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Escola de Música – UFRJ Anotações para o curso de Metodologia do Ensino de Música Prof. José Alberto Salgado e Silva Sobre Émile Jaques-Dalcroze O educador suíço Jaques-Dalcroze (1865-1950) é visto como um renovador na educação musical, no âmbito da formação especializada e também em relação ao ensino de música nas escolas regulares. Nos textos que publicou, colocava-se como crítico das práticas pedagógico-musicais de seu tempo, frequentemente julgando seus resultados insatisfatórios em termos de sensibilidade, imaginação e articulação entre sentidos, corpo e intelecto. Segundo Santos, o educador “(…) cumpriu o papel de avaliador interno da prática social “conservatorial”, no tocante à dinâmica de ensino e aprendizagem que se dá nessa instituição, a partir de indicadores tomados da sala de aula, ao observar o comportamento dos alunos de suas próprias turmas de jovens estudantes de música no Conservatório de Música de Genebra, em 1892”1 (Santos, 2001, p.10). Uma crítica importante era a de que as práticas do conservatório geravam nos alunos “uma resposta mecânica, (…) desprovida de um efetivo envolvimento da sensibilidade e imaginação auditivas” (ibid., p.10).2 A observação das dificuldades apresentadas por seus alunos de Harmonia fez com que o autor buscasse soluções pelo treinamento do ouvido, com exercícios auditivos que precediam os exercícios específicos da matéria. Logo percebeu que além da audição, era importante desenvolver outro sentido, que a princípio pensava ser o do tato. Após adotar exercícios métricos com uso dos dedos, no entanto, chegou 1 De acordo com o prefácio escrito por Jaques-Dalcroze, para a primeira edição de Rhythm, Music & Education, o ano seria o de 1894. 2 Ver argumento da autora sobre a atualidade dessa avaliação na p.9 de seu artigo. 2 “à descoberta de que sensações musicais de natureza rítmica envolvem a resposta muscular e nervosa do organismo inteiro. Preparei para meus alunos exercícios de caminhar e parar, e os treinei a reagir fisicamente à percepção de ritmos musicais. Essa foi a origem de minha “Eurritmia” (…)” (v. Jaques-Dalcroze, 1973, vii-viii). Jaques-Dalcroze estende suas preocupações ao tratamento mais generalizado da música nas escolas regulares. Uma premissa identificada nos ensaios de seu principal livro é que na infância a aprendizagem ocorre de modo mais fácil e desimpedido, livre de “preconceitos intelectuais”. Nesse estágio da vida, “cada nova sensação traz deleite”, estimulando a curiosidade.3 Em relação ao lugar da música nas escolas, Jaques-Dalcroze “(…) diagnosticou uma nítida separação entre “música de adultos” e “música das crianças e escolas”, e que a música nas escolas funcionava como um passatempo (Santos, op. cit., p.10).” Seria necessário cuidar da música e das artes no currículo com mais respeito, senão com amor. O tempo de apenas uma hora semanal para essas atividades era visto por ele como insuficiente. Nos escritos, também estão expostas certas orientações estéticas do autor, como uma valorização do silêncio e dos contrastes e nuances de “dinâmica” no discurso musical (v. o ensaio “Eurritmia e composição”, de 1915, em Jaques-Dalcroze, op. cit.). “(…) uma das premissas dalcrozianas é de que haja relação do professor com o atual, com o futuro, com a renovação, com novos materiais, novos instrumentos de criação dos artistas, que devem chegar às mãos dos amadores, sendo estes treinados a manejá-los o mais cedo possível, ‘antes que adquiram o hábito de fazer coisas nos moldes antigos e se tornem impedidos de, com sucesso, lidar com o novo’” (Santos, 2001, p.8). Para implementar suas inovações, Jaques-Dalcroze relata ter enfrentado objeções fundadas na concepção dominante do que é o músico e, consequentemente, do que seria sua educação: 3 Ver Sá Pereira (1937), comentando “interesse do aluno”, sua motivação intrínseca, como condição da aprendizagem. 3 O verdadeiro músico (era dito) deve possuir instintivamente, digamos, as qualificações necessárias para a prática de sua arte, e nenhuma quantidade de estudo poderia suprir dons que devem vir naturalmente ou então nunca vêm: o tempo do estudante sendo estritamente limitado, era indesejável embaraçá-lo com esforços adicionais tendendo a distraí-lo de sua absorção nos exercícios dos dedos: seus estudos instrumentais já eram adequados às suas necessidades musicais etc. etc.” (Jaques-Dalcroze, op. cit., p.3) Querendo livrar-se do determinismo de um talento inato, o autor elaborou suas propostas também para a educação regular, a fim de nesse espaço embasar a formação artística e derivar disso benefícios mais gerais. Sua ênfase numa “educação pelo ritmo” baseava-se numa lista de 8 “conclusões” ou axiomas (Jaques-Dalcroze, op. cit., p.39-40): 1. Ritmo é movimento 2. Ritmo é essencialmente físico 3. Todo movimento envolve tempo e espaço 4. A consciência musical resulta da experiência física 5. O aperfeiçoamento dos recursos físicos resulta em clareza da percepção 6. O aperfeiçoamento dos movimentos no tempo traz consciência do ritmo musical 7. O aperfeiçoamento dos movimentos no espaço traz consciência do ritmo plástico 8. O aperfeiçoamento dos movimentos no tempo e espaço somente pode ser alcançado por exercícios de movimento rítmico. Certo encantamento com o logos da ciência manifesta-se em Jaques-Dalcroze. Adotando terminologia fisiológica, confia no condicionamento por meio de “um novo sistema de ginástica aplicado ao sistema nervoso”, capaz de “abrir entre o cérebro, o ouvido e a laringe os canais necessários para formar a partir do organismo inteiro o que se pode chamar ouvido interno…” (Jaques-Dalcroze, op. cit., p.3). Pode-se considerar que, para o autor, corpo e organismo constituem a (nova) imagem do ser, com engrenagem e conexões capazes de fino ajuste, como máquina sofisticada de perceber e fazer música. Se por um lado Jaques-Dalcroze apresentava argumentos naturalistas, por outro evocava também o caráter particular das culturas – “(…) o ensino da eurritmia deve 4 variar de acordo com o temperamento e o caráter das crianças de todos os países nos quais for introduzido” (apud Santos, op. cit., p.8) – ainda que o fizesse numa perspectiva igualmente naturalista, com algo de biológica ou geográfica: “O estilo na música varia de acordo com clima e latitude e, por corolário, conforme os temperamentos são influenciados e modificados por atmosfera social e condições de vida. As divergências de harmonia e movimento que caracterizam a música dos diferentes povos derivam, assim, do estado nervoso e muscular de seus organismos (…)” (Jaques- Dalcroze, op. cit., p.3). A seguir, uma citação longa (extraída do ensaio intitulado “O lugar do treinamento auditivo na educação musical”, de 1898) pode ser útil à compreensão de idéias motivadoras na pedagogia de Jaques-Dalcroze. É possível localizar no texto a formulação de problemas, premissas e hipóteses de trabalho, além de metas estéticas e metas educacionais que transcendem a aquisição de habilidade musical. Frequentemente, fico chocado ao observar a dificuldade que crianças pequenas têm de acompanhar, enquanto marcham, um movimento bem lento na música, em parar ou dar um passo a frente imediatamente a um comando, em relaxar seus membros após um momento de ansiedade, em assumir uma postura e acompanhar os movimentos dos outros, quando são ensinadas a acompanhar uma canção com gestos. Não admira, considerando o tempo que se perde entre a volição e a realização de seus movimentos, que, ao ensaiar uma canção, suas pequenas laringes sejam inábeis, suas cordas vocais inflexíveis e inexatas, sua respiração mal-regulada, isso para não falar de suas tentativas de pontuar e medir o tempo e de emitir cada nota no momento certo! Não apenas o ouvido e a voz da criança devem receber treinamento adequado mas, adicionalmente, cada parte de seu corpo que contribui para o movimento rítmico, cada elemento muscular e nervoso que vibra,se contrai, e relaxa sob a pressão dos impulsos naturais. Será que não é possível criar novos reflexos, empreender uma educação sistemática dos centros nervosos, para aquietar as atividades de temperamentos demasiado excitáveis, para regular e harmonizar sinergias e conflitos musculares, para estabelecer comunicações mais diretas entre sentir e compreender, entre sensações que informam a mente e aquelas que recriam meios sensoriais de expressão? Cada pensamento é a interpretação de uma 5 ação. Se, até o presente, apenas os movimentos musculares da mão e dos dedos foram suficientes para criar no espírito uma consciência distinta do ritmo, será que não poderíamos transmitir impressões muito mais intensas, caso fizéssemos uso do organismo inteiro para produzir os efeitos necessarios à evocação da consciência tátil-motora? Eu anseio por um sistema de educação musical no qual o próprio corpo fará o papel de intermediário entre sons e pensamento, tornando-se o meio direto de nossos sentimentos – sensações aurais sendo reforçadas por todas aquelas colocadas em ação pelos agentes múltiplos de vibração e ressonância que estão adormecidos em nossos corpos; o sistema respiratório pontuando o ritmo das palavras, a dinâmica muscular interpretando aqueles [ritmos] ditados por emoções musicais. Na escola, a criança será assim ensinada não somente a cantar, ouvir atentamente e marcar o tempo, mas também a se mover e pensar acurada e ritmicamente. Poder-se-ia começar regulando o mecanismo do caminhar, e daí proceder para aliar movimentos vocais com gestos do corpo inteiro. Isso iria constituir ao mesmo tempo instrução no ritmo e educação pelo ritmo. (op. cit., p.4-5) (Anotações e tradução de José Alberto Salgado e Silva, para os alunos de Metodologia do Ensino de Música. EM-UFRJ) Fontes consultadas JAQUES-DALCROZE, Emile. Rhythm, Music & Education. Aylesbury: Hazell Watson and Viney, 1973 [1921]. SANTOS, Regina M. Simão. Jaques-Dalcroze, avaliador da instituição escolar: em que se pode reconhecer Dalcroze um século depois?. Debates, n.4, 2001, p.7-48.
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