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<p>882</p><p>DESCORTINANDO O CONCEITO DE INFÂNCIA NA HISTÓRIA: DO PASSADO À</p><p>CONTEMPORANEIDADE</p><p>Sandro da Silva Cordeiro</p><p>Universidade Federal do Rio Grande do Norte</p><p>Maria das Graças Pinto Coelho</p><p>Universidade Federal do Rio Grande do Norte</p><p>RESUMO</p><p>Para compreendermos as mais recentes configurações impostas à infância temos necessariamente que</p><p>retroceder ao passado, buscando nos aspectos históricos algumas respostas para o presente. Partindo deste</p><p>entendimento, a idéia de criança pode ser considerada a partir de uma noção histórica e cultural</p><p>construída, a qual veio sofrendo diversas alterações percebidas no transcorrer dos tempos. Cada época</p><p>tratou de proferir um discurso que revela em sua essência os ideais e expectativas depositadas na criança,</p><p>tendo tais discursos conseqüências sobre esses indivíduos em formação. Essa conceituação, tal como a</p><p>encontramos na atualidade é recente e seu surgimento está atrelado à noção de família e ao</p><p>desenvolvimento da educação escolar a partir do século XVII. Recorrendo-se a definição da palavra</p><p>infância, oriunda do latim infantia, significa “incapacidade de falar”. Considerava-se que a criança, antes</p><p>dos 7 anos de idade, não teria condições de falar, de expressar seus pensamentos, seus sentimentos. Desde</p><p>a sua gênese, a palavra infância carrega consigo o estigma da incapacidade, da incompletude perante os</p><p>mais experientes, relegando-lhes uma condição subalterna diante da sociedade. Era um ser anônimo, sem</p><p>um espaço determinado socialmente. Este trabalho visa refletir acerca do conceito de infância ao longo da</p><p>historiografia humana, extraindo destes acontecimentos registrados a percepção sobre as crianças em seus</p><p>diferentes períodos, culminando com as suas atuais determinações desveladas em nossa</p><p>contemporaneidade, influenciada principalmente pela sociedade da informação e do consumo. Para tanto,</p><p>recorremos a algumas fontes bibliográficas ligadas tanto a história da educação, quanto a alguns autores</p><p>que dialogam sobre as questões envolvendo a atualidade, vinculadas as correntes da sociologia e da</p><p>comunicação social. Desse modo, perpassa várias áreas do conhecimento, tornando-se fundamental esta</p><p>reflexão na busca de uma compreensão acerca da visão construída hoje sobre o ser criança. Neste espaço</p><p>mutante e efêmero, a noção de infância adquiriu uma nova roupagem, incorporando uma reestruturação</p><p>que lhe confere um outro status. A criança desses novos tempos possui outras características, necessidades</p><p>não encontradas outrora, aspirações estas fruto da recente ordem estabelecida mediante os ditames da</p><p>globalização e do neoliberalismo. Neste contexto, as mídias se configuram como elementos fornecedores</p><p>de uma considerável quantidade de informações disponíveis através de diferentes suportes. Isso</p><p>contribuiu, direta e indiretamente, na montagem dessa nova fase da infância, na qual a criança é encarada</p><p>como um sujeito receptor e consumidor em potencial. Diferentemente do protótipo de criança</p><p>desenvolvidos nos séculos anteriores a criança, calcado no mito da infância feliz deste novo milênio,</p><p>possui um espírito mais independente, pois desenvolveu uma série de habilidades no contato a mídia. No</p><p>entanto, ainda precisa da ação interventora e mediadora do adulto, no sentido de conduzi-la na elaboração</p><p>das estratégias de percepção da realidade, auxiliando-a nas suas escolhas, na constituição de princípios e</p><p>valores baseados na justiça e na solidariedade, proporcionando a construção de um olhar crítico frente o</p><p>mundo circundante. Desse modo, percebe-se que todos os acontecimentos ocorridos na história da infância</p><p>serviram para estruturar uma nova caracterização da criança, do ponto de vista sociológico, como um</p><p>componente histórico-cultural moldada por condicionantes econômicos e políticos atuando diretamente</p><p>sobre ela. Considerando tais elementos, encaramos esta fase da vida humana como detentora de direitos,</p><p>dotada de competências e capacidades a serem aprimoradas</p><p>883</p><p>TRABALHO COMPLETO</p><p>Introdução</p><p>O mundo contemporâneo impõe novos paradigmas aos sujeitos neste início de milênio. As</p><p>transformações econômicas, sociais e culturais ocorridas principalmente a partir da segunda metade do</p><p>século XX provocaram profundos impactos na sociedade, alterando verdades consideradas absolutas e</p><p>incitando questionamentos sobre o rumo tomado pela humanidade. Um clima de incertezas paira no ar,</p><p>trazendo consigo tempos em que a instabilidade, aliada a efemeridade ditam as novas relações travadas no</p><p>interior do tecido social.</p><p>São relações pautadas por paradoxos e contradições, nas quais o revolucionário e o conservador</p><p>aparecem num mesmo contexto. Esse novo standard social está impregnado de uma enorme ausência e</p><p>vazio de valores. Em contrapartida, ao mesmo tempo em que as incertezas geram temor pelas proposições</p><p>futuristas, é visível a abertura de novas portas anunciando um mundo infinito de possibilidades.</p><p>Sobre o sentimento de transformação e das suas possíveis conseqüências, Marshall Berman</p><p>elucida este entendimento com o seguinte comentário:</p><p>São todos movidos, ao mesmo tempo, pelo desejo de mudança - de</p><p>autotransformação ed e transformação do mundo em redor – e pelo terror da</p><p>desorientação e da desintegração, o terror da vida que se desfaz em pedaços.</p><p>Todos conhecem a vertigem e o terror de um mundo no qual “tudo que é sólido</p><p>se desmancha no ar” (BERMAN, 1987, p. 13).</p><p>Essas transformações ocorridas em diversos âmbitos das relações coletivas não acarretaram</p><p>mudanças apenas à população adulta. A construção social da infância adquiriu características que a</p><p>introjetam num cenário de crise, baseadas em fatores oriundos principalmente da desfragmentação do</p><p>núcleo familiar e do acesso ilimitado às informações próprias do universo adulto, alterando o modo como</p><p>elas se vêem e são vistas pelos indivíduos. Isso nos leva a constatar que esses novos tempos anunciam</p><p>uma nova era para a infância, ocasionando uma drástica mudança de rumo histórica.</p><p>A partir das afirmações acima levantadas, é pertinente empreendermos uma breve incursão ao</p><p>longo da historiografia humana, extraindo destes acontecimentos registrados a percepção sobre as crianças</p><p>em seus diferentes períodos e notando a sua escala de evolução, culminando com as suas atuais</p><p>determinações em nossos dias, influenciada pela sociedade da informação e do consumo.</p><p>Falando sobre a infância de ontem...</p><p>Para iniciar nossa trajetória ao passado, podemos inferir que as referências históricas sobre a</p><p>família obtidas em nossos dias, materializadas pela existência de pinturas, antigos diários de família,</p><p>testamentos, documentos eclesiásticos e túmulos, constituem-se numa valiosa fonte de pesquisa para os</p><p>estudos da sociedade, deixando um legado de impressões e vestígios úteis para a posteridade, auxiliando</p><p>no desvelamento dos acontecimentos ocorridos no passado.</p><p>Considerando tais fontes documentais portadoras de informações e de significados não</p><p>encontramos, até por volta do século XII, registros representando a infância. Denotamos a partir desta</p><p>constatação que a infância antes dessa delimitação histórica não existia conceitualmente. É bem provável</p><p>que não houvesse um lugar de destaque voltado para esta fase da vida. Confirmando tal verificação,</p><p>Steinberg e Kincheloe atestam sobre o conceito de infância como uma classificação específica de seres</p><p>884</p><p>humanos, necessitadas de um tratamento especial, diferente daquele fornecido aos adultos, ainda não</p><p>havia sido desenvolvido na Idade Média (STEINBERG, KINCHELOE, 2001, p. 11).</p><p>É bem verdade que a infância sempre existiu desde os primórdios da humanidade, mas a sua</p><p>percepção enquanto construção e categoria social, dotada de uma representação é sentida a partir dos</p><p>séculos XVII e XVIII. Sobre a datação do surgimento da infância, Carvalho nos aponta a seguinte</p><p>afirmativa:</p><p>A aparição da infância ocorreu em torno do século XIII e XIV, mas os sinais de</p><p>sua evolução tornaram-se</p><p>impõe ao analista a especificidade de um posicionamento ético na medida em que, indepen-</p><p>dentemente da idade cronológica, estamos sempre lidando com o sujeito do inconsciente que emerge</p><p>sob transferência (PRATES, 2003).</p><p>Freud (1912) postulou que cada indivíduo alcançou um método específico de se conduzir na</p><p>vida erótica através da ação combinada de sua disposição inata e das influências sofridas durante os</p><p>primeiros anos de vida. Essa dinâmica produz o que se poderia descrever como um clichê estereotípico</p><p>(ou diversos deles), constantemente repetidos, constantemente reimpressos no decorrer da vida da</p><p>pessoa, na medida em que circunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos a ela acessíveis</p><p>permitam. De fato, não são dinâmicas inteiramente incapazes de mudar diante de experiências recentes.</p><p>Kaufmann (1996) salienta que a relação entre transferência e repetição constitui-se objeto de múltiplos</p><p>debates desde Freud. Na maior parte das vezes, esses debates permaneceram prisioneiros da ideia de</p><p>repetição como sinônimo aproximado de reprodução de alguma coisa passada.</p><p>Entende-se que o paciente revive, com o analista, os traumas, desejos e fantasias que está</p><p>impedido de recordar devido à barreira do recalque. A expansão da clínica psicanalítica para o trata-</p><p>mento de crianças levou a muitas controvérsias no que diz respeito à transferência, permanecendo em</p><p>constante aprimoramento.</p><p>A transferência na clínica psicanalítica com crianças</p><p>www.unifoa.edu.br/revistasp. 78</p><p>Segundo Checchinato (2007), o complexo sintomático da família ou da criança consiste em</p><p>um conjunto de concepções subjetivas de si ou das coisas, um enredo de atitudes que um membro</p><p>da família, especialmente a criança, vai repetir diante de certas circunstâncias. Possibilitar aos pais e</p><p>filhos que esse mito seja desvelado, rompê-lo devido a uma nova leitura propiciada pela intervenção</p><p>analítica, pode mudar de imediato o arranjo inconsciente, facultando que certos núcleos patógenos se</p><p>desarticulem, se dissipem, e novas cadeias estruturem um rearranjo em que não se encontre a realimen-</p><p>tação patógena. A partir do momento em que determinado discurso fechado passa a ser dissipado pela</p><p>análise, tudo pode mudar. Esse tipo de discurso se impõe através do discurso dos pais. Não se pode</p><p>perder de vista a articulação estrutural entre o sintoma infantil, o discurso familiar e o desejo parental.</p><p>O discurso familiar sela o presente com o passado, podendo surgir como empecilho ao filho</p><p>de ascender ao seu próprio desejo. Para Checchinato (2007), a arte da análise com os pais consiste</p><p>em detectar a(s) palavra(s) mortífera(s) e o significante encrustado, que mantém a subjetividade da</p><p>criança em cativeiro.</p><p>Em “Novas conferências introdutórias à psicanálise” (1933), Freud estabeleceu uma diferença</p><p>primordial entre a análise de crianças e análise de adultos. Não se trata meramente de uma descrição</p><p>técnica, posto que essa diferença retoma os fundamentos da psicanálise, tratando-se da dinâmica da</p><p>transferência. Com precisão, Freud afirma que, na análise de uma criança, ela tem outro papel, cuja</p><p>causa se deve a presença dos pais reais. Os pais reais são os pais da infância em curso, por conse-</p><p>guinte, atual. Freud (1933) recomenda:</p><p>não receamos aplicar o tratamento analítico a crianças que, ou mostraram inequívocos sintomas neuróticos,</p><p>ou estavam a caminho de um desenvolvimento desfavorável do caráter (...). O que ganhamos com esses tra-</p><p>tamentos foi havermos conseguido confirmar num ser vivo aquilo que havíamos inferido no caso dos adultos.</p><p>No entanto, também para as crianças o ganho foi muito satisfatório. Verificou-se que a criança é muito propícia</p><p>para o tratamento analítico, os resultados são seguros e duradouros. A técnica do tratamento usada em adultos</p><p>deve, naturalmente, ser muito modificada para a sua aplicação em crianças. Uma criança é um objeto psicologi-</p><p>camente diferente de um adulto. De vez que não possui superego, o método da associação livre não tem muita</p><p>razão de ser, a transferência (porquanto os pais reais ainda estão em evidência) desempenha um papel diferente.</p><p>As resistências internas contra as quais lutamos, no caso dos adultos, são na sua maior parte substituídas, no</p><p>caso das crianças, pelas dificuldades externas. Se os pais são aqueles que propriamente se constituem em ve-</p><p>ículos da resistência, o objetivo da análise e a análise como tal, muitas vezes corre perigo (FREUD, 1933, p.181).</p><p>Em consonância com o pensamento de Freud, pensamos que, na condução do trabalho com os</p><p>pais, o analista oferece sua posição para que novos enigmas possam ser apresentados e abertos às</p><p>intervenções analíticas. Ocupar o lugar de quem opera e dá a direção da análise é estar na posição</p><p>de causar neles o desejo de trabalho e acompanhá-los nos avatares de seus complexos familiares</p><p>(CARAM, 2003). Melgaço (2003) observa que o psicanalista não deve estar interessado na supressão</p><p>de um sintoma, mas em transformá-lo de sintoma-resposta em sintoma-pergunta. Para a autora, o</p><p>trabalho psicanalítico com crianças nos encaminha necessariamente ao trabalho com os seus pais,</p><p>seguindo a direção indicada pela escuta analítica.</p><p>Flesler (2007) acredita que, ao reconhecer a infância como um tempo em curso e contemplando</p><p>o fato constatável de que a presença dos pais não é algo banal ou puramente fenomenológico, mas de</p><p>estrutura, Freud (1933) assinalou a especificidade da intervenção do analista com os pais, outorgando-</p><p>-lhes um estatuto de influxo analítico. Todavia, essa intervenção está muito longe de psicanalisá-los.</p><p>Em uma perspectiva diferente, a propósito do texto “A técnica de análise no período de latência”</p><p>(1932), de Melanie Klein, observa-se que a autora se mostrava favorável à manutenção de um contato</p><p>com os pais que se restringisse ao mínimo essencial. Para Klein, o contato com os pais não deveria</p><p>exceder a explicação básica sobre os significados e efeitos da análise, bem como intervenções de</p><p>Luciana Jaramillo Caruso Azevedo</p><p>ISSN: 1809-9475 | e-ISSN: 1982-1816 p. 79</p><p>caráter mais ativo seriam utilizadas apenas quando a criança se encontrasse em risco real, ou seja,</p><p>quando o ambiente cometesse para com ela erros grosseiros (SILVA; REIS, 2017).</p><p>A primazia dessa postura justificava-se por pressupor uma relação ambivalente e delicada dos</p><p>pais com relação à psicanálise da criança, com os quais o ideal seria manter uma relação de coopera-</p><p>ção e confiança. Sua aposta no sucesso do tratamento estava depositada muito mais na capacidade</p><p>da criança de entrar em um processo analítico e se beneficiar dele, do que na implicação subjetiva dos</p><p>pais nesse processo. Klein (1932) enfatizava ser contrária a um posicionamento pedagógico. Assim,</p><p>as discussões sobre o lugar dos pais na psicanálise de crianças, por conseguinte, acompanharam o</p><p>desenvolvimento da teoria e da criação de diferentes práticas, de acordo com a linha psicanalítica com</p><p>a qual trabalham os psicanalistas (SILVA; REIS, 2017).</p><p>1.2 O manejo transferencial na clínica com crianças</p><p>Para Flesler (2007), desde o início as crianças apresentaram um viés problemático para o psi-</p><p>canalista, posto que a abordagem delas demonstrou exceder o marco teórico original para o qual a</p><p>psicanálise fora criada. Contudo, os problemas que essa prática nos aponta devem ser considerados</p><p>intrínsecos à psicanálise de crianças ou podem ser encarados como um convite a reinterrogar os pró-</p><p>prios conceitos nos quais se inscrevem a prática psicanalítica?</p><p>A criança chega ao consultório do analista em função das ressonâncias que gera em um adulto.</p><p>Por isso, é fundamental dar lugar e importância aos acordes singulares que a criança desperta naque-</p><p>les que nos procuram (FLESLER, 2007). Cabe indagar: qual o lugar ocupado pela criança no discurso e</p><p>desejo parentais? Em que medida o infantil presente nos pais se atualiza na sua relação com o filho?</p><p>Como a trama fantasística tecida entre pais e filho está sustentando o sintoma da criança?</p><p>Embora nenhum analista deva desconsiderar</p><p>o papel dos pais enquanto presença fantasística</p><p>na análise de adultos, a sua presença real na infância representa uma diferença crucial. Essa distinção</p><p>entre os pais do infantil fantasístico e os pais reais da infância não se estabelece como uma substituição</p><p>repentina, já que ela é construída em virtude de tempos descontínuos. Essa operação de substituição</p><p>dos pais reais da infância pelos pais do infantil fantasístico não se realiza naturalmente e demandam</p><p>trabalho psíquico. São muitos adultos que permanecem em dependência real dos progenitores, con-</p><p>servando para si uma posição de criança. Isso demonstra como essa substituição é necessária para</p><p>que os pais passem a fazer parte da história infantil (FLESLER, 2007).</p><p>A dependência em relação aos pais pode manter o tempo congelado, sem sucessão. Alguma</p><p>coisa não consegue se transformar em passado, continua presente, vigente, retendo uma eficácia que,</p><p>longe de ser uma atualização no presente de um tempo já percorrido, perdura como presente e atual.</p><p>Portanto, na clínica com crianças, há a demanda de um refinamento de escuta que contemple a presença</p><p>dos pais. Os pais reais continuam presentes, porém, logo continuarão presentes não mais como pais</p><p>reais da infância, e sim como os pais da fantasia (FLESLER, 2007).</p><p>Checchinato (2007) ressalta a importância de discriminar qual é a demanda dos pais e qual é a</p><p>demanda do filho. A criança trazida para a análise seria efetivamente um filho? Em geral, os pais pro-</p><p>curam pediatras e psicólogos para obter conselhos, orientações ou modos de resolver os problemas</p><p>que eles averiguaram na criança. No entanto, raramente os pais conseguem observar a sua implicação</p><p>no problema, mesmo estando bem intencionados e comprometidos com os cuidados infantis. Em al-</p><p>guns casos, os pais sentem que estão enredados na questão do filho, porém não conseguem discernir</p><p>como estão enredados. Ao passo que a análise caminha, há o momento (vários momentos) em que,</p><p>aos poucos, vão se dando conta disso. Por isso, o analista não precisa se preocupar que eles tenham</p><p>A transferência na clínica psicanalítica com crianças</p><p>www.unifoa.edu.br/revistasp. 80</p><p>ciência disso afórceps. O traquejo do analista experiente conduzirá cuidadosamente a escuta do que</p><p>o discurso do pai ou da mãe ou de ambos veiculam.</p><p>Para Nobre (2004), convidar a criança a falar, no setting analítico, produzindo os seus signifi-</p><p>cantes, é assim fazer falar do seu sintoma, da sua história, possibilitando-lhe articular suas relações</p><p>primordiais, tanto na sua forma de fantasma enganoso, de engodo, quanto na forma de pergunta por</p><p>aquilo que o Outro deseja. É convocar a criança, na transferência, a fazer-se sujeito, sujeito respon-</p><p>sável. Assim, o sintoma da criança responderia, por um lado, a uma demanda inconsciente dos pais</p><p>e, por outro, à sua própria escolha enquanto sujeito. Para responder ao enigma do desejo do Outro,</p><p>a criança se identifica com o objeto, que, “fantasmaticamente”imagina que possa completar. A sua</p><p>resposta sintomática tem a marca das suas construções enquanto sujeito, com as suas respectivas</p><p>responsabilidades e implicações.</p><p>A transferência na clínica infantil, por vezes, além de ser massificada e rápida, não somente com</p><p>as crianças, mas também com seus pais, em determinadas situações perpassa pelo lugar de quem os</p><p>encaminha que pode ser uma autoridade de referência para a família, como o professor ou/e pediatra</p><p>(BLINDER et al., 2011).</p><p>A transferência é o processo que corresponde aos desejos inconscientes que se atualizam e se</p><p>apresentam sobre certos objetos com os quais se repetem matrizes infantis. A análise é na realidade</p><p>a análise na transferência, por isso não é um simples conceito da técnica, é um elemento central. Sua</p><p>conceituação incide na condução da análise. A transferência também inclui e envolve o analista, porque</p><p>seu inconsciente, seus fenômenos de repetição, transferência e narcisismo também estão em jogo.</p><p>Isso se potencializa na análise de crianças, pois se desenvolvem transferências destinadas aos pais</p><p>e, às vezes, ao professor ou pediatra e não se trabalha com a “criança do adulto”, ou seja, o infantil que</p><p>perdura no adulto, mas com a própria criança. Esse aspecto impacta de outra maneira, mais traumática,</p><p>mais angustiante, o inconsciente do analista, que se defronta de certa forma com a própria vivência</p><p>originária de dependência e desamparo, com as suas ansiedades mais primitivas.</p><p>Além disso, com as crianças, a transferência não está sempre intermediada pela palavra, são</p><p>produzidas ações que, às vezes, necessitam de ações como respostas. Se por um lado, o adulto repete</p><p>o que viveu, por outro, a criança repete o que viveu e o que está vivendo. Há algo de contemporaneidade</p><p>em sua repetição.</p><p>Os pais reatualizam seu narcisismo através da criança. No texto “Sobre o narcisismo: uma</p><p>introdução” (1914), Freud pontua que o amor dos pais, tão comovedor e tão infantil, é o narcisismo</p><p>dos pais renascido, transformado em amor objetal. Por essa razão, podemos dizer que a criança, “Sua</p><p>Majestade, o Bebê”, acarretará a revivência de aspectos infantis dos seus pais.</p><p>A neurose de transferência nem sempre se estabelece, pois é uma consequência da neurose</p><p>infantil, tempo posterior a conclusão da infância. Assim, os efeitos da análise se realizam na dialética</p><p>entre a criança e seus pais. Por outro lado, seu desdobramento depende do desejo dos pais e de seu</p><p>enlace à castração. De nenhum outro modo eles poderiam ser transmissores da história nem relatá-la</p><p>com valor de verdade. Quando na infância, se assume o encargo da transferência, sua direção aposta</p><p>em promover a produção de saber no discurso. Sendo assim, os pais chegam incomodados, pois a</p><p>criança feriu a imagem do narcisismo deles, e o analista terá que enfrentar o lado mais real de uma</p><p>transferência que o encara com perfis francamente passionais.</p><p>Saber a causa, buscar a origem de uma aparição desagradável, desperta a criança, motivada</p><p>por uma operação sem a qual nada seria possível. Se anteriormente ela teve a sorte de ser acolhida na</p><p>Luciana Jaramillo Caruso Azevedo</p><p>ISSN: 1809-9475 | e-ISSN: 1982-1816 p. 81</p><p>ilusão dos pais, nesse outro tempo a cortina se abre para a criança e com ela o seu lugar no narcisismo</p><p>dos pais. Assim, seu pensamento se aguça e seu desejo de investigar é espicaçado. Essa descoberta</p><p>impulsionará a criança a procurar a fonte, a fonte do saber, que, para a criança, são os pais. Eles são o</p><p>primeiro emblema tanto da crença como da suposição do saber. Com eles, amarra-se a transferência.</p><p>Para eles, irá se orientar a pergunta, caso a criança não fique assustada demais. O psicanalista deve</p><p>estar atento à forma como a criança toma “fantasmaticamente” a presença dos pais.</p><p>De acordo com Faria (2016), há uma polarização referente ao lugar dos pais na análise de crianças.</p><p>Muitos autores consideram a escuta dos pais como peça fundamental para a compreensão do sintoma</p><p>infantil, por isso oferecem um lugar de acolhimento e de escuta para os pais no qual o discurso do</p><p>analista encontra-se a serviço da análise da criança. Por outro, há o entendimento de que a análise da</p><p>criança deve ser feita de maneira independente ao discurso dos pais.</p><p>1.3 A identificação projetiva como elemento da transferência</p><p>O conceito de identificação projetiva, postulado por Melanie Klein, em 1946, no texto “Notas so-</p><p>bre alguns mecanismos esquizoides”, é considerado um clássico da literatura psicanalítica, seminal,</p><p>citado em quase todos os artigos sobre o assunto, como uma bandeira marcando um novo território</p><p>a ser explorado, mas que, no momento da sua descoberta, não teve a dimensão do seu impacto. A</p><p>identificação projetiva é um dos conceitos do arcabouço teórico-clínico kleiniano que suscitou vários</p><p>outros textos e discussões a partir da sua primeira formulação. A potencialidade desse conceito foi</p><p>evidenciada pelos psicanalistas que a sucederam, principalmente aqueles do seu círculo próximo: Bion,</p><p>Segal e Rosenfeld, que demonstraram a amplitude</p><p>da identificação projetiva tanto na dimensão teórica</p><p>quanto na clínica (RIBEIRO, 2016).</p><p>De acordo com a leitura de Laplanche e Pontalis (1986), a expressão identificação projetiva foi</p><p>introduzida por Melanie Klein para designar um mecanismo que se traduz por fantasmas (fantasias),</p><p>em que o indivíduo introduz a sua própria pessoa, totalmente ou em parte no interior do objeto para</p><p>lesá-lo, para possuí-lo ou para controlá-lo. No livro “A Psicanálise da criança” (1932), Melanie Klein</p><p>já havia descrito determinados fantasmas de ataque contra o interior do corpo materno, e de intrusão</p><p>sádica, perfilando o que viria a se tornar a identificação projetiva. Posteriormente, em 1946, no texto</p><p>“Notas sobre alguns mecanismos esquizoides”, foi concebido efetivamente o conceito de identificação</p><p>projetiva como o principal mecanismo de defesa da posição esquizo-paranoide.</p><p>Esse mecanismo, estreitamente relacionado com a posição esquizo-paranoide, se configura como</p><p>uma defesa primitiva, associado às ansiedades primordiais. Desse modo, ocorre a projeção fantasmática</p><p>para o interior do corpo materno de partes clivadas da própria pessoa do indivíduo, e mesmo da sua</p><p>totalidade (e não apenas maus objetos parciais). Esse movimento visa de alguma forma lesar e con-</p><p>trolar a mãe a partir do interior. Esse fantasma (fantasia) é uma fonte arcaica de angústias, como a de</p><p>estar preso e ser perseguido dentro do corpo materno A identificação projetiva pode, em compensação,</p><p>ter como consequência que a introjeção seja sentida como uma entrada à força do exterior no interior</p><p>como castigo de uma projeção violenta. Outro perigo é o ego encontrar-se enfraquecido e empobrecido</p><p>na medida em que se arrisca a perder, na identificação projetiva, partes boas de si mesmo. É assim que</p><p>uma instância como o ideal do ego poderia tornar-se exterior ao indivíduo (SILVA et al., 2017).</p><p>Laplanche e Pontalis (1986) compreendem a identificação projetiva como uma modalidade de</p><p>projeção. Se Melanie Klein fala de identificação, é na medida em que a própria pessoa é projetada. O</p><p>emprego kleiniano do termo “identificação projetiva” é conforme sentido estrito que tende a reservar-</p><p>-se em psicanálise ao termo projeção, sendo concebido como a rejeição para o exterior daquilo que o</p><p>indivíduo recusa em si, projeção daquilo que é mau.</p><p>A transferência na clínica psicanalítica com crianças</p><p>www.unifoa.edu.br/revistasp. 82</p><p>Melanie Klein (1952) postula que, na transferência, o analisando retorna às flutuações da primeira</p><p>infância entre os objetos amados, odiados, internos e externos, que dominaram seu psiquismo em</p><p>suas vivências primitivas. O analista pode representar diversos objetos na transferência, e tais objetos</p><p>não permanecem sempre os mesmos. Uma vez que a transferência é um processo dinâmico, deve-se</p><p>compreender que o psicanalista pode, no tempo de uma mesma sessão, representar diversos objetos</p><p>ou aspectos destes para o analisando (SILVA et al., 2017).</p><p>McCormack (2000), ao se debruçar sobre as funções primitivas da identificação projetiva,</p><p>destacou algumas características fundamentais desse mecanismo de defesa. Segundo o autor, este</p><p>proporcionaria o alívio da ansiedade e da dor, assim como a evitação de experiências de separação e</p><p>perda. Outro aspecto salientado refere-se à capacidade de servir como veículo interno para as fanta-</p><p>sias inconscientes de sentimentos amorosos e odiosos, ou seja, um modo bastante eficaz para que</p><p>esses objetos internos sejam evacuados para o exterior. Essa evacuação pode fomentar as fantasias</p><p>persecutórias que podem causar medo.</p><p>Entretanto, além de um mecanismo de defesa, a identificação projetiva funciona como uma via</p><p>de adaptação, comunicação, e expressão criativa que permeia o núcleo de alguns tratamentos. Em se</p><p>tratando da comunicação, a identificação projetiva representa um meio de comunicação muito pri-</p><p>mitivo que pode desencadear angústia de contratransferência no analista e subsequentes interações</p><p>patológicas entre paciente e analista (Mc Cormack). Figueiredo (2002) explica que</p><p>aquém das contra-tranferências no sentido estrito, que são respostas do analista às transferências do paciente,</p><p>um aspecto essencial da dinâmica do trabalho analítico– embora seja também uma fonte de impasses–, há uma</p><p>condição da possibilidade de psicanalisar– que se configura como uma contratransferência primordial, um dei-</p><p>xar-se colocar diante do sofrimento antes mesmo de se saber do que e de quem se trata. Esta contratransferência</p><p>primordial corresponde justamente à disponibilidade humana para funcionar como suporte de transferências e de</p><p>outras modalidades de demandas afetivas e comportamentais profundas e primitivas, vindo a ser um deixar-se</p><p>afetar e interpelar pelo sofrimento alheio no que tem de desmesurado e mesmo de incomensurável, não só de</p><p>desconhecido como incompreensível. Todo o psicanalisar, no que implica lidar com as transferências– e outras</p><p>coisinhas mais– depende desta contratransferência primordial (FIGUEIREDO, 2002, p. 2).</p><p>Nesse contexto, os sentimentos, pensamentos e fantasias inconscientes presentes na contra-</p><p>transferência podem ser demasiadamente intensos e capazes de capturar o analista, fazendo com que</p><p>responda as experiências de identificação projetiva. Segundo McCormack (2000),</p><p>the analyst´s charge is to be a holding and transformative object. There are times the analyst must work through</p><p>certain mental dynamics even after the patient has left the room. This is quite different than accidental or tem-</p><p>porary holding function that sometimes occurs between the first and the last therapy session when projective</p><p>identification is not fully analyzed. The analyst is often required to continue “meeting” with the patient within</p><p>the context of projective identification. In the other words, long after the patient is gone, the analyst can still be</p><p>struggling thorough specific internal object relations (MC CORMACK, 2000, p. 106).</p><p>Conforme o autor supracitado, cabe ao analista o encargo de ser um objeto de contenção e</p><p>transformador. Porém, existem momentos em que o analista se defronta com certas dinâmicas psí-</p><p>quicas que fazem com que o encontro com o paciente perdure mais do que o necessário, mesmo após</p><p>o paciente ter deixado a sala. Consiste em uma operação de retenção acidental, por vezes temporária,</p><p>podendo ocorrer entre a primeira e a última sessão, quando a identificação projetiva não está total-</p><p>mente metabolizada. Com a ativação desse dispositivo, seria estabelecido um lugar para que sejam</p><p>depositados aspectos internos intoleráveis e representações de objeto de forma que estes possam ser</p><p>dominados e controlados.</p><p>Wilfred R. Bion (2004) também se debruçou sobre a importância do contexto analítico, com ên-</p><p>fase no funcionamento psíquico do analista e ao cuidado que alguns pacientes demandam do setting.</p><p>Esse autor concebeu os conceitos de rêverie e de continência, para explicar a função do analista e do</p><p>enquadre analítico. A partir do conceito de identificação projetiva, Bion propôs que, para todo conteúdo</p><p>Luciana Jaramillo Caruso Azevedo</p><p>ISSN: 1809-9475 | e-ISSN: 1982-1816 p. 83</p><p>projetado, deve haver um continente receptor. A noção de continente ou de continência relaciona-se com</p><p>a capacidade da mãe ou do analista/setting de acolher as cargas projetivas do bebê ou do analisando,</p><p>relacionando-se com a disponibilidade para receber um conteúdo que se apresenta na forma de uma</p><p>carga projetiva (SILVA et al., 2017).</p><p>Solano (2015) explica que Bion compreendia a identificação projetiva como uma forma de comuni-</p><p>cação primitiva entre a mãe e o bebê, capaz de persistir na vida adulta em muitas relações interpessoais,</p><p>inclusive, na relação entre o analista e o paciente. O conceito de identificação projetiva cunhado por</p><p>Klein, a partir da observação da comunicação não verbal entre mãe e bebê, foi aplicado ao cenário das</p><p>relações entre analista e paciente. Inicialmente, quando um bebê demonstra desconforto através do</p><p>choro ou por suas contorções, e sua mãe</p><p>o ajuda a aliviar-se desse desconforto (pela amamentação,</p><p>por exemplo), aos poucos se cria uma comunicação circular entre os dois. Pela repetição, essa comu-</p><p>nicação será refinada a cada dia e, se tudo correr bem nesse processo, a mãe saberá posteriormente</p><p>qual é a necessidade do bebê. Sendo assim, a identificação projetiva é denominada desse modo, pois</p><p>o bebê projetou em sua mãe algo (um objeto) que era seu, e a mãe identificou-se com essas partes</p><p>projetadas como se fossem dela, sentindo, pensando ou agindo de acordo.</p><p>Esse conceito está intimamente relacionado ao fato de a criança usar sua mãe como um con-</p><p>tinente provisório para sofrimentos que são intoleráveis. Essa noção ficou conhecida como relação</p><p>continente/conteúdo na interação mãe-bebê. Em função da identificação projetiva, o bebê consegue</p><p>manter a fantasia de estar extirpando de si (spliting off) todos os seus conteúdos desagradáveis (fome,</p><p>frio, angústia, dor) e alojando-os em sua mãe. Para Bion, enquanto a mãe puder identificar-se com a</p><p>angústia de seu bebê, “assumindo-a” como sua e manejando-a, o bebê tem um tempo para digerir seus</p><p>impulsos e emoções brutas, transformando-os em pensamento (SOLANO, 2015).</p><p>Nesse intervalo que surgiria e se fortaleceria a capacidade de insight e pensar. Ao estender o</p><p>conceito de identificação projetiva à relação analista-paciente, Bion postulou que, quando somos alvos</p><p>da identificação projetiva (receptores), tal como a mãe, deveríamos funcionar como um continente</p><p>provisório. Ou seja, se quisermos efetivamente tratar o paciente, precisamos desenvolver a disposição</p><p>de elaborar aquilo que em nós foi por ele inoculado - por mais execrável que seja - para depois devol-</p><p>vermos ao paciente o que era dele, porém, de forma abrandada, metabolizada, detoxificada, uma forma</p><p>que ele possa tolerar (SOLANO, 2015).</p><p>Na leitura de Ogden (1996), a identificação projetiva para Bion não se resume a uma fantasia</p><p>inconsciente de projetar um aspecto próprio no outro e controlá-lo desde dentro. Representa um acon-</p><p>tecimento psicológico interpessoal no qual o projetor, por via de uma interação interpessoal real com o</p><p>recipiente da identificação projetiva, exerce pressão sobre o Outro para que se vivencie e se comporte</p><p>de forma congruente com a fantasia projetiva onipotente.</p><p>Souza (2012) esclarece essa posição em relação à identificação projetiva afirmando que, Ogden</p><p>concebe uma conceituação de um sujeito descentrado de seu lugar exclusivo, posto que se trata de um</p><p>sujeito concebido como emergindo de uma dialética (um diálogo) do self e do Outro, uma subjetividade</p><p>que depende da existência de dois sujeitos que, juntos, criam uma intersubjetividade por meio da qual</p><p>tem origem o sujeito individual. A integração desse processo permite a introjeção de um bom objeto, um</p><p>objeto capaz de conter, de significar e de simbolizar as experiências, o que faz com que novas formas de</p><p>percepção do mundo estejam acessíveis, tornando possível viver o modo depressivo de organizar-se.</p><p>Esse desenvolvimento representa um grande avanço do ponto de vista psíquico e do ponto de vista</p><p>da experiência emocional, pois implica a possibilidade de viver a subjetividade e a historicidade. Um</p><p>elemento importante na posição depressiva é a possibilidade de elaborar a culpa. Destacamos a im-</p><p>portância de um objeto externo que sobreviva à destrutividade do bebê, da criança na clínica, dos pais,</p><p>A transferência na clínica psicanalítica com crianças</p><p>www.unifoa.edu.br/revistasp. 84</p><p>que possa também apresentar um mundo real - e não mágico e onipotente -, ampliando a percepção</p><p>do outro e do mundo externo e interno.</p><p>Assim, retomamos o lugar do analista na clínica com crianças, que exerce de certo modo a função</p><p>de continência da mãe e que pode ser pensada como algo que, em relação às identificações projetivas,</p><p>torna possível acolher, conter, transformar e devolver, em doses apropriadas, os conteúdos projetados.</p><p>Na clínica com crianças, em que se configura uma trama transferencial complexa, o analista precisa</p><p>dar lugar a essas projeções e exercer uma função de continente para propiciar a elaboração desses</p><p>objetos e representações.</p><p>2 CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>A partir do que foi exposto neste artigo, notamos que a transferência é o processo que corres-</p><p>ponde à atualização de desejos inconscientes sobre certos objetos com os quais se repetem matrizes</p><p>infantis. A transferência é um elemento central da teoria psicanalítica, não um mero conceito da técnica.</p><p>Por isso, podemos afirmar que a análise apenas se processa na transferência.</p><p>Na clínica com crianças, por incluir o lugar dos pais e outras particularidades inerentes ao aten-</p><p>dimento infantil, a trama transferencial se complexifica. A transferência inclui os pais e nem sempre</p><p>pode ser intermediada pela palavra. São produzidas ações que, por vezes, necessitam de intervenções</p><p>como respostas. Se por um lado, o adulto repete o que viveu, por outro, a criança repete o que viveu e</p><p>o que está vivendo. Há algo de contemporâneo em sua repetição.</p><p>Nesse cenário, o mecanismo da identificação projetiva, criado por Klein, em 1946, e relacionado</p><p>com a posição paranoide-esquizoide, marca presença na clínica, no manejo da transferência. Enquanto</p><p>elemento da contratransferência, pode produzir sentimentos e fantasias tão intensas que se inviabiliza</p><p>uma intervenção adequada do analista. Portanto, no que se refere à clínica com crianças, que mobiliza</p><p>e convoca o analista a se posicionar constantemente frente ao entrelaçamento de demandas dos pais</p><p>e do filho, torna-se imprescindível o estudo desse mecanismo.</p><p>Luciana Jaramillo Caruso Azevedo</p><p>ISSN: 1809-9475 | e-ISSN: 1982-1816 p. 85</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BION, W. R. Elementos de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2004.</p><p>BLINDER, C., KNOBEL, J., & SIQUIER, M. L. Clínica psicanalítica com crianças. Aparecida, SP: Ideias e</p><p>Letras, 2011.</p><p>CARAM, C. M. Clínica: uma criança em análise e seus efeitos no par familiar. In: MEIRA, Y. (Org.). O porão</p><p>da família: ensaios de psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.</p><p>CHECCHINATO, D. Psicanálise de pais: criança, sintoma dos pais. 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Dicionário enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro:</p><p>Zahar, 1996.</p><p>KLEIN, M. A Psicanálise de Crianças. Obras Completas de Melanie Klein, Vol 2. Rio de Janeiro: Imago,</p><p>1932.</p><p>KLEIN, M. Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. Rio de Janeiro: Imago, 1946.</p><p>KLEIN, M. As origens da transferência. Inveja e gratidão e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1952.</p><p>LAPLANCHE, J., & PONTALIS, J.B. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1986.</p><p>MANNONI, M. A primeira entrevista em psicanálise. 6. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2004.</p><p>MCCORMACK, C. Treating borderline states in marriage. London: Jason Aronson Inc, 2000.</p><p>NOBRE, L. Faz um laço prá mim? In: BRANDÃO, V. (Orgs.). A psicanálise e os discursos. Rio de Janeiro:</p><p>Escola Letra Freudiana, 2004.</p><p>A transferência na clínica psicanalítica com crianças</p><p>www.unifoa.edu.br/revistasp. 86</p><p>OGDEN, T. Os sujeitos da psicanálise. 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Acesso em 04 de agosto de 2018.</p><p>View publication stats</p><p>https://www.researchgate.net/publication/329641135</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020 129</p><p>Marcos Roberto Fontoni e Leopoldo Fulgencio</p><p>Anna Freud:</p><p>uma desenvolvimentista</p><p>quase esquecida</p><p>Anna Freud:</p><p>an almost forgotten</p><p>developmentalist</p><p>Marcos Roberto Fontoni</p><p>Leopoldo Fulgencio</p><p>Resumo</p><p>Anna Freud é classicamente reconhecida, na história da psicanálise como a fi lha de Freud que</p><p>analisou O ego e os mecanismos de defesa, responsável por contribuir com a perspectiva teóri-</p><p>co-clínica denominada psicologia do ego. No entanto, pouca atenção foi dada (e ela foi mesmo</p><p>negligenciada) ao restante de sua obra, especialmente no que se refere ao imenso trabalho de</p><p>consolidação da teoria do desenvolvimento da sexualidade como uma teoria plena do desen-</p><p>volvimento. Neste artigo, elencamos alguns pontos da obra da autora que vão muito além da-</p><p>quilo que ela propõe sobre os mecanismos de defesa, incluindo aqui sua contribuição à teoria</p><p>psicanalítica do desenvolvimento, bem como suas ideias a respeito de questões mais gerais</p><p>como a posição da psicanálise no meio científi co, o uso da observação direta como método de</p><p>investigação na psicanálise, seu pioneirismo na construção de um instrumento de avaliação</p><p>e diagnóstico com base psicanalítica, o uso da psicanálise como método de prevenção e suas</p><p>observações a respeito do desenvolvimento perturbado ou interrompido.</p><p>Palavras-chave: Psicanálise, Anna Freud, Desenvolvimento, Criança.</p><p>Introdução</p><p>Como sabemos, Sigmund Freud foi pionei-</p><p>ro na apresentação de uma teoria do desen-</p><p>volvimento – a teoria do desenvolvimento</p><p>psicossexual, o que tem sido reconhecido e</p><p>reiterado em diversos manuais dedicados à</p><p>apresentação do campo atual das teorias do</p><p>desenvolvimento. Após ele, muitos autores</p><p>da psicanálise também fi zeram suas contri-</p><p>buições neste campo, como Erik Erickson,</p><p>Renné Spitz, Margareth Mahler, Anna Freud</p><p>e muitos outros.</p><p>Apesar disso, se observarmos os diversos</p><p>manuais do desenvolvimento infantil (como</p><p>os de Helen Bee, Ruth Feldman, etc.) vere-</p><p>mos que a psicanálise é reduzida à apresen-</p><p>tação das perspectivas de Freud e Erickson.</p><p>E ainda assim, essa apresentação é tomada</p><p>como meramente didática. Nesse sentido,</p><p>também podemos notar a ausência de par-</p><p>ticipação de psicanalistas em eventos da psi-</p><p>cologia do desenvolvimento, o que eviden-</p><p>cia um distanciamento desses dois campos.</p><p>Portanto, aplicar a psicanálise a pesquisas a</p><p>respeito do desenvolvimento infantil não é</p><p>só útil, já que a psicanálise tem uma vasta</p><p>bibliografi a sobre este tema, como também</p><p>necessário para reduzir esse distanciamento.</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020130</p><p>Anna Freud: uma desenvolvimentista quase esquecida</p><p>Mas essa aproximação não deve ser so-</p><p>mente teórica, haja vista que a psicanálise</p><p>enfrenta no campo científi co como um todo,</p><p>já há algum tempo, críticas por seu modelo</p><p>de teorização especulativo e que muitas ve-</p><p>zes não atende às exigências da Medicina ba-</p><p>seada em evidências (Fontoni, 2015).</p><p>Muitas dessas críticas derivam da insis-</p><p>tência na manutenção de conceitos mesmo</p><p>após estudos confi rmarem sua inaplicabili-</p><p>dade, o que, por sua vez, é fruto de um mo-</p><p>vimento ortodoxo que em muitos casos con-</p><p>sidera uma “afronta a Freud” questionar suas</p><p>proposições (Imbasciati, 2011).</p><p>A esse respeito, Mark Solms (2005, p. 536,</p><p>tradução nossa), autor que trabalha na inter-</p><p>face entre psicanálise e neurociências, diz:</p><p>[...] pesquisas autocríticas [self-critical resear-</p><p>ch] ou mesmo pesquisas que utilizam o mé-</p><p>todo analítico têm sido pouco realizadas em</p><p>psicanálise, especialmente desde a morte de</p><p>Freud. Nesse sentido, a psicanálise pós-guer-</p><p>ra tendeu principalmente a se caracterizar</p><p>como uma regurgitação da teoria existente e</p><p>cogitação sobre postulados perenes [peren-</p><p>nial conundrums].</p><p>Nesse contexto, a pesquisa da qual resulta</p><p>este artigo buscou apontar interfaces entre a</p><p>psicanálise e a psicologia do desenvolvimen-</p><p>to, e possibilitar sua aplicação a experimen-</p><p>tos empíricos. Nessa empreitada, o ponto de</p><p>partida dentro da psicanálise foi o trabalho</p><p>de Anna Freud, uma autora que geralmente</p><p>é lembrada apenas como a fi lha de Freud que</p><p>escreveu O ego e os mecanismos de defesa.</p><p>Como veremos ao longo deste artigo,</p><p>Anna deu contribuições que vão muito além</p><p>das defesas do ego, especialmente para a</p><p>compreensão do desenvolvimento infantil</p><p>no contexto familiar e institucional. Além</p><p>disso, serão apresentados alguns pontos das</p><p>obras completas da autora, que totalizam oito</p><p>volumes, nos quais ela toca, mesmo que bre-</p><p>vemente, em pontos que são alvo de preocu-</p><p>pação na sociedade psicanalítica atualmente.</p><p>Anna Freud</p><p>Anna é uma das pioneiras no campo da psi-</p><p>canálise infantil. Ela foi responsável por ex-</p><p>pandir a teoria deixada por seu pai – a qual</p><p>ela mesma criticou por ter deixado uma série</p><p>de lacunas, como a pouca precisão no que se</p><p>refere aos fenômenos que caracterizam o de-</p><p>senvolvimento do impulso agressivo, já que,</p><p>para ela, o que existia era uma mera correla-</p><p>ção das expressões agressivas (morder, cus-</p><p>pir, agredir, prepotência) com as fases libidi-</p><p>nais (Freud, 1976).</p><p>A partir dessa consideração, Anna Freud</p><p>propôs um modelo de avaliação mais abran-</p><p>gente que pudesse abarcar o desenvolvimen-</p><p>to desde as atitudes</p><p>[...] dependentes, irracionais, determinadas</p><p>pelo id e o objeto, no sentido de um crescente</p><p>domínio, pelo ego, do seu [da criança] mun-</p><p>do interno e externo (Freud, 1976, p. 60).</p><p>Assim, atitudes menos avançadas como</p><p>o mamar no seio, o sujar as fraldas, o ego-</p><p>centrismo, etc. teriam um determinado</p><p>encaminhamento na saúde, (mamar de</p><p>forma racional, controle dos esfíncteres e</p><p>empatia consecutivamente) demonstran-</p><p>do o desenvolvimento saudável do ego.</p><p>A autora ainda destaca a importância do</p><p>ambiente no processo de desenvolvimento,</p><p>já que, para ela, esses avanços são sempre</p><p>o resultado da interação entre impulso e</p><p>ego/superego com a reação às influências</p><p>ambientais.</p><p>Tal modelo procura compreender e des-</p><p>crever o desenvolvimento considerando uma</p><p>diversidade de perspectivas ou “linhas do</p><p>desenvolvimento”. O desenvolvimento po-</p><p>deria ser compreendido e avaliado a partir</p><p>de diversos aspectos, e cada linha seria um</p><p>aspecto diferente observado na evolução da</p><p>criança,</p><p>como a alimentação, a relação com</p><p>pares, a higiene, etc.</p><p>Assim, foram propostas cinco linhas que</p><p>organizam o desenvolvimento psíquico:</p><p>(1) da mamada à alimentação racional;</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020 131</p><p>Marcos Roberto Fontoni e Leopoldo Fulgencio</p><p>(2) do se molhar e se sujar ao controle dos</p><p>esfíncteres;</p><p>(3) da irresponsabilidade à responsabili-</p><p>dade no controle corpóreo;</p><p>(4) do egocentrismo ao companheirismo;</p><p>(5) do corpo a o brinquedo e do brincar</p><p>ao trabalho;</p><p>(6) do caminho percorrido da extrema</p><p>dependência do recém-nascido à autocon-</p><p>fi ança emocional – que é a diretriz prototípi-</p><p>ca das cinco linhas.</p><p>Nesse sentido, cada linha do desenvol-</p><p>vimento é um indício do quão avançada a</p><p>criança está em termos de dependência e au-</p><p>tossufi ciência emocional.</p><p>Apesar de ter proposto essas cinco linhas,</p><p>Anna Freud (1965, p. 77, tradução nossa)</p><p>ressalta que “[...] há muitos outros exemplos</p><p>de linhas do desenvolvimento” e que esse é</p><p>um modelo ao qual podem ser agregadas</p><p>outras linhas que dizem respeito a outros as-</p><p>pectos do desenvolvimento infantil.</p><p>Segundo a autora, até o momento da</p><p>publicação do oitavo volume de suas obras</p><p>completas, nenhum autor havia ainda aceita-</p><p>do o desafi o de fazer uma contribuição nesse</p><p>sentido.</p><p>Então, Anna Freud dá alguns outros</p><p>exemplos de linhas:</p><p>[...] dos caminhos físicos para os caminhos</p><p>mentais de descarga; dos objetos animados</p><p>para os inanimados, da irresponsabilidade</p><p>para a culpa (Freud, 1981, p. 65, tradução</p><p>nossa).</p><p>E acrescenta:</p><p>[...] o caminho que leva ao desenvolvimento</p><p>do processo secundário; a distinção entre re-</p><p>alidade interna e externa; o desenvolvimento</p><p>da habilidade de descarregar excitações men-</p><p>tais via mente [e não via corpo]; a capacidade</p><p>de controlar impulsos; o aparecimento da no-</p><p>ção de tempo; o caminho do modo egocêntri-</p><p>co [infantil] ao modo mais objetivo [adulto]</p><p>de perceber o mundo, assim como a estrada</p><p>para muitas outras conquistas” (Freud, 1981,</p><p>p. 129, tradução nossa).</p><p>O interesse de Anna pela educação das</p><p>crianças é um fi o condutor na construção</p><p>dessas linhas, pois a autora procurou desta-</p><p>car nelas as características que precisam es-</p><p>tar presentes para que a criança esteja apta</p><p>a frequentar a escola. A preocupação da au-</p><p>tora era de que não se forçasse as crianças a</p><p>situações para as quais seu ní vel de desen-</p><p>volvimento emocional ainda nã o fosse su-</p><p>fi ciente.</p><p>Para exemplifi car essa ideia, Anna com-</p><p>para o desenvolvimento emocional ao mo-</p><p>mento de desmame do bebê . Ela diz que con-</p><p>selhos do tipo “você deve estimular seu fi lho</p><p>a interagir com outras crianç as” ou “mã es e</p><p>fi lhos devem fi car juntos o má ximo possí vel,</p><p>nã o os separe”, seria o mesmo que aconse-</p><p>lhar que se desmame o bebê de seis meses e o</p><p>alimente com um bife (Freud, 1969, p. 348,</p><p>tradução nossa).</p><p>Embora não tivesse especifi cado as ida-</p><p>des para os acontecimentos em cada linha do</p><p>desenvolvimento e estivesse ciente da escas-</p><p>sez dos dados que existiam até então, e ainda</p><p>soubesse que qualquer tentativa nesse senti-</p><p>do esbarra na limitação que generalizações</p><p>desse tipo trazem a um campo propenso à</p><p>variação de indivíduo para indivíduo, Anna</p><p>Freud se arrisca a demarcar trê s perí odos no</p><p>desenvolvimento infantil.</p><p>• O primeiro perí odo é o que se inicia no</p><p>nascimento e vai até os 12 meses de vida.</p><p>Esse momento é caracterizado pela vivê ncia</p><p>do mundo entre apenas dois corpos – mã e</p><p>e bebê . A partir dessa interaç ã o, ressalta a</p><p>autora, trê s linhas do desenvolvimento tê m</p><p>maior destaque: distinç ã o entre soma e psi-</p><p>que, entre o corpo do bebê e o da mã e e entre</p><p>self e objeto.</p><p>• O segundo perí odo se estende até o fi -</p><p>nal dos está gios pré -edí picos (4-5 anos). Os</p><p>desenvolvimentos com maior destaque nes-</p><p>se perí odo sã o os referentes à motilidade, às</p><p>funç õ es fi sioló gicas, ao controle dos impul-</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020132</p><p>Anna Freud: uma desenvolvimentista quase esquecida</p><p>sos, ao processo secundá rio e à constâ ncia de</p><p>objeto.</p><p>• No terceiro perí odo, o desenvolvimento</p><p>das linhas é mais está vel, nã o tã o susceptí vel</p><p>a retrocessos ou diferenç as no avanç o de cada</p><p>uma delas. As respostas neuró ticas a confl i-</p><p>tos, quando tudo vai bem, sã o substituí das</p><p>por respostas adaptativas (Freud, 1981).</p><p>Esses perí odos sã o a base do sentido cro-</p><p>noló gico dos acontecimentos descritos nas</p><p>linhas do desenvolvimento, e que cada uma</p><p>delas apresenta marcos especí fi cos para cada</p><p>aspecto do desenvolvimento infantil.</p><p>As linhas do desenvolvimento formula-</p><p>das por Anna Freud descrevem uma sé rie</p><p>de fases pelas quais o desenvolvimento deve</p><p>seguir até que o indiví duo conquiste capaci-</p><p>dades que lhe permitam viver em sociedade,</p><p>se relacionar, trabalhar, etc. Alé m das fases,</p><p>també m é possí vel identifi car os fenô menos</p><p>que marcam (marcos) a passagem de uma</p><p>fase para a seguinte. A seguir, apresentare-</p><p>mos um quadro geral desses marcos.</p><p>Inicialmente, tendo em vista que Anna</p><p>partiu das ideias de seu pai para formular</p><p>sua teoria, podemos considerar os marcos</p><p>presentes na teoria do desenvolvimento da</p><p>libido. A partir da observação de crianças</p><p>institucionalizadas, Anna resume as mudan-</p><p>ças que ocorrem na passagem de uma fase</p><p>para a outra dizendo que</p><p>[...] era possí vel distinguir claramente entre</p><p>as fases libidinais a partir do comportamento</p><p>da criança em relaçã o à mã e ou seu substitu-</p><p>to. [Primeiro como] uma dependência á vida</p><p>(oral); uma possessividade invasiva e ator-</p><p>mentadora (anal); [e] uma atitude protetora</p><p>em relaçã o ao objeto de amor (fá lico) (Freud,</p><p>1973a, p. 150).</p><p>Com relação aos marcos apontados nas li-</p><p>nhas do desenvolvimento citaremos aqui al-</p><p>guns exemplos. Na linha que diz respeito ao</p><p>processo de aquisição da capacidade para se</p><p>alimentar de maneira autônoma, podemos</p><p>identifi car os marcos relativos ao momento</p><p>em que a criança é desmamada; depois dis-</p><p>so, o momento em que ela começa a poder</p><p>se alimentar sozinha e depois passa a se ali-</p><p>mentar com talheres de maneira gradual até</p><p>adquirir maestria nessa tarefa.</p><p>Quanto à linha do controle dos esfíncteres,</p><p>há três períodos com seus respectivos mar-</p><p>cos ou características: o primeiro se estende</p><p>até os 24 meses no qual o bebê e a criança</p><p>pequena têm total liberdade para se sujarem;</p><p>depois, dos 24 aos 30 meses, há o surgimento</p><p>dos fenômenos da fase anal – como brincar</p><p>com as fezes ou substâncias pastosas, com</p><p>a comida, massinha, etc. Segundo Anna, se</p><p>essas atitudes forem toleradas pelo ambiente</p><p>e se regras de limpeza e higiene nã o forem</p><p>forç adas à crianç a, permitindo-lhe exercitar</p><p>essas tendê ncias anais, o controle dos esfí nc-</p><p>teres se dará naturalmente (Freud, 1974).</p><p>Por fi m, então, num terceiro momento, dos</p><p>30 aos 48 meses, a crianç a deve fi nalmente</p><p>adotar de maneira irrestrita as exigê ncias</p><p>ambientais quanto à limpeza, bem como</p><p>atingir o pleno controle dos esfí ncteres.</p><p>A linha da irresponsabilidade à respon-</p><p>sabilidade no controle corpó reo teria como</p><p>marcos o surgimento da capacidade da</p><p>criança de dirigir sua agressividade para o</p><p>meio externo. Inicialmente isso ocorre de</p><p>maneira que desconsidera a responsabilida-</p><p>de da criança sobre suas próprias atitudes</p><p>para então, com o desenvolvimento, a crian-</p><p>ça ser capaz de perceber que seus atos têm</p><p>um efeito sobre o mundo e de se responsabi-</p><p>lizar por eles.</p><p>A linha do egocentrismo ao companhei-</p><p>rismo descreve as etapas que o indivíduo</p><p>percorre para passar de um relacionamen-</p><p>to apenas a dois corpos (mãe e bebê) para</p><p>a construção de laços sociais, amizades, etc.</p><p>Para Anna, na verdade, no início, o interesse</p><p>do bebê pela mãe nem se daria por um in-</p><p>teresse nela como pessoa, mas simplesmente</p><p>como um objeto que atende às suas deman-</p><p>das instintuais.</p><p>A linha do corpo ao brinquedo e do brin-</p><p>quedo ao trabalho descreve o caminho per-</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020 133</p><p>Marcos Roberto Fontoni e Leopoldo Fulgencio</p><p>corrido para a chegada de dois marcos: a</p><p>capacidade de brincar e a capacidade para</p><p>trabalhar. Os marcos nesse percurso seriam,</p><p>no início, a utilização do corpo da mãe e do</p><p>próprio corpo como objetos para brincar;</p><p>depois haveria a adoção de uma categoria de</p><p>brinquedos utilizados especialmente como</p><p>fonte de conforto (como um objeto macio –</p><p>pano, urso, etc.).</p><p>Segundo Anna, esses brinquedos sã o “[...]</p><p>usados para conforto, como uma alternati-</p><p>va para sentimentos amá veis e agressivos”</p><p>(Freud, 1969, p. 330, tradução nossa). Aqui,</p><p>a autora coloca a “passagem pelos objetos</p><p>transicionais” (Freud, 1974, p. 64, tradução</p><p>nossa), conceito emprestado de Winnicott</p><p>(1975), como o fenô meno que descreve o</p><p>que sã o tais brinquedos macios utilizados</p><p>para conforto. Por fi m, surgem as brincadei-</p><p>ras construtivas.</p><p>Além das linhas propostas por Anna, e</p><p>como ela mesma incentivou que fosse feito,</p><p>identifi camos a descrição dos mecanismos</p><p>de defesa como um meio para avaliar o avan-</p><p>ço no desenvolvimento. Isso parte do princí-</p><p>pio de que a aquisição de novas capacidades</p><p>pelo ego não está livre de consequente sofri-</p><p>mento.</p><p>A capacidade de entrar em contato com</p><p>a realidade, por exemplo, traz consigo a per-</p><p>cepç ã o de que o mundo exterior é cheio de</p><p>ameaç as, frustraç õ es, etc. Entã o, assim que</p><p>essas capacidades sã o adquiridas, a crianç a</p><p>tenta se livrar delas. A realidade externa pas-</p><p>sa a ser obstruí da por meio do mecanismo</p><p>de “negaç ã o” [denial]. Para se livrar das me-</p><p>mórias e da consciê ncia dos representantes</p><p>das urgê ncias, do Id faz-se uso da “repressã o”</p><p>[repression]; substitui forç as nã o bem-vindas</p><p>por seus opostos [reaction formation]; subs-</p><p>titui fatos dolorosos pela fantasia [escape into</p><p>fantasy life]; atribui ao outro as qualidades</p><p>que nã o gosta em si mesmo [projection]; e se</p><p>apropria do que gosta nos outros [introjec-</p><p>tion] (Freud, 1973a).</p><p>Os retrocessos no desenvolvimento do</p><p>ego, causados pelos mecanismos de defesa</p><p>aplicados contra as ansiedades provindas do</p><p>pró prio desenvolvimento do ego, devem, na</p><p>saú de, ser superados no iní cio do perí odo da</p><p>latê ncia, no qual o ego se fortalece e as an-</p><p>siedades diminuem. Quando os mecanismos</p><p>de defesa sã o aplicados em demasia, devido</p><p>a ansiedades muito fortes, o desenvolvimen-</p><p>to do ego é afetado e tende a ter defi ciê ncias</p><p>permanentes (Freud, 1973a).</p><p>Além da expansão da teoria freudiana,</p><p>Anna ainda se mostrou preocupada com as-</p><p>pectos à frente de seu tempo e pertinentes na</p><p>atualidade, como:</p><p>(1) a ideia de que a observação direta</p><p>pode ser um método para crescimento da</p><p>teoria psicanalítica;</p><p>(2) a necessidade de se avaliar o desenvol-</p><p>vimento socioemocional (DSE);</p><p>(3) a utilização da psicanálise como um</p><p>meio para prevenção de psicopatologias;</p><p>(4) a posição da psicanálise no meio cien-</p><p>tífi co; e</p><p>(5) o desenvolvimento perturbado ou in-</p><p>terrompido.</p><p>A seguir detalharemos um pouco cada</p><p>um desses pontos.</p><p>Contribuição da observação</p><p>direta à psicanálise</p><p>Com base no trabalho de seu pai, Anna re-</p><p>conhece que descobertas importantes para</p><p>a análise de crianças foram feitas a partir da</p><p>análise de adultos por meio do método de re-</p><p>construção.</p><p>Porém, para a autora, essas descobertas</p><p>não são sufi cientes para oferecer uma com-</p><p>preensão total da infância. Para tanto, acre-</p><p>dita que a observação direta de crianças é a</p><p>ferramenta de maior signifi cância.</p><p>O problema do método reconstrutivo,</p><p>complementa Anna (Freud, 1971, p. 24, tra-</p><p>dução nossa), é que</p><p>[...] há o perigo de que o analista fi que dema-</p><p>siadamente apegado às observações do fun-</p><p>cionamento regressivo que é induzido e pro-</p><p>movido pela situação analítica, se esquecendo</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020134</p><p>Anna Freud: uma desenvolvimentista quase esquecida</p><p>que essas manifestações regressivas incluem</p><p>inevitavelmente aquisições mais tardias.</p><p>Uma das possibilidades apontadas por</p><p>Anna Freud na observação direta é inferir os</p><p>conteúdos inconscientes da criança a partir</p><p>de seus comportamentos.</p><p>Nas palavras da autora,</p><p>[...] muitas das ações e preocupações da</p><p>criança [...], quando observadas, podem ser</p><p>traduzidas em suas contrapartes inconscien-</p><p>tes das quais são derivadas (Freud, 1965, p.</p><p>18, tradução nossa).</p><p>Esse tipo de pesquisa, que utiliza a ob-</p><p>servação direta, se mostra especialmente</p><p>importante na atualidade, devido à barreira</p><p>que a psicanálise enfrenta no meio científi co</p><p>(como falamos anteriormente).</p><p>A necessidade de avaliar o DSE</p><p>e de estabelecer um diagnóstico</p><p>A ideia de que as psicopatologias têm sua</p><p>raiz na infância é comum na psicanálise, e</p><p>Anna Freud não escapava a tal fato. Além</p><p>disso, a autora adotou uma posição refe-</p><p>rente à questão de quais crianças deveriam</p><p>ser submetidas à psicanálise: se todas ou</p><p>apenas aquelas que apresentassem trans-</p><p>tornos.</p><p>Anna adota a segunda posição, a qual é</p><p>contrária, por exemplo, àquela adotada por</p><p>Melanie Klein – o que acaba sendo um dos</p><p>pontos levantados nas discussões controver-</p><p>sas. Mas, assumindo que somente as crianças</p><p>com algum transtorno deveriam ser subme-</p><p>tidas a tratamento, surgiu a questão do crité-</p><p>rio a ser seguido para defi nir se há ou não tal</p><p>necessidade.</p><p>Assim, ela chega à ideia de que seria ne-</p><p>cessário lançar mão de instrumentos ou tes-</p><p>tes nessa investigação. Porém, as ferramen-</p><p>tas para identifi car os agentes patogênicos</p><p>existentes até então eram consideradas pela</p><p>autora demasiadamente parciais, já que, para</p><p>ela, era necessário</p><p>[...] mais [...] do que essas escalas do desen-</p><p>volvimento que são válidas somente para</p><p>partes isoladas da personalidade da criança,</p><p>não para sua totalidade (Freud, 1965, p. 63,</p><p>tradução nossa).</p><p>Em sua época, destaca a autora, havia al-</p><p>guns testes que avaliavam isoladamente a in-</p><p>teligência (ex.: Gesel), a personalidade (ex.:</p><p>Rorschach) e alguns que se utilizavam da</p><p>imaginação para investigar aspectos emocio-</p><p>nais (ex.: testes projetivos).</p><p>Entretanto, esses testes</p><p>[...] eram apenas atalhos em investigações que</p><p>não faziam nada mais do que fornecer dados</p><p>simples e elucidar aspectos circunscritos da</p><p>vida emocional da criança (Freud, 1973a, p.</p><p>459, tradução nossa).</p><p>Tal fato não permitiria que o investigador</p><p>obtivesse um quadro amplo do desenvolvi-</p><p>mento infantil que compreendesse toda a</p><p>complexidade de sua personalidade.</p><p>A fi m de sanar esse problema, Anna cons-</p><p>trói o perfi l diagnóstico, um instrumento</p><p>composto de diversos itens a respeito do</p><p>histórico, quadro atual, desenvolvimento</p><p>instintual e egoico, o avanço no desenvolvi-</p><p>mento (conforme estabelecido nas linhas do</p><p>desenvolvimento), pontos de fi xação e re-</p><p>gressão, confl itos presentes e suas possíveis</p><p>origens, entre outros aspectos.</p><p>Por meio desse instrumento, Anna era</p><p>capaz de avaliar a presença de agentes pato-</p><p>gênicos junto a diversos dados ambientais e</p><p>constitucionais e, assim, determinar sua im-</p><p>portância para cada caso.</p><p>Anna também destaca alguns quesitos</p><p>que devem ser considerados nessa avaliação:</p><p>Sofrimento: Alguns quadros de neurose</p><p>infantil sã o fruto de sofrimento mais para</p><p>os pais do que para a crianç a. Por exemplo,</p><p>quando a crianç a se alimenta mal, faz xixi na</p><p>cama ou faz birras, isso nã o traz sofrimento a</p><p>ela necessariamente – mas certamente faz so-</p><p>frer quem cuida dela. Dessa maneira, o sofri-</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020 135</p><p>Marcos Roberto Fontoni e Leopoldo Fulgencio</p><p>mento neuró tico nã o deve ser tomado como</p><p>crité rio para decidir se uma crianç a precisa</p><p>ou nã o de tratamento (Freud, 1973a).</p><p>Natureza do distúrbio: de causas inter-</p><p>nas ou externas.</p><p>A esse respeito a autora en-</p><p>fatiza a diferenç a de uma crianç a na qual os</p><p>confl itos podem ser extinguidos a partir de</p><p>uma mudanç a na maneira como o ambiente</p><p>cuida dela e de uma crianç a que necessita de</p><p>aná lise. Como exemplo, Anna Freud (1981,</p><p>p. 55) diz:</p><p>Há crianças que nã o comem porque têm bri-</p><p>gas com suas mã es. Esse é um confl ito ex-</p><p>terno. Remova a criança de sua mã e [...] e o</p><p>distú rbio desaparecerá . Mas há crianças que</p><p>nã o comem porque acreditam que o que es-</p><p>tã o comendo está vivo e elas nã o querem as-</p><p>sassiná -los.</p><p>Assim, a ideia é que, no segundo caso, a</p><p>aná lise seria indicada.</p><p>Desvios nas capacidades normais: To-</p><p>mando como ponto de partida o adulto,</p><p>alé m dos fatores subjetivos, há dois fatores</p><p>objetivos que devem ser considerados ao se</p><p>avaliar a neurose: a capacidade para ter rela-</p><p>ç õ es amorosas e sexuais e a capacidade para</p><p>trabalhar. Já no caso da crianç a, o correlato</p><p>dessas duas capacidades nã o é muito claro.</p><p>Como a vida sexual da crianç a é reprimida,</p><p>o correlato entã o poderia ser o interesse que</p><p>a crianç a demonstra no mundo exterior e a</p><p>gratifi cação que obté m atravé s desse conta-</p><p>to em oposiç ã o ao narcisismo e os modos de</p><p>gratifi caç ã o autoeróticos. Já sobre o trabalho,</p><p>Anna Freud o relaciona com a capacidade</p><p>para brincar. O brincar mais saudá vel é o</p><p>brincar construtivo em oposiç ã o ao brincar</p><p>repetitivo, monó tono ou excessivamente fo-</p><p>cado no jogo imaginativo. Mais adiante em</p><p>seu trabalho, Anna destaca també m outro</p><p>ponto que pode ser incluí do nesse segundo</p><p>quesito, que é a maneira como a crianç a se</p><p>relaciona com os objetos de amor. Isso diz</p><p>respeito a como se espera que a crianç a lide</p><p>com a mã e, o pai e os pares em cada fase de</p><p>seu desenvolvimento. Pode-se considerar</p><p>aqui, por exemplo, as vá rias fases de apego</p><p>que a crianç a apresenta em relaç ã o à mã e,</p><p>sua capacidade para transferir seu interesse</p><p>no relacionamento com a mã e para relacio-</p><p>namentos com outras pessoas, etc.</p><p>Alteraç õ es no desenvolvimento normal</p><p>constituem o terceiro fator, e distú rbios nes-</p><p>se quesito, em especial, apontam para neces-</p><p>sidade de intervenç ã o imediata. Tais distú r-</p><p>bios poderiam ser uma parada na evoluç ã o</p><p>do desenvolvimento, ou seja,</p><p>[...] se manter fi xado a algum está gio do de-</p><p>senvolvimento antes que o processo de matu-</p><p>raçã o tenha sido concluí do (Freud, 1973a, p.</p><p>17, tradução nossa).</p><p>Devido à s diferenç as destacadas nos que-</p><p>sitos anteriores, é impraticá vel a aplicaç ã o</p><p>direta dos mesmos crité rios que se utiliza na</p><p>avaliaç ã o da neurose no adulto à avaliaç ã o</p><p>da crianç a. Entã o, a autora sugere que a ava-</p><p>liaç ã o do grau de neurose de uma crianç a se</p><p>dê nã o pelo dano causado à s suas atividades</p><p>ou atitudes, mas de acordo com o grau que</p><p>a patologia impede que a crianç a se desen-</p><p>volva.</p><p>Um dos aspectos que pode ter seu desen-</p><p>volvimento impedido é o curso natural da li-</p><p>bido. Entretanto, deve-se observar se um en-</p><p>trave nesse aspecto é na verdade temporá rio</p><p>e passí vel de recuperaç ã o espontâ nea. A neu-</p><p>rose infantil pode ser considerada transitó ria</p><p>desde que o desenvolvimento da libido nã o</p><p>tenha sua progressã o alterada ou restringida</p><p>pelo quadro.</p><p>Nesse caso, a neurose desaparecerá na</p><p>medida em que o fl uxo do desenvolvimento</p><p>libidinal seja forte o sufi ciente para desfa-</p><p>zer regressõ es ou fi xaç õ es. Com base nisso,</p><p>Anna Freud se coloca contra a ideia de que</p><p>o tratamento deva ser aplicado de maneira</p><p>profi lá tica para remover os pontos de fi xa-</p><p>ç ã o, mas apenas quando há pouca ou nenhu-</p><p>ma esperanç a de cura espontâ nea (Freud,</p><p>1973a).</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020136</p><p>Anna Freud: uma desenvolvimentista quase esquecida</p><p>Psicanálise e prevenção</p><p>Saber o que se espera em cada momento do</p><p>desenvolvimento infantil e quais sã o as ne-</p><p>cessidades da crianç a tem o papel de guiar o</p><p>ambiente de maneira que ele ofereç a e per-</p><p>mita que a crianç a tenha essas necessidades</p><p>e modos de funcionar suportados e permiti-</p><p>dos. Os primeiros exemplos disso na psica-</p><p>ná lise dizem respeito a diversos distú rbios,</p><p>por exemplo:</p><p>• quando se formulou as ideias de que a</p><p>origem da histeria está nas proibiç õ es da in-</p><p>fâ ncia, a psicaná lise contribuiu para a ado-</p><p>ç ã o de té cnicas de educaç ã o infantil mais</p><p>permissivas quanto à s atitudes de sexualida-</p><p>de pré -genital infantil;</p><p>• quando a agressividade recebeu status</p><p>de um instinto bá sico, deu-se mais espaç o e</p><p>tolerâ ncia para as atitudes violentas e hostis</p><p>da crianç a;</p><p>• quando se reconheceu que na fase anal</p><p>residiam problemas que poderiam levar a</p><p>patologias, o treino do banheiro passou a ser</p><p>conduzido de maneira menos apressada e</p><p>mais compreensiva;</p><p>• desordens alimentares desaparece-</p><p>ram depois que o manejo de crianç as foi</p><p>conduzido de acordo com as necessidades</p><p>orais;</p><p>• difi culdades do sono foram minimiza-</p><p>das depois que atividades autoeró ticas como</p><p>masturbaç ã o e chupar o dedo, foram menos</p><p>reprimidas (Freud, 1965).</p><p>Apesar de todos os avanç os que a psicaná -</p><p>lise trouxe na té cnica de cuidados com crian-</p><p>ç as, isso nã o foi sufi ciente para colocá -la no</p><p>hall de té cnicas preventivas.</p><p>Segundo Anna Freud (1965, p. 8, tradu-</p><p>ção nossa),</p><p>[...] é verdade que as crianças que cresceram</p><p>sob sua [da psicaná lise] infl uência foram dife-</p><p>rentes em alguns aspectos das geraçõ es ante-</p><p>riores; mas elas nã o eram mais livres de ansie-</p><p>dades ou confl itos, e assim nã o eram també m</p><p>menos propensas a neurose ou outros trans-</p><p>tornos mentais.</p><p>Ainda assim, seria possí vel avanç ar nesse</p><p>campo.</p><p>Segundo Anna,</p><p>[...] a prediçã o ou a prevençã o de problemas</p><p>leva inevitavelmente ao estudo do processo</p><p>mental normal, em oposiçã o ao estudo do</p><p>processo mental patoló gico (Freud, 1965, p.</p><p>54, tradução nossa).</p><p>O analista poderia avaliar o desenvolvi-</p><p>mento e decidir se há indicaç ã o para trata-</p><p>mento, atravé s do estudo da normalidade no</p><p>desenvolvimento infantil,</p><p>[...] com a sequência das fases libidinais e</p><p>uma lista das funçõ es do ego como pano de</p><p>fundo de sua mente (Freud, 1965, p. 55, tra-</p><p>dução nossa).</p><p>Essa avaliaç ã o do desenvolvimento é uma</p><p>atitude profi lá tica na medida em que indi-</p><p>ca processos patoló gicos mesmo antes de se</p><p>manifestarem. Essa postura tem sido ado-</p><p>tada em diversos estudos na atualidade que</p><p>têm como base a psicanálise – como o estudo</p><p>que levou à formulação do instrumento In-</p><p>dicadores Clínicos de Risco para o Desenvol-</p><p>vimento Infantil - IRDI (Kupfer et al., 2009)</p><p>e outro no qual se utilizou técnicas psicana-</p><p>líticas para intervir precocemente em bebês</p><p>que apresentavam algum sinal compatível</p><p>com autismo (Campanário et al., 2018).</p><p>A psicanálise no meio científi co</p><p>Anna Freud demonstra sua preocupaç ã o</p><p>com a relaç ã o da psicaná lise com a psicologia</p><p>acadê mica em um texto derivado de sua fala</p><p>no simpó sio de psicologia gené tica realizado</p><p>na Clark University, em 1950. Ela inicia sua</p><p>fala abordando os aspectos histó ricos dessa</p><p>relaç ã o, como ela se desenvolveu e como se</p><p>encontrava em sua é poca.</p><p>Naquele perí odo, mais do que na pró pria</p><p>Europa, havia, para surpresa de Freud, diz</p><p>Anna, uma presenç a massiva da psicaná li-</p><p>se nos EUA. Apesar disso, a autora ressalta</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020 137</p><p>Marcos Roberto Fontoni e Leopoldo Fulgencio</p><p>que, já desde meados de 1909, a psicaná lise</p><p>se via isolada das outras ciê ncias, sendo jul-</p><p>gada como nã o cientí fi ca, fantá stica e indig-</p><p>na de investimento por parte de acadê micos</p><p>“sé rios” (Freud, 1973a, p. 110, tradução nos-</p><p>sa).</p><p>Entretanto, isso nã o prejudicou o desen-</p><p>volvimento da psicaná lise, pois os analistas</p><p>continuaram suas pesquisas e seu trabalho</p><p>sem se preocuparem em convencer algué m</p><p>de fora de que aquilo</p><p>seria vá lido. Isso tam-</p><p>bé m fez com que, ao trabalhar como um gru-</p><p>po totalmente fechado, desenvolvessem uma</p><p>linguagem cientí fi ca pró pria (Freud, 1973a,</p><p>p. 110, tradução nossa).</p><p>Esse cená rio começ ou a mudar nos anos</p><p>seguintes, com a abertura da psiquiatria para</p><p>a aplicaç ã o dos conceitos psicanalí ticos a pa-</p><p>cientes graves e, mais adiante, com a aplica-</p><p>ç ã o da psicaná lise na educaç ã o de crianç as.</p><p>Depois disso, a psicaná lise se ligou a diversas</p><p>outras á reas como a sociologia, antropologia,</p><p>criminologia, psicologia acadê mica, etc. Em</p><p>algumas dessas á reas, como a medicina, o</p><p>ganho foi apenas para essa á rea, poré m em</p><p>outras, como a sociologia e antropologia, a</p><p>psicaná lise foi expandida, por exemplo, com</p><p>as descobertas a respeito do comportamento</p><p>de grupo.</p><p>Todo esse processo de ligaç ã o com outras</p><p>ciê ncias fez com que a psicaná lise emergisse</p><p>gradualmente de seu isolamento, o que a le-</p><p>vou a desenvolver també m uma linguagem</p><p>que pudesse ser compreendida pela socie-</p><p>dade cientí fi ca no geral. A isso se seguiu um</p><p>perí odo em que os primeiros trabalhos de</p><p>correlaç ã o entre a psicaná lise e outras á reas</p><p>se multiplicassem. Os objetivos desses traba-</p><p>lhos incluí am, entre outros, “uma mera revi-</p><p>sã o de publicaç õ es ao intercâ mbio e mistura</p><p>de ideias” (Freud, 1973a, p. 111, tradução</p><p>nossa).</p><p>A possibilidade de acessar o inconsciente,</p><p>como revelado por Freud, també m se des-</p><p>dobrou nessa interface entre a psicaná lise e</p><p>outras psicologias, dando origem aos testes</p><p>projetivos, dos quais os representantes mais</p><p>notá veis são o Teste de Rorschach e o Teste</p><p>de Apercepç ã o Temá tica (TAT).</p><p>Todo esse movimento em direç ã o ao</p><p>diá logo com outras ciê ncias e, especial-</p><p>mente, a ideia de que o inconsciente pode-</p><p>ria ser acessado por outros meios alé m dos</p><p>psicanalí ticos, deu abertura para pesquisas</p><p>em busca de confirmaç ã o da teoria psica-</p><p>nalí tica. Apesar disso, Anna ressalta que há</p><p>limitaç õ es para a aplicaç ã o da psicaná lise</p><p>à psicologia acadê mica. Entre essas está o</p><p>fato de que a investigaç ã o do inconsciente</p><p>em um ambiente controlado nã o reproduz</p><p>ou nã o considera todos os mecanismos</p><p>que podem estar atuantes em determinado</p><p>fenô meno.</p><p>Diz a autora:</p><p>O desapontamento, raiva, fú ria, desespero ou</p><p>indiferença que uma criança pode mostrar</p><p>frente a um brinquedo retirado nã o realmen-</p><p>te nos permite predizer como essa mesma</p><p>criança reagirá quando defrontada com a per-</p><p>da de um objeto de amor importante. Como</p><p>situaçõ es complexas da vida nã o podem ser</p><p>reproduzidas no laborató rio, parece, até en-</p><p>tã o, nã o haver possibilidade para o acadêmi-</p><p>co se aproximar desses fenômenos (Freud,</p><p>1973a, p. 120, tradução nossa).</p><p>Por fi m, apesar desses avanç os na dire-</p><p>ç ã o do diá logo entre as diversas psicologias,</p><p>Anna ressalta ainda o problema da lingua-</p><p>gem.</p><p>Segundo ela,</p><p>[...] para retraduzir uma ciência nos termos</p><p>da outra, a terminologia acadêmica se man-</p><p>té m vaga e difí cil de digerir para o analista</p><p>(Freud, 1973a, p. 122, tradução nossa).</p><p>A autora levanta esse problema colocan-</p><p>do em perspectiva opiniõ es de vá rios auto-</p><p>res e exemplos de conceitos freudianos que</p><p>foram, ou podem, ser usados erroneamente</p><p>em pesquisas experimentais. Para ela, entã o,</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020138</p><p>Anna Freud: uma desenvolvimentista quase esquecida</p><p>um dos cuidados a se tomar nesse sentido</p><p>é nã o tomar termos psicanalí ticos como si-</p><p>nô nimos ou com o mesmo signifi cado que</p><p>em outras á reas da ciê ncia. Para saber mais</p><p>sobre a questão da transposição da barreira</p><p>da linguagem na comunicação entre siste-</p><p>mas teóricos díspares, veja-se Fulgêncio e</p><p>Barreta, (2017).</p><p>Essa discussã o prossegue com Anna</p><p>Freud se baseando nas ideias de Hartmann</p><p>de que a psicaná lise em si mesma é consti-</p><p>tuí da por um aspecto dinâ mico e outro ge-</p><p>né tico. Essa distinç ã o seria importante nesse</p><p>cená rio porque determinado aspecto seria</p><p>mais importante dependendo do contexto</p><p>ao qual a psicaná lise seria aplicada. De acor-</p><p>do com essa distinç ã o, o aspecto dinâ mico é</p><p>o que se ocupa do comportamento humano</p><p>em determinadas situaç õ es, já o gené tico</p><p>se ocupa das origens desse comportamento</p><p>(Freud, 1973a).</p><p>Como dito, dependendo do campo que</p><p>se apropria das ideias psicanalí ticas, um</p><p>desses aspectos recebe mais foco do que o</p><p>outro. Por exemplo, na psiquiatria, ao me-</p><p>nos até o surgimento do DSM III (edição na</p><p>qual houve uma “expurga” psicanalítica do</p><p>DSM, retirando conceitos que diziam res-</p><p>peito a essa teoria), os conceitos dinâ micos</p><p>faziam parte da investigaç ã o mé dica. En-</p><p>quanto isso, em outras á reas como a educa-</p><p>ç ã o e aná lise infantil, a teoria sobre as ori-</p><p>gens recebia mais destaque (Freud, 1973a).</p><p>Em nossa pesquisa, a questã o da origem</p><p>é o que mais nos interessa e, nesse senti-</p><p>do, Anna Freud (Freud, 1973a, p. 131,</p><p>tradução nossa) aponta que a investigaç ã o</p><p>gené tica psicanalí tica contribui no estabe-</p><p>lecimento de trê s aspectos do desenvolvi-</p><p>mento:</p><p>[1] a sequê ncia de está gios do desenvolvi-</p><p>mento instintual, libidinal e agressivo;</p><p>[2] a sequê ncia de fases no desenvolvi-</p><p>mento do ego e superego; e, ao menos de</p><p>forma aproximada,</p><p>[3] uma terceira sequê ncia das sucessivas</p><p>interaç õ es entre essas duas linhas”.</p><p>O desenvolvimento</p><p>perturbado ou interrompido</p><p>Mesmo sendo o desenvolvimento saudá-</p><p>vel o foco de Anna Freud, também deu sua</p><p>contribuição no campo das psicopatologias,</p><p>bem como das discrepâncias entre suas ob-</p><p>servações e a teoria vigente. Segundo a auto-</p><p>ra, espera-se que o desenvolvimento ocorra</p><p>de maneira concomitante entre as diversas</p><p>linhas, porém é possível que haja regressão</p><p>de algum aspecto.</p><p>Por exemplo,</p><p>[...] o treino do banheiro nã o é adquirido de</p><p>uma vez, mas leva muitas idas e vindas em</p><p>uma sé rie interminá vel de sucessos, relapsos,</p><p>acidentes, etc. (Freud, 1965, p. 99, traduçã o</p><p>nossa).</p><p>Alé m disso, as regressõ es podem ocorrer</p><p>devido a fatores estressantes como o cansa-</p><p>ç o ao fi nal de um dia na escola. Nesse caso,</p><p>crianç as que, por exemplo, apresentaram</p><p>uma forma de brincar construtiva, podem,</p><p>no fi nal do dia, voltar a formas de brincar</p><p>dominadas pelos impulsos, com bagunç a e</p><p>agressividade. Essas observaç õ es de Anna</p><p>sã o importantes porque relativizam os acon-</p><p>tecimentos no desenvolvimento infantil. Isso</p><p>é um aspecto essencial, por exemplo, para</p><p>avaliar a necessidade ou nã o de intervenç ã o</p><p>terapê utica.</p><p>Quanto às discrepâncias com a teoria</p><p>vigente, Anna observou nas crianças insti-</p><p>tucionalizadas alguns exemplos de variação</p><p>no momento esperado para aparecimento de</p><p>determinados fenômenos – como a inveja do</p><p>pênis. A explicação da autora seria que essas</p><p>crianças institucionalizadas estão expostas</p><p>mais precocemente à evidência da diferença</p><p>entre os sexos, o que anteciparia o apareci-</p><p>mento de fenômenos ligados a essa consta-</p><p>tação.</p><p>As diferenças no desenvolvimento de</p><p>crianças institucionalizadas, especifi camente</p><p>aquelas com as quais Anna teve contato na</p><p>clí nica Hampstead, foram elencadas pela au-</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020 139</p><p>Marcos Roberto Fontoni e Leopoldo Fulgencio</p><p>tora de maneira sistemática dentro de quatro</p><p>aspectos:</p><p>• controle muscular;</p><p>• desenvolvimento da fala;</p><p>• treino do banheiro; e</p><p>• alimentaç ã o.</p><p>As diferenç as encontradas foram quanti-</p><p>tativas. O controle muscular e a alimentaç ã o</p><p>se desenvolveram mais rapidamente na insti-</p><p>tuiç ã o, enquanto a fala e o treino do banhei-</p><p>ro fi caram atrasados quando a mã e nã o está</p><p>presente. Mesmo assim, todas as crianç as,</p><p>independentemente do contexto observado,</p><p>vã o alcanç ar excelê ncia em todos esses as-</p><p>pectos (Freud, 1973b).</p><p>Esse cená rio, entretanto, nã o se manté m</p><p>no que diz respeito ao desenvolvimento</p><p>emocional. Obviamente todas as crianç as,</p><p>independentemente do contexto, tê m as</p><p>mesmas necessidades emocionais. Assim, se-</p><p>gundo a autora, uma importante necessidade</p><p>instintual que diz respeito ao apego à fi gura</p><p>materna “fi ca mais ou menos nã o satisfeita”</p><p>(Freud, 1973b, p. 560, traduçã o nossa) no</p><p>contexto institucional.</p><p>A autora observou que o desenvolvimen-</p><p>to no primeiro semestre de vida das crianç as</p><p>institucionalizadas se mostra, na maioria das</p><p>vezes, melhor do que as que vivem com a fa-</p><p>mí lia. Segundo Anna, isso acontece, porque</p><p>na instituiç ã o as crianç as tinham uma gama</p><p>nutricional maior, com mudanç as na dieta</p><p>sempre que necessá rio e mais higiene tanto</p><p>nos cuidados quanto na preparaç ã o dos ali-</p><p>mentos. Ainda assim, a autora destaca que a</p><p>alimentaç ã o pelo seio materno é melhor do</p><p>que por mamadeira.</p><p>A esse respeito, ela diz que</p><p>[...] os melhores resultados sã o encontra-</p><p>dos em bebês que sã o alimentados por suas</p><p>pró prias mã es na clí nica (Freud, 1973b, p.</p><p>545, traduçã o nossa).</p><p>Entretanto, esse cená rio muda a partir do</p><p>segundo semestre. O aspecto gritante que</p><p>diferencia os bebê s da instituiç ã o daqueles</p><p>criados em casa é a vivacidade e a melhor</p><p>resposta social que apresentam. Alé m disso,</p><p>o bebê criado em casa é mais ativo na explo-</p><p>raç ã o do ambiente, por exemplo, no interesse</p><p>em alcanç ar objetos e no brincar ativo. Tam-</p><p>bé m demonstra maior interesse em observar</p><p>e seguir os movimentos das pessoas ao redor</p><p>e é mais responsivo ao entrar e sair de pes-</p><p>soas no ambiente.</p><p>A hipó tese de Anna Freud sobre o interes-</p><p>se do bebê nas pessoas que chegam e saem,</p><p>é que isso se deve ao fato de que a reduzi-</p><p>da quantidade de pessoas em seu cí rculo de</p><p>conví vio as torna conhecidas para ele e, as-</p><p>sim, dizem respeito a ele de algum modo. De</p><p>maneira oposta, na instituiç ã o, o bebê nã o é</p><p>capaz de reconhecer as vá rias pessoas devido</p><p>à sua limitada capacidade em internalizar e</p><p>diferenciar tantas personalidades diferentes</p><p>(Freud, 1973b).</p><p>Além disso, Anna Freud exemplifi ca o de-</p><p>senvolvimento socioemocional por meio do</p><p>fenô meno da imitaç ã o que, segundo ela, de-</p><p>veria iniciar por volta do oitavo mê s de vida,</p><p>mas que sofre atraso no bebê instituciona-</p><p>lizado. De acordo com Anna, para que esse</p><p>fenô meno ocorra, é necessá rio que o bebê</p><p>tenha contato frequente e pró ximo com um</p><p>adulto e que tal contato nã o seja “[...] divi-</p><p>dido entre vá rios adultos como é o caso da</p><p>instituiç ã o” (Freud, 1973b, p. 546, traduçã o</p><p>nossa).</p><p>Para Anna Freud, essa defasagem a partir</p><p>do segundo semestre de vida se dá porque</p><p>nesse perí odo as necessidades emocionais do</p><p>bebê se tornam tã o importantes quanto suas</p><p>necessidades corporais. Isto é , até o sexto</p><p>mê s, as necessidades emocionais poderiam</p><p>ser supridas nas interaç õ es durante a ali-</p><p>mentaç ã o, banho, etc., mas apó s esse perí o-</p><p>do cresce a necessidade de interaç õ es mais</p><p>complexas que vão alé m desses momentos</p><p>de cuidado corporal.</p><p>Por outro lado, o contato com pares é esti-</p><p>mulado mais cedo na instituiç ã o. No contex-</p><p>to residencial, esse contato só se dá apó s a re-</p><p>laç ã o mã e-crianç a estar bem estabelecida. A</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020140</p><p>Anna Freud: uma desenvolvimentista quase esquecida</p><p>relaç ã o com irmã os no contexto residencial</p><p>só se daria na medida em que estes se apre-</p><p>sentassem como ajudantes ou parceiros para</p><p>brincadeiras, e os afetos seriam sempre me-</p><p>diados pela relaç ã o da crianç a com os pais.</p><p>Nesse sentido, os afetos direcionados aos ir-</p><p>mã os seriam mais caracterizados por ciú me</p><p>e ó dio gerados pela rivalidade em relaç ã o à</p><p>conquista do amor dos pais (Freud, 1973b).</p><p>Conclusão</p><p>Apresentamos de maneira sintética alguns</p><p>dos pontos mais importantes para o desen-</p><p>volvimento de nossa pesquisa a respeito do</p><p>desenvolvimento socioemocional infantil</p><p>na psicanálise, com foco na obra de Anna</p><p>Freud.</p><p>Essa autora, como apresentado, contri-</p><p>buiu com ideias que vão muito além do ego</p><p>e seus mecanismos de defesa. Tais contribui-</p><p>ções merecem ser alvo de escrutínio e reno-</p><p>vação. Renovação, por exemplo, por meio</p><p>de sua aplicação a pesquisas empíricas, nas</p><p>quais possamos verifi car sua utilidade nos</p><p>dias atuais – momento no qual temos uma</p><p>infi nidade de outras abordagens, instrumen-</p><p>tos e perspectivas para compreender o de-</p><p>senvolvimento infantil.</p><p>Retomar autores clássicos, e por vezes</p><p>negligenciados, é também um instrumen-</p><p>to para análise crítica do material que está</p><p>disponível na atualidade e que embasa as</p><p>diferentes metodologias de pesquisa. Assim,</p><p>ao considerar o que Anna Freud observou</p><p>no comportamento infantil e agregou à sua</p><p>teoria do desenvolvimento, podemos, por</p><p>exemplo, questionar se os métodos atuais</p><p>também estão ou não considerando tais</p><p>comportamentos e vice-versa.</p><p>Apesar da amplitude das contribuições de</p><p>Anna, não é expressiva, ao menos em terri-</p><p>tório nacional, a visibilidade de suas ideias</p><p>(exceto no que diz respeito aos mecanismos</p><p>de defesa, como já dito). Espera-se que o</p><p>presente artigo seja um estímulo para outros</p><p>pesquisadores conheçam e reconheçam o le-</p><p>gado da autora.</p><p>Abstract</p><p>Anna Freud is classically recognized, in the</p><p>history of psychoanalysis, as the daughter of</p><p>Freud who analyzed Th e Ego and the Defense</p><p>Mechanisms, who was responsible for contri-</p><p>butions to a theoretical-clinical perspective</p><p>called ego psychology. But, little attention was</p><p>paid (and she was even neglected) to the rest</p><p>of her work, especially with regard to the im-</p><p>mense work of consolidating of the sexuality</p><p>development theory as a full theory of devel-</p><p>opment. In this article, we list some points of</p><p>the author’s work that go far beyond what she</p><p>proposes about defense mechanisms, includ-</p><p>ing her contribution to the psychoanalytic</p><p>theory of development, as well as her ideas</p><p>on more general issues such as the position</p><p>of psychoanalysis as a science, the use of di-</p><p>rect observation as a method of investigation</p><p>in psychoanalysis, her pioneering spirit in the</p><p>construction of an instrument of assessment</p><p>and diagnosis based on psychoanalysis, the</p><p>use of psychoanalysis as a method of preven-</p><p>tion and her observations regarding disturbed</p><p>or interrupted development.</p><p>Keywords: Psychoanalysis, Anna Freud, De-</p><p>velopment, Child.</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020 141</p><p>Marcos Roberto Fontoni e Leopoldo Fulgencio</p><p>Referências</p><p>CAMPANÁRIO, I. S.; LERNER, R.; MACHADO,</p><p>A. S. M.; BRAGA, C. R.; CHIODI, C. S.; F. N.,</p><p>SANTOS, I. M.; HACHEM, S. P. G. Intervenção de</p><p>orientação psicanalítica a tempo em bebês e crianças</p><p>com impasses no desenvolvimento psíquico. Estudos</p><p>de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 50, p, 73-86, dez.</p><p>2018. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de</p><p>Psicanálise.</p><p>FONTONI, M. R. O futuro da psicanálise: uma busca</p><p>por evidências? Winnicott E-Prints, 10(2), 2015.</p><p>Disponível em: http://revistas.dwwe.com.br/index.</p><p>php/We-Prints/article/view/174.</p><p>FREUD, A. Th e Writings of Anna Freud: Normality and</p><p>Pathology in Childhood: assessments of development.</p><p>v. VI. International Universities Press, 1965.</p><p>FREUD A. Th e Wiritings of Anna Freud: research</p><p>at the Hampstead Child Th erapy Clinic and other</p><p>papers. v. V. International Universities Press, 1969.</p><p>FREUD, A. Th e Wiritings of Anna Freud: Problems</p><p>of Psychoanalytic Training, Diagnosis and the</p><p>Techinique of Treatement. v. VII. Oxford University</p><p>Press, 1971.</p><p>FREUD, A. Th e Wiritings of Anna Freud: indications</p><p>for child analysis and other papers. v. IV. International</p><p>Universities Press, 1973a.</p><p>FREUD, A. Th e Wiritings of Anna Freud: infants</p><p>without families. v. III. International University Press,</p><p>1973b.</p><p>FREUD, A. Normality and pathology in Childhoood</p><p>(1965). In Th e Writing of Anna Freud, v. I. International</p><p>claras e evidentes, no continente europeu, entre os</p><p>séculos XVI e XVII no momento em que a estrutura social vigente</p><p>(Mercantilismo) provocou uma alteração nos sentimentos e nas relações frente à</p><p>infância (CARVALHO, 2003, p. 47).</p><p>Recorrendo-se a definição da palavra infância, oriunda do latim infantia, significa “incapacidade</p><p>de falar”. Considerava-se que a criança, antes dos 7 anos de idade, não teria condições de falar, de</p><p>expressar seus pensamentos, seus sentimentos. Desde a sua gênese, a palavra infância carrega consigo o</p><p>estigma da incapacidade, da incompletude perante os mais experientes, relegando-lhes uma condição</p><p>subalterna diante dos membros adultos. Era um ser anônimo, sem um espaço determinado socialmente.</p><p>Ao serem representadas, principalmente através de pinturas, geralmente aparecia numa versão</p><p>miniatura do adulto. Seus trajes não diferiam daqueles destinados aos já crescidos. Notamos trata-se de</p><p>crianças pelo fato dessas figuras se apresentarem em tamanho reduzido, embora com rostos e musculatura</p><p>de pessoas maduras.</p><p>Até este período, seguindo uma forma de organização social da família tradicional, a fase da</p><p>“infância” tinha uma curta duração, restringindo-se apenas a sua etapa de fragilidade física. Ao adquirir</p><p>uma certa independência, era imediatamente conduzida ao convívio adulto, compartilhando de seus</p><p>trabalhos e jogos, sem estar plenamente preparada física e psicologicamente para tanto. Sobre essa</p><p>passagem precoce ao contato adulto Phillipe Áriés reforça este entendimento com o posicionamento a</p><p>seguir:</p><p>De criancinha pequena, ela se transforma imediatamente em homem jovem,</p><p>sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da</p><p>Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de</p><p>hoje (ARIÉS, 1986, p. 10).</p><p>Ainda neste momento, nota-se um sentimento superficial sobre a criança denominado de</p><p>“pararicação”, reservado a ela durante os seus primeiros meses de existência. Apesar dessa aparente</p><p>atenção e sentimentos fraternos, sua inocência, ingenuidade e graciosidade a tornavam um instrumento de</p><p>diversão, tal qual um animal de estimação em termos de importância. Caso chegasse a falecer1, muito</p><p>freqüente devido às condições precárias de sobrevivência, havia um sentimento de substituição, pois logo</p><p>outra criança nasceria e a substituiria. Uma espécie de anonimato estava presente neste sentimento</p><p>dirigido à infância. Esse detalhe da história da infância deixa transparecer a posição secundária relegada a</p><p>esta, condição que perdurou ainda por vários séculos.</p><p>2</p><p>Era extremamente alto o índice de mortalidade infantil que atingia as populações e, por isso, a morte das crianças</p><p>era considerada natural. A partir do século XVI as descobertas científicas provocaram o prolongamento da vida, ao</p><p>menos nas classes dominantes (KRAMER, 1992, p. 37).</p><p>885</p><p>Neste período, a transmissão de valores e dos conhecimentos estava vinculada ao contato das</p><p>crianças com os jovens ou os adultos através de um processo de socialização. Era uma aprendizagem de</p><p>cunho prático, baseada na observação do trabalho desempenhado pelos mais experientes.</p><p>Com o estabelecimento de uma nova ordem social, em fins do século XVII, são notadas algumas</p><p>mudanças consideráveis alterando a estrutura até então em vigência. Com isso, sentiu-se a necessidade da</p><p>criação de escolas, um dos mecanismos de fornecimento da formação inicial aos pequenos, a fim de</p><p>dominarem a leitura, a escrita e a aritmética, como mais um dos artifícios de preparação para a vida adulta.</p><p>A escola passou a substituir a aprendizagem obtida empiricamente pela observação dos mais experientes,</p><p>deixando de aprender a vida diretamente. O advento da escola moderna está atrelado ao surgimento de um</p><p>novo sentimento do adulto para com as crianças, implicando em cuidados especiais. Tal processo está</p><p>atrelado ao grande movimento de moralização promovido pelos reformuladores católicos e protestantes,</p><p>além da cumplicidade sentimental das famílias, numa afeição entre os cônjuges, entre pais e filhos. A</p><p>respeito da introdução da criança em instituições de ensino sistematizadas, Áriés pondera de forma crítica</p><p>este momento, emitindo o seguinte pensamento:</p><p>A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada dos</p><p>adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta no</p><p>mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou então um longo</p><p>processo de enclausuramento das crianças (como os loucos, dos pobres e das</p><p>prostitutas) que se estende até nossos dias e ao qual se dá o nome de</p><p>escolarização (ARIÉS, 1986, p. 11).</p><p>Com o apogeu da Revolução Industrial, ocorrido entre os séculos XVIII e XIX, foi direcionado</p><p>um novo olhar sobre a infância. Estas passaram a ser vista como tendo um valor econômico a ser</p><p>explorado. A urgência por mão-de-obra provoca o não cumprimento dos direitos infantis de acesso à</p><p>escola, levando as crianças novamente ao mercado de trabalho, submetidas às explorações em nome dos</p><p>ditames econômicos. Sobre essa fase nebulosa, Amarilha reforça as afirmações acima levantadas com este</p><p>comentário:</p><p>Se a vida em comum com os adultos, antes da Revolução Industrial, tratava a</p><p>criança com descaso, agora, o seu valor enquanto geração de braços para a</p><p>indústria e cabeças para o comando lhe traz o exílio do seu tempo. Viver a</p><p>infância passa a ser um período dominado por modelos de preparação para ser o</p><p>futuro adulto. A criança como tal, com identidade específica, continua</p><p>desrespeitada e desumanizada (AMARILHA, 2002, p. 128-129).</p><p>Delimitamos entre os anos de 1850 a 1950 como o momento do ápice da infância tradicional. Com</p><p>o desenvolvimento das ciências humanas e conseqüente compreensão acerca desse período da vida</p><p>humana, as crianças passaram a ser retiradas das fábricas e novamente inseridas em contextos promotores</p><p>de aprendizagens sistematizadas, sendo as instituições educativas os locais mais apropriados para esses</p><p>propósitos.</p><p>Com a consolidação do protótipo de família em fins do século XIX, a responsabilidade dos</p><p>genitores passou a assegurar mais responsabilidades com o bem-estar das crianças, garantindo os direitos</p><p>que lhes assistem e maiores cuidados físicos. A noção de infância, agora, passa pelo crivo dos conceitos</p><p>técnicos e científicos. Essa análise é respaldada e analisada à luz da Psicologia, da Sociologia, da</p><p>Medicina, dentre outros campos do saber, passando a emitir um parecer científico a respeito dessa fase da</p><p>vida humana, adquirindo estas constatações uma maior respeitabilidade frente à sociedade.</p><p>886</p><p>A infância de hoje: espaço de inúmeras acepções</p><p>Ao adentrarmos na trilha da contemporaneidade nos deparamos com uma série de mudanças em</p><p>curso, formando novas conjecturas e desencadeando diferentes concepções e olhares sobre um mesmo fato</p><p>ou acontecimento, sendo evidenciadas e processadas algumas rupturas significativas na ordem conceitual</p><p>até então em vigência.</p><p>Neste espaço mutante e efêmero, a noção de infância adquiriu uma nova roupagem, incorporando</p><p>uma reestruturação que lhe confere um outro status. A criança desses novos tempos possui outras</p><p>características, necessidades não encontradas outrora, aspirações estas fruto da recente ordem estabelecida</p><p>mediante os ditames da globalização e do neoliberalismo.</p><p>Para exemplificar concretamente essas alterações em relação à visão da infância, podemos</p><p>recorrer às mídias como um dos elementos fornecedores de uma considerável quantidade de informações</p><p>disponíveis através de diferentes suportes. Isso contribuiu, direta e indiretamente, na montagem dessa</p><p>nova fase da infância, na qual a criança é encarada como um sujeito receptor e consumidor em potencial.</p><p>Por muitos anos, como constatado no decorrer da historiografia levantada anteriormente, a família</p><p>e posteriormente a escola permaneceram como os principais espaços de socialização,</p><p>Universities Press, 1974.</p><p>FREUD, A. Infância Normal e patológica. Rio de</p><p>Janeiro: Zahar, 1976.</p><p>FREUD, A. Th e Wiritings of Anna Freud:</p><p>Psychoanalytic psychology of normal development. v.</p><p>VIII. Oxford University Press, 1981.</p><p>FULGÊNCIO, L.; BARETA, J. P. O problema da</p><p>comunicação entre sistemas teóricos díspares</p><p>na psicanálise: propostas metodológicas para</p><p>sua realização. In: L. FULGÊNCIO; BIRMAN,</p><p>J.; KUPERMANN, D.; CUNHA, E. L. (Eds.).</p><p>Modalidades de pesquisa em psicanálise: métodos e</p><p>objetivos. São Paulo: Zagodoni, 2017.</p><p>IMBASCIATI, A. Th e Meaning of a Metapsychology</p><p>as an Instrument for “Explaining”. Journal of Th e</p><p>American Academy of Psychoanalysis and Dynamic</p><p>Psychiatry, 39(4), pp. 651-670, 2011.</p><p>KUPFER, M. C. M.; JERUSALINSKY, A. N.;</p><p>BERNARDINO, L. M. F.; et al. Valor preditivo</p><p>de indicadores clínicos de risco para o</p><p>desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria</p><p>psicanalítica. Latin American Journal of Fundamental</p><p>Psychopathology, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 48-68, 2009.</p><p>Disponível em: http://abppparananorte.com.br/wp-</p><p>content/uploads/2017/11/IRDI.pdf.</p><p>SOLMS, M. Neuroscience. In: E. S. Person, A. M.</p><p>COOPER; G. O. GABBARD (Eds.), Textbook of</p><p>Psychoanalysis. American Psychiatric Publishing,</p><p>2005. pp. 535-546.</p><p>WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de</p><p>Janeiro: Imago, 1975.</p><p>Recebido em: 20/05/2020</p><p>Aprovado em: 10/06/2020</p><p>Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 129–142 | julho 2020142</p><p>Anna Freud: uma desenvolvimentista quase esquecida</p><p>Sobre os autores</p><p>Marcos Roberto Fontoni</p><p>Psicólogo, Pós graduado em Neuropsicologia no</p><p>Contexto Hospitalar pelo Hospital das Clínicas da</p><p>Faculdade de Medicina da Universidade de São</p><p>Paulo (HCFMUSP).</p><p>Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela USP,</p><p>com bolsa FAPESP.</p><p>Fellow do Research Training Program da</p><p>International Psychoanalytic Association.</p><p>Especialização em andamento em Formação em</p><p>Psicanálise Winnicottiana, Sociedade Brasileira de</p><p>Psicanálise Winnicottiana, SBPW, Brasil.</p><p>Doutorando do programa de Psiquiatria e Psicologia</p><p>Médica da Universidade Federal de São Paulo</p><p>(UNIFESP).</p><p>Leopoldo Fulgencio</p><p>Graduado em Psicologia pela Universidade de São</p><p>Paulo (USP).</p><p>Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia</p><p>Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).</p><p>Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia</p><p>Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),</p><p>tendo feito estágio de doutorado (bolsa sandwich,</p><p>com orientação de Pierre Fédida) no Laboratoire de</p><p>Psychopathologie Fondamentale et Psychanalyse,</p><p>Université de Paris 7 Denis Diderot (de 1995-1997).</p><p>Pós-Doutorado em Psicologia Clínica na Pontifícia</p><p>Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).</p><p>Professor Associado (Livre Docente, 2018) no</p><p>Instituto de Psicologia da Universidade de São</p><p>Paulo (USP), no Departamento de Psicologia</p><p>da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da</p><p>Personalidade.</p><p>Coordenador do Programa de Pós-graduação em</p><p>Psicologia da Educação e do Desenvolvimento do</p><p>IPUSP.</p><p>Foi professor do Programa de Pós-Graduação em</p><p>Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de</p><p>Campinas (de 2007 a 2014).</p><p>Foi Secretário Executivo (1999-2002), Editor</p><p>Adjunto (2003-2005) e Editor Científi co (2006-</p><p>2009) da Revista de Filosofi a e Psicanálise Natureza</p><p>Humana.</p><p>Foi coordenador do Grupo de Trabalho Filosofi a e</p><p>Psicanálise da ANPOF (Associação Nacional de Pós-</p><p>Graduação em Filosofi a) na gestão de 2004 a 2006.</p><p>Foi coordenador do Grupo de trabalho “Psicanálise,</p><p>Subjetivação e Cultura Contemporânea” da ANPEPP</p><p>(Associação nacional de Pós-Graduação em</p><p>Psicologia) de 2014 a 2017. (IJP, 2020).</p><p>Recebeu o Prêmio Jabuti (2015), na categoria</p><p>Psicanálise, Psicologia e Comportamento, com o</p><p>segundo lugar pelo livro A Fabricação do Humano</p><p>(2014).</p><p>Endereço para correspondência</p><p>Marcos Roberto Fontoni</p><p>E-mail: fontonimr@gmail.com</p><p>Leopoldo Fulgencio</p><p>E-mail: lfulgencio@usp.br</p><p>290 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 290-305.</p><p>RESUMO</p><p>Este artigo pretende tratar dos</p><p>principais aspectos do método clí-</p><p>nico e interpretativo de Melanie</p><p>Klein, das críticas mais contun-</p><p>dentes que recebeu e, pela</p><p>pertinência delas, do relativo</p><p>distanciamento ocorrido entre a</p><p>rígida postura de Klein e aque-</p><p>la dos kleinianos da atualida-</p><p>de. Após um fecundo exercício</p><p>de r eflexão sobre o fur or</p><p>interpretativo kleiniano, foi pos-</p><p>sível reconhecer que o brincar,</p><p>por si só, tem, muitas vezes, o</p><p>poder de permitir a elaboração</p><p>de determinadas tramas. Assim,</p><p>a interpretação saiu do foco cen-</p><p>tral de toda e qualquer sessão e</p><p>passou a ser utilizada apenas</p><p>nos casos em que seus recursos</p><p>técnicos são indispensáveis.</p><p>Descritores: interpretação</p><p>analítica; método clínico; psica-</p><p>nálise com crianças; Melanie</p><p>Klein.</p><p>Dossiê</p><p>AINDA INTERPRETAMOS</p><p>CRIANÇAS À MANEIRA</p><p>DE MELANIE KLEIN?1</p><p>Nívea de Fátima Gomes</p><p>Cassandra Pereira França</p><p>obra de Melanie Klein dificilmente dei-</p><p>xa de suscitar críticas vigorosas ao seu estilo</p><p>interpretativo, o que, por vezes, encerra o risco e o</p><p>prejuízo de encobrir o mérito de sua criação técnica</p><p>e de seu desenvolvimento teórico. Mesmo quando</p><p>pouco se conhece de seu trabalho, sabe-se que ela</p><p>deu a um certo Dick controversos esclarecimentos</p><p>a respeito de suas fantasias inconscientes! O vigor e</p><p>a recorrência dos questionamentos dirigidos ao tra-</p><p>balho de Klein lembraram a Laplanche (1988) os</p><p>tempos obscuros da Inquisição, donde seu certeiro</p><p>questionamento: “É preciso queimar Melanie</p><p>Klein?”.</p><p>Sem sequer imaginar que um dia poderia ser</p><p>colocada às bordas da fogueira, Klein sustentou, com</p><p>convicção ímpar e desde suas primeiras publicações,</p><p>em 1920, o alcance terapêutico de suas ousadas in-</p><p>A</p><p>Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de</p><p>Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil.</p><p>Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de</p><p>Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil.</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05290</p><p>291</p><p>DossiêDossiê</p><p>terpretações, comungando com um princípio então defendido por</p><p>Freud, segundo o qual conteúdos que ganham a consciência per-</p><p>dem sua força patogênica. Essa noção – um corolário dos passos</p><p>que levaram Freud à descoberta do Inconsciente – é de tal monta</p><p>que veio a incidir sobre a própria identidade da psicanálise, como é</p><p>possível constatar nas palavras de Freud (1919[1918]/1996): “cha-</p><p>mamos de psicanálise o processo pelo qual trazemos o material</p><p>mental recalcado para a consciência do paciente” (p. 173). Tal pro-</p><p>posição demarcava os limites do efeito pretendido pela interpreta-</p><p>ção: a ampliação da consciência ou a eliminação das amnésias cau-</p><p>sadas pelas defesas psíquicas. No entanto, à medida que a técnica</p><p>psicanalítica de Freud se desvencilhava da sugestão, da hipnose e da</p><p>reconstituição mnésica (que se mostravam tecnicamente dificultosas</p><p>e limitadas do ponto de vista terapêutico), passando a utilizar “mais</p><p>do material que seus pacientes lhe levavam espontaneamente e a</p><p>interpretá-lo” (Chemana & Vandermersch, 2007, p. 202), a associa-</p><p>ção livre passou a ser cada vez mais valorizada.</p><p>Conjuntamente com a associação livre, considerada a regra</p><p>psicanalítica fundamental, a interpretação deslocava-se para o âma-</p><p>go do método freudiano. Apesar disso, Freud logo reconheceu, com</p><p>muito mais acuidade do que Klein foi capaz de fazê-lo, que o alcan-</p><p>ce terapêutico desse recurso estava subordinado às regras e</p><p>idiossincrasias presentes em uma análise. No caso dos adultos, o</p><p>método clássico freudiano pressupunha um cenário psíquico espe-</p><p>cífico: o recalcamento originário deveria ter constituído a instalação</p><p>da tópica, colocando em ação no psiquismo conflitos intersistêmicos.</p><p>Qual seria, contudo, a função da interpretação na análise da-</p><p>queles cuja constituição psíquica ainda estava em seu início? Precur-</p><p>sora da psicanálise com crianças, e apesar de reconhecer as especifi-</p><p>cidades da análise infantil, Klein parece não ter-se feito essa pergunta.</p><p>Aliás, nem poderia fazê-la, uma vez que</p><p>tomava o inconsciente não</p><p>como um efeito do recalcamento, e sim como inato, o que a levava</p><p>a supor que ele podia ser precocemente analisado. Embora não o</p><p>anunciasse claramente, é razoável crer que, em sua concepção, a</p><p>barreira que separa os sistemas inconsciente e pré-consciente/cons-</p><p>ciente era bem mais fluida, algo comparável com a permeabilidade</p><p>entre o pré-consciente e o consciente descrita pela psicanálise freu-</p><p>diana. E, se havia uma incógnita nessa trama, era o modo como se</p><p>formava o consciente. É claro que, sob essa óptica, não a veríamos</p><p>fazer como o fez Bleichmar (1993), que se pôs a “encontrar um</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05291</p><p>292 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 290-305.</p><p>ordenador que permitisse marcar</p><p>tempos de analisabilidade na primei-</p><p>ra infância situando o conflito psíqui-</p><p>co (intersistêmico, intrassubjetivo)</p><p>como eixo da analisabilidade” (p. 176).</p><p>Mas, diante da constatação de que</p><p>Melanie Klein não optou por esse</p><p>caminho, uma pergunta surge, inevi-</p><p>tável, procurando identificar a prove-</p><p>niência do êxito que ela diz ter alcan-</p><p>çado, na análise de crianças, por via</p><p>de suas interpretações: teria ele sido</p><p>obtido graças à interpretação ou a</p><p>despeito dela?</p><p>O método interpretativo da</p><p>Sra. Klein</p><p>Quando Klein (1955[1953]/</p><p>1991) iniciou sua prática analítica com</p><p>crianças, observou que, então, se es-</p><p>tabelecera o princípio de que “as in-</p><p>terpretações deveriam ser dadas mui-</p><p>to parcimoniosamente” (p. 150). De</p><p>fato, os pioneiros da psicanálise in-</p><p>fantil contentavam-se com interpre-</p><p>tações superficiais, chegando, mesmo,</p><p>à abstenção de comunicações</p><p>interpretativas. Contrária a essa pos-</p><p>tura (para ela, passível de severas crí-</p><p>ticas), Klein estabelece, como a prin-</p><p>cipal marca de seu método clínico, a</p><p>interpretação profunda e consistente</p><p>– recomendação que expressa em di-</p><p>versos textos, nos quais é possível ver,</p><p>claramente, a influência de palavras</p><p>usadas por Freud na discussão do caso</p><p>Hans.</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05292</p><p>293</p><p>DossiêDossiê</p><p>Diferentemente de Freud, po-</p><p>rém, Klein reconhecia que a criança,</p><p>apesar de mergulhada nas relações</p><p>com os objetos primários, tinha ple-</p><p>nas condições de estabelecer, imedia-</p><p>tamente, uma relação transferencial</p><p>com um adulto estranho. Essa pre-</p><p>missa fundamental, que, aliás, foi um</p><p>de seus grandes méritos para a inau-</p><p>guração e difusão da psicanálise in-</p><p>fantil, foi também aquela que tornou</p><p>plausível e até mesmo imperativa a</p><p>interpretação precoce (não raro, na</p><p>primeira sessão), sobretudo na preva-</p><p>lência dos sinais de uma transferên-</p><p>cia negativa, tais como retraimento,</p><p>ansiedade, desconfiança e hostilida-</p><p>de. Afinal, longe de avaliar a transfe-</p><p>rência negativa como evidência de</p><p>insucesso ou de mera inconveniência,</p><p>o método kleiniano preconizava que</p><p>ela fosse tratada por meios analíticos,</p><p>isto é, que fosse reconhecida e inter-</p><p>pretada, a fim de que se criasse, den-</p><p>tre outros efeitos, sua modulação</p><p>rumo à transferência positiva e ao</p><p>estabelecimento da situação analítica.</p><p>A interpretação, portanto, não foi</p><p>considerada por Klein um dos recur-</p><p>sos que podem abrir o trabalho analí-</p><p>tico, mas, sim, o único caminho: “na</p><p>análise de crianças é só a interpreta-</p><p>ção, na minha experiência, que dá iní-</p><p>cio ao processo analítico e o mantém</p><p>em andamento” (Klein, 1932/1997,</p><p>p. 94). Logo, antes que se afirme que</p><p>Klein atropelou a ordem dos aconte-</p><p>cimentos, interpretando antes que o</p><p>vínculo transferencial positivo se con-</p><p>solidasse, deve-se ressaltar o fato de</p><p>que ela transformou o que seria um</p><p>pré-requisito da interpretação em seu</p><p>efeito, ou seja, a interpretação foi con-</p><p>siderada, ela mesma, propiciadora do</p><p>vínculo analítico. Ao que parece, a</p><p>razão disso encontra-se na capacida-</p><p>de da interpretação de desmobilizar</p><p>as defesas e, assim, de dar abertura</p><p>ao inconsciente e ao livre jogo entre</p><p>amor e ódio que domina as relações</p><p>de objeto iniciais. Desse modo,</p><p>Quando a análise já começou e uma certa</p><p>quantidade de ansiedade já foi resolvida no</p><p>pacientezinho por meio de interpretações, a</p><p>sensação de alívio que ele experimenta como</p><p>consequência disso – com frequência já após</p><p>algumas sessões – o ajudará a prosseguir o</p><p>trabalho. Pois, se até então não tivera nenhum</p><p>incentivo para ser analisado, tem agora um</p><p>insight quanto ao uso e valor do trabalho ana-</p><p>lítico, que é um motivo tão eficaz para ser</p><p>analisado quanto o insight que o adulto tem a</p><p>respeito da sua doença. (Klein, 1932/1997,</p><p>p. 30)</p><p>Como se vê, era bastante sólida</p><p>a argumentação oferecida por Klein</p><p>para justificar a pertinência da inter-</p><p>pretação, em seu papel de colocar e</p><p>recolocar a análise em marcha rumo</p><p>à resolução dos conflitos infantis. A</p><p>autora embasava seus pontos de vista</p><p>com inúmeros exemplos, ilustrativos</p><p>da eficácia da interpretação dentro e</p><p>fora do cenário analítico.</p><p>Segundo o referencial kleiniano,</p><p>a diminuição da ansiedade é o elemen-</p><p>to que melhor representa a direção da</p><p>cura e comprova a eficácia da inter-</p><p>pretação. Além disso, em seu rastro,</p><p>traz efeitos tais como a diminuição da</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05293</p><p>294 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 290-305.</p><p>repressão e das inibições e o aumento da capacidade sublimatória.</p><p>Klein deixa bem claro que o trabalho analítico, ao interpretar</p><p>para a criança o que suas brincadeiras, seus desenhos e todo o seu</p><p>comportamento significam e, assim, erguer as “comportas” da re-</p><p>pressão, libera tanto as fantasias quanto a energia dispendida para</p><p>manter a repressão. Uma vez liberada, essa energia pode ser investida</p><p>em novas direções, donde o incremento da capacidade sublimatória,</p><p>muitas vezes atingido por meio da análise e visível no surgimento</p><p>de um grande número de novos interesses.</p><p>O uso convicto da interpretação e a correlata defesa de uma</p><p>análise conduzida em profundidade ajustam-se à concepção de Klein</p><p>a respeito do desenvolvimento superegoico ou moral da criança.</p><p>Uma das inovações da metapsicologia kleiniana é a teorização sobre</p><p>o superego tirânico e precoce, cujo surgimento se daria bem antes</p><p>do que tinha sido estabelecido por Freud. Entende Klein que, em</p><p>termos dos objetivos analíticos, a criança só tem a ganhar se a aná-</p><p>lise conseguir, através das interpretações, abrandar a severidade do</p><p>seu superego e, com isso, aliviar a pressão exercida sobre seu ego</p><p>pouco amadurecido:</p><p>À medida que a análise continua, as crianças vão se tornando capazes em alguma</p><p>medida de substituir os processos de repressão pelos de rejeição crítica. Isto se</p><p>observa quando, num estágio posterior de suas análises, elas se mostram tão distan-</p><p>ciadas dos impulsos sádicos que antes as governavam e a cujas interpretações opu-</p><p>nham resistências fortíssimas, que por vezes até acham graça deles. Já ouvi crianças</p><p>muito pequeninas rirem, por exemplo, da ideia de que uma vez elas realmente qui-</p><p>seram devorar a mamãe ou cortá-la em pedaços. (Klein, 1932/1997, p. 33)</p><p>Esse abrandamento gradativo do superego, implícito nessa ci-</p><p>tação, ocorre enquanto os objetos edipianos vão sendo introjetados</p><p>ao longo da primeira infância. Para tanto, o analista deve manter uma</p><p>escuta acurada voltada para o simbolismo das ações e dizeres da cri-</p><p>ança e para as manifestações do conflito edípico, que é de tão forte</p><p>impacto no desenvolvimento psíquico e no decurso da análise.</p><p>Outro aspecto muito peculiar do estilo interpretativo de Klein</p><p>é a linguagem usada para comunicar-se com a criança, marcada por</p><p>referências a objetos parciais e a termos anatômicos e fisiológicos.</p><p>Frequentemente, as interpretações evocam a imagem de uma carni-</p><p>ficina, uma guerra, um filme de terror (onde o pai é assassinado ou</p><p>assombra com ameaças de morte, o corpo materno é picado, cozi-</p><p>nhado e comido ou destruído com armas fecais). Essa descrição</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05294</p><p>295</p><p>DossiêDossiê</p><p>das cenas dantescas que se passam no</p><p>imaginário da criança é tão pertinen-</p><p>te que não encontramos analistas de</p><p>crianças que, mesmo sendo de outras</p><p>correntes teóricas, dispensem a leitu-</p><p>ra de um livro como A psicanálise de</p><p>crianças.</p><p>O comentário geral desses</p><p>profissionais é de admiração diante da</p><p>perspicácia com que Klein captava as</p><p>fantasias do universo infantil. De fato,</p><p>Klein estava convencida de que a lin-</p><p>guagem que empregava era compatí-</p><p>vel com as fantasias inconscientes da</p><p>criança e, também, que “em toda</p><p>criança, assim como em todo adulto,</p><p>apesar de toda a resistência e das de-</p><p>fesas, há anseio e prazer pela verda-</p><p>de” (Segal, 1987/1996, p. 10).</p><p>Essa crença kleiniana no valor</p><p>curativo da verdade acabava sendo</p><p>reforçada pelo fato de que as crian-</p><p>ças pareciam reagir muito bem ao seu</p><p>estilo de comunicação. Porém, mes-</p><p>mo captando com prontidão as fan-</p><p>tasias da criança, Klein, ao contrá-</p><p>rio do que julgam os críticos, não</p><p>descartava a prudência, conforme</p><p>podemos observar no excerto que se</p><p>segue:</p><p>A análise de crianças muito pequenas tem</p><p>mostrado repetidamente quantos significados</p><p>diferentes pode ter um único brinquedo ou</p><p>um único segmento de uma brincadeira e que</p><p>só podemos inferir e interpretar o seu signi-</p><p>ficado quando consideramos suas conexões</p><p>mais amplas e a situação analítica em que se</p><p>inserem. (Klein, 1932/1997, pp. 27-28)</p><p>Portanto, usualmente, ela não</p><p>interpretava o material “até ele ter sido</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05295</p><p>296 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 290-305.</p><p>expresso em várias representações”</p><p>(Klein, 1930/1997, p. 260), ou seja,</p><p>até ter-se repetido em diferentes con-</p><p>textos e brincadeiras e se fazer acom-</p><p>panhar pelas palavras da criança. No</p><p>entanto, o trabalho de síntese que é</p><p>exigido de qualquer apresentação de</p><p>material clínico não nos permite afir-</p><p>mar se ela apenas recomendava pru-</p><p>dência ou se era, de fato, comedida e</p><p>esperava a ocasião certa para interpre-</p><p>tar. Seja como for, a sólida argumen-</p><p>tação de Klein a favor do recurso</p><p>interpretativo na análise de crianças,</p><p>longe de equacionar as divergências</p><p>relativas ao papel da interpretação,</p><p>acabou por despertar uma avalanche</p><p>de críticas ao seu método.</p><p>Críticas ao estilo</p><p>interpretativo kleiniano</p><p>Segundo as críticas que lhe fo-</p><p>ram rendidas, Klein supervalorizava</p><p>de tal modo esse recurso que incidia</p><p>no equívoco do uso de interpretações</p><p>precoces e excessivas, que represen-</p><p>tavam, sobretudo, uma imposição do</p><p>saber e da subjetividade do analista,</p><p>expressa por interpretações baseadas</p><p>em um sistema simbólico predeter-</p><p>minado. Essas acusações recaíam,</p><p>principalmente, sobre o método uti-</p><p>lizado no tratamento de Dick: o en-</p><p>xerto do simbólico em seu aparelho</p><p>psíquico. A despeito dos resultados</p><p>admiráveis alcançados por Klein,</p><p>muitos analistas, baseados nesse e em</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05296</p><p>297</p><p>DossiêDossiê</p><p>outros relatos de caso, fizeram críticas intransigentes ao modelo</p><p>interpretativo da psicanalista, salientando a desconsideração do</p><p>movimento associativo da criança, o que constituiria um desvio da</p><p>regra fundamental da técnica psicanalítica. De acordo com Laplanche</p><p>(1988):</p><p>É surpreendente que uma teoria que se situa tão próxima dos processos mentais</p><p>mais profundos do inconsciente só tenha conseguido se traduzir num método</p><p>que chega à decodificação mais estereotipada dos ditos e gestos significativos do</p><p>paciente, sem considerar o movimento associativo, a referência histórica e indivi-</p><p>dual, e os mil e um indícios pelos quais descobrimos se a interpretação está ou</p><p>não num bom caminho. (p. 52)</p><p>Apesar de todas essas críticas serem pertinentes, pois Klein</p><p>realmente fez, em alguma medida, o que lhe foi atribuído, temos de</p><p>lamentar o fato de que muitas delas se tornaram até mesmo ácidas,</p><p>notadamente quando vinham daqueles que leram apenas trechos</p><p>isolados da obra kleiniana e que desconheciam os fundamentos te-</p><p>óricos que embasavam essas interpretações e, ao mesmo tempo, se</p><p>reformulavam com os efeitos delas.</p><p>A questão é por demais polêmica, principalmente porque se</p><p>tratava da apresentação de um método clínico novo, que buscava</p><p>descobrir um acesso ao inconsciente infantil, uma vez que nem sem-</p><p>pre é pela expressão verbal que se dão as associações das crianças.</p><p>Com efeito, quem as atende sabe que elas raramente narram sonhos</p><p>ou episódios angustiantes de sua vida cotidiana e que, através do</p><p>discurso delas, sequer chegam ao conhecimento seus pesadelos ou</p><p>fatos como a morte de entes queridos. Por esse motivo, a proposta</p><p>kleiniana era a da imbricação entre as dramatizações fantasiosas e as</p><p>expressões verbais.</p><p>Na guerra entre as escolas de psicanálise, todavia, esse assunto</p><p>acabou por despertar opiniões controversas de um lado e outro da</p><p>trincheira, conforme podemos acompanhar pela literatura: enquan-</p><p>to Santa Roza (1993) pergunta se “estaria de acordo com a inspira-</p><p>ção freudiana esse método kleiniano que propõe pôr a descoberto</p><p>o inconsciente da criança através de uma tradução imediata de brin-</p><p>cadeiras” (pp. 121-122), Cintra e Figueiredo (2004) argumentam que</p><p>tal método é “uma possibilidade – a única – de dar forma, nome e</p><p>uma certa passagem para a simbolização ao irrepresentável pulsional”</p><p>(p. 176).</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05297</p><p>298 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 290-305.</p><p>Embora saibamos que as críticas</p><p>contundentes trouxeram rearranjos</p><p>fundamentais à psicanálise kleiniana,</p><p>elas, infelizmente, desestimularam o</p><p>estudo sistemático de sua obra, razão</p><p>pela qual alguns profissionais se va-</p><p>lem de suas contribuições sem nem</p><p>mesmo reconhecerem a autoria da</p><p>técnica, a exemplo do uso que é feito</p><p>do brincar como o equivalente da as-</p><p>sociação livre. Outros, ainda, no afã</p><p>de entender o que está sendo comu-</p><p>nicado pelas crianças durante o aten-</p><p>dimento psicanalítico, dão-se ao luxo</p><p>de ler apenas a casuística clínica – jus-</p><p>tamente aquela que mais polêmicas</p><p>criou!</p><p>Quando nos dedicamos à leitura</p><p>atenta de tais registros, imediatamen-</p><p>te nos salta aos olhos a ausência de</p><p>dados relativos aos pais das crianças,</p><p>bem como aqueles referentes à ana-</p><p>mnese. Poderíamos imaginar que tal</p><p>omissão se deve ao fato de que Klein</p><p>se orgulhava em afirmar que o seu</p><p>interesse estava nas imagos parentais</p><p>da criança, o que, aliás, contaminou a</p><p>clínica de seus discípulos com a im-</p><p>pressão de que lidar com os pais é</p><p>sempre o grande peso da clínica in-</p><p>fantil, premissa que os levou a seve-</p><p>ras restrições quanto ao número de</p><p>encontros com os genitores. No en-</p><p>tanto, a contextualização histórica</p><p>desses atendimentos nos faz levantar</p><p>uma hipótese bem razoável para a fal-</p><p>ta de dados anamnésicos e da lida com</p><p>os pais durante o tratamento: o im-</p><p>perativo de resguardar a identidade</p><p>das famílias, uma vez que as suas pu-</p><p>blicações eram contemporâneas dos</p><p>tratamentos e os pais das crianças</p><p>atendidas por Klein pertenciam, fre-</p><p>quentemente, ao meio psicanalítico,</p><p>quando não, ao próprio círculo social</p><p>da autora. Mas não fossem essas as</p><p>condições de seu trabalho, talvez ela</p><p>nem tivesse chegado às profundezas</p><p>do funcionamento mental dos seres</p><p>humanos nos primeiros anos de vida.</p><p>Assim, cabe louvar o espírito crí-</p><p>tico de alguns profissionais, principal-</p><p>mente daqueles que, após terem de-</p><p>dicado parte de sua vida ao estudo da</p><p>obra kleiniana, acompanharam, ain-</p><p>da, o desenvolvimento das ideias de</p><p>Lacan e de Laplanche. Esses psicana-</p><p>listas, ao abrirem sua reflexão teórica</p><p>a novos paradigmas, constataram a</p><p>validade de antigas propostas</p><p>metodológicas e puderam oferecer</p><p>uma grande contribuição para a</p><p>reformulação da prática da clínica in-</p><p>fantil. Um ícone dessa postura é a</p><p>psicanalista Silvia Bleichmar, que,</p><p>como tantos outros psicanalistas ar-</p><p>gentinos, veio enriquecer a psicanáli-</p><p>se brasileira com sua produção escri-</p><p>ta, cursos e grupos de estudo. Graças</p><p>a profissionais dessa estirpe, à entra-</p><p>da da psicanálise nas universidades e</p><p>a ditames do mercado econômico,</p><p>que restringia o número de sessões</p><p>nos tratamentos, ocorreram mudan-</p><p>ças significativas no exercício da clí-</p><p>nica infantil. Se é verdade que Klein</p><p>teve um séquito de discípulos que le-</p><p>varam seu modelo interpretativo ao</p><p>extremo, daí o dito jocoso segundo o</p><p>qual “pior que Klein são os</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05298</p><p>299</p><p>DossiêDossiê</p><p>kleinianos”, é ainda verdade que essa</p><p>zombaria ao fanatismo dogmático</p><p>falou em favor da teoria kleiniana:</p><p>após as dissensões, tornou-se impe-</p><p>rioso, a toda uma geração de analis-</p><p>tas, o exercício de uma reflexão que</p><p>pudesse levar à reformulação de vá-</p><p>rios aspectos do método clínico de</p><p>Melanie Klein. São os benefícios</p><p>auferidos quando a discussão acadê-</p><p>mica não é tomada como um fim em</p><p>si mesmo.</p><p>Como interpretamos hoje</p><p>Atualmente, a clínica psicanalíti-</p><p>ca de orientação kleiniana apresenta</p><p>reformulações daqueles aspectos do</p><p>método que se revelaram questioná-</p><p>veis. Houve um aumento da frequên-</p><p>cia de atendimentos aos pais, provo-</p><p>cado por pelo menos dois motivos.</p><p>O primeiro deles foi reflexo da influ-</p><p>ência da prática lacaniana, que, con-</p><p>siderando a criança e seu sintoma um</p><p>efeito do inconsciente dos pais, deu</p><p>voz a eles, chegando até mesmo a in-</p><p>tercalar sessões com a criança e com</p><p>os pais ou, ainda, a realizar sessões</p><p>conjuntas. Um outro fator que con-</p><p>tribuiu para essa alteração foi a con-</p><p>dição financeira das famílias, que, con-</p><p>forme já se disse, impôs-lhes a</p><p>diminuição do número de sessões se-</p><p>manais. Assim, o analista foi impeli-</p><p>do a buscar mais informações sobre</p><p>a história de vida da família e do per-</p><p>curso que culminou no pedido de</p><p>análise, bem como a fortalecer a ali-</p><p>ança terapêutica com os pais, de quem</p><p>se espera, agora, mais paciência com</p><p>a lentidão dos resultados do proces-</p><p>so analítico.</p><p>Aumentar a proximidade com os</p><p>pais, e ainda com a escola e com ou-</p><p>tros especialistas que porventura aten-</p><p>dem a criança, permite ao analista</p><p>observar melhor a interação entre a</p><p>história singular daquela criança e as</p><p>fantasias que são desencadeadas para</p><p>dar conta dos pequenos enigmas que</p><p>se colocam para ela. Uma ilustração</p><p>pitoresca dessa situação pode ser re-</p><p>tirada do material clínico de uma cri-</p><p>ança com graves comprometimentos</p><p>autísticos, que, depois de muitos anos</p><p>de análise, inicia um processo de</p><p>simbolização que lhe permite dizer</p><p>que se identifica com um super-he-</p><p>rói, “O Homem de Ferro”. Além dis-</p><p>so, sua grande dificuldade em incluir</p><p>a mãe em qualquer uma de suas</p><p>dramatizações ficou esclarecida para</p><p>ele mesmo quando pronunciou a fra-</p><p>se: “Eu sei quem é a mãe do Homem de</p><p>Ferro: é a Mulher Invisível!”.</p><p>O exemplo citado reforça a con-</p><p>vicção de que o analista kleiniano</p><p>pode esperar pelas equações simbóli-</p><p>cas armadas pelo próprio paciente,</p><p>que com elas torna-se capaz de</p><p>autointerpretar-se ou de “solicitar”</p><p>uma comunicação interpretativa. No</p><p>caso em pauta, a mãe da criança, ape-</p><p>sar de comparecer às entrevistas soli-</p><p>citadas pela analista ou pela escola, era</p><p>uma presença/ausência, pois não</p><p>mostrava o seu aparelho afetivo. As-</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05299</p><p>300 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 290-305.</p><p>sim sendo, essa percepção conjunta</p><p>(analista/cliente) pode ajudar a for-</p><p>mular uma intervenção do tipo: “O</p><p>Homem de Ferro precisa muito co-</p><p>nhecer a mamãe dele, mas como vai</p><p>fazer se ela é invisível?”.</p><p>As equações simbólicas que se</p><p>observam a partir do faz de conta, de</p><p>desenhos, de trabalhos de modelagem</p><p>e afins ficam, sobretudo, a serviço do</p><p>raciocínio clínico do analista, enquan-</p><p>to o simbolismo veiculado por sua</p><p>palavra interpretativa leva em consi-</p><p>deração temáticas mais abrangentes,</p><p>distantes daquele formato que esqua-</p><p>drinhava cada elemento do brincar e</p><p>ditava que “isto está no lugar daqui-</p><p>lo”. Um exemplo pode ser encontra-</p><p>do no caso de uma paciente que se</p><p>aplicava, de várias maneiras, para fi-</p><p>car mais próxima de sua mãe, que a</p><p>havia deixado sob os cuidados de</p><p>outra pessoa e mostrava-se muito in-</p><p>constante do ponto de vista afetivo.</p><p>Num certo momento, a criança trou-</p><p>xe à sessão uma revista de jogos e fi-</p><p>cou brincando de percorrer labirin-</p><p>tos para levar, por exemplo, um</p><p>coelhinho até a cenoura. Embora ti-</p><p>vesse idade suficiente para realizar</p><p>esses jogos sem dificuldades, não os</p><p>completava; ao invés disso, desenha-</p><p>va vários impedimentos ao longo do</p><p>trajeto. Perguntar à criança “então, são</p><p>assim, cheios de obstáculos, os cami-</p><p>nhos para recuperar o que foi perdi-</p><p>do?” foi uma possibilidade de abor-</p><p>dar, de modo mais abstrato, a questão</p><p>que a afligia.</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05300</p><p>301</p><p>DossiêDossiê</p><p>Sabemos que o setting analítico é sustentado tanto pela estabili-</p><p>dade dos fatores ambientais quanto pela constância do funciona-</p><p>mento emocional do analista e da qualidade de sua escuta clínica;</p><p>no entanto, a singularidade de cada caso é que irá autorizar o analis-</p><p>ta a escolher a sua metodologia de intervenção. Em algumas situa-</p><p>ções, é tão satisfatório o nível de elaboração da criança que o brin-</p><p>car, por si só, produz efeitos que dispensam uma interpretação</p><p>formal. Essa capacidade aguçada de elaboração, que permite à cri-</p><p>ança fazer comentários sobre si, indica, sem dúvida alguma, a</p><p>internalização da função analítica – possibilidade que Klein não terá</p><p>explorado, uma vez que fez a seguinte declaração:</p><p>Eu nunca havia visto numa análise qualquer vantagem decorrer de uma política</p><p>de não interpretação. Na maioria dos casos em que tentei aplicar esse plano, tive</p><p>logo que abandoná-lo porque se desenvolvia uma ansiedade intensa e havia o</p><p>risco de interrupção da análise. (Klein, 1932/1997, p. 88)</p><p>De fato, há alguns casos em que, apesar de um bom estabeleci-</p><p>mento das condições do setting, será apenas a interpretação que ga-</p><p>rantirá o aplacamento da angústia.</p><p>Seja como for, a interpretação permanece sendo um recurso</p><p>muito estimado pelos analistas kleinianos, mas seu uso na atualida-</p><p>de é mais regrado que outrora, pois não há mais a urgência de</p><p>empregá-la, independentemente de se haver colhido material repre-</p><p>sentativo das camadas mais profundas do psiquismo desde os pri-</p><p>meiros atendimentos. E as fantasias sádicas da criança, apesar de</p><p>continuarem sendo ouvidas sem assombro pelos analistas kleinianos,</p><p>recebem agora, no lugar da expressão concreta, “crua”, interven-</p><p>ções/interpretações anunciadas numa linguagem mais abstrata e que</p><p>leva em conta a história significante da criança.</p><p>Passada a ojeriza do furor interpretativo de Klein, resta-nos</p><p>reconhecer que a interpretação nunca se tornou um recurso obsole-</p><p>to, pois a clínica com crianças reafirma, frequentemente, o seu índi-</p><p>ce de eficácia, razão pela qual ela continua sendo empregada por</p><p>analistas de diferentes correntes teóricas. Apesar dessa constatação,</p><p>fica a impressão de que esse conceito da teoria da técnica psicanalí-</p><p>tica é um rico veio de pesquisas – afinal, ainda não conseguimos</p><p>delimitar qual é, precisamente, a importância da interpretação num</p><p>processo de análise infantil e quais ressonâncias ela produz no</p><p>psiquismo da criança em análise. Não obstante, o que é possível</p><p>observar na prática clínica de muitos psicanalistas de orientação</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05301</p><p>302 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 290-305.</p><p>kleiniana é o uso parcimonioso do recurso interpretativo: ao invés</p><p>da interpretação ser feita com constância, ela é reservada para aque-</p><p>les momentos em que se faz imprescindível. A questão que se abre</p><p>então é a de como poderíamos identificar, com certa margem de</p><p>segurança, quais seriam esses momentos.</p><p>Mesmo na ausência de respostas conclusivas acerca desses</p><p>questionamentos sobre o uso da interpretação, um paradoxo se faz</p><p>presente: parece ser mais fácil pensar nos seus limites, ou seja, na-</p><p>quelas situações em que o emprego da interpretação mostra-se dis-</p><p>pensável ou, até mesmo, inoportuno. É muito comum que o analis-</p><p>ta de crianças se veja assaltado por essas questões quando está diante</p><p>de casos “difíceis”, geralmente, de crianças que sofreram traumas</p><p>de grande magnitude. Aí, sim, as dúvidas invadem o cenário: quan-</p><p>do e como fazer (ou não) uma interpretação que toque nas experi-</p><p>ências dolorosas do paciente – ainda mais se ele não as expressou</p><p>espontânea e diretamente, ou se declarou, de maneira enfática, não</p><p>querer falar “daquele assunto”? Fisgado por essas dúvidas, sem sa-</p><p>ber se deve ou não se reportar às vivências</p><p>reais da criança ou traba-</p><p>lhar apenas com as suas reedições nas brincadeiras e nos movimen-</p><p>tos transferenciais, o analista fica paralisado, presa de suas</p><p>inquietações. Se, acaso, Klein presenciasse momentos como esse,</p><p>provavelmente nos lembraria que, para desfazer a trama simbólica</p><p>que sustenta o sintoma e envolve a história de vida da criança, quer</p><p>se trate de dados factuais ou fantasiados, é necessário proceder a</p><p>um rastreamento da interpretação que parta do “aqui e agora” e vá</p><p>até os objetos e situações originais.</p><p>Ao que tudo indica, porém, a conduta mais frequente desse</p><p>hipotético analista será a de restringir suas intervenções, por um</p><p>tempo maior, aos personagens e ao roteiro da brincadeira que se</p><p>desenrola na sessão. Nesse caso, falará através da boca do persona-</p><p>gem sobre o assunto lançado pela criança (anteriormente ou naque-</p><p>le momento), mas, indiretamente, suas palavras poderão fazer alu-</p><p>são à história de vida da criança, uma vez que a temática eleita por</p><p>ela não é completamente alheia à sua realidade. Poderá, também,</p><p>complementar a fala do personagem com alguma intervenção em</p><p>ato no interior do jogo e que, de um modo simbólico, represente a</p><p>dinâmica psíquica e familiar.</p><p>Enfim, todos sabemos ser possível driblar, no dia a dia, os im-</p><p>passes clínicos com a ajuda do nosso feeling; mas há um grande desa-</p><p>fio que precisa ser assumido por todos aqueles que, tal como Klein,</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05302</p><p>303</p><p>DossiêDossiê</p><p>não são ingênuos em acreditar que a</p><p>interpretação é uma panaceia: a ur-</p><p>gência em teorizar os alcances e limi-</p><p>tes clínicos da interpretação impos-</p><p>tos pela prematuridade psíquica da</p><p>criança e pelos movimentos fundan-</p><p>tes de constituição das tópicas psíqui-</p><p>cas.</p><p>DO WE STILL INTERPRET CHILDREN</p><p>AS MELANIE KLEIN DID?</p><p>ABSTRACT</p><p>This article aims to approach the main aspects of</p><p>the clinical and interpretative method by Melanie</p><p>Klein, from the most aggressive criticism that she has</p><p>received and, once they were pertinent, from the relative</p><p>distance existing between the strict attitude of Klein</p><p>and the present Kleinian followers. After a fertile</p><p>reflection exercise on the Kleinian inter pretative</p><p>passion, it is possible to recognize that playing has</p><p>many times the power of allowing the elaboration of</p><p>certain plots. This way, interpretation is no longer</p><p>the central focus of neither all nor any session and</p><p>has become used just in case its technical resources</p><p>are essential.</p><p>Index terms: analytical interpretation; clinical</p><p>method; psychoanalysis for children; Melanie Klein.</p><p>¿INTERPRETAMOS AÚN A LOS NIÑOS</p><p>AL MODO DE MELANIE KLEIN?</p><p>RESUMEN</p><p>El artículo tiene la intención de tratar de los</p><p>principales aspectos del método clínico y de</p><p>interpretación de Melanie Klein, de las más fuertes</p><p>críticas que recibió y, por su pertinencia, de la distan-</p><p>cia relativa entre la rígida postura de Klein y aquella</p><p>de los kleinianos en la actualidad. Después de un</p><p>fructífero ejercicio de reflexión acerca del furor</p><p>interpretativo, fue posible reconocer que el jugar, por</p><p>si solo, tiene, muchas veces, el poder de permitir la</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05303</p><p>304 Estilos clin., São Paulo, v. 17, n. 2, jul./dez. 2012, 290-305.</p><p>elaboración de determinadas tramas. Así, la</p><p>inter pretación salió del foco central de toda y</p><p>cualquiera sesión y pasó a ser usada solamente en los</p><p>casos en que sus recursos técnicos son indispensables.</p><p>Palabras clave: interpretación analítica; método</p><p>clínico; psicoanálisis con niños; Melanie Klein.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>Bleichmar, S. (1993). A psicanálise “de fron-</p><p>teira”: clínica psicanalítica e neogênese. In</p><p>S. Bleichmar, A fundação do inconsciente: des-</p><p>tinos da pulsão, destinos do sujeito (K. B. Behr,</p><p>trad., pp. 175-204). Porto Alegre: Artes</p><p>Médicas.</p><p>Chemana, R., & Vandermersch, B. (2007).</p><p>Interpretação. In Dicionário de psicanálise. (F.</p><p>Settineri & M. Fleig, trads., pp. 202-203).</p><p>São Leopoldo: Unisinos.</p><p>Cintra, E. M. U., & Figueiredo, L. C. M.</p><p>(2004). Melanie Klein: estilo e pensamento. São</p><p>Paulo: Escuta.</p><p>Freud, S. (1996). Linhas de progresso na te-</p><p>rapia psicanalítica. In S. Freud, Edição</p><p>standard brasileira das obras psicológicas com-</p><p>pletas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad.,</p><p>Vol. 17, pp. 169-182). Rio de Janeiro:</p><p>Imago. (Trabalho original publicado em</p><p>1919[1918])</p><p>Klein, M. (1991). A técnica psicanalítica atra-</p><p>vés do brincar: sua história e significado.</p><p>In M. Klein, Inveja e gratidão e outros traba-</p><p>lhos (L. P. Chaves et al., trads., pp. 149-</p><p>168). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho</p><p>original publicado em 1955[1953])</p><p>Klein, M. (1997). A psicanálise de crianças (L. P.</p><p>Chaves, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Tra-</p><p>balho original publicado em 1932)</p><p>Laplanche, J. (1988). É preciso queimar</p><p>Melanie Klein? In J. Laplanche, Teoria da</p><p>sedução generalizada e outros ensaios (pp. 50-</p><p>59). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05304</p><p>305</p><p>DossiêDossiê</p><p>Santa Roza, E. (1993). Quando brincar é dizer : a experiência psicanalítica na infância. Rio de Janeiro:</p><p>Relume Dumará.</p><p>Segal, H. (1996). Nova introdução. In M. Klein, Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (A.</p><p>Cardoso, trad., pp. 9-13). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1987)</p><p>NOTA</p><p>1 Este artigo baseia-se nos resultados da dissertação de mestrado submetida pela primeira</p><p>autora, sob orientação da segunda, ao programa de Mestrado em Psicologia da Universidade</p><p>Federal de Minas Gerais. Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ní-</p><p>vel Superior (CAPES).</p><p>niveafatimapsi@yahoo.com.br</p><p>Rua Antônio Alves de Paula Neto, 123</p><p>35505-000 – Divinópolis – MG – Brasil.</p><p>cassandrapfranca@gmail.com</p><p>Av. André Cavalcante, 136/701</p><p>30430-110 – Belo Horizonte – MG – Brasil.</p><p>Recebido em outubro/2011.</p><p>Aceito em julho/2012.</p><p>Dossie 7 Estilos 17-2.pmd 7/12/2012, 17:05305</p><p>��������</p><p>�����</p><p>�������</p><p>��������������������</p><p>�������</p><p>��������������������������������������</p><p>��������</p><p>�����</p><p>��������</p><p>������</p><p>���</p><p>� ���� �����</p><p>���������</p><p>��</p><p>�</p><p>����������</p><p>���</p><p>� �� ���� ��</p><p>� ������ �����</p><p>��</p><p>����</p><p>� �� �������</p><p>��������� ���������</p><p>��� ���������� ����!���</p><p>������ ��</p><p>���"���</p><p>� #����</p><p>�</p><p>� $���%����</p><p>� &��</p><p>�������� ����� �'�� � �'��� � ������� (���</p><p>�����</p><p>� ����������� �� �������</p><p>��</p><p>� ���</p><p>�� ���)������� �</p><p>���������</p><p>�����</p><p>� ��*</p><p>���� #����</p><p>�</p><p>� $���%���� �� � ��)���� ��</p><p>�!���</p><p>�� ���� ������ ��+���, ����������</p><p>��� ��+��� ������ ���������� �� 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WINNICOTT 43</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE</p><p>DE D. W. WINNICOTT*</p><p>THERAPEUTIC CONSULTATIONS AND</p><p>WINNICOTT’S PSYCHOANALYSIS</p><p>Gabriel Zaia LESCOVAR**</p><p>RESUMO</p><p>O presente artigo aborda alguns eixos fundamentais da prática de consultas</p><p>terapêuticas, tais como: a posição metodológica de investigação clínica de</p><p>Winnicott (envolvendo a construção do conhecimento psicanalítico), o valor</p><p>intrínseco da experiência na prática clínica, do manejo temporal e do contexto</p><p>(meio ambiente) favorecedor de experiências constitutivas ao si-mesmo</p><p>(self) do paciente. Tais aspectos servirão como contextualizadores dessa</p><p>revolucionária modalidade de trabalho psicológico no interior da clínica</p><p>winnicottiana, por sua vez, fundamentada segundo o paradigma em</p><p>psicanálise, guiado pela relação mãe-bebê e pela busca de atualização e</p><p>constituição do si-mesmo.</p><p>Palavras-chave: consultas terapêuticas, psicanálise, Winnicott,</p><p>amadurecimento.</p><p>ABSTRACT</p><p>The aim of this paper is to present some of the core elements involved in</p><p>therapeutic consultations, such as the Winnicott’s clinical research</p><p>methodology perspective (involving the construction of psychoanalytical</p><p>knowledge), the intrinsic value of experience in clinical practice, and of</p><p>temporal management and facilitating environment in the constitutive</p><p>experience of the patient’s inner self. Such aspects will provide the context for</p><p>(*) Este artigo foi baseado em dissertação de mestrado, defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da</p><p>Pontifícia Universidade de São Paulo no ano de 2001, sob orientação do Prof. Dr. Zeljko Loparic. Essa mesma dissertação</p><p>também deve seu favorecimento à CAPES. Para maiores desenvolvimentos e esclarecimentos/ilustrações clínicas: Lescovar,</p><p>Gabriel Z. (2001) Um estudo sobre as consultas terapêuticas de D. W. Winnicott. Dissertação de mestrado,</p><p>PUC-SP.</p><p>(**) Psicólogo, Psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP, Doutorando pelo IPUSP/SP e Bolsista FAPESP. Endereço</p><p>para Correspondência: R. Ministro Gastão Mesquita, 769 Aptº 24 – Perdizes – São Paulo/SP – CEP 05012-010. E-mail:</p><p>gabriellescovar@uol.com.br.</p><p>44 G.Z. LESCOVAR</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>a revolutionary way of performing psychological activities within a winnicottian</p><p>clinic which is grounded on psychoanalytical paradigm; which is, in its turn,</p><p>based on the mother-baby relationship, and on a search for improvement</p><p>and self-constitution.</p><p>Key-words: therapeutic consultation, psychoanalysis, Winnicott, maturational</p><p>processes.</p><p>1. AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A</p><p>TEORIA DO AMADURECIMENTO HUMANO</p><p>Donald W. Winnicott (1896-1971),</p><p>renomado psicanalista inglês, responsável pela</p><p>apresentação de aspectos “tão evidentes, mas</p><p>tão raramente abordados” (Khan, 1978) da</p><p>natureza humana no universo psicanalítico, foi,</p><p>antes de tudo, um homem atento à especificidade</p><p>de sua prática. Como um “psicanalista agarrado</p><p>à pediatria”, Winnicott constatou a importância</p><p>das primeiras sessões em psicanálise e psiquiatria</p><p>infantil. Pressionado pelo grande número de</p><p>crianças que buscavam seu auxílio, gradualmente</p><p>configurou o que posteriormente denominou</p><p>consultas terapêuticas.</p><p>Como herdeiro do método psicanalítico</p><p>freudiano de investigação científica do psiquismo</p><p>humano, suas constantes reformulações teórico-</p><p>técnicas só podem ser devidamente compreen-</p><p>didas à luz de sua prática clínica, que lhe impunha</p><p>novos desafios à psicanálise como, por exemplo,</p><p>o trabalho de consultas terapêuticas.</p><p>No exercício da pediatria, deparou com um</p><p>grande número de casos de crianças que</p><p>adoeciam precoce e psicossomaticamente,</p><p>apesar de diagnosticadas pelos médicos pediatras</p><p>como fisicamente saudáveis (Winnicott, 1958a).</p><p>Tal constatação obrigou Winnicott a considerar a</p><p>dependência do bebê dos cuidados circunstantes</p><p>ambientais como necessariamente constituintes</p><p>de seu psiquismo. Na evacuação durante a</p><p>Segunda Guerra Mundial, como consultor</p><p>psiquiátrico de crianças encaminhadas a</p><p>albergues, pôde verificar os efeitos nocivos da</p><p>privação ambiental que resultavam em tendências</p><p>anti-sociais e comportamentos delinqüenciais</p><p>juvenis. Este novo fato veio corroborar suas</p><p>hipóteses anteriores sobre a influência dos fatores</p><p>ambientais na saúde psíquica dos indivíduos e</p><p>também sobre o reconhecimento da obrigato-</p><p>riedade da inclusão da avaliação ambiental para</p><p>realização de um diagnóstico completo em saúde</p><p>mental. Finalmente, conforme descrito em seu</p><p>artigo de 1954, Winnicott entrou em contato com</p><p>pacientes esquizóides e esquizofrênicos em</p><p>estado de regressão à dependência (Winnicott,</p><p>1954), quando pôde lançar luz sobre os fatores</p><p>iniciais da constituição psíquica, inacessíveis</p><p>pela observação direta das interações entre pais</p><p>e bebês.</p><p>Referências à prática de consultas tera-</p><p>pêuticas surgem ao longo de toda a sua obra,</p><p>mesmo quando não explicitadas nos objetivos ou</p><p>títulos de seus artigos. A freqüência de menções</p><p>às consultas terapêuticas sinaliza a mútua</p><p>influência entre esta prática e a conceituação da</p><p>clínica psicanalítica winnicottiana.</p><p>No prefácio de Consultas terapêuticas em</p><p>psiquiatria infantil (Winnicott, 1971b), Winnicott</p><p>localizou explicitamente o início de suas atividades</p><p>em consultas terapêuticas nos anos vinte:</p><p>Minha concepção do lugar especial da</p><p>consulta terapêutica e da exploração da</p><p>primeira entrevista (ou primeira entrevista</p><p>reduplicada) surgiu gradualmente no</p><p>decorrer do tempo em minhas experiências</p><p>clínica e privada. Há contudo um ponto que</p><p>se pode dizer teve significação especial.</p><p>Em meados dos anos vinte, quando ainda</p><p>era pediatra praticante vendo muitos</p><p>pacientes no hospital-escola e dando</p><p>oportunidade a quantas crianças fosse</p><p>possível se comunicarem comigo,</p><p>desenharem figuras e me contarem sonhos,</p><p>fiquei surpreso com a freqüência com que</p><p>as crianças sonhavam comigo na noite</p><p>anterior à consulta. Esse sonho com o</p><p>AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 45</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>médico que elas iriam ver obviamente refletia</p><p>o preparo mental imaginativo delas mesmas</p><p>em relação a médicos, dentistas e outras</p><p>pessoas que se supõe sejam auxiliadoras.</p><p>Também refletiam, em graus variados, a</p><p>atitude dos pais e a preparação para a</p><p>visita. Contudo, lá estava eu quando, para</p><p>minha surpresa, descobri ajustando-me a</p><p>uma noção preconcebida. (Winnicott,</p><p>1971b, p. 12)</p><p>Em linhas gerais, as consultas terapêuticas</p><p>representam uma possibilidade nova e breve de</p><p>coligir a história de um caso clínico por meio de</p><p>contato com o paciente, ou seja, obter e conduzir</p><p>os elementos vitais que possam ajudá-lo na</p><p>elaboração de um sofrimento ou dificuldade.</p><p>Buscando esclarecer o trabalho de consultas</p><p>terapêuticas, Winnicott descreve:</p><p>Os princípios aqui enumerados são os</p><p>mesmos que caracterizam um tratamento</p><p>psicanalítico. A diferença entre a psicanálise</p><p>e a psiquiatria infantil [o autor está se</p><p>referindo às consultas terapêuticas] é</p><p>principalmente que, na primeira, tenta-se</p><p>ter a oportunidade de fazer tanto quanto</p><p>possível [...], enquanto que na última</p><p>pergunto-me: qual é o mínimo que se precisa</p><p>fazer? O que se perde fazendo-se tão pouco</p><p>quanto possível é balanceado por um lucro</p><p>imenso, uma vez que na psiquiatria infantil</p><p>tem-se acesso a um vasto número de</p><p>casos [...] para os quais a psicanálise não</p><p>constitui uma proposta prática. (Winnicott,</p><p>1965a, p. 261)</p><p>As consultas terapêuticas, ou a exploração</p><p>integral das primeiras entrevistas psicológicas,</p><p>representam uma nova possibilidade de avaliação,</p><p>intervenção e ajuda psicológica, em que o encontro</p><p>analítico se respalda basicamente numa</p><p>comunicação significativa entre os membros do</p><p>encontro. Tal possibilidade surge exatamente</p><p>pelo caráter peculiar que marca o momento de</p><p>pedido de ajuda do paciente, que espera encontrar,</p><p>na comunicação com o psicoterapeuta, o objeto</p><p>necessitado para a superação de sua dificuldade</p><p>e, conseqüentemente, a retomada de seu</p><p>processo de amadurecimento. A brevidade</p><p>(variando aproximadamente de uma a três</p><p>sessões) torna-se possível graças ao elemento</p><p>norteador do trabalho terapêutico, segundo a</p><p>clínica winnicottiana, respaldado nas</p><p>necessidades do si-mesmo (self) e de suas</p><p>efetivações, que exigem um outro ser humano</p><p>para cumprir-se.</p><p>Como o ser humano se encontra em</p><p>processo de contínuo amadurecimento – desde</p><p>o nascimento até a morte –, as consultas surgem</p><p>como uma possibilidade de intercomunicação e</p><p>ajuda nas mais diferentes etapas da vida.</p><p>No entanto, apesar de as consultas tera-</p><p>pêuticas serem consideradas uma nova</p><p>modalidade de prática psicológica, não podem</p><p>ser definidas a partir de procedimentos técnicos</p><p>estanques. A comunicação significativa, isto é, o</p><p>ponto-ápice dessa modalidade de intervenção e</p><p>avaliação psicológicas, gradualmente se configura</p><p>ao longo do próprio processo de comunicação e</p><p>contato entre analista e paciente. Para surpresa</p><p>de ambos, em um dado momento, a comunicação</p><p>significativa apresenta-se muito claramente, por</p><p>meio da fala, das brincadeiras ou de desenhos</p><p>comuns aos participantes. A dupla analítica</p><p>surpreende-se com a emergência de aspectos</p><p>essenciais da biografia do paciente, relacionados</p><p>à problemática que o paciente buscava tratar – e</p><p>que sequer tinha consciência dessa abrangência</p><p>que o motivava a buscar auxílio. Diante desse</p><p>fato comunicacional, o psicoterapeuta conclui</p><p>um psicodiagnóstico compreensivo psicanalítico.</p><p>Em virtude desse caráter surpreendente e</p><p>flexível das consultas, estas não podem ser</p><p>definidas por meio de técnicas rígidas, conforme</p><p>já destacado, ou mesmo estabelecidas ante-</p><p>riormente ao contato analítico. Assim sendo,</p><p>cada encontro analítico adquire uma configuração</p><p>própria, resultado da conjunção das interações e</p><p>características tanto do analista quanto de seus</p><p>pacientes.</p><p>Ainda no prefácio de Consultas terapêuticas</p><p>(Winnicott, 1971b), Winnicott salientou insis-</p><p>tentemente a flexibilidade das conduções clínicas</p><p>das consultas a rigores técnicos, obrigando a</p><p>uma reflexão crítica e paralela acerca de sua</p><p>46 G.Z. LESCOVAR</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>teoria do amadurecimento humano para</p><p>efetivamente compreendê-la. Para Winnicott, a</p><p>aplicação cega de uma técnica (e</p><p>conseqüentemente, enquadre) é inútil para o</p><p>paciente, porque inadequada às suas</p><p>necessidades, estabelecidas a priori e sem</p><p>qualquer contato com o mesmo e sua realidade.</p><p>Os princípios norteadores da escuta, prática e</p><p>flexibilidade clínica que regem a condução de</p><p>consultas terapêuticas (Winnicott, 1971b) advêm</p><p>da teoria do amadurecimento pessoal, respaldada</p><p>essencialmente na comunicação humana e nos</p><p>vários sentidos de realidades que constituem a</p><p>existência. Por sua vez, tal teoria psicanalítica</p><p>somente pôde ser gradualmente construída a</p><p>partir da própria prática clínica de Winnicott. Esta</p><p>configura uma das características hermenêuticas</p><p>ou, como outros comentadores da obra</p><p>winnicottiana denominam, “paradoxais”, que</p><p>definem a obra desse pediatra psicanalista.</p><p>Ao circunscrever essa modalidade de</p><p>trabalho, Winnicott afirma:</p><p>A única companhia que tenho ao explorar o</p><p>território desconhecido de um novo caso é</p><p>a teoria que levo comigo e que se tem</p><p>tornado parte de mim e em relação à qual</p><p>sequer tenho que pensar de maneira</p><p>deliberada. Essa é a teoria do desenvolvi-</p><p>mento emocional do indivíduo, que inclui,</p><p>para mim, a história total do relacionamen-</p><p>to individual da criança até seu meio</p><p>ambiente específico. (Winnicott, 1971b,</p><p>p. 06, grifos meus)</p><p>Dito de outra forma, a fundamentação das</p><p>consultas terapêuticas encontra-se no próprio</p><p>movimento de busca de auxílio da criança e na</p><p>constatação de que, durante as primeiras entre-</p><p>vistas, o paciente se encontrava particularmente</p><p>ávido para informar o terapeuta sobre sua</p><p>dificuldade. Em termos teóricos, Winnicott</p><p>fundamentou este trabalho segundo sua releitura</p><p>dos processos transferenciais.</p><p>Winnicott realizou uma releitura da</p><p>transferência a partir do estudo da primeira</p><p>infância. De acordo com sua teoria do</p><p>amadurecimento humano, somente por meio dos</p><p>processos de apercepção e ilusão é que o bebê</p><p>passa a construir gradualmente a realidade</p><p>compartilhada. Tais relacionamentos objetais</p><p>iniciais são, quando favorecedores do desenvol-</p><p>vimento do bebê, necessariamente subjetivos.</p><p>Para condução de um bom trabalho terapêutico,</p><p>essa mesma qualidade subjetiva inicial deverá</p><p>estar presente na transferência das relações</p><p>terapêuticas de cuidado.</p><p>(...) o bebê tem a capacidade, quando a</p><p>função de ego auxiliar da mãe está em</p><p>operação, de se relacionar com objetos</p><p>subjetivos. Neste aspecto o bebê pode</p><p>chegar de vez em quando ao princípio de</p><p>realidade, mas nunca em toda a parte de</p><p>uma vez só – o bebê mantém áreas de</p><p>objetos subjetivos juntamente com outras</p><p>em que há algum relacionamento com</p><p>objetos percebidos objetivamente, ou,</p><p>objetos ‘não-eu’. (Winnicott, 1962b, p. 56)</p><p>Segundo Winnicott, as experiências de</p><p>vida de uma criança tornam-se pessoais somente</p><p>enquanto obrigatoriamente submetidas à sua</p><p>criatividade originária, ou seja, justamente ali,</p><p>onde a mãe se coloca a serviço do objeto subjetivo</p><p>necessitado. O mesmo torna-se válido para as</p><p>relações e conduções transferenciais.</p><p>O início das relações objetais é complexo.</p><p>Não pode ocorrer se o meio não propiciar a</p><p>apresentação de um objeto, feito de um</p><p>modo que seja o bebê quem crie o objeto.</p><p>O padrão é o seguinte: o bebê desenvolve</p><p>a expectativa vaga que se origina em uma</p><p>necessidade não-formulada. A mãe, em se</p><p>adaptando, apresenta um objeto ou um</p><p>manejo corporal que satisfaz as necessi-</p><p>dades do bebê, de modo que o bebê começa</p><p>a se sentir confiante em ser capaz de criar</p><p>objetos e criar o mundo real. A mãe</p><p>proporciona ao bebê</p><p>considerados os</p><p>agentes primários na troca de experiências. Hoje as mídias, principalmente a televisão, acabaram</p><p>ocupando esse lugar e roubando a cena, constituindo-se num dos principais meios de divulgação das</p><p>informações e de acesso ao mundo. Esse contato independe da classe social ou faixa etária, ocorrendo</p><p>muito antes do que se imagina.</p><p>Segundo estudos realizados por Pfromm Netto, as crianças têm interesse pela televisão a partir dos</p><p>seis meses de vida, passando a assistir com maior regularidade a programação por volta dos dois ou três</p><p>anos de idade. (PFROMM NETTO, 1998, p. 48). Quando uma criança inicia o seu processo formativo na</p><p>escola, leva consigo uma bagagem de conhecimentos inestimável, adquirida através das várias horas</p><p>passadas em frente ao televisor desde quando ainda era um bebê. A escola, muitas vezes, despreza esses</p><p>conhecimentos prévios, trabalhando com informações totalmente descontextualizadas dessa realidade. Isso</p><p>provoca um distanciamento entre as práticas educativas e as vivências infantis concentrando, em parte, a</p><p>aversão dos alunos à escola.</p><p>Os produtores corporativos da cultura infantil invadem a vida privada das crianças. Percebendo o</p><p>enorme poder dos meios de comunicação e informação, atacam a vulnerabilidade infantil desenvolvendo</p><p>uma infinidade de produtos para atingir a essa faixa etária, criando necessidades para este público</p><p>consumidor e incitando a aquisição exacerbada dos produtos veiculados pelas mídias. Conforme atesta</p><p>Rizzardi, além dos aspectos voltados para o entretenimento e lazer, a televisão também se apresenta</p><p>como uma poderosa gôndola eletrônica para a exposição e sedução destes pequenos consumidores</p><p>(RIZZARDI, 2003, p. 231).</p><p>Além disso, convém ressaltar um outro agravante, uma característica tipicamente desenvolvida</p><p>pela sociedade contemporânea: a individualização dos sujeitos. Aprisionados pelas suas rotinas</p><p>profissionais, os pais acabam enclausurando as crianças em casa, de modo a permanecerem sozinhas. A</p><p>televisão, estruturada com seus poderosos apelos comerciais, acabam invadindo a vida das crianças e se</p><p>agregando na própria constituição, ditando valores, regras, modismos, formas de encarar e atuar no</p><p>mundo. Todo esse movimento é desenrolado e incorporado, sem a devida filtragem, pois as crianças não</p><p>dispõem do contato com pessoas mais experientes.</p><p>Sobre a aquisição de bens e produtos veiculados largamente pela mídia, os estudos desenvolvidos</p><p>por Jean Baudrillard (1995) indicam que a insatisfação emocional dos indivíduos é o motor do</p><p>consumismo. A estimulação acontece através das campanhas publicitárias, estando a felicidade atrelada ao</p><p>consumo de bens materiais. Esse consumo desenfreado, realimentado no contato com novos bens, gera um</p><p>ciclo vicioso ocasionando numa insatisfação psicológica permanente do consumidor. É o estado de</p><p>insatisfação crônica que torna o indivíduo um consumidor modelo (COSTA, 2004, p. 139).</p><p>887</p><p>Com isso, há uma desestabilização das identidades culturais, deixando o indivíduo moderno</p><p>fragmentado, com fronteiras pouco definidas, tal como preconizado por Stuart Hall (2004). Em</p><p>contrapartida uma nova identidade vai sendo construída gradativamente, por intermédio de produtos</p><p>destinados às crianças tais como brinquedos, filmes, artigos de moda, dentre outros. O sujeito-criança,</p><p>seguindo esta linha de raciocínio, é reduzido ao corpo e torna-se consumidor. Essa compreensão dos fatos</p><p>altera totalmente a noção de infância construída até então. Sobre essa transformação no entendimento do</p><p>ser criança, Ghiraldelli Júnior nos esclarece brilhantemente acenando que:</p><p>Ser criança é ter corpo que consome coisa de criança. Que coisas são estas?</p><p>Primeiro, coisas que a mídia define como tendo sido feitas para o corpo da</p><p>criança. Segundo, coisas que ela define como sendo próprias do corpo da</p><p>criança. Respectivamente, por um lado, bolachas, danoninhos, sucos, roupas,</p><p>aparatos para jogos, etc, por outro, gestos, comportamentos, posturas corporais,</p><p>expressões, etc. Ser criança é algo definido pela mídia, na medida em que é um</p><p>corpo-que-consome-corpo (GHIRALDELLI JR., 1996, p. 38).</p><p>Nesta perspectiva, há uma mudança de foco, pois a infância deixa de ser uma fase natural da vida</p><p>humana sendo, agora, um artefato construído, autorizado e ditado pela mídia. Esta, por sua vez, recria esta</p><p>imagem da criança livre, protegida, feliz, deturpando e camuflando a verdadeira face da realidade. O que</p><p>temos, na verdade, não passa de um simulacro da infância.</p><p>Num entendimento de cunho sócio e antropológico, reconhece-se a existência de uma “infância</p><p>heterogênea”, percebendo as diferenças encontradas e a influência de contextos específicos na edificação</p><p>da diversidade. Isso evidencia a existência de diferentes infâncias vividas num mesmo espaço e tempo,</p><p>refletindo os paradoxos experimentados pelas crianças (CARVALHO, 2003, p. 41). O discurso</p><p>proliferado pela mídia acaba desconsiderando estes dados, homogeneizando comportamentos e atitudes</p><p>infantis, desconsiderando a individualidade do ser criança, construindo a idéia de que todas as crianças são</p><p>felizes e vivem em condições de vida favoráveis ao seu crescimento, tal como preconizado pelas</p><p>campanhas publicitárias e demais gêneros televisivos.</p><p>Como nos aponta Steinberg e Kincheloe (2001, p. 32) desde a década de 50, cada vez mais as</p><p>experiências infantis têm sido pautadas e produzidas pelas corporações. Programas de TV, cinema,</p><p>videogames e as músicas passam a fazer parte exclusivamente do domínio privado das crianças. A cultura</p><p>destinada à infância ignora, muitas vezes, os problemas de origem econômica, social, étnica e cultural</p><p>vivenciados diariamente pelas crianças, mostrando um mundo de plasticidades onde reina a mais perfeita</p><p>ordem, modelada pela performance midiática e ausentando-se de uma ressignificação.</p><p>Diferentemente do protótipo de criança desenvolvidos nos séculos anteriores a criança, calcado no</p><p>mito da infância feliz deste novo milênio possui um espírito mais independente, pois desenvolveu uma</p><p>série de habilidades no contato a mídia. No entanto, ainda precisam da ação interventora e mediadora do</p><p>adulto, no sentido de conduzi-la na elaboração das estratégias de percepção da realidade. Existe uma</p><p>urgência na preparação das crianças para o contato com o bombardeio de informações de tão fácil acesso,</p><p>primando pela construção de um filtro capaz de selecionar àquelas de maior qualidade além do trato com a</p><p>acuidade visual, eficaz no entendimento das imagens que povoam nosso cotidiano.</p><p>Todos os acontecimentos que perpassam a história da infância serviram para estruturar uma nova</p><p>caracterização da criança, do ponto de vista sociológico, como um componente histórico-cultural moldada</p><p>por condicionantes econômicos e políticos atuando diretamente sobre ela. Considerando tais elementos,</p><p>encaramos esta fase da vida humana como detentora de direitos, dotada de competências e capacidades a</p><p>serem aprimoradas, tendo condições para exercer o seu papel como cidadã dentro de um processo</p><p>evolutivo de socialização.</p><p>A criança contemporânea amadurece precocemente, dada as estimulações ofertadas no meio</p><p>circundante. De notável inteligência e criatividade, precisam ser ouvidas e consideradas como parte</p><p>888</p><p>integrante da sociedade. Mesmo tendo adquirido uma certa independência desde cedo, é inestimável o</p><p>apoio, a proteção e o contato do adulto, auxiliando-a nas suas escolhas, na constituição dos princípios e</p><p>valores baseados na justiça e na solidariedade, proporcionando a construção de um olhar crítico frente o</p><p>mundo que nos envolve. Só assim estaremos preparando nossas crianças para viverem plenamente estes</p><p>novos tempos.</p><p>E essa crise da infância pode ser provocada por alguns fatores que devem ser considerados. A</p><p>produção corporativa da cultura infantil, em outras palavras, os artefatos da cultura produzido por grandes</p><p>empresas especializadas, exercem uma forte influência na formação dessas crianças e merecem</p><p>um breve período em</p><p>que a onipotência é um fato da experiência.</p><p>Deve-se ressaltar que, ao me referir ao</p><p>início das relações objetais, não estou me</p><p>referindo às satisfações e frustrações do id.</p><p>(Winnicott, 1962b, p. 60)</p><p>Em Consultas terapêuticas em psiquiatria</p><p>infantil (Winnicott, 1971b), Winnicott fundamenta</p><p>a prática de consultas na relação subjetiva de</p><p>AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 47</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>objeto da criança, relação esta capaz de favorecer</p><p>a emergência do brincar mútuo e da comunicação</p><p>significativa.</p><p>Uma primeira implicação dessa concepção</p><p>é a necessidade de o analista reconhecer ao</p><p>longo do(s) encontro(s) qual é a problemática que</p><p>o paciente anseia tratar, isto é, a partir de que</p><p>necessidade a criança o coloca em lugar de</p><p>objeto subjetivo? Qual a necessidade mais</p><p>premente que o paciente anseia por comunicar?</p><p>Dessa forma, Winnicott restringe o uso das</p><p>consultas terapêuticas não por intermédio de</p><p>quadros psicopatológicos, mas em relação a</p><p>dois fatores intimamente imbricados: a</p><p>capacidade/incapacidade da criança em ter</p><p>esperança em um encontro humano que venha</p><p>em seu auxílio, e também em relação ao ambiente</p><p>imediato da criança que poderá ou não fazer bom</p><p>uso do progresso alcançado por ela por meio da</p><p>integração favorecida pela consulta. Haverá</p><p>provisão ambiental familiar (e/ou escolar e/ou da</p><p>comunidade) capaz de ir ao encontro das</p><p>necessidades e comunicações da criança</p><p>(Winnicott, 1965c) após o desbloqueio em seu</p><p>desenvolvimento decorrente das consultas?</p><p>Há uma categoria de casos em que essa</p><p>espécie de entrevista psicoterapêutica deve</p><p>ser evitada. Não diria que com uma criança</p><p>muito doente não é possível se fazer um</p><p>trabalho eficaz. Mas diria que, se a criança</p><p>sai da consulta terapêutica e retorna para</p><p>uma situação familiar ou social anormal,</p><p>então não há provisão ambiental alguma da</p><p>espécie necessária e que eu julgaria</p><p>admissível. Confio em um ‘ambiente</p><p>expectável médio’ para encontrar e utilizar</p><p>as mudanças que ocorrem no menino ou na</p><p>menina durante a entrevista, mudanças</p><p>que indicam uma anulação da dificuldade</p><p>no processo de desenvolvimento.</p><p>De fato, a principal dificuldade na avaliação</p><p>dos casos para essa espécie de trabalho é</p><p>a de avaliar o meio ambiente imediato da</p><p>criança. Onde há um poderoso e contínuo</p><p>fator externo adverso ou ausência de</p><p>consistente cuidado pessoal, é preciso</p><p>evitar essa espécie de procedimento,</p><p>devendo-se sentir inclinado a explorar o</p><p>que pode ser feito mediante ‘tratamento</p><p>cuidado’ ou ainda instituir uma terapia que</p><p>possa dar à criança a oportunidade para um</p><p>relacionamento pessoal do tipo geralmente</p><p>conhecido como transferência. (Winnicott,</p><p>1971b, p. 05)</p><p>Para ele, o caráter primordial desses</p><p>encontros é a adaptação ativa do analista às</p><p>necessidades e expectativas do paciente,</p><p>segundo a sua compreensão do que se passava</p><p>com o paciente (por meio da teoria do amadureci-</p><p>mento pessoal) e, conseqüentemente, se</p><p>necessária, a comunicação verbal desse entendi-</p><p>mento no momento adequado. Os objetivos</p><p>últimos são favorecer (por meio da experiência de</p><p>surpreender-se) ao paciente uma integração de</p><p>seus aspectos dissociados e/ou não vividos e a</p><p>realização concomitante de seu diagnóstico (e</p><p>conseqüente compreensão do melhor procedi-</p><p>mento a ser adotado).</p><p>No entanto, é preciso destacar que existem</p><p>pré-requisitos para o trabalho do psicoterapeuta,</p><p>para que a comunicação significativa ocorra na(s)</p><p>consulta(s). Todo o trabalho anterior do psicotera-</p><p>peuta é favorecer o processo de ilusão por meio</p><p>de sua postura de confiabilidade e previsibilidade</p><p>profissional/pessoal e ambiental. (cf. Dias, 1999)</p><p>À medida que o paciente começa a sentir</p><p>que alguma compreensão do seu sofrimento</p><p>poderá ser atingida, as consultas terapêuticas</p><p>passam a constituir uma espécie de jogo e</p><p>interação em que os participantes estabelecem</p><p>um diálogo por meio de um brincar mútuo.</p><p>Conforme destacado anteriormente, isso se deve</p><p>ao fato de o terapeuta colocar-se à disposição do</p><p>paciente (em estado de devoção e concentração),</p><p>ciente da oportunidade particular das primeiras</p><p>entrevistas em psicanálise; por outro lado, o</p><p>paciente (em busca de auxílio) é movido pela</p><p>própria expectativa (relação objetal inicialmente</p><p>subjetiva), pela aliança terapêutica e tendência à</p><p>integração.</p><p>Conforme exposto, durante a realização de</p><p>consulta(s) terapêutica(s), qualquer condução</p><p>clínica poderá ser utilizada, dependendo do</p><p>caminho possível e escolhido pelo paciente em</p><p>48 G.Z. LESCOVAR</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>questão (e sua necessidade). Poder-se-ão usar</p><p>desenhos, jogos, brinquedos, diálogos... ou os</p><p>jogos de rabisco que Winnicott criou. Ele utilizava</p><p>esse jogo porque gostava, porque facilitava a</p><p>tomada de notas sobre os acontecimentos das</p><p>consultas (que eram registrados pelos desenhos</p><p>produzidos), e não como uma técnica necessária</p><p>para a realização de consultas.</p><p>O jogo de rabisco é apenas uma maneira de</p><p>entrar em contato com o paciente pelo uso de</p><p>lápis e papel. Caracteriza-se pela flexibilidade</p><p>(diferentemente dos jogos de regras, em que</p><p>está em questão ganhar ou perder) e consiste no</p><p>seguinte: o analista faz um rabisco a esmo, que</p><p>pode ser transformado pelo paciente em um</p><p>desenho. Depois o paciente faz o seu rabisco e</p><p>o analista o transforma em um outro desenho,</p><p>construindo paulatinamente um caminho de</p><p>comunicação... Durante o jogo, o analista deixa</p><p>o paciente escolher livremente se prefere desenhar</p><p>sozinho, nomear os rabiscos, em vez de produzir</p><p>ativamente transformações gráficas, ou parar o</p><p>jogo e conversar...</p><p>O jogo de rabisco não deve ser confundido</p><p>com as consultas terapêuticas em si mesmas,</p><p>mas considerado elemento facilitador dessas</p><p>consultas.</p><p>Para Winnicott, o modelo de condução do</p><p>trabalho analítico repousa sobre sua concepção</p><p>de mãe suficientemente boa. Nesse sentido, o</p><p>trabalho psicológico realizado na perspectiva de</p><p>Winnicott, incluindo as consultas terapêuticas,</p><p>reserva ao analista um posicionamento seme-</p><p>lhante ao da mãe em estado de devoção no</p><p>cuidado de seu bebê. Para Winnicott, o analista</p><p>só pode realizar um bom trabalho se puder</p><p>favorecer o estabelecimento de um espaço</p><p>potencial, decorrente da confiabilidade e</p><p>previsibilidade ambiental fornecida. Um analista</p><p>que consegue brincar pode identificar-se com</p><p>seu paciente e, ao mesmo tempo, preservar sua</p><p>identidade pessoal, além de poder iluminar os</p><p>acontecimentos por meio dos conhecimentos</p><p>segundo sua teoria do amadurecimento humano</p><p>(Winnicott, 1971b, p. 10). Originalmente,</p><p>Winnicott subverte a ordem e submete a psicote-</p><p>rapia ao brincar e não o seu contrário, conforme</p><p>freqüentemente compreendido psicanalitica-</p><p>mente.</p><p>Desejo afastar a atenção da seqüência:</p><p>psicanálise, psicoterapia, material da</p><p>brincadeira, brincar, e propor tudo isso</p><p>novamente, ao inverso. Em outros termos,</p><p>é a brincadeira que é universal e que é</p><p>própria à saúde: o brincar facilita o cresci-</p><p>mento e, portanto, a saúde; o brincar conduz</p><p>aos relacionamentos grupais; o brincar pode</p><p>ser uma forma de comunicação na</p><p>psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi</p><p>desenvolvida como forma altamente</p><p>especializada do brincar, a serviço da</p><p>comunicação consigo mesmo e com os</p><p>outros. (Winnicott, 1971a, p. 63)</p><p>Para Winnicott, o jogo e o brincar sempre</p><p>foram os veículos úteis e necessários ao processo</p><p>de comunicação entre paciente e analista, mesmo</p><p>antes de tomar contato com as contribuições de</p><p>M. Klein.</p><p>Quando repasso os artigos que assinalam</p><p>o desenvolvimento de meu próprio</p><p>pensamento e compreensão, verifico que</p><p>meu presente interesse pela brincadeira,</p><p>no relacionamento de confiança que pode</p><p>desenvolver-se entre o bebê e a mãe,</p><p>sempre constituiu característica de minha</p><p>técnica de consulta, tal como [...] meu</p><p>primeiro livro o demonstra (Winnicott, 1931).</p><p>Dez anos depois, deveria elaborá-lo em</p><p>meu artigo The Observation of Infants in a</p><p>Set Situation (Winnicott, 1941). (Winnicott,</p><p>1971a, p. 72)</p><p>2. AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E OS</p><p>MÉTODOS TERAPÊUTICOS</p><p>PSICANALÍTICOS DE WINNICOTT</p><p>As consultas terapêuticas encontram-se</p><p>sustentadas pela exploração do período de “lua-</p><p>de-mel” que caracteriza tanto as consultas em si</p><p>mesmas quanto o início do processo de análise,</p><p>isto é, no caráter particular da transferência, em</p><p>que o psicoterapeuta é colocado no lugar de</p><p>objeto subjetivo por qualquer paciente: adulto,</p><p>AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 49</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>adolescente ou criança. Dessa forma, em termos</p><p>clínicos, o analista não deve interpretar ou</p><p>decodificar esse sentido de realidade subjetiva,</p><p>mas conduzi-la, facilitando a emergência do</p><p>brincar, assim como os fenômenos transicionais</p><p>que emergem nas consultas, ou os objetos</p><p>transicionais que se apresentam.</p><p>Em linhas gerais, Winnicott (1971b)</p><p>desenvolveu as consultas terapêuticas a partir da</p><p>otimização do maior instrumento do psicólogo:</p><p>as entrevistas clínicas. Com uma nova maneira</p><p>de conceber a natureza humana, Winnicott</p><p>descobriu no brincar os elementos constitutivos</p><p>do ser humano, do espaço propício à ajuda</p><p>psicológica e dos correspondentes fins tera-</p><p>pêuticos. Nas consultas terapêuticas, por</p><p>intermédio da intimidade da interação, uma área</p><p>comum entre os participantes se constitui,</p><p>alicerçando comunicações entre os envolvidos a</p><p>partir da mutualidade da experiência. Para</p><p>compreensão da área comum de trabalho nas</p><p>consultas – o brincar –, Winnicott empregou</p><p>seus conhecimentos sobre as comunicações</p><p>mãe-bebê:</p><p>Considerando-se o par bebê e seio da mãe</p><p>(não estou afirmando que o seio seja</p><p>essencial como veículo de amor materno),</p><p>o bebê tem ímpetos instintivos e idéias</p><p>predatórias. A mãe tem um seio e o poder</p><p>de produzir leite, e a idéia de ser atacada</p><p>por um bebê faminto lhe é agradável. Esses</p><p>dois fenômenos não entram em relação um</p><p>com o outro até que a mãe e a criança vivam</p><p>uma experiência juntos. [...] Vejo o processo</p><p>como se duas linhas viessem de direções</p><p>opostas, com a possibilidade de se</p><p>aproximarem uma da outra. Se elas se</p><p>sobrepõem, há um momento de ilusão,</p><p>uma experiência que o bebê pode tomar, ou</p><p>como alucinação sua, ou como algo que</p><p>pertence à realidade externa. (Winnicott,</p><p>1941, p. 279)</p><p>Winnicott, ao incorporar o estudo da</p><p>primeiríssima infância à constituição do ego e do</p><p>si-mesmo na criança, ampliou consideravelmente</p><p>a compreensão dos manejos clínicos em</p><p>psicanálise. Em consultas terapêuticas, o desen-</p><p>volvimento primitivo do bebê aponta para um tipo</p><p>particular de comunicação transferencial, na qual</p><p>o paciente (para alcançar a integração de aspectos</p><p>cindidos, não vividos e/ou dissociados do si-</p><p>mesmo) precisa estabelecer uma comunicação</p><p>silenciosa e indiferenciada entre eu e não-eu</p><p>(mãe-ambiente), na qual o terapeuta passa a ser</p><p>concebido como objeto subjetivo (mãe-objeto).</p><p>Nas consultas terapêuticas, a qualidade da</p><p>interação estabelecida (transferência e</p><p>contratransferência) está diretamente vinculada</p><p>ao clima de confiabilidade e previsibilidade que o</p><p>terapeuta pode oferecer e que a criança</p><p>ansiosamente espera encontrar. Em consultas,</p><p>analista e criança estabelecem uma identificação</p><p>mútua, homóloga à relação mãe-bebê inicial dos</p><p>processos primitivos do desenvolvimento. Assim</p><p>como a mãe em estado de devoção, o analista</p><p>transita entre a realidade subjetiva e a realidade</p><p>compartilhada, isto é, entre uma identificação</p><p>maciça com o paciente e a preservação da</p><p>lucidez quanto à sua obrigação de favorecer e</p><p>colocar-se à disposição do amadurecimento da</p><p>criança, buscando reconhecer suas necessidades</p><p>e, conseqüentemente, adequar seus cuidados,</p><p>via compreensão, à luz da teoria do amadure-</p><p>cimento humano.</p><p>A partir da expectativa e da qualidade do</p><p>encontro analítico por meio da comunicação</p><p>subjetiva e silenciosa com o analista, o paciente</p><p>poderá baixar as guardas defensivas (falso si-</p><p>mesmo patológico), aproveitando um estado de</p><p>relaxamento e não integração, e estabelecer (em</p><p>seu próprio ritmo) comunicação a partir de seu si-</p><p>mesmo verdadeiro, no espaço potencial cons-</p><p>truído entre analista e paciente. A espontaneidade</p><p>pessoal (gesto espontâneo)1 deverá surgir como</p><p>(1) Note-se que, na clínica psicanalítica, segundo Winnicott, necessariamente há a inclusão e a participação corporal dos</p><p>membros dos encontros analíticos (mesmo que de forma simbólica, por meio das elaborações imaginativas do próprio</p><p>funcionamento corporal). Ao referir-se ao gesto espontâneo e ao valor clínico da experiência de mutualidade,</p><p>Winnicott inclui a sensorialidade nos acontecimentos clínicos (inclusive como veículo de trocas comunicacionais</p><p>transferenciais-contratransferenciais), tal como no jogo de rabiscos.</p><p>50 G.Z. LESCOVAR</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>expressão autêntica do paciente a partir da não</p><p>integração, e a consulta passará a ser guiada</p><p>pela imprevisibilidade da comunicação e pela</p><p>necessidade pessoal da criança.</p><p>Em consultas terapêuticas, o setting</p><p>analítico necessariamente comporta os aspectos</p><p>relacionados à mãe-ambiente, em que o analista</p><p>oferece constância, previsibilidade e confiabi-</p><p>lidade tanto pelo ambiente físico quanto pela</p><p>qualidade do cuidado pessoal (em que aceita</p><p>ajustar-se às expectativas da criança e, com</p><p>isso, estabelece comunicações por meio do</p><p>si-mesmo verdadeiro).</p><p>A razão pela qual o início de tudo isso é</p><p>insidioso é que o paciente só gradativamente</p><p>começa a ter esperanças de que essas</p><p>exigências sejam atendidas. [...] nunca se</p><p>trata de dar satisfações à maneira ordinária</p><p>de sucumbir a uma sedução. Sempre que</p><p>se proporcionam certas condições, pode-</p><p>se trabalhar, e, se não se as fornece, não</p><p>se pode, e poder-se-ia igualmente nem</p><p>tentar. O paciente não está ali para trabalhar</p><p>conosco, exceto quando fornecemos as</p><p>condições necessárias. (Winnicott, 1964,</p><p>p. 78)</p><p>O resultado da confiabilidade, em termos</p><p>de integração no tempo e no espaço (e,</p><p>conseqüentemente, da existência psicosso-</p><p>mática), para o paciente, é a experiência de</p><p>continuidade de ser, advinda da adaptação viva</p><p>às necessidades da criança daquilo que Winnicott</p><p>postulou como holding materno2. Sobre a</p><p>confiabilidade, a transferência se desenvolve por</p><p>meio de uma relação objetal inicialmente</p><p>subjetiva, a qual oferece as condições e</p><p>possibilidades para a aquisição de experiências</p><p>pessoais (advindas da integração ou, em outras</p><p>palavras, da acontecência da natureza humana).</p><p>Uma vez que os processos integrativos necessa-</p><p>riamente envolvem algum grau de integração</p><p>psicossomática, o experienciar pode conduzir ao</p><p>conhecer, diretamente vinculado à situação vivida</p><p>(e não dissociado, como patologicamente</p><p>Winnicott concebeu por meio do splitting-off</p><p>intelect). O conhecer é favorecido pela interpre-</p><p>tação do analista, quando necessária. (Winnicott,</p><p>1962a; Khan, 1984, p. 248)</p><p>É axiomático que, se um setting profissional</p><p>correto é fornecido, o paciente, isto é, a criança</p><p>(ou adulto) que se acha em sofrimento trará a</p><p>aflição para a entrevista sob uma forma ou outra.</p><p>A motivação é muito profundamente determinada.</p><p>Talvez seja desconfiança o que se demonstra, ou</p><p>uma confiança grande demais, ou a confiança é</p><p>logo estabelecida e as confidências cedo se</p><p>seguem. Seja o que for que aconteça [surpreen-</p><p>da], é o acontecer que é importante. (Winnicott,</p><p>1965b, p. 246)</p><p>Na medida em que as consultas tera-</p><p>pêuticas buscam favorecer estados de regressão</p><p>à dependência e, como isso, à emergência de</p><p>aspectos da história primitiva da criança (portanto,</p><p>pré-verbais), o experienciar (fruto da integração</p><p>alcançada na personalidade) torna-se a principal</p><p>intervenção das consultas, estando a fala</p><p>secundariamente imbricada ou implicada como</p><p>facilitadora do experienciar – procurando dissipar</p><p>resistências. A particularidade das consultas</p><p>terapêuticas reside fundamentalmente na</p><p>elaboração do material não defendido do paciente,</p><p>próprio à natureza (e da transferência) das</p><p>primeiras consultas em psicanálise.</p><p>Aquilo que eu estou chamando de entrevista</p><p>psicoterapêutica faz o mais complexo uso possí-</p><p>vel desse material relativamente</p><p>não-‘defendido’.</p><p>(2) Os estudos das relações mãe-bebê, em termos de manejo clínico e interação (comunicação) entre analista e paciente,</p><p>trouxeram para o primeiro plano a investigação da transferência e contratransferência para real compreensão da natureza</p><p>do processo analítico. De acordo com Winnicott, “Apesar de não podermos trabalhar sem a teoria que construímos a partir</p><p>de nossas discussões, seremos inevitavelmente desmascarados por este trabalho, caso nossa compreensão das</p><p>necessidades do nosso paciente seja mais uma questão de mente do que de psique-soma.” (Winnicott, 1955, p. 488).</p><p>Portanto, as mútuas interações entre transferência e contratransferência, enquanto comunicações (em nível pré-verbal)</p><p>entre analista e paciente, estão implícitas na prática clínica da psicanálise winnicottiana. (Winnicott, 1960). A maior</p><p>dificuldade na comunicação aos colegas psicanalistas daquilo de que é feito em situação analítica se deve ao</p><p>caráter pré-verbal de certas experiências constitutivas do si-mesmo do paciente, as quais Winnicott designou como</p><p>sagradas em consultas terapêuticas (1971b).</p><p>AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 51</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>Há perigo real nesse trabalho, mas há o perigo de</p><p>não se fazer absolutamente nada, e os riscos</p><p>provêm da timidez ou da ignorância do terapeuta,</p><p>antes que o paciente sinta que foi enganado.</p><p>(Winnicott, 1965b, p. 245)</p><p>Nas consultas terapêuticas, Winnicott</p><p>considera que as interpretações orais não</p><p>produzem o principal resultado mutativo (segundo</p><p>terminologia cara a James Strachey3), mas</p><p>auxiliam na descoberta, pela própria criança, “do</p><p>que se achava lá, nela própria” (Winnicott, 1964-</p><p>1968, p. 243) – por meio da relação de mutualidade.</p><p>Nas consultas terapêuticas, o setting analítico e</p><p>os manejos clínicos assumem primordialmente</p><p>a função de devolver a criança à própria criança</p><p>(1971a: BR). Para Winnicott, esta é a essência</p><p>da terapia: o favorecimento dos processos de</p><p>integração da personalidade sustentado pelo</p><p>holding (inclusive handling e apresentações de</p><p>objetos) e pela função especular do analista</p><p>(inclusive dos aspectos psíquicos referentes ao</p><p>inconsciente reprimido).</p><p>Neste momento, cabe destacar que objetivo</p><p>subjetivo não é o mesmo que objeto transicional;</p><p>sendo o primeiro necessário à emergência da</p><p>segunda realidade experienciada. Enquanto</p><p>Winnicott reserva ao objeto subjetivo o uso dado</p><p>pelo bebê aos objetos iniciais criados a partir de</p><p>sua criatividade originária (graças ao apoio egóico</p><p>materno capaz de promover a dupla dependência),</p><p>ele reserva aos objetos transicionais o uso posterior</p><p>dado pela criança à primeira possessão não-eu,</p><p>decorrente da área de experiência intermediária</p><p>da vida humana (entre a realidade subjetiva e</p><p>objetivamente compartilhada).</p><p>No trabalho de consultas, o que é solicitado</p><p>ao analista é manejo clínico, sustentação da</p><p>experiência da criança ao longo do tempo, do</p><p>espaço e da realidade construída pela própria</p><p>necessidade da criança, a cada momento do</p><p>processo comunicacional. Só por meio dos</p><p>manejos adequados do analista é que a</p><p>comunicação significativa se torna possível, uma</p><p>vez que a brincadeira não foi interrompida pelo</p><p>interpretar prematuro do analista. Dito de outra</p><p>forma, o psicoterapeuta não precisa “caçar”</p><p>significados ou procurar desvelar sentidos; é</p><p>preciso que ele saiba ouvir o que o paciente tem</p><p>a comunicar, respeitando o ritmo, as</p><p>características pessoais do seu paciente e,</p><p>principalmente, a realidade experiencial em que</p><p>a dupla se encontra a cada momento da entrevista</p><p>psicoterapêutica. Para Winnicott, interpretar os</p><p>objetos subjetivos e/ou transicionais é reduzi-los</p><p>às representações do mundo interno da criança,</p><p>ou seja, é violentar o próprio campo experiencial</p><p>do paciente, minando o caminho mesmo que</p><p>possibilita qualquer trabalho terapêutico. O que</p><p>Winnicott realizava nas consultas era fruto do</p><p>uso dado ao analista e dos vários sentidos de</p><p>realidades experienciados pela criança no decorrer</p><p>da própria consulta.</p><p>Em virtude das características das consul-</p><p>tas terapêuticas, estas possibilitam o apareci-</p><p>mento de necessidades e questões psíquicas do</p><p>paciente nos diferentes momentos do processo</p><p>de amadurecimento, dependendo da história de</p><p>vida e cronologia da criança.</p><p>Partindo do mesmo princípio de que nenhum</p><p>acontecimento em consulta deve ser despregado</p><p>de seu contexto de surgimento, isto é, de sua</p><p>realidade experiencial (quer subjetiva, transicional</p><p>ou simbólica compartilhada), na própria introdução</p><p>às Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil</p><p>(1971b), Winnicott contrasta a sua maneira</p><p>particular de fazer uso dos desenhos das crianças</p><p>em consultas com a maneira tradicional de</p><p>compreendê-los psicanaliticamente, isto é,</p><p>freqüentemente reduzidos aos seus conteúdos</p><p>representacionais.</p><p>(3) Ao se referir à clínica de Winnicott em comparação com o destaque dado por Strachey aos insights interpretativos na</p><p>transferência, diz Khan (1984): “A interpretação mutativa, para usar a expressão de James Strachey (1934), é facilitada,</p><p>alimentada e possibilitada por muitos outros fatores além da linguagem falada e compreendida na situação analítica e da</p><p>relação total entre o paciente e o analista. [...] O argumento básico deste trabalho é que as realidades experienciais</p><p>humanas empregam e se comunicam por outros meios além da linguagem [como a comunicação silenciosa, subjetiva,</p><p>transicional...], e trocam importantes dados através de aparelhos de ego que não a fala. As consultas com crianças, em</p><p>que Winnicott (1971b) emprega o jogo de rabiscos (...), não deixam dúvidas a respeito.” (Khan 1984, p. 301)</p><p>52 G.Z. LESCOVAR</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>Alguém pode possuir uma leve tendência</p><p>doutrinária a pensar que todas as cobras</p><p>são símbolos fálicos, e é claro que podem</p><p>ser. Contudo, se se pegar o material primitivo</p><p>e as raízes do que um pênis pode significar</p><p>para uma criança, ver-se-á que o desenho</p><p>feito por ela de uma cobra pode ser a</p><p>configuração do eu (si-mesmo) que ainda</p><p>não usa braços, dedos, pernas e artelhos.</p><p>Pode-se ver quantas vezes pacientes</p><p>não conseguem exprimir um senso de eu</p><p>(si-mesmo) porque o terapeuta interpretou</p><p>uma cobra como um símbolo fálico.</p><p>(Winnicott, 1971b, p. 18)</p><p>Winnicott jamais compreendia qualquer</p><p>produção da criança deslocada de seu contexto</p><p>de produção, ou momento característico da</p><p>consulta. O desenho isoladamente destacado</p><p>pode ser mal compreendido se não for tomado no</p><p>interior do caminho de comunicação que se</p><p>estabelece na consulta. Tal como insinuado</p><p>anteriormente, este é um eixo fundamental do</p><p>modelo investigativo de Winnicott – jamais</p><p>compreender qualquer acontecimento clínico</p><p>despregado de seu contexto originário. Jamais</p><p>compreender o homem desprovido de seu meio</p><p>ambiente.</p><p>Coerentemente com toda a clínica psica-</p><p>nalítica winnicottiana, as consultas terapêuticas</p><p>são modalidades específicas de intervenção e</p><p>ajuda que se fundamentam no favorecimento de</p><p>situações (um tempo, um espaço e uma relação</p><p>analítica) facilitadoras dos processos integrativos</p><p>e constituintes do si-mesmo do paciente. Assim</p><p>sendo, tal aspecto das consultas aglutina a</p><p>concepção de Winnicott, a qual define a</p><p>indissociabilidade entre a compreensão do ser</p><p>humano e as condições ambientais que permitem</p><p>que a natureza humana aconteça. Winnicott</p><p>freqüentemente afirmava: “Não existe essa coisa</p><p>chamada o bebê” – como forma de salientar o</p><p>contexto, o qual favorece que a criança continue</p><p>existindo.</p><p>Com relação ao conhecimento psicanalítico,</p><p>as consultas terapêuticas não podem ser</p><p>definidas como psicanálise, no sentido tradicional</p><p>do termo, nem mesmo como psicoterapia breve</p><p>psicanalítica, exatamente pela brevidade de sua</p><p>intervenção (uma a três sessões) e principalmente</p><p>(tal como destacado anteriormente) por</p><p>responderem a uma necessidade específica do</p><p>paciente, não sendo realizado um tratamento</p><p>exaustivo ou focal da transferência. Em outras</p><p>palavras, o que realmente define as consultas</p><p>são a</p><p>utilização e a condução da transferência</p><p>relacionada ao lugar subjetivo atribuído ao</p><p>psicoterapeuta pela criança (preestabelecida</p><p>antes da consulta)4, de forma que a transferência</p><p>seja utilizada no favorecimento ao paciente de</p><p>uma experiência constitutiva completa (Winnicott,</p><p>1941). Desse modo, não se busca uma “resolu-</p><p>ção” ou uma “resposta conclusiva” à problemática</p><p>do paciente, mas a integração, na presença de</p><p>outrem significativo, de alguma dificuldade,</p><p>sofrimento ou qualquer aspecto dissociado da</p><p>personalidade.</p><p>Winnicott postula que a existência humana</p><p>parte da não integração primária e da dependência</p><p>absoluta, sendo o processo de amadurecimento</p><p>humano fruto da tendência ao crescimento e à</p><p>integração dos vários aspectos da personalidade,</p><p>que deverá adquirir o estatuto de unidade</p><p>psicossomática no tempo e espaço. Para isso, a</p><p>tendência à integração (que não é uma</p><p>determinação) ou as tendências hereditárias</p><p>precisam encontrar uma ambiência favorável para</p><p>concretizar-se. Tal ambiência é promovida,</p><p>inicialmente, pelo cuidado humano e pessoal</p><p>materno (assim como toda a família e socieda-</p><p>de – em um contexto mais amplo) para com as</p><p>necessidades de seu filho, que, à medida que se</p><p>desenvolve, adquire um eu individualizado.</p><p>Quais as condições ambientais destacadas</p><p>por Winnicott e necessárias ao acontecer do</p><p>processo de amadurecimento humano? Quais</p><p>as condições proporcionadas pela família a fim</p><p>(4) A criança vem à(s) consulta(s) almejando encontrar o objeto necessitado para retomada de seu processo de amadurecimento</p><p>humano e superação de sua dificuldade, tal como belamente descrito e apresentado por meio de suas consultas terapêuticas</p><p>em Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil (Winnicott, 1971b).</p><p>AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 53</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>de que o si-mesmo da criança venha a se atualizar</p><p>e se constituir? A partir das considerações</p><p>psicológicas sobre a importância constitutiva do</p><p>meio ambiente, quais as condições ambientais</p><p>necessárias ao terapeuta para promoção e</p><p>realização das consultas?</p><p>Por intermédio de suas práticas clínicas</p><p>como pediatra e psicanalista de pacientes até</p><p>então “intratáveis” pela psicanálise (crianças com</p><p>meses de idade, pacientes psicóticos e</p><p>bordelines, pacientes com traços anti-sociais),</p><p>Winnicott renomeou e conceitualizou os detalhes</p><p>e as sutilezas do cuidado materno – holding,</p><p>handling, apresentação de objeto e função</p><p>especular. Estes aspectos são decorrentes das</p><p>noções, do próprio autor, de preocupação materna</p><p>ou apoio egóico às experiências do bebê.</p><p>Por holding, Winnicott compreendia o</p><p>favorecimento ambiental à integração pessoal do</p><p>bebê no tempo e espaço advinda do segurar</p><p>físico e emocional realizado pelo meio ambiente,</p><p>resultando em experiências fornecidas à criança</p><p>que estão relacionadas com a estabilidade do</p><p>meio ambiente, constância objetal e autenticidade</p><p>dos cuidados maternos. Para Winnicott, o</p><p>essencial residia na maneira de ser da mãe, em</p><p>seu estado de devoção/identificação com seu</p><p>filho, que, por sua vez, lhe conferia uma certa</p><p>qualidade no cuidar de seu bebê. Para esse</p><p>exímio observador, o ser humano jamais poderia</p><p>ser tratado como um ser natural reduzido a</p><p>cuidados puramente técnicos. Por meio do holding</p><p>fornecido à criança, Winnicott postulou que esta,</p><p>gradualmente, viria a adquirir um senso de</p><p>identidade pessoal.</p><p>Quanto ao handling, Winnicott entendia o</p><p>favorecimento do meio ambiente ao alojamento</p><p>da psique no corpo facilitado pelas experiências</p><p>mãe-bebê, em que a interação entre eles era</p><p>mediada pelo contato corporal, e também pelas</p><p>compreensões maternas das manifestações</p><p>corporais do bebê como comunicações pessoais.</p><p>Por meio do handling, Winnicott conceituou o</p><p>estabelecimento da personalização.</p><p>Por sua vez, a apresentação de objetos,</p><p>Winnicott a compreendia como o benefício</p><p>resultante das relações objetais iniciais entre</p><p>mãe-bebê em que mãe em estado de devoção</p><p>fornecia o objeto necessitado pela criança, no</p><p>momento mesmo de sua necessidade, conferindo</p><p>ao gesto materno a qualidade de precisão. Tal</p><p>cuidado era guiado não por uma técnica</p><p>artificialmente compreendida e aplicada, mas</p><p>pelo reconhecimento materno das necessidades</p><p>do bebê em um período de vida pré-verbal deste.</p><p>Por intermédio da apresentação de objetos,</p><p>Winnicott postulou o estabelecimento gradual da</p><p>realidade compartilhada e o senso de realização</p><p>pessoal.</p><p>À medida em que o ambiente facilitador, ou</p><p>expectável médio, se modifica e se ajusta às</p><p>necessidades dinâmicas emocionais da criança</p><p>em crescimento e desenvolvimento por meio da</p><p>reciprocidade, da mutualidade e dos cuidados</p><p>adaptados, este passa a constituir o que Winnicott</p><p>denominou de função especular, que nada mais</p><p>é que o favorecimento de experiências à criança,</p><p>de tal forma que esta possa reencontrar-se por</p><p>meio dessas experiências, tornando-as</p><p>gradativamente como pessoais. Pode-se</p><p>denominar a função especular como a integração</p><p>gradual pessoal do bebê por meio do olhar</p><p>materno/ambiental que reconhece a sua</p><p>singularidade pessoal.</p><p>Se, por intermédio da teoria do amadure-</p><p>cimento pessoal, Winnicott conceituou as</p><p>condições necessárias ao processo de</p><p>amadurecimento pessoal; em termos clínicos</p><p>significou a promoção de situações facilitadoras</p><p>da constituição do si-mesmo do paciente, seja</p><p>na análise padrão (Winnicott, 1986a), nas</p><p>consultas terapêuticas (Winnicott, 1971b), ou</p><p>mesmo de acordo com o “trabalho segundo a</p><p>demanda”, descrito em Piggle: relato do atendi-</p><p>mento psicanalítico de uma menina (Winnicott,</p><p>1977).</p><p>Na clínica winnicottiana o essencial da</p><p>condução clínica encontra-se no favorecimento</p><p>de experiências constitutivas ao paciente. A</p><p>clínica winnicottiana é uma clínica da</p><p>54 G.Z. LESCOVAR</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>acontecência5 , uma vez que o si-mesmo se</p><p>constitui a partir de experiências e do brincar.</p><p>Em Consultas terapêuticas em psiquiatria</p><p>infantil (1971b), Winnicott afirma:</p><p>Deve-se observar que neste trabalho eu</p><p>geralmente não faço interpretações, mas</p><p>espero até que o traço essencial da</p><p>comunicação da criança seja revelado.</p><p>Assim, falo sobre o traço essencial, mas o</p><p>mais importante não é tanto eu falar quanto</p><p>o fato de a criança ter encontrado alguma</p><p>coisa. (Winnicott, 1971b, p. 79)</p><p>Para Winnicott, interpretar é tão importante</p><p>quanto não interpretar; isso porque as interpre-</p><p>tações devem estar submetidas à criatividade</p><p>originária do paciente e ao brincar. A interpretação</p><p>fora da área comum construída a partir do espaço</p><p>potencial é doutrinação ou produz traumas ao</p><p>paciente, obrigando-o a submeter-se ou a reagir</p><p>à invasão.</p><p>Os pacientes que manifestam capacidade</p><p>limitada de identificação introjetiva e projetiva</p><p>apresentam sérias dificuldades para o</p><p>psicoterapeuta, que necessita sujeitar-se</p><p>ao que é chamado de atuação (acting out)</p><p>e de fenômenos transferenciais que dispõem</p><p>de apoio instintual. Em casos assim, a</p><p>principal esperança do terapeuta é ampliar</p><p>o campo de ação do paciente com respeito</p><p>a identificações cruzadas, e isso surge não</p><p>tanto pelo trabalho de interpretação quanto</p><p>através de certas experiências específicas</p><p>que ocorrem nas sessões analíticas. Para</p><p>chegar a essas experiências, o terapeuta</p><p>tem de levar em consideração um fator</p><p>temporal e não se podem esperar resultados</p><p>terapêuticos de tipo instantâneo. As</p><p>interpretações, por precisas e oportunas</p><p>que sejam, não podem conceber a resposta</p><p>completa.</p><p>Nessa parte específica do trabalho do</p><p>terapeuta, as interpretações têm mais a natureza</p><p>de uma verbalização de experiências no presente</p><p>imediato da experiência da consulta; e o conceito</p><p>de interpretação como verbalização do consciente</p><p>nascente não se aplica exatamente aqui.</p><p>(Winnicott, 1971a, p. 163/4)</p><p>Em outras palavras, o que Winnicott reafirma</p><p>é que a “psicanálise é uma forma altamente</p><p>especializada do brincar” em que a própria</p><p>interpretação deve ser submetida à capacidade</p><p>do paciente de jogar, a partir de sua criatividade</p><p>originária.</p><p>Conforme</p><p>exposto, outro aspecto importante</p><p>da psicanálise winnicottiana, e essencial para</p><p>compreensão dos procedimentos clínicos e fins</p><p>terapêuticos das consultas terapêuticas,</p><p>encontra-se na concepção particular winnicottiana</p><p>que envolve a saúde psíquica dos indivíduos.</p><p>Winnicott passa a deduzir o grau de sanidade de</p><p>alguém não pelo seu quadro psicopatológico,</p><p>mas pela presença ou ausência do sentimento</p><p>de esperança na busca pelo encontro com o</p><p>objeto necessitado. Se, na psicanálise tradicional,</p><p>o ser humano é movido pelos representantes do</p><p>desejo, para a psicanálise winnicottiana, o que</p><p>move o homem é a tendência à integração.</p><p>No final da vida (Winnicott, 1986a), diante</p><p>de uma platéia de padres anglicanos, Winnicott,</p><p>de acordo com sua particular concepção de</p><p>saúde, resumiu, de forma simples, quando um</p><p>indivíduo necessita de ajuda psicológica ou quando</p><p>o próprio meio ambiente social e familiar pode</p><p>suprir suas necessidades:</p><p>Se uma pessoa vem falar com você e, ao</p><p>ouvi-la, você sente que ela o está entediando,</p><p>então ela está doente e precisa de trata-</p><p>mento psiquiátrico. Mas, se ela mantém o</p><p>seu interesse independente da gravidade</p><p>do seu conflito ou sofrimento, então você</p><p>pode ajudá-la. (Winnicott, 1986a, p. 01)</p><p>Winnicott só pôde responder aos padres</p><p>depois de muito pensar, pois estava diante da</p><p>dificuldade de postular a aparente obviedade:</p><p>quando alguém está realmente doente e precisa</p><p>de ajuda especializada? Como destacou Khan</p><p>(5) Este termo é usado pelo Prof. Dr. Zeljko Loparic, não apenas em seus trabalhos filosóficos sobre a ontologia de M.</p><p>Heidegger, como também em sua leitura de Winnicott, feita à luz da filosofia heideggeriana.</p><p>AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 55</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>(1986, IN: Winnicott, 1986a, p. 03), Winnicott</p><p>respondeu à “simples” questão a partir da teoria</p><p>da comunicação em psicanálise:</p><p>O paciente que nos oferece uma narrativa</p><p>entediante não está permitindo que a</p><p>linguagem e a metáfora elaborem ou</p><p>modifiquem a sua experiência. Ele cria um</p><p>espaço de comunicação onde ambos – ele</p><p>e o analista – ficam paralisados pela técnica</p><p>da narrativa, assim como pela monotonia e</p><p>pela repetição do conteúdo.6 (Khan, Masud</p><p>M. 1986. IN: Winnicott, 1986a, p. 03)</p><p>O paciente impede o real contato pessoal,</p><p>a troca, as comunicações significativas, as</p><p>experiências de mutualidade, o brincar e a</p><p>autêntica associação livre. Ele teme repetições</p><p>de invasões ambientais que o obriguem a</p><p>reagir. Este é o conceito de trauma adotado por</p><p>Winnicott – “a quebra de continuidade na</p><p>existência” (Winnicott, 1967, p. 04) –, que</p><p>necessariamente varia de acordo com o grau de</p><p>imaturidade, dependência da criança e de</p><p>presentificação do senso de desesperança que a</p><p>impede de ter um real encontro humano.</p><p>Como relatado acima, o paciente, ou a</p><p>criança, tenta ter controle onipotente (contra-</p><p>riamente às experiências de onipotência</p><p>decorrentes do processo de ilusão, que gradual-</p><p>mente favorecerão a aquisição da externalidade)</p><p>sobre seu estado emocional, buscando restringir</p><p>as possibilidades de que algo aconteça. Essa é</p><p>a raiz de seu sofrimento: não pode ter esperanças,</p><p>não pode ser surpreendido, não pode aconte-</p><p>cer – seu processo de amadurecimento está</p><p>estagnado. A vida está presa a uma perpétua</p><p>repetição de seu sofrimento. Contrariamente à</p><p>saúde, esses indivíduos não desenvolvem um</p><p>senso de existir, nem podem realizar alguns de</p><p>seus potenciais, não conseguem brincar.</p><p>(Winnicott, 1970, p. 282)</p><p>As perguntas a serem feitas são: de que</p><p>maneira o ambiente imediato da criança falhou</p><p>para que resultasse em uma estagnação de seu</p><p>processo de amadurecimento? De que forma</p><p>poderá ser auxiliada pela relação analítica?</p><p>As respostas a essas questões só poderão</p><p>ser compreendidas se, primordialmente, o</p><p>psicoterapeuta puder brincar com a criança,</p><p>sustentar essa relação no tempo e espaço da</p><p>consulta e, principalmente, esperar a comuni-</p><p>cação da criança em sofrimento, acreditando</p><p>nos processos integrativos da própria criança.</p><p>Esperar significa conduzir clinicamente o</p><p>processo da consulta ou sessão analítica a partir</p><p>do ritmo e do manejo da temporalidade própria a</p><p>cada criança. O tempo na constituição psíquica</p><p>dos indivíduos é tão importante para Winnicott a</p><p>ponto de afirmar, em Natureza humana (1988)</p><p>que o ser humano é uma amostra temporal dessa</p><p>natureza.</p><p>Já em 1941, Winnicott, ao descrever o jogo</p><p>da espátula (Winnicott, 1941), destacou a</p><p>importância do manejo da temporalidade nas</p><p>situações clínicas.</p><p>Esse jogo criado com finalidade diagnóstica,</p><p>e desenvolvido por meio do contato com crianças</p><p>muito pequenas, surgiu a partir de sua prática</p><p>pediátrica. O jogo da espátula pode ser tomado</p><p>como uma ilustração do método terapêutico de</p><p>Winnicott, da instrumentalização analítica a partir</p><p>de suas observações e do desenvolvimento de</p><p>seu pensamento. (Safra, 1999a)</p><p>Neste artigo, traduzido sob o título</p><p>Observação de bebês em uma situação</p><p>estabelecida (1941), Winnicott conta o desenrolar</p><p>da situação clínica (e, conseqüentemente, o</p><p>manejo da temporalidade) caracterizada por três</p><p>etapas distintas, em que descreve os comporta-</p><p>mentos dos bebês (inicialmente no colo de suas</p><p>mães) diante de uma espátula disponível sobre</p><p>uma mesa.</p><p>(6) Cabe destacar que os comportamentos artificialmente saudáveis (a que Winnicott chama de “fuga para a sanidade”) ou</p><p>agradáveis – reações contradepressivas e tentativas de sedução – chegam a provocar irritação no analista (pela falta de</p><p>autenticidade). A “performance”, em determinado momento, torna-se repetitiva e entediante, tendendo a escravizar o</p><p>analista, que se vê obrigado a assistir a uma falsa tentativa de comunicação; contudo, ele “terá que aprender a tolerar esse</p><p>discurso forjado, a fim de ajudar o paciente.” (Winnicott, 1986a, p. 04). Para Winnicott, não há nada mais entediante que a</p><p>ausência de dúvidas, fruto da doença e da negação da precariedade da condição humana. (Winnicott, 1969, p. 205)</p><p>56 G.Z. LESCOVAR</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>A partir do momento em que o bebê se</p><p>sentia atraído pela espátula, uma seqüência de</p><p>eventos era esperada. Após o despertar do</p><p>interesse, o bebê passava a hesitar diante da</p><p>possibilidade de apreender a espátula. Durante</p><p>esse primeiro período, após observar as reações</p><p>das pessoas à sua volta, o interesse gradualmente</p><p>voltava a aparecer, se não interrompido ou</p><p>apressado pelas pessoas envolvidas.</p><p>Em um segundo momento, o interesse</p><p>aumentava e ocorria uma verdadeira transformação</p><p>na criança. Sua boca ficava flácida, a língua</p><p>espessa e a saliva ficava abundante. Em vez de</p><p>hesitação, surgia autoconfiança e, assim, o bebê</p><p>agarrava a espátula, que passava a ser manipulada</p><p>para auto-expressão, ou para iniciar um jogo em</p><p>que a criança brincava7 de alimentar o médico e/</p><p>ou a mãe.</p><p>Em um terceiro momento, o bebê, como</p><p>que descuidadamente, deixava cair a espátula</p><p>no chão. Sendo-lhe restituída, a espátula passava</p><p>a ser jogada propositalmente, dando grande</p><p>alegria à criança. Com o passar do tempo, o bebê</p><p>estabelecia interesse por outros objetos da sala.</p><p>Nesse momento, Winnicott entendia que a</p><p>consulta podia ser terminada. Diante dessas</p><p>consultas com bebês muito jovens, Winnicott</p><p>compreendeu a experiência vivida pela criança</p><p>como um processo terapêutico de lição de objeto.</p><p>Winnicott considerou essa seqüência de</p><p>eventos como normal em crianças psiquicamente</p><p>sadias dentro da faixa dos cinco aos treze meses</p><p>de idade. Depois disso, em geral, o interesse da</p><p>criança torna-se tão amplo e variado, que para tal</p><p>procedimento, nada pode ser predito em relação</p><p>a inibições, ansiedades ou paradas no seu</p><p>desenvolvimento.</p><p>Em 1941 Winnicott já havia demarcado</p><p>alguns dos pontos que o guiariam ao longo de</p><p>todo o seu trabalho analítico: a indissociabilidade</p><p>entre diagnóstico e tratamento psicanalítico, a</p><p>importância do brincar na vivência de comu-</p><p>nicação e mutualidade entre analista e paciente</p><p>e, principalmente, o veio terapêutico analítico</p><p>voltado à promoção de experiências</p><p>constitutivas</p><p>e lições de objeto (Winnicott, 1941). Em</p><p>Consultas terapêuticas (Winnicott, 1971b), esses</p><p>aspectos reaparecem em toda a sua importância.</p><p>As consultas terapêuticas se fundam sobre as</p><p>lições de objeto, que nada mais são que o favore-</p><p>cimento pelo psicoterapeuta ao paciente – por</p><p>meio do campo transferencial – das funções</p><p>ambientais necessárias à efetivação de aspectos</p><p>fundamentais do si-mesmo (self) do paciente</p><p>que até então não haviam tido possibilidade de se</p><p>constituir. (Safra 1995, 1999a, 1999b, 2000)</p><p>O importante é que o encontro possa ser</p><p>criado pelo paciente no momento da</p><p>necessidade. Aspectos fundamentais para</p><p>o estabelecimento na clínica, do que</p><p>Winnicott denominou espaço potencial,</p><p>campo inter-humano, fruto do encontro do</p><p>gesto da necessidade com o objeto</p><p>necessitado. Uma vez que a comunicação</p><p>é estabelecida, segundo esses princípios,</p><p>em algum momento ela precisa ser</p><p>finalizada. A finalização ocorre no momento</p><p>em que o objeto criado pela necessidade</p><p>deixa de ser necessitado [Isso porque o</p><p>paciente encontrou-o através do encontro</p><p>analítico, isto é, houve uma lição de objeto].</p><p>O paciente ‘livra-se’ do psicoterapeuta como</p><p>interlocutor, como objeto necessitado, para</p><p>colocá-lo fora da área dos seus objetos</p><p>subjetivos (objeto criado pela necessidade).</p><p>(Safra, 2000, p. 137)</p><p>Apesar de, nesse artigo de 1941, Winnicott</p><p>afirmar que seu objetivo não era o desenvolvimento</p><p>de uma terapêutica, ele não deixa de salientar o</p><p>valor terapêutico da possibilidade de realização</p><p>de uma experiência completa significativa para a</p><p>criança e que Safra destaca como a principal</p><p>finalidade terapêutica das consultas.</p><p>A experiência de ousar querer e pegar a</p><p>espátula, tomar posse dela, sem na verdade</p><p>(7) Em seu artigo de 1941, Winnicott procurou destacar o fato de que o bebê se zangava quando suas brincadeiras eram</p><p>estragadas pelos adultos que haviam compreendido seus comportamentos enquanto tentativas efetivas de alimentação.</p><p>Já em 1941, Winnicott, diante da rica observação clínica que acumulara no exercício da pediatria, salientou a precocidade</p><p>com que o brincar surge, assim como o seu caráter primordial relativo ao estabelecimento da saúde psíquica humana.</p><p>AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 57</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>alterar a estabilidade do meio ambiente</p><p>imediato, age como uma espécie de lição</p><p>de objeto que tem um valor terapêutico para</p><p>a criança. [...] O que há de terapêutico</p><p>nesse trabalho está, penso eu, no fato de o</p><p>desenvolvimento completo de uma</p><p>experiência ser permitido. (Winnicott, 1941,</p><p>p. 66-67)</p><p>A permissão de um desenvolvimento</p><p>completo de uma experiência significa, em termos</p><p>técnicos analíticos, a sujeição dos objetivos</p><p>terapêuticos ao ritmo dado pelo próprio paciente</p><p>ao processo, tão bem ilustrado pelo desenvolvi-</p><p>mento das consultas terapêuticas, em que</p><p>assumem uma duração de acordo com cada</p><p>criança atendida. Favorecendo experiências</p><p>totais, Winnicott procurava encaminhar seus</p><p>atendimentos, quer em seu trabalho segundo a</p><p>demanda, descrito em Piggle: relato do</p><p>atendimento psicanalítico de uma menina</p><p>(Winnicott, 1977), quer em suas sessões regulares</p><p>de psicoterapia (Winnicott, 1986a), quer em</p><p>suas consultas terapêuticas (Winnicott, 1971b).</p><p>Como já se disse, todos os procedimentos</p><p>clínicos de Winnicott são decorrência direta ou</p><p>indireta de suas observações das interações</p><p>mãe-bebê, protótipo da relação analista-paciente</p><p>na clínica winnicottiana (Dias, 1999, 1998;</p><p>Loparic, 1996) e na condução do trabalho clínico</p><p>em consultas terapêuticas.</p><p>No manejo intuitivo de um bebê, uma mãe</p><p>permite, de forma natural, a ocorrência do</p><p>completo desenvolvimento de várias</p><p>experiências, mantendo essa atitude até</p><p>que a criança tenha idade suficiente para</p><p>compreender seu ponto de vista. Ela detesta</p><p>violar experiências tais como a amamenta-</p><p>ção, o sono, ou a evacuação. Nas minhas</p><p>observações, artificialmente dou ao bebê o</p><p>direito de completar uma experiência que</p><p>tem particular valor para ele como uma</p><p>lição de objeto. (Winnicott, 1941, p. 67)</p><p>Sem dúvida alguma, a clínica winnicottiana</p><p>está respaldada no valor atribuído à experiência.</p><p>Dessa forma, na clínica de Winnicott, ocorre uma</p><p>reordenação da prática psicanalítica, em que o</p><p>corpo, a existência psicossomática, a senso-</p><p>rialidade e as dimensões espaço e tempo são</p><p>revalorizados e reconsiderados como necessários</p><p>à constituição de um certo sentido de ser (si-</p><p>mesmo), do psiquismo e da situação analítica.</p><p>(Safra, 1999b)</p><p>Por meio da prontidão psicossomática do</p><p>analista e da identificação com o seu paciente,</p><p>busca-se favorecer uma relação pessoal</p><p>especializada em um espaço-tempo da consulta,</p><p>em que o brincar é franqueado ao paciente,</p><p>podendo ambos serem surpreendidos com a</p><p>comunicação (da dificuldade do paciente) que</p><p>surge inesperadamente do encontro.</p><p>Uma vez favorecida a previsibilidade e a</p><p>confiabilidade ambientais/profissionais para a</p><p>efetivação do processo de ilusão, de que maneira</p><p>a emergência do brincar possibilita a</p><p>comunicação autêntica entre os membros do</p><p>encontro analítico?</p><p>Segundo Winnicott, é somente por meio da</p><p>terceira área de experiência que a comunicação</p><p>autêntica se torna possível, graças à peculiaridade</p><p>da linguagem lúdica que, ao mesmo tempo que</p><p>revela, oculta. Isso se deve porque, somente por</p><p>meio do brincar mútuo, a comunicação humana</p><p>se realiza sem violar o núcleo mais secreto do</p><p>si-mesmo do paciente. (Winnicott, 1963). Tal</p><p>como afirma Winnicott: “É uma alegria estar</p><p>escondido, mas um desastre não ser encontrado”.</p><p>(Winnicott, 1958b)</p><p>Sugiro que normalmente há um núcleo da</p><p>personalidade que corresponde ao si-</p><p>mesmo verdadeiro da personalidade split;</p><p>sugiro que este núcleo nunca se comunica</p><p>com o mundo dos objetos percebidos, e</p><p>que a pessoa percebe que não deve nunca</p><p>se comunicar com, ou ser influenciado pela</p><p>realidade externa. Este é meu ponto</p><p>principal,o ponto do pensamento que é o</p><p>centro de um mundo intelectual e de meu</p><p>estudo. Embora as pessoas normais se</p><p>comuniquem e apreciem se comunicar, o</p><p>outro fato é igualmente verdadeiro, que</p><p>cada indivíduo é isolado, permanentemente</p><p>sem se comunicar, permanentemente</p><p>58 G.Z. LESCOVAR</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>desconhecido, na realidade nunca</p><p>encontrado.[...] eu diria que as experiências</p><p>traumáticas que levam à organização das</p><p>defesas primitivas fazem parte da ameaça</p><p>ao núcleo isolado, da ameaça dele ser</p><p>encontrado, alterado, e de se comunicar</p><p>com ele. A defesa consiste no ocultamento</p><p>ulterior do si-mesmo [self], mesmo no</p><p>extremo de suas projeções e de sua</p><p>disseminação infindável. (Winnicott, 1963,</p><p>p. 170)</p><p>Winnicott define que os instrumentos</p><p>psicanalíticos, se mal empregados, poderão</p><p>perpetuar certos graus de violência aos indivíduos.</p><p>Assim sendo, por intermédio do brincar, até</p><p>mesmo os procedimentos aceitos nas análises</p><p>de adultos foram modificados por Winnicott em</p><p>virtude de sua ênfase no gesto espontâneo do</p><p>paciente, nas coesões psicossomáticas entre</p><p>analista e paciente e no que denominou</p><p>“experiências de mutualidade” na situação</p><p>analítica, ou “continuidade do ser”.</p><p>Uma vez que a clínica winnicottiana susten-</p><p>ta-se sobre a acontecência das comunicações e</p><p>dos encontros humanos, o psicoterapeuta passa</p><p>a estar em disponibilidade para o paciente como</p><p>pessoa que ele é, de tal maneira que, por meio do</p><p>jogo participativo e mútuo dos rabiscos (em</p><p>consultas terapêuticas), o paciente possa usar</p><p>dessa relação para manifestar suas necessidades.</p><p>Nesse sentido, Winnicott afirma:</p><p>Eu mesmo trouxe a público essas descri-</p><p>ções como um ser humano não exatamente</p><p>igual a qualquer outro ser humano, de modo</p><p>que em nenhum caso o mesmo resultado</p><p>teria sido obtido se em meu lugar estivesse</p><p>qualquer outro psiquiatra. (Winnicott, 1971b,</p><p>p. 14)</p><p>Assim sendo, cada consulta tem um</p><p>desfecho próprio, ditado inclusive pelas limitações</p><p>e capacidades daquele que oferece auxílio. Na</p><p>realização das consultas, o psicoterapeuta</p><p>responsabiliza-se pelas suas ações, e precisa</p><p>ser capaz</p><p>de transformar suas falhas em auxílio</p><p>ao paciente. Com relação à importância dada por</p><p>Winnicott à pessoa do analista e ao seu próprio</p><p>processo de amadurecimento, no prefácio de</p><p>Consultas terapêuticas (1971b), afirma:</p><p>É desnecessário dizer que o terapeuta</p><p>deve ter a confiança profissional como algo</p><p>que acontece com facilidade; é possível,</p><p>para uma pessoa séria, manter uma atitude</p><p>profissional, mesmo quando experimenta</p><p>tensões pessoais muito fortes na vida</p><p>privada e no processo de crescimento</p><p>pessoal que, esperamos, nunca cessa.</p><p>[...] Uma experiência de intenso tratamento</p><p>analítico pessoal é, tanto quanto possível,</p><p>essencial. (Winnicott, 1971b, p. 10)</p><p>Não podendo ser diferente, como criador da</p><p>teoria do amadurecimento humano, Winnicott</p><p>não submete somente as conduções clínicas ao</p><p>seu quadro teórico (e vice-versa), mas inclui a</p><p>própria pessoa do analista.</p><p>Em última instância, o psicoterapeuta</p><p>busca favorecer a comunicação do paciente</p><p>sobre sua problemática, recolocada sob domínio</p><p>do eu, graças à presença viva e sensível de um</p><p>outro ser humano, que funciona como apoio</p><p>egóico à integridade buscada pelo paciente. Nos</p><p>casos em que a criança é incapaz de brincar, ou</p><p>seja, de desfrutar do estabelecimento do espaço</p><p>potencial, o objetivo da intervenção concentra-se</p><p>em dar condições para que um dia venha a</p><p>brincar. Nesses casos, a incapacidade para a</p><p>brincadeira é o maior sintoma do sofrimento</p><p>psíquico da criança, havendo uma variação dos</p><p>objetivos terapêuticos das consultas em virtude</p><p>da situação psíquica de cada paciente em</p><p>questão.</p><p>3. AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A</p><p>CLÍNICA WINNICOTTIANA</p><p>Por meio de um breve apanhado teórico</p><p>buscou-se demonstrar não somente uma nova</p><p>modalidade de intervenção, avaliação e ajuda</p><p>psicológica criada por Donald W. Winnicott e</p><p>denominada consultas terapêuticas, mas também</p><p>apresentar uma ampliação na forma de realizar</p><p>clínica psicanalítica.</p><p>AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 59</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>Neste breve artigo, buscou-se iluminar a</p><p>consulta terapêutica enquanto uma nova</p><p>possibilidade de intervenção psicológica realizada</p><p>sob a condução do manejo do tempo em relação</p><p>ao pedido de ajuda do paciente.</p><p>A consulta terapêutica busca favorecer um</p><p>tempo, um espaço e uma relação humana</p><p>especial dos quais possa emergir, pelo contato</p><p>analítico, a problemática mais significativa do</p><p>paciente, por um fenômeno marcado pela surpresa</p><p>(tanto para o paciente quanto para o analista). Tal</p><p>fenômeno, fruto do processo de comunicação</p><p>estabelecida entre paciente e terapeuta, aglutina</p><p>a problemática mais significativa do paciente</p><p>devido à confiabilidade e previsibilidade fornecidas</p><p>pelo psicoterapeuta. O elemento-surpresa indica</p><p>que aspectos anteriormente dissociados da</p><p>personalidade do paciente foram integrados por</p><p>meio do encontro.</p><p>A partir da valorização dos manejos clínicos</p><p>(em oposição ao uso exclusivo da interpretação</p><p>oral como único veículo de intervenção</p><p>psicanalítica) e das experiências constitutivas</p><p>do si-mesmo do paciente por meio do brincar</p><p>compartilhado, demonstrou-se a mútua influência</p><p>entre a prática clínica de Winnicott e seu modelo</p><p>conceitual – fundamentado em sua teoria do</p><p>amadurecimento humano.</p><p>REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS</p><p>DIAS, Elsa O. (1998). A teoria das psicoses em</p><p>Winnicott. Tese (doutoramento), Pontifícia</p><p>Universidade Católica de São Paulo, São</p><p>Paulo.</p><p>DIAS, Elsa O. (1999). “Sobre a confiabilidade:</p><p>decorrências para a prática clínica”, Natureza</p><p>Humana, I (02), 283-322.</p><p>DSM-IV – Manual diagnóstico e estatístico de</p><p>transtornos mentais. (1995). 4. ed. Porto</p><p>Alegre, Artes Médicas.</p><p>KHAN, Masud M. (1978). Prefácio. Em:</p><p>WINNICOTT, D. W. (1978). Textos seleciona-</p><p>dos: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro,</p><p>Francisco Alves.</p><p>KHAN, Masud M. (1984). Psicanálise: teoria,</p><p>técnica e casos clínicos. Rio de Janeiro,</p><p>Francisco Alves.</p><p>KHAN, Masud M. (1986). Prefácio. Em:</p><p>WINNICOTT, D. W. 1986a. Holding e</p><p>interpretação. São Paulo, Martins Fontes.</p><p>LESCOVAR, Gabriel Z. (2001). Um estudo sobre</p><p>as consultas terapêuticas de D. W. Winnicott.</p><p>Dissertação (mestrado). Pontifícia</p><p>Universidade Católica de São Paulo, São</p><p>Paulo.</p><p>LOPARIC, Zeljko (1996). Winnicott: uma</p><p>psicanálise não-edipiana, Percurso, no. 17</p><p>(02), 41-47.</p><p>ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (1993).</p><p>Classificação de transtornos mentais e de</p><p>comportamento da CID-10: descrições clínicas</p><p>e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre, Artes</p><p>Médicas.</p><p>SAFRA, Gilberto. (1995). Momentos mutativos</p><p>em psicanálise: uma visão winnicottiana. São</p><p>Paulo, Casa do Psicólogo.</p><p>SAFRA, Gilberto. (1999a). A clínica em Winnicott,</p><p>Natureza Humana, I (01), 91-102.</p><p>SAFRA, Gilberto. (1999b). A face estética do</p><p>self: teoria e clínica. São Paulo, Unimarco.</p><p>SAFRA, Gilberto. (2000). Psicoterapia breve:</p><p>uma reflexão, Psychê: revista de psicanálise,</p><p>IV (05), 133-139.</p><p>STRACHEY, James. (1934). The nature of the</p><p>therapeutic action of psychoanalysis,</p><p>International Journal Psycho-Anal., 15.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1930). Clinical Notes</p><p>on Disorders of Childhood. Londres:</p><p>Heinemann.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1941): Observação de</p><p>bebês em uma situação preestabelecida. Em:</p><p>WINNICOTT, Donald. W. (1993). Textos</p><p>selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio</p><p>de Janeiro, Francisco Alves. 4 ed.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1945). Desenvolvimento</p><p>Emocional Primitivo. Em: WINNICOTT, Donald.</p><p>W. (1993). Textos selecionados: da pediatria</p><p>à psicanálise. Rio de Janeiro, Francisco Alves.</p><p>4 ed.</p><p>60 G.Z. LESCOVAR</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1954). Aspectos clínicos</p><p>e metapsicológicos da regressão dentro do</p><p>setting psicanalítico. Em: WINNICOTT, Donald</p><p>W. (1993). Textos selecionados: da pediatria</p><p>à psicanálise. Rio de Janeiro, Francisco Alves.</p><p>4 ed.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1955): Variedades</p><p>clínicas da transferência. Em: WINNICOTT,</p><p>Donald W. (1993). Textos selecionados: da</p><p>pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro,</p><p>Francisco Alves. 4 ed.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1958a). Collect papers:</p><p>through pediatrics to psychoanalysis. Londres,</p><p>Hogarth Press and The Institute of Psycho</p><p>Analysis. (Trad. bras.: WINNICOTT, Donald</p><p>W. (1993). Textos selecionados: da pediatria</p><p>à psicanálise. Rio de Janeiro, Francisco Alves.</p><p>4 ed.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1958b). A capacidade</p><p>para estar só. Em: WINNICOTT, Donald W.</p><p>(1983). Ambiente e seus processos de</p><p>maturação. Porto Alegre, Artes Médicas. 3.</p><p>ed.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1960). Teoria do</p><p>relacionamento paterno-infantil. Em:</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1983). Ambiente e</p><p>seus processos de maturação. Porto Alegre,</p><p>Artes Médicas. 3. ed.</p><p>WINNICOTT, Donald. W. (1962a). Os objetivos</p><p>do tratamento psicanalítico. Em: WINNICOTT,</p><p>Donald W. (1983). Ambiente e seus processos</p><p>de maturação. Porto Alegre, Artes Médicas.</p><p>3. ed.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1962b). A integração</p><p>do ego no desenvolvimento da criança. Em:</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1983). Ambiente e</p><p>seus processos de maturação. Porto Alegre,</p><p>Artes Médicas. 3. ed.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1963). Comunicação e</p><p>falta de comunicação levando ao estudo de</p><p>certos opostos. Em: WINNICOTT, Donald W.</p><p>(1983). Ambiente e seus processos de</p><p>maturação. Porto Alegre, Artes Médicas. 3.</p><p>ed.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1964). A importância</p><p>do setting no encontro com a regressão em</p><p>psicanálise. Em: WINNICOTT, Donald W.</p><p>(1994). Explorações psicanalíticas. Porto</p><p>Alegre, Artes Médicas Sul.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1964-1968). O jogo de</p><p>rabisco. Em: WINNICOTT, Donald W. (1994).</p><p>Explorações psicanalíticas. Porto Alegre,</p><p>Artes Médicas Sul.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1965a). Um caso de</p><p>psiquiatria infantil que ilustra a reação retardada</p><p>à perda. Em: WINNICOTT, Donald W. (1994)</p><p>Explorações psicanalíticas. Porto Alegre,</p><p>Artes Médicas Sul.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1965b). O valor da</p><p>consulta terapêutica. Em: WINNICOTT,</p><p>Donald. W. (1994). Explorações psicanalíticas.</p><p>Porto Alegre, Artes Médicas Sul.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1965c). O conceito de</p><p>trauma em relação ao desenvolvimento do</p><p>indivíduo dentro da família. Em: WINNICOTT,</p><p>Donald W. (1994). Explorações psicanalíticas.</p><p>Porto Alegre, Artes Médicas Sul.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1967). O conceito de</p><p>indivíduo saudável. Em: WINNICOTT, Donald.</p><p>W. (1999). Tudo começa em casa. São Paulo,</p><p>Martins Fontes. 3 ed.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1969). A pílula e a lua.</p><p>Em: WINNICOTT, Donald W. (1999). Tudo</p><p>começa em casa. São Paulo, Martins Fontes.</p><p>3 ed.</p><p>WINNICOTT, Donald. W. (1970). O lugar da</p><p>monarquia. Em: WINNICOTT, Donald W.</p><p>(1999). Tudo começa em casa. São Paulo,</p><p>Martins Fontes. 3 ed.</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1971a). Playing and</p><p>reality. England: Penguin Books. (Trad. bras.:</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1975). O brincar e a</p><p>realidade. Rio de Janeiro, Imago).</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1971b). Therapeutic</p><p>consultations in child psychiatry. Londres:</p><p>Hogarth Press and Inst. of Psychoanalysis.</p><p>(Trad. bras.: WINNICOTT, Donald. W. (1984).</p><p>Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil.</p><p>Rio de Janeiro, Imago).</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1977). The Piggle: an</p><p>account of the psycho-analytic treatment of a</p><p>AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 61</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>little girl. Londres: Hogarth Press. (Trad. bras.:</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1987). The Piggle:</p><p>relato do tratamento psicanalítico de uma</p><p>menina. Rio de Janeiro, Imago. 2 ed.).</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1986a). Holding and</p><p>Interpretation. Londres: Hogarth Press. (Trad.</p><p>bras.: WINNICOTT, Donald W. (1991). Holding</p><p>e Interpretação. São Paulo, Martins Fontes).</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1988). Human Nature.</p><p>Londres: Free Association Books. (Trad. bras.:</p><p>WINNICOTT, Donald W. (1990). Natureza</p><p>humana. Rio de Janeiro, Imago.</p><p>Recebido para publicação 3 de outubro de 2003 e</p><p>aceito em 14 de abril de 2004.</p><p>62 G.Z. LESCOVAR</p><p>Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004</p><p>85</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>16 1 4</p><p>ARTIGO DE REVISÃO</p><p>Fundamentos e aplicações da Terapia Cognitivo-</p><p>Comportamental com crianças e adolescentes</p><p>Juliana da Rosa Purezaa</p><p>Agliani Osório Ribeirob</p><p>Janice da Rosa Purezac</p><p>Carolina Saraiva de Macedo Lisboad</p><p>a Psicóloga e mestre em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (São Leopoldo/RS).</p><p>b Psicóloga e especialista em Psicologia Clínica pela WP Centro de Psicoterapia Cognitivo-Comportamental</p><p>(Porto Alegre/RS).</p><p>c Psicóloga e doutoranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Porto</p><p>Alegre/RS).</p><p>d Psicóloga e professora-pesquisadora na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Porto</p><p>Alegre/RS).</p><p>Instituição:Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul</p><p>Resumo</p><p>Embora a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) com crianças e adolescentes esteja crescendo</p><p>significativamente no contexto das psicoterapias, atualmente ainda são poucos os profissionais que têm</p><p>conhecimento de como é realizada a terapia de crianças e adolescentes na abordagem cognitivo-</p><p>comportamental. Este artigo tem como objetivo apresentar um panorama geral sobre os aspectos teóricos</p><p>86 JULIANA DA ROSA PUREZA, AGLIANI OSÓRIO RIBEIRO, JANICE DA ROSA PUREZA, CAROLINA SARAIVA DE MACEDO LISBOA</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>e práticos da TCC com crianças e adolescentes. São apresentadas as características da TCC com crianças e</p><p>adolescentes, assim como as principais diretrizes para a avaliação da TCC na infância e adolescência e para</p><p>o treino de pais. Ainda, são descritas as principais intervenções cognitivas e comportamentais na infância</p><p>e adolescência, de modo a desfazer mitos e confusões acerca da aplicação das técnicas. Em seguida é</p><p>apresentado o caso clínico de uma criança atendida em TCC, de modo a servir como exemplo ilustrativo e</p><p>proporcionar um maior entendimento acerca do manejo e adequação das técnicas aos objetivos da TCC</p><p>com crianças e adolescentes.</p><p>Palavras-chave: Terapia Cognitivo-Comportamental; Crianças; Adolescentes.</p><p>Abstract</p><p>Although cognitive-behavioral therapy - CBT focused on children and adolescents has been growing</p><p>significantl1y in the context of psychotherapy, still nowadays there are few professionals who have</p><p>adequate knowledge of how cognitive- behavioral approach for children and adolescents is performed.</p><p>This article aimed to present an overview of the theory and practice of CBT with children and adolescents.</p><p>The characteristics of CBT with children and adolescents were presented, as well as the main guidelines</p><p>for the evaluation of CBT in childhood and adolescence and training programs for parents. Still, the main</p><p>cognitive and behavioral interventions in childhood and adolescence have been described in order to</p><p>demystify myths and confusion about the application of techniques. Then a clinical case of a child that has</p><p>received psychological treatment in CBT was described in order to serve as an example and provide a</p><p>greater understanding of the management and adequacy of the interventions and techniques with the</p><p>goals of CBT with children and adolescents.</p><p>Keywords: Cognitive behavior therapy; Children; Teenagers.</p><p>Introdução</p><p>A psicoterapia com crianças é uma área que vem sendo foco de interesse nos últimos anos,</p><p>especialmente no âmbito de promoção e prevenção1. De fato, recentemente o tratamento psicológico de</p><p>crianças e adolescentes tem sido considerado não apenas como uma medida terapêutica, mas</p><p>principalmente como uma forma de prevenção de doenças mentais e de promoção de saúde2. Soma-se</p><p>também a esses fatos o movimento em defesa e de valorização de diagnósticos precoces na infância</p><p>visando a tratamentos mais eficazes e prevenção de psicopatologias na vida adulta1.</p><p>87</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>FUNDAMENTOS E APLICAÇÕES DA TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES</p><p>Uma das abordagens teóricas atuais que tem apresentado propostas terapêuticas no que se refere</p><p>ao atendimento de crianças e adolescentes é a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC). No contexto das</p><p>psicoterapias, a TCC é uma abordagem teórica que pode ser considerada recente, desenvolvida nos anos</p><p>60 por Aaron Beck a partir do pressuposto de que o modo como o paciente processa e interpreta as</p><p>situações é o que gera o sofrimento3. O objetivo da Terapia Cognitivo-Comportamental é atingir a</p><p>flexibilidade e ressignificação dos modos patológicos de processamento da informação, uma vez que se</p><p>postula que os indivíduos não sofrem pelos fatos e situações em si, mas pelas interpretações distorcidas</p><p>e rígidas que fazem dos mesmos4. Já é possível encontrar na literatura evidências científicas de que essa</p><p>modalidade de tratamento é eficaz para um grande número de patologias psiquiátricas e demandas</p><p>psicológicas5,6.</p><p>Essa abordagem teórica orientada para a clínica foi primordialmente direcionada para o atendimento</p><p>de adultos, uma vez que algumas das técnicas inicialmente utilizadas requerem certo grau de maturação</p><p>cognitiva4,7. Entretanto, observa-se que, a partir da década de 1980, os trabalhos relacionados à Psicoterapia</p><p>Cognitivo-Comportamental com crianças e adolescentes começam a crescer e apresentar maior</p><p>consistência8, o que pode estar relacionado aos modelos construtivistas dentro da abordagem cognitivo-</p><p>comportamental9,10,11, que enfatizam o papel proativo e dinâmico dos indivíduos em suas experiências.</p><p>Essas abordagens retomam a importância das intervenções focadas nas emoções e do caráter interpessoal</p><p>de construção do conhecimento. A chamada terceira onda em Terapia Cognitivo-Comportamental12, que</p><p>propõe intervenções que enfocam o papel adaptativo das emoções, possibilitou uma ampliação de visão</p><p>e aprimoramento dos tratamentos em TCC com crianças e adolescentes.</p><p>Nessa mesma linha de raciocínio, observam-se, no senso comum, algumas crenças equivocadas que</p><p>sustentam que a abordagem cognitivo-comportamental não possa embasar a psicoterapia com crianças e</p><p>adolescentes. Essa dificuldade em vislumbrar a aplicabilidade da TCC na infância acabou gerando diversos</p><p>“mitos” acerca de sua realização, o que muitas vezes dificulta a divulgação e o acesso à psicoterapia</p><p>infantil e adolescente nessa abordagem teórica e também pode estar relacionado a esta ser uma área que</p><p>ainda necessita de desenvolvimento e investimento. Os principais mitos sobre a TCC na infância e</p><p>adolescência podem ser identificados no Quadro 1.</p><p>88</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>Ao contrário do que muitas vezes é imaginado acerca da TCC com crianças e adolescentes, existem</p><p>diversas semelhanças no que se refere a essa abordagem de atendimento com a abordagem utilizada com</p><p>adultos. Principalmente, destaca-se, por exemplo, o foco no presente, o objetivo de mudança</p><p>comportamental e cognitiva, a utilização de sessões estruturadas, entre outros. Todavia, a abordagem</p><p>com crianças e adolescentes difere-se no que tange ao tipo de intervenção realizada, que terá como base</p><p>a criação de linguagens (muitas vezes não verbais) para acessar o funcionamento cognitivo da criança e</p><p>adolescente. Além disso, o tratamento com crianças também tem outros pontos diferencias, como a</p><p>intervenção com os pais, que muitas vezes consiste em uma grande, e às vezes até maior, parte do</p><p>tratamento. Assim sendo, o foco das intervenções em TCC com crianças e adolescentes, além de centrar</p><p>na ativação e entendimento das emoções – as quais os jovens têm dificuldade de diferenciar dos</p><p>pensamentos –, também deve trabalhar em termos de pensamentos adaptativos e não adaptativos (“que</p><p>ajudam e não ajudam”)4,14.</p><p>Atualmente ainda são poucos os profissionais da psicologia que têm conhecimento e realizam</p><p>atendimentos com crianças e adolescentes na abordagem cognitivo-comportamental. Ainda existem muitas</p><p>crenças distorcidas que complicam a interlocução entre diferentes linhas teóricas, dificultando, muitas</p><p>JULIANA DA ROSA PUREZA, AGLIANI OSÓRIO RIBEIRO, JANICE DA ROSA PUREZA, CAROLINA SARAIVA DE MACEDO LISBOA</p><p>89</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>vezes, a discussão de casos e o encaminhamento de pacientes. O desconhecimento de como é possível de</p><p>realizar TCC com crianças e adolescentes é reforçado pela crença distorcida de que a TCC com jovens seria</p><p>uma transposição direta das técnicas utilizadas com adultos, o que certamente não tornaria esse campo</p><p>de intervenção efetivo. A ainda escassa divulgação de estudos científicos sobre efetividade de técnicas</p><p>específicas para crianças e adolescentes, assim como protocolos de intervenção cientificamente</p><p>desenvolvidos e testados, também favorece esse desconhecimento e as dificuldades de encaminhamento</p><p>dos jovens para a clínica em TCC. Dessa forma, o objetivo deste artigo é apresentar um panorama geral</p><p>sobre os aspectos teóricos e práticos da TCC com crianças e adolescentes.</p><p>Avaliação da TCC na infância</p><p>Cada vez mais se pode constatar que crianças e adolescentes chegam aos consultórios de psicologia</p><p>buscando auxílio para problemas emocionais e comportamentais, que podem acarretar prejuízos para a</p><p>sua qualidade de vida e desenvolvimento subsequente. Nesse sentido, é fundamental que os terapeutas</p><p>procurem obter uma compreensão global do funcionamento da criança nos seus diversos contextos e</p><p>consigam identificar os aspectos e/ou sintomas que dificultam sua adaptação na rotina diária, assim como</p><p>o papel que os aspectos cognitivos exercem na etiologia desses problemas e transtornos2. Ressalta-se</p><p>também o caráter focal e diretivo da TCC, que demanda uma avaliação diagnóstica devidamente</p><p>conduzida3,4.</p><p>Por conseguinte, a prática da avaliação infantil na TCC necessita que alguns aspectos importantes</p><p>sejam considerados: a) identificação e compreensão das queixas da criança e/ou do adolescente e b)</p><p>processo de conceitualização cognitiva. Normalmente, os porta-vozes das queixas e sintomas são os pais</p><p>e/ou cuidadores. Torna-se importante a realização de uma completa entrevista de anamnese, pois é</p><p>através desse processo que se obtém uma melhor compreensão de aspectos emocionais (vínculos</p><p>estabelecidos, humor prevalente, como reage às diversas situações vivenciadas), psicossociais</p><p>(relacionamento familiar, interpessoal, acadêmico) e que são planejadas e direcionadas futuras condutas.</p><p>A prática clínica da TCC demonstra que, quanto mais completa for a anamnese a respeito da criança e do</p><p>adolescente, melhor será o planejamento e a condução do caso. Essa etapa da avaliação infantil permite</p><p>a utilização de escalas e questionários a serem respondidos pelos pais e, muitas vezes, pela própria</p><p>criança, professor ou outro profissional específico que tenha contato direto com a mesma4,2.</p><p>Mais especificamente, na realização de uma avaliação infantil no atendimento da TCC, devem-se</p><p>investigar os dados relativos à história pregressa da criança –gestação, parto puerpério, doenças maternas</p><p>e outras intercorrências –, assim como as condições do seu desenvolvimento – desenvolvimento</p><p>neuromotor e linguagem, alimentação, hábitos desenvolvidos pela criança e história familiar (condições</p><p>de saúde, econômica, ocupacional, religião e outros). Além disso, compreender como a criança se relaciona</p><p>FUNDAMENTOS E APLICAÇÕES DA TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES</p><p>90</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>com seus pais, irmãos e outros membros da família é extremamente útil para a construção das hipóteses</p><p>diagnósticas do caso15.</p><p>A vida escolar (no caso da criança já frequentar maternal ou escola regular) também deve constar</p><p>num trabalho de avaliação infantil, pois o desempenho acadêmico e o relacionamento com pares fornecem</p><p>dados que podem contribuir de maneira específica nesse processo. Como a criança se comporta na sala de</p><p>aula, como é sua relação com figuras de autoridade e como ela se adapta às normas específicas da instituição</p><p>escolar são dados valiosos no processo investigativo dos aspectos cognitivos e comportamentais das</p><p>crianças e adolescentes. É fundamental que essa anamnese busque a identificação dos primeiros sintomas</p><p>e da evolução das dificuldades cognitivas e comportamentais apresentadas pela criança. A investigação</p><p>da história pregressa contribui de forma significativa para a caracterização do surgimento dos sintomas e</p><p>dificuldades comportamentais apresentadas pela criança e pelo adolescente no atendimento da TCC16.</p><p>A partir da realização da anamnese, o próximo passo do tratamento consiste na conceitualização</p><p>cognitiva do caso. Na TCC esse processo é fundamental para um perfeito entendimento e planejamento</p><p>das práticas terapêuticas a serem trabalhadas com o paciente2,17. A conceitualização cognitiva na TCC da</p><p>infância e adolescência denota alguns aspectos diferenciados no que se refere ao mesmo processo na TCC</p><p>para pacientes adultos, pois devem ser consideradas, sempre, as características da criança, assim como a</p><p>etapa do desenvolvimento em que esta se encontra e o contexto em que está inserida2.</p><p>Como a TCC tem como foco o papel que os aspectos cognitivos exercem na etiologia das dificuldades</p><p>e/ou transtornos emocionais e comportamentais nas crianças, é comum a utilização de protocolos</p><p>específicos no processo de conceitualização cognitiva. De modo geral, esses protocolos procuram abarcar,</p><p>principalmente, as seguintes demandas: a) identificação das dificuldades atuais da criança; b) fatores</p><p>importantes da infância; c) a percepção que a criança tem de si e dos outros, assim como a percepção que</p><p>a família tem da criança, sempre procurando identificar as principais emoções, pensamentos e</p><p>comportamentos relativos à criança e seus familiares, assim como as crenças relacionadas, as estratégias</p><p>compensatórias e as consequências de cada situação8,18.</p><p>Os protocolos de conceitualização cognitiva infantil devem ser revisados e reavaliados durante</p><p>todo o processo de atendimento psicoterápico, já que a TCC de crianças e adolescentes é um processo</p><p>dinâmico e sofre alterações constantes, mais rápidas às vezes do que no atendimento de adultos, o que é</p><p>mais um ponto que reforça a</p><p>importância da psicoterapia com jovens nessa abordagem teórica. Alguns</p><p>autores ressaltam modelos de conceitualização cognitiva que enfatizam o enfoque nas diferentes</p><p>intensidades emocionais específicas de cada situação, assim como a capacidade para a resolução de</p><p>problemas nas diferentes situações conflitivas. Nessa investigação, deve-se ter como foco central os</p><p>pensamentos relacionados aos problemas atuais da criança e quais as dificuldades no processamento das</p><p>informações relativas aos comportamentos disfuncionais da criança2.</p><p>JULIANA DA ROSA PUREZA, AGLIANI OSÓRIO RIBEIRO, JANICE DA ROSA PUREZA, CAROLINA SARAIVA DE MACEDO LISBOA</p><p>91</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>Esse processo de realização da conceitualização cognitiva é fundamental para a realização do</p><p>diagnóstico na TCC infantil, assim como para o planejamento terapêutico a ser implementado. No caso da</p><p>TCC infantil, algumas técnicas e recursos podem ser utilizados no processo de conceitualização e</p><p>diagnóstico, como desenhos, brinquedos, jogos e outros. Deve-se levar em conta qual a forma de acesso</p><p>cognitivo é mais eficaz com determinado paciente. Um recurso bem interessante e disponível para os</p><p>terapeutas cognitivos da infância e adolescência vem a ser os Baralhos das Emoções, Pensamentos e</p><p>Comportamentos, instrumentos que facilitam ao terapeuta o acesso aos conteúdos cognitivos da</p><p>criança19,20,21,7.</p><p>Intervenções terapêuticas com crianças e adolescentes</p><p>Trabalhando com os pais</p><p>As intervenções com pais na TCC de crianças e adolescentes podem ocorrer de diferentes formas e</p><p>em diferentes momentos do tratamento, de acordo com a demanda. De um modo geral, com crianças de</p><p>0 a 6 anos o trabalho com os pais é indispensável, muitas vezes constituindo a grande ou maior parte do</p><p>tratamento2. A partir dessa idade, com crianças mais velhas e com adolescentes, esse trabalho é</p><p>considerado desejável, sendo um fator de fortalecimento e de sucesso do tratamento.</p><p>Os pais e cuidadores, ao participarem do atendimento da criança ou do adolescente, podem</p><p>desempenhar diferentes papéis no tratamento:facilitadores –a intervenção é predominantemente focada</p><p>na criança, e os pais são envolvidos apenas para tomarem consciência das intervenções que estão sendo</p><p>realizadas com as crianças; coclínicos –o papel dos pais é mais ativo no tratamento, com a finalidade de</p><p>entender a intervenção, acompanhar e fiscalizar o uso de estratégias clínicas e auxiliar na realização do</p><p>atendimento; clientes – o foco do tratamento será direto no funcionamento cognitivo e comportamental</p><p>dos pais, e estes serão ajudados a reavaliar suas crenças sobre os filhos e mudar seus padrões</p><p>comportamentais2.</p><p>É fundamental ressaltar a importância do vínculo do terapeuta com os pais como um fator</p><p>fundamental e imprescindível de qualquer atendimento de TCC para crianças e adolescentes. Nessa</p><p>modalidade de atendimento, os pais serão a principal fonte de dados do terapeuta, muitas vezes os</p><p>principais agentes de mudança na vida da criança, além de serem responsáveis de forma concreta (no que</p><p>tange ao comparecimento e pagamento) pelo tratamento, sendo o rompimento do vínculo com os pais</p><p>um dos principais fatores de risco para o abandono do atendimento15,7.</p><p>FUNDAMENTOS E APLICAÇÕES DA TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES</p><p>92</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>Treino de pais</p><p>Dentro dessa perspectiva acerca do trabalho com os pais na psicoterapia de crianças e adolescentes,</p><p>é comum a realização de programa de treino de pais (TP) no tratamento cognitivo-comportamental de</p><p>crianças de adolescentes. O TP possibilita ao terapeuta investigar, focar e modificar aspectos cognitivos e</p><p>comportamentais dos pais no que se refere ao comportamento do seu filho. Na prática clínica, é possível</p><p>observar mudanças positivas, às vezes mais rápidas, no comportamento infantil quando os pais conseguem</p><p>compreender os sintomas e o funcionamento da criança e atuar de forma positiva nesse processo,</p><p>possibilitando mudanças nas ações e atitudes dos seus filhos.</p><p>O TP na TCC da infância e adolescência vem a ser um programa de psicoeducação e orientação dos</p><p>pais e tem por meta ajudar e estimular os mesmos no manejo e condução das crianças com dificuldades de</p><p>comportamento que apresentam prejuízos em seu funcionamento e qualidade de vida. Essa abordagem</p><p>instrumentaliza os pais para o aprendizado e o uso de técnicas e estratégias para o manejo de situações</p><p>específicas, favorecendo a aprendizagem de comportamentos mais adaptativos para pais e crianças22,23.</p><p>Na prática, pode-se perceber que os programas de TP trazem alguns benefícios para a TCC infantil:</p><p>a) possibilitam aos pais uma melhor compreensão do papel dos mesmos no tratamento do seu filho(a); b)</p><p>fornecem um espaço “adequado” para que eles possam trocar informações e falar a respeito das</p><p>dificuldades vivenciadas na criação e educação das crianças; c) propiciam a transferência do controle do</p><p>terapeuta para os pais, pois, com o aprendizado, estes acabam gerenciando de modo mais adequado e</p><p>eficaz as diversas situações envolvendo seus filhos24.</p><p>De modo geral, os programas de TP vêm demonstrando eficácia no manejo de situações específicas,</p><p>como comportamentos disfuncionais (birras, intransigência, comportamento opositor), e propiciam um</p><p>melhor desenvolvimento de habilidades sociais em crianças com dificuldades de relacionamento</p><p>interpessoal e problemas comportamentais4,22,23. Além disso, podem ser aplicadas às mais diversas</p><p>condições clínicas, como: transtornos disruptivos, principalmente o Transtorno de Déficit de Atenção e</p><p>Hiperatividade (TDAH) e Transtorno Desafiador Opositor (TDO), transtornos de ansiedade, transtornos</p><p>alimentares, transtornos globais do desenvolvimento, dificuldades de aprendizagem e outros, estimulando</p><p>e promovendo o desenvolvimento de competências funcionais nessas famílias25,23.</p><p>A prática clínica demonstra que os transtornos disruptivos são os quadros clínicos que mais vêm</p><p>sendo contemplados por programas de TP, pois essas abordagens auxiliam os pais na aquisição de recursos</p><p>importantes para o relacionamento familiar, estimulando as capacidades de comunicação, assertividade</p><p>e civilidade22,26. Esses transtornos costumam ocasionar prejuízos antissociais importantes, gerando</p><p>comprometimento nas áreas familiar, social e escolar, sendo também uma das causas de evasão escolar</p><p>para as crianças que apresentam tais sintomas e comportamentos24.</p><p>JULIANA DA ROSA PUREZA, AGLIANI OSÓRIO RIBEIRO, JANICE DA ROSA PUREZA, CAROLINA SARAIVA DE MACEDO LISBOA</p><p>93</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>Devido à importância desse recurso na TCC de crianças e adolescentes, os programas de treinamento</p><p>parental podem apresentar modalidades diferenciadas, dependendo do quadro clínico em tratamento.</p><p>No que se refere à modalidade de atendimento, o mais comum é a utilização de programas de atendimento</p><p>grupais de TP, porém esses treinamentos podem também ser realizados no modo individual, abarcando</p><p>somente a criança e seus pais25,23. Os protocolos de TP costumam seguir alguns pressupostos, como:</p><p>avaliação das características das crianças e suas famílias, apresentação do programa para os pais, processo</p><p>de psicoeducação parental a respeito das condições clínicas e comportamentais das crianças, ensinamento</p><p>de técnicas e manejos específicos para cada situação ou quadro clínico, com o objetivo de estimular</p><p>comportamentos mais adaptativos e saudáveis nas crianças e seus pais. Por último, é realizada uma</p><p>avaliação geral do programa e seus efeitos na vida das famílias participantes. Nesse processo, o terapeuta</p><p>pode fazer uso de instrumentos diversos, como escalas, questionários, inventários, entrevistas e outros,</p><p>assim como protocolos específicos podem ser desenvolvidos ou adaptados, sendo o mais utilizado o</p><p>modelo de Barkley (1997) nos programas de TP23,27.</p><p>Entre as temáticas mais trabalhadas nos programas de TP, encontram-se as técnicas</p><p>uma</p><p>apreciação detalhada de pais e educadores. Ao examinarmos as pedagogias escolar e cultural, poderemos</p><p>dar um sentido mais adequado ao processo educacional em vigência, preocupado com essas questões</p><p>tipicamente contemporâneas e que interferem diretamente no processo de ensino e aprendizagem infantil.</p><p>Desse modo, cabe ao educador compreender a trajetória de desenvolvimento do conceito de</p><p>infância e as suas atuais determinações em nossos dias, que encontra suas influências nos elementos da</p><p>cultura e nos aportes midiáticos. Essa medida auxilia no oferecimento de uma educação imbuída de</p><p>criticidade e capaz de trazer às crianças todas as oportunidades disponíveis para o seu crescimento, seja</p><p>físico, social e intelectual. Somente assim, estaremos preparando nossas crianças para viverem esses</p><p>novos tempos que se anunciam, carregados de novas necessidades, novas aspirações, novos desejos e</p><p>novos desafios.</p><p>Referências</p><p>AMARILHA, Marly. Infância e literatura: traçando a história. Revista Educação em Questão. Natal:</p><p>EDUFRN, v. 10/11, p. 126-137, 2002.</p><p>ARIÉS. Phillipe. História social da infância e da família. Tradução Dora Flaksman. Rio de Janeiro,</p><p>Guanabara, 1981.</p><p>BAUDRILLARD, Jean. A sociedade do consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.</p><p>BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:</p><p>Companhia das Letras, 2000.</p><p>CARVALHO, Eronilda Maria Góis. Educação infantil: percurso, dilemas e perspectivas. Ilhéus, BA:</p><p>Editus, 2003.</p><p>COSTA, Jurandir Freire. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de</p><p>Janeiro: Garamond, 2004.</p><p>DELL PRIORI, Mary. História da infância no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.</p><p>GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo. Pedagogia e infância em tempos neoliberais. In: SILVA JÚNIOR,</p><p>Celestino (Org.). Infância, educação e neoliberalismo. São Paulo: Cortez, 1996.</p><p>HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guacira</p><p>Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.</p><p>KRAMER, Sônia. A política da pré-escola no Brasil. São Paulo: Cortez, 1992.</p><p>889</p><p>PFROMM NETTO, Samuel. Telas que ensinam: mídia e aprendizagem do cinema ao computador.</p><p>Campinas, SP: Alínea, 1998.</p><p>RIZZARDI, Débora Grazziotin Finger. Uma leitura do merchandising direcionado às crianças em</p><p>programas de televisão. In: MELO, José Marques (Org.). Mídia, regionalismo e cultura. São Bernardo</p><p>do Campo/SP: UPF Editora, 2003.</p><p>ROCHA, Eloísa Acires Candau. A educação da criança: antigos dilemas, novas relações. Revista Pátio.</p><p>Ano 2, nº 7, p. 8-12, novembro 1998/janeiro 1999.</p><p>SOUZA, Solange Jobim e. Infância, violência e consumo. In: SOUZA, Solange Jobim e (Org.)</p><p>Subjetividade em questão: a infância como crítica da cultura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.</p><p>STEINBERG, Shirley, KINCHELOE, Joe. Sem segredos: cultura infantil, saturação de informação e</p><p>infância pós-moderna. In: Cultura infantil: a construção corporativa da infância. Tradução George</p><p>Eduardo Japiassú Brício. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001.</p><p>A constituição do infantil na obra de Freud</p><p>Dione de Medeiros Lula Zavaroni</p><p>Terezinha de Camargo Viana</p><p>Luiz Augusto Monnerat Celes</p><p>Universidade de Brasília</p><p>Resumo</p><p>O modo como Freud compreendeu a importância da infância na constituição psíquica é fundamental na</p><p>psicanálise. Este fato sustenta a proposta de considerarmos que esta noção assume, na metapsicologia, o</p><p>estatuto de um conceito. É na busca do conceito do infantil em Freud que empreendemos a pesquisa que</p><p>subsidia este artigo. Privilegiamos momentos iniciais da obra freudiana no sentido de apontar que se trata</p><p>de um conceito muito precocemente instalado na psicanálise. Textos posteriores ao período dos escritos pré-</p><p>psicanalíticos, tais como “A Interpretação dos Sonhos” e “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade”,</p><p>também são analisados no sentido de apontar os desdobramentos iniciais sobre o modo como Freud pensou</p><p>e tomou o conceito de infantil na metapsicologia e no trabalho psicanalítico.</p><p>Palavras-chaves: infância; infantil; constituição psíquica</p><p>Abstract</p><p>The development of the concept of infantile in Freud. Freud’s understanding of the importance of infancy in</p><p>psychical constitution is fundamental in psychoanalysis, leading us to consider that the notion of infantile,</p><p>in metapsychology, assumes the statute of a concept. This essay proposes to research the concept of infantile</p><p>in Freud. In order to point out the precocity of the appearance of the concept in psychoanalysis, the initial</p><p>moments of Freud’s works are favored. Some texts written after the pre-psychoanalytic publications, such as</p><p>“The Interpretation of Dreams” and “The three essays on the theory of sexuality”, will also be analyzed, so</p><p>as to point out the initial development of the concept of infantile in metapsychology and in psychoanalytic</p><p>work.</p><p>Keywords: infancy; infantile; psychical constitution</p><p>Ainfância faz parte da história da psicanálise como uma de</p><p>suas marcas indeléveis. Cenas e lembranças referentes</p><p>aos primeiros anos de vida dos pacientes estão presentes</p><p>nos escritos freudianos desde os seus primórdios. O que marca</p><p>da elaboração teórica em torno deste período da vida humana</p><p>e, conseqüentemente, o modo próprio como os psicanalistas</p><p>ouvem os relatos de seus pacientes em relação aos seus primeiros</p><p>anos de vida.</p><p>Em linhas gerais, talvez possamos dizer que a principal</p><p>característica da compreensão psicanalítica em relação à infân-</p><p>cia consiste no interesse de resgatar na fala dos pacientes, não</p><p>sua própria constituição como, também, seu modo de relembrar</p><p>o passado. É exatamente este duplo movimento que o infantil</p><p>estabelece – ao mesmo tempo em que constitui, ele próprio</p><p>oferece modos de interpretação dessa constituição.</p><p>É importante lembrar que essa compreensão do infantil tem</p><p>uma ressonância fundamental no trabalho analítico. À medida</p><p>que esta noção era lapidada, a prática analítica ia assumindo</p><p>contornos diversos, passando gradualmente pelos terrenos da</p><p>hipnose, da sugestão e da associação livre. Na medida em que</p><p>Freud distanciava-se dos fatos em direção à interpretação que o</p><p>próprio sujeito lhe atribuía, ele caminhava em direção à valoriza-</p><p>ção da associação livre como técnica fundamental da psicanálise.</p><p>Nesse percurso das transformações do método psicanalítico, o</p><p>infantil assume uma posição central.</p><p>Outro aspecto relevante consiste no fato de que o infantil não</p><p>conceitual que contorna a idéia de infância e de infantil na psi-</p><p>canálise sempre esteve, de algum modo, presente nos trabalhos</p><p>construções teóricas.</p><p>Nos “Extratos dos documentos dirigidos a Fliess” (Freud,</p><p>1950[1892-1899]/1980) já havia a compreensão de que na</p><p>reconstrução dos primeiros anos de vida feita em análise estão</p><p>contempladas tanto as recordações de infância proferidas ao</p><p>Estudos de Psicologia 2007, 12(1), 65-70</p><p>66</p><p>analista como a infância esquecida. Não era apenas aquilo que</p><p>o paciente recordava que Freud considerava relevante na com-</p><p>preensão dos sintomas, mas também e, sobretudo, a infância</p><p>Mesmo quando se voltava à reconstituição dos fatos de</p><p>infância relatados por seus pacientes, o que mantinha Freud</p><p>ocupado com a infância era algo da ordem do recalcado. O</p><p>infantil recalcado, muito mais que um relato sobre a infância,</p><p>foi, desde sempre, o seu verdadeiro interesse.</p><p>Porém, para o próprio Freud, a sustentação metapsicoló-</p><p>gica da compreensão dos primeiros anos de vida exigiu um</p><p>permanente trabalho de elaboração. O modo de tomar o infantil</p><p>na constituição do psiquismo, na formação dos sintomas ou</p><p>no trabalho de análise não se apresenta placidamente em seus</p><p>escritos. Ele oscilou, constantemente, em um movimento pen-</p><p>dular entre as experiências da infância e o material recalcado.</p><p>Revendo os escritos freudianos, percebemos que não é exata-</p><p>mente uma precisa delimitação conceitual das noções de infância</p><p>e de infantil que caracterizará o modo como Freud fez uso das</p><p>mesmas</p><p>de Manejo de</p><p>Contingências e o Treinamento de Habilidades Sociais, assim como o processo de Psicoeducação Parental.</p><p>Porém, a escolha das técnicas específicas depende do quadro clínico em questão e dos objetivos do</p><p>programa, e muitos recursos encontram-se à disposição do terapeuta, como estimulação de habilidades</p><p>para Resolução de Problemas, Monitoramento de Comportamentos (economia de fichas), Manejo de</p><p>Ansiedade e Estresse, entre outros28,29,30,31,32.</p><p>Em geral, os programas de treinamento parental são desenvolvidos em um período de tempo</p><p>específico, sendo comum o total de 12 sessões, que ocorrem uma vez por semana. Além disso, considerando-</p><p>se as novas configurações familiares comuns na atualidade, é necessário comentar que esses treinamentos</p><p>podem contar com a participação de outros membros da família, como avós, tios e outra pessoa diretamente</p><p>ligada ao comportamento infantil, assim como a comunidade escolar, pois a mudança de comportamento</p><p>da criança no meio escolar pode ser um dos objetivos na TCC23.</p><p>Trabalhando com a criança</p><p>O trabalho do terapeuta na TCC com crianças e adolescentes começa antes da chegada do paciente,</p><p>já na preparação da sala e na eleição dos brinquedos. A sala deve contemplar alguns cuidados básicos</p><p>(como a presença de um banheiro, por exemplo), além de brinquedos variados, que possam auxiliar a</p><p>criança em processos de expressão (como, por exemplo, desenhos e argilas), processos de identificação</p><p>(como bonecos da família, animais e outros personagens), além de jogos estruturados (tanto cooperativos</p><p>quanto competitivos, que permitem a avaliação dos processos da criança). Além disso, pode ser</p><p>interessante também a presença de brinquedos úteis para metáforas no trabalho de reestruturação</p><p>cognitiva (como lentes de aumento, óculos, balanças, entre outros). É importante, ao iniciar o atendimento,</p><p>FUNDAMENTOS E APLICAÇÕES DA TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES</p><p>94</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>sempre verificar a preferência e história da criança, de modo a adaptar os materiais e brinquedos antes da</p><p>sessão. Ainda, como a criança é capaz de entender a lógica das coisas, mas seu pensamento ainda está em</p><p>desenvolvimento, recursos para representação concreta dos conceitos também são necessários7. É</p><p>fundamental que, na primeira sessão com a criança, os pais sejam orientados a explicar para ela o porquê</p><p>de ela estar indo a um psicoterapeuta. É interessante incluir toda a família no problema, de modo a</p><p>eliminar o aspecto punitivo do tratamento. A partir dessa primeira sessão, conforme a demanda e o</p><p>diagnóstico da criança, serão aplicadas as técnicas cognitivas e comportamentais, que serão descritas</p><p>mais detalhadamente a seguir.</p><p>Intervenções com crianças e adolescentes</p><p>Técnicas para identificação de pensamentos e sentimentos</p><p>É durante a primeira infância que as emoções humanas começam a se desenvolver, formando um</p><p>padrão característico e atuando na formação da personalidade33. Independentemente do diagnóstico da</p><p>criança, é importante que ela saiba identificar suas emoções e as dos outros, pois isso interferirá nos tipos</p><p>de relacionamento que serão estabelecidos ao longo da vida. As emoções são um misto de sensações</p><p>subjetivas e de estados fisiológicos os quais todas as pessoas vivenciam e expressam de diferentes</p><p>maneiras e, ainda que as emoções sejam respostas subjetivas do indivíduo, elas são praticamente as</p><p>mesmas em todas as culturas do mundo34.</p><p>Para ajudar as crianças a conhecer e identificar as emoções, Caminha e Caminha (2011) desenvolveram</p><p>o Baralho das Emoções. Esse baralho é formado por 24 cartas, cada uma contendo a expressão de uma</p><p>emoção.Entre elas estão incluídas seis cartas com as emoções básicas, ou seja, as primeiras emoções</p><p>sentidas desde muito pequeno, que são o amor, a tristeza, a alegria, a raiva, o medo e o nojo. Essas</p><p>emoções vão se estendendo para emoções mais complexas ao longo do desenvolvimento da criança33.</p><p>Outra maneira que pode ser utilizada para ajudar as crianças a identificarem suas emoções e também</p><p>seus pensamentos é a técnica chamada de Relógio dos Pensamentos-Sentimentos. Esse relógio é feito</p><p>durante a sessão juntamente com o paciente, e no lugar dos números o paciente vai desenhar pequenos</p><p>rostos representando as emoções. A ideia é ajudar a criança a perceber e entender seus sentimentos e</p><p>mostrar a ela que as emoções mudam e passam assim como mudam as horas. Através dos ponteiros, a</p><p>criança pode indicar o que está sentindo naquele momento, e o terapeuta pode ajudá-la a identificar que</p><p>pensamentos a estão levando a sentir-se assim35.</p><p>Quando se trabalha com crianças, deve-se levar em consideração a idade em que se encontra e a</p><p>etapa do seu desenvolvimento para a escolha da técnica ou intervenção mais adequada. Crianças pequenas</p><p>JULIANA DA ROSA PUREZA, AGLIANI OSÓRIO RIBEIRO, JANICE DA ROSA PUREZA, CAROLINA SARAIVA DE MACEDO LISBOA</p><p>95</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>costumam não corresponder bem a perguntas ou assuntos diretivos. Por isso, para essas crianças</p><p>conseguirem identificar suas emoções, podem-se utilizar Técnicas de Elaboração de Histórias. Essas histórias</p><p>devem ser parecidas com a situação vivenciada pela criança e que está gerando determinadas emoções</p><p>no seu cotidiano. Os personagens podem ser animais ou qualquer personagem que não se remeta</p><p>diretamente ao paciente. Dessa forma, a criança consegue se identificar com a situação e o personagem,</p><p>podendo dizer, mesmo que indiretamente, o que está sentindo ou mesmo pensando.</p><p>Técnicas para psicoeducação</p><p>A psicoeducação tem a importante função de orientar o paciente quanto a seu funcionamento,</p><p>diagnóstico, sintomas e sobre o próprio tratamento, facilitando o processo de mudança15. Na psicoterapia</p><p>infantil, a técnica da psicoeducação costuma ser feita tanto com os pais quanto com a própria criança, mas</p><p>a forma como será feita deverá respeitar a idade e o grau de desenvolvimento em que o paciente se</p><p>encontra. Com crianças menores, pode-se fazer uso de uma Psicoeducação Indireta, ou seja, através</p><p>metáforas, de histórias ou de personagens que não se refiram diretamente a elas. Para comportamentos</p><p>agressivos, por exemplo, pode-se trabalhar com a Metáfora do Super-Herói Incrível Hulk*2, por exemplo,</p><p>identificando, juntamente com a criança, o sentimento de raiva, como aparece no corpo e o que ele faz</p><p>quando se sente assim. Também se pode utilizar a Metáfora do Vulcão, que representa o corpo humano,</p><p>e a lava como sendo a raiva, pois o vulcão começa a esquentar até que entra em erupção e de dentro dele</p><p>sai a lava.</p><p>O contato com histórias é comum na infância, o que faz com que as crianças sintam-se à vontade</p><p>lidando e conversando sobre histórias e contos15. A história “De minha boca saem cobras e lagartos”, por</p><p>exemplo, fala sobre um menino que vai sendo dominado por cobras e lagartos que saem de sua boca a</p><p>todo instante, e assim as outras pessoas começam a se afastar dele. Através dessa história, pode ser feita</p><p>a psicoeducação da agressividade, dos sentimentos do menino e da repercussão que seus comportamentos</p><p>têm diante de outras crianças36.</p><p>Uma Psicoeducação Diretiva também pode ser bastante útil com crianças, contanto que mantenha</p><p>o caráter lúdico da infância. Para psicoeducar como os sentimentos aparecem no corpo, a criança pode,</p><p>por exemplo, desenhar o formato do corpo ou desenhar um menino ou menina, escolher uma cor que</p><p>represente as emoções mais frequentes e pintar onde elas aparecem no corpo, o tamanho em que aparecem</p><p>e o formato com que a representam.</p><p>*O Incrível Hulk é um personagem de histórias em quadrinhos que representa o perigoso alter-ego do Dr. Robert Bruce</p><p>Banner, um cientista atingido por raios gama durante uma operação científica para salvar um adolescente durante o</p><p>teste militar de uma bomba desenvolvida por ele.</p><p>FUNDAMENTOS E APLICAÇÕES DA TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES</p><p>96</p><p>REVISTA BRASILEIRA</p><p>DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>Técnicas para solução de problemas</p><p>Uma técnica comumente utilizada na TCC com adultos é a Técnica de Resolução de Problemas, que</p><p>consiste em especificar um problema, de modo a projetar soluções viáveis e dessa foram selecionar uma</p><p>solução, seguida da implementação e avaliação de sua efetividade3. Essa técnica pode ser adaptada para</p><p>a utilização com as crianças, tendo em vista que nessa fase do desenvolvimento elas estão começando a</p><p>aprender a resolver problemas de diferentes complexidades, e muitas vezes costumam apresentar</p><p>dificuldades de solução desses problemas.</p><p>Entre as técnicas adaptadas para crianças, existe a Máscara do Herói, na qual o paciente escolhe um</p><p>herói, podendo ser personagens, pessoas famosas ou mesmo pais e professores, e cola a figura desse</p><p>herói em uma máscara. Ao usar a máscara e “transformar-se” no herói, a criança passa a ver o problema</p><p>sobre outra perspectiva e pode sentir-se empoderada. Ela é incentivada pelo terapeuta a explorar todas</p><p>as alternativas para seu problema e selecionar a melhor opção para resolvê-lo. Sendo um herói, a criança</p><p>consegue questionar crenças disfuncionais e reconhecer recursos que possui para lidar com a situação,</p><p>gerando autoconfiança35.</p><p>Técnicas comportamentais</p><p>As técnicas comportamentais são muito utilizadas no tratamento com crianças e adolescentes, pois,</p><p>dependendo da idade e da demanda da criança, esta pode apresentar mais dificuldades em prestar atenção</p><p>em suas cognições e monitorá-las do que os adultos, sendo preferível a utilização de intervenções</p><p>comportamentais15. Nesse sentido, as técnicas comportamentais reduzem a intensidade e frequência</p><p>dos comportamentos disfuncionais e aumentam os comportamentos desejados.</p><p>Dentre as técnicas comportamentais, as Técnicas de Relaxamento são bastante úteis a pacientes</p><p>com diferentes demandas, mas principalmente em pacientes ansiosos, pois, além dos processos</p><p>psicológicos, essas técnicas influenciam em respostas fisiológicas que atuam sobre os sintomas físicos da</p><p>ansiedade15. O relaxamento muscular progressivo amplamente utilizado em adultos também é utilizado</p><p>em crianças de uma maneira adaptada. É uma técnica em que os pacientes são levados a tensionar e</p><p>relaxar diferentes músculos por vez. Para ser utilizada com crianças, essa técnica deve ser adaptada para</p><p>que se obtenha uma maior adesão do paciente. Existem algumas adaptações como imaginar o corpo rígido</p><p>como um robô, depois mole como um boneco de pano e em seguida pedir que a criança descreva como se</p><p>sentiu em cada uma das vezes38.</p><p>Outra técnica importante é o Treino de Respiração Diafragmática, que também ajuda no relaxamento.</p><p>Para isso, é indicado que o paciente inspire e expire de forma lenta e profunda. Com as crianças, podem</p><p>ser utilizadas bolhas de sabão, pois, para que as bolhas se formem, deve-se assoprar de forma lenta, o que</p><p>JULIANA DA ROSA PUREZA, AGLIANI OSÓRIO RIBEIRO, JANICE DA ROSA PUREZA, CAROLINA SARAIVA DE MACEDO LISBOA</p><p>97</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>ajuda na regularização da respiração e distração dos sintomas físicos ocasionados pela ansiedade. As</p><p>bolhas de sabão também podem ser utilizadas com crianças que tenham dificuldade de tolerar frustrações,</p><p>o que gera irritação e raiva36.</p><p>A Exposição Graduada, técnica muito utilizada com adultos ansiosos que objetivam atingir uma</p><p>meta, mas não se sentem capazes3, é fundamental no tratamento de crianças com diferentes tipos de</p><p>ansiedade. O uso de metáforas nesse caso também ajuda a criança a se engajar na técnica. Em primeiro</p><p>lugar se define a meta, depois divide-se a meta em um “passo a passo”, explicando-se para criança que</p><p>será, por exemplo, como uma escadaria em que ela subirá degrau por degrau até atingir o topo, ou mesmo</p><p>como um jogo de videogame que ela terá que vencer cada fase, como um desafio. Juntamente com o</p><p>paciente,estabelece-se uma hierarquia quanto ao grau de dificuldade. A cada etapa alcançada, o terapeuta</p><p>deve reforçar o paciente, incentivando-o a continuar.</p><p>Outra técnica comportamental muito útil no tratamento infantil é a Economia de Fichas. Ela serve</p><p>para ajudar as crianças a aumentarem os comportamentos adequados através de uma atenção positiva</p><p>dos pais para esses comportamentos. A técnica funciona como um sistema de pontos e recompensas, em</p><p>que primeiro selecionam-se os comportamentos desejados. Deve-se iniciar com poucos comportamentos,</p><p>de um a três, dependendo da idade, então se estabelece um número de pontos para cada comportamento.</p><p>Cada vez que a criança emitir o comportamento desejado, ela recebe fichas com os pontos relativos39,40. O</p><p>terapeuta irá definir quantos pontos mínimos ela deve juntar semanalmente para poder trocar por</p><p>recompensas preestabelecidas. Cada recompensa também tem valores diferentes; então, quanto mais</p><p>fichas ela juntar, melhores serão as recompensas. É sempre importante lembrar que não é recomendado</p><p>que as recompensas sejam alimentos, dinheiro ou qualquer bem material de alto valor financeiro. O ideal</p><p>é que sejam atividades de lazer e de preferência junto à família39,40.</p><p>Técnicas cognitivas</p><p>As técnicas cognitivas têm sido cada vez mais desenvolvidas e adaptadas para a terapia infantil.</p><p>Existem diferentes técnicas cognitivas utilizadas com crianças, entre elas a Analogia do Semáforo, que foi</p><p>desenvolvida através do Programa FRIENDS. Essa técnica ensina a criança a identificar e classificar os</p><p>diferentes tipos de pensamentos em: “pensamentos vermelhos”,aqueles improdutivos, negativos e que</p><p>impedem o bem-estar; “pensamentos amarelos”, que servem para refletir; e os “pensamentos verdes”,</p><p>que são produtivos e que incentivam o bem-estar41.</p><p>Para ajudar as crianças a compreenderem e transformarem pensamentos disfuncionais em</p><p>pensamentos funcionais, pode também ser utilizada a Analogia da Lagarta. Nesse caso a lagarta, que são</p><p>os pensamentos negativos, vai se transformando em uma borboleta, que são os pensamentos positivos42.</p><p>FUNDAMENTOS E APLICAÇÕES DA TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES</p><p>98</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>A proposta dessa técnica é ensiná-las a classificar os pensamentos como aqueles que nos ajudam e aqueles</p><p>que nos atrapalham, sempre de uma forma ilustrativa e concreta.</p><p>A Balança das Vantagens e Desvantagens, técnica utilizada para tomada de decisões, é importante</p><p>no tratamento infantil. Para essa técnica, o terapeuta pode recortar uma pequena balança de papel,</p><p>deixando os dois braços móveis para a pesagem. Em um dos lados o paciente escreve as vantagens e do</p><p>outro as desvantagens. Cada item ou argumento escrito nela faz a balança pender para baixo, estando no</p><p>final mais voltada para o lado que tem mais argumentos, auxiliando, assim, na decisão a ser tomada.</p><p>Apresentação de um caso clínico de TCC na infância</p><p>Fernando**3 tem 9 anos, mora com os pais e o irmão mais velho. Os pais de Fernando procuraram</p><p>ajuda para o filho porque ele está tendo dificuldade de ficar em sala de aula ou em outro lugar em que</p><p>precise ficar longe dos pais ou do irmão mais velho, de 15 anos. Fernando é muito ansioso e, toda vez que</p><p>fica longe dos pais ou do irmão, pensa que algo ruim pode acontecer a eles ou a si próprio.Quando estão</p><p>por perto, consegue manter-se mais tranquilo.</p><p>Segundo os pais, o menino sempre foi assim, mas a ansiedade e a preocupação têm aumentado</p><p>cada vez mais. Durante a aula ele liga para a mãe muitas vezes para saber como ela está, chegando a ligar</p><p>cinco vezes em meia hora. Liga também no final da aula para se certificar de que estão indo buscá-lo. A</p><p>ansiedade que Fernando sentia encontra-se em nível tão elevado que chega a chorar e vomitar na escola,</p><p>e muitas vezes os seus pais precisavam buscá-lo antes.</p><p>Fernando não tem problemas de aprendizagem e tira boas notas. Segundo os professores, ele</p><p>possui alguns amigos, mas não tem conseguido interagir, ficando, geralmente, sozinho. Em casa, isto</p><p>também acontece: fica muito ansioso quando</p><p>alguém demora a chegar, pede para telefonar e verificar se</p><p>está tudo bem. Não quer ficar sozinho nem mesmo para sua mãe descer para levar o lixo. O pai de</p><p>Fernando também sofre de ansiedade, mas nunca fez tratamento. A mãe é superprotetora para com o</p><p>filho, assim como com o irmão mais velho.</p><p>A partir das sessões realizadas com Fernando, foi realizado o diagnóstico de Ansiedade de Separação.</p><p>Após a realização do diagnóstico, foi trabalhada a confecção do diagrama de conceitualização cognitiva,</p><p>que culminou no Quadro 2.</p><p>**Os responsáveis consentiram na apresentação do caso, e os dados pessoais e a descrição do paciente foram</p><p>alterados pelos autores de modo a garantir o anonimato da criança e impossibilitar sua identificação.</p><p>JULIANA DA ROSA PUREZA, AGLIANI OSÓRIO RIBEIRO, JANICE DA ROSA PUREZA, CAROLINA SARAIVA DE MACEDO LISBOA</p><p>99</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>Quadro 2</p><p>Diagrama de Conceitualização Cognitiva de um Caso Clínico</p><p>Dados relevantes da HistóriaPai ansioso. Mãe superprotetora. Irmão mais velho superprotetor.</p><p>Crença Central”Sou vulnerável.” “O mundo é perigoso.”</p><p>Crenças Condicionais”Se sou vulnerável, então devo ficar junto aos meus pais.””Se o mundo é</p><p>perigoso, então minha família e eu devemos permanecer juntos o tempo inteiro.”</p><p>Estratégias CompensatóriasNão quer ficar sozinho ou longe dos pais ou irmão; controla o tempo</p><p>quando alguém sai; liga para os pais para se certificar de que está tudo bem; preocupa-se com a</p><p>segurança da família.</p><p>No início do tratamento com Fernando, foi utilizado o Baralho das Emoções. Pediu-se que Fernando</p><p>selecionasse as cartinhas com as emoções que mais estivesse sentindo ultimamente. Ele selecionou as</p><p>cartas referentes à “preocupação” quando pensa que alguma coisa ruim pode acontecer com ele ou com</p><p>os pais; “medo” de ficar sozinho ou que alguém estranho faça mal a ele; “alegria” quando está junto à</p><p>família; e “orgulho” quando consegue ir para escola sem medo.</p><p>Em seguida foi feita uma Psicoeducação Diretiva acerca do medo e das preocupações. Pediu-se que</p><p>Fernando escolhesse cores para representar essas emoções e que pintasse, no desenho de um menino,</p><p>onde essas emoções apareciam no seu corpo e que tamanho tinham. Fernando pintou de preto e vermelho</p><p>em toda a extensão do abdômen do menino, ressaltando o coração. Também foi solicitado que Fernando</p><p>imaginasse seus medos e preocupações como tendo uma forma e como ela seria. Então, o paciente</p><p>desenhou um “monstro bem feio” (sic) em preto e vermelho e o chamou de Monstro das Preocupações.</p><p>Foi fundamental nesse caso que o paciente tenha conseguido externalizar suas emoções de uma forma</p><p>criativa e como algo separado de si mesmo e que, consequentemente, pode enfrentar.</p><p>Posteriormente, foi explicado a Fernando que esse monstro parece muito grande, e, cada vez que</p><p>ele foge do monstro, ele se fortalece e cresce ainda mais, mas que, se ele resolvesse enfrentar o monstro,</p><p>ele se tornaria tão pequeno que caberia na palma da sua mão. Então, paciente e terapeuta desenharam</p><p>ambas as situações: de ele fugindo e o monstro ficando enorme e depois de ele enfrentando e o monstro</p><p>ficando bem pequeno. Para poder enfrentar o monstro através da Exposição Graduada, Fernando teria</p><p>que passar por diversas etapas e, quando ele alcançasse a última etapa, ele venceria o monstro e ganharia</p><p>uma medalha como recompensa.</p><p>FUNDAMENTOS E APLICAÇÕES DA TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES</p><p>100</p><p>Para ajudá-lo a enfrentar suas tarefas, foi ensinada a ele a Respiração das Bolhas de Sabão para fazer</p><p>sempre que estivesse ansioso. Foi feita uma lista com cada etapa a ser superada. A primeira das etapas era</p><p>Fernando ficar um dia da semana, no mínimo, sem ligar para a mãe no final da aula. Ele conseguiu cumprir</p><p>essa etapa. Nas semanas seguintes foram aumentando os dias sem poder ligar, depois ele também passou</p><p>a não poder ligar para a mãe no intervalo da aula. Em seguida, ele foi com a turma em um passeio da escola</p><p>e, aos poucos, foi conseguindo superar seus medos.</p><p>Com o tempo, Fernando já estava conseguindo fazer o que mais gostava, que era jogar futebol com</p><p>os colegas de aula e se divertir. Então, como combinado, Fernando ganhou sua medalha dourada. O</p><p>terapeuta pediu que ele desenhasse o Monstro das Preocupações agora que ele havia conseguido enfrentá-</p><p>lo. Então Fernando o desenhou preso com grades e correntes em uma ilha deserta, rodeado por tubarões</p><p>de onde ele não sairia tão cedo.</p><p>Considerações finais</p><p>Este artigo teve como objetivo apresentar um panorama geral sobre os aspectos teóricos e práticos</p><p>da TCC com crianças e adolescentes e finalizar com a ilustração acerca de um caso clínico. A partir da</p><p>apresentação das características da TCC com crianças e adolescentes, assim como das principais diretrizes</p><p>para a avaliação da TCC na infância e intervenções cognitivas e comportamentais na infância e adolescência,</p><p>buscou-se desfazer mitos e confusões acerca da TCC com crianças e adolescentes, reforçando essa prática</p><p>clínica e a efetividade dessa abordagem teórica. A descrição do caso clínico de uma criança atendida em</p><p>TCC relatado teve como objetivo servir como exemplo ilustrativo e fomentar a reflexão, proporcionando</p><p>um maior entendimento acerca da aplicação e adequação das técnicas aos objetivos do tratamento.</p><p>Assim como em outras abordagens teóricas, a clínica com jovens deve ser fomentada e estimulada</p><p>no sentido preventivo e também aumentando e valorizando a atenção ao sofrimento psíquico na infância</p><p>e adolescência, que, infelizmente, pode existir e que, por mais difícil que seja identificá-lo, não pode ser</p><p>negligenciado. Além de ser de fundamental importância para a promoção da resiliência em uma fase</p><p>inicial da vida, que pode garantir um desenvolvimento saudável ao longo do ciclo vital, o trabalho cognitivo-</p><p>comportamental com crianças e adolescentes é dinâmico, estimula a criatividade e é extremamente</p><p>gratificante. Nesse contexto, o terapeuta cognitivo da infância e adolescência deve exercer sua prática</p><p>com sensibilidade e criatividade, com a certeza de que cada criança é um ser único e especial e que o</p><p>trabalho na infância pode contribuir significativamente para o enriquecimento clínico e pessoal do</p><p>profissional.</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>JULIANA DA ROSA PUREZA, AGLIANI OSÓRIO RIBEIRO, JANICE DA ROSA PUREZA, CAROLINA SARAIVA DE MACEDO LISBOA</p><p>101</p><p>Referências</p><p>1. Del Prette ZAP, Del Prette A. A importância das habilidades sociais na infância. In: Del Prette ZAP, Del</p><p>Prette A, Souza MC. Psicologia das habilidades sociais na infância: teoria e prática. Petrópolis: Vozes;</p><p>2005.</p><p>2. Petersen CS, Wainer R. Princípios básicos da terapia cognitivo-comportamental de crianças e</p><p>adolescentes. In: Petersen CS, Wainer R, organizadores. Terapias cognitivo-comportamentais para</p><p>crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed; 2011. p. 16-31.</p><p>3. Beck JS.Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed; 1997.</p><p>4. Bunge E, Gomar M, Mandil J. Terapia cognitiva com crianças e adolescentes – aportes teóricos. São</p><p>Paulo: Casa do Psicólogo; 2012.</p><p>5. Almeida, AM, NetoFL. Indicações e contraindicações. In:Knapp P ed. Terapia cognitivo-comportamental</p><p>na prática psiquiátrica. Porto Alegre: Artmed; 2004.</p><p>6. Knapp P, Beck AT. Fundamentos, modelos conceituais, aplicações e pesquisa da terapia cognitiva.</p><p>Revista Brasileira de Psiquiatria. 2008;30(2):54-64.</p><p>7. Oliveira RG, Soares SC. Terapia cognitivo-comportamental para crianças. In: Oliveira MS, Andretta I,</p><p>organizadores. Manual prático de terapia cognitivo-comportamental. São Paulo: Casa do Psicólogo;</p><p>2012. p. 467-80.</p><p>8. Caminha RM, Caminha MG. Princípios da psicoterapia cognitiva na infância. In: Caminha RM, Caminha</p><p>MG. A prática cognitiva na infância. 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Técnicas de terapia cognitiva para crianças e adolescentes:</p><p>ferramentas para aprimorar a prática. Porto Alegre: Artmed; 2011.</p><p>16. Barkley RA, Edwards G. Diagnostic interview, behavior rating scales, and the medical examination. In:</p><p>Barkley RA. Attention-deficit hyperactivity disorder: a handbook for diagnosis and treatment. 3nd</p><p>ed. New York: Spring Street; 2006.</p><p>17. Neufeld CB, Canavage CC. Conceitualização cognitiva de um caso: uma proposta de sistematização a</p><p>partir da prática clínica. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas. 2010;6(2):3-35.</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>FUNDAMENTOS E APLICAÇÕES DA TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES</p><p>102</p><p>18. Caminha MG, Soares T, Caminha RM. Conceitualização cognitiva na infância. In: Rangé B. Terapia</p><p>cognitivo-comportamental: um diálogo com a psiquiatria. Porto Alegre: Artmed; 2011.</p><p>19. Caminha RM, Caminha MG. Baralho das emoções: acessando a criança no trabalho clínico. Porto Alegre:</p><p>Sinopsys Editora; 2008.</p><p>20. Caminha RM, Caminha MG. Baralho dos pensamentos: reciclando ideias, promovendo consciência.</p><p>Porto Alegre: Sinopsys Editora; 2012.</p><p>21. Caminha RM, Caminha MG. Baralho dos comportamentos: efeito bumerangue. Porto Alegre: Sinopsys</p><p>Editora; 2013.</p><p>22. Caminha MG, Almeida FF, Scherer LP. Treinamento de pais: fundamentos teóricos. In: Caminha MG,</p><p>Caminha RM e Cols. Intervenções e treinamento de pais na clínica infantil. Porto Alegre: Sinopsys;</p><p>2011. p. 13-30.</p><p>23. Pinheiro MIS, Haase VG. Treinamento de pais. In: Batista MN, Teodoro MLM, organizadores. Psicologia</p><p>de família. Teoria, avaliação e intervenções. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 249-63.</p><p>24. Pacheco JTB, Reppold CT. Terapia cognitivo-comportamental para os transtornos de comportamento</p><p>disruptive: modelo de treinamento parental. In: Petersen CS, Wainer R, organizadores. Terapias</p><p>cognitivo-comportamentais para crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed; 2011. p. 152-68.</p><p>25. Caminha MG. Treinamento de pais: aplicações clínicas. In: Caminha, MG, Caminha RM e Cols.</p><p>Intervenções e treinamento de pais na clínica infantil. Porto Alegre: Sinopsys; 2011. p. 89-120.</p><p>26. Lyszkowski LC, Rohde LA. Treinamento de pais no tratamento do TDAH na infância. In: Caminha MG,</p><p>Caminha RM e Cols. Intervenções e treinamento de pais na clínica infantil. Porto Alegre: Sinopsys;</p><p>2011. p. 241-80.</p><p>27. Pinheiro MIS, Haase VG, Del Prette A, Amarante CLD, Del Prette ZAP. Treinamento de habilidades</p><p>sociais educativas para pais de crianças com problemas de comportamento. Psicologia: Reflexão e</p><p>Crítica. 2006;19(3):407-14.</p><p>28. Ball GDC, Ambler KA, Keaschuk RA, Rosychuc RJ, Holt NL, Spence JC, et al. 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Intervenção psicológica lúdica para o enfrentamento da hospitalização em</p><p>crianças com câncer. Psicologia: Teoria e Pesquisa. 2010;26(3):445-54.</p><p>Correspondência</p><p>Juliana da Rosa Pureza</p><p>Av. Ipiranga, 6681, Partenon, prédio 11, 9º andar</p><p>90619-900 Porto Alegre/RS</p><p>julianapureza@yahoo.com.br</p><p>Submetido em: 01/01/2014</p><p>Solicitação de reformulações em: 15/01/2014</p><p>Retorno dos autores em: 29/01/2014</p><p>Aceito em: 05/02/2014</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):85-103</p><p>FUNDAMENTOS E APLICAÇÕES DA TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES</p><p>28</p><p>TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL</p><p>PARA CRIANÇAS</p><p>Rodrigo Grassi de Oliveira</p><p>Sandra Cristina Soares</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), como se vê em outros capítulos deste livro, é uma</p><p>abordagem interventiva relativamente recente, que começou a ser desenvolvida por Aaron Beck no início</p><p>da década de 60 (Beck & Freeman, 1993). Do ponto de vista interventivo, a TCC busca facilitar mudanças</p><p>no pensamento e no sistema de crenças do paciente, objetivando a promoção de mudanças emocionais e</p><p>comportamentais duradouras. Além disso, há também um viés educativo que se baseia nos problemas do</p><p>paciente e no estabelecimento de metas. O terapeuta cognitivo trabalha em parceria com o seu cliente a fim</p><p>de desenvolver as habilidades de identificar e modificar as distorções cognitivas, emoções negativas e com</p><p>portamentos desadaptativos do paciente, fomentando também, se necessário, mudanças em seu ambiente</p><p>social (Rangé, 2001).</p><p>A abordagem Cognitivo-Comportamental foi desenvolvida, primeiramente, visando ao atendimento</p><p>de adultos, pois a maioria das técnicas utilizadas requer certo grau de maturação cognitiva. Porém, no início</p><p>da dácada de 1980, os trabalhos relacionados ao tratamento de crianças com TCC começam a ser desenvol</p><p>vidos com mais frequência e consistência (Caminha & Caminha, 2007). Uma discussão importante ao longo</p><p>dos últimos anos foi sobre a efetividade</p><p>da utilização das técnicas cognitivas no atendimento de crianças,</p><p>que ainda se encontram naturalmente em processo de desenvolvimento cognitivo (Reinecke, Datillio, &</p><p>Freeman, 1998). Entende-se, portanto, que a psicoterapia infantil apresenta várias peculiaridades. Assim,</p><p>este campo de intervenção não é plenamente efetivo se se promover apenas uma transposição das teorias</p><p>e técnicas desenvolvidas para um modelo adulto. É fundamental considerar-se as diferenças no desenvol</p><p>vimento dos esquemas afetivos, cognitivos, motivacionais, comportamentais e de controle de crianças em</p><p>relação aos de adultos, o que força o psicoterapeuta a desenvolver seus conhecimentos tanto acerca de psi-</p><p>copatologia infantil, os aspectos evolutivos relacionados ao desenvolvimento cognitivo, quanto sobre teorias</p><p>de desenvolvimento emocional, motivacional e físico na infância (Caminha & Caminha, 2007; Papalia 6>C</p><p>Olds, 2000; Reinecke et al.y 1998).</p><p>Sabemos que a criança é capaz de entender a lógica das coisas, mas seu pensamento ainda tem muito a</p><p>desenvolver. Sendo assim, a criança, em alguns estágios de sua vida, necessita de uma representação concreta</p><p>dos conceitos, em sua maioria abstratos, quando abordados na psicoterapia. Conceitos, tais como os de</p><p>problema, sentimentos (culpa, raiva, amor, tristeza, alegria etc.), pensamentos (pensamentos distorcidos),</p><p>virtudes (paciência, generosidade, prudência etc.) e outros, necessitam ser concretizados para que se tornem</p><p>468 Ma n u a l Pr á t ic o d e Te r a pia Co g n it iv o -Co mpo r t a me n t a l</p><p>compreensíveis para a criança. Essa concretização de conceitos, na prática clínica, pode dar-se através de</p><p>fantoches, brinquedos, histórias, explicações e exemplificaçóes do terapeuta, ou por outros meios. O impor </p><p>tante é que todas as técnicas utilizadas devem ser adaptadas aos objetivos que serão buscados durante o</p><p>tratamento. Além disso, para trabalhar com crianças o terapeuta deverá ser mais ativo, e deverá também fazer</p><p>um uso proporcionalmente maior de técnicas comportamentais do que cognitivas (Bailey, 2001; Caminha</p><p>& Caminha, 2007; Reinecke et ai, 1998).</p><p>A validade, clareza e simplicidade da TCC podem dar a impressão de uma terapia de fácil manejo e</p><p>resultados, por isso exige muito cuidado e atenção por parte de terapeutas clinicamente inexperientes (Bailey,</p><p>2001). Ainda segundo essa autora, terapeutas cognitivos-comportamentais necessitam ter a habilidade de</p><p>fazer seus pacientes comprometerem-se e de criar uma aliança de trabalho colaborativa, a fim de capacitar</p><p>as crianças a implementar a terapia efetivamente.</p><p>DIAGNÓSTICO NA INFÂNCIA</p><p>A realização de um diagnóstico infantil muitas vezes é um desafio para o terapeuta, pois a criança neces</p><p>sita de ajuda do profissional para verbalizar e esclarecer seus sentimentos em relação aos problemas que relata.</p><p>Para auxiliá-la, é necessário que o terapeuta tenha conhecimento aprofundado das fases de desenvolvimento,</p><p>para que adapte a sua forma de manejo e auxílio a cada uma delas. Desta forma, também se faz necessária</p><p>a entrevista com pais, cuidadores e escola, para que se tenha uma visão ampliada do contexto de vida da</p><p>criança. É necessário que se inclua na fase de avaliação instrumentos de auxílio diagnóstico, como testes,</p><p>escalas e protocolos de coleta de dados. Eles auxiliam o clínico a organizar melhor os dados investigados.</p><p>É importante lembrar que os instrumentos auxiliam no diagnóstico, mas não substituem uma boa</p><p>avaliação e entrevista clínicas completas. Após a avaliação diagnostica, cabe ao terapeuta cognitivo-comporta-</p><p>mental elaborar a conceitualização cognitiva do caso, pois, além de auxiliar na organização e esclarecimento</p><p>dos dados, também será um direcionador do processo terapêutico.</p><p>ALGUNS TRANSTORNOS INFANTIS E APLICAÇÕES CLÍNICAS DA</p><p>TCC DA DEPRESSÃO</p><p>A depressão infantil passou a ser mais bem investigada a partir da década de 1970. Esse transtorno</p><p>despertou então interesse e preocupação nos profissionais de saúde, pois pode trazer comprometimentos</p><p>importantes nas funções sociais, emocionais e cognitivas, interferindo no desenvolvimento infantil e afe</p><p>tando não só a criança, mas também sua família e o grupo com o qual se relaciona (Miller, 2003; Reis &</p><p>Figueira, 2001).</p><p>No entanto, a depressão infantil não é facilmente reconhecível, uma vez que os sintomas diferem dos</p><p>apresentados pelos adultos (Scivoletto & Tarelho, 2002). Segundo os autores, ainda ocorrem grandes difi</p><p>culdades no que se refere ao diagnóstico, pois muitas vezes o quadro se apresenta junto de comorbidades, e</p><p>os sintomas manifestam-se de forma mascarada, sendo os mais frequentes: transtorno de déficit de atenção</p><p>e hiperatividade, baixa autoestima, tristeza, irritabilidade, distúrbios alimentares, medo, distúrbios do sono</p><p>e baixo rendimento escolar.</p><p>Os sintomas depressivos variam de acordo com a faixa etária da criança, e, como ela ainda não é capaz</p><p>de descrever seus sentimentos verbalmente, é necessário observar as formas de comunicação pré-verbal, tais</p><p>Te r a pia c o g n it t v o -c o mpo r t a me n t a l pa r a c r ia n ç a s 469</p><p>como a expressão facial, produções gráficas, súbitas mudanças de comportamento e postura corporal, entre</p><p>outras (Baptista, 2000). Segundo Marcelli (1998), os sinais da presença da depressão infantil são variados</p><p>enenhum deles deve ser observado isoladamente, sendo necessário analisar sua conjunção e a durabilidade</p><p>dos episódios.</p><p>A depressão infantil parece estar mais comumente associada a privações afetivas, circunstâncias fami</p><p>liares adversas e estressores psicossociais. Na medida em que a depressão interfere diretamente nas fases de</p><p>desenvolvimento infantil, são muito importantes o diagnóstico e tratamento precoces, já que as repercussões</p><p>da doença são graves e sérias (Harrington, Fudge, Rutter, Pickles, & Hill, 1990).</p><p>A farmacoterapia é uma parte importante do tratamento da depressão na criança e no adolescente. Ela</p><p>deve fazer parte de uma estratégia terapêutica mais ampla, pautada em uma exaustiva avaliação psiquiátrica</p><p>da criança (Bailey, 2001). Além disso, as diversas formas de psicoterapia e a orientação para pais e professores</p><p>são também partes fundamentais do tratamento. Na última década, viu-se uma grande elaboração de estudos</p><p>que validam o modelo e a eficácia da terapia cognitiva no tratamento da depressão infantil (Caminha ÒC</p><p>Caminha, 2007).</p><p>Em relação à TCC, já na primeira sessão é importante que o terapeuta esclareça para a criança o que</p><p>é um psicólogo, bem como qual o papel da criança no processo, a necessidade da inclusão dos pais no tra</p><p>tamento e, possivelmente, da escola. Todo esse manejo deve ser feito com todo cuidado, respeitando a faixa</p><p>etária da criança, sempre estabelecendo uma boa aliança terapêutica e enfatizando o sigilo entre paciente e</p><p>terapeuta (Bailey, 2001; Caminha & Caminha, 2007). Os autores também sugerem uma boa aliança com</p><p>os pais e que se enfatize a importância de seu engajamento no tratamento da criança.</p><p>Além disso, a sessão com a criança deve seguir o modelo cognitivo com adultos. Ela deve ser estrutu </p><p>rada, utilizando-se do registro de humor (carinhas, termômetro, vulcão, baralho dos sentimentos), elaboração</p><p>da agenda, verificação da tarefa de casa e resumo da sessão. Não se pode esquecer da utilização de técnicas</p><p>lúdicas, específicas a cada fase do desenvolvimento, em cada uma das etapas da sessão, visando ao melhor</p><p>entendimento e engajamento da criança na terapia.</p><p>Figura 28.1 - Baralho dos Sentimentos</p><p>470 Ma n u a l Pr á t ic o d e Te r a pia Co g n it iv o -Co mpo r t a me n t a l</p><p>O automonitoramento, programa de atividades prazerosas, treinamento de habilidades sociais, treina</p><p>mento de resolução de problemas, registro de pensamentos disfuncionais (RJPD), modelação e treinamento</p><p>de pais são alguns exemplos de técnicas a serem utilizadas em crianças depressivas.</p><p>Figura 28.2 - Modelo cognitivo da depressão (Bailey, 2001)</p><p>ANSIEDADE</p><p>Ansiedade patológica ocorre quando o indivíduo superestima a probabilidade de um evento ruim</p><p>ocorrer (catastrofizaçáo) ou a severidade de um evento occorrido. Por exemplo, uma criança que não quer</p><p>Te r a pia c o g n it t v o -c o mpo r t a me n t a l pa r a c r ia n ç a s 471</p><p>ir à escola pode pensar: “eu pareço um idiota, isto será um desastre, eu não sobreviverei a isto, ninguém me</p><p>ajudará”. Dessa forma, há uma avaliação cognitiva distorcida negativamente, na qual a criança está focada</p><p>em si obsessiva e hipercriticamente (Bailey, 2001).</p><p>Os transtornos de ansiedade representam uma das formas mais comuns de psicopatologia infantil</p><p>(Chu & Harrison, 2007; Spence, 1998). Eles estão associados a várias consequências negativas em termos</p><p>sociais, escolares e de ajustamento pessoal. Sua manifestação nem sempre é passageira, e seus sintomas e</p><p>efeitos, se não tratados, podem persistir na adolescência e na fase adulta (Keller et ai, 1992).</p><p>Além disso, problemas de ansiedade na infância são fatores de risco para outras formas de psicopa</p><p>tologia, como transtornos de conduta, transtornos de humor, depressão e tentativa e efetivação de suicídio</p><p>(Kovacs, Gatsonis, Paulauskas, & Richards, 1989). A cronicidade dos transtornos de ansiedade associa-se a</p><p>vários problemas sociais, como a dependência de adultos em situações sociais, a dificuldade em resolver pro</p><p>blemas, a impopularidade e o desenvolvimento de fracos relacionamentos amorosos quando adultos (Allen,</p><p>Leonard, & Swedo, 1995; Messer & Beidel, 1994).</p><p>A avaliação da ansiedade infantil, de um modo geral, é feita por meio de questionários de autorrelato,</p><p>ou relato de pais e professores, checklists, escalas e entrevistas padronizadas.</p><p>Para Bailey (2001), a terapia cognitivo-comportamental para crianças ansiosas pode ser construída</p><p>em torno da formulação do problema. Por exemplo, Um menino que deve voltar à escola após uma doença</p><p>pode ter sentimentos de impotêntcia, imagens ou pensamentos desastrosos de inabilidade em voltar para a</p><p>escola; ele pode, através dessa evitação, manter e aumentar seus medos. A conceitualizaçáo cognitiva ajudará</p><p>a identificar antecedentes e consequências desse comportamento evitativo, assim como respostas emocionais</p><p>e fisiológicas, aliadas a pensamentos, e imagens relacionadas à situação específica da criança em particular.</p><p>Além disso, a autora sugere a utilização do registro de pensamentos disfuncionais (thought diary) e sua</p><p>modificação, ensinando a criança a classificar seu desconforto em uma escala de zero a dez, com o objetivo</p><p>de visualizar, reconhecer e tornar seus pensamentos mais funcionais.</p><p>472 Ma n u a l Pr á t ic o d e Te r a pia Co g n it iv o -Co m po r t a me n t a l</p><p>TRANSTORNOS ALIMENTARES</p><p>Os transtornos alimentares normalmente apresentam seus primeiros sintomas durante a infância e a</p><p>adolescência (Bryant-W augh & Lask, 1995). Existem transtornos que ocorrem precocemente na infância e</p><p>que estão ligados à relação da criança com a alimentação, embora esta relação não esteja associada à preo</p><p>cupação com sua imagem corporal, porém esta condição poderá influenciar no desenvolvimento da criança</p><p>(Gmitrowicz & Kucharska, 1994). Na primeira infância pode-se encontrar os transtornos de pica e de</p><p>ruminação Um pouco mais tarde é possível encontrar os transtornos de anorexia nervosa e bulimia nervosa.</p><p>De especial interesse para os profissionais envolvidos com o atendimento de crianças e adolescent es são as</p><p>chamadas síndromes parciais de anorexia e bulimia nervosa e a categoria diagnostica recentemente descrita</p><p>denominada transtorno da compulsão alimentar periódica (Sokol, Steinberg, &: Zerbe, 1998).</p><p>Segundo Sokol et al. (1998), o transtorno de alimentação da primeira infância refere-se a uma difi</p><p>culdade em alimentar-se adequadamente iniciada antes dos seis anos de vida, período no qual os sintomas</p><p>aparecem em forma de dificuldade de ganho de peso adequado à idade ou perda relevante do mesmo. É</p><p>importante lembrar que se deve realizar uma avaliação clínica completa para verificar se os sintomas não estão</p><p>relacionados a alguma condição médica geral ou a algum outro transtorno psiquiátrico ou mesmo à falta de</p><p>alimentos. É necesário fazer uma avaliação dos pais e de fatores psicossociais que estejam contribuindo para</p><p>o desenvolvimento e a manutenção do problema (Appolinário & Claudino, 2000).</p><p>A pica é a ingestão persistente de substâncias não nutritivas, inadequadas para o desenvolvimento</p><p>infantil e que não fazem parte de uma prática aceita culturalmente. As substâncias mais frequentemente</p><p>consumidas são: terra, barro, cabelo, alimentos crus, cinzas de cigarro e fezes de animais (Sokol et al., 1998).</p><p>Para Appolinário e Claudino (2000), atrasos no desenvolvimento, retardo mental e história familiar de pica</p><p>são condições que lhe podem estar associadas. Várias complicações clínicas podem ocorrer, principalmente</p><p>relacionadas ao sistema digestivo e a intoxicações ocasionais, dependendo do agente ingerido.</p><p>Já o transtorno de ruminação inclui episódios repetidos de regurgitação (ou remastigação) que não</p><p>podem ser explicados por nenhuma condição médica. As principais complicações médicas decorrentes desta</p><p>condição podem ser desnutrição, perda de peso, alterações do equilíbrio hidroeletrolítico, desidratação e</p><p>morte (Sokol et al., 1998).</p><p>Te r a pia c o g n it t v o -c o mpo r t a me n t a l pa r a c r ia n ç a s 473</p><p>A Anorexia Nervosa (AN) pode ocorrer em crianças em idade escolar, e os sintomas aparecem como</p><p>alterações de apetite e perturbações da imagem corporal, porém, nesta fase, os quadros mais típicos de</p><p>transtornos alimentares sáo mais raros. As causas mais estudadas e aceitas para explicar o aparecimento e a</p><p>continuidade dos transtornos alimentares é o modelo multifatorial, baseado na hipótese de que vários fatores</p><p>biológicos, psicológicos e sociais estejam envolvidos e inter-relacionados (Appolinário & Claudino, 2000).</p><p>TRANSTORNOS DE CONDUTA (TC)</p><p>O transtorno de conduta é um dos mais frequentes na infância e um dos principais motivos de enca</p><p>minhamento ao psiquiatra infantil (Robins, 1991). Neste transtorno, apresentam-se comportamentos que</p><p>incomodam e perturbam, além de envolvimento em atividades perigosas e até mesmo ilegais. As crianças não</p><p>demonstram sofrimento psíquico ou constrangimento com as próprias atitudes, e parecem não se importar</p><p>em ferir os sentimentos das pessoas ou de desrespeitar seus direitos. Nesse sentido, seu comportamento</p><p>impacta mais os outros do que à si mesmo (Bordin & Offord, 2000).</p><p>Ainda conforme Bordin e Offord (2000), certos comportamentos, como mentir e matar aula, podem</p><p>ser observados no curso do desenvolvimento normal de crianças e adolescentes. Para diferenciar normalidade</p><p>de psicopatologia é importante que se verifique se esses comportamentos ocorrem esporadicamente e de</p><p>modo isolado ou se constituem síndromes, representando um desvio do padrão de comportamento esperado</p><p>para pessoas da mesma idade e sexo em determinada cultura.</p><p>Basicamente, de acordo com Pergher, Schneider e Melo (2007), a criança que apresenta TC tem uma</p><p>visão de si como alguém forte e autônomo, e uma visão dos outros como “trouxas” ou exploradores (portanto</p><p>passíveis de serem maltratados). Essas crianças parecem não se importar com vínculos afetivos e agem por</p><p>questões de custo-benefício em razão própria.</p><p>Figura 28.3 - Modelo Cognitivo do transtorno de conduta (Pergher et al., 2007)</p><p>474 Ma n u a l Pr á t ic o d e Te r a pia Co g n it iv o -Co mpo r t a me n t a l</p><p>Com relação ao tratamento, é fundamental iniciar as sessões com os pais, pois, fundamentalmente,</p><p>o modo como eles agirem com seus filhos reforçará ou não os comportamentos disfuncionais do TC. Rea</p><p>lizar uma boa aliança com os pais é fundamental, uma vez que, juntos, terapeuta e pais deverão analisar o</p><p>comportamento disfuncional dos filhos e elaborar condutas que auxiliem na modificação de tais comporta</p><p>mentos, tornando-os</p><p>funcionais (Bailey, 2001). Nas sessões com a criança, é fundamental que o terapeuta</p><p>estabeleça um vínculo bastante forte e uma atmosfera agradável para a criança, não se pode esquecer que se</p><p>tratam de crianças teimosas, negativistas e que, normalmente, não querem estar ali (Pergher et al., 2007).</p><p>A modelação para as questões de ordem dos pais e para a obediência dos filhos é uma técnica muito</p><p>bem vinda. Outros exemplos de técnicas daTCC são a psicoeducação quanto ao comportamento da criança,</p><p>a técnica de economia de fichas (para reforçar e demonstrar quais são os comportamentos pretendidos e quais</p><p>não são), o reconhecimento da forma como a criança pensa seus problemas através de trabalhos lúdicos,</p><p>treinamento da habilidade de resolução de problemas, entre outros.</p><p>TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE</p><p>Atualmente existem muitos estudos a respeito do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade</p><p>(TDAH), possivelmente por ser um dos transtornos mais comuns apresentados na infância (Kunrath, 2006;</p><p>Pereira, Araújo, &; Mattos, 2005; Phelan, 2005; Rohde &: Mattos, 2003; Tuchtenhagen, 2007). Trata-se</p><p>de uma síndrome clínica caracterizada basicamente por déficit de atenção, hiperatividade e impulsividade.</p><p>Crianças com este diagnóstico apresentam frequentemente prejuízos no desempenho acadêmico e social,</p><p>pois têm dificuldade em se organizar, em manter atenção em sala de aula, em realizar deveres escolares, em</p><p>obedecer a regras, em ter autocontrole e em esperar a sua vez de falar e agir (Phelan, 2005; Rohde, Filho,</p><p>Benetti, Gallois, &: Kieling, 2004).</p><p>Esse transtorno é frequentemente associado a outros transtornos que constituem as comorbidades,</p><p>entre eles, os transtornos de conduta, transtorno opositivo desafiante, transtornos de humor e de ansie</p><p>dade (Possa, Spanemberg, &: Guardiola, 2005; Rohde & Halpern, 2004). As comorbidades podem ser</p><p>encontradas em de 30% a 50% dos casos, aumentando a possibilidade de distúrbio de conduta, atividades</p><p>delinquentes ou violação dos direitos alheios, e um terço experimenta ou faz uso de substâncias psicoativas</p><p>precocemente. As pessoas com TDAH são mais propensas ao uso de drogas do que as que não apresentam</p><p>o distúrbio (Nayara, 2003).</p><p>Outro fator importante é a dificuldade da família, principalmente dos pais e das pessoas próximas</p><p>dessas crianças, no manejo de situações específicas, tais como os deveres de casa, as tarefas domésticas, a</p><p>higiene pessoal e o estabelecimento de regras. Por este motivo, a ajuda especializada de profissionais da área</p><p>da Saúde pode auxiliar os familiares e os professores, contribuindo para um melhor desenvolvimento cogni</p><p>tivo e funcional da criança com TDAH (Anastopoulos, Farley, & Rhoads, 2008; Rohde &: Halpern, 2004).</p><p>Pesquisas nacionais e internacionais utilizando os critérios do DSM-IV relatam prevalência de 3% a</p><p>7% de incidência em crianças em idade escolar, com maior frequência para o sexo masculino. A proporção</p><p>entre os sexos varia de 2:1 em estudos populacionais, chegando a 9:1 em estudos clínicos (Rohde & Halpern,</p><p>2004; Tuchtenhagen, 2007).</p><p>O diagnóstico de uma criança com TDAH é um processo desgastante, uma vez que é essencialmente</p><p>clínico, não existindo até o momento testes físicos, psicológicos ou neurológicos que, por si só, sejam</p><p>capazes de provar a presença do TDAH em um indivíduo (Phelan, 2005). Por outro lado, exames clínicos</p><p>Te r a pia c o g n it iv o -c o mpo r t a me n t a l pa r a c r ia n ç a s 475</p><p>recentes (físicos, avaliação cognitiva e testes neurológicos), alguns inventários e escalas, como a Escala de</p><p>déficit de atenção/hiperatividade — versão para professores (SNAP-MTA IV) e a avaliação psicológica, neu</p><p>rológica e cognitiva podem contribuir para o diagnóstico do TDAH. Porém a história de vida do paciente,</p><p>relatada através do próprio sujeito, dos pais e dos professores é o instrumento diagnóstico mais importante.</p><p>O relato precisa ser detalhado, com o relato dos prejuízos nos diferentes locais que a crianças frequenta</p><p>(Pereira et al.y 2005; Phelan, 2005). Conforme Rodhe e Halpern (2004), o diagnóstico do TDAH é fun </p><p>damentalmente clínico, baseando-se em critérios operacionais clínicos claros e bem definidos, provenientes</p><p>de sistemas classificatórios, como o DSM-IV-TR ou a CID-10.</p><p>Em relação ao tratamento, a farmacoterapia e a psicoterapia cognitivo-comportamental são as possi</p><p>bilidades mais indicadas às crianças com TDAH (Knapp, 2004). Podem-se encontrar divergências a respeito</p><p>da eficácia de alguns tipos de intervenções. Após o diagnóstico deste transtorno, é muito importante, a partir</p><p>do olhar da Terapia Cognitivo-Comportamenal (TCC), que os pais, os professores e a criança possam ser</p><p>educados em relação ao TDAH e àTCC. A maior parte da eficácia deste conhecimento está no aprendizado</p><p>que os envolvidos terão sobre como se comportar e ajudar os pacientes com déficit de atenção e hiperati</p><p>vidade. O tratamento de crianças com TDAH exige um esforço coordenado (sessões com pais, professores</p><p>e crianças), um trabalho multidisciplinar, envolvendo profissionais da área pedagógica, médica e da Saúde</p><p>Mental em conjunto com os pais (Araújo & Silva, 2003; Rohde & Halpern, 2004).</p><p>O tratamento cognitivo-comportamental inclui: treinamento dos pais quanto à verdadeira natureza</p><p>do TDAH e desenvolvimento de estratégias de controle efetivo do comportamento; esclarecimento a pro</p><p>fessores a respeito do transtorno; um programa pedagógico adequado, terapia individual e, em alguns casos,</p><p>familiar, para evitar o aumento de conflitos na família (Bellé, Bosa, & Pelisoli, 2007).</p><p>O controle do comportamento é uma intervenção importante para crianças com TDAH. O sucesso</p><p>na sala de aula frequentemente exige uma série de intervenções. A maioria das crianças com TDAH pode</p><p>permanecer na classe regular, com pequenos arranjos na arrumação da sala, utilização de um auxiliar ou</p><p>programas especiais a serem utilizados fora da sala de aula (Kunrath, 2006).</p><p>Algumas técnicas sugeridas são: economia de fichas; conceitualização cognitiva; registro dos pensa</p><p>mentos disfuncionais, auxiliando a criança a visualizar e compreender seu problema; teatro com fantoches,</p><p>para auxiliar a criança com resolução de problemas; desenhos, para elucidar suas expectativas; filmes, para</p><p>ilustrar alguns comportamentos que acontecem por distração; tarefas para casa; dramatizações; livrinho,</p><p>para a confecção de comportamentos desejáveis no lugar de comportamentos indesejáveis; uma agenda,</p><p>para que o dia da criança seja planejado e organizado, diminuindo os prejuízos causados pela impulsividade,</p><p>entre outros.</p><p>CONCLUSÃO</p><p>Como vimos, a TCC para crianças baseia-se na TCC para adultos, tanto a organização em sessões</p><p>estruturadas quanto as técnicas a serem utilizadas, mas a diferença básica entre elas é a forma como a popu</p><p>lação infantil é abordada. Portanto, o atendimento a crianças vai além do conhecimento das técnicas e da</p><p>abordagem, faz-se necessário que o terapeuta conheça muito bem as peculiaridades do desenvolvimento</p><p>infantil e que tenha interesse no mundo lúdico, a fim de tornar as tarefas e técnicas mais claras e gratificantes</p><p>para a criança, conseguindo então maior vínculo e comprometimento por parte do paciente.</p><p>476 Ma n u a l Pr á t ic o d e Te r a pia Co g n it iv o -Co mpo r t a me n t a l</p><p>Além disso, deve disponibilizar-se a trabalhar em conjunto com pais, cuidadores e escola, pois somente</p><p>um trabalho em conjunto poderá dar o suporte necessário para que a criança mude suas crenças, pensamentos</p><p>e comportamento para modelos mais funcionais.</p><p>Te r a pia c o g n it t v o -c o mpo r t a me n t a l pa r a c r ia n ç a s 477</p><p>REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS</p><p>Allen, A. J., Leonard, H., & Swedo, S. E. (1995). 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Doutoranda em Psicologia/PUCRS – Núcleo de Estudos e Pesquisa</p><p>em Trauma e Estresse – NEPTE.</p><p>d Professora adjunta no Programa de Pós-Graduação em Psicologia/PUCRS – Núcleo de Estudos e Pesquisa</p><p>em Trauma e Estresse – NEPTE.</p><p>e Professor adjunto no Programa de Pós-Graduação em Psicologia/PUCRS – Núcleo de Estudos e Pesquisa</p><p>em Trauma e Estresse – NEPTE.</p><p>Instituição: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul</p><p>Suporte Financeiro: CNPq e CAPES</p><p>4</p><p>BEATRIZ OLIVEIRA MENEGUELO LOBO, ALICE EINLOFT BRUNNET, LUIZIANA SOUTO SCHAEFER, ADRIANE XAVIER ARTECHE,</p><p>CHRISTIAN HAAG KRISTENSEN</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):3-14</p><p>Resumo</p><p>Eventos estressores traumáticos são comumente vivenciados por crianças e adolescentes e podem gerar</p><p>consequências negativas para a saúde mental dos indivíduos. Apesar de o Transtorno de Estresse Pós-</p><p>Traumático (TEPT) ser o quadro mais estudado nessa população, crianças e adolescentes também podem</p><p>apresentar outros sintomas associados à vivência do evento traumático. Por isso, a intervenção psicoterápica</p><p>realizada deve abarcar a ampla gama de sintomas apresentados. O presente estudo tem como objetivo</p><p>fornecer uma visão atual acerca da Terapia Cognitivo-Comportamental Focada no Trauma (TCC-FT) para</p><p>crianças e adolescentes expostos a situações traumáticas. Trata-se de uma modalidade de tratamento</p><p>focal, flexível e de curto prazo, tendo como principal característica a inclusão e participação ativa dos pais/</p><p>cuidadores durante todo o tratamento. A TCC-FT tem sido uma opção clínica válida e eficaz para o trabalho</p><p>com casos complexos, em que o risco de violência não é completamente eliminado, ou quando a</p><p>sintomatologia é grave, ampla e variada.</p><p>Palavras Chave: Transtorno de Estresse Pós-Traumático; Terapia Cognitivo-Comportamental; Infância;</p><p>Adolescência.</p><p>Abstract</p><p>Traumatic stressor events are commonly experienced by children and adolescents and can generate</p><p>negative consequences for the mental health of the individuals. In spite of Post-Traumatic Stress Disorder</p><p>(PTSD) being the most studied condition in this population, children and adolescents can also present</p><p>other symptoms associated to the experiencing of the traumatic event. For this reason, the</p><p>psychotherapeutic intervention performed, must encompass the wide range of symptoms presented.</p><p>The present study has as its aim to provide a current view about Trauma Focused Cognitive Behavioral</p><p>Therapy (TFCBT) for children and adolescents, exposed to traumatic situations. This is a type of focal,</p><p>flexible and short-term treatment. Its main characteristic is the inclusion and active participation of</p><p>parents / caregivers throughout the entire treatment. TFCBT has been a valid and effective clinical option</p><p>to work with complex cases, where the risk of violence is not completely eliminated, or when the</p><p>symptomatology is serious, wide and varied.</p><p>Keywords: Post-Traumatic Stress Disorder; Cognitive-Behavioural Therapy; Childhood, Adolescence.</p><p>5</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):3-14</p><p>Introdução</p><p>Eventos estressores traumáticos vivenciados durante a infância e a adolescência podem acarretar</p><p>sérios prejuízos para as vítimas, com grande impacto na qualidade de vida, no convívio social e familiar1.</p><p>A experiência de tais situações já nos primeiros anos de vida é bastante comum e, frequentemente, diz</p><p>respeito a experiências adversas persistentes ou recorrentes e tipicamente de natureza interpessoal2.</p><p>Dados epidemiológicos em população norte-americana sugerem que aproximadamente 50% das crianças</p><p>e dos adolescentes passarão por um evento traumático durante essa etapa da vida3,4. No Brasil, há uma</p><p>escassez quanto a estudos de prevalência de exposição a eventos traumáticos, e, geralmente, as pesquisas</p><p>investigam os índices de violência5. Por exemplo, em estudo de prevalência realizado com 480 crianças</p><p>brasileiras, estimou-se que 20% sofreram violência física por parte dos cuidadores e 18,8% presenciaram</p><p>violência doméstica6.</p><p>Eventos traumáticos múltiplos e/ou recorrentes, como, por exemplo, exposição crônica a situações</p><p>de violência doméstica ou abuso sexual, são diferenciados na literatura daqueles traumas únicos, como</p><p>acidentes automobilísticos, principalmente no que se refere à sintomatologia desenvolvida. Sugere-se</p><p>que a exposição crônica a um estressor pode causar uma sintomatologia mais complexa, incluindo estados</p><p>dissociativos, desregulação emocional, estratégias de coping desadaptativas, enquanto que a exposição</p><p>a eventos únicos está relacionada a sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e a sintomas</p><p>relacionados ao trauma7,8.</p><p>O TEPT é o transtorno mais estudado após a exposição traumática em crianças e adolescentes9,8.</p><p>Segundo a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais10 (DMS-5), o</p><p>transtorno é caracterizado por (1) exposição a um evento traumático, (2) presença de sintomas intrusivos</p><p>(pesadelos, flashbacks, etc.), (3) evitação de estímulos associados ao trauma, (4) alterações negativas no</p><p>humor e nas cognições associadas ao evento, e (5) aumento na reatividade fisiológica (como hipervigilância,</p><p>resposta de sobressalto exagerada, problemas de sono, etc.)10. Considerando que pesquisas evidenciaram</p><p>que os critérios diagnósticos utilizados anteriormente pelo DSM-IV-TR eram excessivamente rigorosos</p><p>para crianças11, foram realizadas modificações no DSM-V com o objetivo de considerar especificidades</p><p>desenvolvimentais na apresentação do quadro, como a inclusão de uma categoria diagnóstica específica</p><p>para crianças pré-escolares10. No entanto, pesquisas ainda são necessárias para a verificação da adequação</p><p>da nova estrutura diagnóstica do TEPT em crianças e adolescentes.</p><p>A dificuldade do diagnóstico do TEPT na infância foi refletida em estudos epidemiológicos, os</p><p>quais apresentam resultados variados. Um estudo norte-americano (n=1.420) estimou a prevalência de</p><p>TEPT em crianças e adolescentes em 0,5% e de sintomas pós-traumáticos em 2,2% ao longo da vida12. Uma</p><p>pesquisa feita no Rio de Janeiro, Brasil, com uma amostra de crianças com idades semelhantes, no entanto,</p><p>estimou a prevalência de sintomas pós-traumáticos em 6,5%13. Outros estudos com população geral</p><p>apresentaram taxas de diagnóstico de TEPT que variaram entre 0,4% e 9%14,15. Os estudos epidemiológicos</p><p>TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL FOCADA NO TRAUMA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE EVENTOS TRAUMÁTICOS</p><p>6</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):3-14</p><p>sugerem, de forma geral, que uma parcela significativa de indivíduos que foram expostos a eventos</p><p>traumáticos não desenvolve TEPT9.</p><p>Nesse sentido, os fatores associados ao desenvolvimento do TEPT em crianças e adolescentes</p><p>podem ser compreendidos a partir de um somatório de fatores individuais e ambientais, que podem ser</p><p>categorizados em fatores que ocorrem antes, durante e após o trauma16,17. Entre os fatores de risco que</p><p>apresentaram tamanho de efeito moderado a alto em recente estudo de metanálise9, encontram-se (1)</p><p>fatores pré-traumáticos: histórico de traumas prévios, baixo QI, problemas psicológicos individuais e</p><p>parentais; (2) fatores peritraumáticos: severidade do trauma e percepção de ameaça à vida; e (3) fatores</p><p>pós-traumáticos: baixo suporte social, funcionamento familiar disfuncional e isolacionismo. Além disso,</p><p>alguns fatores do processamento cognitivo, como a supressão de pensamentos intrusivos, podem levar</p><p>ao desenvolvimento da psicopatologia9.</p><p>Apesar de o TEPT ser o transtorno mental mais relacionado à vivência de situações traumáticas,</p><p>crianças e adolescentes vítimas de traumas podem desenvolver outros quadros psicopatológicos e uma</p><p>ampla variabilidade de sintomas18. Entre eles, encontram-se sintomas de ansiedade e depressão,</p><p>comportamento suicida, problemas externalizantes, comportamento sexual inadequado para a faixa de</p><p>desenvolvimento, entre outros7,19,20. Os sintomas de ansiedade podem ser manifestados através de</p><p>comportamentos regressivos, de baixo rendimento escolar, medo de estímulos associados ao trauma21.</p><p>Os comportamentos sexuais inadequados são comuns em crianças vítimas de abuso sexual e podem</p><p>envolver masturbação frequente, brincadeiras sexuais persistentes, entre outros22,23. Crianças e</p><p>adolescentes expostos a situações traumáticas podem apresentar também ideação suicida. Wherry et</p><p>al.20 encontraram uma prevalência de 45,3% de comportamento suicida em uma amostra de crianças que</p><p>foram sexualmente abusadas. Tendo em vista o impacto que a vivência de situações traumáticas pode</p><p>acarretar na saúde e na qualidade de vida das vítimas, além das implicações legais e socioeconômicas</p><p>envolvidas, esforços têm sido realizados no desenvolvimento e aprimoramento de estratégias de</p><p>prevenção, avaliação, intervenção e tratamento nesses casos.</p><p>O tratamento psicoterápico de crianças e adolescentes vítimas de eventos traumáticos deve abarcar</p><p>a ampla gama de sintomas associados. Uma revisão sistemática realizada pela Cochrane Collaboration,</p><p>organização que visa fornecer dados de evidência para diversos tratamentos na área da saúde, investigou</p><p>a eficácia das psicoterapias para crianças</p><p>e adolescentes com TEPT25. Os tratamentos investigados foram</p><p>a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), a terapia de exposição, a psicoterapia de orientação</p><p>psicodinâmica, a terapia narrativa, o aconselhamento e o Eye Movement Desensitization and Reprocessing</p><p>(EMDR). Os resultados do estudo demonstraram que existem evidências de redução dos sintomas de</p><p>TEPT, depressão e ansiedade em todos os tratamentos psicológicos investigados; no entanto, a TCC foi o</p><p>único tratamento psicoterápico que demonstrou efetividade quando comparada a grupos controles, com</p><p>BEATRIZ OLIVEIRA MENEGUELO LOBO, ALICE EINLOFT BRUNNET, LUIZIANA SOUTO SCHAEFER, ADRIANE XAVIER ARTECHE,</p><p>CHRISTIAN HAAG KRISTENSEN</p><p>7</p><p>resultados mantidos após um mês de follow up25. Nesse sentido, o presente estudo tem como principal</p><p>objetivo fornecer uma visão atual acerca da TCC para crianças e adolescentes expostos a situações</p><p>traumáticas, destacando a Terapia Cognitivo-Comportamental Focada no Trauma (TCC-FT), a qual tem</p><p>recebido grande destaque no tratamento desses casos. Inicialmente, são abordados aspectos relativos à</p><p>avaliação de crianças vítimas de situações traumáticas.</p><p>Avaliação</p><p>Considerando a complexa sintomatologia apresentada por crianças e adolescentes expostos a</p><p>situações traumáticas, a avaliação psicológica completa e detalhada é crucial a fim de estruturar</p><p>intervenções psicoterápicas adequadas para cada indivíduo26. Em primeiro lugar, o clínico deve assegurar-</p><p>se de que a criança não está sendo exposta a situações traumáticas; em caso positivo, deve acionar sistemas</p><p>de saúde, segurança pública ou justiça a fim de proteger a criança ou o adolescente em avaliação27. Além</p><p>disso, situações como o uso de substâncias e ideação suicida devem ser investigadas e, quando necessário,</p><p>devem ser realizadas intervenções imediatas28.</p><p>Cohen, Mannarino e Deblinger28 sugerem que a avaliação de crianças e adolescentes deve incluir</p><p>os seguintes domínios: processamento cognitivo, relacionamentos interpessoais, regulação emocional,</p><p>funcionamento familiar, sintomas relacionados ao trauma e sintomas somáticos. Para isso, o avaliador</p><p>deve coletar dados com diversas fontes de informação, como responsáveis, professores e outros</p><p>profissionais da saúde29. O avaliador pode fazer uso de escalas, entrevistas estruturadas e outras</p><p>ferramentas de avaliação psicológica, desde que os dados sejam interpretados dentro de cada contexto e</p><p>não substituam a entrevista com a criança e as outras fontes de informação30.</p><p>Alguns instrumentos para a avaliação da sintomatologia pós-traumática em crianças e adolescentes</p><p>estão disponíveis em língua portuguesa. A entrevista estruturada Kiddie Schedule for Affective Disorders</p><p>and Schizophrenia for School-Age Children – Present and Lifetime Version (K-SADS-PL31; versão brasileira</p><p>por Brasil, 200332) e o Inventário de Comportamentos da Infância e Adolescência, respondido pelos</p><p>responsáveis ou pelas crianças e pelos adolescentes (Child Behavior Checklist – CBCL33; versão brasileira</p><p>por Bordin, Mari, & Caeiro, 199534), podem ser utilizados para a investigação dos sintomas de TEPT e outros</p><p>transtornos. No entanto, há uma escassez de instrumentos que abarquem a amplitude da sintomatologia</p><p>relacionada ao trauma na infância e adolescência35, estando disponíveis apenas escalas que podem ser</p><p>utilizadas para a investigação de sintomas associados, como escalas para sintomas depressivos (Children’s</p><p>Depression Inventory36; versão brasileira por Gouveia, Barbosa, Almeida, & Gaião, 199537) e ansiosos</p><p>(Spence’s Children Anxiety Scale38; versão em português por DeSousa, Petersen, Behs, Manfro, & Koller,</p><p>201239).</p><p>TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL FOCADA NO TRAUMA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE EVENTOS TRAUMÁTICOS</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):3-14</p><p>8</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):3-14</p><p>Terapia Cognitivo-Comportamental Focada no Trauma</p><p>A literatura aponta que o tratamento psicológico focado no trauma é considerado o tratamento de</p><p>primeira linha para crianças e adolescentes vítimas de eventos traumáticos, com sólidas evidências de</p><p>eficácia40,41. Diretrizes para o tratamento psicoterápico para crianças e adolescentes vítimas de eventos</p><p>traumáticos apontam para a necessidade de (1) considerar a severidade e o grau de prejuízo referente aos</p><p>sintomas pós-traumáticos; (2) integrar intervenções para comorbidades no tratamento psicoterápico,</p><p>quando necessário; (3) incluir pais ou cuidadores no tratamento; e (4) considerar prejuízo funcional como</p><p>marcador de resultados terapêuticos, assim como a redução dos sintomas18,41,42.</p><p>Estudos de metanálise recentes demonstram a eficácia da TCC e da TCC-FT40,43,44,25 para crianças e</p><p>adolescentes expostos a situações traumáticas, com redução significativa em sintomas de TEPT, depressão</p><p>e comportamentos internalizantes. Estudos com TCC-FT têm demonstrado que os ganhos terapêuticos</p><p>para crianças e pais/cuidadores se mantêm em follow-ups de 1 e 2 anos45,46. Existem evidências de eficácia</p><p>para a TCC-FT para crianças vítimas de variados tipos de trauma, como violência urbana, terrorismo, violência</p><p>interpessoal, luto traumático, entre outros41.</p><p>A TCC-FT foi inicialmente desenvolvida para crianças vítimas de abuso sexual, mas tem sido</p><p>adaptada para vítimas de diversos tipos de traumas, como violência doméstica, violência urbana, terrorismo,</p><p>luto traumático, desastres naturais, entre outros46. É uma modalidade de tratamento focal, flexível e de</p><p>curto prazo, com cerca de 12 a 16 sessões com duração de 90 minutos cada47. A característica central da TCC-</p><p>FT é a inclusão e participação ativa dos pais/cuidadores durante todo o tratamento, quando possível. As</p><p>crianças e os cuidadores geralmente participam em sessões separadas paralelas durante os componentes</p><p>iniciais, seguidas de sessões conjuntas para reforçar conceitos, fortalecer a comunicação positiva, construir</p><p>um senso de confiança mútua e coesão e praticar as habilidades aprendidas nas sessões individuais. A</p><p>TCC-FT é direcionada para crianças e adolescentes com idades entre 3 e 17 anos que apresentem sintomas</p><p>relacionados ao trauma, como sintomas de TEPT, depressão e problemas comportamentais28. A TCC-FT é</p><p>baseada em componentes que incorporam intervenções direcionadas ao trauma através de princípios</p><p>cognitivo-comportamentais, familiares e humanistas. Esses componentes são focados no fortalecimento</p><p>de estratégias de coping, desenvolvimento de narrativas do trauma, estratégias de regulação emocional</p><p>e processamento cognitivo das experiências traumáticas28 (ver Figura 1).</p><p>Lang et al.48 publicaram um algoritmo com diretrizes para a indicação da TCC-FT, baseado em</p><p>dados de estudos anteriores. Nesse sentido, não existem evidências de indicação para a TCC-FT para</p><p>crianças e adolescentes que estejam em situações de risco, como exposição a situação traumática ou a</p><p>violência doméstica severa, presença de comportamentos de risco, risco de suicídio, problemas de</p><p>instabilidade de moradia, abuso de substâncias, transtorno bipolar e sintomas psicóticos sem tratamento</p><p>BEATRIZ OLIVEIRA MENEGUELO LOBO, ALICE EINLOFT BRUNNET, LUIZIANA SOUTO SCHAEFER, ADRIANE XAVIER ARTECHE,</p><p>CHRISTIAN HAAG KRISTENSEN</p><p>9</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):3-14</p><p>ou atuais, retardo mental grave, assim como crianças cujos cuidadores participantes da terapia sejam</p><p>abusivos ou apresentem abuso de substâncias e psicose atual ou sem tratamento48.</p><p>Figura 1. Componentes da TCC-FT (adaptado de Cohen, Mannarino, & Deblingler28).</p><p>TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL FOCADA NO TRAUMA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE EVENTOS TRAUMÁTICOS</p><p>10</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):3-14</p><p>Apesar de os componentes da TCC-FT serem apresentados em módulos separados, na prática</p><p>clínica os componentes são construídos através da interface entre eles. O julgamento clínico é crucial para</p><p>estabelecer o tempo de duração, a ordem temporal e a ênfase de cada componente no processo</p><p>terapêutico, sendo</p><p>para explicar a importância dos primeiros anos de vida</p><p>na constituição psíquica.</p><p>Assim, com o intuito de desvendarmos as questões que fo-</p><p>mentaram o deslizamento da infância ao infantil nos primórdios</p><p>da psicanálise, pesquisamos, por meio de alguns textos da obra</p><p>freudiana, o percurso realizado por Freud nessa elaboração.</p><p>Nesse caminho, percebemos que existem momentos em que essa</p><p>construção teórica assume contornos mais precisos. Ressalta-</p><p>mos, em especial, o momento em que a fantasia passa a ocupar</p><p>um lugar teórico relevante na compreensão da constituição do</p><p>psiquismo. Esse lugar consiste em atribuir à realidade psíquica</p><p>um valor de determinação antes atribuído apenas à realidade</p><p>material. Será nesse momento de valoração da realidade psíquica,</p><p>que Freud (1950[1892-1899]/1980) realiza uma mudança na</p><p>compreensão teórica do modo como os primeiros anos de vida</p><p>participam do processo de constituição psíquica. A fantasia é</p><p>reposicionada na metapsicologia e assume um lugar de destaque</p><p>na compreensão e na reconstrução do infantil em análise.</p><p>A partir de então, a consideração da fantasia enquanto ver-</p><p>dade psíquica confere ao infantil um estatuto que se estende para</p><p>-</p><p>culdade de compreensão coloca-se exatamente nesse ponto, pois</p><p>no psiquismo nos primórdios da constituição psíquica. Os sons,</p><p>os cheiros, as sensações táteis compõem as marcas mnêmicas</p><p>primordiais e estende-se para além delas.</p><p>Assim, pensar o infantil como um conceito psicanalítico</p><p>passa pela compreensão de uma infância que desliza da simples</p><p>cronologia e das experiências passíveis de narração à realidade</p><p>psíquica, e da fantasia como um elemento irrevogável da cons-</p><p>tituição do psiquismo.</p><p>Desse modo, na psicanálise, a infância cronológica não pode</p><p>ser confundida com o infantil reconstruído no discurso do anali-</p><p>sando no contexto da relação transferencial. Como um conceito</p><p>metapsicológico, o infantil não se dá a ver, mas se faz presente</p><p>no discurso e no modo como o analisando se põe em análise.</p><p>Ao estabelecer o determinismo inconsciente como sua refe-</p><p>de conhecimento distinto da psicologia e das outras ciências. É</p><p>nesse campo metapsicológico que inscrevemos a compreensão</p><p>psicanalítica do infantil.</p><p>Na psicanálise, infância e infantil estão remetidos a estru-</p><p>turas conceituais diversas. Enquanto a infância refere-se a um</p><p>tempo da realidade histórica, o infantil é atemporal e está reme-</p><p>tido a conceitos como pulsão, recalque e inconsciente. Assim, se</p><p>o infantil na psicanálise é constituído em referência aos conceitos</p><p>metapsicologia em seu afastamento e diferenciação ao tempo</p><p>da infância, embora que irrevogavelmente referido à mesma. O</p><p>infantil diz do modo peculiar de tomar a infância no trabalho de</p><p>análise, ou seja, como marca mnêmica recalcada, referente aos</p><p>primeiros anos de vida.</p><p>A propósito da preservação de seus fundamentos, podemos</p><p>Podemos dizer que a construção a posteriori do infantil em</p><p>análise não abandona propriamente a realidade histórica vivida</p><p>pela criança. Ao contrário, tomando emprestada a noção de</p><p>LeGuen (1991), podemos dizer que ela se apóia a posteriori</p><p>nessa realidade para se constituir a partir dela, transformando-a</p><p>completamente, mas já não é mais a mesma. Desse modo, a</p><p>possibilidade de realização do trabalho de análise passa pela</p><p>apropriação das nuances que aproximam e, ao mesmo tempo,</p><p>diferenciam o conceito de infância e o conceito do infantil.</p><p>A pré-história do infantil</p><p>Em “A interpretação dos sonhos”, Freud (1900/1980) conso-</p><p>lida a sua compreensão sobre o lugar da infância na constituição</p><p>do psiquismo. Mas, muito anteriormente, nos chamados escritos</p><p>pré-psicanalíticos, Freud já havia lançado e estabelecido as mar-</p><p>cas constituintes da noção do infantil. Na correspondência que</p><p>estabelece com Fliess (Freud, 1950 [1892-1899]/1980), a noção</p><p>-</p><p>bases lançadas por Freud nesse período subsidiaram e estiveram</p><p>presentes em suas elaborações teóricas posteriores.</p><p>Freud começa pelos acontecimentos da infância e sua im-</p><p>portância na constituição dos sintomas da histeria. Persegue cada</p><p>fato da infância de seus pacientes na busca da experiência cuja</p><p>traumática e originou os sintomas. Nesse momento, ele ainda</p><p>-</p><p>riências esquecidas. De certo modo, buscava o resgate mnêmico</p><p>o mais próximo possível da experiência vivida.</p><p>Embora aqui, ainda apareça uma suposição de que existe</p><p>uma infância a ser completamente resgatada, não podemos deixar</p><p>de considerar que o interesse pelo recalcado já aponta para a su-</p><p>posição de que a busca não é apenas do fato vivido, mas também</p><p>do fato não rememorado. Esse modo de aproximação que Freud</p><p>faz da infância, o afasta de uma reconstituição puramente factual</p><p>e o aproxima de uma reconstrução feita pelo próprio paciente</p><p>pela infância não fosse exclusividade do pensamento freudiano,</p><p>D.M.L.Zavaroni et al.</p><p>67</p><p>o modo de pensar e considerar a infância estabelece propriedades</p><p>No “Projeto para uma psicologia científica”1, Freud</p><p>(1950[1895]/1980) atribui às experiências infantis valor deter-</p><p>minante e fundante do psiquismo. Ele estabelece o desamparo</p><p>infantil e a busca de satisfação como elementos constituintes da</p><p>subjetividade. Será por meio da compreensão do psiquismo em</p><p>seus momentos iniciais, que Freud irá estabelecer o paradigma</p><p>que sustentará suas elaborações. Segundo ele, o corpo do bebê</p><p>impõe necessidades que o mesmo não tem como responder.</p><p>Essas necessidades exigem, por sua vez, uma</p><p>para que sejam satisfeitas. Impossibilitado de levar a cabo tal</p><p>ação, a única descarga possível ao bebê será o choro que se torna</p><p>signo de comunicação, pois traz até ele (o bebê) a proximidade</p><p>do outro que providenciará sua satisfação. É nas vicissitudes</p><p>dessas experiências que Freud situa a inscrição da pulsão na</p><p>constituição psíquica e aponta para um deslizamento que muda</p><p>o rumo das necessidades.</p><p>Na Carta 46, que consta nos “Extratos dos documentos diri-</p><p>gidos a Fliess” (Freud, 1950[1892-1899]/1980), aparece a noção</p><p>de transcrição que nos remete à metáfora da escrita na compre-</p><p>ensão do funcionamento psíquico. Essa metáfora será retomada</p><p>posteriormente na Carta 52 (Freud, 1950[1892-1899]/1980) e em</p><p>“Notas sobre o Bloco Mágico”, quando Freud (1925[1924]/1980)</p><p>irá representar o aparelho psíquico através da noção da inscrição</p><p>de traços mnêmicos inapagáveis e da possibilidade inesgotável</p><p>da realização de novas inscrições.</p><p>Nesse momento, Freud menciona duas noções fundamen-</p><p>tais: a inacessibilidade do material recalcado referente aos anos</p><p>iniciais da vida e a idéia de que, na passagem entre os diversos</p><p>períodos da vida, as cenas vividas nos períodos precedentes so-</p><p>frem uma “tradução”. Em relação a esse último aspecto, Freud</p><p>(1950[1892-1899]/1980) considera que o período referente aos</p><p>primeiros anos de vida é intraduzível e que, por isso, o despertar</p><p>de uma cena dessa fase leva à impossibilidade de tradução. Freud</p><p>valor de determinação dos sintomas. Mais que isso, ele atribuiu à</p><p>impossibilidade de tradução o desencadeamento dos sintomas.</p><p>Na Carta 52, Freud (1950[1892-1899]/1980) incorpora</p><p>-</p><p>namento psíquico. Com isso, traz outro estatuto para o lugar das</p><p>experiências que deixam traços. Nessa carta, a partir da idéia</p><p>do traço mnêmico, Freud discute o processo de transcrição das</p><p>inscrições deixadas no psiquismo pelas experiências infantis,</p><p>marcas</p><p>deixadas pelas experiências de prazer e desprazer que a criança</p><p>vivenciou. Percebemos, portanto, que já nesse momento das</p><p>elaborações teóricas de Freud, aparece a compreensão do in-</p><p>fantil em seu caráter de traço mnêmico recalcado e com valor</p><p>de determinação. Assim, se Freud, nesse momento, já considera</p><p>que o material psíquico é continuamente traduzido, podemos</p><p>pensar que o infantil já não pode ser considerado como uma</p><p>transposição literal das experiências vividas.</p><p>Mas, se por um lado, percebemos que Freud (1950[1892-</p><p>1899]/1980) já elabora algo que o faz pensar nos primeiros</p><p>anos de vida como uma transcrição lacunar da infância vivida,</p><p>por outro, percebemos que</p><p>construído progressivamente com base em habilidades e conceitos aprendidos</p><p>anteriormente pelos pacientes28. Portanto, essa modalidade de tratamento caracteriza-se pela</p><p>flexibilidade na execução dos componentes28, possibilitando ao clínico adequar a intervenção para cada</p><p>caso, focando as necessidades atuais.</p><p>Existem especificidades para a TCC-FT com crianças e adolescentes expostos a eventos traumáticos</p><p>específicos, como abuso sexual, luto traumático e vítimas de traumas em curso. Em linhas gerais, a TCC-FT</p><p>para luto traumático envolve componentes adicionais com foco na redefinição da relação da criança ou do</p><p>adolescente com o ente falecido e no comprometimento com as relações atuais28. Com crianças abusadas</p><p>sexualmente, é fundamental a inclusão de componentes que abarquem educação sobre sexualidade</p><p>saudável47. Em relação a vítimas de traumas em curso, as particularidades envolvem ações com enfoque</p><p>na melhora das estratégias de segurança no início do tratamento; engajamento efetivo de pais/cuidadores</p><p>que estejam experienciando o trauma; abordagem das cognições negativas sobre os traumas em curso; e</p><p>auxílio na diferenciação entre perigos reais e lembranças traumáticas generalizadas49.</p><p>Considerações Finais</p><p>A prevalência de exposição a eventos traumáticos na infância e adolescência é alta3,4, podendo</p><p>acarretar consequências deletérias que manifestam-se tanto a curto como a longo prazo. Abuso de</p><p>substâncias, comportamentos de risco, risco de suicídio, queda no desempenho escolar, dificuldades no</p><p>relacionamento interpessoal, comportamentos criminosos são algumas das consequências relacionadas</p><p>à exposição traumática na infância e adolescência50. O TEPT é o transtorno mental mais estudado</p><p>relacionado a experiências traumáticas9, mas sabe-se que a sintomatologia decorrente de tal exposição é</p><p>bastante variada e complexa quando se trata de crianças e adolescentes8,12. Fatores como a etapa de</p><p>desenvolvimento, o tipo de trauma vivenciado, a presença de transtornos mentais prévios (na esfera</p><p>individual e familiar), o contexto cultural e cognitivo, entre outros, devem ser detalhadamente</p><p>investigados para uma avaliação clínica adequada51.</p><p>Conforme já mencionado, a TCC é uma intervenção psicoterápica com sólidos resultados de</p><p>efetividade, quando comparada a grupos controles25, e a TCC-FT é o tratamento de primeira linha para</p><p>crianças e adolescentes traumatizados39,40. Para tal, além de outras intervenções cognitivas e</p><p>comportamentais, são realizadas narrativas sobre a experiência traumática e exposições in vivo relacionadas</p><p>com o trauma. A TCC-FT não se limita ao tratamento de um transtorno específico, como o TEPT, mas abarca</p><p>a complexa sintomatologia relacionada ao trauma desenvolvida na infância. Além disso, não se limita à</p><p>BEATRIZ OLIVEIRA MENEGUELO LOBO, ALICE EINLOFT BRUNNET, LUIZIANA SOUTO SCHAEFER, ADRIANE XAVIER ARTECHE,</p><p>CHRISTIAN HAAG KRISTENSEN</p><p>11</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):3-14</p><p>vivência de incidentes únicos, podendo ser aplicada com crianças expostas a traumas diversos49. Como</p><p>limitações do presente estudo, apontam-se o método baseado em uma revisão não sistemática da literatura</p><p>e ausência de revisão de estudos com amostras brasileiras. Para estudos futuros, sugere-se a investigação</p><p>do estado da arte da TCC para crianças e adolescentes expostos a situações traumáticas, bem como a</p><p>condução de revisão sistemática da literatura sobre o tema.</p><p>Os autores do presente estudo vêm desenvolvendo pesquisas acerca do impacto da exposição</p><p>traumática e de eficácia de intervenções terapêuticas para esses indivíduos, através do Núcleo de Estudos</p><p>e Pesquisa em Trauma e Estresse (NEPTE), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O</p><p>NEPTE vem realizando pesquisas acerca de (1) avaliação clínica e neurobiológica de crianças vítimas de</p><p>eventos traumáticos, (2) perícia psicológica de crianças com suspeita de abuso sexual, (3) abuso sexual em</p><p>meninos, (4) transgeracionalidade do abuso sexual em meninas, (5) impacto de eventos estressores no</p><p>desempenho escolar, (6) adaptação transcultural de validação de instrumentos de avaliação de exposição</p><p>a eventos estressores, comportamentos sexuais infantis, gravidade de sintomas pós-traumáticos, cognições</p><p>pós-traumáticas, (7) eficácia da TCC para o TEPT. Atualmente, foram avaliados 136 crianças e adolescentes,</p><p>recrutados em serviços de saúde mental de Porto Alegre, com idades entre 7 e 17 anos (M=11,36; DP=2,4).</p><p>Destes, 65% foram expostos a algum tipo de maus-tratos, como abuso físico, emocional, sexual e</p><p>negligência; 13% sofreram traumas interpessoais, como assaltos, crimes violentos, acidentes</p><p>automobilísticos, entre outros; 22% não haviam passado por nenhum tipo de trauma, mas tinham demanda</p><p>para atendimento clínico.</p><p>Em nossa experiência, podemos perceber a grande demanda de crianças e adolescentes vítimas</p><p>de traumas múltiplos, recorrentes e interpessoais, com elevada frequência de maus-tratos. Nesses casos,</p><p>a prática corrobora os achados de pesquisas prévias: a sintomatologia é ampla e complexa, não se</p><p>restringindo ao diagnóstico de TEPT. Ainda, tem sido comum a presença de traumas em curso,</p><p>principalmente no que tange à violência doméstica e à violência na comunidade. A TCC-FT tem sido uma</p><p>opção clínica válida e eficaz para o trabalho com casos complexos, em que o risco de violência não é</p><p>completamente eliminado, ou quando a sintomatologia é grave, ampla e variada. Assim, o conhecimento</p><p>dos quadros relacionados a traumas na infância e na adolescência, bem como a aplicação de estratégias</p><p>eficazes de tratamento, permite a promoção de saúde mental e o aumento de estratégias de coping</p><p>eficazes que auxiliam na prevenção de consequências futuras, amplamente relacionadas à experiência</p><p>traumática na infância e adolescência.</p><p>TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL FOCADA NO TRAUMA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE EVENTOS TRAUMÁTICOS</p><p>12</p><p>REVISTA BRASILEIRA DE PSICOTERAPIA 2014;16(1):3-14</p><p>Referências</p><p>1. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 4a. ed.,</p><p>Texto Revisado. Porto Alegre: Artmed; 2002.</p><p>2. Scoboria A, Ford J, Lin H, Frisman L. Exploratory and confirmatory factor analyses of the structured</p><p>interview for disorders of extreme stress. Assessment. 2008;15(4):404-25.</p><p>3. Finkelhor D, Ormrod R, Turner H, Hamby SL. The victimization of children and youth: a comprehensive,</p><p>national survey. Child Maltreat. 2005;10(1):5-25.</p><p>4. Finkelhor D, Ormrod RK, Turner H. Lifetime assessment of poly-victimization in a national sample of</p><p>children and youth. Child Abuse Negl. 2009;33(7):403-11.</p><p>5. Ribeiro WS, Andreoli SB, Ferri CP, Prince M, Mari JJ. Exposure to violence and mental health problems</p><p>in low and middle-income countries: a literature review. Revista Brasileira de Psiquiatria. 2009;31,</p><p>Supl II:S49-S57.</p><p>6. Bordin I, Duarte CS, Peres C, Nascimento R, Curto BM, Paula CS. Severe physical punishment: risk of</p><p>mental health problems for poor urban children in Brazil. World Health Organ. 2009;87(5):336-44.</p><p>7. Cook-Cottone C. Childhood posttraumatic stress disorder: diagnosis, treatment, and school</p><p>reintegration. School Psychology Review. 2004;33(1):127-39.</p><p>8. Jonkman CS, Verlinden E, Bolle EA, Boer F, Lindauer JL. Traumatic stress symptomatology after child</p><p>maltreatment and single traumatic events: different profiles. Journal of Traumatic Stress.</p><p>2013;(April):225-32.</p><p>9. Trickey D, Siddaway AP, Meiser-Stedman R, Serpell L, Field AP. A meta-analysis of risk factors for post-</p><p>traumatic stress disorder in children and adolescents. Clin. Psychol. Rev. 2012;32(2):122-38</p><p>10. American Psychiatric Association. DSM 5. American Psychiatric Association; 2013.</p><p>11. Cohen JA, Scheeringa MS. Post-traumatic stress disorder diagnosis in children: Challenges and</p><p>promises. Dialogues in clinical neuroscience. 2009;11(1):91-9.</p><p>12. Copeland WE, Keeler G, Angold A, Costello EJ. Traumatic events and posttraumatic stress in childhood.</p><p>Arch. Gen. Psychiatry. 2007;64(5):577-84.</p><p>ele parece manter a idéia de um</p><p>acontecimento real que originou o recalque e que se encontra</p><p>na etiologia das neuroses. Essa oscilação é vista, por exemplo,</p><p>quando percebemos que, ao mesmo tempo em que sustenta a</p><p>hipótese de que a histeria é originada por uma sedução vivida</p><p>na infância e onde um adulto perverso foi seu agente, Freud</p><p>questiona a existência material dessa sedução.</p><p>É o que ocorre na Carta 69, que data de 21 de setembro de</p><p>1897, quando Freud (1950[1892-1899]/1980) expressa, de modo</p><p>claro, o embate teórico (isto é, metapsicológico) que se instalará</p><p>entre a fantasia e a experiência na etiologia das neuroses. Nessa</p><p>carta, ele escreve a célebre frase “não acredito mais na minha</p><p>neurótica” (Freud, 1950[1892-1899]/1980, p. 350), revelando</p><p>o seu descrédito na realidade material das cenas de sedução</p><p>infantil. No entanto, não consideramos que Freud tenha aban-</p><p>donado totalmente essa idéia. Consideramos sim, que ele opera</p><p>relação ao lugar da experiência vivida na constituição do trauma.</p><p>A virada que realiza, nesse momento, consiste na introdução da</p><p>fantasia na constituição das cenas rememoradas, que irá impri-</p><p>mir às lembranças da infância a marca da singularidade de cada</p><p>analisando. Assim, a partir desse momento em que a realidade</p><p>material da experiência passa a ser questionada em seu valor</p><p>determinante da neurose, podemos pensar que o infantil, como</p><p>uma reconstrução em análise, foi descolado da realidade vivida</p><p>para a realidade psíquica, atravessada pela fantasia e marcada</p><p>pelo recalque.</p><p>Assim, consideramos que não há, em Freud, um abandono</p><p>nem mesmo da intenção de encontrar na reconstrução da experi-</p><p>ência traumática da infância um vínculo com a realidade material.</p><p>Os termos de Freud parecem, muito mais, mostrar a passagem da</p><p>compreensão da sedução em seu caráter simplesmente perverso</p><p>(patológico) para uma compreensão de sua função constitutiva</p><p>da subjetividade. Fatos e fantasias irão mesclar-se na construção</p><p>das recordações e no engendramento do esquecimento, possi-</p><p>bilitando a elaboração freudiana de que não há fato possível de</p><p>ser reproduzido em sua integridade e não há fantasia que não</p><p>possua uma conexão com a realidade.</p><p>No texto “Lembranças encobridoras”, Freud (1899/1980) já</p><p>se mostra muito mais preocupado com aquilo que a recordação</p><p>encobre do que propriamente com o material recapturado na</p><p>memória. Nesse trabalho, ele chama a atenção para o lugar da</p><p>fantasia, da ação do recalque que fragmenta as recordações das</p><p>experiências e para a inscrição indelével do infantil no psiquismo.</p><p>Assim, será a compreensão de uma lembrança fragmentada e</p><p>lacunar que ocupará Freud nesse artigo. A compreensão assim</p><p>formulada é fundamental para o trabalho de análise onde se</p><p>original. Freud (1899/1980) se pergunta: podemos “questionar se</p><p>temos mesmo alguma lembrança da nossa infância: lembranças</p><p>relativas a nossa infância podem ser tudo o que possuímos” (p.</p><p>354).</p><p>Concluímos, portanto, que, no período que antecede a pu-</p><p>blicação de “A interpretação dos sonhos” (1900/1980) e de “Os</p><p>três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1980), Freud já</p><p>havia lançado os pressupostos teóricos que sustentam o conceito</p><p>do infantil. Mais que isso, nesse período, de 1892 a 1899, Freud</p><p>já associou, o infantil à sexualidade, à pulsão, ao recalque, à</p><p>O infantil na obra de Freud</p><p>68</p><p>fantasia e ao determinismo psíquico das inscrições indeléveis</p><p>que seriam a base e o fundamento do psiquismo.</p><p>A interpretação dos sonhos ou sobre um modelo para</p><p>pensar o infantil na psicanálise</p><p>A infância que aparecerá em “A interpretação dos sonhos”</p><p>(Freud, 1900/1980) não estará mais circunscrita ao resgate dos</p><p>acontecimentos dos primeiros anos. Nessa obra, a infância</p><p>aparecerá como lembrança e fantasia e terá consolidado seu</p><p>lugar como fundante e constituinte do psiquismo. Aqui, Freud</p><p>procede a uma elaboração metapsicológica da noção do infantil</p><p>como algo diverso da compreensão da infância em seu caráter</p><p>puramente experiencial. Foi essa compreensão que possibilitou</p><p>Freud descolar-se da realidade vivida para a realidade psíquica,</p><p>da infância para o infantil de seus pacientes.</p><p>As elaborações de Freud (1900/1980) em “A interpretação</p><p>dos sonhos” são fundamentais para compreendermos como o</p><p>como o modo, por excelência, do retorno do infantil recapi-</p><p>tulando aspectos das experiências recalcadas que não seriam</p><p>acessíveis de outra forma. Considerando que Freud (1900/1980)</p><p>tomará o modelo do trabalho de interpretação dos sonhos como</p><p>o próprio modelo do trabalho de análise, é exatamente o infantil,</p><p>através da associação livre, que ocupará o centro do trabalho de</p><p>psicanálise.</p><p>O material recalcado surge na fala dos pacientes repleto</p><p>de deformações e transmutações que possibilitaram com que</p><p>fossem articulados ao repertório consciente do analisando. É</p><p>segundo esse mesmo parâmetro que o infantil será reconstituí-</p><p>do. Ou seja, não na literalidade das experiências que estiveram</p><p>em sua origem, mas segundo as regras que possibilitaram sua</p><p>emergência.</p><p>Em “A interpretação dos sonhos”, o que é valorizado por</p><p>Freud é o caráter revelador dos fragmentos dos sonhos. Tam-</p><p>bém fragmentado será aquilo que o analisando reconstrói dos</p><p>primeiros anos. Nesse sentido, os fragmentos mnêmicos apare-</p><p>cem como reveladores daquilo que está no cerne do infantil. A</p><p>reconstrução do infantil em análise não tem mais o intuito de</p><p>obturar as lacunas, mas tornam-se, elas próprias, reveladoras</p><p>do sujeito.</p><p>Além disso, a reconstrução tem um caráter regressivo.</p><p>Assim como no sonho, podemos entender que a reconstrução</p><p>do infantil nos remete a algo “que é mais antigo no tempo e</p><p>está mais perto da extremidade perceptiva” (Freud, 1900/1980,</p><p>p. 584). Assim, o infantil, além de seu caráter determinante na</p><p>constituição psíquica, é, também, o mais antigo, o mais precoce.</p><p>Tanto no sentido daquilo que é mais remoto, quanto no sentido</p><p>daquilo que está em conexão com modos arcaicos do funcio-</p><p>namento psíquico.</p><p>O conjunto de conceitos, idéias e noções que aparece em</p><p>“A interpretação dos sonhos” ganhará nova versão a partir da</p><p>publicação de “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade”2,</p><p>quando Freud (1905/1980) retoma suas conclusões à luz da</p><p>sexualidade infantil.</p><p>O infantil na obra de Freud a partir da constituição</p><p>da teoria da sexualidade infantil</p><p>Em Os três ensaios, Freud (1905/1980) fala do esquecimen-</p><p>to do infantil localizando a pré-história do sujeito nos primeiros</p><p>anos da infância. Tratando da amnésia do infantil3 em Os três en-</p><p>saios</p><p>que é, ao mesmo tempo, esquecido e determinante. No processo</p><p>de constituição psíquica, é o momento de maior capacidade de</p><p>receber e reproduzir impressões. São impressões esquecidas que</p><p>deixam os mais profundos traços em nossas mentes, e que são</p><p>tomados eles mesmos como traumáticos e constituintes, com</p><p>efeito determinante. Nesse sentido, o “traumático” se interioriza:</p><p>não seriam mais as experiências como tais, mas os seus traços</p><p>o que adquire estatuto traumático. Inscrições e traços esqueci-</p><p>dos, mas não apagados. Freud enfatiza que não se pode falar de</p><p>apagamento ou abolição, mas de recalque.</p><p>-</p><p>ciação ao desenvolvimento pulsional. No percurso freudiano da</p><p>constituição do infantil, podemos situar Os Três Ensaios (Freud,</p><p>1905/1980) como o momento em que a fantasia em relação à</p><p>sedução encontra o seu suporte nas vicissitudes da pulsão e onde</p><p>o infantil aparece associado à sexualidade perverso-polimorfa e</p><p>às fases do desenvolvimento pulsional.</p><p>Na elaboração de sua hipótese sobre o desenvolvimento</p><p>pulsional, Freud (1905/1980) aponta para a marca da sobre-</p><p>posição que se constituirá como característica do processo de</p><p>subjetivação, em que os modos mais arcaicos do desenvolvimen-</p><p>to permanecem presentes, também, na sexualidade do adulto.</p><p>Assim, o adulto portará para sempre o infantil que o constituiu.</p><p>As pulsões parciais serão submetidas à ação do recalque e do</p><p>processo secundário, mas nunca abandonarão seus intentos de</p><p>retorno ao prazer primordial,</p><p>agora elaborado teoricamente como</p><p>fantasia de desejo.</p><p>Os pressupostos lançados por Freud em Os três ensaios serão</p><p>permanentemente recuperados em seus trabalhos posteriores. No</p><p>trabalho “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”4,</p><p>Freud (1909/1980) vai à procura do infantil na observação de</p><p>crianças e na análise de um menino de cinco anos. No entanto,</p><p>ele logo percebe que não é a infância em si que ali se apresenta,</p><p>mas um mundo de desejos, fantasias, lembranças e recordações</p><p>que, mesmo em uma criança, se davam a posteriori.</p><p>Após a publicação de O caso Hans, Freud volta a discutir a</p><p>natureza das recordações referentes aos primeiros anos de vida</p><p>em trabalhos como “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua</p><p>infância” (Freud, 1910/1980) e em “Uma recordação de infância</p><p>de Dichtung und Wahrheit” (Freud, 1917/1980), quando realiza</p><p>a análise de uma recordação de infância de Goethe. Nesses tra-</p><p>balhos, Freud conclui que as recordações que aparecem nesses</p><p>casos referem-se, muito provavelmente, a uma fantasia que,</p><p>por sua vez, originou-se em algo de um passado muito remoto</p><p>e irrememorável. Assim, o que Freud sublinha nesses escritos</p><p>é o caráter inacessível, porém determinante, das mais remotas</p><p>experiências da vida, bem como, o atravessamento da fantasia</p><p>em sua reconstrução posterior.</p><p>Será na “História de uma neurose infantil”5 que Freud</p><p>D.M.L.Zavaroni et al.</p><p>69</p><p>aspectos fundamentais da reconstrução do infantil em análise. O</p><p>caso do homem dos lobos insere-se na história da psicanálise a</p><p>serviço de uma discussão sobre o lugar determinante das expe-</p><p>riências infantis na subjetividade do adulto. Nesse caso, Freud</p><p>percorre terrenos polêmicos. Porém, mesmo quando busca refú-</p><p>à ontogênese na constituição dos sintomas e da subjetividade de</p><p>em favor do determinismo do infantil na constituição psíquica.</p><p>Nessa obra, o infantil é entendido como sendo o que se</p><p>reconstrói em análise das cenas e das fantasias da infância do</p><p>paciente. Ao analisar uma neurose infantil “quinze anos depois</p><p>de haver terminado” (Freud, 1918[1914]/1980, p. 20), Freud</p><p>aponta o caráter atemporal do infantil. Desse modo, sublinha</p><p>um infantil que não se “desfaz” no adulto, mas que permanece</p><p>determinando aquilo que o mesmo reconstrói no trabalho de</p><p>análise. É o infantil em seu caráter singular e próprio ao percurso</p><p>de cada analisando.</p><p>Em muitos momentos da leitura de O caso do homem dos</p><p>lobos, Freud nos passa a impressão de que busca um enlace en-</p><p>tre a fantasia e a experiência e, de algum modo, permanece em</p><p>uma alternância, ou talvez numa busca de conciliação, entre a</p><p>reconstrução histórica e a reconstrução fantasiada. Assim, se, por</p><p>um passado recalcado, por outro, aponta que a “sedução pela</p><p>irmã (em O caso do homem dos lobos) não foi certamente uma</p><p>fantasia” (Freud, 1918[1914]/1980, p. 35).</p><p>Em um dos poucos acréscimos que faz posteriormente ao</p><p>relato do presente caso, Freud manterá o amálgama da experiên-</p><p>cia e da fantasia na reconstrução da cena primária de O homem</p><p>dos lobos: “Certamente não há mais necessidade de duvidar</p><p>que estamos lidando apenas com uma fantasia, que nasceu</p><p>talvez da observação de relações sexuais de animais” (Freud,</p><p>1918[1914]/1980, p. 79). Assim, em O caso do homem dos lobos,</p><p>a experiência como acontecimento da infância permanece na</p><p>teoria freudiana através da manutenção da cena com os animais</p><p>na constituição da fantasia da cena da relação sexual dos pais.</p><p>Nessa direção, podemos pensar que em O caso do homem</p><p>dos lobos, o infantil equivale àquilo que é traumático e que</p><p>permaneceu inconsciente gerando sintomas, sonhos, etc. Mais</p><p>que isso, Freud atribuirá tal importância ao fator infantil6 que,</p><p>O tema do infantil permanece na obra freudiana até seus</p><p>questões com as quais nos ocupamos neste artigo. No entanto,</p><p>pensamos que nos escritos iniciais o infantil já está estabelecido</p><p>e delimitado. Mais que isso, a conexão desse conceito com a pro-</p><p>posta freudiana para compreensão da constituição psíquica está</p><p>plenamente estabelecida. À guisa de conclusão, apresentamos</p><p>a questão em torno da consideração do infantil como conceito</p><p>psicanalítico.</p><p>Alguns dicionários (Chemama & Vandermersch, 1995;</p><p>Hanns, 1996; Kaufmann, 1996; Laplanche & Pontalis, 1988) que</p><p>exploram o conjunto de conceitos desenvolvidos na psicanálise,</p><p>-</p><p>tivando alguns verbetes como, por exemplo, amnésia infantil.</p><p>psicanálise acima citados levanta algumas questões e assinala</p><p>algumas peculiaridades referentes ao infantil na psicanálise.</p><p>ter explicitamente constituído o infantil como um conceito, a</p><p>despeito de sua relevância no arcabouço teórico da psicanálise.</p><p>Mas, por outro lado, a relevância desse conceito em Freud é</p><p>denunciada pela relação que o infantil estabelece com conceitos</p><p>que se estendem por todo corpo teórico da psicanálise. Ao longo</p><p>de sua obra ele foi construindo e reiterando a cada caso o con-</p><p>ceito do infantil. Além disso, o infantil ocupa um lugar central</p><p>na metapsicologia e no trabalho de análise. O infantil articula</p><p>conceitos como recalque, pulsão, inconsciente, dentre outros. A</p><p>sua compreensão é determinante para o modo como podemos</p><p>tomá-lo. Se Freud falava da infância, mas atribuía à mesma um</p><p>sentido diverso daquele até então conhecido, é preciso que essa</p><p>Como um conceito que se constitui no cerne do trabalho de</p><p>análise, a teorização do infantil comparece na metapsicologia</p><p>como um recurso que possibilita uma posição do analista em</p><p>relação àquilo que ouve de seu paciente. Em suas diferentes</p><p>facetas, o infantil refere-se àquilo que, sob a ação do recalque,</p><p>origina e determina o psiquismo humano. Referido a um tempo</p><p>originário, o infantil inscreve-se no psiquismo humano como</p><p>uma construção atravessada pela fantasia. No trabalho de</p><p>psicanálise, o infantil comparece em um constante movimento</p><p>de retorno e atualização daquilo que, no percurso do desenvol-</p><p>vimento pulsional, pode ser construído, somente a posteriori,</p><p>como sendo a infância de cada analisando.</p><p>Na proximidade e, ao mesmo tempo, na descontinuidade en-</p><p>se uma mescla. Ou seja, esses conceitos formam uma trama em</p><p>mas no qual algo se preserva de sua matéria-prima, porém, já</p><p>existirá como tal e não mais como categorias separadas.</p><p>-</p><p>belecem uma relação de complementação, em que o infantil</p><p>comparece como “a parte inconsciente” daquilo que permanece</p><p>consciente sobre a infância que se viveu um dia. Tanto a infância</p><p>fragmentou. Desse modo, ambos encontram-se atravessados pela</p><p>a ser esgotado em seu resgate, nem uma imagem ou construção</p><p>sobre a criança a ser “completada” no trabalho de análise.</p><p>É importante lembrarmos que a constituição dessa noção</p><p>de infantil em Freud, que sugerimos ser elevada ao status de</p><p>conceito (já em Freud), acontece a partir da escuta de pacientes</p><p>em análise. É no contexto dessa escuta que Freud vai, pro-</p><p>gressivamente, conferindo um lugar determinante à infância e</p><p>constituindo os contornos do infantil. Desse modo, é somente</p><p>em referência ao trabalho de análise que o conceito do infantil</p><p>torna-se pertinente. Pensar o infantil fora do contexto da metapsi-</p><p>cologia ou do trabalho da psicanálise torna-o um conceito estéril</p><p>O infantil na obra de Freud</p><p>70</p><p>e volátil, pois é apenas nos meandros da relação transferencial</p><p>que o infantil poderá ser parcialmente alcançado e teoricamente</p><p>constituído.</p><p>Referências</p><p>Chemama, R., & Vandermersch, B., (Orgs.). (1995). Dictionnaire de la psycha-</p><p>nalyse. Paris: Larrousse.</p><p>Freud, S. (1980). Lembranças encobridoras. In Edição Standard Brasileira das</p><p>Obras Psicológicas completas de S. Freud (Jayme Salomão, trad.). (Vol. 3,</p><p>pp. 333-358). Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1899).</p><p>Freud, S. (1980). A interpretação dos sonhos. In Edição Standard Brasileira das</p><p>Obras Psicológicas completas de S. Freud (Jayme Salomão, trad.). (vols. 4,</p><p>5). Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1900).</p><p>Freud, S. (1980). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição Standard</p><p>Brasileira das Obras Psicológicas</p><p>completas de S. Freud (Jayme Salomão,</p><p>trad.). (Vol. 7, pp. 121-252). Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publi-</p><p>cado em 1905).</p><p>Freud, S. (1980). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In Edição</p><p>Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de S. Freud (Jayme</p><p>Salomão, trad.). (Vol. 10, pp. 11-154). Rio de Janeiro: Imago. (Texto original</p><p>publicado em 1909).</p><p>Freud, S. (1980). Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. In Edição</p><p>Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de S. Freud (Jayme</p><p>Salomão, trad.). (Vol.11, pp. 59-126). Rio de Janeiro: Imago. (Texto original</p><p>publicado em 1910).</p><p>Freud, S. (1980). Uma recordação de infância de Dichtung und Wahrheit. In</p><p>Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de S. Freud</p><p>(Jayme Salomão, trad.). (Vol 17, pp. 185-200). Rio de Janeiro: Imago. (Texto</p><p>original publicado em 1917).</p><p>Freud, S. (1980). História de uma neurose infantil. In Edição Standard Brasileira</p><p>das Obras Psicológicas completas de S. Freud (Jayme Salomão, trad.).</p><p>(Vol. 17, pp. 19-151). Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em</p><p>1918[1914]).</p><p>Freud, S. (1980). Notas sobre o Bloco Mágico. In Edição Standard Brasileira</p><p>das Obras Psicológicas completas de S. Freud. (Jayme Salomão, trad.).</p><p>(Vol. 19, p. 285-294). Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado</p><p>em 1925 [1924]).</p><p>Freud, S. (1980). Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. In Edição Standard</p><p>Brasileira das Obras Psicológicas completas de S. Freud (Jayme Salomão,</p><p>trad.). (Vol. 1, pp. 243-380). Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado</p><p>em 1950[1892-1899]).</p><p>Edição Standard</p><p>Brasileira das Obras Psicológicas completas de S. Freud. (Jayme Salomão,</p><p>trad.). (Vol. 1, p. 381-520). Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado</p><p>em 1950[1895]).</p><p>Hanns, L. A. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro:</p><p>Imago.</p><p>Kaufmann, P. (Org.). (1996). Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. (Vera</p><p>Ribeiro e Maria Luiza Borges, trads). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.</p><p>Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (1988). Vocabulário de Psicanálise (10a ed.).</p><p>(Pedro Tramen, trad.). São Paulo: Martins Fontes.</p><p>Le Guen, C. (1991). A dialética freudiana 1: prática do método psicanalítico.</p><p>(Regina Steffen, trad.). São Paulo: Escuta.</p><p>Notas</p><p>1 A partir de agora apenas Projeto.</p><p>2 A partir de agora apenas Os três ensaios.</p><p>3 Em Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade Infantil, Freud (1905/1980) refere-se à amnésia infantil e não à</p><p>amnésia do infantil. Aqui, usamos a segunda expressão com o intuito de ressaltar que é uma amnésia que diz respeito</p><p>àquilo que constitui o infantil, conceito que tratamos no presente trabalho.</p><p>4 A partir de agora chamado “O caso Hans”.</p><p>5 A partir de agora chamado “O caso do homem dos lobos”.</p><p>6 Em vários momentos de O caso do homem dos lobos Freud faz referência ao “fator infantil”. Talvez seja o momento</p><p>em que ele mais se aproxima da formulação do infantil como um conceito.</p><p>Dione de Medeiros Lula Zavaroni, psicóloga na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursa</p><p>doutorado na Universidade de Brasília, em co-tutela na Università di Roma “La Sapienza”. Endereço para</p><p>correspondência: Via Lussemburgo, 10, Ciampino, Roma, Itália, CAP: 00043. Telefax: 00xx(39)06.45495774.</p><p>E-mail: dione.zavaroni@gmail.com</p><p>Terezinha de Camargo Viana, doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, é professora associada</p><p>no Departamento de Psicologia Clínica, Universidade de Brasília. E-mail: tcviana@unb.br</p><p>Luiz Augusto Monnerat Celes, doutor em Psicologia Clínica, pela Pontifícia Universidade Católica – Rio</p><p>de Janeiro, é professor titular no Departamento de Psicologia Clínica, Universidade de Brasília. E-mail:</p><p>celes@unb.br</p><p>Recebido em 21.dez.05</p><p>Aceito em 03.jun.06</p><p>D.M.L.Zavaroni et al.</p><p>See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/329641135</p><p>A transferência na clínica psicanalítica com crianças</p><p>Article in Cadernos UniFOA · December 2018</p><p>DOI: 10.47385/cadunifoa.v13.n38.2041</p><p>CITATION</p><p>1</p><p>READS</p><p>1,129</p><p>2 authors, including:</p><p>Luciana Jaramillo Caruso</p><p>IMS-UERJ</p><p>44 PUBLICATIONS 33 CITATIONS</p><p>SEE PROFILE</p><p>All content following this page was uploaded by Luciana Jaramillo Caruso on 14 December 2018.</p><p>The user has requested enhancement of the downloaded file.</p><p>https://www.researchgate.net/publication/329641135_A_transferencia_na_clinica_psicanalitica_com_criancas?enrichId=rgreq-f4dcde27db727bb6bff4237474502a7f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyOTY0MTEzNTtBUzo3MDM1NTA5OTY4ODU1MDVAMTU0NDc1MTAzNzUzNQ%3D%3D&el=1_x_2&_esc=publicationCoverPdf</p><p>https://www.researchgate.net/publication/329641135_A_transferencia_na_clinica_psicanalitica_com_criancas?enrichId=rgreq-f4dcde27db727bb6bff4237474502a7f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyOTY0MTEzNTtBUzo3MDM1NTA5OTY4ODU1MDVAMTU0NDc1MTAzNzUzNQ%3D%3D&el=1_x_3&_esc=publicationCoverPdf</p><p>https://www.researchgate.net/?enrichId=rgreq-f4dcde27db727bb6bff4237474502a7f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyOTY0MTEzNTtBUzo3MDM1NTA5OTY4ODU1MDVAMTU0NDc1MTAzNzUzNQ%3D%3D&el=1_x_1&_esc=publicationCoverPdf</p><p>https://www.researchgate.net/profile/Luciana-Jaramillo-Caruso?enrichId=rgreq-f4dcde27db727bb6bff4237474502a7f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyOTY0MTEzNTtBUzo3MDM1NTA5OTY4ODU1MDVAMTU0NDc1MTAzNzUzNQ%3D%3D&el=1_x_4&_esc=publicationCoverPdf</p><p>https://www.researchgate.net/profile/Luciana-Jaramillo-Caruso?enrichId=rgreq-f4dcde27db727bb6bff4237474502a7f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyOTY0MTEzNTtBUzo3MDM1NTA5OTY4ODU1MDVAMTU0NDc1MTAzNzUzNQ%3D%3D&el=1_x_5&_esc=publicationCoverPdf</p><p>https://www.researchgate.net/profile/Luciana-Jaramillo-Caruso?enrichId=rgreq-f4dcde27db727bb6bff4237474502a7f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyOTY0MTEzNTtBUzo3MDM1NTA5OTY4ODU1MDVAMTU0NDc1MTAzNzUzNQ%3D%3D&el=1_x_7&_esc=publicationCoverPdf</p><p>https://www.researchgate.net/profile/Luciana-Jaramillo-Caruso?enrichId=rgreq-f4dcde27db727bb6bff4237474502a7f-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzMyOTY0MTEzNTtBUzo3MDM1NTA5OTY4ODU1MDVAMTU0NDc1MTAzNzUzNQ%3D%3D&el=1_x_10&_esc=publicationCoverPdf</p><p>CADERNOS UniFOA</p><p>ISSN: 1809-9475</p><p>e-ISSN: 1982-1816Edição 38 | Dezembro de 2018</p><p>www.unifoa.edu.br/revistas</p><p>A transferência na clínica psicanalítica com</p><p>crianças</p><p>The transference in psychoanalytic clinic with children</p><p>1 Luciana Jaramillo Caruso Azevedo lucianajaramillo@msn.com</p><p>1 PUC Rio de JAneiro</p><p>Resumo</p><p>Partindo de observações provenientes da clínica psi-</p><p>canalítica com crianças, este estudo propõe uma</p><p>discussão teórica acerca de determinadas especifici-</p><p>dades pertencentes a esse campo do saber. Entre as</p><p>particularidades que incidem na clínica e que tornam</p><p>o trabalho do analista cada vez mais complexo, desta-</p><p>camos o manejo da transferência e o lugar designado</p><p>aos pais durante o processo analítico. Cabe salientar</p><p>que a marca da diferença entre a análise de crianças e</p><p>de adultos não se restringe a um aspecto técnico, pois</p><p>essa diferença aponta para uma questão central dos</p><p>próprios fundamentos da psicanálise, isto é, a trans-</p><p>ferência. Na análise de crianças, a transferência ope-</p><p>ra de modo diferente, tendo em vista que os pais da</p><p>realidade se fazem presentes durante todo tratamen-</p><p>to. Por serem pilares dessa clínica, fundamentais para</p><p>o estabelecimento e continuidade do trabalho com</p><p>crianças e por não haver ações previamente instituí-</p><p>das, compreendemos ser indispensável discutir sobre</p><p>o manejo transferencial nesse contexto. Para atingir</p><p>o objetivo deste estudo, inicialmente será discutida a</p><p>transferência e o lugar dos pais na transferência. Em</p><p>seguida, serão apresentadas algumas reflexões sobre</p><p>o manejo transferencial. Posteriormente, será indicada</p><p>a identificação projetiva como um importante elemento</p><p>a ser considerado no manejo da transferência.</p><p>Palavras-chave:</p><p>Psicanálise. Crianças. Transferência. Identificação</p><p>projetiva.</p><p>Abstract</p><p>Taking into account the observations from the</p><p>psychoanalytic clinics with children, this study</p><p>proposes a theoretical discussion about certain</p><p>features belonging</p><p>to this field of knowledge. Among</p><p>the particularities that affect the clinics and that make</p><p>the analyst’s work increasingly complex, we may</p><p>highlight the management of the transference and the</p><p>place assigned to parents during the analytical process.</p><p>It is worth emphasizing that the mark of the difference</p><p>between the analyses of children and of adults is</p><p>not limited to a technical aspect, but this difference</p><p>signalizes a core issue of the very cornerstones of</p><p>psychoanalysis, i.e., the transference. When analyzing</p><p>children, the transference works differently, bearing</p><p>in mind that the parents of reality are present during</p><p>the whole period of treatment. Because they are</p><p>pillars of this clinic, essential for the establishment</p><p>and continuity of the work with children, and for not</p><p>having previously established actions, we understand</p><p>that it is imperative to discuss the transference</p><p>management in this context. In order to reach the aim</p><p>of this study, we will firstly discuss the transference</p><p>and the place of parents in the transference. Afterward,</p><p>we will introduce some reflections on the transference</p><p>management. Subsequently, we will indicate the</p><p>projective identification as an important element to be</p><p>considered in the transference management.</p><p>Keywords:</p><p>Psychoanalysis. Children. Transference. Projective</p><p>identification.</p><p>Como você deve citar?</p><p>AZEVEDO, Luciana Jaramillo Caruso. A transferência na clínica psicanalítica com crianças. Cadernos UniFOA, Volta</p><p>Redonda, n. 38, p. xx-xx, dez. 2018.</p><p>A transferência na clínica psicanalítica com crianças</p><p>www.unifoa.edu.br/revistasp. 76</p><p>1 INTRODUÇÃO</p><p>O trabalho psicanalítico com crianças apresenta especificidades que demandam constante-</p><p>mente o aprofundamento deste estudo. A presença dos pais desde o início do tratamento, a escolha</p><p>do psicanalista, a abertura para a escuta dos pais durante as entrevistas preliminares e o trabalho</p><p>com estes, quando for necessário, no decorrer do tratamento da criança, provocam um considerável</p><p>movimento transferencial que não tem como ser ignorado. De acordo com Faria (2016), mais do que</p><p>um traço particular do tratamento de crianças, a presença dos pais define uma especificidade dessa</p><p>clínica, posto que o manejo e a intervenção se fazem necessários.</p><p>O fato de a criança ser trazida à análise estabelece não apenas uma necessidade de reflexão</p><p>sobre o lugar dos pais como também sobre o manejo de sua presença. Assim, o lugar que o psicanalista</p><p>designa aos pais no tratamento dos filhos, para além de uma questão técnica, é revelador das concepções</p><p>teóricas que fundamentam a prática clínica. É uma posição ética que sustenta que o emaranhado que</p><p>envolve a criança e seu sintoma exige um manejo orientado pela concepção de sujeito e de inconsciente</p><p>que embasa toda escuta analítica (FARIA, 2016).</p><p>Nesse sentido, Dolto (2004) afirma que os fatos vividos por uma criança não são exatamente</p><p>como poderiam ser testemunhados por adultos e sim consistem em um conjunto formado pelas per-</p><p>cepções da criança e o valor simbólico que se desprende do sentido que essas percepções assumem</p><p>para o narcisismo do sujeito. Por sua vez, Mannonni (2004) esclarece que a criança que é levada ao</p><p>consultório do psicanalista está situada em uma família e carrega o peso da história de cada um de</p><p>seus pais. Em função disso, compreendemos que o cerne do atendimento às crianças vai muito além</p><p>das dificuldades escolares, dos sintomas escolares ou médicos, apesar de incluí-los. O trabalho do</p><p>psicanalista com crianças deve, primordialmente, estar orientado para a escuta do sujeito do incons-</p><p>ciente e apontar para os impasses que dificultam o desenvolvimento da criança. O processo analítico</p><p>permite que a criança possa ser sujeito dos seus próprios desejos, desembaraçados, e não alienados</p><p>aos fantasmas parentais.</p><p>A partir desse panorama, o presente artigo visa estabelecer uma articulação entre o manejo</p><p>da transferência na clínica com crianças e o lugar designado aos pais durante o processo analítico.</p><p>Para atingir o objetivo deste estudo, inicialmente será discutida a transferência e o lugar dos pais. Em</p><p>seguida, serão apresentadas algumas reflexões sobre o manejo transferencial. Posteriormente, será</p><p>indicada a identificação projetiva como um importante elemento a ser considerado no manejo. A trans-</p><p>ferência, compreendida como via régia para o processo analítico, será estudada com base nos textos</p><p>freudianos e, em seguida, a identificação projetiva assumirá relevo como um importante elemento a</p><p>ser considerado no manejo da transferência.</p><p>1.1 Sobre a transferência e o lugar dos pais</p><p>Para iniciarmos este estudo, salientamos que o termo transferência não está circunscrito ao</p><p>vocabulário psicanalítico. A noção de transferência designa e abarca um sentido de transporte ou</p><p>deslocamento. Entretanto, em se tratando do campo psicanalítico, por transferência compreende-se o</p><p>processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos, no que tange</p><p>a certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica. Esse</p><p>mecanismo consiste em uma repetição de protótipos infantis, contudo, vivido com acentuado sentimento</p><p>de atualidade. A transferência é o terreno sobre o qual se desenvolve o tratamento psicanalítico, pois</p><p>se refere a sua instalação, as suas modalidades, a sua interpretação e a sua resolução (LAPLANCHE;</p><p>PONTALIS, 1986).</p><p>Luciana Jaramillo Caruso Azevedo</p><p>ISSN: 1809-9475 | e-ISSN: 1982-1816 p. 77</p><p>Em 1912, no artigo “A dinâmica da transferência”, Freud aponta para características cruciais</p><p>da transferência, entre elas, a capacidade de surgir como a resistência mais poderosa ao tratamento</p><p>psicanalítico. De acordo com Freud, a transferência ocorre quando o material complexivo (referente ao</p><p>complexo patogênico) serve para ser transferido para a figura do analista. Assim, ela produz a asso-</p><p>ciação seguinte e se anuncia por sinais de resistência.</p><p>A transferência com o analista possibilita a criação de um campo discursivo que vai se delineando</p><p>pelo encadeamento dos significantes produzidos tanto pelo analisante como pelo analista. No caso</p><p>da criança, há que se considerar a participação dos pais nesse encadeamento. O campo discursivo</p><p>criado, somado aos efeitos da análise com a criança sobre a estrutura familiar, com frequência, causa</p><p>a demanda de trabalho dos pais ao analista. Por isso, não é de se estranhar que uma mudança na</p><p>posição subjetiva da criança (provocada pelos efeitos da análise) se faça presente na estrutura como</p><p>um todo, afetando os pais e provocando alterações na maneira de responder ao que há de sintomático</p><p>do lado deles.</p><p>Na famosa carta 69, dirigida a Fliess, datada de 21 de setembro de 1897, Freud expôs suas in-</p><p>certezas quanto à distinção entre o que era real ou fantasia. Ele adquiriu a convicção de que não existe</p><p>nenhum índice de realidade no inconsciente, de modo que não se pode distinguir entre a verdade e a</p><p>ficção investida de afeto. Assim, anunciou que não acreditava mais em sua “neurótica” e, desse modo,</p><p>referiu-se ao abandono do fator real como responsável pelo aspecto traumático. A partir do abandono</p><p>da sua “neurótica”, surgiu uma nova concepção sobre a relação entre trauma e fantasia. A noção de</p><p>realidade foi deslocada para a realidade psíquica, o que levou Freud a enfatizar outros fatores como</p><p>responsáveis pela etiologia da neurose.</p><p>A propósito dessa virada do pensamento de Freud, nota-se que a passagem da teoria da sedução</p><p>à fantasia, além de impulsionar o deslocamento da infância para ao infantil, deu lugar à elaboração da</p><p>realidade psíquica baseada no inconsciente e no desejo (FORMIGONI; GENTIL, 2016). A ruptura freu-</p><p>diana entre a realidade dos fatos da infância e a realidade psíquica, com a consequente mudança do</p><p>registro genético e cronológico para a lógica do inconsciente, demonstra que a psicanálise opera sobre</p><p>um sujeito que não tem idade, o sujeito do inconsciente. Assim, observamos que o atendimento às</p><p>crianças</p>