a</p><p>responsabilidade dos autores, nesse m undo de</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>ambiciosas reportagens estéticas, vulgarm ente chamado</p><p>Belas A rte s ". (O Banquete, p. 45).</p><p>Responsabilidade delegada, mas o sentido é</p><p>in tenciona lm ente con fund ido pela iron ia : "p u ra coincidência</p><p>ocasional", nestes "personagens tão nossos conhecidos", e o</p><p>caráter s ib ilino da ú ltim a frase.</p><p>Em m om entos mais agudos, tom ado pela dinâm ica de</p><p>seu discurso, M ário insiste na imprecisão dos enunciados:</p><p>É m u ito vago, Janjão.</p><p>— É m u ito vago. Pastor F ido é . . . " (O Banquete, p. 133).</p><p>No 5? ca p ítu lo espanta-se:</p><p>"M as é incríve l com o os meus personagens já estão</p><p>agindo sem a m inha in te rfe rênc ia : não consigo conter</p><p>mais eles" (O Banquete, p. 122).</p><p>N um te x to de pura ficção, novela ou romance,</p><p>observações assim teriam sem problem a seu lugar. Elas seriam</p><p>a í apenas informações sobre as personagens, enquanto que</p><p>n '0 Banquete , te x to de pensador, elas são alertas sobre as</p><p>idéias que se expõe. Tais precauções, mais as facilidades que</p><p>lhe perm item o tom de conversa de salão, b rilhante , bem</p><p>educada e bem hum orada (hum or cuja f lo r absoluta é a</p><p>declaração perem ptória e inesquecível do Pastor F ido :</p><p>"M o za rt é o V icente Celestino do Século D e z o ito !") , todos</p><p>esses elementos perm item tiradas e reflexões desvairadas,</p><p>como a argumentação em favor da in fluência francesa</p><p>(O Banquete , págs. 108 e 109) ou as referências desairosas à</p><p>musicalidade germânica:</p><p>"E a cu ltu ra musical germânica é quadrada por demais</p><p>p ro fundam ente estúpida — os com positores alemães são</p><p>os mais burros do m undo — só Haendel e Beethoven</p><p>escapam disso! (. . .) Os professores m usicalm ente</p><p>germanizados (. . .) não têm a m enor capacidade pra</p><p>entender a música dos ou tros países, e m u ito menos</p><p>a d if íc i l r ítm ica nacional. Tocam quadrado. Tocam</p><p>burram ente, com uma estupidez que chega ao</p><p>angé lico" (O Banquete, p. 109).</p><p>E saltamos o trecho onde Bruckner e Mahler</p><p>(comparados a Jadassohns!) aparecem com o "fo rm idáve is</p><p>técnicos da música e da estupidez hum ana!". Mas o auge do</p><p>d e lír io encontra-se seguramente na constatação que Bach,</p><p>" tip icam en te nas peças de ó rgão ", dem onstra a tristeza</p><p>pós-coito, "aquela psicologia do 'an im al tr is te ', dos excessos</p><p>sexuais"! (O Banquete, p. 136). Mas M ário , no seu p ró p rio</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>te x to , p isca-nos o o lh o , c ria n d o a ind ignação do p o lí t ic o</p><p>F e lix de C im a : "A q u e le je ito de tra ta re m M o z a rt, Bach</p><p>génios respe itados! . . . E n tã o co m o é que esses levianos</p><p>haviam de tra ta r Deus, P átria , F am ília e o G o v e rn o !"</p><p>(O B anque te , p. 101).</p><p>R ev iravo ltas ta m b ém são frequen tes : uma personagem</p><p>parece ir m u ito bem no seu ra c io c ín io , quando um o u tro</p><p>in te rvé m , e as idéias dão guinadas, m udam de cu rso , vo lta m</p><p>atrás ou se co rrig e m . M u itas vezes o pensam ento de um a</p><p>personagem se esclarece, to m a uma nova d im ensão com as</p><p>a firm ações d o s 'o u tro s : as reações m útuas engendram novas</p><p>d ireções.</p><p>E é essa s ituação mesma que p e rm ite tam bém</p><p>d ivagações b rilh a n te s , en tre o u tras a te o ria sobre a b a tid a ,</p><p>anunciada p o r F e lix de C im a, e so b re tu d o a página sub lim e</p><p>que estabelece a ligação en tre o esporte e a m o rte .</p><p>E n tre ta n to , as astúcias que libe ram o e sc rito r co m p lica m</p><p>sem d úv ida a com preensão do le ito r . P orque, se d e ixa rm o s as</p><p>regras d o jogo a m b íg u o de lado e pergun ta rm os onde</p><p>e n c o n tra r o pensam ento do a u to r, a resposta não é sim ples.</p><p>Para te rm o s um a idéia da e s tru tu ra , p o r vezes d ia b ó lic a , onde</p><p>M á rio se d iv e rte com espelhos que se re fle te m , tom em os um</p><p>e xe m p lo preciso em seu encadeam ento . M á rio de A n d ra d e</p><p>escreve num rodapé da F o lh a de São P au lo , onde expõe suas</p><p>idéias. Nesse rodapé cria um d iá lo g o , O B anque te , onde elas</p><p>serão e xp rim id a s e d iscu tidas p o r personagens. Um a dessas</p><p>personagens, Sarah L ig h t, te m algum as idéias sobre a estética ,</p><p>que d escobrim os serem notas tom adas pela personagem num</p><p>curso dado por . . . M ário de A n d ra d e em 1928 ! E</p><p>cons ide rando que Sarah L ig h t é um a personagem que , à</p><p>p rim e ira v is ta , d if ic i lm e n te seria um p o rta -voz a u to riz a d o do</p><p>a u to r, o le ito r só pode consta ta r que se d e ix o u am arrar</p><p>c o m o um salame.</p><p>N um a te n ta tiv a de s itua r-nos nesse la b ir in to ,</p><p>e xp e rim e n te m o s en tão p roceder esco la rm ente , e xam in a nd o</p><p>um a a um a, as personagens do te x to .</p><p>Sarah L ig h t</p><p>N o p r im e iro c a p ítu lo , " A s apresentações", M á rio s itua</p><p>as três personagens "d o n o s da v id a " , representantes ou</p><p>in s tru m e n to s da classe d o m in a n te . Na base está Sarah L ig h t,</p><p>a m ilio n á r ia , " p lu to c r a ta " , co m o ele a d e fin e , que o fe rece o</p><p>banque te . Sarah L ig h t é " is ra e lita ir re d u</p><p>to é um a le g ítim a</p><p>ba tida p au lis ta ! C an inha. . . de ixa eu ver. . . (p ro v o u o u tra vez)</p><p>não é fe ita de cana, é fe ita de can inha m esm o, em a la m b iqu e</p><p>de b a rro , fa b ricaçã o p a rtic u la r. D isso, co m o progresso não</p><p>fazem m ais lá no Brasil. C onfesso: eu d e te s to os " c o c k ta ils " ,</p><p>é uma das m aiores provas da decadência d o gosto do paladar.</p><p>Prova m a io r só m esm o a carne d o zebu d o guzerá e o u tro s</p><p>interesses ang lo -a rgen tinos de p io ra re m p o r um século os</p><p>rebanhos d o B rasil. Mas o " c o c k ta i l " ta m b é m é um a</p><p>im o ra lida de , Sarah! Os á lco o is perdem q u a lq u e r d ig n id a d e na</p><p>m is tu ra .</p><p>— A ba tida ta m b é m é um a m is tu ra .</p><p>— É, não te m d úv ida . . . Mas a b a tid a p au lis ta , hom em ,</p><p>pe lo m enos é um v íc io . A s o u tra s co m m aracu já , co m não</p><p>sei o que m ais, são d u m ca fa je s tism o indecen te . O lim ã o pe lo</p><p>m enos d is fa rça o ch e iro fa tig a n te da can inha , e não se m is tu ra</p><p>co m ele. E co m o não te m o a do c ica do de o u tra s fru ta s , do</p><p>abacaxi, da manga, consente um pou co de açúcar ve rdade iro .</p><p>Mas um pouco só, co m o nesta b a tid a . O pe rigo da ba tida</p><p>pau lis ta é e x ig ir sem pre estar ge lad íss im a, p raquè você não</p><p>lança a m oda, Sarah? D eviam servir a b a tid a co m o quem</p><p>serve " c o c k ta i l " de ostras, d e n tro d u m m o n te de ge lo p icado .</p><p>Mas su s ten to : a b a tid a so fre do m esm o d e fe ito dos</p><p>"c o c k ta ils " , é um a fa lc a tru a d o gosto , um a m is tu ra que tira a</p><p>d ig n id ad e do á lc o o l.</p><p>— Mas ta m b é m a gente com e tu d o em m is tu ra e não</p><p>tira a d ig n id ad e da carne.</p><p>— Não diga to lic e , m eu f i lh o . As carnes são irra c io na is ,</p><p>ao passo que os v inh os e os lico res são um a criação a r t i f ic ia l</p><p>do hom em . E tã o su b lim e co m o o seu Cam ões, f iq u e sabendo.</p><p>Carne e vegetal q u a lq u e r b ic h o com e, mas o hom em prepara,</p><p>co n d im e n ta e c o m b in a , pra fazer o p ra to , o P ra to , está</p><p>e n tendendo bem ! que é um a tin g im e n to tão su b lim e co m o</p><p>esse.Bach que você gosta.</p><p>— Eu nao fa le i que gosto de Bach.</p><p>— V ocê não gosta de Bach! in te rv e io Sarah assom brada.</p><p>Mas Pastor F id o deu de o m b ro s , m e io com rem orso . De</p><p>Bach ele gostava s im , não sabia bem p o rq u e , mas gostava.</p><p>R espondeu:</p><p>— Do que eu não gosto mesm o é de M o za rt. Q uando</p><p>ele en tra com aquela c o n to r ia que está sem pre acabando, até</p><p>parece o V ic e n te C e les tino . Isso: M oza rt é o V ic e n te C elestino</p><p>do Século D e z o ito .</p><p>Janjão ca iu na risada, gostando m u ito da to lic e do</p><p>am igo. E le sabia que a caçoada havia de fe r ir S iom ara Ponga,</p><p>m oza rtia na ir re d u tív e l. A ca n to ra se m exeu no lugar, mas</p><p>p re fe r iu não responder. O lh o u Janjão co m ó d io . Sarah L ig h t</p><p>se sen tiu desarvorada naque le a m b ie n te em que havia do is</p><p>sabidos de m úsica. O esnobism o dela, c o n tro la d o pela</p><p>hab ilida d e israelita da in te ligê nc ia não soube o q ue d ize r. Mas</p><p>F e lix de C im a se ergueu pra m e lho r d o g m a tiza r. Era p o lí t ic o ,</p><p>mas coragem ele t in h a , pegaria em arm as si fosse preciso , sem</p><p>nenhum m edo de m o rre r. A q u e le je ito de tra ta re m M oza rt,</p><p>Bach génios respe itados!. . . E n tão co m o é que esses levianos</p><p>haviam de tra ta r Deus, Pá tria , F a m ília e o G o ve rn o ! G a ra n tiu :</p><p>— M oza rt é um gên io , respe item !</p><p>Janjão to m o u p a r tid o pelo m o ço :</p><p>— M oza rt pode ser gên io , si qu ise r, mas nada im pede</p><p>que o p re co n ce ito da gen ia lidade que to rn a in tocá ve is ta n to s</p><p>mestres do passa.dp, seja o p io r to ta lita r is m o que co rro e as</p><p>artes. O u o senhor nega o d ire ito de c r ít ic a ?</p><p>— Não nego coisa nenhum a, e é p o r isso que o nosso</p><p>G overno aceita um a câm ara de depu tados.</p><p>— Mas te m o G E L O (G ru p o Escolar da L ib e rd ad e de</p><p>O p in iã o ).</p><p>— E faz m u ito bem , ora essa!</p><p>A m ilio n á ria ve io em so co rro do p o lí t ic o :</p><p>— Mas vocês do is não negam que um gove rno precisa</p><p>c o ib ir essa m ania dé atacar que to d o o m u n d o te m . Q uem</p><p>está p o r b a ixo ataca sempre.</p><p>— E quem está p o r c im a não que r ser a tacado .</p><p>— Mas é a p ró p ria c r ít ic a , são os liv ro s , são os nossos</p><p>jo rna is , que a firm a m que Bach e M o za rt são gén ios!</p><p>— Esse é um dos p rin c ip a is d e fe ito s da c r í t ic a</p><p>un iversa l, e da c r ít ic a de M e n tira em p a r t ic u la r: o</p><p>p re con ce ito da grandeza dos génios, o b rig a n d o a gostar</p><p>de tu d o o que eles fize ra m , e a tra d iç ã o d e ix o u . T o d a a</p><p>c r ít ic a devia se im p o r, de geração em geração, um a revisão</p><p>de valores.</p><p>— A c r ft ic a de M e n tira ! casqu inou S iom ara Ponga, que</p><p>e n fim se achava de aco rdo co m Jan jão , apesar da a n tip a tia</p><p>que estava se n tin do p o r ele.</p><p>— Mas você é tã o e logiada pela nossa c r í t ic a , S iom ara !</p><p>do que você se q u e ix a !</p><p>— Da igno rânc ia , da b u rrice , Sarah L ig h t. Me e log iam e</p><p>eu sou grata aos e logios, mas não me e n tendem . Não sabem</p><p>nada de escola de ca n to , de emissão voca l. . . Às vezes</p><p>e xe cu to uma coisa d if ic í l im a que levei anos pra consegu ir,</p><p>n inguém percebe. E o p io r é que em M e n tira já a c r ít ic a</p><p>passou daque le p e río d o do co m a d rism o dos jo rn a is , em que</p><p>era sem pre obrigada a e log ia r, fa la n d o na beleza do re c ita l, no</p><p>p ú b lic o num eroso e ir co rre n d o saber da ca n to ra qua is as</p><p>peças que execu tara fo ra d o p rogram a, pra b o ta r no jo rn a l.</p><p>A gora não, é c r ít ic a p ro fis s io n a l, assinada, mas o desca labro</p><p>c o n tin u a o m esm o. C om a pre tensão a m ais. O co m a d rism o</p><p>c o n tin u a o m esm o. E uma falsa aparência de im p a rc ia lid a d e ,</p><p>faz os c r ít ic o s ta n to me e log ia rem a m im co m o a essas</p><p>v irtuoses péssimas que aparecem por a í sem saber sequer o</p><p>que é em postação, não tê m e s tilo e can tam S c h u b e rt e Fauré</p><p>da mesma m ane ira . Mas ju s ta m e n te esse é o m a io r d is fa rce</p><p>dos c r í t ic o s : já ap rende ram to d a a te rm in o lo g ia da c r ít ic a que</p><p>d eco ra ra m nas revistas européias, e é um Deus nos acuda.</p><p>Q uem lê, fica resp e ita nd o esses c r ít ic o s , fa la m em e s tilo ,</p><p>fazem questão de p ro cu ra r no d ic io n á r io m us ica l, pou co antes</p><p>do co n c e rto , a época de Caldara, se enchem de frases-fe itas</p><p>da c r í t ic a m usica l, em postação, emissão. Mas é tu d o um jogo</p><p>de palavras, um carnava l de palavreado té c n ic o pra tapear. À s</p><p>vezes depo is de um co n c e rto de certas can to ras que aparecem</p><p>por a í, chego a f ic a r a luc inada , p o rq u e o que a c r ít ic a disse</p><p>não te m nada co m as to lice s que ela fez.</p><p>— A in d a se fosse só no ca n to . . . E nós, os desgraçados</p><p>dos co m p o s ito re s ! os regentes! À s vezes um a tu b a erra a</p><p>e n trada , mas o c r í t ic o não percebeu coisa nenhum a e vem</p><p>c r it ic a n d o a gente p o rq u e não estava no e s tilo . E en tão as</p><p>obras novas! Não sabem nada de técn ica , fa ls if ic a m tu d o</p><p>p o rq u e não podem analisar nada. C om o é que um in d iv íd u o</p><p>desses te m o descoco de d ize r que uma obra é d e fe ituo sa , si</p><p>ign o ra m a tess itu ra de um v io lin o , si são incapazes de analisar</p><p>u m aco rde !</p><p>— N ão, nisso você não te m razão nenhum a, Jan jão !</p><p>Ía lo u o Pastor F id o ind ign ad o . É es tranho , na conversa que</p><p>ivem os no parque você estava tã o bem o r ie n ta d o , mas agora</p><p>|e jo que você é co m o os o u tro s .</p><p>— C om o os o u tro s , d o b re a lín gu a !</p><p>—</p><p>Quase ta n to co m o os o u tro s . V ocê , co m o a in f in ita</p><p>m a io ria dos a rtis tas do nosso te m p o , incapazes de reso lverem</p><p>com coragem os seus p rob lem as m ora is d e a rtis tas , vocês se</p><p>re fu g ia ra m na té cn ica . O slogan da "a r te pela a rté ~ jã~ passou</p><p>pra vocês to d o s , e isso m esm o p o r in flu ê n c ia bené fica da</p><p>c r í t ic a , mas sem ser m ais p ro n u n c ia d o , na verdade ele</p><p>persevera nessa fuga para a " té c n ic a pela té c n ic a " , que é um</p><p>e s te tic ism o tão . g ra n fin o c o m o q ua lq ue r o u tro . Pra vocês, você</p><p>e S iom ara Ponga, c o m p o s ito re s e v irtuoses, e p in to re s , e</p><p>a rq u ite to s e t u t t i q u a n ti, c r ít ic a boa é a que fa la na sutileza</p><p>d u m c o rn o inglês bem em pregado e na m ir í f ic a delicadeza</p><p>d u m aco rde que não sei co m o se cham a. T écn ica , té cn ica , só</p><p>té c n ic a ! Si vocês ex igem um a c r í t ic a técn ica em vez de uma</p><p>c r ít ic a boa, é p o r ign o râ nc ia ou esquec im en to d o que seja a</p><p>fnúsica in teg ra l, a A r te e n firn ^ C rít ic a não é a p o n ta r as</p><p>q u in ta s , co m o bem caçoava S chum ann . Mas m esm o p o r vocês,</p><p>si o c r í t ic o descobre que na o rq ue s tra um a tro m p a fa ls if ic o u</p><p>u m ré, e n tão o c r í t ic o é respe itado . . . -----</p><p>Eu não es tou q u e re nd o de fende r a/c r í t ic a d e_M entira \</p><p>não, que ta m b é m acho in fe c ta . Mas é in fec ta p rin c ip a lm e n te</p><p>pelas id io tic e s que S iom ara Ponga a p o n to u : o co m a d rism o ; a</p><p>fa lta de d is c e rn im e n to no e lo g io que ta n to saúda u m regente</p><p>péssim o e im p ro v isa d o c o m o um que aprendeu a regência e é</p><p>um p ro fis s io n a l; e o a taque soez q ua nd o se tra ta de</p><p>b rig u in h a s de g rupos c o n trá r io s , de que o c r í t ic o p a rtic ip a . E</p><p>ta m b é m essa de testáve l aparência de c o n h e c im e n to</p><p>p ro fis s io n a l, m an is fe ta d o pe lo abuso da te rm in o lo g ia técn ica .</p><p>Mas ta m b é m im ag inar que c r ít ic a boa é a c r ít ic a té cn ica , é</p><p>um a to lic e . Na verdade a té cn ica de ixa de e x is t ir , assim que a</p><p>ob ra -de -a rte é co m p le ta e p r in c ip ia fu n c io n a n d o c o m o arte .</p><p>E si os va lores, as qua lidades, os d e fe ito s té cn ico s d u m a obra</p><p>p od em ser estudados p e lo c r í t ic o , é d e v id o e xc lu s ivam en te à</p><p>c o m p le x id a d e da c r í t ic a , que a lém de o r ie n ta r o p ú b lic o e lhe</p><p>a u x ilia r a com preensão da ob ra -de -a rte , ta m b é m é uma espécie</p><p>de pedagogja dos a rtis tas os to rn a n d o m ais consc ien tes dos</p><p>seus va lo res c o n s tru t iv o s e suas d e fic iê n c ia s . Mas na verdade, a</p><p>c r ít ic a só e n tende co m a fu n c io n a lid a d e a rtís tic a da</p><p>obra -de -a rte , e nisso a té cn ica de ixa de e x is t ir . Mas si já um</p><p>po u co na c r ít ic a das artes p lásticas e re g u la rm e n te na c r ític a</p><p>lite rá r ia , se percebe a lgum progresso nos escrito res de M en tira ,</p><p>e já re ina um e s p ír ito u n iv e rs itá r io , um e s p ír ito h u m a n ís tico</p><p>que busca s itu a r a ob ra -de -a rte no seu te m p o e em si mesma,</p><p>, na m úsica é um desca labro . A liá s essa mesma igno rânc ia do</p><p>e s p ír ito m ais un ive rsa l, m ais h u m a n ís tic o , que estuda</p><p>filo s o fic a m e n te a o b ra e um a rtis ta , ta m b é m e x is te em vocês</p><p>artis tas. Podem fa la r mas o que vocês q ue re m m esm o, vocês</p><p>to d o s , a in f in ita m a io ria dos m úsicos é o c o m a d rism o da</p><p>c r ít ic a . Porque q ua nd o esta avança m ais, não só vocês sabem</p><p>que são cu lpados, co m o f ic a m a tó n ito s co m observações</p><p>psico lóg icas, ve rificações soc io lóg icas que não en te nd e m e em</p><p>que jam ais pensaram . E en tão f ic a m im a g inando que o c r í t ic o</p><p>não g o s to u ! Só p o rqu e em vez do e lo g io na b a ta ta , ele</p><p>e s tudou .</p><p>— Eu não e n tendo disso que você está fa la n d o , rapaz,</p><p>mas acho a nossa c r ít ic a m u ito boa . N o jo rn a l d o G o ve rn o , a</p><p>c r ít ic a m usica l é fe ita por um m oço m u ito d is t in to que</p><p>es tudou na E u ropa . A té é estrange iro de nascença e eu sou</p><p>co n tra os estrange iros que vêm nos ensinar. M e n tira te m tu d o</p><p>e não precisa de estrangeiros. Nós precisam os n ac io n a liza r</p><p>M e n tira , co m o estão fazendo no B rasil e na A rg e n tin a , esses é</p><p>que estão bem o rien ta do s .</p><p>— Isso de ser estrange iro ou nac ion a l não te m</p><p>im p o rtâ n c ia , in te rro m p e u Sarah L ig h t despe itada . O que me</p><p>h o rro riz a é o to m desabusado co m que fa la m .</p><p>— Isso m esm o que eu ia fa la r, in te rro m p e u S iom ara</p><p>Ponga ca lo rosam en te , sa tis fe ita de apo ia r a m ilio n á r ia . O que</p><p>m ais m e dá n o jo na c r ít ic a nac iona l é o ca fa je s tism o d o</p><p>tra ta m e n to . U m je ito desabusado, que fa z tra ta r os a rtis tas</p><p>p o r “ o A n a to le " , “ o João S e ba s tiã o ". N ão e x is te A n a to le , é</p><p>A n a to le F rance ! A o s c r ít ic o s nac iona is quase to d o s fa lta</p><p>aquele respe ito n a tu ra l pe lo . , . já não d ig o pe lo a rtis ta , mas</p><p>pe lo hom em , re b a ixa n d o tu d o a expressões fa m ilia re s . N o</p><p>Brasil é a mesma coisa. O u en tão reagem, mas e m p o la n d o</p><p>tu d o e o ca fa jes tism o fica o m esm o. E en tão vêm fa la n d o ,</p><p>no "s r . M anuel B ande ira ” , q u a n d o a gente está sabendo m u ito</p><p>bem que na co nv ivênc ia , conhecem m u ito o poe ta e o tra ta m</p><p>p o r você. Na F rança eu sei, d is tin g u e m os a rtis tas m o rto s dos</p><p>vivos, tra ta n d o estes p o r "s r . F u la n o " . Mas não me parece</p><p>possível s is tem a tiza r isso na língua nac iona l, tã o variada e</p><p>sem f ix id e z nos te rm o s de tra ta m e n to das pessoas. C om o</p><p>fazer não sei, mas sei que tu d o isso dem on stra m u ito bem o</p><p>nosso jca fa jestism o inqêj i t o ^ q u e nenhum a educação</p><p>tra d ic io n a l a inda d e s tru iu .</p><p>— Pois eu sei. A m inha te nd ên c ia é para o jo rn a lis m o , e</p><p>a lgum d ia a inda hei-de faze r c r í t ic a p ro fis s io n a l, essa a m in ha</p><p>in tenção . É m u ito fá c i l: o processo francês eu acho ta m b é m</p><p>inace itáve l pra nós, a nossa língua é m u ito nuançada e</p><p>s in ta x ica m e n te liv re pra ace ita r sem elhantes leis fix a s . Mas por</p><p>causa m esm o desse nuançado , as vozes de tra ta m e n to podem</p><p>se o rgan iza r n u m e le m e n to de peso, de q u a lif ic a ç ã o do a rtis ta</p><p>de que a gente tra ta . É co m o eu hei-de fazer. Em vez de</p><p>d is t in g u ir os m o rto s dos vivos, p re firo d is t in g u ir os v ivos en tre</p><p>si. Q uando eu fiz e r c r ít ic a , eu só-hei de em pregar o "s e n h o r"</p><p>com o va lo r de a fas tam en to , ou de in fe r io r id a d e d o a rtis ta .</p><p>Não é possíve l tra ta r um M anuel Bandeira que o B rasil to d o</p><p>conhece, seja pra a d m ira r, seja pra não gosta r, por " o sr.</p><p>M anuel B a n d e ira ". Já po rém si se tra ta de um a rtis ta novo,</p><p>ao qua l a inda não dem os a nossa fa m ilia r id a d e e s p ir itu a l,</p><p>então eu d ig o " o sr. F u la n o " . E nunca tra ta r n inguém pelo</p><p>nom e de b a tism o , isso é de fa to m u ito ca fa jeste, reconheço.</p><p>A in d a tra ta r pe lo nom e de fa m ília vá lá. M u itas vezes o nom e</p><p>to d o en to rpece o r itm o da frase, e m u itas vezes re p e tid o ,</p><p>e nco m p rid ã o' ta m a n h o d o e sc rito in u tilm e n te . Mas tam bém</p><p>acho im possíve l p r in c ip ia r um a rtig o d iz e n d o : "B a n d e ira acaba</p><p>de p u b lic a r mais um vo lu m e de versos". A p rim e ira vez que o</p><p>nom e aparece, te m de ser p o r in te iro , não ta n to pra ensinar</p><p>os que p o r acaso a inda não saibam , mas co m o sina l de</p><p>respe ito</p><p>pela in teg rid ad e do nom e. Pela d ig n id a d e do nom e,</p><p>com o d ir ia a nossa am izade F e lix de C im a.</p><p>— Eu não sei, tra te m co m o qu ise rem , isso não me</p><p>inco m o d a , o que eu e x ijo é que respe item os clássicos.</p><p>— Eu ta m b é m , c o n f irm o u a m ilio n á ria co n v ic ta .</p><p>— Eu ta m b é m , d e b la te ro u a v irtu o se , novam ente vo ltada</p><p>co n tra Jan jão . A c h o um desa fo ro isso de tra ta re m M oza rt</p><p>assim com o si fosse u m . . . um c o m p o s ito r v ivo q ua lq ue r.</p><p>M oza rt é um gên io .</p><p>— Apesar das cadências. . .</p><p>— A pesar das cadências, po is n ã o l Pois si era assim no</p><p>te m p o de le ! Vocês fa lam em peso, peso. . . A in d a pertence ao</p><p>ca fa jes tism o nac iona l essa fa m ilia r id a d e desabusada que tra ta os</p><p>va lores ve rdade iros co m o um açougue iro tra ta os pedaços de carne.</p><p>A noção do respe ito faz parte da p ró p r ia d ig n id ad e d o c r ít ic o .</p><p>— A noção do respe ito faz pa rte da p ró p ria d ign idade</p><p>do c r í t ic o , não há d ú v id a . Mas a tacar, reconhece r d e fe itos ,</p><p>não é desrespe ito .</p><p>— É.</p><p>— A senhora, co m esse excesso de noção de respe ito , o</p><p>que não q ue r é ser atacada, e pra isso se serve de M oza rt.</p><p>A cé lebre v irtu o se qu is responder, o lh o u com um</p><p>desprezo d e s tru id o r o es tudan te , mas p re fe r iu a rran ja r o</p><p>ves tido , um pouco rep uxa do no m exe-m exe da conversa.</p><p>F icou tr iu n fa l. O m oço percebeu to d a aquela tr iu n fa lid a d e</p><p>d es lum b ra n te da beleza, mas não se in c o m o d o u . O in s t in to</p><p>mais que a expe riênc ia o faz ia pender pra Sarah L ig h t,</p><p>em bora m enos b o n ita e m ais velha-. C o n tin u o u im p lacáve l.</p><p>— Eu não sei p o rqu e certas pessoas bem assentadas na</p><p>v ida , dão pra e x ig ir o respe ito a exigência v ita l. O q ue vocês</p><p>não que rem é ser d escritos pela gente, p o rq u e não convém</p><p>que o povo se esclareça (V o lto u -s e pra Sarah L ig h t, com</p><p>o lh o s tã o in fe lizes , que eram uma verdadeira decla ração de</p><p>dese jo ): Não acha m esm o, dona Sarah?</p><p>A m ilio n á ria não achava, quem tin h a razão era S iom ara ,</p><p>mas não teve o que responder.</p><p>— Não me tra te por “ dona S a ra h ", é h o rr ív e l. Mas você</p><p>é m u ito novo a inda , Pastor F ido .</p><p>E o m oço co ro u m u ito , envergonhado co m a recusa.</p><p>O c o m p o s ito r Jan jão , ia percebendo a fin a l que fize ra</p><p>um a asneira g rande em te r tra z id o ao a lm o ço o es tudan te</p><p>Pastor F id o , cu ja m oc idade quase indecente de c o rp o e</p><p>e s p ír ito estava acaparando to d o s os entusiasm os da m ilio n á ria .</p><p>N ão p re tendeu reag ir p o rqu e gostava do m oço . E m esm o,</p><p>confessem os: sentia um bocado de va idade insuspe ita da sua</p><p>desgraça de m úsico pob re e m al re co nh ec id o em seu va lo r.</p><p>Si Sarah L ig h t lhe escapasse ele havia sem pre de t ira r a lgum a</p><p>fe lic id a d e de m ais essa in fe lic id a d e . Mas reagiu sem que re r,</p><p>c u lt iv a n d o o s e n tim e n to dos presentes co m o é ta m b é m o</p><p>co s tum e nac iona l dos b ras ile iros. Era in fe liz , isso não há</p><p>d ú v id a , mas naque le m o m e n to , sem q ue re r, " b a n c o u " o</p><p>in fe liz . R e to m o u o assunto, pra se e x p o r:</p><p>— Mas o p io r neste nosso país de M en tira não é a</p><p>eno rm e d e fic iê n c ia da c r ít ic a m usica l que não o r ie n ta nada</p><p>nem sabe d is c e rn ir; o p io r é o ensino que ta m b é m se</p><p>d em onstra incapaz de o r ie n ta r e d isce rn ir. . .</p><p>F e lix de C im a se v iu o b rig a d o a p u la r em defesa de</p><p>M e n tira :</p><p>— Mas co m o você te m coragem de d ize r isso! M en tira</p><p>está cheia de pro fessores p a rticu la re s , cheia de co nse rva tó rios ,</p><p>e te m o fam oso C on se rva tó rio N ac io na l, sus ten tado pe lo</p><p>G o ve rn o ! ora bo las! E você a inda quer m ais!</p><p>— Não que ro m ais, a té que ro menos. Mas c e rto , mas</p><p>bem . O que ex is te é quase tu d o péssim o. O C on se rva tó rio</p><p>N ac iona l não se consegue m e lh o ra r p o r causa dos canastrões</p><p>b\ue te m lá d e n tro . N ão há dúv ida que fiz e ra m um a R e fo rm a ,</p><p>pub licada no "D iá r io O f ic ia l" , que em m u ita s partes era</p><p>gxcelente , mas quase que f ic o u nessa pub lica ção o f ic ia l. Os</p><p>brofessores, g rudados nos seus lugares, c o n v e rtid o s a</p><p>empregados p ú b lico s v ita líc io s não tê m o m en o r in c e n tiv o . E</p><p>/ão enve lhecendo . M u ito s deles até podem te r s ido professores</p><p>io n s em m oços, mas os te m p os m udaram e eles não m udaram</p><p>'o m os tem pos . H o je são ru ínas tom badas, em que n inguém</p><p>pode m exer, p ro te g id o s p o r leis de fe ituosas, p ro te g id o s pelos</p><p>am igos da m oc idade ho je bem co locados na sociedade,</p><p>p o lít ic o s , m ilita re s , m ilio n á rio s . F ica ram ru ín a s in tang íve is .</p><p>E ensinam ru ín a . B a lua rtes irre m o v íve is c o n tra a evo lução da</p><p>sens ib ilidade m us ica l. A lg un s a té são an jos de inocênc ia ,</p><p>sa tis fe ito s co m o lu g a rz in h o que a rran ja ram pra descansar na</p><p>ve lh ice . N em sabem que a m úsica ex is te e c o n tin u a v ivendo e</p><p>e v o lu in d o : ensinam o que aprende ram , sem a m enor</p><p>inq u ie ta çã o . Basta o lh a r um a sala de c o n c e rto . Do m ilh e iro de</p><p>pro fessores ex is ten tes em M e n tira ta lvez apenas uns dez, e na</p><p>m a io ria estrange iros, fre q u e n ta m s is te m a ticam en te as</p><p>m an ifestações m usica is da c idade . Ta lvez uns v in te vão aos</p><p>re c ita is dos in s tru m e n to s que ensinam . Porque n inguém estuda</p><p>ou gosta de m úsica neste país, es tudam é um in s tru m e n to e</p><p>só gostam dele. Mas o res tan te do m ilh e iro nunca aparece em</p><p>c o n c e rto n en hu m . S iom ara Ponga que diga si não é verdade.</p><p>— É verdade, F e lix de C im a. E dem ais a m ais, vocês</p><p>fiz e ra m passar essa lei de testáve l que não p e rm ite professores</p><p>estrange iros no C o n se rva tó r io N ac io na l. C om isso não há</p><p>p o ss ib ilida de de n enhum a m e lho ra no ens ino , p o rqu e n is to é</p><p>p reciso c o n v ir que nós não tem os tra d içõ e s pedagógicas</p><p>nenhum as. E si te m o s são péssimas.</p><p>— V ocê não te m razão nenhum a, nós não carecem os de</p><p>estrange iros! E a lei p ro te to ra dos p ro fessores naciona is há de</p><p>passar da m úsica ta m b é m para a Facu ldade de F ilo s o fia . Nós</p><p>carecem os de n a c io n a liza r a nossa U n ive rs idade !</p><p>— “ N a c io n a liz a r” é um a coisa, só ace ita r professores</p><p>naciona is, já d e fo rm a d o s pelas nossas trad içõe s de ensino , é</p><p>um c rim e . Os nossos p ro fessores assistentes b ra s ile iro s , nas</p><p>facu ldades, a lgum as vezes já são excelentes. Mas são excelentes</p><p>ju s to po rqu e a p rende ram com professores estrange iros e já</p><p>estão m un id o s de m e lho res sistemas e visão m ais larga. O</p><p>p ro b le m a da nac iona lização d o nosso ensino a inda po r a lgum</p><p>te m p o , po r bastan te te m p o ta lvez , te rá que se reso lver com o</p><p>a u x í l io dos p ro fessores estrange iros. Mas não só</p><p>norte -am ericanos.</p><p>— E n tã o os p ro fessores no rte -a m e rica no s são ru in s !</p><p>m u rm u ro u a m ilio n á r ia , fe r id a naque le m eigo p a tr io tis m o</p><p>ir re d u tív e l que fa z a gente am ar pra sem pre a te rra em que</p><p>nasceu.</p><p>— A lg un s são exce len tes, Sarah. E ta m b é m são</p><p>perigosos, p o rq u e há p ro fessores exce len tes e professores</p><p>perigosos e m - t ó d ^ as grandes c u ltu ra s d o m u n d o . Nisso é</p><p>que está p b us ilis . /G uando eu fa le i que a nac iona lização do</p><p>nosso ensW ) a inda carece d o “ a u x í l io " de p ro fessores</p><p>estrange iros, fo i ju s ta m e n te pensando nisso. Não há d úv ida ,</p><p>seria ta p a r o sol co m a pene ira , não há d ú v id a que a c u ltu ra</p><p>europé ia está perigando ta n to em M e n tira co m o no Brasil.</p><p>S o b re tu d o a la tin a . E so b re tu d o a francesa. A in d a a ú lt im a</p><p>vez que de i um re c ita l em São Paulo , estive conve rsando com</p><p>o m eu a m igo , o p ro fessor De Chiara o qua l me c o n to u que</p><p>censurando um f i lh o por to m a r bom ba em francês no g inásio ,</p><p>o m e n in o se v o lto u pra ele, m e io ir r ita d o e se a rre p io u : “ Mas</p><p>papai, o francês é um a língua m o r ta ! ''. O p ro fesso r De Chiara</p><p>aliás estava estom agadíss im o, p o rq u e to d a a c u ltu ra deles</p><p>quase que se fize ra só em francês. . .</p><p>O estudan te não se con teve m ais:</p><p>— Nós somos um te rre n o de lu ta , não só co m e rc ia l, mas</p><p>c u ltu ra l para as nações de p rim e ira grandeza. E com a guerra,</p><p>com a d e rro ta da França, a A m é rica d o N o rte a p ro v e ito u a</p><p>ocasião, pra ver si nos dom inava c u ltu ra lm e n te ta m b ém .</p><p>E m pregou m é todos exce len tes, e hábeis quase to d o s , e não há</p><p>d úv ida que a c u ltu ra la tin a , espec ia lm ente a francesa está</p><p>p e r ic lita n d o a q u i. É um bem ? É um m al. Nós não somos</p><p>“ la t in o s " eu sei. Mas ta m b é m não som os norte -am ericanos.</p><p>Nossa c u ltu ra nac iona l a inda é dem asiado frá g il pra não so fre r</p><p>consequências funestíss im as si se ia n qu iza r. É eng raçado: há</p><p>c u ltu ra s cu ja in flu ê n c ia é perigosa, e o u tra s não. Por e xe m p lo ,</p><p>eu acho a c u ltu ra espanhola m u ito perigosa pra nós, p o rq u e</p><p>desv irtua os caracteres mais s u tilm e n te ín t im o s da língua</p><p>nac iona l. Toda in flu ê n c ia c u ltu ra l enche um a lín g u a de</p><p>estrange irism os, não há d úv ida . Mas é cu rio so co m o um</p><p>g a lic ism o , um a ng lic ism o , um germ an ism o não d e tu rp a m a</p><p>sens ib ilidade ps ico lóg ica da nossa s in taxe . Ta lvez p o r v ire m de</p><p>linguagens d is tan tes dem ais da nac iona l. Mas os ita lia n ism o s e</p><p>s o b re tu d o os espanholism os, po r isso m esm o que m u ito mais</p><p>su tis , m u ito m enos “ v is ív e is " , tê m o d o m te rr ív e l de d e tu rp a r</p><p>as essências ín tim a s da nossa linguagem . H o je eu estou</p><p>co n ve n c id o de que a in flu ê n c ia francesa é a m ais bené fica ,</p><p>m ais fecunda pra nós. A q u i em M e n tira a inda os exem p los</p><p>são p ou co co nv ince n tes p o rq u e som os um país in ve n ta d o por</p><p>M ário de A n d ra d e , mas vocês observem o nosso prezado</p><p>v iz in h o , o B rasil. A bem d ize r, d u ra n te uns o ite n ta anos o</p><p>Brasil v iveu sob a in flu ê n c ia francesa, que m al fez? N enhum .</p><p>A bem d ize r nenhum , p o rqu e os raros escrito res b ras ile iros</p><p>que se a francesaram eram nu los de nascença, e isso é</p><p>irre m e d iá ve l. Mas a in flu ê n c ia francesa, com a sua libe rdade</p><p>conse lhe ira , teve o d o m de e q u ilib ra r o en tus iasm o excessivo</p><p>dos b ras ile iros , o gosto da b rilh a ç ã o fa lsa, a d e s im p o rtâ n c ia</p><p>a ven tu re ira .com que os n a tivos d o B rasil se desinteressam</p><p>pelo c u lt iv o té c n ic o . É verdade que isso p re ju d ic o u m u ito os</p><p>b ras ile iros , no d e se nvo lv im en to da língua nac iona l deles,</p><p>p o rq u e a exigência de c u ltu ra lin g u ís tica não p o d e n d o se fazer</p><p>pelo francês, levou os b ras ile iros à m ania r id íc u la de</p><p>m acaquear as regras da g ram á tica portuguesa, d e s tru in d o</p><p>to ta lm e n te a n a tu ra lid a d e psico lóg ica da expressão, que os</p><p>ro m â n tic o s já t in h a m rea lizado de m aneira no táve l. Mas a</p><p>nac iona lização da linguagem vo lta rá fa ta lm e n te , apesar de toda</p><p>a covard ia e pregu iça dos escrito res, que p re fe re m obedecer</p><p>se rv ilm en te a um a g ram á tica , a "p e n s a r" g ram ática . Me p e rd i!</p><p>A h , eu estava fa la n d o que precisam os d o " a u x í l io " dos</p><p>p rofessores estrange iros pra nac iona liza r nossa c u ltu ra . Mas</p><p>a u x í l io não que r d ize r d ireção . A d ireção , o c o n tro le te m de</p><p>ser nosso. E xa ta m e n te pra saber escolher professores rea lm ente</p><p>bons, na F rança, na Itá lia , na A lem anha , na A m é rica do</p><p>N o rte , co m o pra co m preende r que nesta exce lênc ia , deve estar</p><p>in c lu íd a a ded icação pela coisa nac iona l. Haja v is to o papel</p><p>adm iráve l que re a lizo u o p ro fessor Roger Bastide , em S.</p><p>Paulo. Eis um p ro fessor que a lém de saber co m o o u tro s ,</p><p>soube a mais, e com o só alguns m u ito raros, sem des is tir de</p><p>coisa nenhum a, nem de sua c u ltu ra p a r tic u la r nem de sua</p><p>p á tr ia , se ded ica r à coisa b ras ile ira , com in te ligê nc ia</p><p>m ora líss im a do seu papel.</p><p>— É isso que eu estava pensando, q ua n d o o Sr. F e lix</p><p>de C im a reda rgu iu que tem os ó tim o s pro fessores pa rticu la res</p><p>de m úsica em M e n tira . A lg un s de p iano , a lguns regentes</p><p>tem os, não há d úv ida . Mas, em música p a rtic u la rm e n te , eles</p><p>tê m se d em o n s tra d o incapazes de n ac io n a liza r coisa</p><p>nenhum a. . . A m a io ria desses pro fessores são ita lia n o s que</p><p>vêm no e n x u rro das com panh ias lír icas , e c u jo ú n ic o</p><p>p ro p ó s ito é fazer A m é rica . Esses são péssim os em to d o s os</p><p>sentidos, professores im p rov isados, sem a m en or com preensão</p><p>pedagógica, tã o ru in s que são m elhores, p o rq u e não chegam a</p><p>fazer m al não es trange irizam coisa nenhum a. É pândego : os</p><p>m ais perigosos são jus ta m e n te os p ro fessores sem p á tr ia , os</p><p>israelitas. Nunca fu i c o n tra os judeus, Deus me liv re ! mas não</p><p>sei si é p o r v irem dum a c u ltu ra m u ito ir re d u tív e l, po is são</p><p>quase to d o s das partes cen tra is da E u ropa , e q ua nd o não</p><p>germ ânicos de te rra de nascença, são p ro fu n d a m e n te</p><p>germ anizados. E a c u ltu ra m usica l germ ânica é quadrada por</p><p>dem ais p ro fu n d a m e n te estúp ida — os co m p o s ito re s alemães</p><p>são os mais b u rro s do m u n d o só H aendel e B eethoven</p><p>escapam disso! G énios incon tes táve is m u ito deles, mas com</p><p>um a fa lta de sens ib ilidade in te le c tu a l assom brosa. Irre d u tív e is .</p><p>E é por isso que a m úsica a lem ã está cheia de B ru ckne rs , de</p><p>Jadassohns, de M ahlers, fo rm id á v e is té cn ico s da m úsica e da</p><p>es tup idez hum ana. Os pro fessores m us ica lm en te germ anizados</p><p>so fre m dessa mesma lei. Não tê m a m en o r capacidade pra</p><p>en tende r a m úsica dos o u tro s países, e m u ito m enos a d if íc i l</p><p>r í tm ic a nac iona l. T ocam q ua drad o . T ocam b u rra m e n te , com</p><p>um a es tup idez que chega ao angélico . Eu sei que essa gente</p><p>não gosta da m úsica nac iona l, e pensa que te m razão. Mas</p><p>gostam não só de Bach, de M o za rt, de S c a r la tt i, génios</p><p>incon tes táve is mas ta m b ém do bagaço v il, d o re b o ta lh o</p><p>in fa m é rr im o da m úsica europé ia . É su b lim e : d isce rnem a</p><p>bana lidade d u m P u cc in i, e g rita m c o n tra quem gosta da</p><p>a dm iráve l "B o é m ia " . E no e n ta n to se babam de gozo d ian te</p><p>da bana lidade d u m K o rn g o ld , d u m K a m in sk i, d u m B raun fe ls</p><p>(E Jan jão não se con teve , mais so freu nosso t io Jx»das!). A</p><p>isso está re d u z id o o ensino m usical em nosso país. Tenha</p><p>pac iênc ia , seu F e lix . O C on se rva tó rio N ac iona l é um lazare to de</p><p>nac iona is a n tid ilu v ia n o s ; os professores estrange iros são técn icos</p><p>bons às vezes, mas incapazes de co m preende r os p rob lem as</p><p>nac iona is . Por p regu iça, p o r desinteresse, p o r d e fic iê n c ia</p><p>in te le c tu a l. E o que faz o G o ve rno d ia n te d isso tu d o ?</p><p>— O G overno meu senhor, m an tém o rq u e s tra , uma</p><p>g rande o rq ue s tra . . .</p><p>— Mas não cria um a escola de regência, se desinteressa</p><p>dos regentes b ras ile iros , aco lhe um b o m e u m péssimo regente</p><p>es</p><p>trange iro da mesma m aneira.</p><p>— O G overno é que c o n s tru iu o lin d o p ré d io do</p><p>C on se rva tó rio N ac iona l.</p><p>— U m tú m u lo de m árm o re sobre um cadáver fe d id o .</p><p>— A rre , Jan jão , que com paração grosseira!</p><p>— D esculpe, Sarah L ig h t, sou um id io ta .</p><p>— Não exagere. . . susp irou S iom ara Ponga s o rr in d o .</p><p>— Dos id io ta s é o re in o p u ro dos céus, re tru c o u Janjão</p><p>agressivo.</p><p>Sarah L ig h t p rinc ip iava se in c o m o d a n d o , aque le</p><p>banque te mais parecia um cam po de ba ta lha . Lhe desgostava</p><p>que Jan jão atacasse ta n to o G ove rno . F e lix de C im a jurava</p><p>p o r d e n tro que jam ais fa ria nada pe lo c o m p o s ito r. S iom ara</p><p>Ponga, no ín t im o tr iu n fa v a . Não sabia e xa tam en te po rque ,</p><p>mas se sentia t r iu n fa n te e ca lm a. F ria , fr ia . Sem a m enor</p><p>p iedade ao m enos, pe lo to n to do Jan jão . Mas naque le</p><p>m o m e n to , apenas naquele m o m e n to de a rd o r, o m oço Pastor</p><p>F id o seria capaz de m o rre r por Jan jão . De resto naquele</p><p>m e io , era ele o ú n ico que a inda possuía a capacidade de</p><p>m o rre r. E com seus o lhos de luz, m ira n d o co m adoração o</p><p>c o m p o s ito r, o m oço a firm o u ex tas iado :</p><p>— Nada im pede , nada p re ju d ica os génios. . . E apesar</p><p>das péssimas co nd içõ es m usica is desta nossa e logiada cidade</p><p>de M e n tira , se vê nascer e p ro d u z ir a qu i um grande m úsico,</p><p>um dos m aiores m úsicos da a tu a lid a d e ! co m o você, Jan jão !</p><p>— Eu não sou gên io , de ixa de ser besta! re tru c o u o</p><p>c o m p o s ito r ir r ita d o , sem a m enor com preensão pe lo</p><p>en tus iasm o d o m oço . Si eu fosse gên io , si eu me sentisse</p><p>naquela consc iênc ia de reconhecer que era gên io , co m o um</p><p>D an te , co m o um B ee thoven , eu. . . eu me de ixava c o m p o r,</p><p>g a ra n tid o na consagração do fu tu ro , sem me am o la r com os</p><p>p rob lem as e x te r io re s da fu n c io n a lid a d e da arte .</p><p>— Mas B ee thoven se d e d ico u pelos hom ens e pelos</p><p>p rob lem as d o te m p o dele.</p><p>— Se d e d ic o u , S iom ara , eu sei. Mas jam ais teve que</p><p>p e rtu rb a r a libe rd ad e de criação com p rob lem as técn icos de</p><p>n ac ion a liza r a m úsica dele, para estar m ais p ró x im o d o m e io</p><p>em que v iv ia e rep resen tá -lo . E m esm o os p rob lem as sociais</p><p>em que se m eteu não eram de co m b a te , e lhe p e rm itira m</p><p>e v ita r a tra n s ito r ie d a d e da a rte de c ircu n s tâ n c ia . E o dia em</p><p>que se m eteu nesta, co m a S in fo n ia de W e llin g to n , fracassou</p><p>to ta lm e n te . Q uem mais toca esse a b o r to !. . . E Beethoven</p><p>t in h a to d a um a tra d iç ã o m usica l de séculos por detrás. . .</p><p>É d o lo r id o , vocês não q ue ira m saber: c o m p o r no vago, te n ta r</p><p>no vago, se d e fe nd e r no vago, estudar no vago co m o eu faço</p><p>e f iz , e depo is se ver na fre n te dum a obra -de -a rte que a gente</p><p>m esm o c r io u , que se ado ra , se ama po rqu e é to d a a nossa</p><p>v ida , e que nc e n ta n to a gen te não sabe o que é, po rque os</p><p>e lem en tos dela são in c o n tro lá v e is , sem o e xe m p lo co m p a ra tivo</p><p>de qua isque r passados.</p><p>— De m aneira que o seu in s t in to de c r ia r é mesm o um</p><p>in s t in to de pe rpe tuação . . . O que você só vê na sua</p><p>obra -de -a rte , é o seu nom e gravado e te rna m en te nas. . .</p><p>"pág inas de b ro n z e " , não é assim que se d iz? nas páginas de</p><p>b ro nze da H is tó r ia da M úsica!</p><p>— Pode fa la r , S iom ara Ponga, pode fa la r . . . Mas você</p><p>sabe que no ín t im o não é isso não. A in fe lic id a d e a inda é</p><p>Sm a io r. O que a gen te am a, eu pe lo m enos, é a obra-de-arte</p><p>esmo. Mas você já v iu c r ia d o r que não p ro cu re dar à sua</p><p>ia tu ra , to d o s os e lem en tos co m que ela possa vencer a vida</p><p>sozinha? É ta m b é m is to que fa z ta n to s c riado res se</p><p>esquecerem que esses e lem en tos de v itó r ia tê m de ser sempre</p><p>/e lem entos de fo rç a e d ig n id a d e , não deles, mas da p ró p ria</p><p>obra . E c o n fu n d id o s , desejosos dem ais da g ló ria das suas</p><p>c ria tu ras , ta n to a ju n ta m v ilm e n te d in h e iro pra d e ixa r de</p><p>herança aos f ilh o s , co m o a do rn am v ilm e n te as suas obras com</p><p>fa c ilidades banais, de ap lauso fá c il. É c e rto que a am b ição</p><p>persona lis ta , de aplauso geral, ou d in h e iro é um dos m aiores</p><p>em pec ilhos d a .c r ia ç ã o a rtís tic a , mas o p ro b le m a p s ico lóg ico</p><p>do c r ia d o r é m ais c o m p le x o que isso. Si o a rtis ta é ve rdade iro</p><p>ele não se ama a si m esm o apenas, ele ama a sua obra</p><p>ta m b é m , e m u itas vezes se sacrifica pra sem pre , no pavo r de</p><p>ver a sua c r ia tu ra o fe n d id a pela incom preensão e a vaia. F o i</p><p>esse ce rta m e n te o caso de C arlos G om es d ep o is d o desastre</p><p>da Fosca. Esse era um a rtis ta ve rd ad e iro , um grande a rtis ta</p><p>ve rdade iro . O caso dele é ind is fa rçá ve l. E le t in h a m u ito mais</p><p>o que d ize r do que disse: a Fosca prova isso ca ba lm e n te . Mas</p><p>lhe x inga ram a f i lh a adorada, e ele não teve co ragem mais pra</p><p>ver as filh a s fu tu ra s av iltadas assim. . .</p><p>V ocê pode fa la r o que q u ise r, S iom ara Ponga, mas você</p><p>é in te lig e n te e as tu ta p o r dem ais pra não m e co m p re en de r.</p><p>Porque ta m b ém no m eu caso, to da a m in ha obra é uma</p><p>prova de que eu não me am o a m im m esm o, ou pe lo m enos</p><p>que sei superar o m eu a m o r p o r m im , em fa v o r das m inhas</p><p>obras e pelo que elas serão na sua vida já in d e p e n d e n te de</p><p>m im , q uando co nc lu ída s . Mas é nisso m esm o que está m inha</p><p>to r tu ra . O que eu sei! O que eu sei a resp e ito dos e lem en tos</p><p>de v itó r ia que b o te i nelas, si esses e lem en tos não pod em te r o</p><p>m enor c o n tro le da tra d iç ã o , que os garanta? Os exem p los</p><p>s im ilares não servem de nenhum a g a ran tia . Si eu n a c io n a lizo</p><p>a m inha o b ra , me a p ro v e ita n d o da lição russa do G ru p o dos</p><p>C inco , a s im ila r id a d e dos casos não im p lic a s im ila r id a d e de</p><p>e lem entos. E a p rova é que to d o o o r ie n ta lis m o fo lc ló r ic o de</p><p>R im squ i-C orsacov o u de B o ro d in não f ic o u nem c o m o va lo r</p><p>in trín s e c o , nem co m o cará ter de n a c ion a lid ad e . E m u ito</p><p>m enos as obras de L ia do v ou Cesar C u i. F ic o u M ussorgsqu i,</p><p>em tu d o , co m o eslavism o e co m o va lo r im enso . Mas esse era</p><p>gên io , não serve de com paração.</p><p>— Mas Jan jão , isso ta m b é m é d em a is ! C om o é que você</p><p>pode saber que não te m g ên io ! De res to , a lém da gen ia lidade ,</p><p>carece não esquecer que m u ita s vezes, não te m d ú v id a , o</p><p>gên io é um a longa paciência , co m o d iz não sei q ue m .</p><p>— O gên io nunca fo i paciência longa, Pastor F id o . Mas</p><p>é um a obs tinação .</p><p>— E você não é um o b s tin a d o !</p><p>— Eu sou lú c id o por dem ais, m eu irm ã o . Eu te n h o a</p><p>conv icção das m inhas idéias, mas não te n h o certeza nenhum a</p><p>das rea lizações em que as transcrevo . Eu te n h o pac iênc ia , a</p><p>paciência burguesa, a paciência in fe c ta de a ju n ta r to s tã o por</p><p>to s tã o , dessa burguesia de que v im e que me fe z . M inha</p><p>herança fo i e xa ta m e n te de sessenta e c in c o co n to s , que meu</p><p>pai me d e ix o u . Eu sou fo rm a d o com d is tin ç ã o pelo</p><p>C on se rva tó rio N ac iona l. Eu tin h a um e m p re gu inh o regula r do</p><p>G overno , você sabe. Mas percebi que sem o banho de E uropa,</p><p>eu não pod ia co m p le ta r m inha c u ltu ra m usica l. Desisti de</p><p>tu d o . N ão tin h a p ro teção , não consegui que o G ove rno me</p><p>mandasse estudar. E n tão fu i com meu d in h e iro , d e ixa n d o de</p><p>parte todas as m inhas d is tin ções e m edalhas de estudo. A in da</p><p>me p ro m e te ra m que</p><p>na vo lta , me davam de novo o meu</p><p>e m p re gu inh o , mas q uando v o lte i, c inco anos, caras novas,</p><p>n enhum co m p ro m isso m o ra l, t in h a o u tro no lugar, f iq u e i sem</p><p>nada. E com o p ro b le m a detestável da nac iona lização da</p><p>m inha m úsica a me im p e d ir a libe rdade da criação . E com o</p><p>p ro b le m a angustioso da fu n c io n a lid a d e socia l da obra-de-arte ,</p><p>e a eterna m elanco lia da tra n s ito r ie d a d e da a rte de com bate ,</p><p>da a rte de c ircu ns tân c ia . . . É h o rrív e l. . .</p><p>— Eu não estou en tendendo nada disso tu d o , mas até</p><p>ficava in teressante! (E o poderoso p o lí t ic o F e lix de C ima até</p><p>se a d m iro u da idéia lum inosa que tive ra . Assim p ro teg ia esse</p><p>c o m p o s ito r e agradava os desejos da m ilio n á ria . C o n tin u o u :)</p><p>V am os fazer um a juste , Jan jão : você escrevia um a série de</p><p>a rtigos p ro nosso jo rn a l o f ic ia l, o "C o tid ia n o da M e n tira ” , eu</p><p>me encarrego de fazer com que ace item a pub lica ção . É</p><p>preciso m esm o a n im a r as artes. V ocê sabe, é jo rn a l do</p><p>G overno , m u ito lid o , e não paga a rtig o de co labo ração , mas</p><p>isso não te m im p o rtâ n c ia po rqu e você deve desejar e xpo r as</p><p>suas idéias, to d o a rtis ta gosta m u ito de te r idéias. São</p><p>idealistas. A liás a liv re discussão a rtís tic a sem pre fo i</p><p>incen tivada pelo G overno , mas não vá me fa la r em</p><p>C om un ism o , o u v iu ! Isso eu não d e ix o ! O C om u n ism o é coisa</p><p>lá da Rússia, não sei si é b om , si é ru im , a Rússia que se</p><p>a rran je ! Mas nós já tem os um a dem ocrac ia m u ito boa, até</p><p>Câmara dos D eputados já tem os, p raquê m ais! Não que ro</p><p>nenhum a pa lavrinha sobre C om un ism o .</p><p>— O ra, seu F e lix ! não se tra ta de C o m un ism o nem</p><p>m ané C om un ism o ! Mas já estou cansado de escrever em tu d o</p><p>q u a n to é jo rn a l!</p><p>E o F e lix , desapon tado com a recusa:</p><p>— Mas é no jo rn a l o f ic ia l, Jan jão ! Eu não lere i,</p><p>confesso, po rque não te n h o te m p o m ais pra ler, essa</p><p>p ro teção das artes já me to m a o te m p o to d o pra que eu</p><p>possa me in s tru ir , mas o u tro s le rão ! Le r é aqu i com a nossa</p><p>grande S iom ara Ponga que sabe tu d o . V ocê lê, não lê,</p><p>S iom ara?</p><p>— Está c la ro que leria . . . pra aprende r com o nosso</p><p>c o m p o s ito r, mas você não está e n tendendo nada, com o você</p><p>m esm o d iz , m eu ca ro p o lí t ic o . Jan jão poderá não fa la r desse</p><p>C o m un ism o que ta n to lhe in q u ie ta , mas você não percebeu</p><p>que ele fa lo u em "a r te s o c ia l"? Que G overno agora gosta</p><p>dessas coisas, a não ser que seja a a rte socia l do governo?</p><p>Pois vocês não tê m o G E L O jus tam en te pra ensinar com o é</p><p>que se fa la de a rte social? O "C o tid ia n o da M e n tira " nunca</p><p>ace ita ria um só dos a rtigos de Jan jão !</p><p>— Isso não! exc lam ou Sarah L ig h t que e n fim se achava</p><p>com tru n fo s d e fin it iv o s pra destroça r a can to ra cé lebre , isso</p><p>não! O nosso G ove rno está d isp os to a ace ita r qua n ta censura</p><p>justa lhe façam !</p><p>— Quem ? o G overno de M e n tira !</p><p>— S im senhor, seu m oço ! Pois a inda o mês passado eu</p><p>não de i um a en trev is ta em que tiv e a coragem de censurar,</p><p>d e licadam en te é verdade, mas a gente pode d isse n tir sem</p><p>grosseria! po is censure i s im ! Censurei a decisão de acabarem</p><p>com o Salão. E o nde saiu a m inha en trev is ta ! F o i no p ró p r io</p><p>jo rn a l d o G o ve rn o ! E n tã o !</p><p>— E não fo i a p rim e ira vez, so luçou o p o lí t ic o to d o</p><p>q ue ixo so . Sarah, eu bem que sube, (sic) p o rqu e me co n ta ra m ,</p><p>mas você já deu q u a tro en trev is tas e em três censurou a</p><p>gente. A p rim e ira vez fo i p o r causa da organ ização da</p><p>S in fó n ic a , a segunda fo i p o r causa de fecha rm os c in c o escolas</p><p>p rim á ria s pra e q u ilib ra r os o rçam en tos , e a te rce ira fo i agora.</p><p>Isso ta m b ém é dem ais, Sarah!</p><p>Jan jão não con teve o gesto de im pac iênc ia , to d o s v iram .</p><p>E a ca n to ra se n tiu logo que a li estava um je ito dela sc</p><p>a p ro x im a r de novo da m ilio n á ria , e b o ta r Jan jão naquela</p><p>a n tip a tia . M u rm u ro u n í t id o , com uma c r is ta lin id a d e m iraculosa</p><p>de d icçã o :</p><p>— E n tão você acha que Sarah não fez bem , Jan jão ! Pois</p><p>eu acho que fez.</p><p>— F iz e fa ço ! sa ltou a m ilio n á ria , o lh a n d o desa fian te o</p><p>c o m p o s ito r. Eu a ce ito o G o ve rno mas é p o rqu e ele m e aceita</p><p>ta m b ém , co m a verdade na m ão!</p><p>— Mas espera um pou co , dona Sarah L ig h t, in te rve io o</p><p>Pastor *F ido , sa lvando sem que re r Jan jão a tra p a lh a d o . Vam os</p><p>esclarecer isso bem d ire ito : O que a senhòra fez não fo i</p><p>censurar o G o ve rno , se pôr em oposição a ele, mas pelo</p><p>c o n trá r io se dec la ra r co n ive n te com ele.</p><p>— C om o assim ! b e rro u o p o lí t ic o .</p><p>— É m u ito fá c il. O que Sarah L ig h t fez não fo i se o p o r</p><p>à o rie n ta çã o d o G o ve rno , c o n tra r ia r a possíve l ideo log ia da</p><p>p o lít ic a re inan te . . . M e diga um a co isa: si a sra. co m as mais</p><p>suaves e de licadas palavras, desse uma en trev is ta a firm a n d o</p><p>que o G ove rno de M e n tira era fa ch is ta , o jo rn a l o f ic ia l</p><p>pub licava? N em ele, nem o u tro , p o rqu e o G E L O não deixava.</p><p>O que a sra. fez não fo i se o p o r a co isíss im a nenhum a. A sra.</p><p>é m u ito b o n ita , eu ju ro ! mas o seu a to não passou dum a</p><p>ca m u flagem c o n fo rm is ta . A sra. não censurou o G o ve rno , mas</p><p>a tos a d m in is tra tiv o s de que nenhum a ideo log ia não se pode</p><p>d ize r que te m im e d ia ta m e n te a cu lpa . Em todas as</p><p>a dm in is tra çõ e s de to da s as fo rm a s de gove rno , há-de te r</p><p>sem pre fu n c io n á r io s ru in s , e fu n c io n á r io s que e rram , mesmo</p><p>a ltíss im o s fu n c io n á r io s co m o o sr. p o lí t ic o presente , po rque</p><p>n in gu ém é in fa lív e l. De fo rm a s que o que a sra. fez fo i</p><p>péssim o do m ais péssim o. C ensurou a dm in is traçõ es , e isso</p><p>q u a lq u e r g ove rno , q u a n d o despede um fu n c io n á r io , quando</p><p>m o d if ic a um a le i, e tc ., ta m b é m im p lic ita m e n te está</p><p>censurando a tos seus, a té m ais graves e leg is la tivos. N inguém é</p><p>in fa lív e l.</p><p>— Mas eu t iv e a co ragem de fazer isso no p ró p r io jo rn a l</p><p>o f ic ia l!</p><p>— Coragem de M e n tira , dona Sarah L ig h t, cam u flagem ,</p><p>me descu lpe . O fa to da censura sair no p ró p r io jo rn a l o f ic ia l</p><p>é que d e fin e a co isa ! Isso q ue r d ize r que a sra. aceita a</p><p>ideo log ia d o G o ve rn o , e reconhece nele a p o ss ib ilida de de</p><p>m e lh o ra r a inda m ais os seus hom ens. E o que é p io r : a sra.</p><p>pôs em sa liência fa lsa, o que as pessoas c o n fo rm is ta s ou</p><p>ignoran tes vão logo im ag ina r e p regar: que os chefes de</p><p>M e n tira são tã o ó t im o s que a té n o b re m e n te a ce ita m censuras</p><p>e as p u b lic a m no seu jo rn a l.</p><p>— O a lm o ç o está na mesa.</p><p>E una voce, que a q u i s ign ifica n um pé só, to d o s se</p><p>e rgueram salvos.</p><p>V-rcipilUIO V</p><p>Vatapá</p><p>A música brasileira tal como</p><p>está na composição. Como</p><p>com por música brasileira.</p><p>Sarah L ig h t sen tou à mesa bastante desanim ada. Si a</p><p>conversa já estava tã o b rig u e n ta , o que ia ser agora co m a</p><p>an im ação dos v inhos? Que o am b ie n te daque le a lm o ç o</p><p>permanecesse um p o u co tenso , ela bem que im ag ina ra ; nem</p><p>era possíve l prever o u tra coisa dum a reun ião que congregava</p><p>um p lu to c ra ta , um p o lí t ic o , um c o m p o s ito r pob re e uma</p><p>ca n to ra fam osa. E a inda por c im a viera se agregar a esse</p><p>g ru p o de m ons tros , um estudan te de D ire ito m oço bem , já</p><p>co m suas le itu ras , m e io ingénuo é ce rto , mas so lidam en te</p><p>desbocado , que</p><p>estava d ize n d o as verdades pra to d o o m undo .</p><p>Sarah L ig h t cu ida ra que a sua h ab ilida d e de m u lhe r v iv ida e</p><p>m u ito acostum ada a m andar nos o u tro s , havia de dom ar</p><p>aquela súcia. Mas não conseguira nada. Logo os interesses e</p><p>pa ixões irro m p e ra m tã o inso lúve is que ela f ic o u desarvorada, e</p><p>cTbanquète~estava degenerando num a ba ta lha .</p><p>Já perdera a esperança de consegu ir do p o lí t ic o e da</p><p>ca n to ra q u a lq u e r p ro teçã o p ro in fe liz do c o m p o s ito r.</p><p>E n q u a n to este não chegava, os o u tro s tin h a m fic a d o naquela</p><p>conversa m o le ; e depo is que ele chegou, o je ito de le , nem</p><p>ta n to as frases a ltivas , mas o p ró p r io je ito dele, a vestim enta</p><p>enca rd ida , o ar de desgraça, t in h a m despertado a a n tip a tia dos</p><p>superio res, e m esm o a aversão, para to d a a e te rn idade . A liás</p><p>sejamos sinceros: Sarah L ig h t já nem pensava mais nisso. Si</p><p>descob rira a idé ia de o fe rece r aquele a lm o ço , levada p o r</p><p>qu a lq u e r desejo de dar um e m p u rro na vida de Jan jão , bastou</p><p>o desejo pra que a consc iênc ia da m ilio n á r ia sossegasse. Não</p><p>estava m ais inieressada em co is íss im a nenhum a, to d a entregue</p><p>à p ro fissão de p re s id ir a lm oços. O im p u lso de so lidariedade,</p><p>co m o sem pre, se acom odara n um r ito de classe. E assim, a li</p><p>pelas q u in ze horas daque le d o m in g o poss ive lm en te de sol, o</p><p>p o lí t ic o F e lix de C im a, a ca n to ra S iom ara Ponga, o</p><p>c o m p o s ito r Jan jão e o e s tudan te de D ire ito , Pastor F id o , se</p><p>acom od a ram em to rn o daque la távo la red on da , na residência</p><p>de inve rn o da m ilio n á r ia Sarah L ig h t, que ficava num</p><p>s u b ú rb io de M e n tira , a s im p á tica c ida d in ha da A lta Paulista.</p><p>Sarah L ig h t disse:</p><p>— C o m o ho je estam os e n tre nac iona is . . . (S iom ara Ponga</p><p>toss iu . A m ilio n á r ia tu r tu v e o u , teve ó d io , mas conse rtou</p><p>com m ais m od és tia :). . . e c o m o se tra ta de hom enagear</p><p>um grande c o m p o s ito r m en tirense , p r im e iro te m o s vatapá.</p><p>Jan jão f ic o u m o r to de ve rgonha , mas gostoso. Nunca</p><p>soubera que o ban qu e te era o fe re c id o a ele, e de resto , si</p><p>entendesse de e tique tas , d e ce rto achava graça de estar apenas</p><p>à esquerda da dona da casa. O p o lí t ic o m erecera a d ire ita ,</p><p>ganhando do o u tro lado o p ré m io da ca n to ra linda . Sentiu-se</p><p>bem E fu n g o u sensualizado, e n q ua n to ju n to dele S iom ara</p><p>Ponga se servia (m u ito p o u co ), e espalhava na sala o c h e iro</p><p>só lid o d o p ra to . U m “ o h " pensado am ac iou to d o s .</p><p>— O h ! g ru n h iu F e lix de C im a, de c im a d o seu paladar</p><p>sabido, narinas a rrebatadas, m astigando ch up ad o e de boca</p><p>aberta , co m o os que sabem com er. E co m e fe ito dona</p><p>F ru t id o r , a co z in he ira barbad iana que só saia na rua de</p><p>chapéu e fa lava c in co línguas, tem pera ra um vatapá m a io r</p><p>que a Capela S ix tin a .</p><p>U m s ilên c io p a té tic o ba ixa ra sobre as alm as, d is tr ib u in d o</p><p>por to d o s um a am izade s inceríss im a, d is tra in d o classes e</p><p>interesses pessoais. Apenas S iom ara Ponga fize ra um a careta</p><p>p ro van do aquele h o rro r jam ais p rovado , que d e ce rto havia de</p><p>fazer m al prás vozes dela. M exia no p ra to , n um d esp re s tíg io</p><p>ir r ita d o . Sentiu-se só, enq ua n to os o u tro s c o m ia m se</p><p>en tream ando sem que re r. Bem que ela desejava c o n fra te rn iz a r</p><p>com a m ilio n á ria , sentia um a necessidade im e d ia ta disso,</p><p>sentia . Não tin h a te m p o pra se com p re en de r agora (nem</p><p>poderia a liá s !), mas a s im ples presença indesejável do</p><p>co m p o s ito r despertara nela aque le desespero e nc ium a do . A</p><p>canto ra se percebera de repen te , h u m ild e e c o m p rim id a por</p><p>um desejo repugnan te de agradar a m ilio n á r ia . Ela mesma se</p><p>achava repugnan te em seu dese jo , mas não conseguia ser si</p><p>mesma e d e c id ira , co nsc ien te m e n te d e c id ira , mas sem se</p><p>m o tiv a r, pac tuar com Sarah L ig h t, to rna r-se am iga da o u tra</p><p>agradar, ta lvez in f lu ir? . . . Porém o vatapá estragoso lhe</p><p>in c u tira na língua um a noção tã o garan tida de que viera</p><p>estragar co m as vozes dela, o m au gosto d o p ra to a de ixa ra</p><p>tão sozinha, que não se d o m in o u , p io u f in o :</p><p>— Está m u ito agradável. Mas esses p ra tos de negros são</p><p>co m o trans figu rações a lim en ta res de estup ros, há q u e m se</p><p>conso le assim. . . É seu p ra to p re fe r id o , Sarah L ig h t?</p><p>— N ão! quase im p lo ro u a m ilio n á r ia , pegada de surpresa,</p><p>ingenuizada que estava na vo lú p ia de gosta r. Mas F e lix de</p><p>C im a en tend ia da coisa e a sa lvou:</p><p>— D e ixe de to lic e , ilu s tre ca n to ra . O p ra to é v io le n to ,</p><p>mas o quê que você pode en tende r de v io lê nc ias e estupros,</p><p>senhorita? A v io lê nc ia das com idas é m enos questão de</p><p>b ru ta lid a d e do p ra to que de saúde e s p ir itu a l.</p><p>— E s p ir itu a l! re c a lc itro u o estudan te .</p><p>— E s p ir itu a l, s im ! Eu sei que ficava mais fá c il d ize r</p><p>saúde fís ic a , pois que te m pessoas a quem o p ró p r io le ite</p><p>faz m al, mas não se tra ta d isso não ! Se tra ta é de saúde</p><p>e sp ir itu a l, não d e ix o p o r m enos. Há um re fin a m e n to do</p><p>bom gosto , d igo m ais: há uma e tiq u e ta d o b o m gosto que</p><p>dessora as alm as e in cu te na m aneira de ju lg a r as coisas, de</p><p>certas gentes que se supõe de licada mas que é en fe rm a de</p><p>e s p ír ito , o susto dos convalescentes. A e tiq u e ta do b om gosto</p><p>dá p ro e s p ír ito a psico log ia do conva lescente , tu d o fe re , tu d o</p><p>bate. São e sp ír ito s lív id o s . E então a p ró p ria fo rç a vira</p><p>grosseria, a p ró p ria saúde vira estup idez, a p ró p ria a legria vira</p><p>in fe r io r id a d e . É questão de saúde e sp ir itu a l, d ig o e re p ito . O</p><p>vatapá é um p ra to dos fo rte s de e s p ír ito .</p><p>— Mas fo i in ve n ta d o por escravos. . .</p><p>— D e ixa de to lic e , m en in o , não se sabe quem in ve n to u .</p><p>Mas dem os que fosse! F o i in ve n tad o po r escravos, mas fo i</p><p>serv ido aos pa trões! Mas isso no te m p o em que o Brasil ia</p><p>b0m , t in h a chefes fo rte s e com andados fracos. O governo</p><p>c o lo n ia l era um gove rno na bata ta , t in h a p u lso ! Mas hoje</p><p>'to d a a gente quer m andar, d em ocrac ia !. . . E o vatapá saiu da</p><p>m oda, n inguém mais aguenta vatapá, só que r com er</p><p>p e rfu m a ria ! Nós carecem os d u m gove rno fo r te , um</p><p>governo-va tapá!</p><p>— O senhor é fa ch is ta !</p><p>— Eu não! g r ito u F e lix de C im a assustado. Sou</p><p>d e m o c rá tic o ! Mas M en tira só poderá p ro g re d ir de verdade,</p><p>q uando possu ir um gove rno , sim , le g itim a m e n te d e m o c rá tico</p><p>mas co m p le ta m e n te parec ido com o F ach ism o.</p><p>O estudan te s o lto u um a risada mãe. Jan jão parara de</p><p>com er sarapantado. A p ró p r ia Sarah L ig h t que já ia co nco rd a r,</p><p>se con teve , f in g in d o m andar q u a lq u e r coisa ao c r ia d o , F e lix</p><p>de C im a suspe itou que tin h a avançado dem ais, c o n se rto u :</p><p>— Isso é o que d ize m os am ericanos. A libe rdade é um</p><p>ideal m u ito fo rm o s o , to d o s os hom ens devem ser livres,</p><p>mas. . . b o m : é co m o o va tapá! Q uer d ize r. . . (O p o lí t ic o</p><p>não sabia o que p re ten d ia d ize r:) que r d ize r. . . a nossa</p><p>can to ra é m u ito re finada em seu bom gosto p ra . . .</p><p>— Q uer d ize r que eu não te n h o saúde e sp ir itu a l.</p><p>— E u !. . .</p><p>— T em sim , m inha que rida am iga : uma saúde e sp iritu a l</p><p>a té um p ouco assustadora. T a n to te m que fa z p ou co , você</p><p>nem hes itou em em pregar a palavra “ e s tu p ro ” , que eu nunca</p><p>im aginaria possível</p><p>nos seus láb ios canoros. (A can to ra</p><p>sentiu-se ch o ra r co m o p ito da o u tra . Mas Sarah L ig h t</p><p>in f le x ív e l, ba teu m ais): Eu sem pre a c re d ite i que essa palavra</p><p>era m ais p ró p ria dos beiços que dos láb ios, mas ve jo que a</p><p>saúde e sp iritu a l se a je ita com tu d o , sem pre houve</p><p>acom odações com a Ig re ja . . . Bem meus am igos, eu cre io</p><p>que co m o d iz o nosso adoráve l F e lix de C im a , co m a exceção</p><p>"co nva lesce n te ” dos v irtuoses, to d o s vam os re p e tir o vatapá.</p><p>Previno que, só te m mais um p ra to , um a salada fr ia , com</p><p>p e ito desfiado de perdizes vindas vivas do C haco. Mas</p><p>p r im e iro vamos d e c id ir que v in h o vocês to m a m com o vatapá.</p><p>O p ra to é fo r te e- eu p re firo que vocês reso lvam c o m o</p><p>q u ise rem : v in h o ve rm e lho , um B ourgogne, ou b ranco?</p><p>— B ranco ! B ranco ! e gelado!</p><p>— O h, m eu a m igo : está c la ro que o b ra nco vem gelado.</p><p>— Não é isso, Sarah L ig h t ! eu sei que você en tende de</p><p>v in h o . O que eu d ig o é que te m de v ir ge lad iss im am ente frappé .</p><p>Desta vez fo i S iom ara Ponga que não con teve a risada.</p><p>N em eu. A expressão não estaria de to d o fa lsa,</p><p>e tim o lo g ic a m e n te , mas quem que sabia disso a li! Esse</p><p>a n tip á tic o de p o lí t ic o vai me sa indo um a besta reverenda. Mas</p><p>é in c rív e l co m o os meus personagens já estão a g ind o sem a</p><p>m inha in te rfe rê n c ia : não cons igo co n te r mais eles. O cu rioso é</p><p>que F e lix de C im a q uando fa la de com idas, v ira in te lig e n te z in h o .</p><p>E tin h a um a coisa de bem p o lí t ic o : sabia se acom odar. C om o fo i</p><p>S iom ara que r iu , ela era tão c u lta , ele ju ro u que tin h a d ito uma</p><p>beste ira . Mas não faz ia m al, se r iu ta m b é m :</p><p>— Pois é: ge lad iss im am ente frap pé . V in h o não é questão</p><p>de fo rç a nem de de licadeza do p ra to , carece é co m b in a ção ,</p><p>in flu ê n c ia m ú tu a . O que te m de mais adm irá ve l nos p ra tos do</p><p>género do vatapá, é o fe nó m e n o da tem pestade. T em um poeta</p><p>b ra s ile iro , não sei mais com o se cham a, re c ite i isso no g ru po ,</p><p>fa la n d o que d u ra n te a tem pestade o lob o e o c o rd e iro vão tré m u lo s</p><p>se u n ir , é isso m esm o. O pe ixe , o cam arão fresco são sabores</p><p>de licados, que v iram de licad íss im os, po r co n tra s te com a</p><p>tem pestade dos te m p ero s , cam arão seco, o dendê. Mas vão tré m u lo s</p><p>se u n ir . É um a d e líc ia da lín gu a , até do pa ladar dos dentes, quando</p><p>e n co n tra na convu lsão , a m aciez do pe ixe a po lpa d isc re tam en te</p><p>res is ten te do cam arão fresco . Eu não sei co m o e x p lic a r. . . mas</p><p>vocês, hom ens, já perceberam d ece rto co m o é gostoso no m eio</p><p>da m u lt id ã o a gente se encostar num a m u lh e r. . .</p><p>— O h F e lix . . .</p><p>— N ão! não estou fazendo safadeza não! é só encostar sem</p><p>q ue re r. A m u ltid ã o é que encosta a gente, basta até encostar os</p><p>o lhos . Pois é o pe ixe , é o cam arão do va tapá! Mas en tão chega o</p><p>v in h o , e co m o está b om este, Sarah, ge lad iss im am ente fra p p é .</p><p>Vocês reparem : chega o v inh o e to m a p a rtid o pelos e lem entos</p><p>fu n d a m e n ta is do p ra to , o pe ixe , o cam arão, que am eaçavam ser</p><p>vend idos pelos te m p e ro s tem pestuosos. Já fo i d e c id id o pela</p><p>c iv iliza çã o francesa: p e ixe só co m b in a com v in h o b ranco . E então</p><p>assim bem ge lado, abranda a tem pestade do vatapá. F o rm a com o</p><p>vocês d ize m na m úsica, fo rm a um acorde !</p><p>*- C onsonan te o u d issonante?</p><p>— Não sei, seu c o m p o s ito r , isso é lá com vocês. F o rm a um</p><p>acorde que nem co nco rd a nem d isco rda , a juda . Eu não sei po rque a</p><p>gente precisa c o n c o rd a r, pra se a juda r, não é m esm o Sarah L igh t?</p><p>— É m esm o! e xc la m o u S iom ara Ponga des lum brada , se</p><p>e n c o n tra n d o a fin a l nos in s t in to s que a levavam a ade rir à</p><p>m ilio n á ria .</p><p>— O que eu acho engraçado (co m e n to u o c o m p o s ito r) é</p><p>que o senhor, sem q u e re r, disse uma verdade m usical</p><p>p ro fu n d a . A m úsica m oderna ta m b é m acabou com as noções</p><p>falsas de acorde co nso na n te ou d issonante . O acorde , seja qua l</p><p>fo r , o que o m ús ico te m de in ve n ta r é a co in c id ê n c ia de sons</p><p>e tim b re s se a u x ilia re m m u tu a m e n te , pra que tu d o se va lorize .</p><p>— Por isso é que a m úsica de você é tã o d issonante</p><p>sussurrou a ca n to ra , in te n c io n a lm e n te “ a ju d a n d o " F e lix de</p><p>C im a, co nsc ien te agora d o acorde que fo rm a va com a</p><p>m ilio n á ria e o p o lí t ic o . Mas F e lix de C im a jam ais o uv ira</p><p>nenhum a obra de Jan jão , d e b la te ro u :</p><p>— E a m úsica b ras ile ira e n tã o ! Esse F ranc isco M ignone</p><p>que só fa z m úsica de p re to , esse Cam argo G u a rn ie ri que só</p><p>faz m úsica de c a ip ira !</p><p>— Si fosse apenas isso, a m úsica b ras ile ira ia m u ito bem . . .</p><p>— A rre Jan jão en tão a m úsica b ras ile ira não vai bem?</p><p>Jan jão a m o la d o se p re pa rou pra re sp o n d e r.1</p><p>De rep en te o c o m p o s ito r Jan jão fa lo u a rre b a ta d o :</p><p>— Pois vocês q ue re m m esm o saber o que eu acho da</p><p>m úsica b ras ile ira? Eu acho que vai pessim am ente, a p r in c ip ia r</p><p>pelos co m p os ito re s . N ão estou longe de pensar que com</p><p>to d o o estrange irism o da obra deles, os p r im e iro s criadores</p><p>ilus tres d o B rasil, José M a u ríc io , F ranc isco M anue l, Carlos</p><p>Gom es, fo ra m m u ito m ais nac iona is que os de ho je , com to d a</p><p>a sua b ra s ile irice m us ica l. F ranc isco M anue l co la b o ro u na</p><p>fix a ç ã o do ensino e depo is na Ó pera Im p e ria l, que p rop ic iava</p><p>aos fo rm a d o s na escola, o e x e rc íc io da p ro fissão . E po r isso</p><p>1 A partir deste p onto , que marca o fim do rodapé semanal de 30 .1 1 .4 4 ,</p><p>M. de A. não fez mais em seu exem plar de trabalho as alterações que</p><p>vinha fazendo no final de cada artigo da série e visavam a substituir o</p><p>aspecto fraccionado do texto original pela flu idez de um discurso</p><p>contínuo. Por este m otivo o texto passa a ser transcrito, de agora em</p><p>diante, tal como foi publicado no jornal tendo-se corrigido apenas os</p><p>erros tipográficos e marcando-se com um espaço o final de cada rodapé.</p><p>não sei que Iara generosa lhe deu o p ré m io de se to rn a r o</p><p>a u to r do H ino N ac iona l. O res to das obras de le fo ra m</p><p>m od inhas para o r i to sexual da burguesia em fo rm a ç ã o , o u ,</p><p>com o José M a u ríc io , m úsica re lig iosa para o serv iço d iv in o .</p><p>Carlos Gom es, bem co nsc ien te m e n te , co m o prova a</p><p>d e d ic a tó ria do "S c h ia v o " , fo i em m úsica o c o m p a n h e iro de</p><p>Castro A lves na cam panha a b o lic io n is ta . T u d o m úsica a</p><p>serviço de a lgum a coisa a m ais que um s im p les d ile ta n tis m o</p><p>es té tico . E ho je ! C om exceção do V illa L ob os c o ra l, quem</p><p>mais faz m úsica de serviço socia l, neste ano da graça de 1944 ,</p><p>neste d ia sem graça de 9 de n o v e m b ro !</p><p>— H oje é 9 de novem bro? e xc la m o u o es tudan te de</p><p>D ire ito .</p><p>E a v irtu o se S iom ara Ponga esquecida : — É sim Pastor</p><p>F id o ; do que você se a rrep ia ta n to ?</p><p>— Nove de n o v e m b ro !. . .</p><p>U m s ilê n c io e x p lo d iu . A m ilio n á r ia Sarah L ig h t b a ixo u os</p><p>o lhos, cons trang ida . Jan jão a b riu os de le am argado. O es tudan te</p><p>está m ud o , che io de lem brança , o lh os parados, secos, o lh os de</p><p>g r ito m e tá lico . O p o lí t ic o F e lix de C im a funga m astigando , sem</p><p>consegu ir vencer o desapon to . Só a ca n to ra o lhava to d o s , meia</p><p>r in d o , m eia assustada. E n fim se lem bra de si m esm a:</p><p>— Não sei d o que vocês estão fa la n d o mas eu ta m b ém</p><p>nunca hei-de esquecer este d ia . la dar</p><p>um re c ita l em São</p><p>Paulo, o ano passado, mas houve um a co rre r ia de estudantes,</p><p>tiv e que ad ia r, fo i um a caceteação.</p><p>— A sua caceteação (nava lhou o c o m p o s ito r ind ig n a d o )</p><p>fo i um gesto m u ito s ince ro , m u ito d ig n o , e u m rapaz m o rre u .</p><p>— Eu não fa le i p o r in d ife re n ça não, a té las tim e i</p><p>m u ito . . . Mas não há nada m ais desagradável d o que ad ia r um</p><p>re c ita l.</p><p>F e lix de C im a se d escu lp ou :</p><p>— Eu estava v ia ja nd o , passei três meses fo ra . Nesse</p><p>n o ve m b ro com ia ostras num a pra ia do Paraná, c u r t in d o uma</p><p>ro le ta que desde se tem bro a n tip a tiz a ra c o m ig o , no R io . Mas</p><p>que d e s lu m b ra m e n to o R io !</p><p>— M u itas m ulatas? fle x o u a ca n to ra .</p><p>— N ove de n o ve m b ro , repe tia o e s tud an te</p><p>d e sco n tro la d o .</p><p>— As m u la tas estão racionadas agora; são presa de</p><p>guerra dos m aru jos a lvíss im os.</p><p>— E o ra c io n a m e n to está m u ito d u ro no R io?</p><p>— É o nosso s a c rifíc io pela guerra , te m o s que aguentar</p><p>até é,, s im p á tico . Mas esco lhendo um grande h o te l nem se</p><p>percebe.</p><p>— E a u to m ó ve l?</p><p>— É o p io r. Na véspera de 7 de se tem bro , quase p e rd i o</p><p>banque te de gala que o grande b a ila r in o a rg en tino V ie n to y</p><p>V ie n to s o fereceu aos cariocas, antes de voar a Be lém , onde ia</p><p>dançar pros so ldados. A fa rra fo i no Copacabana. Q u ando desci</p><p>na p o rta , não t in h a um a u to m ó ve l pra rem éd io no fa lm e n g o .</p><p>A f in a l achei um , mas ficam os engarrafados na passagem dos</p><p>tanques que iam se co lo ca r pra parada d o d ia seguinte.</p><p>— Q ueria ver um ta nq ue . . .</p><p>—< É s in is tro ,)m o ç a . A gente de casaca, se a legrando pra</p><p>ir num a^ester-e^-cíque le e s tro nd o so tu rn o , aquelas massas</p><p>fo rm id á ve is avançando, ro n ca n d o am eaçadoras. Toda a gente</p><p>estava h o rro riza d a , o chão tre m ia ; naquele e spe rd fc io de luzes,</p><p>parecia que a p ró p ria luz u ivava, m eu coração fic o u</p><p>p e q u e n in in h o ! Im ag ine i a q u ilo em ação, as m e tra lhadoras</p><p>va rrendo sem p e rgu n ta r, assassinando, assassinando. . .</p><p>— Nove de n ove m b ro . . .</p><p>— M uda esse d isco , rapaz. F e lizm e n te q uando en tre i na</p><p>sala do banquete , nem lem bre i de guerra m ais, o fuscado . Um</p><p>lu x o co m o nunca v i, nunca vi ta n ta jó ia ! E goste i da m is tu ra ,</p><p>d ize m que eu não sou m o d e rn is ta ! Havia m u lheres dos o u tros ,</p><p>tin h a senhoras casadas, d ivo rc iadas, casadas no U rugua i,</p><p>am antes de só um , de tu d o ! Só fa ltava a nossa can to ra pra</p><p>e n fe ita r a o rg ia co m a sua p u re za im o r ta l, ah, ah. . .</p><p>S iom ara s o rr iu co m p la ce n te . Lhe passaram na idéia as</p><p>grandes virgens do a g io ló g io c a tó lic o , sentiu-se uma delas.</p><p>Disse com desprezo:</p><p>— Q uer d ize r que você a p ro v e ito u .</p><p>— A p ro v e ite i fo i a c o m id a ! que m an te iga ! E que carnes!</p><p>V ie n to y V ie n to s é tã o re fin a d o que os perus e o b o i vieram</p><p>de Buenos A ires de avião. C om m u ita graça, o ú lt im o p ra to</p><p>chamava "B a lé do R a c io n a m e n to ” , só que estava e sc rito em</p><p>francês. Era um ch a te au b rian d , no fu n d o , que d e líc ia ! mas em</p><p>vez de b a ta tinh a s : pequenos pedaços de q u e ijo assados na</p><p>brasa; em vez de cogum e los : le ite coa lhado em cápsulas</p><p>salgadinhas. V in h a um p ra to de salada ju n to , to d o s se</p><p>enganaram . A lfa c e , aspargo, p a lm ito , tu d o fe i to com massa de</p><p>açúcar p in ta da , fo i m u ito d iv e r t id o . Está c la ro que n inguém</p><p>com eu isso, mas a carne estava m iracu losa .</p><p>— Nove de nove m b ro . . .</p><p>— A liás, in te rro m p e u S iom ara Ponga inco m o d ad a , nos</p><p>restaurantes de São Paulo a inda se com e bem . Carne,</p><p>m ante iga, fru ta s à von tade .</p><p>— Nos ch iques nunca fa lta . A té sobra ; d iz -que eles</p><p>revendem a pa rticu la res .</p><p>— Não careço, passei a com er fo ra desde que isso</p><p>p r in c ip io u .</p><p>— Pois f iq u e em sua casa, com ida de res ta u ra n te cansa</p><p>bem . Faça as com pras neles, que p o r q u a lq u e r 60 m ilré is você</p><p>a rran ja um q u ilo de filé .</p><p>Sarah L ig h t se m exia na cadeira inco m o d ad a . O p o lí t ic o</p><p>percebeu e desv iou :</p><p>— E que v inh os V ie n to y V ie n to s nos o fe rece u ! Só o</p><p>B ourgogne era de uns trezen tos paus a garra fa , beb i um a soz inho .</p><p>D epo is da cham panha, fo m o s beber w h is k y no show , onde teve</p><p>um a a legoria ao E x p e d ic io n á r io fe ita p o r g irls norte -am ericanas,</p><p>gostei m u ito . Só às três tu d o se d isso lveu, p o rqu e V ie n to y</p><p>V ie n to s voava às c inco . A í é que fo i a h is tó r ia . . .</p><p>— T a x i a cem m ilré is , q ua nd o se acha. . .</p><p>— N ove de n ove m b ro . . .</p><p>— N ão ; t in h a de sobra lá. O ch a to , depo is de ta n ta a legria,</p><p>fo i esbarrar nas fila s ju n to dos açougues, das le ite rias que só</p><p>a b ria m às sete. V e ja que n o ite de D o s to ie vsq u i: p r im e iro guerra ,</p><p>depo is fa rra , depo is fo m e ! Me estragaram to d a a n o ite , a gente</p><p>ta m b é m te m coração. Q uando estava p e rto d o h o te l, qu is andar</p><p>um p o u co pra espairecer. Mas to p e i com um a b icha de le ite ,</p><p>mães, m u lhe res grávidas, a té crianças de doze anos.</p><p>— N ove de nove m b ro . . .</p><p>----------—.A c a b a com isso, e s tud an te ! que bobagem</p><p>h o m e m !)</p><p>E a lém brança de que ele era um hom em , a fin a l</p><p>h u m a n izo u o Pastor F id o , duas lágrim as c h o fra ra m . E ele</p><p>desa tou n um c h o ro b ru ta l. Era v is íve l que não sabia mais</p><p>ch o ra r. C horava com d o r de lágrim a arrancada, n um p ra n to</p><p>in á b il, em convu lsões de so luços gro tescos, fe i to resm ungos de</p><p>fe re . Esfregava as mãos na cara, co m o q u e re n d o a rrancar dos</p><p>o lh os o ch o ro d i f í c i l , e as lágrim as b rinca va m pelos dedos</p><p>dele. C o n tu d o aquela d o r fís ic a o d is tra ía do s e n tim e n to do</p><p>seu co ração . Mas o p ró p r io in s t in to de secar o p ra n to , lhe</p><p>p o n d o dem ais na consciência o seu desespero ch o ra n d o , o</p><p>faz ia ch o ra r m ais, era tr is te . O p o lí t ic o in d ig n a d o ba tia pros</p><p>p e itos um co po de v inh o . A v irtu o se esm igalhava b o linh as de</p><p>pão. Mas Sarah L ig h t com preend ia . Os o lh o s dela fic a ra m</p><p>ú m ido s . Era s ince ro o seu desejo de conso la r, mas ve io um</p><p>m edo. A q u e le era um caso em que n enhum r ito de a lm oço ,</p><p>querm esse ou ba ile a m en tia . A li-, ela só t in h a o gesto, as</p><p>m ãos, o c o lo , o b e ijo . Teve m edo. Q ua lque r to q u e naquele</p><p>c o rp o de beleza a co nvu ls io na ria n um jo r ro de de líc ias</p><p>confusas. F icou h ir ta , com um bocado de ra iva d o rapaz. Não</p><p>por causa do banque te in te r ro m p id o , mas. . . Mas p o rque ele</p><p>era tr iu n fa lm e n te m oço , até naquele c h o ro e rrado . T in h a</p><p>raiva daque le e rrado que exerc ia na cara dela o d ire ito , o</p><p>despudor de p ode r ser um e rrado . Janjão? Estava</p><p>h ir to ta m b é m . N enhum a p iedade nele, mas a espécie de</p><p>g ló ria de se rev ive r n um igua l. N em so lidarizava p ro p ria m e n te</p><p>na su p e rio rida d e desum ana do a rtis ta . U ltrapassava hom ens</p><p>e am ores, na sua h o rr ív e l, in f le x ív e l fa ta lid a d e de ser um a rtis ta .</p><p>Pela A r te s im , pela sua a rte ta m b ém e em p rin c ip a l pela</p><p>abstração in c o n te n tá v e l de H um an idade , dava tu d o sem hesitação.</p><p>Por um in d iv íd u o , nunca. C om o a rtis ta , os in d iv íd u o s lhe eram</p><p>in su fic ien tes . Mas no estado de consciência crua em que o</p><p>pusera aquele c h o ro h um an o , sentia no m oço um igual,</p><p>capaz de ch o ra r e m o rre r p o r ideais. Era o es tudan te que</p><p>estava p e rto dele, em bora ele se soubesse longe do</p><p>estudante . . .</p><p>"E u sou a m oc idade , sou o a m o r" , le m b ro u num lam pe jo .</p><p>Quase s o rr iu . A f in a l s o rr iu . Mas a idéia de que s o rr ir era fo ra de</p><p>p ro p ó s ito a li, lhe le m b ro u fazer um gesto a p ro p ó s ito .</p><p>C anhestro , incapaz, to d o ossos, pôs a m ão, p u ro te a tro , no</p><p>b raço convu lso do m oço , a p e rto u .</p><p>A í Sarah L ig h t se ergueu, v io le n ta d a pe lo c iúm e .</p><p>A q u e le gesto era de la , só ela t in h a o d ire ito de to c a r no</p><p>Pastor F id o a li. "D e ix e ele, J a n jã o !" p ro tegeu r ísp id a . Se</p><p>in c lin o u sobre o m oço ca íd o na mesa e o envo lveu nos braços</p><p>de lic iosos . Brisa do e n ta rd e ce r! ch e iro de lír io s do b re jo ,</p><p>in fânc ias , mães, te rn u ra s , g ru tas abism ais, fo rça te rre s tre</p><p>q ue n te , gosto , a rro u b o de sexua lidade il im itá v e l: o m oço se</p><p>a t iro u nos seios dela, possu indo , ch o ra n d o m ais, num cho ro</p><p>que sorria encabu lado , c h o ro b o m , quase f in g id o , sacaneta,</p><p>b om , mas b o m ! Sarah L ig h t o erguia extasiada. Nada mais da</p><p>con fusão dos se n tim en to s que a a m e n d ro n ta ra de p r im e iro . A</p><p>con fusão e x is tia s im , mas tã o grave, tã o harm on iosa — o</p><p>s e n tim e n to é co m o o som , dá sem pre sons h a rm ó n ico s — que</p><p>Sarah L ig h t estava extasiada., co m p le ta da , co n ve rtid a ao seu</p><p>to ta l d e s tin o , m u lh e r. F o i levando no c o rp o o rapaz.</p><p>Havia no te rra ço um banco (L ice u ) m e io e scond ido , bom pra</p><p>ela se to rn a r to ta lita r ia m e n te a m u lh e r. Ú n ic o to ta lita r is m o que</p><p>ela jam ais devia te r tro c a d o p o r o u tro s . E vos garan to que</p><p>Sarah L ig h t era um a grande m u lh e r, que pena. . . T ive e te nh o</p><p>in ten ção de a m os tra r desagradável, co m o de fa to é. Mas nem</p><p>sem pre cons igo conservá-la na sua classe de p lu to c ra ta , po rque ,</p><p>pessoalm ente, às vezes ela se esquece da classe e de m im ,</p><p>uma grande m u lh e r!</p><p>Pois em pouco te m p o o Pastor F id o , p o r m ais que sem</p><p>querer quisesse p ro lo n g a r aquele co nso lo c o m p le x o , estava novo,</p><p>pe rdoado da lem brança inesquecíve l. P recisam ente o ito m in u tos</p><p>depois, eles vo ltava m para a tá vo la red on da . S iom ara Ponga</p><p>e scru tou , po r mera cu rios idade , o ro s to dos do is . E la era tão</p><p>fr ia , S iom ara Ponga. Mas não percebeu som bra de ve rgonha em</p><p>n inguém . Jan jão od iava , ju ro : odiava o Pastor F id o . F e lix de</p><p>C im a sonhado ram en te chupava to pá z ios no c o p o , im a g inando</p><p>carnes de m estiças possantes. Mas pela p r im e ira vez naque le d ia ,</p><p>na urgência de fracasso em que o seu banque te estava, a</p><p>m ilio n á r ia se a firm a , em seu p os to de m an do , e m anda :</p><p>— P ro n to : já passou e não se fa la m ais nisso. Jan jão ,</p><p>c o n tin u e e x p o n d o a m úsica b ras ile ira que você in te rro m p e u .</p><p>E e n fim pôde fazer o sinal pra que o c r ia d o passasse a</p><p>rep e tiçã o do vatapá. Janjão só de ra iva, a inda desobedeceu:</p><p>— Pois em bora a música b ras ile ira seja um a m archa</p><p>fú n e b re , não teve n inguém que entoasse pra ho je o lam en to</p><p>dum a M archa F úneb re . . . A m úsica b ras ile ira anda entregue</p><p>às suas gavotas. Mas co m o eu ia d iz e n d o . . .</p><p>E a fin a l Jan jão fa lo u :</p><p>— B om , Sarah L ig h t, eu vou lhes d ize r o que penso da</p><p>m úsica b ras ile ira , mas ao m enos me d e ix e m apresentar ce rtos</p><p>p r in c íp io s gerais, que podem ser d is c u tid o s mas pe lo m enos</p><p>são francos, leais, o b je tivo s .</p><p>Eu não sei po rqu e são ju s ta m e n te os m ais idealistas e</p><p>desnorteados que v ivem fa la n d o em o b je t iv id a d e , me dá uma</p><p>angústia !. . . O que você te m de o b je t iv o , Jan jão !</p><p>— S iom ara Ponga, d e ixe Jan jão fa la r, faz fa v o r.</p><p>— Eu a firm o p re lim in a rm e n te que na s ituação em que o</p><p>Brasil se acha, co m o e n tidade b ras ile ira , is to é: co m o</p><p>organ ização da coisa é tn ica e assim ilação d o e s p ír ito do</p><p>te m p o un ive rsa l, os b ra s ile iro s só podem fazer a rte le g ítim a ,</p><p>e ficaz, fu n c io n a l e rep resen ta tiva si d e ixa re m in ic ia lm e n te de</p><p>parte a in tenção de fazer ar,^e g ra tu ita . . .</p><p>'^ _ A r t e h ed on ís tica . . .</p><p>— . . . a rte no se n tid o h e d o n ís tic o do te rm o , s im : si</p><p>abandonarem , co m o ideal, a p reocupação exc lus iva de beleza,</p><p>de prazer desnecessário. E p r in c ip a lm e n te essa in te n çã o</p><p>es túp ida , p u e ril m esm o, e d esm ora lizad o ra , de c r ia r a</p><p>obra -de -a rte p e rfe itís s im a e e terna.</p><p>— Este aliás é um dos m aiores d e fe ito s , ta lvez o m a io r</p><p>d e fe ito da c r ít ic a b ras ile ira , não só de m úsica, mas de</p><p>q u a lq ue r das o u tra s artes, a té m esm o da lite rá r ia . O p ró p r io</p><p>Á lva ro L ins já a fia n ç o u que o que ele busca d is c e rn ir, nas</p><p>obras-de-arte , são os seus va lores de perm anênc ia no fu tu ro .</p><p>Mas com Á lv a ro L ins, pelo m enos, nós tem os um c redo , uma</p><p>a titu d e c r ít ic a d e fin id a . Pode ser d iscu tid a , mas é defensável</p><p>co m o q u a lq ue r o u tra . O que é e s túp ido é, d ia n te dum a obra</p><p>qu a lq u e r que te n ta pô r um p rob lem a em m archa, co m o é o</p><p>caso da linguagem do M ário Nem e por e xe m p lo , ou o caso da</p><p>co r b ras ile ira , em A lm e id a J ú n io r, uma pessoa ju lg a r em</p><p>fu n çã o do ano do is m il ou três m il.</p><p>— Diga m e lh o r. Pastor F id o : co loca r a c r ít ic a num a a titu d e</p><p>e terna de ju lg a m e n to de va lo r, em vez de num a a titu d e sempre de</p><p>ju lg a m e n to de va lo r, mas va lo r tra n s itó r io , do m o m e n to que passa.</p><p>O m ais d iv e r t id o é que m u ito s , a to rdo a do s , sem perceber essa</p><p>c o n tra d iç ã o ín tim a , de estarem ju lg a n d o em função da beleza liv re</p><p>e e te rna , um a obra de beleza co nd ic io na da e tra n s itó r ia , se salvam</p><p>� afirm ando não d ita r ju lg am en to s de va lo r. C om o se tu d o não fosse</p><p>ju lg a m e n to de v a lo r!. . . O sim ples fa to de se to m a r as "B a q u ia n a s "</p><p>de V il la L obos e estudá-las, m esm o só estudá-las em relação a</p><p>Bach, m esm o sem d ize r si são boas ou ru ins , o s im ples fa to de se</p><p>estudar a paleta de T ars ila e analisá-la enq ua n to co r da natureza</p><p>b ras ile ira , são ju lg am en to s de va lo r. Porque em to d a re lação haverá</p><p>sem pre um m ais ou um m enos; o u , na m e lh o r das h ipóteses, o</p><p>sinal " ig u a l a " . E tu d o isso im p lica ju lg a m e n to de va lo r.</p><p>O Pastor F id o : — Mas o m ais r id íc u lo é que to d a essa c r ít ic a</p><p>que v ive be rrando os m é todos que ado ta , o que m enos tem é</p><p>m é to d o ; não aguenta o tra n c o , e a to d o ins tan te vive a m exe r o</p><p>ra b in h o d e b a ixo da pele do leão, em ju lg a m e n to s d ire to s e</p><p>sen tim en ta is de va lo r.</p><p>— Pois é. Mas d ire to s e sen tim en ta is em fu n ç ã o da</p><p>e te rn idade e do fu tu ro . É in c ríve l o pavor que to da essa c r ít ic a tem ,</p><p>de errar no fu tu ro . . . Não chega a ser r is íve l, p o rq u e dá dó . O</p><p>m e lh o r é pois, já que qua lq ue r espécie de c r í t ic a é m esm o e x p líc ita</p><p>ou im p lic ita m e n te um ju lg a m e n to de va lo r, a gente se expa nd ir em</p><p>ju lg a m e n to s de va lo r, igua lm en te d ire to s e sen tim en ta is , co m o você</p><p>d iz , mas lea lm en te tra n s itó r io s , em função da ob ra -de -a rte a ju lg a r,</p><p>e para o te m p o em que ela fo i fe ita . As "B a q u ia n a s " de V illa</p><p>L ob os tê m de ser tom adas não em relação a Bach, mas em</p><p>re lação a elas mesmas. T ra n s ito r ia m e n te , e n q ua n to va lo r de hoje</p><p>e do m o m e n to .</p><p>— N ão c o n c o rd o ! Q uando eu in te rp re to um a canção de</p><p>Fauré o u de S ch</p><p>tív e l" , nascida em</p><p>N ova Io rq u e e com isso M á rio caracteriza ao m esm o te m p o</p><p>o ca p ita lis m o in te rn a c io n a l e a ausência de raízes — Sarah</p><p>L ig h t é um p o u co o ju d e u e rran te sem p á tr ia , adaptando-se</p><p>co m o pode às c u ltu ra s o nde vive. Seu p ra to p o r excelência</p><p>é a "sa lada a m e ric a n a ", fasc inan te , tra iç o e ira , mas "sem</p><p>c h e iro " — sem um c h e iro que a d e fin a c u ltu ra lm e n te . Porém ,</p><p>estas co rrespondênc ias m ais gerais, que s itu am a personagem</p><p>quase co m o um s ím b o lo , não são tão s im ples assim. Por</p><p>e x e m p lo , em pregando o m esm o a d je tiv o " ir r e d u t ív e l" , associa</p><p>os judeus à c u ltu ra ge rm ân ica :</p><p>"É pândego: os m ais perigosos são ju s ta m e n te os</p><p>p ro fessores sem p á tr ia , os israelistas. N unca fu i con tra</p><p>os judeus, Deus me liv re ! Mas não sei si é p o r v irem</p><p>dum a c u ltu ra m u ito ir re d u tív e l, po is são quase todos das</p><p>partes ce n tra is da E u rop a , e q ua nd o não germ ânicos</p><p>de te rra de nascença, são p ro fu n d a m e n te g e rm a n iza do s"</p><p>(O B a n q u e te , p. 109 ).</p><p>T am bém e n co n tra m o s na p. 107 :</p><p>"a m ilio n á r ia fe rid a naque le m eigo p a tr io t is m o irre d u tív e l</p><p>que faz a gente am ar pra sem pre a te rra em que nasceu".</p><p>Pois Sarah é ta m b ém um a ca rica tu ra dos estrangeiros</p><p>que ignora ram ou co m b a te ra m o m o v im e n to m o d e rn is ta . Na</p><p>co n fe rê n c ia que te m e xa ta m e n te esse t í t u lo — "M o v im e n to</p><p>m o d e rn is ta " —, de 1 9 4 2 ,3 M á rio lem bra com g ra tid ã o da</p><p>a ris to c ra c ia tra d ic io n a l, a u te n tic a m e n te b ras ile ira , que deu a</p><p>"m ã o fo r te " aos jovens. D . O lív ia Guedes Penteado é a</p><p>a n títese de Sarah L ig h t, s ím b o lo (a inda) dos "a r is tô s do</p><p>d in h e iro " que</p><p>"n o s od iavam no p r in c íp io e sem pre nos o lh a ra m com</p><p>descon fiança . N e n h u m salão de ricaços tive m o s , nenhum</p><p>m ilio n á r io es trange iro nos aco lheu. Os ita lia no s ,</p><p>alemães, os israelistas se faz iam dem ais guardadores do</p><p>bom senso n ac iona l que Prados, Penteados e</p><p>A m a ra is . . . " .</p><p>E n fim , o p o u co que sabem os de Sarah nos a u x ilia a</p><p>co m p re en de r que seu interesse pela m úsica passe pe lo desejo</p><p>fís ic o de Jan jão . É p o r causa de le que , com seu d in h e iro ,</p><p>pode c o n s t itu ir um a d isco teca "c o lo s s a l" , m a io r d o m un do</p><p>(am ericanam en te , c o m o a salada, ta m b ém "m a io r do m u n d o ").</p><p>D o m esm o m o d o que para o p o lí t ic o e a v irtu o s e , o interesse</p><p>que dá à m úsica é desonesta ca m u fla g e m : assim na página</p><p>•n A s p e c to s d a l i te r a tu r a b ra s ile ira , Sao Pau lo , M artin s e d ., p. 2 3 0</p><p>e 2 3 1 .</p><p>no táve l em que M ário traça um pa ra le lo e n tre as m úsicas que</p><p>ela ouve e as expe riênc ias re finadas de sua " t o i le t t e " (O</p><p>B anque te , p. 7 3 ). A liás , o tem a da re lação e n tre os d iversos</p><p>géneros da m úsica e c o m p o rta m e n to s hum anos é ca ro a M á rio</p><p>desde "T e ra p ê u tic a m u s ic a l" , o nd e o p ro b le m a aparece ligado</p><p>a c o m p o rta m e n to s c o le tiv o s e não in d iv id u a is , tra ta d o de</p><p>m aneira ce rta m en te m enos re finada , mas no m esm o e s p ír ito .</p><p>Ta l t ip o de c o n ta to co m a m úsica, segundo M á rio , escapa ao</p><p>d o m ín io da A r te , com m aiúscu la . A m úsica " fu n c io n a l" está</p><p>fo ra dos prazeres p u ros e p ro fu n d o s , p ro d u z id o s pela m úsica</p><p>pura e p ro fu n d a , "e s té t ic a " , desligada do q u o t id ia n o e</p><p>sacralizada num m o m e n to d e fin id o . D epo is de te r es tabe lec ido</p><p>um program a de rá d io que acom panhasse, da m anhã à n o ite</p><p>as funções hum anas (p. 55 e 5 6 ), M á rio c o n c lu i "T e ra p ê u tic a</p><p>m u s ic a l" le m b ra n d o :</p><p>"É que estou p ressen tindo a ob jeção de to d o s : — mas</p><p>nesse caso não haverá m ais lugar para c o n c e rto s ! . . .</p><p>Haverá sem pre co nce rto s e horas serão ta m b ém</p><p>de te rm inadas para que to d o s escutem um M o z a rt, um</p><p>S c a r la tt i, um W agner, um H e n riq u e O sw a ld . Mas isso é</p><p>d o m ín io da esté tica e não desta n o tíc ia em que tive a</p><p>audácia im p erdoáve l de nam ora r com a m e d ic in a . . . "</p><p>(p. 56).</p><p>Assim Sarah L ig h t tra n s fo rm a m úsica " a r t ís t ic a "</p><p>(Rarneau, Bach e tc .) em m úsica " fu n c io n a l" , c o m o má</p><p>o u v in te , que se inco m o d a pouco co m a a rte . E o interesse</p><p>su p e rfic ia l que consagra à m úsica fá -la in te rv ir p o u co nas</p><p>discussões te ó rica s : seu papel resume-se fre q u e n te m e n te em</p><p>co lo ca r questões sim p les que o u tro s desenvo lve rão . A ssim ela</p><p>vai buscar a idéia que a "e s té tica faz p a rte da p ró p r ia</p><p>té c n ic a " ou o e xe m p lo de S eura t que ilu s tra a q u ilo que M á rio</p><p>cham a " o d in a m is m o das com oções e s té tica s " (O B anque te ,</p><p>págs. 77 e 8 6 ), t ira d o do curso que o p ró p r io M á rio fize ra no</p><p>C o lég io des O iseaux. C om co n h e c im e n to s de "c u ltu ra g e ra l" ,</p><p>fo rn e c id o s po r um co lé g io g rã -fin o , a boa rep resen tan te desses</p><p>"a r is tô s do d in h e iro " , od iados pe lo a u to r, Sarah nem sabe</p><p>que M á rio de A n d ra d e escreveu M a cu n a ím a . Ela de fende rá a</p><p>a rte c o m o p r iv ilé g io de classe, e nisso te rá o a p o io do</p><p>p o lí t ic o (O B anque te , p. 9 2 ). E encontra -se c o m p ro m e tid a e</p><p>com prom issada com ele tam bém , na c r í t ic a fa ls if ic a d a ao poder,</p><p>na pseudo-oposição ao governo (O B a nque te , págs. 114 e 115 ).</p><p>O a u to r esm iúça , a lém desses, o u tro s m ecan ism os seus,</p><p>consc ien tes ou inco nsc ie n te s : os "d u e lo s " de beleza e</p><p>fascinaçãç co m a ca n to ra , as f lu tu a ç õ e s de seu a m o r, cujas</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>brunomaciel</p><p>Realce</p><p>inc linações passam de Jan jão a Pastor F id o , seus se n tim en to s</p><p>e ró tico s m esm o, em relação aos três hom ens presentes. E</p><p>inesperadam ente d escobrim os que Sarah é "u m a grande</p><p>m u lh e r” , m enos s ím b o lo e quase essência fe m in in a , escapando</p><p>aos caracteres de classe, à p lu to c ra c ia que a d e fin e :</p><p>“ Brisa do e n ta rd e ce r! ch e iro de lí r io s do b re jo ,</p><p>in fânc ias , mães, te rnu ras , gru tas abism ais, fo rça</p><p>te rre s tre q ue n te , gosto , a rro u b o de sexua lidade</p><p>il im itá v e l ( . . . ) A con fusão e x is tia s im , mas tã o grave,</p><p>tão harm on iosa — o se n tim e n to é co m o o som , dá</p><p>sem pre sons h a rm ó n ico s — que Sarah L ig h t estava extasiada,</p><p>co m p le ta da , co n ve rtid a ao seu to ta l d es tin o , m u lh e r</p><p>( . . . ) E vos g a ran to que Sarah L ig h t era um a grande</p><p>m u lh e r, que pena. . . T ive e te n h o in ten ção de a m os tra r</p><p>desagradável, co m o de fa to é. Mas nem sem pre consigo</p><p>conservá-la na sua classe de p lu to c ra ta , p o rque ,</p><p>pessoalm ente, às vezes ela se esquece da classe e de m im ,</p><p>uma grande m u lh e r ! " (O B anquete , p. 127).</p><p>F e lix de C im a</p><p>"D e o rigem ita lia na e n a tu ra lm e n te fa c h is ta " (O B anquete ,</p><p>p. 45 ), é o "c a rc a m a n o " , v ít im a n a tu ra l de um a certa x e n o fo b ia</p><p>re inan te , pois o co n tin g e n te im ig ra tó r io ita lia n o era o mais</p><p>im p o rta n te em São Paulo e desse m od o o m ais am eaçador.4</p><p>As te rnu ras dos "m e u s b ras ile iros lin d a m e n te m is tu ra d o s " , das</p><p>" ita lia n in h a s " e “ c o s tu re ir in h a s íta lo -b ra s ile ira s " do C/a do</p><p>J a b o ti, do “ ga lha rdo f i lh o de im ig ran tes , lo ira m e n te d o m a n d o</p><p>um a u to m ó v e l" de Pau licé ia desvairada, com pensam mal o</p><p>a m b íguo “</p><p>ub e rt, eu p re ten d o honestam en te reve lar</p><p>S c h u m a n n 1 e Fauré na sua perm anência , na sua mensagem.</p><p>Jan jão , fo i im possíve l guardar o be iço de desprezo que</p><p>ele fez , o lh a n d o a ca n to ra , la responder, mas des is tiu ,</p><p>m u rm u ra n d o apenas (com que d o ç u ra !) :</p><p>1 (sic) Trata-se sem dúvida de um erro tipográfico: deve ser Schubert.</p><p>— Isso é p o rqu e você é v irtuose . . . Mas c o n tin u a n d o : O</p><p>tíras il está em fre n te do seu fu tu ro . O estado das artes</p><p>m usicais, p lásticas, a rq u ite tô n ic a s m esm o (e m esm o co m o</p><p>linguagem , as lite rá rias ) o B rasil, não é p r im it iv is ta , por</p><p>P r im itiv is m o escola de arte , ou p r im it iv is m o d ile ta n te de blasés</p><p>europeus. . .</p><p>— V ocê v iu . . .</p><p>— D eixa eu fa la r. Pastor F id o , você me in te rro m p e</p><p>sem pre. Os a rtis tas b ras ile iros são p r im it iv o s s im : mas são</p><p>“ necessariam ente " p r im it iv o s co m o f ilh o s dum a nac iona lidade</p><p>que se a firm a e d u m te m p o que está apenas p rin c ip ia n d o .</p><p>Neste se n tid o é que to da a a rte am ericana é p r im it iv a , m esmo</p><p>a dos Estados U n idos. E se qu iserm os ser fu n c io n a lm e n te</p><p>ve rdade iros , e não nos to rn a rm o s m um bavas inerm es e bobos</p><p>da c o rte : co m o os p r im it iv o s de todas as nac iona lidades e</p><p>p e río d o s h is tó rico s universais, nós tem os que a d o ta r os</p><p>p r in c íp io s da arte-ação. S a c rifica r as nossas liberdades, as</p><p>nossas ve le idades e pre tensõesinhas pessoais; e co lo ca r co m o</p><p>cânone a bso lu to da nossa esté tica , o p r in c íp io de u tilid a d e .</p><p>O P R IN C IP IO DE U T IL ID A D E . T o d a a rte b ras ile ira de agora</p><p>que não se o rgan iza r d ire ta m e n te do p r in c íp io de u tilid a d e ,</p><p>m esm o a ta l dos va lores e te rnos: será vã, será d ile ta n te , será</p><p>pedan te e idea lis ta . Que bem me im p o rta agora si eu não fic o</p><p>que nem um R acine, que nem um S ca rla tti? . . . Que bem me</p><p>im p o rta si não vou ser b u s tif ic a d o num ca n to de ja rd im</p><p>p ú b lic o , d e n tro de cem anos? . . . Que bem me im p o rta não</p><p>fica r e te rnam en te re d iv iv o , se v iv i? . . .</p><p>— Mas meu a m igo , nesse caso sem pre você ta m b é m está</p><p>f ix a n d o o Brasil co m o e lem en to de re lação, para os seus</p><p>ju lg am en to s , de va lo r. . .</p><p>— Eu não estou en tendendo nada! susp irou o p o lí t ic o</p><p>F e lix de C im a.</p><p>— E stou , Sarah L ig h t, es tou ! Mas eu não neguei os</p><p>e lem en tos de re lação, co m o processo de a tin g ir um</p><p>ju lg a m e n to . O que eu a firm e i é que esses e lem entos devem</p><p>ser os que a p ró p ria vida tra n s itó r ia pede, e não e lem en tos de</p><p>e te rn idade , que nem a v ida, nem a obra -de -a rte p ra tica m e n te</p><p>pedem . Não se esqueça que m esm o a obra -de -a rte , m ais liv re ,</p><p>mais “ h e d o n ís tic a " , co m o fa z questão de d ize r S iom ara Ponga,</p><p>é sem pre um fa to r socia l, um e lem en to fu n c io n a l.</p><p>— Mas si a ob ra -de -a rte é liv re , o que ela pede para</p><p>re lação do seu ju lg a m e n to de va lo r, é o e te rno , o un iversa l.</p><p>— Não si essa obra fo r b ras ile ira . Não, aliás, em</p><p>q u a lq u e r caso, m esm o se tra ta n d o dum a "P u lc in e lla " de</p><p>S tra v in sq u i — e a p rova é que a Rússia co m u n is ta re p u d io u</p><p>S tra v in sq u i. E fez m u ito bem . Sem m edo d o fu tu ro . Mas não</p><p>me perco neste pob lem a agora. . .</p><p>— P rob lem a ! P ro nu nc ie d ire ito , Janjão .</p><p>— Não cha te ia , S iom ara Ponga! Jan jão te m razão. É a</p><p>p ró p ria vida tra n s itó r ia que estabelece os e lem en tos re lac iona is</p><p>para os ju lg a m e n to s de va lo r. E no caso, essa vida é o Brasil.</p><p>Mas o B rasil, entenda-se: não só o que ele fo i,</p><p>t ra d ic io n a lm e n te , o que ele é rac ia lm en te , mas ta m b é m no</p><p>te m p o de agora, co m o assim ilação do e s p ír ito d o te m p o . É</p><p>d is to que eu ia fa la r. Jan jão não d e ix o u ! Porque não há nada</p><p>mais ir r ita n te do que a c r ít ic a europé ia a respe ito das nossas</p><p>artes e a rtis tas . Eu a inda hei-de escrever um a m on og ra fia ,</p><p>d e n u n c ia n d o essa e s tup idez . F ranqueza : es tup idez. A té já</p><p>andei a ju n ta n d o umas fichas , mas com esta v ida, agora aqu i,</p><p>agora n o u tra pensão, p e rd i tu d o . O Brasil não é nenhum a</p><p>e squ im o lâ n d ia , nem a nossa m úsica é o gam elã javanês! Nossa</p><p>tra d iç ã o é europé ia , nossa vida de a rte e ru d ita é a da</p><p>c iv iliza çã o c o n te m p o râ n e a , que já nem se pode d ize r mais</p><p>eu ropé ia , nem m esm o c ris tã , po is avassala un ive rsa lm en te o</p><p>m u n d o . Mas é de ver a c r ít ic a de a rte europé ia co m o tra ta os</p><p>criado res b ra s ile iro s ! M esm o u m Boris de S ch loezer, no</p><p>e n ta n to tã o f i lo s ó f ic o e in te lig e n te . Há um a c r ít ic a de le sobre</p><p>o V illa que é dum a pobreza larvar. Ela acaba estabelecendo</p><p>sem pre um ju lg a m e n to de va lo r (está c la ro : va lo r m enos)</p><p>p o rqu e o V illa re fle te e lem en tos de S tra v in s q u i! E o que é</p><p>p io r : a firm a que o V il la não poderá nunca fazer m úsica</p><p>b ras ile ira , e n q u a n to usar a o rq ue s tra s in fó n ica , po rqu e esta é</p><p>m an ifes tação de c u ltu ra europé ia , que b u rra d a ! A o rquestra</p><p>ta m b é m não é russa nem norueguesa, si a to m a rm o s em</p><p>re lação ao te m p o em que se fo rm o u .</p><p>— E nesse caso nem francesa seria, po is que a fin a l fo i</p><p>um ita lia n o , L u ll i, quem f ix o u em Paris, e po r im p o rta çã o ,</p><p>por có p ia , os p r im e iro s " V in te e Q u a tro V io lin o s d o R e i" . . .</p><p>— Pois é! A go ra im a g in em um c r í t ic o do te m p o de</p><p>Ram eau que a firm asse este não poder nunca a tin g ir música</p><p>francesa, e n q u a n to se u tilizasse da o rq ue s tra a u s tro - ita lia n a !</p><p>Nós som os ta m b é m c iv iliz a ç ã o europé ia , e a o rq ue s tra nos</p><p>pertence co m ta n ta le g it im id a d e c o m o a M ussorgsqu i ou Falia.</p><p>Mas essa é a visão gera l, rea lm e n te to n ta , da c r ít ic a européia</p><p>a nosso respe ito e d o B ras il: som os uns e x ó tic o s , som os uma</p><p>e squ im o lâ nd ia , e no fu n d o o q u e eles pedem não é a rte</p><p>b ras ile ira , nem a rte liv re , nem nada. Q uerem é vatapá, querem</p><p>gam elão. Há um a c r í t ic a im pagável daque le bem in te n c io n a d o</p><p>H en ri P runn ie res, ta m b é m sobre V il la Lob os , em que de</p><p>repen te , no m e io da c r í t ic a , ele p r in c ip ia vendo ín d io , vendo</p><p>flo res ta v irgem , na m úsica acapadoçada de um ó t im o V illa do</p><p>largo da Lapa.</p><p>— Isso ta m b é m me ir r i to u , o u tro d ia , len do no jo rn a l a</p><p>c r ít ic a de um d iz -qu e grande c r í t ic o inglês de artes p lásticas,</p><p>a resp e ito da expos ição de p in tu ra b ras ile ira em b e n e fíc io da</p><p>R A F . A chava que os quadros não eram b ra s ile iro s e re f le t ia m</p><p>in flu ê n c ia da Escola de Paris. Mas q uem ho je não re fle te na</p><p>p in tu ra , in flu ê n c ia m ín im a que seja, da Escola de Paris, que é</p><p>un iversa l, fe ita de Picassos e Pascins de todas as partes do</p><p>m undo?</p><p>— E de franceses, Sarah L ig h t, graças a Deus. Mas a</p><p>senhora não v iu o p ró p r io B e n to n in fe rn iz a d o co m isso, na</p><p>carta aberta que escreveu aos p in to re s b ras ile iros? A Escola</p><p>de Paris, só cham ada assim por causa da im p o rtâ n c ia</p><p>in te rn a c io n a l de Paris, é u m fe n ó m e n o un iversa l de reva lidação</p><p>dos p r in c íp io s té cn ico s da p in tu ra . E não é p o r esse lado</p><p>té c n ico -e s té tico da Escola de Paris que os p in to re s b ras ile iros</p><p>d e ix a m de ser b ra s ile iro s e fu n c io n a is .</p><p>— E stou e n te n d e n d o ! a rru fou -se to d o o p o lí t ic o F e lix</p><p>de C im</p><p>a : O que você que r, m en in o , é que os p in to re s daqu i</p><p>só p in te m negro !</p><p>— É ta m b é m o que os m úsicos b ra s ile iro s fazem de nós</p><p>lá fo ra : uns negros, ba tu qu e . . . so rriu d is p lic e n te m e n te a</p><p>can to ra S iom ara Ponga.</p><p>— D etesto negro , e x p lo d iu a m ilio n á r ia Sarah L ig h t.</p><p>— É isso! (Jan jão não se con teve :) O quê que esses</p><p>c r í t ic o s m usica is estrange iros pedem de nós? N egro , só negro !</p><p>E o quê que os b ras ile iros pedem ? B ranco , só b ra n c o ! E</p><p>durm a-se com um b a ru lh o desses! São to d o s uns id io ta s !</p><p>— Só você não é.</p><p>— V ocê te m razão, S iom ara Ponga. N em to d o s são</p><p>id io ta s : há os espertos.</p><p>Mas a v io lê nc ia da in d ire ta , e s fr io u to d o s . O p ró p r io</p><p>Jan jão f ic o u encabu lado com a grosseria. P r in c ip io u - fa la n d o</p><p>rá p id o , pra d is fa rça r, sem saber e xa ta m e n te o que ia d ize r.</p><p>Jan jão c o n tin u o u com os pensam entos em tu m u lto ,</p><p>fa la n d o sobre a m úsica b ra s ile ira :</p><p>— Pois é d e n tro dessa a rte -ação, desse p r im it iv is m o ,</p><p>n a tu ra l d o B rasil em face d o seu fu tu ro , que a m úsica</p><p>b ras ile ira te m de ser nac iona l. U m nac iona l de vo n ta de e de</p><p>p ro cu ra . N ac iona l que d igere o fo lc lo re , mas que o</p><p>tran sub s ta nc ia , p o rqu e se tra ta de m úsica e ru d ita . E um</p><p>naciona l que d igere as tendências e pesquisas un iversa is, po r</p><p>essa mesma razão do Brasil ser a tua l, e não um a en tidade</p><p>fixa d a no te m p o .</p><p>E por se tra ta r , sem pre, de a rte e ru d ita , que por</p><p>d e fin iç ã o aco lhe a in te rn a c io n a l. Uma m e lód ica b ras ile ira . . .</p><p>Uma p o lifo n ia b ras ile ira . . . Já nem ta n to . . . Um a</p><p>harm on ização in te rn a c io n a l, po is que não há harm on ização</p><p>n ac ion a l: os acordes debussistas fo ra m parar no jazz, sem</p><p>descaracte rizar coisa nenhum a; e as p ró p rias terças inglesas</p><p>jam ais serv iram pra nac ion a liza r a m úsica da In g la te rra . Uma</p><p>r ítm ic a b ras ile ira . . . Este o p rob lem a mais angustioso ta lvez. . .</p><p>Por causa da s incopa . Uma r ítm ic a b ras ile ira em que as</p><p>s incopas fossem um a constânc ia de m o v im e n to , mas em que</p><p>os te m p os e acentos no rm a is fossem a base essencial e</p><p>pe rm anen te da co n s tru çã o r ítm ic a . E n fim : um a m úsica</p><p>b ras ile ira que sendo ps ico lóg ica co m o ca racte rização rac ia l,</p><p>fosse o m enos possíve l e xó tica . Q uero d iz e r: não se tornasse,</p><p>fe ito a espanhola , m ais reconhec íve l pe lo tra je que pela</p><p>a lm a. . .</p><p>— É m u ito vago, Jan jão .</p><p>— É m u ito vago, Pastor F id o é. . .</p><p>A ca n to ra , só de p iq ue , descob riu um je ito de de fender</p><p>a s inco pa :</p><p>— De res to , a s incopa . . . Você d iz que a m úsica</p><p>b ras ile ira não deve recusar o in te rn a c io n a l c o n te m p o râ n e o :</p><p>po is a s incopa não pertencerá a essa exigência ps ico lóg ica</p><p>a tua l do m undo? Pelo M enos com o c o in c id ê n c ia do Brasil</p><p>com o te m p o ? . . . A f irm a m , e há bastantes provas d isso, que</p><p>o estado de re lig ios idade está re flo re scen do neste século. . . Eu</p><p>c re io que isso é n a tu ra l, p o rqu e ta lvez em nenhum a o u tra</p><p>época h is tó rica o hom em tenha v iv id o tã o p ró x im o da m o rte .</p><p>Nós estam os v ivendo ta ng ido s pelo in s t in to de m o rre r. . .</p><p>M o rre conosco um a c iv iliza çã o h is tó r ic a , a C ris tã . Estam os na</p><p>b anca rro ta do c ie n tif ic is m o n a tu ra lis ta d o séc. X IX , m o rte do</p><p>hom em com o s im ples a n im a lida de .</p><p>— N em ta n to . . .</p><p>— Nem ta n to , seja, m eu caro p o lí t ic o . Mas: es te tic ism o</p><p>exacerbado, A r te Pura, artes sem s ign ificação do bem e do</p><p>m al, da verdade e d o e rro : m o rte da a rte interessada,</p><p>fu n c io n a n d o litu rg ic a m e n te d e n tro da vida hum ana. Época do</p><p>C o m u n ism o : m o rte d o h om em in d iv íd u o , d isso lução da</p><p>fa m ília , d isso lução do nac ion a l, do t’ac ia l. . .</p><p>— Mas onde é que você v iu isso, S iom ara Ponga!</p><p>— D eixa «a m oça esbanjar, Jan jão .</p><p>— Mas eu não posso, Pastor F id o ! Não sou co m u n is ta ,</p><p>mas o co m u n ism o tra z em si tam anhos in d íc io s de v ida, que</p><p>S iom ara não pode c o n ta r ele co m o p a rtic ip a n te do c o n v ív io</p><p>dos co n te m p o râ ne os co m a m o rte .</p><p>— E os to ta lita r is m o s ? . . .</p><p>— Esses você não só pode, mas deve.</p><p>— O c a p ita lis m o ianque está rescendente de m o rte . . .</p><p>Época da C o rp o ra tio n . Época da Sociedade “ A n ó n im a " . E</p><p>vocês to d o s v ivem n um estado de gozo fís ic o exacerbado.</p><p>(Ela era fr ia . . .) A dança re ina ! Se a b riu um a fase hum ana</p><p>de p re d o m in â n c ia d o r itm o . E do r itm o im o ra liz a n te , o que é</p><p>p io r. É a s incopa rem e le ixada do ra g tim e , d o tango , da</p><p>rum ba , do samba, da m arch inha .</p><p>— Mas eu não e n te n d o ! po rqu e que a s incopa é</p><p>im o ra liz a n te !</p><p>— Porque, F e lix de C im a, ela c o n tra r ia os r itm o s</p><p>fis io ló g ic o s no rm a is do hom em . Ela se co n s c ie n tiz o u na</p><p>m úsica europé ia ju s ta m e n te po r isso; um a a n o rm a lida d e ,</p><p>em bora o ingénuo João Sebastião Bach nunca imaginasse que</p><p>estava pecando co n tra a carne, em sua s is tem atização abusiva</p><p>de s inco pa . A s incopa é a n ti-m o ra l, a pa ixo n a n te , um desvio.</p><p>U m gozo sensual. E o gozo fís ic o excessivo, ta n to pela sua</p><p>v io lê nc ia a n o rm a l co m o pela sua consequência lóg ica de</p><p>exaustão e esgo tam ento , nos seciona da vida que é m o v im e n to</p><p>e regu la ridade a p ro x im a n d o a gente da m o rte . V ive m o s</p><p>rea lm e n te um a am b iênc ia de m o rte , em bora as aparências do</p><p>te m p o sejam d u m re flo re s c im e n to de v ita lid a d e .</p><p>— E o esporte?</p><p>— O espo rte leva a gente pra uma v ita lid a d e no rm a l e</p><p>le g ítim a . O esporte jam ais é s incopado , reparem . Mas o</p><p>c o n c e ito ve rdade iro do esporte po rém , que re fo rça ria essa ta l</p><p>de tese d o hom em c h o fe r, está c o m p le ta m e n te a d u lte ra d o .</p><p>T o d o s os ideais, processos e façanhas do esporte , nos tem pos</p><p>de agora, só nos a p ro x im a m da m o rte . Porque, co m o</p><p>re fo rç a m e n to da v ida , o esporte não é p ra tica d o m ais: o</p><p>esporte não é mais aqu is ição de v ida , mas aqu is ição de v itó r ia</p><p>do mais fo r te ; e tu d o é co m p e tiçã o . A té nos g rupos escolares!</p><p>A té na g inástica de exposição em praça p ú b lic a ! Reina a</p><p>vo n ta de do hom em colosso. Reina o ú n ico desejo de ser mais</p><p>fo r te que. Reina a jo g a tin a m ais desarvorada. A r iva lid a de</p><p>p a tr io te ira . O p ro fis s io n a lism o . O p ro fiss io n a lism o é a lei</p><p>v igen te a té do a m a do rism o . Os am adores não que rem que o</p><p>o u tro a u to m ó v e l passe na fre n te deles na estrada. Si o o u tro</p><p>passa, sentem um a am argura de m o rte . É so b re tu d o , dom in a</p><p>no esporte in te rn a c io n a l, a lei de a rriscar a v ida . O que</p><p>entusiasm a, o que idea liza nas ve locidades estupe fac ien tes dos</p><p>a u to m ó ve is , dos reco rd is tas , dos aviões, é a b ravata co n tra a</p><p>m o rte , que nos a p ro x im a dela. P o rta n to , nada m ais n a tu ra l</p><p>que o hom em m o d e rn o , v iven do de m o rte , v o lte a um estado</p><p>de re lig io s id ad e sangren to . Pouco im p o rta si essa re lig iã o é o</p><p>F ach ism o . As re lig iões re va lo riza m a m o rte . Pro h om em , com o</p><p>e le m e n to da na tu reza , as re lig iões não dão se n tid o . Porém elas</p><p>ju s t if ic a m a vida to rn a n d o esta um a consequência lóg ica da</p><p>m o rte . Esta inversão da o rd e m n a tu ra l das coisas, esta</p><p>ju s t if ic a ç ã o da vida pela m o rte , "v iv e r m o r re n d o "</p><p>. . . ta lvez</p><p>seja m esm o o c o n v ite m ais s u tilm e n te e n c a n ta tó r io da</p><p>d iv in id a d e das re lig iões. . .</p><p>— Bravos, nossa grande v irtu o s e !</p><p>— G o sto u , nosso g rande p o lít ic o ?</p><p>— O que eu não estou vendo é o que tê m as re lig iões</p><p>com a s incopa deu de o m b ro s o c o m p o s ito r bastante</p><p>despe itado .</p><p>— Os e x tre m o s se to c a m , Jan jão . V e jo que você não</p><p>pode seguir bem o m eu pensam ento , mas eu resum o pra</p><p>você. . . Eu d ig o que todas as re lig iões são tec idas de</p><p>e lem en tos m o r tífe ro s . Dos qua is o m ais im p o r ta n te é a</p><p>co labo ração do pecado. V ocê repare que todas as p ro ib ições</p><p>e tabus são, a bem d iz e r, g ra tu ito s ; mas si nos parecem</p><p>g ra tu ito s , é p o rq u e não nascem das necessidades lógicas da</p><p>v ida , mas das insinuações fu tu ra s da m o rte .</p><p>— É a a legoria dos d o is cam inhos, Jan jão , o cam inho</p><p>largo f lo r id o , o ca m in h o e s tre ito e e sp inh en to : quem to m a o</p><p>ca m in h o gostoso vai p ro in fe rn o .</p><p>— Me lem b ro , Sarah L ig h t. Mas é que ju s ta m e n te a</p><p>s incopa é s is tem a ticam en te re je itada na litu rg ia m usica l das</p><p>grandes re lig iões organ izadas.</p><p>— Pois eu fa le i que os e x tre m os se to c a m : a s incopa é</p><p>da p ro fa n id a d e , é a co labo ração do pecado. A s incopa é do</p><p>a m o r, co m o se d iz .</p><p>— Mas o p ró p r io Bach, S iom ara , que é tã o s in c o p a d o '</p><p>nas peças p ro fanas, basta lem bra r o "C ra v o bem T e m p e ra d o ",</p><p>de ixa de ser s incopado nas peças re lig iosas, p r in c ip a lm e n te nos</p><p>cora is.</p><p>— Bach, m eu ca ro , co n tra o q ua l você m an ifesta uma</p><p>a n tip a tia que eu não posso co m p re en de r, a não ser que você</p><p>tenha inveja dele, o nosso p rezado João Sebastião Bach, era</p><p>m u ito m enos re lig io so do que a firm a m . O que ele fo i , em bora</p><p>honestam en te co m o p rá tica sexua l, o que ele fo i, mas fo i um</p><p>v ive d o r, isso sim . C om pare a re lig io s id ad e da m úsica dele</p><p>quase to d a , m esm o as pa ixões, a missa, e s o b re tu d o as peças</p><p>de ó rgão , com a re lig iã o cem vezes mais p ro fu n d a d u m</p><p>Palestrina. Mas não se esqueça que na v ida , e n q u a n to</p><p>Palestrina cu ltiva va rosas, Bach faz ia fi lh o s , v in te e um filh o s</p><p>e duas m ulheres. É possível d ize r que d e n tro da p rá tica</p><p>te rre s tre das re lig iões cristãs, Bach não fo i um lib id in o s o .</p><p>Mas ele d em onstra fre q u e n tiss im a m e n te aquela ps ico log ia do</p><p>"a n im a l t r is te " , dos excessos sexuais. T ip ic a m e n te nas peças</p><p>de ó rgão, de cará ter im p ro v is a tó r io , em que ele se libe rtava</p><p>do se n tid o litú rg ic o dos te x to s tra d ic io n a is , v ib ra a tr is teza .</p><p>Uma tr is teza fre n é tica , p o rque ele era um sanguíneo,</p><p>fis ica m e n te um fo r te . E não ra ro , nos seus p re lú d io s e toca tas</p><p>de órgão , sé não e x is te nenhum a sensualidade, ex is te o g r ito</p><p>do desesperado. C om pare com F rescoba ld i. E com V itó r ia e</p><p>com o p ró p r io H aydn ris íve l das missas, e po r m ais fa c ilm e n te</p><p>c o n tro lá v e l por estar p ró x im o de nós: com Cesar F ra n ck . Este</p><p>sim , era um re lig io so , até m esm o nas peças p ro fanas. E no</p><p>e n ta n to estou c ita n d o ita lia no s , espanhóis, gen te v ivedora ,</p><p>m u ito m ais sensual, estou c ita n d o la tin os . A evasiva</p><p>re lig ios idade de Bach te m um s im ile la t in o s im : mas este são</p><p>os p in to re s ita lianos do A lto R enasc im en to : R aphael, M igue l</p><p>A n jo , m enos Da V in c i, mas s o b re tu d o os verie^ianos,</p><p>Veronese, o T ic ia n o . Mas nunca T ie p o lo ! Bach é já p leno</p><p>século X V I I I , e os h is to ria d o res alemães ins is tem no in ve n ta r</p><p>nele e lem entos barrocos. Haendel sim , é a re lig io s id ad e do</p><p>B a rroco , m u ito m ais leg ítim a aliás, que a do A lto</p><p>R enasc im en to . Neste, so b re tu d o na Itá lia , nós vam os e n co n tra r</p><p>uma a rte re lig iosa fe ita por ateus, in te ira m e n te posta ao</p><p>serviço de interesses classistas, um a re lig iã o c in ica m e n te</p><p>agnóstica . Bach a té nisso é um a na c ró n ico , e está ao lado de</p><p>Raphael. Não "c o m p a rá v e l" a Raphael, mas e qu iparáve l a este.</p><p>A com paração é um dos e lem en tos m ais p recários de c r ít ic a ,</p><p>p o rq u e s is te m a tizan do as s im ilitu d e s e as oposições, cria</p><p>e lucidações festivas e des lum bran tes . O que não que r d ize r</p><p>que estas e luc idações sejam certas.</p><p>— Pelo c o n trá r io levam aos erros e às incom preensões</p><p>mais obtusas. N is to , ao m enos, eu estou c o m p le ta m e n te de</p><p>aco rdo com você.</p><p>— E q u a n to à s incopa? . . .</p><p>— Não sei, não sei! Estou de aco rdo em que a s incopa</p><p>é de fa to um a te nd ên c ia , po r assim d ize r, um a necessidade da</p><p>m úsica un iversa l co n te m p o râ ne a . O que não im pede que ela</p><p>seja o m a io r perigo da m úsica b ras ile ira e ru d ita . Mas não é</p><p>nisso, não é p ro p r ia m e n te na com pos ição que a m úsica</p><p>b ras ile ira vai pessim am ente. Não há dúv ida que ela apresenta</p><p>a lguns criadores de grande va lo r, e uma persona lidade genia l</p><p>com o* V illa Lobos. . .</p><p>— Mas n enhum conseguiu a grandeza duns "P in i d i</p><p>R o m a " ! (E co m o ele p ronunc iava bem o ita lia n o ! "R o m a "</p><p>lhe saiu com um erre fra c o , fra co . . . F e lix de C im a p o lí t ic o ,</p><p>descendente de ita lia no s , de ita lia no s não, da águia rom ana,</p><p>estava entusiasm ado. As narinas gordas dele pareciam asas de</p><p>peru b a te ba te nd o , recebendo m asoqu is tam en te as o rdens</p><p>fach ís ticas das m archas grossolanas do m u sso lin iza d o r m usical</p><p>de R om a:) O f in a l dos "P in i d i R o m a " é a m úsica m ais</p><p>d iv in a !</p><p>— E o " B o le ro " de Ravel? ' chasqueou o es tudan te .</p><p>— T am b ém ! ca iu o p o lí t ic o , m ais sensualizado a inda ;</p><p>enq ua n to Jan jão se sentia fra te rn o do e s tud an te ! Mas Sarah</p><p>L ig h t, sonhadoram en te :</p><p>— Vocês fa la ra m da s incopa , dos b ras ile iros , de</p><p>R espigh i, d o " B o le ro " , mas sejamos p rá tico s e o b je tivo s . O</p><p>que prova m esm o é a es ta tís tica . As "C ira n d a s " de V illa</p><p>Lobos podem ser um a obra p rim a , co m o Jan jão me</p><p>aconselha. . .</p><p>— A ún ica obra que fez o p iano avançar a lém dos</p><p>"P re lú d io s " de Debussy.</p><p>— Seja. Mas nem o " B o le ro " , nem R esp igh i, e m u ito</p><p>m enos V illa Lobos, consegu iram m etade das execuções, a</p><p>pe rfe ição e a p o p u la r id a d e do grande c o m p o s ito r S m ith van</p><p>K lugg ! S o b re tu d o da ópera cóm ica dele, "O s A m a n te s</p><p>S in co p a d o s".</p><p>T ab leau !</p><p>A ssim que a m ilio n á ria Sarah L ig h t le m b ro u o nom e de</p><p>S m ith van K lugg, o c o m p o s ito r mais cé lebre e ce leb rado , m ais</p><p>pop u la r e mais execu tado dos nossos d ias, houve um tab leau</p><p>no banque te . T odos se im o b iliz a ra m . Que se tra tava dum a</p><p>grande persona lidade m usica l de a rtis ta c r ia d o r, não havia</p><p>d úv ida , mas a im o b ilid a d e daqueles c in co com edores, em cada</p><p>um t in h a um se n tid o . A m ilio n á ria , p o r m ais p rá tica que os</p><p>o u tro s , se im o b iliz a ra sonhadoram en te (o te rm o é e xa to :</p><p>sonhadoram ente ) num a adesão to ta l. O p o lí t ic o F e lix de C im a</p><p>(fach is ta ) não era exa ta m e n te um a adesão, mas era um</p><p>adesivo. O es tudan te de D ire ito Pastor F id o , pegado de</p><p>surpresa, gostando sem que re r do m úsico ilu s tre , f ic o u a tó n ito ,</p><p>quase to m a d o de pavor. Asp irava a não gosta r, mas não se</p><p>d is tin g u ia , co n fu so . A can to ra S iom ara Ponga, essa cantava</p><p>sem pre as m elod ias fam osas de S m ith van K lugg , sucessos</p><p>garan tidos . Teve um gesto de im pac iênc ia repugnada (conhecia</p><p>tã o bem</p><p>o m úsico . . .), mas que ela estancou no m e io , pra se</p><p>to rn a r co n co rd a n te co m a sua v ida de v irtu o se . Mas o</p><p>c o m p o s ito r Jan jão , a rtis ta ve rd ad e iro , ign o ra d o e pob re , assim</p><p>que escutou o nom e de S m ith van K lugg , fo i com o um a</p><p>b o fe ta d a que ele recebeu. Jam ais em seu p u d o r, ousara analisar</p><p>co nsc ien tem en te , e ju lgara a obra do c o m p o s ito r fa m osíss im o .</p><p>E o to m o u uma vergonha eno rm e, f ic o u ru b ro . O go lpe fo i</p><p>m esm o tã o irresp iráve l, que ele p recisou fa la r, fa la r a lgum a</p><p>coisa, m udar de assunto, esquecer, va rrendo um m al-estar de</p><p>anão que viera b rin c a r sobre a to a lh a da mesa.</p><p>— Mas é um e rro to n to ju lg a r o estado dum a m úsica</p><p>nac iona l, e xc lu s ivam en te pelos seus co m p os ito re s . . . O Brasil</p><p>con ta co m a lguns co m p o s ito re s de m u ito va lo r, mas a m úsica</p><p>b ras ile ira vai pessim am ente p o rq u e não são os p icos isolados</p><p>que fazem a grandeza dum a c o rd ilh e ira . A A rg e n tin a , ta lvez</p><p>o C h ile , não conheço bem o C h ile , mas g a ra n tid a m e n te o</p><p>M é x ico , e o p ró p r io U rugua i, não apresentam um m úsico da</p><p>riqueza d o V il la ou do e q u ilíb r io de C am argo G u a rn ie r i; mas</p><p>não te m d úv ida que há um a m úsica a rgen tina , há uma música</p><p>m exicana , m u ito mais perm anentes, m u ito mais soc ia lm ente</p><p>fixadas que a b ra s ile ira . E n tão os Estados U n idos nem se</p><p>fa la !. . .</p><p>O que faz a m úsica dum a nação é um c o m p le x o de</p><p>e lem en tos : escolas, ensino , lite ra tu ra , c r ít ic a , e lem en tos de</p><p>execução, o rie n ta ç ã o consc ien te e p rede te rm inada de tu d o ; e</p><p>ta m b é m ex ig en te m e n te um p ú b lic o . E ta m b é m a im pressão de</p><p>m úsicas, e as casas de execução m usica l. . . E o que o Brasil</p><p>pode apresentar de ú t i l e de pe rm anen te em tu d o isso? O</p><p>Brasil te m , te rá , uns c in co ou seis co m p os ito re s</p><p>c o m p ro va d a m e n te de va lo r. Terá uns c in co ou seis v irtuoses</p><p>de p ia no com paráve is até aos v irtuoses in te rn a c io n a is , mas. . .</p><p>e o resto? Já q u a n d o estávamos to m a n d o o a p e rit iv o , e</p><p>apesar da exclusiva o p in iã o em c o n trá r io do sr. F e lix de C im a,</p><p>que é do gove rno , f ic o u m ais que denunc iada a d e fic iê n c ia do</p><p>nosso ensino m us ica l, não só p a u p é rr im o , mas p rin c ip a lm e n te</p><p>e rrado, a n tiq u a d o , ign o ra n te , que só não é n u lo p o rqu e é</p><p>p re ju d ic ia l, p o r in c o m p le to , in c o m p e te n te e desnac iona lizado r.</p><p>Já f ic o u d e n u n c ia d o que a c r ít ic a , a im prensa m usical de</p><p>jo rn a is e revistas, é to ta lm e n te vesga: pedan te , ensim esm ada,</p><p>p a rtid á ria , incapaz de assum ir qua lq ue r o rien ta ção n o rm a tiv a ;</p><p>g ra tu ita , incapaz de q u a lq u e r com preensão p ragm ática do seu</p><p>papel e d u ca tivo e da sua fu n çã o nac iona l. . .</p><p>E os v irtuo ses ! B om , fica assentado que eu não me</p><p>re f iro a S iom ara Ponga, que pertence ao d o m ín io de M en tira ,</p><p>esta nossa s im p á tica c ida d in h a da A lta Paulista , e não ao</p><p>Brasil, onde ela só en tra apresentando passaporte de</p><p>v irtuo se . . . in te rn a c io n a l. Mas, e os v irtuoses b rasile iros? No</p><p>R io , ta lvez pe lo fu n d a m e n to mais nac iona l das suas trad ições</p><p>m usicais, a inda a m úsica b ras ile ira é executada n o rm a lm e n te ,</p><p>mas em São P au lo ! É seguir os program as dos conce rtos</p><p>pau lis tas, é tê -los co le c ion ad os em casa co m o eu fa ço , pra</p><p>v e rif ic a r que a m úsica b ras ile ira só é execu tada em São Paulo</p><p>p o r o bed iênc ia a um a lei im p o s itiva do G o ve rno . Lei ú t i l , mas</p><p>cega. P a tr io te ira , mas sem n enhum se n tid o n ac io n a liza d o r,</p><p>d e ix a n d o p o rta abe rta a m il e um a tapeações, e fe cha nd o a</p><p>p o rta às rea lizações educaciona is . O que acontece? V a i ao</p><p>Brasil um H e ife tz , que jam ais c o g ito u do B ras il, senão aplauso</p><p>e d in h e iro , e o em presá rio lhe d iz que, p o r le i, te m que</p><p>e xecu ta r nos três o u q u a tro rec ita is do R io , e no ú n ico de</p><p>São Paulo (e ta n ta s vezes e xc lu s ivo dum a e n tid ad e p a rtic u la r) ,</p><p>um a m úsica b ra s ile ira . Q ue va lo r poderá nunca te r uma</p><p>im pos ição sem e lhan te ! E o grande v irtu o se tape ia tu d o . Se vê</p><p>o b rig a d o a tapear até a sua d ig n id ad e m ora l de v irtu o se , não</p><p>é m esm o, S iom ara Ponga? . . . Pede um a pec inha, mas um a</p><p>pecinha bem c u rta que ele deco re logo e se esqueça logo,</p><p>bem fá c il pra que não lhe dê tra b a lh o . E execu ta . Executa</p><p>pra execu ta r um a lei. De q u a lq u e r je ito . C hateado, sem o</p><p>m enor interesse, sem o m enor a m or. N o quê uma coisa dessas</p><p>pode a d ian ta r ao B ra s il! Mas por o u tro lado vá um v irtuose ,</p><p>vá uma e n tid a d e m us ica l, vá um c o n ju n to de câm ara pre tender</p><p>co nce rto s educaciona is . Poder pode, mas é um a d if ic u ld a d e .</p><p>Por causa da ta l le i.</p><p>A liás , nem precisa ser de p reocupação educativa um</p><p>co n c e rto . Não há nada de m ais p e jo ra tiv o ao B rasil, de mais</p><p>h u m ilh a n te m esm o, d o que um c o n c e rto q u a lq u e r, seja de</p><p>so lis ta , de q u a rte to ou de o rq ue s tra , d e n tro do p ró p r io Brasil.</p><p>D epo is de obras célebres e de longa m in u tag em , que to m a m</p><p>as duas p rim e ira s partes do co n c e rto , vem uma te rce ira parte,</p><p>com pos ta de obras m enores mas de b r i lh o grande e sucesso</p><p>g a ra n tid o . E é no m e io dessa b rilh a çã o da te rce ira parte que</p><p>se im iscu i, m e ted iça e desavergonhada, um a berceuse, um a</p><p>m o d in h a , um a c ira nd a , um p o n te io de c o m p o s ito r b ra s ile iro ,</p><p>pecinha bem p e q u e n in in h a , o rd in á r ia ; m e io m in u to apenas de</p><p>m iséria t ím id a , só e e xc lu s ivam en te su jando a pom pa</p><p>espe rta lhona do p rogram a . Pois é em obed iênc ia a uma lei</p><p>b ras ile ira que se consegue sem e lhante d esp re s tíg io do B rasil!</p><p>Não é que essas coisas não a d ia n te m nada à m úsica b ras ile ira :</p><p>o p io r é que a p re ju d ic a m , a d es troçam . Se in cu te no p ró p r io</p><p>p ú b lic o , com am ostras c lam orosas, a pobreza , a in fe r io r id a d e ,</p><p>a fe iú ra das m úsicas e dos co m p o s ito re s d o seu p ró p r io país!</p><p>Nasce um c o m p le x o de in fe r io r id a d e ju s to , ju s t if ic a d o ,</p><p>p rovado , que vai p re ju d ic a r q u a lq u e r isenção fu tu ra de</p><p>ju lg a m e n to , m esm o de obras im p o rta n te s e de grande va lo r. E</p><p>por causa disso, esse m esm o p ú b lic o , q u a n d o vê no a nú n c io</p><p>d u m c o n c e rto um a obra grande b ras ile ira , que to m a to d a uma</p><p>parte do p rogram a, se lem brando daque la o b r in h a suja, besta,</p><p>in fe c ta , que até lhe deu vergonha, no c o n c e rto passado, foge</p><p>do co n c e rto novo , co nve nc ido da po rca ria que vai o u v ir . Mas</p><p>o p io r d o p io r d o p io r é que o p ró p r io c o m p o s ito r b ra s ile iro</p><p>có m tu d o isso, nasce já b a tid o , escorraçado p o r essa consc iênc ia</p><p>de in fe r io r id a d e . R ea lm ente é p reciso ser um m u ito fo r te</p><p>m ús ico c r ia d o r (p o r d e n tro , entenda-se) pra no b o m b a rd e io de</p><p>tan tas e tam anhas fo rças co n trá rias , o c o m p o s ito r b ra s ile iro</p><p>a inda te r fo rç a , ou m e lh o r: te r a sem vergonh ice ilu m in a d a de</p><p>c r ia r o "M a ra c a tu de C h ic o -R e i" de F ranc isco M ig no n e , o</p><p>“ Q u in te to " de H e n riq u e O sva ld i, ou os "P o n te io s " de Cam argo</p><p>G u a rn ie ri, e te rna m en te não execu tados. Mas f ic o u acertado que,</p><p>p o r e xe m p lo , o “ P o n te io n9 1 " , d e lic io s o , c o</p><p>n c o rd o , mas</p><p>p e q u e n in in h o , recém -nasc ido , in s ig n if ic a t iv o d ia n te da</p><p>c o m p le x id a d e e da grandeza da série to d a , f ic o u acertado que,</p><p>na sua tran sc riçã o pra o rq ue s tra , pode m u ito bem salvar a ta l</p><p>lei que obriga a b o ta r uma obra nac iona l n um c o n c e rto</p><p>s in fó n ic o . Mas si esse P o n te io n9 1, so z in ho , já é</p><p>co m p le ta m e n te in s ig n if ica tivo d ia n te da m a g n ífic a série</p><p>co m p le ta dos "P o n te io s " , ao que não se re d u z irá ele</p><p>fa ta lm e n te , co m o depau pe ra m en to c r ia d o r c o lo ca d o ju n to da</p><p>a be rtu ra dos Mestres Cantores? Não há p ú b lic o no m un do</p><p>que seja su fic ie n te m e n te c u lto , pra re s is tir a sem e lhante prova</p><p>de in fe r io r id a d e e de m isé ria !</p><p>Em São Paulo en tão , apesar de en tidades púb licas com o</p><p>o C on se rva tó rio e o D e p a rta m e n to de C u ltu ra , que execu tam</p><p>n o rm a lm e n te m ais m úsica nac iona l, m esm o co m estes</p><p>exem p los e a im p o rtâ n c ia a tua l do D e p a rta m e n to , não há</p><p>m eios da música b ras ile ira se n o rm a liz a r nos co nce rto s . Ela se</p><p>to rn o u um a in ju n çã o de lei, e apenas. E eu sei: só vendo a</p><p>resistência que ce rto s agrupam en tos m usica is, s o b re tu d o os de</p><p>câm ara, fazem pra execu ta r q u a rte to s , co ra is , t r io s de</p><p>co m p o s ito re s b ras ile iros . Assum em to d o s eles a titu d e s</p><p>id io ta m e n te estéticas, na verdade pra m ascarar seus interesses</p><p>fin a n ce iro s de sucesso p ú b lic o . E ga ran tem , co m verdade</p><p>in d is c u tív e l, que os q u a rte to s de B eethoven ou de M o za rt são</p><p>m elhores, p ude ra ! Mas no fu n d o , m esm o esta a t itu d e</p><p>“ e s té tic a " liv re , d e tu rp a d o ra da verdade da m úsica, p re ju d ic ia l</p><p>sob q u a lq u e r p o n to de vista socia l, m esm o de un ive rsa lidade ,</p><p>não passa dum a máscara. Não estão se in c o m o d a n d o lá m u ito</p><p>com valores esté ticos, que nem sabem e xa ta m e n te qua is são.</p><p>Estão é se in c o m o d a n d o cons igo m esm os, co m a sua</p><p>ju s t if ic a tiv a de sucesso p ú b lic o , po is que B ee thoven , M o za rt, o</p><p>p ú b lic o já conhece, já com preende e ap laude . Estão se</p><p>in co m o d a n d o é com o seu bem -bom , com a sua pregu iça de</p><p>estudar e de in te rp re ta r. Porque na verdade, in te rp re ta r um</p><p>Ravel, e m esm o um Cesar F ra n ck , exige m u ito mais</p><p>co n h e c im e n to té c n ic o de m úsica, e m u ito m ais es fo rço até</p><p>fís ic o , do que d o rm ir no le ro -le ro d u m B e e tho ven z inh o . . .</p><p>q ua lq ue r. Não é que um M oza rt seja mais fá c il de in te rp re ta r</p><p>que um Schoenberg. Mas é que para um p ú b lic o , já nem d igo</p><p>o p ú b lic o b ra s ile iro , mas um p ú b lic o a té de nação</p><p>m us ica lm en te c iv iliz a d a : um Debussy mal in te rp re ta d o se</p><p>d e s tró i, ao passo que não se d e s tró i um Beethoven nem um</p><p>H aydn executados q u a lq u e rm e n te . Porque o p ú b lic o já escuta</p><p>de-cor.</p><p>Eis a verdade nua e crua a respe ito dessa parte</p><p>v ita lm e n te decisiva de uma m úsica nac iona l, que é a exeo</p><p>das obras. O Brasil apresenta sim a lguns grandes v irtuoses uc</p><p>p iano . Mas não apresenta a tu a lm e n te nen hu m grande v irtuo se</p><p>de v io lin o ; e o m e lh o r de to d o s , Oscar B o rg e rth , quase</p><p>desapareceu a fu n d a d o num a n o n im a to de ensino . N o can to é</p><p>a mesma coisa: a lguns v irtuoses de va lo r, não há d ú v id a , mas</p><p>nenhum va lo r s ig n if ic a tiv o , que dê ao m enos a esperança de</p><p>um a a be rtu ra de escola. E é só o que o Brasil te m . Q uarte tos</p><p>de vida perm anente , um só em São Paulo. T r io s , no</p><p>m esm íssim o caso. Cora is no m esm íssim o caso, só o Coral</p><p>P aulis tano. A g ru p a m e n to s m ad rig a lís tico s , néris. O resto é</p><p>fan tasm a, ilusão pura.- E m esm o com o C ora l P au lis tano , o</p><p>incon tes táve l é que o Brasil está inca pa c itad o de qua lque r</p><p>execução co ra l mais im p o rta n te , que ex ija v irtu o s id a d e e</p><p>e lem en to n u m érico , os o ra tó r io s , as paixões, as missas, e as</p><p>grandes peças cora is con tem porâneas. E q u a n d o a lgum</p><p>sonhador m a luco im agina rea liza r aqu i um a Nona S in fo n ia , é</p><p>um ta l de cam pear am adores de cam bu lhada com can ta rinos</p><p>de igreja, co ris tas c h ic h ilia n o s de te a tro , e solistas</p><p>ensim esm ados, c o n ú b io de que resu ltam apenas a b o rto s e</p><p>a le ijões ho rrendos . Pra qua ren ta e ta n to s m ilh õe s de</p><p>hab itan tes , um co ra l (p o rq u e os cora is escolares do V illa tê m</p><p>o u tra fu n c io n a lid a d e , não c o n ta m )! Pra qua re n ta m ilhões de</p><p>hab itan tes , um c o ra l, um q u a rte to , um t r io perm anentes, e</p><p>to d o s apenas dum a c idade , a lguns v irtuoses so listas de p iano ,</p><p>de ca n to , de v io lin o . E é só.</p><p>— Mas as o rquestras , Jan jão , as o rquestras !</p><p>— Eu nem que ria fa la r, senhor p o lí t ic o ; mas o senhor</p><p>me p rovoca , pois eu fa lo :</p><p>E Jan jão p r in c ip io u fa la n d o :</p><p>— O p rob lem a das orquestras no B rasil, assim co m o vai,</p><p>não se so luc iona . A n te s de m ais nada, te m o s que reconhecer</p><p>honesta m en te um a verdade assustadora: apesar dos seus mais</p><p>de q ua ren ta m ilhões de hab itan tes , apesar de possu ir duas</p><p>cidades m e tro p o lita n a s que já passaram o m ilh ã o , o Brasil</p><p>não possui um a só grande o rq ue s tra . Já nem e x ijo , está c la ro ,</p><p>que ele tenha um a o rquestra com paráve l co m a de B os ton ,</p><p>e n fim , um a o rq ue s tra que fosse das m aiores do m u n d o . Não</p><p>se tra ta d isso : o B ras il, nem no R io , nem em São Paulo ,</p><p>m an tém um a o rq ue s tra que seja "g ra n d e " , no se n tid o de</p><p>possu ir capacidade técn ica para execu ta r q u a lq u e r obra</p><p>s in fó n ic a . Isso não é apenas las tim áve l: é um a vergonha , uma</p><p>fa lha absurda, que co loca a m úsica b ras ile ira em situação</p><p>m u ito in fe r io r à d o U rugua i. Já nem me re f iro à A rg e n tin a e</p><p>ao M é x ico , cu ja o rq ue s tra , ve jam bem , já fo i a p rove itada por</p><p>grandes casas gravadoras, a té pra reg is tra r m úsica e u rop é ia ! A</p><p>s ituação o rq u e s tra l do B rasil, ou m ais s im p lesm en te , das suas</p><p>duas grandes cidades m e tro p o lita n a s , p o rqu e , o res to não</p><p>c o n ta , é s im p lesm en te vergonhosa. E em São Paulo , então,</p><p>não só a capacidade s in fón ica da sua o rq ue s tra é m u ito ba ixa ,</p><p>co m o está em plena decadência . Mas d e ixem os a pob re São</p><p>Paulo de lado. C om parem os o R io co m a nossa m e lh o r</p><p>M e n tira .</p><p>Não é exa ta m e n te que as o rquestras do R io sejam</p><p>te cn ica m e n te m u ito m e lhores que a de M e n tira , sem pre o são</p><p>bastan te , mas no R io existe m u ito m a io r a tiv id a d e ; e a lu ta</p><p>heró ica da O rquestra S in fó n ica B ras ile ira , está despe rtando lá</p><p>um interesse, e p ro d u z in d o um a em u lação, que p od em dar</p><p>ó tim o s resu ltados. U m deles, rea lm en te e sp lênd ido , é a</p><p>co n s tru çã o do Palácio da M úsica, com duas grandes salas</p><p>ded icadas e xc lus ivam en te à execução m usica l, a lém d um</p><p>pequeno te a tro para o d ram a. Não há dúv ida que a vida</p><p>o rq u e s tra l do R io de Jane iro é a tu a lm e n te m u ito g rande, e</p><p>pode ser com parada ao que fo i a a tiv id a d e s in fó n ica pau lis ta</p><p>a li p o r 1929 , q ua n d o São Paulo chegou a te r três o rquestras.</p><p>Será fecunda? Deus que ira , mas a inda não se pode g a ran tir</p><p>coisa nenhum a. N o B rasil não m edra es fo rço em c o n tin u id a d e ,</p><p>a inda não ex is te um a verdadeira consc iênc ia p e rm anen te de</p><p>c u ltu ra , e as in ic ia tiva s e progressos, po r q u a lq u e r m o tiv o , e</p><p>às vezes sem m o tiv o n enhum , de repen te v ira m</p><p>água e</p><p>m o rre m . O caso de São Paulo é t íp ic o . Os pau lis tas já tive ra m</p><p>três o rquestras , e ho je , ca to rze anos de progresso a mais, e a</p><p>bem d ize r não possui nenhum a. Quais as razões do que</p><p>sucede em São Paulo , co m o sucede a q u i em M en tira?</p><p>A n te s de m ais nada, a cu lpa cabe aos poderes p úb lico s ,</p><p>que não tê m a m en or espécie de conv icção c u ltu ra l. . .</p><p>— E n tã o eu não te n h o conv icção c u ltu ra l! b e rro u o</p><p>p o lí t ic o in d ig n a d o .</p><p>Jan jão f ic o u e nca bu la d íss im o , a té se esquecera da</p><p>presença de F e lix de C im a ! Mas o estudan te sa lvou o</p><p>c o m p o s ito r, jo g a n d o c in ic a m e n te :</p><p>— Jan jão está fa la n d o nos "P oderes P ú b lic o s " , seu F e lix .</p><p>Não se tra ta d o senhor, q ue é um p o lí t ic o p ro te to r das artes.</p><p>Ele se re fe re às fo rças p úb lica s , os o u v in te s , os ca p ita lis tas . . .</p><p>— A h n , resm ungou o p o lí t ic o , não m u ito co n ve n c id o .</p><p>— Seja o que fo r . . . mas eu a f irm o que os poderes</p><p>p ú b lico s de M e n tira não tê m a m enor espécie de co nv icção</p><p>c u ltu ra l. E si a lg um aparece n u m c o n c e rto , ign o ran tes e</p><p>b u rro s c o m o são, escuta um a P ro to fo n ia à bessa d o G uaran i,</p><p>e sai co n v e n c id o de que a o rq ue s tra é a m e lh o r d o m un d o ,</p><p>nem T o s c a n in i! Está m ais que p ro vad o que nenhum a grande</p><p>o rq ue s tra se sustenta sem a p ro te çã o dos gove rnos ou dos</p><p>ca p ita lis ta s . N ós te m o s que p ô r os ca p ita lis ta s de p a rte ,</p><p>p o rq u e eles já se d e d ica ram c o m p le ta m e n te à ca ridade ,</p><p>p ro te g e n d o as fo rça s negativas da v ida , m end igos, ve lh ice</p><p>desam parada, d oe n te s incuráve is . Só podem os c o n ta r co m o</p><p>G o. . . q ue r d iz e r, co m os poderes p ú b lic o s , c o m o disse o</p><p>Pastor F id o . Ora os poderes p ú b lico s são to ta lm e n te ignaros,</p><p>não sabem o que é um a o rq u e s tra ; e c o n ta n to que haja</p><p>q u a lq u e r s im u la c ro de o rq u e s tra pra ta p a r a boca dos jo rna is ,</p><p>b a s ta ./E a o rq u e s tra de M e n tira é apenas u m s im u la c ro .</p><p>M ã ^ s i a cu lpa p r in c ip a l é dos poderes p ú b lic o s , f r u to</p><p>de ignorânc ia e in c o m p e tê n c ia , po is que sem pre e x is te um</p><p>s im u la c ro de o rq u e s tra : a q ue m cabia co n v e rte r essa palhaçada</p><p>em ftYúsica ve rdade ira? A quem cabia o r ie n ta r a p ro te çã o dos</p><p>poderes púb lico s? Cabia aos m úsicos. Cabia aos professores de</p><p>o rq ue s tra e aos regentes. Cabia ta m b é m aos s in d ica to s , aos</p><p>qua is não co m p e te apenas c u id a r da s ituação económ ica dos</p><p>seus s ind ica lizad os , mas ta m b é m da d ig n id a d e da classe. Mas</p><p>essa gente não faz nada de nada, p o rq u e as m inúscu las</p><p>reclam ações que gem em , no s e n tid o de m e lh o ra r te cn ica m e n te</p><p>a o rq u e s tra de M e n tira , eles m esm os d es troça m logo, com todos</p><p>os esforços que fazem ju s ta m e n te p ra que a s ituação não m elhore .</p><p>Por e x e m p lo : Que e s fo rço fazem s ind ica to s , regentes e</p><p>p r in c ip a lm e n te os e xecu tan tes , no se n tid o de a lcançar qua lque r</p><p>espécie de d is c ip lin a ? . . . Os regentes b e rra m , se descabelam ,</p><p>mas. . . têm que reger! E acabam a ce ita nd o tu d o assim mesmo.</p><p>— Mas si m u ito s regentes estrange iros tê m e logiado a</p><p>o rq ue s tra de M e n tira !</p><p>— C om o? o n d e ! senhor F e lix de C im a ! Isso é o u tro</p><p>tra b a lh in h o , que o p ró p r io S in d ic a to devia p ro ib ir às</p><p>entidades s ind ica lizadas, si se decid isse a d e fe n d e r a d ig n id ad e</p><p>da classe. Q uem jam ais v iu um regente es trange iro ir na</p><p>A rg e n tin a , no U rugua i, no C h ile , sen tir saudades da o rquestra</p><p>de M en tira ? Q uem jam ais verá um regente , a té a í d o Brasil</p><p>p ró x im o , p re te r ir , p o r sua p ró p ria vo n ta de , a o rq u e s tra de</p><p>M en tira pra q u a lq u e r execução? Mas sucede que q u a n d o um</p><p>regente de fo ra passa por a q u i, e, enganado, dep o is de</p><p>pe rgu n ta r de longe várias coisas, si a o rq u e s tra é c o m p le ta ,</p><p>si te m harpa, si está em cond ições de e xecu ta r m odernos , e</p><p>receber respostas to ta lm e n te m entirosas, q ue s im , que sim ,</p><p>que aqu i te m tu d o e do m e lh o r: sucede que esse regente , já</p><p>assinado o c o n tra to , já em aranhado na rede, chega a q u i, e dá</p><p>de e n c o n tro à b a rre ira de um a to ta l in d is c ip lin a , dá de</p><p>e n c o n tro à an im os idade , à in d ife re n ça , à ign o râ n c ia , à</p><p>inco m p e tê n c ia técn ica a té dos naipes m ais fáce is, c o m o os</p><p>v io lin o s . . . O que fazer? V a i um jo rn a lis ta z in h o e n tre v is ta r o</p><p>" i lu s t re re g e n te ", e pe rgun ta o que ele pensa da nossa</p><p>o rq u e s tra ; o quê que ele vai resp on de r! V e jam bem a</p><p>s ituação ! Si já está e n c o n tra n d o as m aiores d if ic u ld a d e s , si</p><p>te m um c o n tra to pela fre n te , si te m to d o o p a tr io t is m o</p><p>nac iona l pela fre n te , si já te m to da a d is p lic ê n c ia dos regentes</p><p>estrange iros que passaram por aqu i antes de le , e e lo g ia ra m :</p><p>en tão esse d e s in fe liz a inda vai p ro cu ra r m ais sarna pra se</p><p>coçar? Deus te liv re ! acha tu d o m u ito b o m , o rq ue s tra</p><p>d isc ip lin a d íss im a , to d o s os m úsicos chegam na hora pros</p><p>ensaios, n inguém sai antes de acabar ensaio, n in gu ém fa lha , são</p><p>uns heró is , uns santos, uns técn icos estupendos, uns heró is</p><p>sacrificados e ora bo las! Na verdade esses regentes não que rem</p><p>se in co m o d a r, mas vá escutar o que eles fa la m co m os</p><p>ín tim o s? D izem o d ia b o . O que que r d ize r que d ize m a</p><p>verdade. E si a lguém qu ise r que, no d ia da p a rtid a , ele de ixe</p><p>as im pressões no á lb u m de v is itas de a lgum a ca m a rilh a com</p><p>bastan te audácia pra p e d ir e lo g io : po is não! escrevo e assino</p><p>que a o rq ue s tra de M e n tira é ó tim a , ta n to m ais que estou</p><p>ju ra n d o pela mãe que nunca v o lta re i neste d o m ín io .</p><p>C om pe tia aos p ró p r io s m úsicos co m p re e n d e r e m o d if ic a r</p><p>a s ituação, te cn ica m e n te . Mas é im poss íve l. A p ró p r ia</p><p>s ind ica lização , que pod ia ser um g rande bem , se to rn o u um</p><p>e m p e c ilh o . A m úsica v iro u um e x lcu s ivo interesse fin a n c e iro ,</p><p>mais nada. São m ise rave lm en te p ro te g id o s pelos poderes</p><p>pú b lico s , reconheço , mas isso por acaso im p ed e o e x e rc íc io da</p><p>d isc ip lin a ? E haverá u m lo u co no m u n d o que tenha o descoco</p><p>de d ize r que a o rq u e s tra de M en tira é d is c ip lin a d a ? S iom ara</p><p>Ponga, você já soube nunca dum a o rquestra cu jo v io lino -espa la</p><p>derrubasse o a rco da m ão; cuja p rim e ira v io la se gabasse de</p><p>te r to c a d o o u tra m úsica d u ra n te uma execução p ú b lic a ; que</p><p>in fo rm asse p ro estrange iro te r uma harpa e não te r; cu jo</p><p>regente, na hora m arcada do ensaio, achasse apenas uns</p><p>q u a tro ou c in co professores no te a tro ? Parece m e n tira . . . Pois</p><p>as duas p rim e ira s coisas se deram em M e n tira , e as duas</p><p>ú lt im a s se dão !</p><p>De resto , não se faz o rques tra com p ro te c io n is m o . Si</p><p>um b o m b e iro é ru im b o m b e iro , pode ser m u ito s im p á tico etc.</p><p>e ta l, mas não é conservando ele na o rques tra que se conserva</p><p>a d ig n id ad e do b o m b o , dos o u tro s m úsicos, da m úsica e d um</p><p>s in d ica to . Si o to ca d o r de caracaxá está d oe n te , não pode</p><p>mais to ca r bem , é preciso s u b s titu ir o to c a d o r de caracaxá, e</p><p>não conservá-lo na o rq ues tra por. . . por ca ridade !</p><p>P ro te ja m o -lo , está c la ro , mas conservá-lo na o rq ues tra é um</p><p>c rim e d u p lo : aum enta a</p><p>tu b e rcu lo se do m úsico e aum en ta a</p><p>tu b e rcu lo se da o rques tra . É preciso que nos convençam os de</p><p>que não se faz a rte com caridade, nem se sacrifica uma a rte</p><p>co le tiva po r causa de três ou q u a tro in d iv íd u o s . Si ex is te em</p><p>M en tira um ú n ico harp ista que está na m iséria e toca m al, e a</p><p>o rq ues tra precisa de harp is ta , é preciso m andar buscar fo ra</p><p>o u tro in s tru m e n tis ta . A o rques tra de M en tira é a tu a lm e n te um</p><p>a le ijão da c idade. O nosso m a io r a le ijão m us ica l, dada a</p><p>im p o rtâ n c ia , técn ica e co le tiva do s in fo n ism o . Nós estam os</p><p>co m e ten d o um c rim e , tra ta n d o com a d isp licê nc ia que</p><p>tra ta m o s , o m a io r e mais p rem ente p ro b le m a da nossa</p><p>execução m usica l. E estão convocados nesse c r im e ta n to os</p><p>poderes p úb lico s , ta n to a c r ít ic a que não esclarece, ta n to as</p><p>sociedades de c u ltu ra , co m o os p ró p r io s m úsicos da o rques tra .</p><p>Estes, si não são cu lpados exa tam en te da ind igênc ia o rgân ica</p><p>da o rq ues tra de M en tira , são os m aiores cu lpados da sua</p><p>ind igênc ia técn ica . Você me descu lpe, Sarah L ig h t, o senhor</p><p>me descu lpe si puder, senhor p o lí t ic o F e lix de C im a , mas a</p><p>respe ito do estado s in fó n ic o de M en tira é isso o que eu</p><p>penso. E com d o çu ra : Si estivesse n o u tro lugar, eu d ir ia</p><p>ce rta m e n te coisas a inda m ais ásperas. . .</p><p>Jan jão estava exausto . A f in a l das con tas , p raquê que ele</p><p>estava naquele banquete? Era pra cap ta r a s im pa tia do</p><p>p o lí t ic o , a p ro teção de to d o s , mas ele bem perceb ia que cada</p><p>vez se a fundava mais. Estava exausto do es fo rço que fize ra '</p><p>pra vencer seus interesses jus tos , d ize n d o a verdade, m esm o na</p><p>certeza de recusar pra sem pre a p ro teção dos donos da vida</p><p>que co m iam a li. Mas de repen te os o lh os dele b rilh a ra m</p><p>m u ito , Jan jão so rriu . É que bem d o fu n d o daque le m o n tã o de</p><p>ossos fa tigados , eis que ve io nascendo, cresceu num á tim o ,</p><p>e s tro n d o u a tu rd in d o os o u v id o s do a rtis ta lhe re lu m e a n d o nos</p><p>o lh o s fa zen do ele s o rr ir, um o rg u lh o p ro d ig io so que cu ro u</p><p>tu d o . Jan jão f ic o u p e rfe ita m e n te bem d isp os to . Mas a v irtu o se</p><p>S iom ara Ponga so fria . C om o v irtu o se que era, ela sem pre</p><p>tive ra c iúm es de to d o s , de to d o s os v irtuoses, de to d o s os</p><p>ricaços, de todas as m ulheres bon itas . Por isso m esm o que</p><p>cé lebre e de grande va lo r, ela t in h a , em grande, a fa ta lid a d e</p><p>dos v irtuo ses : era to d a c iúm e e despe ito . Mas pela p rim e ira</p><p>vez agora, d ia n te daque le a rtis ta ve rdade iro , que tin h a a</p><p>m a lu q u ice de se d estroça r em fa vo r da a rte , ela so freu o</p><p>s e n tim e n to igno rado da inve ja , so freu . O u gozou . . . U m ru b o r</p><p>q ue n te lhe desm anchou as faces bem p in tadas. E aquela</p><p>m u lh e r tã o f r ia , f r ia , sen tiu um a rd o r po r d e n tro . N aque le</p><p>ins tan te ela era capaz de gostar m ais da vida que de si</p><p>m esm a, se a p a ixo n a r, se en tregar. Mas isso, le m b ro u logo,</p><p>havia de lhe desm anchar os cabelos bem penteados. Deu um</p><p>je it in h o no ves tido e e s frio u rá p id o . F ico u m uda , m is te riosa ,</p><p>im passíve l co m o a D em ocrac ia . O p o lí t ic o e a m ilio n á ria</p><p>estavam irr ita d íss im o s . Mas o es tudan te adorava.</p><p>E xposta a s ituação técn ica de fe ituos íss im a da m úsica</p><p>b ra s ile ira , é possíve l v o lta r agora ao estudo da com pos ição</p><p>m usica l. Não m ais im p o r ta n te que o resto , p o rém mais</p><p>pe rm anen te co m o rea lização de um povo . N o tem os antes de</p><p>m ais nada que o a p a re c im e n to de co m p os ito re s b ras ile iros não</p><p>é nem co ns ta n te nem n u tr id o . A m úsica se a lim e n ta de levas</p><p>de co m p o s ito re s , co m fa lhas assustadoras de gerações in te iras.</p><p>Parece o ca feza l, que depo is dum a safra eno rm e, se esgolfa e</p><p>leva do is , três anos quase sem p ro d u z ir. Mas si is to é ju s to e</p><p>exp licáve l no pé de café não seria ju s t if ic á v e l na criação</p><p>hum ana, si não fossem as d e fic iê n c ia s técn icas da m úsica do</p><p>B rasil e as d e fic iên c ias p rá ticas gerais do país. Vocês reparem :</p><p>o B rasil a bem d ize r não te m "n o v o s " a tu a lm e n te ! Há um a</p><p>geração im p o r ta n te , que a inda v ive e p ro d u z . Pertencem a essa</p><p>safra de m úsicos, V illa Lobos, L ou re nço Fernandez, F ranc isco</p><p>M ignone , A r th u r Pereira, Assis R ep ub lica n o , Ja im e O va lle ,</p><p>C am argo G u a rn ie ri, pra c ita r os mais conhec idos. Mas quase</p><p>to d o s estes a rtis ta s tê m mais de qua ren ta anos o u estão m u ito</p><p>p ró x im o s disso. E depois? Q uais os novos? Q ual a safra</p><p>ro d a n d o ho je pe los t r in ta anos, que possa se co m p ara r com o</p><p>va lo r a esse g rupo? E a inda p io r qua is os novíss im os,</p><p>v o lt ija n d o pelos v in te anos, que p ro m e ta m grande esperança?</p><p>Não há. E x is te m o u tro s m úsicos, eu sei, mas não é possível</p><p>pe lo que já p ro d u z ira m ou pe lo que p ro m e te m , g a ra n tir</p><p>q u a lq u e r fu tu ro que se equ ipare ao presente de um M ignone</p><p>ou de u m V il la Lobos. Pode ser que dê um esta lo de V ie ira</p><p>em q u a lq u e r desses novos ou novíss im os, mas eu não posso</p><p>d e p o s ita r um a garan tia na esperança dos estalos. E o que é</p><p>m ais d o lo ro s o : to d o s esses c o m p o s ito re s c ita d o s v ivem no R io</p><p>e em São Paulo , e quase to d o s nasceram na área de irrad iação</p><p>dessas cidades. E o resto desse país im enso ! Será possíve l que</p><p>só pau lis tas e cariocas te n h a m o d o m da m úsica? U m</p><p>N ep om u cen o no N o rte , um V iana no Su l, o u tro V iana em</p><p>M inas, p rovam o c o n trá r io , graças a Deus. As causas são</p><p>o u tras , e v id en te m e n te .</p><p>A q u i e n tra m c e rta m e n te as razões p rá ticas. C om o, en tre</p><p>m u itas , a ausência de co m un icações e viagem ráp idas no</p><p>B ras il. S i R io com São Paulo são x ifópagas co m hora e meia</p><p>de avião e um a n o ite de n o tu rn o h o rre n d o , to da s as ou tras</p><p>C ap ita is , a bem d ize r são núcleos isolados. E núc leos de uma</p><p>in fe r io d a d e v io le n ta , c o m o m úsica. De to rm a que , pela sua</p><p>p ró p r ia d e fic iê n c ia , e iso la m e n to , esses núcleos não " in d u z e m "</p><p>à com p os içã o e ru d ita . Si é péssima a s ituação té cn ica da</p><p>m úsica p au lis ta , si a inda é m u ito ru im em bora m enos, a</p><p>s ituação técn ica da m úsica do R io , sem pre as duas cidades</p><p>m e tro p o lita n a s a inda dão a lgum a razão-de-ser à c riação m usical</p><p>c u lta . Mas nas o u tra s C ap ita is , a s ituação técn ica é tã o</p><p>p recária que m ata o in s t in to c r ia d o r. As o rq u e s tr in h a s mais</p><p>que im p e rfe ita s , o c o m p a d ris m o dos rád ios loca is id io ta s</p><p>m a m ífe ro s de d iscos, a im p o ss ib ilid a d e de q u a rte to s , a</p><p>ine x is tên c ia de co ra is , o le ro -le ro m o d e s to z in h o dos v irtuoses</p><p>de a rraba lde , o "p a s s a d is m o " d o p ú b lic o (basta seguir os</p><p>p rogram as dos co nce rto s das ou tras C ap ita is) que não te m o</p><p>ch oq ue presente , de c o rp o presente, das tendênc ias vivas, tu d o</p><p>m ata a c riação . E a p ró p r ia d if ic u ld a d e de se in s tru ir para o</p><p>m ús ico , que não escuta, e o que é p io r, está inca pa c itad o de</p><p>estudar e analisar um a p a r t itu ra de Schoenberg , de L ou re nço</p><p>Fernandez ou de C o p la n d , m u ita s das qua is não impressas, as</p><p>o u tra s d if íc e is de o b te r. E assim , o c o m p o s ito r da C ap ita l do</p><p>Estado de S om bra Grossa, co m seus tre z e n to s e c inq ue n ta m il</p><p>hab itan tes , que</p><p>já p o r si sabe m enos p o rq u e não pode se</p><p>in s tru ir d ire ito e que não consegue nenhum a esperança de ser</p><p>e xecu tado , esse m ús ico possíve l, não sente o "a n c h 'io sono</p><p>p it to r e " , e nem pensa em c o m p o r. A não ser um a Ave-M aria</p><p>pra ser cantada pela se nhorinha dona C a r lo tin h a Pêssegos, na</p><p>igreja de Santa C a ta rina , que é a m ais p ró x im a .</p><p>— Mas Jan jão , esse m esm o estado de coisas se re fle te</p><p>nos d o is ce n tros m e tro p o lita n o s , São Paulo e R io , in te rve io a</p><p>can to ra S iom ara Ponga. Basta você observa r a c riação musical</p><p>de do is c o m p o s ito re s tã o bem d o ta d o s c o m o Ja im e O valle no</p><p>R io , c A r th u r Pereira em São Paulo . V ocê repare, Ja n jão : há</p><p>um a ta l ou qua l incong ruênc ia e n tre a te n u id a d e e cu rteza de</p><p>pensam ento m usica l de um Ja im e O va lle , e o re ve s tim e n to</p><p>h a rm ó n ic o inda por c im a re so lu ta m e n te a co rd a i, que ele lhe</p><p>dá. C urteza de pensam ento m usica l não é d e fe ito , é ca rá te r:</p><p>basta lem bra r S ch um a nn , M a lip ie ro e o p ró p r io H a yd n . Me</p><p>lem bro d u m desses ensinadores de fazer versos d ize r que não</p><p>se pode c o m p o r em a le xa n d rin o s um a poesia sobre as</p><p>de licadas v io le tas . Está c la ro que não é bem isso, mas, em</p><p>p r in c ip io esse tra ta d is ta escu tou can ta r o galo. É possíve l</p><p>fazer um a le x a n d r in o , a lado e tê nu e co m o um a v io le ta , o u é</p><p>possível t ira r to d o um dram a p ro fu n d o dos o lh o s dum a</p><p>v io le ta , assim co m o não é po r te r seis ou sete sons que um</p><p>acorde é pesado. Basta lem bra r que a ju n ta n d o c in c o terças,</p><p>D ebussy fa z acordes dum a aeridade m arav ilhosa . O ra num</p><p>C ata lan i co m o em o u tro s a inda m ais m o n ó to n o s harm on is tas ,</p><p>tan tas vezes as duas terças d u m acorde de tó n ic a pesam várias</p><p>tone ladas. . . T u d o depende da sequência h a rm ó n ica e da</p><p>d ispos ição sonora d o acorde . Is to é que me parece fa lta a</p><p>Ja im e O va lle , no seu pequeno c o n h e c im e n to té c n ic o de</p><p>h a rm on ia e p rá tica do p ia no , e que a sua in tu iç ã o m usica l</p><p>não consegue rem ed ia r. C om o rem edeia tan tas vezes em V illa</p><p>Lobos. Certas canções m e lo d ica m e n te de lic iosas de Ja im e</p><p>O va lle , se to rn a m quase insupo rtáve is de ca n ta r p o rqu e</p><p>enquilosadas num a c o m p a n h a m e n to opaco , c o m p a c to , g o rd o e</p><p>desam ável, ta n to ha rm ó n ica co m o p ia n is tica m e n te , em to ta l</p><p>desacordo co m as suas linhas m e lód icas , no geral cu rtas e</p><p>pouco ou nada d ram á ticas . E no e n ta n to de lic iosas ! Já o</p><p>caso de A r th u r Pereira não é esse m esm o de d e fic iê n c ia de</p><p>técn ica ha rm ó n ica ou p ia n ís tica , mas t íp ic o d o a u to r que</p><p>não é e xecu tado . A r th u r Pereira é um te m p e ra m e n to</p><p>p o é tic o , in f in ita m e n te d e lica d o , aéreo, d iá fa n o , d u m a</p><p>lum in o s id a d e mansa de sol através da n e b lin a . Mas o a m b ie n te</p><p>local de São Paulo lhe c o rta as asas! N ão é té c n ic a que</p><p>fa lta , se percebe. A r th u r Pereira possui a té cn ica m ais que</p><p>bastante para rea liza r o ca rá te r da sua persona lidade , que</p><p>não exige cora is nem grandes o rquestras. Mas ele pede um</p><p>a m b ie n te re fin a d o e s u fic ie n te m e n te e ru d ito , p ra d is t in g u ir</p><p>que um a d ia fa ne id a de pode valer ta n to co m o o e s tro n d o</p><p>d u m W agner. Mas esse p ú b lic o de e lite não e x is te em</p><p>São Paulo . Estou co nve nc ida que n o u tro s am b ien tes</p><p>europeus m ais va riados, estes do is c o m p o s ito re s se</p><p>rea liza ria m co m p le ta m e n te , em obras adm iráve is mas sem</p><p>b a ru lh o . N inguém te m obrigações de possu ir o gên io de um</p><p>João Sebastião Bach.</p><p>— Nisso m esm o que eu que ria chegar, S iom ara Ponga. A</p><p>d e fic iê n c ia técn ica das cidades do B rasil, a d is tân c ia não c o rr ig id a</p><p>peia fa c ilid a d e e ba ra team en to dos tran spo rtes , não é o gên io ,</p><p>o gên io fa ta liz a d o , que isso im pede de nascer e p ro d u z ir . O gên io</p><p>acaba sem pre a b r in d o o seu ca m inh o . O que está não só</p><p>p re ju d ica d o , mas ve rdade iram en te im p e d id o no B rasil, é a p ro du ção</p><p>do c o m p o s ito r " n o r m a l" , do apenas "e x c e le n te c o m p o s ito r " , dos</p><p>num erosos "b o n s " co m p o s ito re s norm a is , que são os que n u tre m e</p><p>fazem o c o rp o de uma m úsica nac iona l. Não é D ebussy que faz a</p><p>verdade grand iosa da m úsica francesa. E le apenas a coroa</p><p>lu m in a ria m e n te , co m o B e rlio z , co m o Ram eau, co m o C o u p e rin</p><p>le G rand. A m úsica francesa são os m il e um co m p o s ito re s</p><p>franceses de va lo r, técn icos ce rtos , persona lidades firm e s , mas</p><p>apenas c o m p o s ito re s n o rm a lm e n te bons. Sem estes a F rança</p><p>m usica l seria apenas um a Espanha.</p><p>— O u o B rasil, in te rro m p e u mais um a vez o Pastor</p><p>F id o , já não se aguen tando de ta n ta vo n ta de de fa lar qua lq ue r</p><p>coisa. Em criação m usica l, co m o até em p in tu ra , apesar dos</p><p>m esm os núcleos vigorosos de p lástica das duas cidades</p><p>m e tro p o lita n a s , o B rasil a inda está naquela mesma fase em</p><p>que estava a lite ra tu ra do te m p o da In dependênc ia . Havia</p><p>en tão bastantes poetas "u rb a n o s " , reles, p reenchendo as</p><p>necessidades urbanas das cidades ta m b ém reles em que v iv iam</p><p>— necessidades que nem são e rud itas , mas apenas sem i-e rud itas</p><p>e jo rn a lís tic a s , poesias para rec ita r no N a ta l, em an iversários,</p><p>ou p u b lic a r nas datas com em ora tivas . Mas ju n to desse cisco</p><p>u t i l i tá r io , havia apenas um ou o u tro poeta ve rdade iro</p><p>le g itim a m e n te e ru d ito , se rv indo ao país in te iro , fo rm a n d o a</p><p>criação poé tica expressiva dum a p á tr ia . As duas gerações</p><p>rom ân ticas a inda são bem e x e m p lific a tiv a s disso. Só m esm o</p><p>em nosso século a p ro du ção lite rá r ia assum iu uma c iração</p><p>"n o r m a l" , no sen tido em que você d iz , com alguns p icos</p><p>sem pre raros, mas com um a larga e n u tr id a p ro d u çã o e ru d ita</p><p>" n o r m a l" , fazendo um ve rdade iro c o rp o de lite ra tu ra . Pode</p><p>ser m ag rin ho , mas sem pre é um c o rp o . A lite ra tu ra b rasile ira</p><p>já to m o u co rp o . A m úsica b ras ile ira a inda não. A d e fic iên c ia</p><p>am b ie n te das cap ita is p rov inc ianas , a sua pobreza d ia n te das</p><p>exigências ricaças da m úsica, só p e rm ite am a m e n ta r m úsicos</p><p>u rbanos, co m p os ito re s de ave-m arias pra igreja mais p ró x im a .</p><p>Em to d o caso os grandes co m p o s ito re s vão m u ito bem . . .</p><p>— Isso é você que d iz . . . Sob o p o n to de vista da</p><p>criação té cn ico -e s té tica , a inda a m úsica b ras ile ira vai m u ito</p><p>m al, p o rqu e ca iu no impasse d o c a ra c te rís tic o . A f in a l das</p><p>contas, S iom ara Ponga sem pre te m algum a razão q uando se</p><p>revo lta co n tra o excessivo "n e g r is m o " da m úsica b ras ile ira .</p><p>— Mas Janjão, se você mesmo ainda há pouco,</p><p>estabelecia que a música brasileira estava num prim itiv ism o</p><p>natural, e tinha de se basear no fo lc lore pra ser funcional!</p><p>— Eu falei isso, Sarah Light, e repito . A música</p><p>brasileira ainda não pode perder de vista o fo lc lo re . Se perder,</p><p>se estrangeirizará com pletam ente. Como sucede com os</p><p>sistematizadores do atonalism o integral, e os que baseiam a</p><p>sua criação na chamada "invenção livre". Em p rinc íp io , se</p><p>analisarmos um bocado mais o problem a psicológico da</p><p>criação, seja musical, seja de qualquer outra arte, ou seja</p><p>mesmo simplesmente a criação do pensamento filosófico ,</p><p>veremos que isso de "criação livre" é uma quim era. A té esse</p><p>slogan deslum brante de</p><p>que "a cultura é universal" não passa</p><p>de to lice de parlapatões ou interessados.</p><p>— Eu não estou entendendo nada. . .</p><p>— Tenha paciência, senhor Felix de Cim a, o senhor</p><p>entende até demais de p o lítica , pra poder entender de</p><p>qualquer outra coisa, seja até de racionam ento ou de carestia.</p><p>— Pastor F ido !. . .</p><p>— Desculpe, Sarah Light. Está com a palavra o</p><p>com positor Janjão.</p><p>— Eu afirm o que a "criação livre" é um a quim era,</p><p>porque ninguém não é feito de nada, nem de si mesmo</p><p>apenas; e a criação não é nem uma invenção do nada, mas</p><p>um tecido de elementos mem orizados, que o criador agencia</p><p>de maneira d iferente, e quando m uito leva mais adiante.</p><p>Estou insistindo numa lapaliçada. A criação, com toda a sua</p><p>liberdade de invenção que eu não nego, não passa de uma</p><p>reform ulação de pedaços de m em ória. Basta lembrar que os</p><p>atonalistas, como todos nós, criam com os doze sons da</p><p>escala crom ática, que não passam de sons já mais que</p><p>escolhidos e repetidos e que eles aprenderam e decoraram. E</p><p>dessa mesma form a, são todos os outros elementos mais</p><p>com plexos, lineares ou de simultaneidade sonora, acordes,</p><p>polifonias, o que quer que seja. Elem entos já existentes que a</p><p>m em ória fornece, e a criação reform ula. De modo que o</p><p>com positor brasileiro que se repim pa na vaidadezinha da sua</p><p>pessoa, e imagina estar criando " liv rem en te" , só porque</p><p>desistiu de criar à feição dos elementos musicais que o Brasil</p><p>lhe fornece, criará fata lm ente agenciando os elementos</p><p>musicais que já conhece, que estudou, que digeriu ou não,</p><p>mas que se digeridos lhe saltam sem ele querer do eu</p><p>profundo, e se não digeridos, lhe saltam da m em ória</p><p>consciente. E se esses elementos não nascem do Brasil, donde</p><p>que nascem? Nascem da A lem anha. Ou nascem da França. Ou</p><p>nascem dum a França m isturada com Alem anha, form ando</p><p>uma Alsácia bagunçada e indigestada. Ora os compositores</p><p>brasileiros. . .</p><p>E foi deste je ito que o com positor Janjão concluiu a</p><p>sua análise da música brasileira:</p><p>— Eu garanto que ainda no m om ento presente a música</p><p>brasileira não está em condições de perm itir aos seus</p><p>compositores a pretensão de criar “ livrem ente". O com positor</p><p>brasileiro que perder o fo lc lo re nacional de vista e de estudo,</p><p>será o que vocês quiserem, mas fa ta lm ente se desnacionalizará</p><p>e deixará de funcionar. Desse ponto-de-vista, todos os artistas</p><p>que im portam no Brasil de hoje, são de fa to os que ainda</p><p>têm como princ íp io pragm ático de sua criação, fazer música</p><p>de pesquisa brasileira. A invenção livre só virá mais tarde,</p><p>quando a criação musical erudita estiver tão rica, com plexa e</p><p>explíc ita em suas tendências particulares psicológicas, que o</p><p>com positor possa desde a infância viver cotid ianam ente dentro</p><p>dela, se impregnar dela, e a sentir com o um instinto . Nisso os</p><p>principais compositores brasileiros estão certos, mas onde eles</p><p>não estão propriam ente errados mas faltosos e</p><p>defeituosam ente empobrecidos, é na sua ignorância do folclore</p><p>brasileiro. O quê que eles conhecem realmente? Conhecem</p><p>m uito o samba carioca, não há dúvida; conhecem m uito a</p><p>cantiga in fan til, que, franqueza, já deviam deixar de lado,</p><p>porque V illa Lobos a saqueou por com pleto , e é certo que</p><p>adm iravelm ente. Conhecem ainda um bocado o fo lc lore</p><p>musical nordestino, que justam ente como o samba carioca é</p><p>m uito perigoso, porque é característico por demais e com</p><p>uma base m uito vermelha de negrismo. E é quase que só. E</p><p>conhecem um bocado a música urbana, principalm ente a</p><p>modinha e a valsa.</p><p>Ora o fo lc lo re brasileiro não é isso. É cem vezes mais</p><p>com plexo e variado que isso. Mas in fe lizm ente os compositores</p><p>brasileiros o ignoram; e quando m u ito um ou outro se resolve a</p><p>explorar os elementos musicais da sua região. Como fez m uito</p><p>bem Camargo G uarnieri com a toada e a moda caipira de São</p><p>Paulo. É certo que nas peças pra canto e pra piano, a composição</p><p>brasileira já apresenta alguma variedade, por causa da colaboração</p><p>da m odinha, da valsa e da toada, mas já está se tornando</p><p>insuportável, fatigantíssim o, viciado, recendente de decorativo, o</p><p>ar de dança, de batuque mesmo, da música brasileira mais</p><p>com plexa, corais, conjuntos de câmara e sobretudo a obra</p><p>orquestral, poemas sinfónicos, concertos, suites.</p><p>Mas vocês vejam como aqui interfere outra vez a</p><p>situação prática e técnica da música brasileira. Si o fo lc lo re</p><p>não é só negro, nem apenas samba carioca e batuque rural, os</p><p>compositores brasileiros precisavam estudá-lo mais profunda e</p><p>profusamente. Mas onde? Um com positor que mora no Rio</p><p>não acha je ito de ir saber o que é a música popular da região</p><p>missioneira ou de M ato Grosso, da mesma fo rm a que um</p><p>compositor paulista não tem como ir ao Am azonas ou no</p><p>sertão da Bahia. A lerdeza e o custo dos transportes lhes</p><p>proíbem a viagem; e a situação musical, fora de São Paulo e</p><p>Rio, não lhes perm ite a esperança de custear viagem e estudos</p><p>com o que ganharem por a í. Mas então onde que está a</p><p>musicologia brasileira, as entidades culturais apropriadas, que</p><p>recolham o folclore em discos, estudem e publiquem esses</p><p>discos? . Não há verba, não há verba, é a resposta dos poderes</p><p>públicos e dos capitalistas. E não há editores pra obras que</p><p>ficam caríssimas, por causa da impressão musical. É possível</p><p>que alguma entidade cultural possua m uita coisa. Mas não</p><p>estuda nem publica! De fo rm a que toda essa riqueza</p><p>permanece tão m orta e inatingível, em São Paulo ou no Rio ,</p><p>como si estivesse no fundo da mais inacessível ilha do</p><p>Bananal!</p><p>Porém eu não perdôo não os compositores brasileiros:</p><p>eles são m uito culpados. Culpadíssimos. Qual deles até hoje se</p><p>preocupou de estudar os elementos melódicos e rítm icos do</p><p>choro, que está a mão? Essa é aliás a m aior falha da</p><p>composição musical brasileira, e que a faz tão enjoativam ente</p><p>cair num negrismo decorativista: é que ainda não se inventou</p><p>o "alegro" brasileiro. Mas me refiro ao "a legro" mesmo, o</p><p>alegro m elódico de caráter anticoreográfico, incapaz.de cair na</p><p>dança. Só Camargo Guarnieri já fez algum esforço nesse sentido.</p><p>Há V illa Lobos, é verdade. . . O V illa é um m undo; e</p><p>nerecia ser mais estudado, ser im itado, ser copiado até. Mas</p><p>iqui entra um novo elem ento escarninho que está</p><p>itrapalhando rid iculam ente a normalização de tendências e de</p><p>>sicologia da música brasileira. Me re firo à interferência do</p><p>ndividualismo vaidoso, do com plexo de superioridade, e à</p><p>xacerbação doentia da noção do plágio.</p><p>— Deixa eu falar? . . . É ainda uma comparação com a</p><p>teratura, que eu conheço mais que você. Essa noção</p><p>ão-me-toques do plágio, já vai sendo abandonada na literatura</p><p>rasileira. Só nela, e não em nenhuma outra arte, por quê?</p><p>justam ente porque a literatura já tom ou corpo, já tem uma</p><p>rodução m uito grande de compositores "norm ais", como</p><p>jnjão diz, isto é, excelentes compositores que não são águias</p><p>nem picos, mas apenas bons. De maneira que esse enxame de</p><p>artistas normais, pela união que faz a força, já não se am olam</p><p>de seguir a lição dos seus maiores. As influências de um Zé Lins</p><p>do Rêgo, de um Augusto Frederico Schm idt no presente; da</p><p>mesma form a que a tradição machadiana, principiam se</p><p>afirm ando no sentido nacional do que se chama uma "escola".</p><p>E assim o corpo se com pleta: tem tronco com um , que é o</p><p>Brasil, e tem cabeça, algumas cabeças, e m uitos membros.</p><p>— Pois é; mas como a música ainda não tom ou corpo,</p><p>os raros compositores brasileiros que existem , sofrem a</p><p>miragem de serem todos só cabeças! A esplêndida soma de</p><p>invenções pessoais e nacionais, das soluções, dos</p><p>acom odamentos e ilações rítm icas, melódicas, harmónicas,</p><p>instrumentais de V illa Lobos, estouram mas m orrem fe ito</p><p>foguetes, desaproveitadas. Ninguém quer retom ar esses</p><p>fogachos, pra abertura de caminhos na noite nevoenta. Cada</p><p>qual (pois são tão poucos. . .) açulado pelo engano de ser uma</p><p>avis rara no país, só quer ser si mesmo,</p><p>iludido por um</p><p>engrandecim ento individualista, que não é o valor pessoal que</p><p>dá mas a ausência de muitos outros que transform em o</p><p>deserto num corpo povoado. E todos, gigantizados pela</p><p>miragem desse deserto em que vivem, não ficam apenas os</p><p>compositores normais, bons, mesmo ótim os que alguns deles</p><p>são. V iram "grandes com positores", viram génios! Ou gênio</p><p>ou nada! M e contaram que Stravinsqui uma vez, convidado</p><p>a escutar a música dum com positor sul-americano, re fle tiu</p><p>com melancolia: "H o je não há um só país do m undo que</p><p>não sonhe ter seu Stravinsqui". . . A isso que conduz a falta</p><p>dum a produção numerosa, que coloque os músicos nos seus</p><p>lugares exatos., Corjno não tem outros para com petir cada</p><p>qual se julga logo um Stravinsqui, abridor de caminhos. Eu,</p><p>aproveitar as soluções de V illa Lobos, Deus te livre! É o</p><p>próprio V illa , aliás, quando se vê aproveitado, em vez de</p><p>com preender o valor social que isso tem , é o prim eiro a</p><p>berrar que houve plágio e o estão roubando! É impossível,</p><p>imagino, que a lição m ultifária de V illa Lobos se perca. Mas</p><p>por enquanto ela não é utilizável pra ninguém. A deficiência</p><p>do meio e a consequente exacerbação da vaidade individualista</p><p>não deixam . Será estudada mais tarde, e retom ada um dia no</p><p>que tem de rico e generalizável.</p><p>Em todo caso, nem o próprio V illa Lobos escapa do</p><p>característico coreográfico, nos seus alegros. Só mesmo</p><p>Camargo Guarnieri já conseguiu alguma coisa de satisfatório</p><p>nisso, sobretudo em finais, como no Concerto pra V io lin o e</p><p>na Primeira S infonia. É urgente criar o alegro brasileiro sem</p><p>caráter coreográfico. O alegro é a coisa mais d if íc i l da criação</p><p>erud ita , porque embora co letivista e v io lentam ente</p><p>co le tiv izador por causa do seu dinam ism o, ele é no entanto</p><p>a n tifo lc ló r ic o . O 'p o v o não tem alegros. O"alegro é elemento</p><p>urbano, e rud ito e c iv ilizado r, mas é sempre ex tracu ltu ra l. O</p><p>povo na in fin ita nrtàioria dos casos, quando faz música rápida</p><p>é pra dançar; e caímos no característico coreográfico, como</p><p>no Brasil, com o na Espanha. E o p róprio rom ance, a música</p><p>pra cantar h istórias e lendas, que pelo tam anho dos tex tos</p><p>leva à criação de músicas fo lc ló ricas rápidas, quase nunca o</p><p>romance, a balada, ou que nome tenha, atinge a melodia</p><p>p ropriam ente d ita , com sentido com ple to , com o num alegro</p><p>de Beethoven, de Berlioz ou num estreto de Rossini. Em geral</p><p>o romance pela sua própria natureza, em vez da melodia</p><p>p ropriam ente d ita , de sentido com ple to e fechado, permanece</p><p>no rec ita tivo , ou si quiserem, na melodia in fin ita . Como é o</p><p>caso do co rrido m exicano, do relato argentino. E às mais das</p><p>vezes cai tam bém no esp írito coreográfico, com o a embolada</p><p>cios cocos nordestinos. E a embolada é sempre um rec ita tivo .</p><p>Nos m ovim entos moderados, no alegreto, no andante, o</p><p>com pos ito r encontra na canção fo lc ló rica riqueza fa rta por</p><p>onde se desenvolver cu ltu ra lm en te . No alegro, não. Os</p><p>andam entos moderados são cu ltu ra is : têm a sua base e a sua</p><p>fo n te no povo. Mas o alegro, extracoreográ fico , é e lem ento</p><p>e ru d ito e c iv ilizado r. Ele cu ltura liza , sim, uma escola nacional,</p><p>mas de fo ra pra den tro . Ou m elhor: de cima pra ba ixo. Ele</p><p>nasce na cabeça do com posito r e rud ito , se caracteriza na</p><p>generalidade dos com positores normais (ôh, a esplêndida</p><p>diferença nacional entre um alegro de com posito r ita liano e</p><p>o u tro de alemão. . .) e baixa às massas, d inam izando e</p><p>aquecendo, fo rta lecendo a consciência coletiva. Porém sempre</p><p>urbana. O alegro tem isso de insolúvel: ele pode cu ltu ra liza r</p><p>uma música nacional, com o os alegros de Verd i e os de</p><p>Brahms, mas será sempre universalmente co le tiv izador. Porque</p><p>o seu d inam ism o é p ro p fc io às massas das cidades de Londres</p><p>com o de Maceió.</p><p>E é por semelhantes circunstâncias que eu tenho a</p><p>convicção de que a p rópria criação erudita é defeituosa, falha</p><p>e desnorteada no Brasil. E si a realidade musical prática do</p><p>país é péssima: mesmo na composição o Brasil vai mal, por</p><p>culpa dos seus com positores. Lhes fa lta sobretudo esp írito</p><p>co le tivo , e disso deriva quase tudo . Se conservam, viru lentas,</p><p>todas as mazelas do século passado: o d ile tan tism o, o</p><p>ind iv idua lism o ex ib ic ion is ta , o dogm atism o. Sobretudo, no</p><p>fu n d o , com o instância da criação a rtís tica : d ile tan tism o.</p><p>d ile ta n tis m o , d ile ta n tis m o . N e n h u m a consciência da função</p><p>histórica do b ras ile iro a tu a l. E por isso, todos esses artistas</p><p>desenvolvem por d e n tro , ao mais elevado grau, a veleidade de</p><p>ficar. E m vez de v iverem , p erd em o te m p o da vida criando</p><p>a estátua do fu tu r o . Mas, apegados à p enúria do am b ie n te ,</p><p>mais m acaqu eiam o gên io , do q u e tê m aquela paciência , que</p><p>m uitas vezes alcança a g en ia lid ad e . Chega ao absurdo a</p><p>deprec iação da vo n tad e técn ica , e n tre esses brasile iros. E era</p><p>fa ta l: co m isso, si q u a lq u e r deles p o d e te r seus cacoetes, não</p><p>surgem senão ra ro as soluções artís tic as in d iv idu ais , isto é,</p><p>justo a p arte em que o in d iv íd u o é um a fa ta lid a d e honrosa.</p><p>E, co m o o negrism o prova, em bo ra in c o rre n d o o risco de não</p><p>ser c o m p re e n d id o p o r n in g u é m , a firm o que fa lta universalidade</p><p>a esses co m p o sito res , q ue v ivem de particu larism o s</p><p>regionalistas, e de sen tim en ta lism o s evocativos. D ad o m esm o</p><p>que o m e lh o r je ito da g ente se to rn a r universal, seja se</p><p>to rn a n d o n acio na l: a fa lta de c u ltu ra e com preensão do</p><p>p ro b lem a, fez co m que os co m p o sito res brasile iros não</p><p>percebessem o fe n ó m e n o universal e h is tó rico do</p><p>ap ro v e ita m e n to fo lc ló r ic o . O p ro b lem a da nac io na lização</p><p>dum a a rte não reside na repisação do fo lc lo re . O pro b lem a</p><p>verdadeiro era "e xp res sa r" o Brasil. Mas co m o os in iciadores</p><p>desta expressão, n ou tro s países, se a p ro v e ita ra m " ta m b é m "</p><p>dos tem as tra d ic io n a is , o q ue os co m p o sito res brasile iros</p><p>pescaram quase to d o s , apesar das ad vertências insistentes de</p><p>um A n d ra d e M u ric i, fo i só isso: te m á tic a fo lc ló ric a . E m vez</p><p>de expressarem o Brasil, " c a n ta ra m " o Brasil. T a l co m o isso</p><p>vai, p a u p é rrim o e lim ita d o , can tig a -d e-ro d a , b a tu q u e , negrism o</p><p>d eco ra tiv ism o , é possível que este jam co n s tru in d o um</p><p>d ic io n á rio de bras ile irism os. P o rém jam ais q ue isso será a</p><p>Música B ras ile ira , isto é, a expressão m usical do Brasil.</p><p>Salada</p><p>A música no mundo atua/.</p><p>F o i en tão que os c riados tro u x e ra m aos o lh os</p><p>im e d ia ta m e n te sub jugados dos convivas, o p ra to novo . Era</p><p>um a salada n o rte -a m e rica na . Era um a salada fr ia , mas uma</p><p>salada co lossa l, m a io r d o m u n d o . Só de pensar nela já te nh o</p><p>água na boca. E que d ife re n ça do vatapá a n te r io r , tã o fe ioso</p><p>e m o n ó to n o no aspecto . S im , o vatapá não fa z ia vista</p><p>nenhum a , co m aqueles seus to n s de um te rra baço e os</p><p>b rancos d o a ng u z in h o v irgem . Mas, se os le ito re s estão</p><p>lem brados, che irava . A ss im que tra z id o espalhara na sala um</p><p>ch e iro v igo roso , c a p ito so , co m o se d iz , que envo lve ra os</p><p>presentes no fa v o r das mais tro p ic a is m iragens. B rav io , bravo</p><p>s im , aque le c h e iro . Á sp e ro . Mas tã o ch e io , tã o n u tr id o e</p><p>c o n v ic to , que se perceb ia nele a paciência das enorm es</p><p>trad içõe s sed im entadas, a m a líc ia das expe riênc ias sensuais, os</p><p>ca m inh o s p e rc o rrid o s pe lo s a c r ifíc io de centenas de gerações.</p><p>O ch e iro d o vatapá vos tra z ia aquele sossego das coisas</p><p>im u táve is .</p><p>A salada não t in h a ch e iro n en hu</p><p>T ie tê " , ta m b ém de Paulicé ia que opõe as</p><p>"g igantescas v itó r ia s " do passado bande ira n te à " — N ad ad o r!</p><p>Vam os p a r t ir pela via d u m M a to Grosso? / lo ! M a i! . . . /</p><p>(. . . ) / V ado a p ranzare con la R u th " .</p><p>4</p><p>A lfre d o E llis (Ju n io r) na "R ev is ta N o v a " (d ir ig id a por Paulo P rado,</p><p>M ário de A n d rad e e A n to n io de A lc â n ta ra M a c h a d o ), lem brava em</p><p>1931 que "seria m u ito d if f ic il de p rever o resu ltado da im igração</p><p>ita liana em São Pau lo , posta em scena de u m m o d o perigosissim o</p><p>para a b ras ilidade, com as avalanches annuaes, cujo to ta l sobe a</p><p>75% da população p re e x is te n te " . Tal in q u ie tu d e é p ró x im a da de</p><p>M á rio , e a p rec ip itação em que a firm a — sem ap o io c ie n tífic o</p><p>m aior — q ue " o ita lia n o fo i e n g u lid o , sem d e ix a r grandes vestígios</p><p>de natu reza e thn ico -socio log ica da sua passagem" é mais um m eio</p><p>de a firm a r a fo rça da c u ltu ra “ a u te n tic a m e n te ” b ras ile ira ,</p><p>m in im iza n d o a c o n trib u iç ã o dos recém -chegados. A lfre d o Ellis</p><p>(Ju n io r), P o p u la ç õ e s p a u lis ta s , in "R e v is ta N o v a " , ano 1, n? 1,</p><p>15 de m arço de 1 9 3 1 , p. 5 4 .</p><p>Realmente bem tím idas compensações, se pensarmos no</p><p>Gigante Piaimã, o guloso "b o n v iv a n t" Venceslau P ietro</p><p>Pietra, quase irm ão gêmeo de F e lix de Cima. Com o o vilão</p><p>de M acunaím a , este conhece bem farras, mulheres, comidas,</p><p>bebidas. Apesar do "a lém de ignorante, m u ito b u rro " , Fe lix</p><p>escapa da mão de M ário ao dissertar sobre os prazeres da</p><p>mesa, capaz de sutilezas e lirism os sobre a caninha e o</p><p>vatapá: é que a í encontram os a palavra do a u to r, em prim eira</p><p>mão. M ário "g o u rm e t" , au to r dessa obra-prim a de hum or</p><p>ed ip iano-gastronôm ico-au tob iográ fico que é o "Peru de na ta l",</p><p>já havia confessado:</p><p>"G os to porém m u ito de arte cu linária , invento pratos e</p><p>creio mesmo que se tivesse nascido noutra classe, seria</p><p>algum coz inhe iro fa m o s o ".5</p><p>A lém de burro e ignorante, F e lix , quase</p><p>consequentem ente, é p o lític o . Defende as institu ições que</p><p>garantem o seu ser "d e c im a ", numa am biguidade de</p><p>parolagens dem ocráticas que escondem a d itadura , as</p><p>falcatruas, o interesse em frear qualquer desenvolvim ento</p><p>cu ltu ra l. Pois F e lix é tam bém "p ro te to r " das artes, e é por</p><p>isso mesmo que partic ipa à mesa de Sarah, que</p><p>estrategicamente quer fazer Janjão entrar nas graças do</p><p>governo.</p><p>A personagem de F e lix de Cima perm ite bem ao autor</p><p>fazer sobressair os mecanismos da demagogia. Ele é, sem</p><p>dúvida, exem plar, e em certos aspectos m u ito atual. As</p><p>páginas sobre a aparente c rítica ao governo, sobre os</p><p>disfarces do G E LO (G rupo Escolar da L iberdade de O pin ião),</p><p>independentem ente do alcance que possam te r em outros</p><p>m om entos da h istória do Brasil, re fle tem o instante agudo</p><p>da demagogia getulista que, ten tando ganhar tem po sob as</p><p>pressões que lhe são fe itas, prom ete o restabelecim ento da</p><p>democracia representativa. Mesmo o G ELO é uma transposição</p><p>caricata do antigo DIP (Departam ento de-'lm prensa e</p><p>Propaganda), órgão que substitu i os silêncios provocados na</p><p>imprensa pela v io lenta censura.6</p><p>É claro que em realidade F e lix , do mesmo m odo que</p><p>Sarah, não tem o m enor interesse pelas artes; protege-as, o</p><p>5 Perguntas de M aca u le y e C o m p a n y e respostas de M á rio de A n d ra de ,</p><p>in "Revista do A rquivo M un ic ip a l", C L X X X , 1 9 7 0 , p. 243 .</p><p>6 Ver sobre o problem a — Leôncio Basbaum, H is tó r ia S ince ra da</p><p>R e p ú b lica , São Paulo, Fulgor, 1 968 . 3? ed.. 2*? parte, cap. 2 e 4;</p><p>e tam bém José M aria Bello, H is tó r ia da R e p ú b lic a , São Paulo, Cia.</p><p>Ed. N acional, 1 9 5 9 , cap. 2 4 .</p><p>que é coisa m u ito d ife ren te : consequência de acontecim entos</p><p>acidentais (entre os quais, por exem plo, uma "d iseuse" da</p><p>V irg ín ia ), ele criara uma cômoda imagem de mecenas. O que</p><p>a arte pode trazer-lhe é apenas o prazer sensual, “ vulgar” ,</p><p>que se encontra no mesmo nível das comidas e bebidas;</p><p>alma "concu p isc íve l" — para empregarmos a expressão</p><p>p la tón ica —, o d irigen te F e lix de Cima com o quadro só</p><p>possui um nu "a g u ich a n t".</p><p>Uma tal personagem não é coisa nova na obra de</p><p>M ário : ele existe com o consequência da reform a do gosto que</p><p>a transform ação dos crité rios a rtís ticos da prim eira metade</p><p>deste século impôs, reform a e transform ações das quais</p><p>M ário é ardente pa rtidá rio . A c rítica de valores que lhe</p><p>parecem ultrapassados e falsos é fa m ilia r, mesmo em sua</p><p>poesia. Essa c rítica atinge o auge de sua verve cáustica na</p><p>série “ A rte em São P au lo ", aparecida em 1927 no D iário</p><p>N ac iona l,1 e tom a um caráter de v io lenta denúncia na</p><p>“ Campanha contra as temporadas lír icas” , de 1928, quando</p><p>o d inhe iro e os poderes públicos se com prom etem com</p><p>manifestações que M ário acusa de fa ls ificação cu ltu ra l, num</p><p>tom não m u ito d istante do que encontram os por vezes</p><p>n 'O Banquete :</p><p>"In ic iou -se on tem , por mais uma vez, essa bon ita festa</p><p>de ricaço decorada com o t í tu lo de Tem porada L írica</p><p>O fic ia l ( . . . ) . O povo está abo lido , a arte está abolida.</p><p>Uma ou outra manifestação mais legítim a não passa de</p><p>hipocrisia pra enganar a realidade. H ipocrisia do governo</p><p>da cidade que mantém uma comissão pra vigiar a elevação</p><p>artís tica da tem porada. H ipocrisia duma comissão arcaica,</p><p>absolutam ente desprovida de ideal le g itim á ve l".8</p><p>Por trás de textos com o estes, já está pairando a sombra de</p><p>Fe lix de Cima. Assim , n '0 Banquete, sua aparição é a cristalização</p><p>numa personagem dos descaminhos da p o lítica a rtís tica</p><p>brasileira, que M ário conhecia tão bem e de longa data.</p><p>Quanto às idéias do ita liano , sobre a arte, são</p><p>m inúsculas — o gosto por Respighi e Ravel (que M ário pensa,</p><p>de uma certa fo rm a, académicos), a ideiazinha do "b e lo</p><p>h o rrív e l" que M ário combatera já em 1921, no “ Prefácio</p><p>In teressantíssim o" de Paulicéia desvairada.</p><p>7 In M ário de A ndrade, T a x i e C rón icas n o D iá r io N a c io n a l, São</p><p>Paulo, L ivr. Duas Cidades, 1976.</p><p>8 M ário de Andrade, M úsica d oce m ús ica . São Paulo, M artins Ed.,</p><p>1 963 (em particular a secção "Música de pancadaria"), p. 193.</p><p>Evidentem ente seu programa de proteção às artes é</p><p>sumário e desastroso: ho rro r às manifestações contem porâneas</p><p>mais ousadas (às quais associa o ep íte to então co rren te de</p><p>"a rte bo lchev ique"), desprezo às manifestações nacionais,9</p><p>proteção a rb itrá ria e im becil a estrangeiros: é bem claro que</p><p>essa noção m oralizadora da A rte que deve ser servida, tão</p><p>cara à M ário, é impenetrável em tal cabeça que traduz um</p><p>m undo estúpido, opo rtun is ta e irrem ediavelm ente desonesto.</p><p>Siomara Ponga</p><p>"C anto ra virtuose ce lebérrim a", de origem espanhola,</p><p>Siomara Ponga com ple ta o tr io das personagens pertencentes</p><p>à classe dom inante . Mas artista de form ação perfe ita ,</p><p>consciente de seus meios e possibilidades, excelente in térprete,</p><p>seu esp írito é um pouco menos m esquinho: a partic ipação à</p><p>esfera da arte com o que a eleva, e M ário por vezes nos faz</p><p>assistir contradições, remorsos, tentações, de se deixar levar</p><p>por uma fide lidade à arte que pratica. No entanto tais dores</p><p>de consciência são logo escamoteadas, pois Siomara tra i o</p><p>que poderia ser seu destino verdadeiro:</p><p>"O s senhores conhecem o verbo 'pongar'? é irresistível,</p><p>Siomara Ponga era uma virtuose célebre, co itada,</p><p>'pongava' todos os bondes com o os meninos da rua, ia</p><p>para onde os ventos sopravam, desde que os ventos</p><p>fossem públicos ( . . . ) . Mas do a lto da sua grandeza, da</p><p>sua cu ltu ra , da sua beleza, e tam bém da sua escravidão</p><p>de virtuose, se ela não aderia, ela conced ia" (O</p><p>Banquete, p. 160).</p><p>Desse m odo a questão que</p><p>m , mas co m o era bon ita</p><p>e ch am ariz ! C onvenc ia pe lo susto da v is ta , em bora tivesse</p><p>ta m b é m m u ita s o u tra s espécies de conv icções. Mas a p rim e ira</p><p>era m esm o essa b o n ite z a de visão. T in h a m il cores, com</p><p>m e n tira e tu d o . Uns b rancos m ates, in te r io re s , que se</p><p>to rn a v a m absu rd am en te v igo rosos e p ro fu n d o s , ju n to daqueles</p><p>escarlates to ta is , tã o v igo rosos que nos davam a sua verdade</p><p>ingénua de serem superio res a tu d o . E os verdes. Nossa!</p><p>verdes to r tu ra d o s , enve lhec idos, apenas denúnc ias de verdes,</p><p>que ir ia m se d ispersar nos te rras g raduados, se não fossem as</p><p>notas c la rina n tes dos am are los, poucos mas inv io lá ve is , que</p><p>sa lp icavam o c o n ju n to fe ito g rito s , g rito s m e tá lico s</p><p>co o rd e n a n d o num a avançada aquela m archa sobre R om a. Era</p><p>o p ra to m ais lin d o do m u n d o .</p><p>Está c la ro que para um e s p ír ito m ais re f le x iv o e</p><p>re c a lc itra n te , co m o o do c o m p o s ito r Jan jão , logo aquela</p><p>b on iteza sem ostrade ira não d e ix o u sem descon fiança m u ita .</p><p>Jan jão o lh o u pra Sarah L ig h t à espera d u m possíve l conse lho.</p><p>Mas Sarah L ig h t estava d e s lu m b ra n te , to d a entregue a si</p><p>mesma, to d a en tregue à c o n te m p la çã o da salada que ela</p><p>o fe rec ia aos seus convivas. O va tapá, ela gostava s im , Sarah</p><p>L ig h t co m ia tu d o , era o m n ív o ra . Mas aquela salada, que era</p><p>um a rece ita exc lu s ivam en te de la , que era um a salada de t ip o</p><p>n o rte -a m e rica no que ela m o d if ic a ra d o seu je ito , e</p><p>ape rfe içoa ra , aquela salada era o seu p ra to p re fe r id o , um</p><p>co ro a m e n to da sua ex is tênc ia de co m e s tíve l e sp iritu a l</p><p>(descu lpem ). Era um a im agem , u m s ím b o lo , um a a legoria . Era,</p><p>e n fim , a p rec ios idade d e rro ta d o ra , d o m in a d o ra , p e rip a té tica e</p><p>c irc u n s c is flá u tic a , que o fe rec ia a m ilio n á r ia Sarah L ig h t, nova-</p><p>io rq u in a de nasc im en to , in te rn a c io n a l p o r p ro fissão , e</p><p>b ras ile ira p o r incrus tação . Era a salada mais sem p e rfu m e</p><p>po rém mais vistosa do m u n d o .</p><p>De m aneira que o o lh o desarvorado d o c o m p o s ito r</p><p>Jan jão não pôde e n co n tra r n e n h u m a p o io , n e n h u m conse lho</p><p>nem nenhum a con ivênc ia nos o lh o s da m ilio n á r ia ,</p><p>exc lu s ivam en te b es tifica da naque le ins tan te pela apa rição do</p><p>seu p ra to . Jan jão p ro c u ro u os o lh os dos o u tro s convivas, não</p><p>achou nada. O p o lí t ic o néo-fach is ta F e lix de C im a já se</p><p>entregara ce m -po r-ce n to . Os o lh os dele, com perdão da</p><p>palavra, resfo legavam . E ram o lh os com narinas: o p o lí t ic o</p><p>gostava ta n to de com idas, que aprendera a ch e ira r co m os</p><p>o lhos . Jam ais que tivesse um a visão e x tra -re tin ia n a , mas tin h a ,</p><p>co m o to d o s os hábeis p o lít ic o s , um o lfa to , d igam os, urn fa ro</p><p>extranasa l, mais poderoso que as lentes dos três o bse rva tó rios</p><p>p r in c ip a is desse m un d o , que estão na A m é rica do N o rte . F e lix</p><p>de C im a era to d o salada naque le in s ta n te que se convo la ra pra</p><p>ele num a espécie de c o ro a m e n to de ca rre ira : se rv itu de e</p><p>servidão p o lít ic a s . F e lix de C im a sabia co m e r, eu ju ro . Mas no</p><p>caso daque la salada m ir í f ic a , o fe n ó m e n o não era e xa tam en te</p><p>mais um p ro b le m a de saber com er, era um p ro b le m a de saber</p><p>e n g u lir. U m p ro b le m a p o lí t ic o co m o se vê. N ão era um</p><p>p rob lem a de c o m e r, mas de ca rcom er. F e lix de C im a m esm o</p><p>antes de p r in c ip ia r a m anducação, já engu lira tu d o . Era a</p><p>salada m ais ca rcom edora do m u n d o .</p><p>Jan jão pousou che io de co m p la cê nc ia os o lh o s fa tigados</p><p>na grande ca n to ra v irtu o se ce lebé rrim a , S iom ara Ponga. Os</p><p>senhores conhecem o verbo "p o n g a r"? é irre s is tív e l, S iom ara</p><p>Ponga era uma v irtu o se cé lebre , co ita d a , "p o n g a v a " to d o s os</p><p>bondes co m o os m en inos da rua, ia para o nd e os ven tos</p><p>sopravam , desde que os ven tos fossem p ú b lico s . N ão que ela</p><p>aderisse, a ca n to ra era su fic ie n te m e n te c u lta pra não ade rir</p><p>aos tu m u lto s , nem m esm o aos tu m u lto s dos seus tr iu n fo s</p><p>d ia n te de um p ú b lic o desfe iteado p o r agudos e tr i lo s . E ela</p><p>bem perceb ia que aquela salada era p r in c ip a lm e n te um</p><p>tu m u lto . Mas d o a lto da sua grandeza, da sua c u ltu ra , da sua</p><p>beleza, e ta m b ém da sua escravidão de v ir tu o s e , se ela não</p><p>aderia , ela conced ia . Ela não com eria m esm o, ela só deb icava</p><p>p ra tos , naque la trág ica defesa do seu c o rp o in v io la d o , em que</p><p>v iv ia . Gostasse o u não. S iom ara Ponga p o r causa da sua</p><p>ca rre ira , oú m e lh o r, p o r causa da sua ce leb ridade p ú b lic a , já</p><p>não t in h a d ire ito m ais de gosta r de coisa nen hu m a nessa vida.</p><p>E o v íc io da sua destinação , o e x te r io r que esco lhera, eram</p><p>tão fo rte s sobre ela que, p o r m ais que o seu e s p ír ito c u lt iv a d o</p><p>e o seu gosto espontâneo reca lc itrassem , to do s os aspectos</p><p>im oderados da tr iu n fa lid a d e a encantavam . Sem que re r, a</p><p>fam osa can to ra estava encantada com o fu ro r quasi m ís tico</p><p>daque le p ra to . Era a salada mais e nca n ta tó ria do m un do .</p><p>E n tão o c o m p o s ito r tro u x e o lhos esperançados para o</p><p>Pastor F id o . O m oço es tudan te , que estranha, que do lo rosa ,</p><p>que desolada impressão o c o m p o s ito r teve de le ! O estudante</p><p>de D ire ito fica ra tã o a tra íd o , o to m a ra uma cu rios idade</p><p>tam anha daque le p ra to d o d ia , daquela aparência nova de</p><p>fe lic id a d e grand iosa , que não esperara p o r n inguém . Se servira</p><p>sô frego à bessa, se servira de todas aquelas cores, e se pusera</p><p>co m endo , p rovando de tu d o , las tim osam ente d es is tido de si</p><p>m esm o. É c e rto que desde o p r im e iro sabor que lhe b ro ta ra</p><p>na boca, tive ra um susto. O u m e lh o r, uma apreensão. Isso:</p><p>fica ra apreensivo , tra n ça d o de noções, m u ito vagas</p><p>in fe liz m e n te , de rem orsos, de tra ições a si m esm o, de revo ltas</p><p>que não chegavam a se d e fin ir . Mas não conseguia res is tir à</p><p>a tração daquela salada enceguecedora. Não se entregara a inda,</p><p>e tenham os a esperança de que não se entregue nunca a uma</p><p>salada em que havia até sorvete de crem e e suco de</p><p>ped regu lho . Esperemos que ele saiba escolher dela apenas o</p><p>que era ú t i l à sua saúde hum ana. Mas p o r enq ua n to estava</p><p>em p leno p e río d o de expe riênc ia e encantação. Era engraçada</p><p>a cara tão expressiva dele. . . C om ia in teressado, ins is tia ,</p><p>p rovava, se d iv e rtia , se entusiasm ava, desanim ava, repelia ,</p><p>ins is tia , to rnava a p rovar. E fe ito ga linha bebendo água, ficava</p><p>a b re fechando a boca um te m p o , o lh o parado no ar em busca</p><p>dum a esperança sem fo rm a . . . E de novo ins is tia , aderia a este</p><p>gosto , se entusiasm ava, sorria assustado, co m certa repugnância</p><p>esta vez. Ora ficava lin d o , qua nd o u m gosto uma promessa de</p><p>saúde ou de certeza lhe co n fo rta v a a m oc ida d e e a in teg ridade</p><p>nativa essencial. Ora ficava fe io , to rv o , escuso, co m o as</p><p>m ocidades vend idas, co m o os sujos. Não enve lhec ido , que as</p><p>velh ices ta m b ém tê m suas belezas, mas e n v ile c id o , atrás de si</p><p>m esm o, o lh a n d o de esguelha, co m o os toca iado res de tra ições.</p><p>O es tudan te de D ire ito so lto u uma b ru ta gargalhada, estava</p><p>bêbado. Era o p ra to mais a lc o o liz a d o r que havia agora no</p><p>m un do .</p><p>O c o m p o s ito r Jan jão desviou os o lhos . Estava m u ito</p><p>tr is te . C om o b o m b ra s ile iro já des is</p><p>se põe com a personagem é</p><p>uma questão m oral, uma questão de a titude d iante da arte:</p><p>sua inteligência, sua técnica impecável, suas interpretações</p><p>notáveis só se colocam ao serviço de si p rópria , de sua</p><p>vaidade:</p><p>9 Felix de Cim a por vezes se embaraça todo com o</p><p>pseudo-nacionalismo que era uma das palavras de ordem</p><p>governamentais da época. Assim:</p><p>"N o jornal do G overno, a crítica musical é feita por um moço</p><p>m uito distinto que estudou na Europa. A té é estrangeiro de</p><p>nascença e eu sou contra os estrangeiros que vêm nos ensinar.</p><p>M entira tpm tudo e não precisa de estrangeiros. Nós precisamos</p><p>nacionalizar M entira , como estão fazendo no Brasil e na</p><p>Argerui.na, esses é que estão bem orientados" (O B a n que te ,</p><p>p. 104). *</p><p>"E o v íc io da sua destinação, o ex te rio r que escolhera,</p><p>eram tão fo rtes sobre ela que, por mais que o seu</p><p>esp írito cu ltivado e o seu gosto espontâneo recalcitrassem,</p><p>todos os aspectos imoderados da tr iun fa lidade a</p><p>encantavam " (O Banquete, p. 160).</p><p>M ário considera que a vaidade é um traço p rinc ipa l e</p><p>constante da psicologia dos artistas: "m onstros pela va idade".</p><p>E a vocação sacrific ial que percorre sua vida e obra fá-lo</p><p>exasperar-se contra isso, inda mais quando o artista (com o é</p><p>o caso de Siomara) tem meios para fazer outra coisa com</p><p>sua arte que contentar-se em ser "v irtu o se ce lebérrim a". E</p><p>sabido: aqu ilo que chamamos "vocação sa c rific ia l" levou o</p><p>autor d " 'A m editação sobre o 1 ie tê " ao com bate e à luta</p><p>pela arte de seu tem po e de seu país, incessantemente. E é</p><p>esse ideal que acusa e denuncia as concessões da cantora:</p><p>"M as a (vaidade) de Siomara era 'in conceb íve l',</p><p>justam ente porque a cu ltu ra que alcançara a deveria</p><p>levar a esse processo de superação da vaidade, de</p><p>d ign ificação da vaidade, que a fecunda, e a transform a</p><p>num orgu lho mais ú til. Como o dos virtuoses que se</p><p>dedicam sistematicamente à educação do seu púb lico ,</p><p>ou dos que travam batalha pela música do seu tem po</p><p>(. . . ) " (O Banquete, p. 50).</p><p>Desses, M ário tinha o exem plo perfe ito , oposto a</p><p>Siomara: o de Helsie Huston, que ta n to fizera pela música</p><p>brasileira, e à qual, no m om ento de sua m orte , M ário</p><p>dedicara um artigo no "M u n d o M us ica l", onde nos lega um</p><p>admirável re tra to da can to ra .10</p><p>Não é casual o fa to que M ário tenha justam ente dado a</p><p>Siomara o dom do canto . Ele denunciara várias vezes a</p><p>"p ia n o la tr ia " brasile ira, e com um fim po lém ico a virtuosidade</p><p>pianística poderia perfe itam ente caracterizar Siomara. Mas se</p><p>escolhe o canto , é que isso traz mais im ediatam ente</p><p>à baila o problem a da música nacional, de um m odo</p><p>diretam ente ligado a esforços seus.</p><p>Em 1938, sob sua direção, o D epartam ento de C ultura</p><p>da Prefeitura de São Paulo prom overa um Congresso da</p><p>Língua Nacional Cantada, que estabelece normas de</p><p>pronúncia, debruçando-se sobre problemas técnicos de</p><p>interpretação, de escritura musical etc., ligados à arte do</p><p>canto brasile iro . Os anais desse Congresso, que fo ram</p><p>publicados, fo rm am e x trao rd iná rio ins trum ento técn ico não</p><p>10 "Helsie H u ston", de 10 de junho de 1943.</p><p>encontrando equivalente algum na h istória de nossa música.</p><p>Abandonando o esforço de cantar b rasile iro (O Banquete ,</p><p>p. 51), Siomara abdica de uma carreira que expressasse a</p><p>música nacional em plena construção é que daria um sentido</p><p>de u tilidade pro funda à sua arte. "A m a nsa ra " — com o ela</p><p>d iz de si mesma, contentando-se de um convenciona lism o</p><p>que M ário abom ina:</p><p>"O fazer bem e ce rtinho lhe sossegava uma consciência</p><p>fác il, o con fo rm ism o dom esticado, a subserviência às</p><p>classes dom inan tes" (O Banquete, p. 53).</p><p>Suas audácias derrisórias não vão mais longe que um</p><p>extravagante vestido amarelo — do qual, aliás, a idade</p><p>chegando, começa a te r medo.</p><p>Sua interpretação é impessoal — ela procura revelar os</p><p>artistas "na sua permanência, na sua mensagem " (O</p><p>Banquete, p. 129). E M ário recusa essa eternidade da arte,</p><p>propõe uma relação personalizada que revele a reação do</p><p>artista num m om ento tra n s itó r io d iante da obra. Ele prefere</p><p>a febre de entregar-se to ta lm en te a uma apresentação pessoal</p><p>— e desse m odo, atual — da obra in terpretada. "M ilag re de a m o r",</p><p>com o dissera uma vez de Magda Tag lia fe rro , num artigo que já</p><p>em 1924 colocava nos mesmos term os a questão.11</p><p>E n tre tan to a personagem de Siomara não é nem tão</p><p>simples, nem unicam ente negativa. Ela possui conhecim entos</p><p>musicais p ro fundos e uma cu ltu ra sólida e vasta: é o bem</p><p>seguro profissional no seu esplendor, do qual mesmo o</p><p>com pos ito r Janjão teme a "fo rça in te le c tu a l" . Com isso, pode</p><p>d iscorrer in te ligentem ente e em m uitas coisas podemos</p><p>reconhecer M ário , que aliás p ro je ta na cantora mesmo um</p><p>episódio au tob iog rá fico : o caso da natureza m orta de Donato</p><p>Bosi e do Hom em A m are lo de A n ita M a lfa tti (O Banquete,</p><p>p. 90). Tam bém podemos supor que o re tra to fe ito por</p><p>P ortina ri e re fe rido pela cantora, "d e dois azues e m u ito</p><p>diversos de co lo ração", representando um "ro s to quente m u ito</p><p>amorenado do h om em " (O Banquete, p. 87) seja o p róp rio</p><p>re tra to de M ário. E o au to r mesmo se d ive rte intrigando-nos</p><p>com uma relação obscura que parece m anter com a</p><p>personagem, irrom pendo numa observação isolada do te x to</p><p>por parênteses e que compreendem os m al. É quando</p><p>Siomara d iscorre sobre a comoção estética, especffica, em</p><p>oposição à colaboração fo rte do esp írito nas outras emoções.</p><p>11 "O caso Magda Tag liaferro” . in M . Batista, T . Lopez e Y . L im a —</p><p>B ra s il: 19 te m p o m o d e rn is ta — 1 9 1 7 /2 9 D o c u m e n ta ç ã o , São Paulo,</p><p>I.E .B ., p. 321 e seg.</p><p>Contra estas ú ltim as, é possível reagir — elas se a lo jam no</p><p>esp írito . Contra as emoções estéticas é impossível, pois elas</p><p>dependem do ob je to a rtís tico d iante de nós: ela não é</p><p>con tínua , se o ob je to não nos estim ula, ela desaparece. A</p><p>virtuose conc lu i:</p><p>“ A o passo que é possível reagir contra o am or, o ódio</p><p>e mesmo a excitação sexual, não só com o afetos, mas</p><p>com o com oções".</p><p>A frase tem seu lugar no discurso de S iomara, e</p><p>podemos mesmo crer que to d o esse desenvolvim ento não</p><p>seja desaprovado por M ário , que tan to se interessava pelas</p><p>reações dos espectadores, ouvintes, d iante das emoções da</p><p>arte e da vida. Mas ele evoca tam bém a personagem fria ,</p><p>assexuada, sacrificando paixões e alma, que a cantora fizera</p><p>de si mesma. E é bem aí que a voz do au to r intervém</p><p>" (A h ! p e rfil du ro , p e rfil duro . . . Hoje, mesmo quanto</p><p>te con tem p lo , parece impossível recobrar o passado a</p><p>ressentir tanta ventura irrealizada que so fri . . . Mas . . .</p><p>mudaria o Natal ou m udei eu? . . . Bom) (O Banquete,</p><p>p. 89).</p><p>As dissertações de Siomara sobre as sensações estéticas</p><p>no ca p ítu lo III estão ligadas a interesses do p ró p rio Mário.</p><p>Assim , o desenvolvim ento sobre a relação a rte /técn ica , que</p><p>parte de uma de fin ição do autor e de uma reflexão sobre</p><p>"O artista e o artesão" (exp lic itam ente mencionados no</p><p>te x to ), é um pro longam ento, uma afinação do problem a.</p><p>M ário aliás fora provavelm ente levado a fazê-lo em</p><p>consequência de uma polém ica com Sérgio M illie t, que o</p><p>acusara de com p lica r inu tilm e n te os dados do problem a com</p><p>defin ições desnecessárias.12 E sobre as reações psicofisiológicas</p><p>d iante do ob je to a rtís tico , encontrar-se-ão desenvolvim entos</p><p>da mesma natureza em "D o desenho",13 ou na "Terapêutica</p><p>m usica l" (op. c /t.) . Por vezes, o te x to é uma ten ta tiva de</p><p>defin ição estética, sente-se uma necessidade no auto r de</p><p>precisar suas próprias idéias, ao mesmo tem po que nos oferece</p><p>as chaves de seu pensam ento: assim a reflexão sobre o r itm o</p><p>(O Banquete, págs. 84 a 86), a relação entre a comoção estética</p><p>de um e rud ito e de um ignorante</p><p>(O Banquete, págs. 91 e 92).</p><p>No f im do c a p ítu lo , Siomara é tão M ário que Sarah L ig h t é</p><p>obrigada a chamar sua atenção, lem brando (de m odo ind ire to ,</p><p>Cf. "E squerzo", in 'M un do M usical".</p><p>In A spec tos das a rte s p lás ticas n o B ra s il, São Paulo, M artins Ed.,</p><p>1965.</p><p>mas logo c larificado pelo p o lítico ) que o gozo das artes é um</p><p>p riv ilég io de classe, e provocando um remorso desanimado na</p><p>grande virtuose (O Banquete, págs. 91 a 93).</p><p>Qual é o interesse de tais reflexões? Um p rim e iro ,</p><p>essencial: elas nos perm item com preender os pontos de</p><p>referência dos mecanismos do pensamento do au to r. Não</p><p>im porta que por vezes o te x to pareça pouco o rig ina l, ou</p><p>pouco rigoroso, o interessante é, ao co n trá rio , saber com o</p><p>M ário sentia, u tilizava, resolvia suas preocupações. E no</p><p>esforço por vezes confuso de se s itu a r,14 M ário levanta</p><p>coelhos im portantes: por exem plo o problem a da cu ltu ra</p><p>popular d iante da cu ltu ra "e ru d ita " — fenóm eno de distância</p><p>que ele situa a p a rtir do século X IX e que começa apenas</p><p>agora a aparecer nas preocupações de h istoriadores da arte</p><p>com o B ertho ld H inz e T. J. C lark. Mas o au to r mesmo coloca</p><p>em questão tudo o que d iz através da voz de S iomara Ponga:</p><p>as discussões estéticas não resolvem problemas concretos,</p><p>im ediatos e essenciais:</p><p>"O tem po passara e eles m u ito entre tidos naquele</p><p>lero-lero estético. Não tinham com binado nada a</p><p>respeito do co m p o s ito r" (O Banquete, p. 93).</p><p>Antes da in terrupção d e fin itiva do te x to , Siomara ainda</p><p>in terv irá , de m odo im portan te , numa longa exposição sobre a</p><p>m orte e o am or (O Banquete, p. 133), por vezes sendo a</p><p>personagem, por vezes sendo m u ito M ário : na m elancolia da</p><p>evocação do esporte ,15 nos meandros brilhantes da reflexão</p><p>14 Confusão que se acrescenta de um problem a. A legendária cultura</p><p>de M ário é indiscutivelm ente vasta e universal. Ela é entretanto</p><p>autodidata, e um universitário, por exem plo , poderá assustar-se com</p><p>os saltos com parativos — e abusivos — que ligam artes e artistas de</p><p>períodos e regiões m uito distantes: Siom ara associa Bach a Rafael,</p><p>M ichelangelo, Veronese e T ic iano, afastando-o de T iepolo ; e</p><p>mesmo coloca coisas sem sentido ou, no lim ite , falsas, como a</p><p>ausência de consciência individualizadora na pintura do século X V I</p><p>italiano (Rafael, M ichelangelo, T ic iano , Veronese e Da V in c i),</p><p>oposta à "vontade de especificação pessoal" da pintura "flam enga"</p><p>do século X V I I (incluindo Hals e Rem brandt ao lado de Rubens</p><p>e Teniers!). Que lacunas sejam assim por vezes preenchidas com</p><p>referências rápidas e pouco sérias, em bora aparentem ente brilhantes,</p><p>é inegável, mas elas representam tam bém um m eio que perm ite ás</p><p>idéias motoras e fecundas avançar. E não podemos esquecer que,</p><p>ao lado desses malabarismos, M ário produziu estudos de rigor e</p><p>valor indiscutíveis — já que estamos no d o m ín io das artes plásticas,</p><p>lembremos apenas o perfeitíssim o trabalho sobre o Pe. Jesuíno</p><p>do M onte Carm elo.</p><p>15 N um registro próxim o, M ário já pensara a questão em "Brasil x A rgentina"</p><p>de 1 939 , in Os f ilh o s da C a n d in h a , São Paulo, M artins Ed., 1963.</p><p>sobre a sincopa e o am or. Tais textos en tre tan to não apagam</p><p>a impressão de frieza, de desperdício estéril que escapa da</p><p>cantora. Siomara é uma "académ ica". A ela em contraste se</p><p>colocará Janjão, o sincero criador.</p><p>Janjão</p><p>A virtuosidade, mais que um problem a puram ente</p><p>técnico, propõe um problem a m oral. Tem-se a impressão que</p><p>o in té rpre te " ú t i l " no Brasil de 1944 pode fac ilm en te saber</p><p>seu cam inho, que é essencialmente a colaboração de um</p><p>estilo que se associa às especificidades da criação nacional, e</p><p>a divulgação de obras dessa criação. A função do in térprete</p><p>parece bastante precisa, e no fundo pouco prob lem ática : sua</p><p>a titude de base d iante da arte brasile ira, ao mesmo tem po de</p><p>serviço e colaboração, não faz dúvida para M ário e os modos</p><p>dessa relação não são nem com plexos nem ambíguos. Para o</p><p>artista criador, o problem a — no m om ento em que M ário</p><p>escreve — é m u ito menos c la ro : ele não está "d ia n te " de</p><p>alguma coisa, com o o in térpre te , mas cabe a ele, numa</p><p>situação geral que é ta teante e com plicada, cons tru ir a</p><p>estrutura do e d ifíc io a p a rtir de pontos de referência que se</p><p>em brulham , confundem-se, enganam.</p><p>Na base está o que poderíam os chamar de fide lidade ao</p><p>ideal de uma criação que progride sempre. Um exem plo um</p><p>pouco sim bólico e que marcara m u ito M ário, transparecendo</p><p>n'O Banquete e em outros escritos, é o caso de Carlos</p><p>Gom es.16 O grande com posito r brasile iro partira para a Itá lia</p><p>e tivera um "sucesso fu lm in a n te " com O Guarani. Na sua</p><p>ópera seguinte tenta ir mais adiante e com um sentido</p><p>dram ático notável precede as soluções de Carmen, interessa-se</p><p>pelas proposições de Wagner e faz da adm irável Fosca uma</p><p>obra que am biciona ir "u m pouco além do pon to em que</p><p>jazia a ita lianidade sonora do te m p o " {Fosca, op. c it.,</p><p>p. 252 ). Mas Fosca fo i quase um fracasso e o medo de</p><p>perder sua popularidade fê-lo escrever "em língua de p ú b lic o "</p><p>Salvator Rosa , vo ltando atrás e reencontrando o sucesso</p><p>perdido. O com pos ito r vendera sua alma ao d iabo.</p><p>Apólogo do artista que tra i seu ideal da verdadeira A rte</p><p>pelo sucesso, a h istória de Carlos Gomes é advertência. Mas a</p><p>16 M ário de A ndrade — Fosca, in "Revista Brasileira de M úsica",</p><p>núm ero especial consagrado ao 1? centenário do nascimento de A.</p><p>Carlos Gomes, 1 9 3 6 , p. 251 e seg.</p><p>"verdadeira A r te " não é sempre fac ilm en te identificáve l e a</p><p>situação do artista pouco segura. Janjão, no ca p ítu lo II</p><p>anuncia claram ente: as orientações teóricas não levam à</p><p>"verdadeira A r te " , elas constituem direções cómodas, mas</p><p>por a í mesmo conform istas. Nada de teorias precisas e</p><p>claram ente organizadas: o artista deve te r uma "estesia" —</p><p>palavra mais ambígua, mas que contém nela o d inam ism o e</p><p>o estím u lo de um fazer c o n tín u o :</p><p>" A arte é uma doença, é uma insatisfação humana: e o</p><p>artista com bate a doença fazendo mais arte, outra</p><p>a rte " (O Banquete , p. 60).</p><p>Não se tra ta no entanto de uma produção que se</p><p>repete; trata-se desse "faze r m e lho r” tão essencial para M ário.</p><p>Se não fo r assim o artista será con fo rm is ta ou p io r, um</p><p>" fo lc ló r ic o " . Neste pon to colocam-se as relações entre o</p><p>artista e a produção popu la r: passagem d if íc i l que M ário</p><p>resolve mal. A arte do povo é o que chamamos fo lc lo re , e</p><p>está ligada a condições de classe e a com portam entos sociais</p><p>específicos: ignorância (analfabetism o) e conservadorism o.</p><p>Está latente a noção, embora o auto r não a u tilize nem a</p><p>leve às consequências, que o "p o v o " possui uma cu ltu ra que</p><p>tende a desaparecer com o progresso "c iv il iz a d o r" . Em todo</p><p>caso há uma distância irreparável entre os artistas "e ru d ito s "</p><p>e a cu ltu ra popular. Não se pode fazer arte para o povo.</p><p>Como ele d iz, é "te o ria c u r ta " .^Q ual é então a função do</p><p>artista? m elhorar a vida. A arte, porque não é con fo rm is ta ,</p><p>é uma "p roposição de fe lic id a d e ": solução através de um</p><p>conce ito vaguíssimo, que se consola e se refugia na sua</p><p>generalidade mesma.</p><p>M elhorar a vida significará fazer arte de com bate, "a rte</p><p>p ro le tá ria ", "a rte socia l"? Não; e arte social não significa</p><p>arte de com bate, arte "enga jada" com o d iríam os hoje — e é</p><p>mesmo re fle tin d o sobre as funções sociais da arte (que no</p><p>caso de M ário são antes psicossociais) que se pode passar a</p><p>uma etapa mais p ro funda dos deveres do artis ta . Pois a</p><p>reflexão sobre o problema da função social da arte não</p><p>somente levaria o artista a in te rv ir em fatores mais exteriores</p><p>com o a concepção do assunto, mas de um m odo mais ín tim o ,</p><p>da p rópria técnica.</p><p>Siomara</p><p>Ponga d iscu tirá questões próxim as, na ausência</p><p>do com pos ito r (O Banquete, p. 77). Mas enquanto a cantora</p><p>fica em considerações gerais e exteriores, numa espécie de</p><p>d ile tan tism o estético, teorizando apenas, Janjão traz tais</p><p>problemas à sua proporçãc central — a a titude do artista</p><p>d iante da vida. Assim , a arte social o leva a uma concepção</p><p>que opõef "técn icas do acabado" e "técn icas do inacabado" —</p><p>as prim eiras, a firm ativas e dogmáticas, ind iscutíve is; as</p><p>segundas, insatisfe itas, "m a ltra ta m , excitam o espectador e o</p><p>põem de p é ", prestes para o combate. Há artes abertas</p><p>(desenho,17 teatro ) e técnicas "abe rtas" — assim, por exem plo,</p><p>0 problem a da dissonância. Já vim os que sua idéia de</p><p>dissonância = insatisfação vem da teoria clássica; M ário a</p><p>pro jeta no passado (antiguidade grega, "A rs N ova") para</p><p>apoiar o argum ento que a dissonância é uma técnica do</p><p>inacabado, d inâm ica e vio lenta . Desse m odo, há meios</p><p>específicos imanentes à arte, p róprios para a produção de</p><p>com bate:</p><p>"T o d a obra de circunstância, p rinc ipa lm ente a de</p><p>com bate, não só perm ite mas exige as técnicas mais</p><p>v io lentas e dinâm icas do inacabado" (O Banquete, p. 62).</p><p>É in ú til d iscu tir aqui a "ve rdade " dessas proposições: o</p><p>que conta é o exem plo de busca de elementos que sirvam</p><p>com o meios não conform ístas da produção a rtís tica ,</p><p>penetrando in tim am ente na "n a tu re za " da arte (mesmo se</p><p>sabemos, à distância do te x to , que essa "n a tu re za " é em</p><p>realidade circunstancia lm ente ligada à noções de tem po).</p><p>O artista en tre tan to deve se recusar a uma arte de</p><p>com bate "ao alcance do p ovo ", se isso significa concessão ou</p><p>h ipocrisia em face de si mesmo:</p><p>"E u sou de form ação burguesa cem por cento , você</p><p>esquece?" (O Banquete , p. 63).</p><p>Mas a consciência aguda da aristocracia ind iv idua l do</p><p>artista (um pouco com o no D elacro ix da m aturidade: "o</p><p>homem que faz a 'sua' m ora l, só aceita a 'sua' verdade,</p><p>numa libertação ind ife ren te a quaisquer . . . representações</p><p>co le tivas" (O Banquete, p. 63), o leva a um "e levado senso</p><p>m o ra l" e a uma "verdade co le tiv a ": respeitando a liberdade</p><p>pessoal na sua "e v id ê n c ia ", ela "d ita uma verdade e uma</p><p>m oral que co incidem necessariamente com o Bem e a</p><p>V erdade" — a consciência da própria ind iv idua lidade e da</p><p>própria liberdade leva a uma sabedoria que im p lica a</p><p>consciência da Liberdade. Mas é claro, nesse m om ento</p><p>começam as contrad ições: a consciência exige o empenho.</p><p>Que fazer? E M ário re to rna , violentando-se, à arte de combate</p><p>que recusara antes — Janjão é au to r de obras que são</p><p>populares "co m o concepção do assunto, exaltando as formas</p><p>proletárias da v ida ". E justifica-se num entregar-se consciente</p><p>1 7 Cf. M ário de A ndrade, " D o desenho", op. c it.</p><p>a essa produção de um certo m odo “ h ip ó c r ita " — deixa-se</p><p>m anipu lar, faz-se boneco, mas a í consciente: "T u d o está em</p><p>ser boneco consciente da sua bonequice". E supera a noção</p><p>da aristocracia ind iv idua l do artista com a constatação de que</p><p>todo artista verdadeiro é um fora da le i, está fora dos</p><p>com partim entos propostos pela sociedade que produz</p><p>riquezas, seu o lhar tem uma posição priv ileg iada:</p><p>"P orque sendo 'o u t law ', extra-econôm ico por natureza,</p><p>sem classe por natureza, sem povo por natureza, sem</p><p>nação, o artista não deixa por menos: o que ele exige</p><p>é a hum an idade" [O Banquete, p. 64).</p><p>Estamos, sem nenhuma dúvida, nó âm b ito das atitudes</p><p>legadas pelo século X IX — ao aristocra tism o de D elacro ix se</p><p>acrescenta o "o u t la w " Courbet. M ário herda os problemas</p><p>morais colocados pelos grandes do século que o precede: o</p><p>ser fora das contingências sociais mas de term inado pela sua</p><p>m oral superior, concebendo uma hum anidade pela qual</p><p>anseia, que ama e que teme.</p><p>D elacro ix, Courbet, B yron mesmo. Mas a eles, tão</p><p>próxim os, M ário acrescenta o problem a p ró p rio ao nosso</p><p>tem po — não só do engajamento do a rtis ta , mas da função</p><p>po lítica da arte ela mesma. Problema ao qual se associa, em</p><p>M ário, a noção de sacrifíc io : a arte deve almejar servir e não</p><p>ser a obra-prim a eterna, para a posteridade. A o co n trá rio , um</p><p>dos modos essenciais do empenho é o sacrifíc io à</p><p>trans ito riedade .18</p><p>Raramente em outros tex tos ficaram tão claras as</p><p>contradições de M ário e a sua concepção ao mesmo tem po</p><p>sacrificial e messiânica do artista . O que Janjão d iz sai das</p><p>profundezas da alma do au to r: o "Esquerzo a n tifa ch is ta ", a</p><p>"S in fo n ia do tra b a lh o ", essas músicas po liticam en te engajadas</p><p>do com posito r Janjão têm um equivalente na obra de M ário:</p><p>a "Concepção m elodram ática" — Café. Lá M ário exige de si</p><p>seu destino de m elhorar a vida, e o poema adm irável é</p><p>também um admirável esforço. Mas as contrad ições e</p><p>tateam entos de Janjão tam bém nos são confiados nas</p><p>confidências doloridas da Lira paulistana, e a lágrim a de</p><p>Janjão é a mesma que caíra nas águas escuras do r io , no</p><p>no tu rno " A meditação sobre o T ie tê ".</p><p>18 Cf. sobre o problem a do empenho do músico: M ário de Andrade,</p><p>" In tro d u ção " à V . Seroff — S h o s ta ko v ich , E. G . O C ruzeiro , R.</p><p>Janeiro, 1945. Mas este texto unilateral é, como o C afé , uma</p><p>proposição sem contradições. A q u i, como no poem a, M ário é um</p><p>pouco' o ."boneco".</p><p>"Jan jão estava bastante envergonhado com a fraqueza</p><p>que tivera de m ostrar as suas contradições de artista ,</p><p>consciente da servidão social das artes mas incapaz de</p><p>se libe rta r do seu ind iv idua lism o ” (O Banquete, p. 65).</p><p>Este a flo ra r de contradições é um autoquestionam ento,</p><p>uma dúvida con tínua que não abandona M ário no f im da sua</p><p>vida. Devemos enviar o le ito r a um te x to essencial,</p><p>com ple tando as confissões de Janjão e m ostrando sem</p><p>desvios essa consciência luc idam ente aguda e sempre</p><p>insatisfe ita: trata-se d '"O m ovim en to m odernista de 1942” ,</p><p>que se encontra nos Aspectos da L ite ra tu ra Brasile ira.</p><p>M om ento de crise para M ário, m om ento de revisão de</p><p>sua vida e obra. "M archar com as m u ltid õ e s", com o d iz no</p><p>"M o v im e n to m odernista” , fazer obra de com bate, de lu ta, de</p><p>empenho, é uma solução que o poeta M ário de Andrade</p><p>provara, na ten ta tiva de superar a a titude m odernista, que lhe</p><p>parece insu fic ien te :</p><p>"E si agora percorro a m inha obra já numerosa e que</p><p>representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só</p><p>vez pegar a máscara do tem po e esbofeteá-la com o ela</p><p>merece. Quando m u ito lhe fiz de longe umas caretas. Mas</p><p>isto, a m im , não me satisfaz ("M o v . M odern ista” , p. 243).</p><p>Talvez uma arte p o lítica , um Café ou um "Esquerzo</p><p>an tifach is ta ” possam agredir mais a "máscara do te m p o ". Mas</p><p>Janjão parece insa tis fe ito , não convencido : divagando em</p><p>frases soltas, não crê na construção de "um a arte que</p><p>interessasse as massas e as movesse” . E propõe que a obra de</p><p>arte seja malsã, continuam ente revolucionária</p><p>"n o sentido de conter germes d estruidores e</p><p>intoxicadores, que <jn a I e st ar izep? a vida am biente e</p><p>ajudem a botar por terra as form as gastas da</p><p>sociedade" (O Banquete, p. 65).</p><p>É bem M ário que fala a í — no "M o v im e n to m odern ista”</p><p>lembrara sua idade que avançava num m u ito tarde para</p><p>recomeçar (e realm ente M ário m orreria três anos depois) — e</p><p>Janjão, embora m oço, "não conseguiria mais refazer seu</p><p>ca m inh o ", mas pode ten ta r fazer "obras que entusiasmem os</p><p>mais novos, ainda capazes de se c o le tiv iz a r" (O Banquete,</p><p>p. 65, sublinhado por nós). L ição para "os mais novos":</p><p>constru ir, teorizar, a firm ar não; é preciso "ag ir d es tru in do ” . Os</p><p>modernistas, d iz Janjão, destru íram velhos cânones burgueses,</p><p>mas constru íram outros, burgueses tam bém — fizeram na</p><p>realidade uma atualização ideológica para a p rópria burguesia.</p><p>E Jan jão lem bra o “ P re fác io In</p><p>te re ssa n tíss im o " de Paulicé ia</p><p>desva irada, onde há antes e n riq u e c im e n to de fo rm a s que</p><p>d e s tru iç ã o :</p><p>“ Mas não desdenho ba lo iços dançarinos de re d on d ilha s</p><p>e decassílabos (. . .) Nesta questão de m e tros não sou</p><p>a lia d o ; sou co m o a A rg e n tin a : e n r iq u e ç o -m e " (Poesias</p><p>co m p le ta s , p. 2 0 ).</p><p>"E is to é cons truçã o , Pastor F id o ! É riqueza 'a m ais ',</p><p>c a p ita lis m o " (O B anquete , p. 66 ).</p><p>exclam a Jan jão (e pode ríam os lem bra r a inda, mais fo r te , a</p><p>frase lâm ina de O sw ald evocando o engano id e o ló g ico no</p><p>te x to te rr ív e l que precede S e ra fim P onte G rande (1 9 3 3 ):</p><p>" A s ituação 're v o lu c io n á r ia ' desta bosta m en ta l su l-am ericana</p><p>apresentava-se assim : o c o n trá r io do burguês não era o</p><p>p ro le tá r io — era o b o é m io ! " ) .19</p><p>Que a a rte con tenha os germes de d es tru içã o não quer</p><p>d ize r que ela mesma não seja c o n s tru íd a . M á rio fa la ra em</p><p>técnicas abertas, capazes de serem, no in te r io r da a rte mesma,</p><p>“ irre cu p e rá ve is ". Na rea lidade, a técn ica pode ser c o n s tru t iv a ,</p><p>e m esm o a técn ica artesanal “ o b je t iv a " — u ltrapassando os</p><p>hom ens e as escolas — não é perigosa. Perigosas são as</p><p>técnicas in d iv id u a is 20 que podem e ven tua lm en te serem</p><p>aprove itadas pela classe d o m in a n te . É — ainda uma vez —</p><p>in ú t i l d is c u tir sobre os exem p los que M á rio to m a na h is tó ria</p><p>das artes para ilu s tra r sua te o r ia , exem p los e visão h is tó rica</p><p>d iscu tíve is . A ss ina lem os antes a im p o rtâ n c ia dessa idéia de</p><p>consegu ir uma a rte irrecuperáve l pelas classes d o m in a n te s , no</p><p>se n tid o em que ela não fo rneça os e lem entos de uma fó rm u la</p><p>có m o da destinados a c o n s tru ir o b je tos a rtís tic o s cu ja</p><p>fin a lid a d e será um jog o h e d o n ís tic o p e rtencen te aos "d o n o s</p><p>da v id a " .</p><p>Perdem o-nos com M ário nos seus exem p los e ra c io c ín io s</p><p>h is to r ic a m e n te inexa tos . A noção que revém tão</p><p>fre q u e n te m e n te de "a c a d e m is m o ", po r e xe m p lo , não é nunca</p><p>to m a da nas acepções d ife ren te s que teve na evo lução dos</p><p>tem pos. Ela tem aqu i o sen tido p e jo ra tiv o de rece itas a p a r t ir</p><p>de um a escola — noção que lhe c o n fe riu o século X IX , mas</p><p>19 O sw ald de A n d rad e — S e ra fim P o n te G ra n d e , Obras com pletas 2 ,</p><p>São P au lo , C iv . B rasile ira , 1 9 7 1 .</p><p>2()</p><p>M ário dá um sentido largo à noção de técnica: S io m ara d irá —</p><p>é " o c o n ju n to de con hec im en tos práticos com que o artis ta m ove</p><p>o m ate ria l prá con s tru ir a obra de a rte " — nisso inc lu in d o a</p><p>estética p ró p ria ao a rtis ta . P o deríam o s d ize r que o estilo p artic ipa</p><p>dessa noção larga de técn ica.</p><p>se alarga a inda, po is p o r ela M á rio condena o a rtis ta que</p><p>segue seguram ente suas p ró p rias receitas, já e xpe rim en tadas e</p><p>aprovadas, sem nada a rrisca r d ia n te de seu p ú b lic o .21</p><p>A esses "a c a d é m ic o s " se o põ em as audácias dos</p><p>" fa u v e s " . Na rea lidade , M á rio não d e fin e h is to r ic a m e n te ou</p><p>te o r ic a m e n te esses c o n c e ito s : ele os vive — e se serve deles</p><p>c o m o e lem entos de lu ta . A re vo lta m od e rn is ta lançara-o num a</p><p>ba ta lha c o n tfn u a c o n tra os "m e s tre s do passado"</p><p>"a c a d é m ic o s " e se a largara c o n tra tu d o que parecerá</p><p>c o n fo rm is m o em a rte . O h is to r ia d o r c o n te m p o râ n e o pode</p><p>perceber a c o m p le x id a d e dos fe nóm enos que esses co n ce ito s —</p><p>"a c a d é m ic o s " , " fa u v e s " — reco b rem . Mas não cabia a M ário</p><p>a com preensão dessas co m p le x id a d e s : tem os que vê-lo</p><p>ta m b ém no seu m o m e n to h is tó r ic o , q u a n d o as e tique tas</p><p>d e fin e m a lin h a de dem arcação de um cam po de ba ta lha ,</p><p>onde M á rio se em penha nos com bates de seu te m p o .</p><p>A ss im é a p a r t ir das fa c ilid a d e s d o "a c a d e m is m o " que</p><p>ele p ro põ e um a v ig ilân c ia c o n tín u a — "sa b e d o r que há</p><p>safadeza na in te lig ê n c ia (até na m in h a )" — das p ró p ria s</p><p>p ropos ições, recusando o a c o m o d a tiv o dos va lores e ternos,</p><p>ens inando o c o m b a tiv o e o t ra n s itó r io . Lançar-se no fu tu ro</p><p>sem d u v id a r de le , mas e x ig in d o sem pre o " fa z e r m e lh o r " de</p><p>si m esm o. Para que o p r in c íp io m esm o da a rte de nosso</p><p>te m p o f iq u e sendo o " p r in c íp io da re v o lu ç ã o ".</p><p>"F e n ó m e n o de a m o r" , " p r in c íp io de re v o lu ç ã o ",</p><p>"sa c rifica r-se ao t r a n s itó r io " — te rm o s bem gerais, que</p><p>podem ser u tiliz a d o s co m má fé e lástica . Mas m enos que</p><p>esses te rm o s , o . im p o r ta n te é que no pensam en to de M á rio a</p><p>a t itu d e c o n tín u a de exigênc ia de si im pede a má fé , p o rqu e</p><p>se questiona sem pre. M á rio d e ix o u este m u n d o sem nenhum a</p><p>posição c la ra , te ó r ic o que ele não era. Mas — m e lh o r — o</p><p>d e ix o u q u e s tio n a n d o a si p ró p r io e ao m u n d o , in s a tis fe ito</p><p>co m am bos.22</p><p>Jan jão re fle tirá m ais e spec ificam en te sobre a m úsica</p><p>b ras ile ira , no c a p ítu lo V , e x ig in d o o p r in c íp io de u tilid a d e ,</p><p>im e d ia to , ligado à c o n s tru çã o de um e s p ír ito nac iona l de</p><p>m úsica que está se fo rm a n d o . A lgum as questões são</p><p>m encionadas ra p id a m e n te , co m o o caso da s in co p a , que é</p><p>21 S obre esse aspecto do acad em ism o , ver o a rtig o de 1 9 3 0 , " O</p><p>B olero de R a v e l" , in M ú s ic a d o c e m ú s ic a , o p . c i t . , p. 2 5 9 a 2 6 1 .</p><p>22 M esm o a linguagem de Jan jão é pou co a firm a tiv a — ele é a</p><p>personagem que fre q u e n te m e n te perde em seu d iscurso,</p><p>reconhecendo-lhes as vaguezas, “ fa la n d o p erd id o no seu m undo</p><p>n eb u lo s o " , d ize n d o coisas q ue lhe saem do mais p ro fu n d o âmago</p><p>de sua angústia , de suas incertezas , de suas questões.</p><p>desviada por S iom ara Ponga, mas que M á rio já a tra ta ra no</p><p>Ensaio sobre a m úsica b ra s ile ira .</p><p>O utras se esclarecem e se prec isam : assim , a noção de</p><p>nac iona lism o que é um p ro je to sem d úv ida a r t i f ic ia l,</p><p>"m a c u n a ím ic o " : um nac ion a lism o fe ito c o m o um a co lcha de</p><p>re ta lhos , o c o m p o s ito r devendo fa b rica r um a síntese dos</p><p>e lem entos que conhecerá ou escolherá a p a r t ir das</p><p>m an ifestações popu la res de todas as regiões do Brasil (e M ário</p><p>pensa m esm o nas d if ic u ld a d e s das viagens, no p ro b le m a do</p><p>acesso a regiões isoladas). M á rio de A n d ra d e é fie l a si</p><p>m esm o, co m b a te n d o o re g io n a lism o , mas podem os nos</p><p>p e rgu n ta r se a so lução de uma nac ion a lid ad e supra -reg iona l,</p><p>co n s tru íd a v o lu n tá r ia e a r t if ic ia lm e n te — e inda m ais na</p><p>exigênc ia de um tra b a lh o sé rio , não su pe rfic ia l — te m um</p><p>fu n d o rea lis ta q ua lq ue r. Nos nossos dias, em que os</p><p>p a rtic u la ris m o s é tn ico s , loca is, do m u n d o in te iro , se erguem</p><p>e re iv in d ica m e spec ific idade e ide n tid ad e , podem os nos</p><p>in te rro g a r se não fa lto u ao pensam ento m us ica l de M á rio um a</p><p>visão m ais nuançada e re fle tid a sobre os aspectos d o</p><p>reg io n a lism o .</p><p>Mas o p o n to m ais v io le n ta m e n te d ese nvo lv id o , localiza-se</p><p>nos p rob lem as co n c re to s , da fo rm a çã o m us ica l, da c r í t ic a , das</p><p>escolas, das m an ifestações m usica is de todas as o rdens, do</p><p>iso la m e n to dos c o m p o s ito re s nos ce n tros m enos fa vo re c id o s</p><p>do B ras il, da fo rm a çã o dos a rtis tas , do c o m p o rta m e n to dos</p><p>responsáveis pela c u ltu ra . P rob lem as p ragm</p>

Mais conteúdos dessa disciplina