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<p>TEORIA E FUNDAMENTOS DA CONSTITUIÇÃO</p><p>TEORIA DO PODER CONSTITUINTE</p><p>Clara Coutinho</p><p>Iniciar</p><p>OLÁ!</p><p>Você está na unidade Teoria do Poder Constituinte. Conheça aqui os principais aspectos relacionados ao Poder Constituinte, suas espécies e principais características, bem como a aplicabilidade das normas constitucionais no tempo.</p><p>Bons estudos!</p><p>1 Definição</p><p>A Teoria do Poder Constituinte remonta à teoria da origem da Constituição e do seu fundamento de validade. Não há, no ordenamento jurídico, norma que seja superior à Constituição. Mas qual a origem da superioridade hierárquica da norma? É o que a Teoria do Poder Constituinte se propõe a explicar.</p><p>1.1 Poder Constituinte e Poder Constituído</p><p>Qual o fundamento da Constituição? O que a torna a mais relevante das normas em um ordenamento jurídico? A resposta para essas perguntas passa pela compreensão do procedimento da elaboração da norma constitucional a partir do denominado Poder Constituinte.</p><p>Ao Poder Constituinte foi assegurada, de forma legítima e democrática, a função de elaborar normas constitucionais, às quais são conferidas o caráter normativo máximo. A Constituição, base do ordenamento jurídico e hierarquicamente superior a todas as outras normas, será, portanto, aquela derivada do Poder Constituinte. A superioridade hierárquica da Constituição decorre, justamente, de seu fundamento. Em sua Teoria Pura do Direito, Kelsen (2011, p. 217) estabelece que a Constituição é o fundamento para todas as demais normas de um ordenamento jurídico; é a Constituição que torna as demais regras vigentes válidas. Contudo, o que torna a Constituição válida como a norma mais elevada é o que Kelsen denomina norma fundamental:</p><p>[...] tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Groundnorm).</p><p>A teoria de Kelsen pode ser sintetizada em sua pirâmide de hierarquia de normas, que assim se representa:</p><p>Clique para abrir a imagem no tamanho original</p><p>Figura 1 - Pirâmide de hierarquia de normasFonte: KELSEN, 2011.</p><p>#PraCegoVer: Na imagem, temos uma pirâmide que representa a hierarquia de normas. Ela se divide em três níveis. Do topo para a base, temos a Constituição, no meio, as normas infraconstitucionais e, na base, as normas infralegais.</p><p>A norma fundamental se relaciona com o Poder Constituinte diretamente, uma vez que este depende de legitimidade para atuar na elaboração e edição de uma Constituição. De acordo com Tavares (2012), o referencial teórico de um Poder Constituinte está atrelado à sua delimitação no tempo, caracterizado pela manifestação de uma vontade social representada numa assembleia constituinte, ainda que a manifestação do referido Poder não esteja restrita a esse momento único. Mais importante do que conceituar o que é Poder Constituinte, é imprescindível que seja possível compreender quais são as suas funções. A partir da evolução do Constitucionalismo como movimento político, jurídico e social, surge a necessidade de edição de regras que disciplinem a separação de poderes do Estado, bem como regras capazes de traduzir sua organização e arranjo institucional. Apenas um poder superior ao próprio Estado poderia ser capaz de estabelecer sua organização e impor-lhe limites, e é esse o Poder Constituinte.</p><p>Mais importante do que conceituar o que é Poder Constituinte, é imprescindível que seja possível compreender quais são as suas funções. A partir da evolução do Constitucionalismo como movimento político, jurídico e social, surge a necessidade de edição de regras que disciplinem a separação de poderes do Estado, bem como regras capazes de traduzir sua organização e arranjo institucional. Apenas um poder superior ao próprio Estado poderia ser capaz de estabelecer sua organização e impor-lhe limites, e é esse o Poder Constituinte.</p><p>O Poder Constituinte é, portanto, a força criadora, orientada pela vontade social que se destina a elaborar as regras de uma Constituição. Sua atuação não está restrita, no entanto, apenas à edição de textos constitucionais inéditos: como será visto adiante nesta Unidade, a criação de normas constitucionais de que se incumbe o Poder Constituinte pode ocorrer tanto no momento primeiro da lei fundamental quanto posteriormente.</p><p>Como não poderia deixar de ser, após a edição da lei fundamental, o poder de criação sofre limitações. A partir desse momento, a capacidade de edição e de criação de normas constitucionais pelo Poder Constituinte torna-se restrita. Assim, com relação aos limites que se aplicam, o Poder Constituinte pode ser compreendido em Poder Constituinte e Poder Constituído.</p><p>· Poder Constituinte</p><p>É autônomo e incondicionado, derivado da legitimidade democrática que lhe confere poder para a criação de leis e normas fundamentais à organização do Estado. É, portanto, inicial.</p><p>· Poder Constituído</p><p>Uma vez vigentes as normas constitucionais, estas estabelecem regras específicas para que seja possível a inclusão e a alteração das regras constitucionais já instituídas anteriormente. A esse poder que tem a faculdade de editar e de reformar as normas constitucionais dá-se o nome de Poder Constituído, uma vez que é conferido a um órgão já constituído – pela própria Constituição – o poder de emendar a Constituição ou de criar normas constitucionais em outras esferas de poder (como ocorre com o Poder Constituinte derivado decorrente, que será estudado adiante). Esse Poder Constituído é, por sua vez, condicionado às regras exigentes, e limitado às regras de modificação e alteração previstas (SILVA, 2004).</p><p>As diversas apresentações do Poder Constituinte são abordadas por Moraes (2017), que apresenta quadro sintético para descrever os diferentes tipos de Poder Constituinte, de acordo com suas principais características, em sua compreensão ampla:</p><p>Clique para abrir a imagem no tamanho original</p><p>Figura 2 - Apresentações do Poder ConstituinteFonte: MORAES, 2017.</p><p>#PraCegoVer: Na imagem, temos um gráfico representando o Poder constituinte que está bifurcado em dois tipos: originário e derivado. No primeiro, temos a revolução convenção subdividida em inicial, ilimitado, incondicionado e permanente. No segundo, temos secundário, limitado e condicionado que se subdividem em reformador e decorrente.</p><p>2 Tipos de poder constituinte</p><p>Conheça, a seguir, os tipos de poder constituinte de acordo com suas características e limitações.</p><p>Assista aí</p><p>2.1 Poder Constituinte Originário</p><p>Chama-se de Poder Constituinte originário aquele que é característico de momentos de quebras de paradigmas e rupturas com as ordens institucionais vigentes. Revoluções, movimentos separatistas e de independência, por exemplo, são momentos em que o Poder Constituinte originário se manifesta em sua forma mais pura. Também se denomina Poder Constituinte originário aquele que decorre de convenção, ou seja, aquele que existe em virtude de uma Assembleia Nacional Constituinte.</p><p>Tanto em face de revolução quanto em face de convenção se estará diante de um Poder Constituinte originário que se pretende inicial, ilimitado, incondicionado e permanente. Cabe ao Poder Constituinte originário o estabelecimento de uma nova ordem constitucional, e ele é inicial por estabelecer a base da ordem jurídica; é ilimitado e autônomo por não se submeter a nenhuma outra norma jurídica anterior, não se vinculando a limites anteriormente estabelecidos; e, também por essa razão, é incondicionado por não estar sujeito a nenhuma forma ou procedimento prefixado do qual dependa a validade e a legitimidade de sua atuação (MORAES, 2017). Ao discorrer sobre as características do Poder Constituinte originário, Canotilho (1993, p. 94) explica o que segue:</p><p>[O Poder Constituinte originário] é inicial porque</p><p>não existe, antes dele, nem de facto nem de direito, qualquer outro poder. É nele que se situa, por excelência, a vontade do soberano (instância jurídico-política dotada de autoridade suprema). É um poder autônomo: a ele e só a ele compete decidir se, como e quando, deve ‘dar-se’ uma constituição à Nação. É um poder omnipotente, incondicionado: o poder constituinte não está subordinado a qualquer regra de forma ou de fundo.</p><p>Deve-se destacar que, para parte da doutrina, o Poder Constituinte originário resultado de convenção estará sujeito a limitações a que o Poder Constituinte originário resultante de um movimento revolucionário não está. Isso porque, diante de uma ordem vigente, ainda que se pretenda a edição de novas leis fundamentais que organizem um Estado, se estará diante de limitações e impedimentos de ordem fática:</p><p>Se há uma ordem vigente, ela condiciona o Poder Constituinte, ainda que originário. Nunca é demais lembrar, sobretudo no caso brasileiro, que o Poder Constituinte não se confunde com o Poder Estatal. A nova Constituição não ensejará um novo Estado. O Brasil já existe, com esta ou com outras eventuais e futuras Constituições. Então, pelo menos por isso, a Constituinte tem limitações. Não poderá ela, por exemplo, incorporar o território brasileiro, ou parte dele, a outro Estado. Não lhe será permitido abrir mão da soberania nacional. (POLETTI apud TAVARES, 2012).</p><p>Por fim, devem ser observados alguns requisitos para que o Poder Constituinte possa, de fato, ser reputado como Poder Constituinte originário. Sobre o tema, Mendes (2014, p. 118) estabelece com clareza a necessidade de que o Poder Constituinte originário seja democrática e legitimamente estabelecido para que possa assim ser considerado:</p><p>Se o poder constituinte é a expressão da vontade política da nação, não pode ser entendido sem a referência aos valores éticos, religiosos, culturais que informam essa mesma nação e que motivam as suas ações. Por isso, um grupo que se arrogue a condição de representante do poder constituinte originário, que se dispuser a redigir uma Constituição que hostilize esses valores dominantes, não haverá de obter o acolhimento de suas regras pela população, não terá êxito no seu empreendimento revolucionário e não será reconhecido como poder constituinte originário. Afinal, só é dado falar em atuação do poder constituinte originário se o grupo que diz representá-lo colher a anuência do povo, ou seja, se vir ratificada a sua invocada representação popular.</p><p>2.2 Poder Constituinte Derivado</p><p>As leis constitucionais resultantes da atividade do Poder Constituinte originário trazem, em seu conteúdo, os mecanismos previstos para o surgimento de novas regras constitucionais ou mesmo de alteração das regras vigentes. A esse Poder Constituinte que se insere na Constituição atribui-se o nome de Poder Constituinte constituído, ou Poder Constituinte derivado. De acordo com Moraes (2017, p. 43), o Poder Constituinte derivado pode ser descrito como um poder subordinado e condicionado:</p><p>É derivado porque retira sua força do Poder Constituinte originário; subordinado porque se encontra limitado pelas normas expressas e implícitas do texto constitucional, às quais não poderá contrariar, sob pena de inconstitucionalidade; e, por fim, condicionado porque seu exercício deve seguir as regras previamente estabelecidas no texto da Constituição Federal.</p><p>O Poder Constituinte derivado pode, ainda, ser classificado de acordo com duas subdivisões, espécies, as quais se identificam de acordo com os aspectos característicos que lhe são atribuídos. Ainda mais, tais espécies estão diretamente relacionadas com a finalidade do Poder Constituinte derivado que lhe foi conferida pelo texto constitucional.</p><p>Assista aí</p><p>Enriqueça seu conhecimento! Clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=_vVmm0I3yXI&feature=emb_title</p><p>2.3 Poder Constituinte Derivado Reformador</p><p>O Poder Constituinte de reforma, ou Poder Constituinte reformador, diz respeito à competência atribuída a determinado órgão para alterar as disposições constitucionais estabelecidas pelo Poder Constituinte originário. O conceito se relaciona com a classificação das Constituições em rígidas, flexíveis e semirrígidas. No caso das Constituições flexíveis, estas podem ser alteradas mediante processo legislativo ordinário, o mesmo que se destina à edição de normas infraconstitucionais. No caso das Constituições rígidas, estas apenas podem ser alteradas se presentes requisitos específicos, observados procedimentos solenes previstos constitucionalmente. As Constituições semirrígidas, por sua vez, possuem partes rígidas e partes flexíveis.</p><p>Por óbvio, o Poder Constituinte reformador apenas existe em Constituições rígidas ou semirrígidas, nas quais este é necessário para a promoção de alterações e mudanças na ordem constitucional. É o Poder Constituinte reformador que se manifestará quando estabelecidos os requisitos que permitem a edição de regras constitucionais mesmo diante de uma ordem já estabelecida. Deve-se ter em mente, no entanto, que o Poder Constituinte reformador é, diferente do que ocorre com o Poder Constituinte originário, limitado e regulado pela própria Constituição. Por essa razão, parte da doutrina sequer considera o Poder Constituinte reformador como um poder constituinte de fato, pois, por se tratar de um poder constituído pela ordem constitucional vigente, não poderia ser, ao mesmo tempo, Poder Constituinte.</p><p>A utilização da expressão Poder Constituinte para se referir ao Poder Constituinte derivado reformador, no entanto, encontra defensores no fundamento de que, não obstante esteja subordinado à Constituição, também de sua atuação surgem novas normas constitucionais, as quais integrarão a ordem constitucional vigente sem qualquer hierarquia entre as normas. Sobre o assunto, Moraes (2017, p. 466) esclarece que os limites atribuídos ao Poder Constituinte reformador estão diretamente relacionados à necessidade de que seja mantido o seu sistema originário:</p><p>A alterabilidade constitucional, embora se possa traduzir na alteração de muitas disposições da constituição, sempre conservará um valor integrativo, no sentido de que deve deixar substancialmente idêntico o sistema originário da constituição. A revisão serve, pois, para alterar a constituição mas não para mudá-la, uma vez que não será uma reforma constitucional o meio propício para fazer revoluções constitucionais. A substituição de uma constituição por outra exige uma renovação do poder constituinte e esta não pode ter lugar, naturalmente, sem uma ruptura constitucional, pois é certo que a possibilidade de alterabilidade constitucional, permitida ao Congresso Nacional, não autoriza o inaceitável poder de violar o sistema essencial de valores da constituição, tal como foi explicitado pelo poder constituinte originário.</p><p>Assim, uma vez limitado pelos procedimentos estabelecidos pela própria Constituição, verifica-se a impossibilidade de que o Poder Constituinte reformador seja utilizado para violar o sistema constitucional vigente. Também por essa razão, o Poder Constituinte reformador encontra limitações. Na Constituição de 1988, verifica-se a presença do Poder Constituinte reformador no artigo 60, o qual estabelece os critérios para que a Constituição possa ser emendada:</p><p>Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:</p><p>I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;</p><p>II - do Presidente da República;</p><p>III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.</p><p>§ 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.</p><p>§ 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.</p><p>§ 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo</p><p>número de ordem.</p><p>§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:</p><p>I - a forma federativa de Estado;</p><p>II - o voto direto, secreto, universal e periódico;</p><p>III - a separação dos Poderes;</p><p>IV - os direitos e garantias individuais.</p><p>§ 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.</p><p>Como se verifica acima, além dos requisitos relacionados à competência para autoria da proposta e procedimento a ser observado, o artigo 60 trouxe também hipóteses em que o Poder Constituinte reformador não poderá atuar. Tais limitações ao Poder Constituinte reformador podem ser classificadas como materiais, circunstanciais ou temporais. No caso da Constituição de 1988, há apenas limitações das duas primeiras espécies mencionadas.</p><p>· Limitações materiais</p><p>O parágrafo 4º indica algumas matérias que foram disciplinadas pelos direitos previstos na Constituição, que não poderá ser alterada pelo Poder Constituinte reformador, ou seja, que apenas poderá ser alterada mediante atuação de uma nova Assembleia Constituinte. São as chamadas cláusulas pétreas da Constituição, não alcançadas pelo Poder Constituinte reformador.</p><p>· Limitações circunstanciais</p><p>Estabelecem circunstâncias em que o Poder Constituinte reformador estará impedido de atuar. Na Constituição de 1988, tais limitações estão previstas no parágrafo primeiro do artigo 60, transcrito acima, que estabelece que caso haja vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio, a Constituição não poderá ser emendada.</p><p>· Limitações temporais</p><p>No caso da Constituição de 1988, como dito, não há limitação desse tipo ao Poder Constituinte reformador. Houve, contudo, limitação temporal ao Poder Constituinte no que se refere à possibilidade de revisão da norma constitucional, como se depreende do artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.</p><p>2.4 Poder Constituinte Derivado Revisor</p><p>O Poder Constituinte derivado revisor diz respeito à possibilidade, prevista expressamente e de forma excepcional, de que seja promovida a alteração e a atualização da norma constitucional. A revisão é feita também por meio de emendas, denominadas emendas de revisão, que são editadas por meio de procedimentos mais simplificados do que os procedimentos destinados à sua reforma. Como mencionado, o artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias previu a revisão da Constituição após cinco anos de sua promulgação:</p><p>Art. 3º – A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria dos membros.</p><p>A revisão tinha como principal objetivo assegurar que o resultado do plebiscito previsto no artigo 2º do ADCT, para a definição da forma e do sistema de governo que deveriam vigorar no país, pudessem ser incorporados à Constituição. Com a conclusão do plebiscito e decorrido o prazo indicado na ADCT, a Constituição foi objeto de seis emendas constitucionais de revisão entre 1993 e 1994.</p><p>2.5 Poder Constituinte Derivado Decorrente</p><p>O Poder Constituinte derivado decorrente, por sua vez, nada mais é o do que o Poder Constituinte dos Estados para dispor sobre sua organização. Possui esse nome uma vez que decorre da própria Constituição e de sua organização na forma de República Federativa. Por se tratar de Poder Constituinte derivado, é naturalmente limitado pela própria Constituição, enfrentando circunscrição jurídica ainda mais restrita do que o Poder Constituinte derivado reformador. Isso se deve especialmente ao fato de que as normas Estaduais e Municipais não poderão contrariar o disposto na Constituição Federal.</p><p>O Poder Constituinte derivado decorrente é exercido pelas Assembleias Legislativas Estaduais, uma vez que a Constituição assim determinou. No âmbito dos Municípios, não há Constituição, apenas leis orgânicas, de forma que não se fala em Poder Constituinte municipal.</p><p>Com relação ao Distrito Federal, a princípio também não caberia falar sobre um Poder Constituinte distrital, uma vez que a Lei Orgânica do Distrito Federal também não teria a natureza de Constituição, pois não há Poder Constituinte distrital. Porém, o Supremo Tribunal Federal, no âmbito da ADI 980, entendeu pela possibilidade de que haja controle de constitucionalidade sobre a Lei Orgânica do Distrito Federal. Por essa razão, alguns doutrinadores admitem a existência de um Poder Constituinte distrital. Também há controvérsias acerca do Poder Constituinte estadual. Silva (2004) aponta que alguns doutrinadores negam o seu caráter constituinte porque este está sujeito a intensa limitação. Outros doutrinadores reconhecem o caráter constituinte, ressalvando, no entanto, se tratar de poder secundário, condicionado, subordinado. Para o autor, o Poder Constituinte estadual, ainda que não seja soberano, é autônomo:</p><p>A soberania consiste na autodeterminação plena, nunca dirigida por determinantes jurídicas extrínsecas à vontade do soberano, que é o povo na sua expressão nacional, enquanto a autonomia, como poder próprio dentro de um círculo traçado por outro, pressupõe ao mesmo tempo uma zona de autodeterminação, que é o propriamente autônomo, e um conjunto de limitações e determinantes jurídicas extrínsecas, que é o heterônomo, a zona de autodeterminação e o conjunto de limitações são impostos pela Constituição Federal, que assegurou aos Estados a capacidade de auto-organizar-se por Constituição própria, observados os princípios dela (SILVA, 2004, p. 617).</p><p>Nesse contexto, é certo que o Poder Constituinte derivado decorrente diverge substancialmente do Poder Constituinte originário, especialmente por estar subordinado a este.</p><p>3 Mutações Constitucionais</p><p>Inseridas no contexto de alteração das Constituições estão as mutações constitucionais. Diferentemente do Poder Constituinte derivado reformador, que se refere à existência de procedimentos solenes e formais, pré-definidos e constitucionalmente estabelecidos para a alteração do texto constitucional, as mutações constitucionais referem-se aos processos informais e sociais de alteração das Constituições – não de seu texto, mas de sua interpretação e seu significado no âmbito da sociedade. Para Silva (2004, p. 63-64), as mutações constitucionais são um processo não formal de mudanças das constituições rígidas, por via da “tradição, dos costumes, de alterações empíricas e sociológicas, pela interpretação judicial e pelo ordenamento de estatutos que afetem a estrutura orgânica do Estado”.</p><p>As mutações constitucionais ocorrem por diversas razões. Primeiro, porque a norma constitucional positiva é, frequentemente, aberta e abstrata, de forma que lhes é possível atribuir mais de uma interpretação. Segundo, porque a sociedade está em constante mudança e, uma vez que se alteram os ideais, naturalmente o sentido atribuído por uma sociedade à norma está igualmente sujeito a alterações. Com relação ao caráter amplo e abstrato da norma, que lhe permite diferentes interpretações, Tavares (2012, p. 106) indica que este se revela sobretudo pela linguagem adotada pelo constituinte.</p><p>A abstratividade ou abertura das normas revela-se pelos vocábulos vagos, pelas palavras imprecisas empregadas pelo constituinte, e que necessitam, inegavelmente, de um preenchimento ou integração para tornarem-se compreensíveis e imediatamente aplicáveis.</p><p>Em virtude de tais características, surgem as dificuldades de intepretação e, consequentemente, a necessidade de que haja intérpretes capacitados a identificar o sentido adequado da norma. Há se ter cuidado com o processo de interpretação de norma constitucional e com suas mutações. Se, por um lado, há a necessidade constante da adequação entre a norma e o que ela disciplina, de forma que esta corresponda à realidade constitucional, é necessário assegurar que a norma não contrarie os princípios estruturais, políticos e jurídicos da Constituição. Nesse sentido, observados tais limites, Canotilho admite a legitimidade das mutações constitucionais:</p><p>A recente concepção de constituição</p><p>como concentrado de princípios, concretizados e desenvolvidos na legislação infraconstitucional, aponta para a necessidade da interpretação da constituição de acordo com as leis, a fim de encontrar um mecanismo constitucional capaz de salvar a constituição em face da pressão sobre ela exercida pelas complexas e incessantemente mutáveis questões econó mico sociais. Esta leitura da constituição de baixo para cima, justificadora de uma nova compreensão da constituição a partir das leis infraconstitucionais, pode conduzir à derrocada interna da constituição por obra do legislador e de outros órgãos concretizadores, e à formação de uma constituição legal paralela, pretensamente mais próxima dos momentos “metajurídicos” (sociológicos e políticos) (CANOTILHO 1993, p. 233).</p><p>Por outro lado, como visto, é necessário assegurar que a Constituição mantenha seu conteúdo jurídico protegido, uma vez que esta deve sobreviver às pressões exercidas pela sociedade. Deve-se assegurar, assim, que as mutações constitucionais não conduzam a um processo de criação de uma constituição legal paralela.</p><p>A Teoria do Poder Constituinte analisa e discute as diferentes apresentações que o Poder Constituinte assume. Compreender a função de cada uma dessas espécies, bem como as limitações a que estão sujeitas, é essencial para diferenciá-las.</p><p>4 Aplicabilidade das normas constitucionais no tempo</p><p>O ingresso de uma nova norma constitucional no ordenamento jurídico implica a instauração de uma nova realidade normativa. Essa nova realidade impõe a necessidade de compatibilização das normas já existentes com a nova constituição.</p><p>4.1 Nova Constituição e ordem jurídica anterior</p><p>De acordo com a Teoria Constitucional, a partir do surgimento de uma nova Constituição tem origem uma nova ordem jurídica. A partir desse momento, a ordem jurídica anterior é, portanto, superada, dando lugar a uma nova realidade normativa. De acordo com Tavares (2012, 197), surge, então, a necessidade de que sejam concebidas novas regulamentações jurídicas:</p><p>A realização de um novo sistema de normas jurídicas a partir da manifestação originária do poder constituinte provoca a necessidade imediata de conceber novas regulamentações jurídicas, por meio das fontes e instrumentos previstos pela Constituição para tanto. A renovação, pois, surge como necessidade premente com o aparecimento de uma nova Constituição.</p><p>As normas então vigentes devem ser analisadas em face da Nova Constituição, de modo que, se com esta forem compatíveis, serão consideradas recepcionadas nesse novo ordenamento jurídico. Não se trata da continuação da validade da norma infraconstitucional, uma vez que a existência de uma nova Constituição retira o fundamento de legalidade das legislações que lhe antecedem. É necessário assegurar-lhes nova validade, e a esse processo denomina-se recepção. Diante de uma nova realidade normativa, uma norma existente no ordenamento jurídico deve ter sua compatibilidade com a nova constituição assegurada, com o intuito de conferir-lhe validade. Havendo a compatibilidade, se estará diante de uma norma que será recepcionada pela Constituição. Caso não haja, a norma será considerada não recepcionada, por lhe faltarem meios de permanecer válida sob a vigência da nova Constituição.</p><p>É comum afirmar que as normas anteriores à Constituição permanecem válidas, desde que, como se viu, não sejam incompatíveis com a nova ordem estabelecida. Contudo, a expressão “permanecem válidas” não oferece a exata dimensão do fenômeno. De acordo com Tavares (2012, p. 206), o que ocorre é que os fundamentos de validade da norma anterior, agora recepcionadas, mudam para a nova ordem constitucional:</p><p>A ‘recepção’ é um procedimento abreviado de criação do Direito. As leis que, na linguagem comum, inexata, continuam sendo válidas são, a partir de uma perspectiva jurídica, leis novas cuja significação coincide com a das velhas leis. Elas não são idênticas às velhas leis, porque seu fundamento de validade é diferente (TAVARES, 2012, p. 205).</p><p>A esse procedimento, Tavares denomina novação. Para o autor, se trata de um revigoramento de leis antigas, as quais são submetidas a um processo de nova leitura em face da nova ordem constitucional e, consequentemente, são alvo de atribuição de significado.</p><p>4.2 Revogação e inconstitucionalidade superveniente</p><p>Revogação é o nome atribuído à substituição do direito antigo pelo novo. Alguns autores entendem que a não recepção da norma anterior pela Constituição configuraria sua revogação por não recepção. Outros, por sua vez, limitam-se a classificar essa situação de inconstitucionalidade superveniente.</p><p>A divergência com relação à classificação dos efeitos decorrentes da nova norma constitucional não traz consequências apenas doutrinárias. Isso porque entender que se trata de inconstitucionalidade superveniente significaria admitir a possibilidade de que o Supremo Tribunal Federal, na qualidade de corte constitucional, apreciasse a validade da norma pré-constitucional, supostamente incompatível com a Constituição vigente, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade. Por outro lado, se a compreensão for de que se trata de revogação, não seria necessário observar os procedimentos previstos na Constituição da República para afastar a incidência da regra no caso concreto (MENDES, 2014).</p><p>Sobre a divergência, Mendes (2014) recorda o debate havido no Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Ação Direta de inconstitucional ADI 02-DF. O Ministro Paulo Brossard, incumbido da relatoria, aduziu que a inconstitucionalidade da lei implica a sua nulidade absoluta, ou seja, sua invalidez desde sempre, como sustentado pela doutrina tradicional.</p><p>Contudo, se a nulidade da lei decorre tão somente da superveniência de novo texto constitucional, de forma que a lei era compatível com a ordem constitucional anterior, então não poderia se dizer que sua invalidez ocorre desde sempre: ela apenas passa a operar após a vigência da nova Constituição. Dessa forma, para o relator, não seria caso de inconstitucionalidade, mas sim de revogação.</p><p>Discordando do relator, o Ministro Sepúlveda Pertence sustentou que se tratava mesmo de inconstitucionalidade superveniente, uma vez que, de acordo com o ministro, a solução de conflitos de normas no tempo por meio do critério cronológico – normas posteriores derrogando normas anteriores – apenas se aplica quando se está diante de normas de mesma hierarquia. Assim, não poderia se dizer que uma norma constitucional teria o condão de revogar uma norma infraconstitucional anterior que com ela fosse incompatível. Deve-se destacar, no entanto, que a solução encontrada pela Corte Constitucional foi aquela proposta pelo Relator Ministro Paulo Brossard. Entendeu-se, assim, que a superveniência da Constituição implica a revogação de normas anteriores que com esta sejam incompatíveis, não estando a análise sujeita ao controle constitucional concreto por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade.</p><p>4.3 Recepção Material das Normas Constitucionais</p><p>Com relação à recepção das normas constitucionais anteriores, fala-se em sua recepção material. Inicialmente, como já dito, a revogação é o instituto que alcança normas de mesma hierarquia, de forma que, diante do conflito cronológico de duas normas hierarquicamente equivalentes, a norma posterior prevalecerá sobre a norma anterior. Desse modo, a entrada de uma nova Constituição no ordenamento jurídico implica a revogação das normas constitucionais anteriores, o que ocorre de forma imediata após a manifestação do Poder Constituinte originário.</p><p>Por essa razão, para assegurar que uma norma constitucional anterior possa permanecer válida após a entrada em vigência de um nova Constituição, é necessário que haja sua recepção material, assegurando que lhes seja mantido o status de constitucionalidade que possuíam anteriormente.</p><p>A recepção material das normas constitucionais, portanto, é exceção à regra da revogação. Sua ocorrência está condicionada à existência de previsão expressa, no novo texto Constitucional, que</p><p>lhe assegure novo fundamento de validade.</p><p>A Constituição de 1988 admitiu de forma expressa a permanência, ainda que temporária, de algumas normas constitucionais anteriores. No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), por exemplo, foi previsto que o novo sistema tributário nacional entraria em vigor a partir do primeiro dia do quinto mês seguinte à promulgação da nova Constituição, e que, até aquela data, seria mantido o sistema tributário instituído pela Constituição de 1967. Ainda que em caráter transitório e por tempo limitado, houve recepção material de normas constitucionais.</p><p>4.4 Repristinação</p><p>Ainda sobre os conflitos das normas no tempo, existe o fenômeno denominado repristinação. A repristinação é o nome que se confere ao retorno da existência do fundamento de uma norma infraconstitucional que não havia sido recepcionado pela Constituição anterior.</p><p>Como exemplo, suponha-se que uma lei ordinária foi editada sob a égide de uma Constituição, sendo compatível com esta. Contudo, imagine-se que diante da superveniência de nova norma constitucional, esta lei ordinária não foi recepcionada, perdendo, portanto, o seu fundamento de validade. Durante a vigência dessa segunda Constituição, portanto, tem-se que a lei ordinária não foi recepcionada. Contudo, o que ocorreria diante da entrada em vigência de uma terceira Constituição, com a qual a antiga lei ordinária fosse compatível?</p><p>Assista aí</p><p>Enriqueça seu conhecimento! Clique aqui: https://www.youtube.com/watch?time_continue=1&v=FYE_uar8g_A&feature=emb_title</p><p>De acordo com Mendes (2014), a repristinação, ou seja, a restauração da eficácia da norma pela superveniência de nova ordem constitucional com a qual seja compatível, não pode ocorrer de forma tácita. A repristinação apenas será possível se a nova Constituição estabelecer, de forma expressa, esta possibilidade. Isso porque, se a norma infraconstitucional deixou de existir no ordenamento jurídico anterior, instituído pela Constituição com a qual era incompatível, da mesma forma a norma não poderia ser recebida, posto que não existe.</p><p>Sobre o fenômeno da repristinação, Moraes (2017, p. 477) sintetiza o entendimento de impossibilidade de presunção da repristinação:</p><p>Repristinação é o nome que se dá ao fenômeno que ocorre quando uma norma revogadora de outra anterior, que, por sua vez, tivesse revogado uma mais antiga, recoloca esta última novamente em estado de produção de efeitos. Esta verdadeira restauração de eficácia é proibida em nosso Direito, em nome da segurança jurídica, salvo se houver expressa previsão da nova lei, conforme preceitua o art. 2º, § 3º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Assim, a legislação que tenha perdido sua eficácia anteriormente à edição da nova Constituição Federal não irá readquiri-la com sua promulgação. Nesse sentido, decidiu o STF que “existe efeito repristinatório em nosso ordenamento jurídico, impondo-se, no entanto, para que possa atuar plenamente, que a repristinação encontre suporte em cláusula normativa que a preveja expressamente, pois a repristinação não se presume".</p><p>4.5 Desconstitucionalização</p><p>O conflito de normas no tempo torna possível, ainda, o fenômeno da desconstitucionalização. Esse é o nome atribuído ao efeito dado às normas constitucionais que, diante da superveniência de nova Constituição, perdem o valor constitucional sem, no entanto, deixarem de integrar o ordenamento jurídico.</p><p>Sobre o tema da desconstitucionalização, Moraes (2017, p. 477), sintetiza da seguinte forma:</p><p>Desconstitucionalização é nome técnico que se dá à manutenção em vigor, perante uma nova ordem jurídica, da Constituição anterior, que porém perde sua hierarquia constitucional para operar como legislação comum.</p><p>Em outras palavras, de acordo com a teoria da desconstitucionalização, uma norma que seja apenas formalmente constitucional – ou seja, que integra a Constituição sem, no entanto, versar sobre matéria constitucional, estará sujeita à desconstitucionalização na hipótese de superveniência de nova Constituição caso não seja incompatível com esta.</p><p>As diferentes formas de tratamento às normas constitucionais e infraconstitucionais em face da superveniência de nova Constituição são relevantes para o estudo da Teoria da Constituição, uma vez que é preciso conhecer os fenômenos e seus efeitos para compreender as mudanças do ordenamento jurídico ao longo do tempo.</p><p>Contudo, a doutrina entende que, sem que haja expressa previsão constitucional para que tais efeitos alcancem a norma anterior, não se admite que tal fenômeno possa ocorrer no ordenamento jurídico brasileiro.</p><p>É ISSO AÍ!</p><p>Nesta unidade, você teve a oportunidade de:</p><p>· aprender que o Poder Constituinte pode ser classificado em originário ou derivado, e que este pode ser compreendido como Poder Constituído, e não Constituinte;</p><p>· entender que o Poder Constituinte derivado pode se apresentar como reformador, revisor ou decorrente;</p><p>· perceber que nem toda alteração constitucional decorre da mudança do texto da Constituição: é o caso das mutações constitucionais;</p><p>· compreender porque, diante da superveniência de uma nova ordem constitucional, as normas antes existentes precisam de fundamento na Nova Constituição para continuarem a integrar o ordenamento jurídico;</p><p>· observar que as normas podem ser recepcionadas ou não recepcionadas pela Constituição.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>CANOTILHO, J. J. G. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.</p><p>KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2011.</p><p>MENDES, G. F. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.</p><p>MORAES, A. de. Direito Constitucional. 33. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2017.</p><p>NOVELINO, M. Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Método, 2009.</p><p>SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2004.</p><p>TAVARES, A. R. Curso de direito constitucional. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.</p>