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<p>Autora: Profa. Tânia Sandroni</p><p>Colaborador: Prof. Roni Everson Muraoka</p><p>Storytelling</p><p>Professora conteudista: Tânia Sandroni</p><p>Doutora em Letras pelo Programa de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo</p><p>(USP, 2018), mestra em Ciências da Comunicação pela USP (2001) e graduada em Comunicação Social, com habilitação</p><p>em Jornalismo (1990), pela USP. É professora titular da Universidade Paulista (UNIP).</p><p>© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou</p><p>quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem</p><p>permissão escrita da Universidade Paulista.</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>S219s Sandroni, Tânia.</p><p>Storytelling / Tânia Sandroni. – São Paulo: Editora Sol, 2021.</p><p>164 p., il.</p><p>Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e</p><p>Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.</p><p>1. Storytelling. 2. Narrativas. 3; Jornalismo. I. Título.</p><p>CDU 659</p><p>U511.22 – 21</p><p>Prof. Dr. João Carlos Di Genio</p><p>Reitor</p><p>Prof. Fábio Romeu de Carvalho</p><p>Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças</p><p>Profa. Melânia Dalla Torre</p><p>Vice-Reitora de Unidades Universitárias</p><p>Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez</p><p>Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa</p><p>Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez</p><p>Vice-Reitora de Graduação</p><p>Unip Interativa – EaD</p><p>Profa. Elisabete Brihy</p><p>Prof. Marcello Vannini</p><p>Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar</p><p>Prof. Ivan Daliberto Frugoli</p><p>Material Didático – EaD</p><p>Comissão editorial:</p><p>Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)</p><p>Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)</p><p>Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)</p><p>Apoio:</p><p>Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD</p><p>Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos</p><p>Projeto gráfico:</p><p>Prof. Alexandre Ponzetto</p><p>Revisão:</p><p>Vera Saad</p><p>Willians Calazans</p><p>Sumário</p><p>Storytelling</p><p>APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7</p><p>INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8</p><p>Unidade I</p><p>1 STORYTELLING: CONCEITOS E DEFINIÇÕES ..............................................................................................9</p><p>1.1 Introdução ao storytelling ...................................................................................................................9</p><p>1.2 O que é storytelling? ........................................................................................................................... 14</p><p>1.3 Storytelling como ferramenta e técnica ..................................................................................... 16</p><p>1.4 Poética de Aristóteles e suas aplicações modernas ............................................................... 20</p><p>2 O PODER DAS ESTÓRIAS............................................................................................................................... 24</p><p>3 ESTRUTURAS NARRATIVAS.......................................................................................................................... 33</p><p>3.1 Estrutura narrativa do mito ............................................................................................................. 33</p><p>3.1.1 Jornada do herói ..................................................................................................................................... 37</p><p>3.2 Estrutura narrativa dos contos maravilhosos ........................................................................... 51</p><p>4 TEXTO NARRATIVO .......................................................................................................................................... 67</p><p>4.1 Tipologia textual ................................................................................................................................... 67</p><p>4.2 Elementos constitutivos da narrativa .......................................................................................... 71</p><p>4.2.1 Enredo ......................................................................................................................................................... 71</p><p>4.2.2 Narrador ..................................................................................................................................................... 74</p><p>4.2.3 Personagens .............................................................................................................................................. 82</p><p>4.2.4 Espaço .......................................................................................................................................................... 85</p><p>4.2.5 Tempo .......................................................................................................................................................... 86</p><p>Unidade II</p><p>5 STORYTELLING E NARRATIVA JORNALÍSTICA ....................................................................................... 94</p><p>5.1 Narrativa jornalística e narrativa literária .................................................................................. 94</p><p>5.2 Histórias e sensacionalismo ...........................................................................................................102</p><p>5.3 Storytelling no jornalismo contemporâneo ............................................................................105</p><p>6 STORYTELLING COMO ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO NO MARKETING .............................114</p><p>6.1 Marcas e seus significados .............................................................................................................114</p><p>6.2 Marcas e arquétipos ..........................................................................................................................120</p><p>Unidade III</p><p>7 STORYTELLING E OS TEXTOS PUBLICITÁRIOS .....................................................................................129</p><p>8 TRANSMÍDIA E STORYTELLING .................................................................................................................140</p><p>8.1 Transmídia e crossmídia ...................................................................................................................140</p><p>8.2 Narrativa transmidiática e jornalismo .......................................................................................144</p><p>7</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Storytelling é uma palavra “em alta” nos ambientes corporativos e comunicacionais ultimamente.</p><p>Oficinas, livros, artigos e vídeos dedicam-se a ensinar essa ferramenta a profissionais e a estudantes de</p><p>marketing, publicidade e jornalismo. Ela tem sido apontada como capaz de agregar valor às marcas e</p><p>de ter grande poder de persuasão sobre o receptor.</p><p>Embora a palavra possa ser nova, a ideia é bastante antiga. Em tradução literal, storytelling significa</p><p>“contação de estória”. Trata-se, em português, da técnica, ou da arte, de se contar bem uma história, de</p><p>se construir da melhor forma possível uma narrativa.</p><p>Desde os primórdios da humanidade, as histórias (ou estórias) encantam, informam, formam e</p><p>entretêm. As narrativas estão presentes nas mais diferentes formas no cotidiano de todas as pessoas.</p><p>Imaginemos uma rotina nos dias atuais. Você acorda, lê uma reportagem sobre um estudante que</p><p>superou as dificuldades da infância e ingressou na universidade. Na sequência, ouve de um amigo a</p><p>história da viagem que ele fez com a namorada. No trabalho, escuta um colega contar sobre um assalto</p><p>no bairro dele. Ainda no trabalho, ouve uma anedota de um cliente. No ônibus, o passageiro ao seu lado</p><p>conta como teve que migrar de cidade. Na rua, ouve as pessoas comentando sobre as personagens da</p><p>novela. À noite, momento bastante aguardado, assiste a três episódios daquela série que você adora.</p><p>Percebeu que todos os momentos expostos anteriormente envolvem histórias? Em todas as</p><p>situações, alguém construiu</p><p>à bruxa Circe e</p><p>aos monstros Cila e Caríbdis. Os heróis gregos têm “superpoderes” diferentes, como os nossos. Enquanto</p><p>Héracles tem sua força sobre-humana, Aquiles tem sua agilidade e Odisseu, sua inteligência. Observe as</p><p>figuras a seguir.</p><p>38</p><p>Unidade I</p><p>Figura 17 – Héracles (vestindo a pele do Leão de Nemeia) e Iolau lutam contra a Hidra de Lerna.</p><p>Ânfora produzida entre 540 e 530 a.C., exposta no Museu do Louvre</p><p>Figura 18 – Hidra no filme Hércules (Disney, 1997)</p><p>Da mesma forma, que mero mortal poderia ter derrotado o bruxo mais poderoso de todos os tempos,</p><p>ou derrubado um império galáctico?</p><p>Mas ainda há algo além: existem estruturas narrativas que permeiam as histórias dos heróis gregos,</p><p>bem como permearão as histórias dos nossos heróis modernos. São esses elementos comuns às epopeias</p><p>que chamamos “a jornada do herói”. A figura a seguir esquematiza essa jornada.</p><p>39</p><p>STORYTELLING</p><p>Retorno Partida</p><p>Transformação</p><p>ATO I – PARTIDA</p><p>1. Chamado à aventura</p><p>2. Recusa do chamado</p><p>3. Intervenção externa</p><p>4. 1º limiar ou portal menor</p><p>5. Partida</p><p>6. Encontro com mentor</p><p>7. Experiência</p><p>ATO III – RETORNO</p><p>1. Último limiar ou portal</p><p>do retorno</p><p>2. Recusa do retorno</p><p>3. Fuga ou</p><p>desaparecimento</p><p>4. União de dois mundos</p><p>5. Liberdade para viver</p><p>6. Crise e decadência</p><p>7. Morte</p><p>8. Consequências</p><p>ATO II – TRANSFORMAÇÃO</p><p>1. Teste</p><p>2. Sucesso e fracasso</p><p>3. Crise interna e/ou externa</p><p>4. Tentação</p><p>5. Morte do herói</p><p>6. 2º limiar ou portal maior</p><p>7. Caminho de volta</p><p>8. Metamorfose e ressurreição</p><p>9. Retorno vitorioso</p><p>10. Recompensa e/ou apoteose</p><p>Figura 19 – Esquema da jornada do herói</p><p>A jornada do herói se divide em três partes: partida, transformação e retorno. Nas palavras de</p><p>Joseph Campbell (2009), temos separação, iniciação e retorno. Campbell também indica o caráter</p><p>ritualístico dessas três fases, que remetem a estruturas de rito de passagem em diversas culturas.</p><p>Conforme já discutimos, o ato de contar estórias está intimamente ligado a aspectos ritualísticos; afinal,</p><p>mitos são estórias, e mitologia e ritual alimentam-se constantemente um do outro. Vejamos como isso</p><p>se dá a seguir.</p><p>Dioniso (Baco, em latim), deus grego das festas, da loucura, do teatro e do vinho, particularmente</p><p>associado à intoxicação como contato com o divino, é filho de Zeus com a mortal Sêmele, neta de Áries</p><p>e Afrodite. Quando Sêmele estava em seu sexto mês de gestação, ela foi enganada por Hera, que a</p><p>convenceu a insistir que Zeus lhe mostrasse sua verdadeira forma. Exposta diretamente à divindade dos</p><p>deuses olímpicos, Sêmele foi fulminada por um raio e morreu. Zeus, então, removeu o feto de seu ventre</p><p>e o costurou em sua coxa, de onde nasceria Dioniso algum tempo depois.</p><p>Segundo algumas versões do mito, esse é o segundo nascimento de Dioniso. Seu primeiro nascimento</p><p>foi de Perséfone, violentada por Zeus antes de ser raptada por (ou, em algumas versões, ir voluntariamente</p><p>40</p><p>Unidade I</p><p>com) Hades. Zagreu – outro dos nomes de Dioniso, geralmente usado para se referir a ele nesse período</p><p>de seu primeiro nascimento – foi criado pelos titãs. Ainda criança, ele foi destroçado por esses mesmos</p><p>titãs sob a influência de Hera, restando apenas seu coração, resgatado por Atena. É justamente esse</p><p>coração que Zeus teria implantado no ventre de Sêmele, proporcionando o renascimento de Dioniso.</p><p>Para tentar esconder o filho da ira de Hera, Zeus entregou-o a Hermes, que, por sua vez, o levou</p><p>até Ino, irmã de Sêmele, para que fosse criado como sua filha (Zeus ordenou que Dioniso fosse</p><p>criado como mulher, provavelmente para despistar Hera). Hera fez com que Atamante, marido de Ino,</p><p>enlouquecesse e matasse seu filho, Learco. Em seguida, Ino, também enlouquecida, matou seu outro</p><p>filho, Melicertes, e atirou-se ao mar com ele. Porque Hera sabia que o filho de Zeus era um menino,</p><p>ela achou que ele também tivesse sido morto; Zeus, então, escondeu Dioniso entre as ninfas de Nisa,</p><p>que, por seu serviço a Zeus, foram transformadas nas estrelas Híades.</p><p>Como consequência desse mito, Dioniso foi consistentemente associado à loucura, e geralmente</p><p>punia mortais que o desafiavam com ela. Na tragédia As Bacantes, presenciamos Dioniso (Baco, na</p><p>cultura romana) fazer a mãe, as tias e as irmãs do rei Penteu de Tebas entrarem em um frenesi em que</p><p>despedaçam o rei com as próprias mãos.</p><p>Dioniso era conhecido por produzir uma espécie de transe, particularmente em mulheres.</p><p>Tendo sido criado inicialmente como uma mulher, e posteriormente entre as ninfas, ele é</p><p>particularmente ligado à feminilidade. Por vezes, como no caso de As Bacantes, esse transe era</p><p>irrefreavelmente violento; outras vezes, ele era uma conexão profunda com os deuses, quase como</p><p>uma ascensão à divindade, e parte de ritos regulares a Dioniso. As Bacantes (chamadas de Mênades,</p><p>em grego) que dão nome à tragédia de Eurípedes, por sinal, são ninfas que cultuam Dioniso, e delas</p><p>provêm muitos de seus ritos e cultos, imediatamente reconhecíveis pela expressiva presença de</p><p>mulheres, estrangeiros e escravos, bem como os transes provocados neles.</p><p>Figura 20 – Estátua de Dioniso, produzida no século II d.C., exposta no Museu do Louvre</p><p>41</p><p>STORYTELLING</p><p>Figura 21 – A morte de Penteu, tigela de cosméticos produzida</p><p>por volta de 450-425 a.C. exposta no Museu do Louvre</p><p>A história de Dioniso era formadora dos ritos dedicados a ele, bem como seus ritos eram formadores</p><p>de sua história. Outro exemplo é o tradicional sacrifício feito a Dioniso, em geral, de cabras e cordeiros.</p><p>Afinal, o deus aparece frequentemente na forma de um bode e está intimamente ligado – de novo em</p><p>função de sua história – à morte e ao renascimento.</p><p>Narramos brevemente a história de Dioniso para que fique claro que a conexão entre storytelling e</p><p>os processos ritualísticos é antiga e mais íntima do que nos pode parecer a princípio.</p><p>Não nos parece muito difícil entender por que a jornada do herói tem forte conexão com o mito.</p><p>Como veremos, as mitologias divinas e a jornada do herói têm muito em comum.</p><p>Aproveitaremos também este momento para tratar de um aspecto oculto, porém comum da jornada</p><p>do herói: a ideia de destino. Para exemplificar a ideia grega de destino, narraremos aqui duas famosas</p><p>histórias da mitologia grega: a história de Édipo e a história de Aquiles.</p><p>Talvez a mais amplamente conhecida das tragédias gregas, Édipo Rei, de Sófocles, narra a história de</p><p>um bebê deixado para morrer, com os pés amarrados, no Monte Citerão, entre Tebas e Corinto. Levado</p><p>por um pastor a Corinto, a criança é adotada por Pólibo. Muitos anos depois, quando o jovem consulta o</p><p>Oráculo de Delfos acerca de sua origem, ele recebe uma terrível profecia: ele matará seu pai e se casará</p><p>com sua mãe. Buscando evitar seu destino, Édipo deixa Corinto. No caminho, ele encontra um velho</p><p>viajante, com quem discute. Enfurecido, Édipo mata o viajante e quase toda sua comitiva. O que Édipo</p><p>não sabe, é claro, é que o viajante é Laio, rei de Tebas e seu pai biológico.</p><p>Andando sem rumo, Édipo encontra-se às portas de Tebas, onde a Esfinge lhe propõe um enigma.</p><p>A resposta correta de Édipo salva sua vida e a cidade. Como recompensa, Creonte, irmão da rainha e até</p><p>então regente de Tebas, oferece-lhe a rainha Jocasta em casamento e o título de rei.</p><p>Quinze anos depois, a cidade se vê assolada por uma terrível peste. Creonte aconselha Édipo, dizendo</p><p>que é preciso que se encontre o assassino de Laio, falecido rei de Tebas e marido de Jocasta, que morrera</p><p>misteriosamente. Tirésias, o sábio cego que aparece como mentor para alguns heróis, incluindo Odisseu,</p><p>informa Édipo de que o assassino está mais próximo do se imagina. Nesse meio-tempo, o palácio recebe</p><p>42</p><p>Unidade I</p><p>a notícia da morte de Pólibo, pai adotivo de Édipo. Na sequência, aparece o único sobrevivente da</p><p>comitiva de Laio: o pastor que levara Édipo, ainda criança, ao Monte Citerão para morrer sob comando</p><p>do rei, que temia uma profecia que recebera acerca do filho. O homem reconhece tanto o bebê que</p><p>abandonara quanto o assassino de Laio na</p><p>mesma pessoa: Édipo, rei de Tebas.</p><p>Diante dessa descoberta, Jocasta comete suicídio e Édipo se cega, furando os próprios olhos. Ele</p><p>cumprira a profecia que lhe fora dada: matara o próprio pai e casara-se com a própria mãe. Apesar das</p><p>tentativas de Laio e de Édipo de evitar a profecia, ela se cumprira de uma maneira inesperada.</p><p>Observação</p><p>Na década de 1990, o jornal sensacionalista Notícias Populares teve</p><p>uma campanha publicitária baseada na ideia de que as grandes histórias</p><p>da literatura mundial também continham doses de violência. Em uma das</p><p>peças, valeu-se da tragédia de Édipo, como se vê no anúncio a seguir.</p><p>Figura 22 – Anúncio do jornal Notícias Populares</p><p>Contrastemos a história de Édipo com a de Aquiles. Filho da ninfa Tétis e do rei Peleu (neto de</p><p>Zeus), Aquiles é o herói grego por excelência e o mais poderoso dos guerreiros que lutaram em Troia.</p><p>No começo da Ilíada, Aquiles, insultado por Menelau, recusa-se a voltar ao campo de batalha. Temendo</p><p>que a ausência de Aquiles encorajasse os troianos, Agamenon envia Ajax e Odisseu para que o convençam</p><p>a retornar. Aquiles, tomado pela fúria cega que é sua marca, recusa. Mais tarde, diante das dificuldades</p><p>encontradas pelos aqueus sem Aquiles, Pátroclo, amigo e amante de Aquiles, lhe pede sua armadura e</p><p>o direito de comandar em batalha suas tropas, os lendários e valentes mirmidões, na esperança de que</p><p>a mera imagem de Aquiles seja suficiente para fazer recuarem os troianos. Aquiles concede, mas instrui</p><p>Pátroclo para que apenas expulse os troianos e não os persiga.</p><p>43</p><p>STORYTELLING</p><p>Vestindo a armadura de Aquiles, Pátroclo força os troianos a recuarem e, desobedecendo ao conselho</p><p>de Aquiles, os persegue até as muralhas da cidade. Heitor, percebendo que não era de fato Aquiles quem</p><p>os atacava, luta com Pátroclo e o mata. Imediatamente, desenrola-se uma disputa pelas armas de</p><p>Aquiles, que acabam por serem tomadas por Heitor. Ajax recupera o corpo de Pátroclo, que leva de volta</p><p>ao acampamento grego. Aquiles, tomado completamente pelo luto da morte de Pátroclo, vai a sua mãe,</p><p>Tétis. Ela lhe promete novas armas, e vai a Hefesto, deus da forja, pedir que elas sejam produzidas.</p><p>Tétis oferece também conselhos ao filho. Ela diz que Aquiles tem dois destinos: se escolher lutar,</p><p>ele morrerá jovem, mas será eternamente lembrado como o maior dos heróis; se ele se recusar a</p><p>lutar, viverá uma longa vida, mas será esquecido. Já movido pelo desejo de provar-se como herói,</p><p>a morte de Pátroclo leva Aquiles a tomar o passo final e escolher a própria morte. Com armas</p><p>novas e tomado por uma fúria incontrolável – tão incontrolável, na verdade, que Zeus permite</p><p>que todos os deuses participem do combate, temendo que a ira de Aquiles destrua Troia antes do</p><p>tempo –, Aquiles faz com que o exército aqueu avance até as muralhas da cidade. Lá, ele entra em</p><p>combate com Heitor, e os dois dão três voltas na cidade em seu duelo, ao final do qual Aquiles mata</p><p>Heitor e arrasta seu corpo de volta ao acampamento grego. À noite, o velho Príamo, pai de Heitor,</p><p>procura por Aquiles e implora pelo corpo de seu filho, para que ele possa receber os ritos fúnebres</p><p>que merece. Comovido pela sinceridade do sofrimento de Príamo, a ira de Aquiles finalmente se</p><p>abranda e ele devolve o corpo de Heitor aos troianos. Os ritos fúnebres de Heitor encerram a Ilíada</p><p>– após a morte do maior de seus heróis, a queda de Troia é apenas uma questão de tempo.</p><p>Aquiles sobrevive à Guerra de Troia, mas já recebe de Heitor a profecia de sua morte. Posteriormente,</p><p>Aquiles será morto com uma flecha envenenada de Páris, guiada pelo deus Apolo.</p><p>Narramos brevemente essas duas conhecidas histórias para ilustrar como o conceito grego de</p><p>“destino” é complexo e de difícil definição. No caso de Édipo, o destino parece fixo e inescapável,</p><p>independentemente de qualquer escolha que poderia ser tomada por ele. Já no caso de Aquiles, existem</p><p>dois destinos, e é sua escolha que sela o que virá a seguir. Mais do que isso, ele parece desafiar aquilo</p><p>que já foi estabelecido pelos deuses – do contrário, por que Zeus temeria sua ira? Por que teria sido</p><p>necessário conter Aquiles antes que ele saqueasse Troia?</p><p>Embora a história tenha garantido diversas semelhanças culturais entre a Grécia clássica e o mundo</p><p>ocidental moderno, o conceito grego de livre-arbítrio parece-nos um pouco obscuro. Para os gregos,</p><p>a influência dos deuses não se opõe ao livre-arbítrio dos mortais; afinal, deuses e mortais não são</p><p>criaturas tão essencialmente diferentes. Basta pensar que, na mitologia grega, os deuses viviam no Monte</p><p>Olimpo, lugar físico e real da Grécia, para começar a compreender que mortais e deuses não estão muito</p><p>distantes – e deuses e heróis menos distantes ainda. Não à toa, os deuses gregos são antropomórficos,</p><p>isto é, se parecem com humanos, apenas ocasionalmente disfarçando-se como animais. Os deuses e</p><p>o contato com os deuses são parte integrante da vida dos mortais; não é possível separar, portanto, a</p><p>influência divina do livre-arbítrio.</p><p>44</p><p>Unidade I</p><p>Figura 23 – A morte de Aquiles, pelo pintor Peter Paul Rubens</p><p>O conceito de destino habita esse mesmo campo híbrido entre deuses, heróis e mortais. Aquilo que</p><p>foi estabelecido pelos deuses – por vezes, por forças ainda maiores do que os deuses – não pode ser</p><p>descartado ou ignorado, mas tampouco é completamente imutável. É como se houvesse um mapa que</p><p>contém apenas um círculo em torno da destinação, mas nenhum caminho. O caminho será construído</p><p>pelo herói, que chegará, eventualmente, a uma destinação já demarcada, mas ainda assim surpreendente.</p><p>Repare como as profecias são ao mesmo tempo específicas e gerais: Édipo matará seu pai e casará com</p><p>sua mãe, mas não sabemos se isso se refere aos seus pais adotivos ou biológicos. Aquiles morrerá em</p><p>batalha (porque escolheu esse entre os seus destinos), mas não sabemos onde, quando nem como.</p><p>O entrelugar do destino na mitologia grega tem também sua interpretação moderna. Retomemos,</p><p>por exemplo, obras como Harry Potter e Star Wars. No primeiro, vemos o uso moderno da profecia,</p><p>não muito diferente de seu uso clássico: é profetizado por Trelawney que “ao final do sétimo mês”</p><p>nascerá um menino, filho daqueles “que o desafiaram três vezes”, com o poder de derrotar Voldemort.</p><p>Esse menino será marcado pelo Lorde das Trevas como seu igual, e um dos dois deverá ser morto pelo</p><p>outro. A princípio, ao saber da profecia e temendo sua realização, Voldemort encontra dois candidatos</p><p>possíveis, que cumprem as características listadas por Trelawney: Harry Potter e Neville Longbottom.</p><p>45</p><p>STORYTELLING</p><p>Voldemort pretende matar as crianças ainda pequenas, removendo assim a ameaça ao seu poder.</p><p>Como o foi para Édipo, sua tentativa de mudar o destino é o que garante que ele se cumpra. Ao tentar</p><p>matar Harry, ele acidentalmente faz do menino uma Horcrux (um receptáculo que pode armazenar</p><p>parte da alma de um bruxo, protegendo-o da morte), deixando Harry com a cicatriz que o marca como</p><p>um igual, conforme havia sido predito. A segunda parte da profecia, em que um deverá matar o outro,</p><p>acontece em duas partes: primeiro, quando Voldemort “mata” Harry e acaba, na verdade, por matar sua</p><p>própria Horcrux e, por fim, quando Harry derrota o Lorde das Trevas.</p><p>Em Star Wars, sabemos que é o destino de Anakin Skywalker trazer equilíbrio à Força. A interpretação</p><p>que os Jedis fazem dessa profecia, baseados nos seus próprios valores, é de que Anakin destruirá os</p><p>Sith. A Força, no entanto, tem um caráter moralmente ambíguo que também pode ser observado nas</p><p>divindades: ela não está do lado dos Jedis, tampouco do lado dos Sith. A Força simplesmente existe. Isso</p><p>permite que Anakin cumpra sua profecia de forma inesperada. Primeiro, ele mata o Conde Dookan, um</p><p>dos Sith. Isso faz com que exista apenas um Sith para vários Jedis; a Força, portanto, está desequilibrada.</p><p>Tentado, como frequentemente são os heróis, pelo amor e pelo desejo de uma vida comum, Anakin será</p><p>gradualmente tomado por uma fúria incontrolável</p><p>muito semelhante à de Aquiles. É essa fúria que o</p><p>levará a tornar-se Darth Vader. Ao final do Episódio III, existem apenas dois Jedis (Obi-Wan Kenobi e</p><p>Yoda) e dois Siths (Darth Sidious e Darth Vader): isto é, existe equilíbrio na Força. O destino de Anakin foi</p><p>cumprido; e, porque seu destino foi cumprido, o lugar de herói é tomado por seu filho, Luke Skywalker.</p><p>O destino, em outras palavras, é tão certo quanto é misterioso. Ele ocupa um espaço ambíguo</p><p>próprio do mito e das divindades, de modo que é difícil encontrar seu lugar na jornada do herói. Mais</p><p>do que um dos elementos em uma sequência, o destino é o elemento que permeia todas as partes da</p><p>jornada do herói.</p><p>Tendo estabelecido por que o destino não aparece em nossa esquematização da jornada do herói,</p><p>aproveitamos também para esclarecer que essa esquematização tem caráter inteiramente didático.</p><p>Ato I – Partida</p><p>No começo do primeiro filme da saga de Star Wars, que posteriormente viria a se tornar o Episódio IV</p><p>da série, somos apresentados ao jovem Luke Skywalker. Ele é um jovem simples, honesto e um tanto</p><p>ingênuo, vivendo uma vida comum no planeta desértico de Tatooine com seus tios, que são fazendeiros.</p><p>É a típica vida rural, “pacata”, que provoca no espectador – particularmente considerando que a maioria</p><p>dos espectadores, especialmente quando do lançamento do filme, viviam em cidades – um senso de</p><p>estabilidade, monotonia, quase tédio. Além das condições de pobreza em que vivem os Skywalker, bem</p><p>como a maioria dos habitantes de Tatooine, há um senso de empatia pelo protagonista.</p><p>Pelo que parece a princípio ser uma coincidência do destino, ele encontra uma mensagem da Princesa</p><p>Leia de Alderaan – que posteriormente descobriremos ser sua irmã – endereçada a Obi-Wan Kenobi.</p><p>Movido pela mensagem, Luke vai em busca de Ben Kenobi, nome adotado por Obi-Wan em Tatooine.</p><p>É Obi-Wan, como primeiro mentor de Luke nos assuntos da Força, que consolida o primeiro estágio da</p><p>jornada: o chamado à aventura.</p><p>46</p><p>Unidade I</p><p>Após fornecer a Luke algumas meias-verdades acerca de seu pai, Anakin, Obi-Wan pede que ele</p><p>se junte à Rebelião na luta contra o Império. Luke toma, então, o segundo passo de sua aventura:</p><p>ele recusa o chamado, alegando que precisa cuidar de seus tios. Porque a história precisa seguir seu</p><p>caminho, e porque o destino do herói nunca pertence a ele, vem então uma intervenção externa, com</p><p>os tios de Luke sendo violentamente assassinados. Este é também seu 1º limiar, ou seja, seu primeiro</p><p>teste, o primeiro portal que ele cruza em sua jornada como herói.</p><p>Em seguida, observamos o ponto climático da primeira fase: a partida do herói de seu lugar de</p><p>origem para um mundo que ele desconhece. No caso de Luke, o encontro com o primeiro de seus</p><p>mentores ocorre antes mesmo da partida; em outros casos, porém, o encontro com o mentor só</p><p>ocorrerá depois da partida. Pensemos em séries como Harry Potter, por exemplo, em que o protagonista</p><p>só vem a encontrar seus mentores já em Hogwarts.</p><p>A próxima fase, que chamamos de experiência, é o período em que o herói está em fase de</p><p>treinamento, desenvolvendo suas habilidades, seus relacionamentos e sua própria identidade. No caso</p><p>de Luke Skywalker, esse período se inicia quando ele deixa Tatooine e inclui os encontros com Han</p><p>Solo, Chewbacca e Leia, entre outros, bem como os relacionamentos que se desenvolvem entre eles.</p><p>Esse período acaba quando ele passa por seu primeiro teste, com a infiltração da Estrela da Morte e a</p><p>resultante morte de seu primeiro mentor, Obi-Wan Kenobi.</p><p>Figura 24 – Robô e Mestre Yoda de Star Wars</p><p>Vejamos, ainda, a semelhante trajetória de Odisseu em relação à Guerra de Troia. Primeiro, o chamado</p><p>à aventura vem na forma de Menelau, que vai a Ítaca recrutá-lo para o exército aqueu. Odisseu tenta</p><p>recusar, fingindo loucura – afinal, que valor teria o grande Odisseu sem sua lendária astúcia? Vem</p><p>então a intervenção externa, quando seu filho recém-nascido é colocado no caminho do arado. Odisseu</p><p>47</p><p>STORYTELLING</p><p>desviou, revelando no processo que não estava de forma alguma senil e, como consequência, foi forçado</p><p>a tomar parte na Guerra de Troia. Diante disso, ele parte para recrutar Aquiles, que se encontrava</p><p>disfarçado entre as damas do palácio de Licomedes, onde fora colocado por sua mãe, Tétis, que temia a</p><p>morte do filho se ele participasse da guerra: esse é o primeiro limiar de Odisseu, pois o evento coloca em</p><p>movimento o que se seguirá na Guerra de Troia.</p><p>Poderíamos traçar, ainda, percurso parecido para a partida de Odisseu após a Guerra de Troia. Dessa</p><p>vez, o chamado à aventura tem origem em um deus: Poseidon. É importante que se esclareça que, na</p><p>mitologia grega, era comum que os deuses competissem entre si, geralmente por intermédio de mortais</p><p>escolhidos. Da mesma forma, há inimizades entre deuses e heróis. A própria Guerra de Troia começa com</p><p>uma disputa entre os deuses.</p><p>No caso específico de Odisseu, a inimizade com Poseidon que lhe custará quase dez anos de jornada</p><p>parte principalmente de um dos primeiros eventos de sua jornada. Após terem todos os seus navios</p><p>desviados por tempestades, Odisseu e seus companheiros são capturados pelo ciclope Polifemo, que</p><p>devora parte dos homens.</p><p>Odisseu oferece-lhe vinho, dizendo que a oferta vem de “Ninguém” e, quando o ciclope adormece,</p><p>ele e seus companheiros afiam uma vara e perfuram o olho de Polifemo. Cego, o ciclope tateia</p><p>ao seu redor, mas só consegue sentir o pelo de suas ovelhas, pois Odisseu e os demais tripulantes</p><p>esconderam-se, agarrados às barrigas dos animais. Polifemo remove a enorme rocha que bloqueava a</p><p>entrada da caverna e grita por ajuda aos seus irmãos ciclopes, dizendo que “Ninguém” o cegou.</p><p>Já de volta em seu navio, no entanto, Odisseu comete um erro comum dos heróis gregos, chamado</p><p>de húbris. Geralmente traduzido como “arrogância” ou “descomedimento”, o termo refere-se àquilo que</p><p>frequentemente cega os heróis e enfurece os deuses: a crença de que eles, heróis, também são seres</p><p>divinos. Seguro em seu navio, Odisseu revela seu nome a Polifemo e garante a inimizade de Poseidon,</p><p>pai do ciclope, no processo.</p><p>As intervenções de Poseidon arrancam Odisseu do que poderia ter sido uma viagem pacífica (como,</p><p>por sinal, teve a maior parte dos outros heróis) de volta para casa e o forçam a uma jornada de aventura,</p><p>repleta de testes e provações.</p><p>Saiba mais</p><p>Conheça também a minissérie A Odisseia (The Odyssey), de 1997,</p><p>produzida pela NBC:</p><p>A ODISSEIA. Direção: Andrei Konchalovsky. EUA: NBC, 1997. 150 min.</p><p>48</p><p>Unidade I</p><p>Esse é um percurso comum que inicia a jornada do herói, o que não quer dizer que ele só possa</p><p>ocorrer no começo da história. A saga de Star Wars, que já utilizamos como exemplo, tem ao menos três</p><p>jornadas do herói completas, uma para cada um de seus protagonistas. É comum que sagas heroicas,</p><p>como Star Wars, Harry Potter e O Senhor dos Anéis, para citar os exemplos mais famosos, repitam um</p><p>ou mais dos percursos da jornada do herói, seja o protagonista outro ou o mesmo.</p><p>Ato II – Transformação</p><p>O que marca a transição entre a etapa da partida e a etapa da transformação é o primeiro grande</p><p>teste do herói. Conforme mencionamos, no caso de Luke Skywalker esse teste envolve a infiltração na</p><p>Estrela da Morte e a morte de Obi-Wan Kenobi. O teste geralmente resulta, depois de todos os sucessos</p><p>do herói em seus desafios menores, em seu primeiro fracasso total ou parcial, que por sua vez conduz</p><p>o herói a uma crise interna ou externa. Geralmente, a crise é provocada ou intensificada por algum</p><p>tipo de tentação.</p><p>Como já tratamos sobre a Disney anteriormente, observemos o exemplo do filme Hércules. Baseado</p><p>na estória de Héracles, herói mitológico grego, o filme segue um percurso bastante reconhecível para</p><p>estudarmos as estruturas narrativas das narrativas épicas.</p><p>Já reconhecido amplamente como um herói, Hércules ainda assim se vê diante de um novo teste,</p><p>um teste de sua própria identidade: ele não é um deus, mas tampouco é como os mortais. Ele é tentado</p><p>tanto pelo desejo de tornar-se um deus quanto pelo desejo de viver uma vida mortal com Megara,</p><p>por quem se apaixona. Quando é forçado por Hades a escolher entre Megara e seus poderes, Hércules</p><p>escolhe proteger a amada. Ele falha em resistir à tentação do amor e consequentemente perde seus</p><p>poderes – é isso, por sinal, que chamamos de morte do herói. Embora por vezes essa morte possa</p><p>ser literal, física, ela é majoritariamente simbólica, indicando o momento em que o herói perde seus</p><p>poderes, sua determinação, seu caminho e sua própria identidade.</p><p>Ao decidir enfrentar o ciclope que está atacando a cidade de Tebas, mesmo sem sua força, Hércules</p><p>está cruzando seu 2º limiar, o portal que o herói cruza quando retorna à ação depois de sua crise;</p><p>isto é, quando ele decide ser ou não um herói. O caminho de volta, como ocorre com frequência,</p><p>é indicado pelo mentor, e o herói ressurge, transformado, para cumprir seu destino. Seu retorno é</p><p>geralmente vitorioso, como o é para Hércules, e ele é recompensado com a veneração de seu povo:</p><p>aquilo que chamamos de recompensa e apoteose. Apoteose é uma palavra derivada do latim que</p><p>indica deificação, ou seja, a inclusão no divino.</p><p>Na série animada She-Ra e as Princesas do Poder de 2018, baseada na série She-Ra: Princesa do</p><p>Poder de 1985, acompanhamos as aventuras da heroína Adora na luta contra a Horda. Diante da ameaça</p><p>de uma arma de imenso poder localizada no interior de seu planeta, Etéria, Adora consegue impedir</p><p>que o planeta seja destruído, mas não que ele seja transportado para outra dimensão, ocasionando uma</p><p>nova ameaça. Isto é, seu teste resulta ao mesmo tempo em sucesso e fracasso. Como consequência de</p><p>suas ações, Adora perde seus poderes e passa por uma crise ao mesmo tempo interna e externa, com a</p><p>própria identidade e a segurança do planeta postas em jogo.</p><p>49</p><p>STORYTELLING</p><p>Saiba mais</p><p>Conheça a animação da Disney sobre Hércules e a minissérie She-Ra e</p><p>as Princesas do Poder:</p><p>HÉRCULES. Direção: Ron Clements; John Musker. EUA: Walt Disney</p><p>Pictures, 1997. 93 min.</p><p>SHE-RA e as Princesas do Poder. Direção: Noelle Stevenson. EUA:</p><p>DreamWorks Animation Television, 2018. 24 min.</p><p>Seu caminho de volta é relativamente lento quando comparado aos caminhos de heróis como</p><p>Hércules, mas isso provavelmente se deve ao formato; afinal, estamos tratando de uma série, não de um</p><p>filme. Ela também não é motivada a encontrar o caminho de volta por seus mentores, mas antes por</p><p>seus relacionamentos. Adora cruza o segundo portal, tomando a decisão de cumprir seu destino como</p><p>heroína, guiada pelo desejo de proteger aqueles que ama. Sua metamorfose é marcada, também, por</p><p>uma mudança física em She-Ra, que renasce mais parecida com Adora em sua forma comum, indicando</p><p>a fusão entre a protagonista e seu alter ego heroico. Seu retorno é vitorioso, e sua recompensa é o</p><p>resgate de seus amigos.</p><p>Insistimos que essas estruturas, embora comuns às narrativas de herói, não são tão fixas quanto</p><p>podem parecer a princípio. Não é incomum, principalmente em mídias mais longas como séries e livros,</p><p>que o herói passe pela fase de transformação mais de uma vez, por exemplo. Isso acontece no caso de</p><p>She-Ra. Tampouco é incomum que haja variações na ordem dos elementos; no caso de Hércules, por</p><p>exemplo, a tentação precede a crise. É possível, ainda, embora consideravelmente menos comum, que o</p><p>herói não retorne de sua crise; isto é, que o herói decida rejeitar seu destino. Nesses casos, geralmente,</p><p>a transformação indica a passagem do herói para o papel de antagonista ou vilão. Às vezes, o herói</p><p>transforma-se em um mortal comum; ou, simplesmente, morre, abrindo espaço para um novo herói.</p><p>Ato III – Retorno</p><p>Se nas etapas anteriores indicamos que os elementos e sua ordem podem variar, no terceiro ato não</p><p>estabeleceremos uma ordem. Antes, os itens que listamos como o encerramento da jornada do herói são</p><p>diferentes possibilidades de final. É comum que um ou mais desses elementos se apresentem ao final</p><p>da jornada do herói, sendo alguns mais comuns do que os outros. Uma vez cruzado o último limiar, o</p><p>último dos portais, que leva o herói de volta ao começo, o que vem depois depende inteiramente das</p><p>características do herói e sua história. Baseados nos heróis que usamos como exemplo, observemos</p><p>como isso ocorre.</p><p>Ao final de Hércules, vemos a recusa do retorno – após toda a sua jornada em busca da divindade,</p><p>Hércules acaba por recusar voltar ao Olimpo para ficar com Megara. Isso lhe proporciona a união de</p><p>dois mundos, ou seja, ele é um deus entre os mortais, e um mortal entre os deuses. Isso também abre</p><p>50</p><p>Unidade I</p><p>caminho para aquilo que chamamos de liberdade para viver: o momento em que o herói, por fim, pode</p><p>ter a experiência de uma vida normal.</p><p>Édipo também passa pela recusa do retorno, mas seu percurso posterior é completamente diferente.</p><p>Como boa tragédia, Édipo Rei não tem o que chamaríamos de um final feliz. Tomado por sua crise e</p><p>decadência, Édipo recusa o retorno, seja ele a Corinto, onde foi criado, ou a Tebas, onde era rei. Ele</p><p>escolhe vagar sem rumo pela Grécia guiado por sua filha, Antígona – isto é, ele escolhe a fuga e o</p><p>desaparecimento e, eventualmente, a morte.</p><p>Ainda outro herói que citamos a passar pelos estágios de recusa do retorno, crise e decadência,</p><p>fuga e desaparecimento e morte é Luke Skywalker. Na trilogia mais recente de Star Wars, encontramos</p><p>Luke isolado, em crise e recusando seu papel como herói. Diferentemente de Édipo, no entanto, esse</p><p>caminho não o leva à morte – sua morte, na verdade, é consequência de seu retorno como herói. Não</p><p>é coincidência que a história de Luke tenha tantos pontos de similaridade com a história de seu pai,</p><p>Anakin Skywalker. Também Anakin recusa o chamado do retorno – feito na forma de sua esposa e seu</p><p>mentor – e isso o leva para um caminho de crise e decadência. Para ele, a morte do herói parece ser</p><p>permanente até o momento de sua morte física ao final do Episódio VI. A redenção de Anakin, portanto,</p><p>é sua própria morte.</p><p>Não é raro, por sinal, que encontremos, ao longo da jornada do herói, a ideia da morte como sacrifício,</p><p>purificação e redenção. Que Aquiles escolha a própria morte o redime não só de sua culpa pela morte</p><p>de Pátroclo, mas pelo seu desrespeito com o corpo de Heitor – é, afinal, o próprio irmão de Heitor quem</p><p>o matará, apesar de Aquiles ser o maior dos heróis e Páris ser considerado pouco habilidoso como</p><p>guerreiro. Em Harry Potter, quase todas as mortes são momentos de redenção, particularmente entre</p><p>os mentores: Dumbledore, Snape e Sirius se redimem com o próprio sacrifício. Em O Senhor dos Anéis,</p><p>Boromir e Gollum passam pelo mesmo processo. Em She-Ra e as Princesas do Poder, Ângela e Sombria</p><p>também. Como podemos perceber, os exemplos são muitos.</p><p>Deixaremos de lado quão bem realizados ou não são os arcos de redenção de cada um desses</p><p>personagens. O debate acerca de quão efetivo é o papel da morte como redenção nessas narrativas,</p><p>infelizmente, foge ao nosso escopo no momento. O que gostaríamos de pontuar é que o uso da morte –</p><p>particularmente do sacrifício – como forma de redenção tem raízes fortes e profundas em muitas culturas.</p><p>A imagem do mártir é culturalmente forte, especialmente nas culturas ocidentais e majoritariamente</p><p>cristãs; mas, mais do que isso, o uso da morte purificadora como estrutura narrativa nos remete, mais</p><p>uma vez, ao aspecto ritualístico das histórias. Afinal, não é raro que encontremos religiões em que a</p><p>ideia de sacrifício é prevalente, seja ele material e físico, seja ele espiritual e metafórico. O cristianismo,</p><p>com destaque para o catolicismo, por exemplo, baseia-se amplamente na ideia de sacrifício.</p><p>Essencialmente, o ponto a que queremos chegar é que o herói, ao final de sua jornada, terá</p><p>de lidar com as consequências de suas ações, sejam elas positivas, negativas ou mistas. Apesar de</p><p>seu destino ter sido traçado ainda na mais tenra infância, Édipo terá de lidar com as consequências</p><p>desse destino. Apesar de Harry Potter, similarmente,</p><p>ter recebido ainda bebê a profecia de seu destino,</p><p>as consequências serão suas. Da mesma forma, porque Aquiles escolheu a própria morte, ele deverá lidar</p><p>51</p><p>STORYTELLING</p><p>com as consequências. Independentemente do grau de escolha e vontade do herói, as consequências</p><p>lhe pertencem.</p><p>Saiba mais</p><p>Para saber mais sobre a jornada do herói, leia o livro:</p><p>CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 2009.</p><p>3.2 Estrutura narrativa dos contos maravilhosos</p><p>O formalista Vladimir Propp dedicou-se a identificar a estrutura básica de contos folclóricos russos.</p><p>Em 1928, publicou Morfologia do conto maravilhoso, obra que pretende classificar personagens e</p><p>funções narrativas desses textos.</p><p>Observação</p><p>Considera-se maravilhoso o conto que não problematiza a dicotomia</p><p>entre o real e o imaginário. O mágico, o sobrenatural e o irracional</p><p>inserem-se no universo da estória sem qualquer questionamento. Os contos</p><p>de fada são contos maravilhosos.</p><p>Propp mostrou que o conto maravilhoso se origina de concepções sagradas do mundo, e,</p><p>dialeticamente, resulta da profanação do conteúdo religioso.</p><p>O autor realizou uma descrição dos contos com base em suas partes constitutivas, nas relações entre</p><p>elas e na relação entre essas partes e o conjunto do texto. Propp descobriu que, muitas vezes, os contos</p><p>emprestam as mesmas ações aos personagens.</p><p>Observação</p><p>O formalismo é uma corrente de pensamento aplicado pela crítica</p><p>literária no início do século XX. Os formalistas preocupavam-se,</p><p>essencialmente, com o que tornava um texto literário. Em outras palavras,</p><p>buscavam identificar, na forma, como era construída a literariedade.</p><p>Na composição dos contos maravilhosos, Propp identificou sete papéis ou personagens fixos, com</p><p>suas respectivas esferas de ação:</p><p>52</p><p>Unidade I</p><p>• o herói;</p><p>• o antagonista (ou agressor);</p><p>• o doador;</p><p>• o auxiliar;</p><p>• a princesa (ou seu pai);</p><p>• o mandante;</p><p>• o falso herói.</p><p>Além disso, estabeleceu 31 funções (ações) constantes: afastamento, proibição, transgressão da</p><p>proibição, interrogatórios, informação sobre o herói, embuste, cumplicidade, dano, carência, mediação,</p><p>início da reação, partida, primeira função do doador, reação do herói, recepção do objeto mágico,</p><p>deslocamento no espaço, combate, marca do herói, vitória, reparação do dano ou carência, regresso</p><p>do herói, perseguição, salvamento, retorno incógnito, falsa pretensão, tarefa difícil, tarefa cumprida,</p><p>reconhecimento, desmascaramento, transfiguração, castigo e casamento. Essas funções são também</p><p>chamadas de “sintagmas narrativos”.</p><p>Nas palavras de Propp, temos o que segue.</p><p>Por função compreende-se o procedimento de um personagem,</p><p>definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação</p><p>(PROPP, 1978, p. 22).</p><p>Propp aponta a sequência em que se encadeiam as ações, afirmando que sua combinação não é</p><p>aleatória: ela deriva de uma regra de composição que orienta o sentido da narrativa. Segundo o autor,</p><p>é possível que um conto maravilhoso não apresente todas as funções, mas a ordem delas não se altera.</p><p>Repare, por exemplo, na estória de Chapeuzinho Vermelho. A menina afasta-se da casa, recebe</p><p>uma ordem da mãe e é enganada pelo lobo. Depois, ela é salva pelo lenhador (herói), e o lobo</p><p>(antagonista) é punido.</p><p>Segundo João Luiz Lafetá (2004, p. 79), Propp</p><p>demonstrou que os contos populares se constituem sempre em torno</p><p>de um núcleo simples. O herói sofre um dano ou tem uma carência, e as</p><p>tentativas de recuperação do dano ou de superação da carência constituem</p><p>o corpo da narrativa.</p><p>53</p><p>STORYTELLING</p><p>Em linhas gerais, podemos identificar as funções distribuídas nas seguintes partes:</p><p>• introdução;</p><p>• nó da intriga;</p><p>• intervenção dos doadores;</p><p>• retorno do herói.</p><p>O esquema a seguir mostra essas etapas, representadas respectivamente pelos números 1, 2, 3 e 4.</p><p>α = situação inicial</p><p>2</p><p>A,a = dano ou carência</p><p>B = mediação</p><p>C = início da reação</p><p>↑ = partida</p><p>4</p><p>↓ = retorno</p><p>Pr = perseguição</p><p>R = salvamento</p><p>O = chegada incógnita</p><p>L = reinvidações infundadas</p><p>M = tarefa difícil</p><p>N = solução</p><p>Q = reconhecimento</p><p>Ex = desmascaramento</p><p>T = transfiguração</p><p>U = castigo</p><p>W = casamento</p><p>1</p><p>β = afastamento</p><p>γ = proibição</p><p>δ = violação</p><p>ξ = informação</p><p>ε = interrogatório</p><p>ξ = informação</p><p>θ = embuste</p><p>η = cumplicidade</p><p>3</p><p>D = primeira função do doador</p><p>E = reação do herói</p><p>F = recepção de um agente</p><p>mágico</p><p>G = deslocamento físico entre</p><p>dois reinos</p><p>H = combate</p><p>I = marca</p><p>J = vitória</p><p>K = reparação do dano</p><p>Figura 25 – Ações de um conto maravilhoso de acordo com Propp</p><p>Observação</p><p>Os contos de fada normalmente trabalham com o maniqueísmo, isto é,</p><p>a divisão dual entre o bem e o mal.</p><p>Vale detalharmos um pouco melhor essas funções.</p><p>1. Afastamento: a personagem se afasta do local familiar.</p><p>2. Interdição: há a determinação de algo que a personagem não deve fazer sob pena de ser castigada.</p><p>3. Transgressão: a personagem desobedece.</p><p>4. Interrogação: o antagonista pergunta por meios pelos quais pode afetar a vítima.</p><p>54</p><p>Unidade I</p><p>5. Informação: o agressor consegue as informações de que necessita.</p><p>6. Engano: o agressor tenta enganar a vítima.</p><p>7. Cumplicidade: a vítima deixa-se envolver pelo antagonista.</p><p>8. Dano: surge o problema principal da narrativa.</p><p>9. Mediação: entra em cena o herói para enfrentar o problema.</p><p>10. Início da ação contrária: o herói vai contra o agressor.</p><p>11. Partida: o herói parte para sua missão.</p><p>12. Doação: um personagem ajuda o herói.</p><p>13. Reação: o herói supera a prova.</p><p>14. Prêmio: o herói é recompensado por vencer a prova com um objeto mágico.</p><p>15. Deslocamento: o herói vai para o lugar do conflito.</p><p>16. Luta: o herói enfrenta o agressor.</p><p>17. Marca: o herói após a luta ganha uma marca ou um objeto identificador.</p><p>18. Vitória: o bem vence o mal.</p><p>19. Reparação: o dano é corrigido.</p><p>20. Volta: o herói regressa para casa.</p><p>21. Perseguição: o antagonista persegue o herói.</p><p>22. Socorro: o herói se salva.</p><p>23. Retorno incógnito: o herói chega sem se identificar.</p><p>24. Falso herói: alguém se passa pelo herói.</p><p>25. Tarefa difícil: o herói deve cumprir a prova para mostrar quem é.</p><p>26. Tarefa cumprida: a prova é realizada.</p><p>55</p><p>STORYTELLING</p><p>27. Reconhecimento: o herói é identificado.</p><p>28. Desmascaramento: o falso herói é desmascarado.</p><p>29. Transfiguração: o herói é encoberto por uma aura que o transfigura.</p><p>30. Punição: o agressor é punido.</p><p>31. Casamento: o herói casa-se com a pessoa amada.</p><p>Exemplo de aplicação</p><p>Tente identificar os personagens e as ações propostas por Propp no conto a seguir.</p><p>A Bela Adormecida</p><p>Irmãos Grimm</p><p>Era uma vez, há muito tempo, um rei e uma rainha jovens, poderosos e ricos, mas pouco felizes,</p><p>porque não tinham concretizado maior sonho deles: terem filhos.</p><p>— Se pudéssemos ter um filho! — suspirava o rei.</p><p>— E se Deus quisesse, que nascesse uma menina! —animava-se a rainha.</p><p>— E por que não gêmeos? — acrescentava o rei.</p><p>Mas os filhos não chegavam, e o casal real ficava cada vez mais triste. Não se alegravam nem com</p><p>os bailes da corte, nem com as caçadas, nem com os gracejos dos bufões, e em todo o castelo reinava</p><p>uma grande melancolia.</p><p>Mas, numa tarde de verão, a rainha foi banhar-se no riacho que passava no fundo do parque real.</p><p>E, de repente, pulou para fora da água uma rãzinha.</p><p>— Majestade, não fique triste, o seu desejo se realizará logo: antes que passe um ano a senhora dará</p><p>à luz uma menina.</p><p>E a profecia da rã se concretizou, e meses depois a rainha deu à luz uma linda menina.</p><p>O rei, que estava tão feliz, deu uma grande festa de batizado para a pequena princesa que se</p><p>chamava Aurora.</p><p>56</p><p>Unidade I</p><p>Convidou uma multidão de súditos: parentes, amigos, nobres do reino e, como convidadas de honra,</p><p>as treze fadas que viviam nos confins do reino. Mas, quando os mensageiros iam saindo com os convites,</p><p>o camareiro-mor correu até o rei, preocupadíssimo.</p><p>— Majestade, as fadas são treze, e nós só temos doze pratos de ouro. O que faremos? A fada que</p><p>tiver de comer no prato de prata, como os outros convidados, poderá se ofender.</p><p>E uma fada ofendida…</p><p>O rei refletiu longamente e decidiu:</p><p>— Não convidaremos a décima terceira fada — disse, resoluto. — Talvez nem saiba que nasceu a nossa</p><p>filha e que daremos uma festa. Assim, não teremos complicações.</p><p>Partiram somente doze mensageiros, com convites para doze fadas, conforme o rei resolvera.</p><p>No dia da festa, cada uma das fadas chegou perto do berço em que dormia a princesa Aurora e</p><p>ofereceu à recém-nascida um presente maravilhoso.</p><p>— Será a mais bela moça do reino — disse a primeira fada, debruçando-se sobre o berço.</p><p>— E a de caráter mais justo — acrescentou a segunda.</p><p>— Terá riquezas a perder de vista — proclamou a terceira.</p><p>— Ninguém terá o coração mais caridoso que o seu — afirmou a quarta.</p><p>— A sua inteligência brilhará como um sol — comentou a quinta.</p><p>Onze fadas já tinham passado em frente ao berço e dado a pequena princesa um dom; faltava</p><p>somente uma (entretida em tirar uma mancha do vestido, no qual um garçom desajeitado tinha virado</p><p>uma taça de sorvete), quando chegou a décima terceira, aquela que não tinha sido convidada por falta</p><p>de pratos de ouro.</p><p>Estava com a expressão muito sombria e ameaçadora, terrivelmente ofendida por ter sido excluída.</p><p>Lançou um olhar maldoso para a princesa Aurora, que dormia tranquila, e disse: — Aos quinze anos a</p><p>princesa vai se ferir com o fuso de uma roca e morrerá.</p><p>E foi embora, deixando um silêncio desanimador e os pais desesperados.</p><p>Então aproximou-se a décima segunda fada, que devia ainda oferecer seu presente.</p><p>— Não posso cancelar a maldição que agora atingiu a princesa. Tenho poderes só para modificá-la</p><p>um pouco. Por isso, Aurora não morrerá; dormirá por cem anos, até a chegada de um príncipe que a</p><p>acordará com um beijo.</p><p>57</p><p>STORYTELLING</p><p>Passados os primeiros momentos de espanto e temor, o rei decidiu tomar providências, mandou</p><p>queimar todas as rocas do reino. E, daquele dia em diante, ninguém mais fiava, nem linho, nem algodão,</p><p>nem lã. Ninguém além da torre do castelo.</p><p>Aurora crescia, e os presentes das fadas, apesar da maldição, estavam dando resultados. Era bonita,</p><p>boa, gentil e caridosa, os súditos a adoravam.</p><p>No dia em que completou quinze anos, o rei e a rainha estavam ausentes, ocupados numa partida</p><p>de caça. Talvez, quem sabe, em todo esse tempo tivessem até esquecido a profecia da fada malvada.</p><p>A princesa Aurora, porém, estava se aborrecendo por estar sozinha e começou a andar pelas salas</p><p>do castelo. Chegando perto de um portãozinho de ferro que dava acesso à parte de cima de uma velha</p><p>torre, abriu-o, subiu a longa escada e chegou, enfim, ao quartinho.</p><p>Ao lado da janela estava uma velhinha de cabelos brancos fiando com o fuso uma meada de linho.</p><p>A garota olhou, maravilhada. Nunca tinha visto um fuso.</p><p>— Bom dia, vovozinha.</p><p>— Bom dia a você, linda garota.</p><p>— O que está fazendo? Que instrumento é esse?</p><p>Sem levantar os olhos do seu trabalho, a velhinha respondeu com ar bonachão:</p><p>— Não está vendo? Estou fiando!</p><p>A princesa, fascinada, olhava o fuso que girava rapidamente entre os dedos da velhinha.</p><p>— Parece mesmo divertido esse estranho pedaço de madeira que gira assim rápido. Posso</p><p>experimentá-lo também? Sem esperar resposta, pegou o fuso. E, naquele instante, cumpriu-se o feitiço.</p><p>Aurora furou o dedo e sentiu um grande sono. Deu tempo apenas para deitar-se na cama que havia no</p><p>aposento, e seus olhos se fecharam.</p><p>Na mesma hora, aquele sono estranho se difundiu por todo o palácio.</p><p>Adormeceram no trono o rei e a rainha, recém-chegados da partida de caça.</p><p>Adormeceram os cavalos na estrebaria, as galinhas no galinheiro, os cães no pátio e os pássaros</p><p>no telhado.</p><p>Adormeceu o cozinheiro que assava a carne e o servente que lavava as louças; adormeceram os</p><p>cavaleiros com as espadas na mão e as damas que enrolavam seus cabelos.</p><p>58</p><p>Unidade I</p><p>Também o fogo que ardia nos braseiros e nas lareiras parou de queimar, parou também o vento que</p><p>assobiava na floresta. Nada e ninguém se mexia no palácio, mergulhado em profundo silêncio.</p><p>Em volta do castelo surgiu rapidamente uma extensa mata. Tão extensa que, após alguns anos, o</p><p>castelo ficou oculto.</p><p>Nem os muros apareciam, nem a ponte levadiça, nem as torres, nem a bandeira hasteada que pendia</p><p>na torre mais alta.</p><p>Nas aldeias vizinhas, passava de pai para filho a história da princesa Aurora, a bela adormecida que</p><p>descansava, protegida pelo bosque cerrado. A princesa Aurora, a mais bela, a mais doce das princesas,</p><p>injustamente castigada por um destino cruel.</p><p>Alguns cavalheiros, mais audaciosos, tentaram sem êxito chegar ao castelo. A grande barreira de</p><p>mato e espinheiros, cerrada e impenetrável, parecia animada por vontade própria: os galhos avançavam</p><p>para cima dos coitados que tentavam passar: seguravam-nos, arranhavam-nos até fazê-los sangrar, e</p><p>fechavam as mínimas frestas.</p><p>Aqueles que tinham sorte conseguiam escapar, voltando em condições lastimáveis, machucados e</p><p>sangrando. Outros, mais teimosos, sacrificavam a própria vida.</p><p>Um dia, chegou nas redondezas um jovem príncipe, bonito e corajoso. Soube pelo bisavô a história</p><p>da bela adormecida que, desde muitos anos, tantos jovens a procuravam em vão alcançar.</p><p>— Quero tentar também — disse o príncipe aos habitantes de uma aldeia pouco distante do castelo.</p><p>Aconselharam-no a não ir. — Ninguém nunca conseguiu!</p><p>— Outros jovens, fortes e corajosos como você, falharam…</p><p>— Alguns morreram entre os espinheiros…</p><p>— Desista!</p><p>Muitos foram os que tentarem desanimá-lo.</p><p>No dia em que o príncipe decidiu satisfazer a sua vontade se completavam justamente os cem anos</p><p>da festa do batizado e das predições das fadas. Chegara, finalmente, o dia em que a bela adormecida</p><p>poderia despertar.</p><p>59</p><p>STORYTELLING</p><p>Quando o príncipe se encaminhou para o castelo viu que, no lugar das árvores e galhos cheios de</p><p>espinhos, se estendiam aos milhares, bem espessas, enormes carreiras de flores perfumadas. E mais,</p><p>aquela mata de flores cheirosas se abriu diante dele, como para encorajá-lo a prosseguir; e voltou a se</p><p>fechar logo, após sua passagem.</p><p>O príncipe chegou em frente ao castelo. A ponte elevadiça estava abaixada e dois guardas dormiam</p><p>ao lado do portão, apoiados nas armas. No pátio havia um grande número de cães, alguns deitados no</p><p>chão, outros encostados nos cantos; os cavalos que ocupavam as estrebarias dormiam em pé.</p><p>Nas grandes salas do castelo reinava um silêncio tão profundo que o príncipe ouvia sua própria</p><p>respiração, um pouco ofegante, ressoando naquela quietude. A cada passo do príncipe se levantavam</p><p>nuvens de poeira.</p><p>Salões, escadarias, corredores, cozinha… Por toda parte, o mesmo espetáculo: gente que dormia nas</p><p>mais estranhas posições.</p><p>O príncipe perambulou por longo tempo no castelo. Enfim, achou o portãozinho de ferro que levava</p><p>à torre, subiu a escada e chegou ao quartinho em que dormia a princesa Aurora.</p><p>A princesa estava tão bela, com os cabelos soltos, espalhados nos travesseiros, o rosto rosado e</p><p>risonho. O príncipe ficou deslumbrado. Logo que se recobrou, se inclinou e deu-lhe um beijo.</p><p>Imediatamente, Aurora despertou, olhou para o príncipe e sorriu.</p><p>Todo o reino também despertara naquele instante.</p><p>Acordou também o cozinheiro que assava a carne; o servente, bocejando, continuou lavando as</p><p>louças, enquanto as damas da corte voltavam a enrolar seus cabelos.</p><p>O fogo das lareiras e dos braseiros subiu alto pelas chaminés, e o vento fazia murmurar as folhas das</p><p>árvores. A vida voltara ao normal. Logo, o rei e a rainha correram à procura da filha e, ao encontrá-la,</p><p>chorando, agradeceram ao príncipe por tê-la despertado do longo sono de cem anos.</p><p>O príncipe, então, pediu a mão da linda princesa em casamento que, por sua vez, já estava apaixonada</p><p>pelo seu valente salvador.</p><p>Eles, então, se casaram e viveram felizes para sempre!</p><p>Fonte: QDivertido (s.d.).</p><p>60</p><p>Unidade I</p><p>Saiba mais</p><p>Você assistiu ao filme Malévola? Trata-se da mesma estória de A Bela</p><p>Adormecida, mas contada por um narrador que enxerga os fatos com a vilã.</p><p>Na nova perspectiva, ela deixa de ser</p><p>totalmente má. São apresentadas as</p><p>origens de sua vingança e vemos o modo como ela se afeiçoa sinceramente</p><p>à princesa. Nessa versão, é ela quem quebra o feitiço beijando Aurora.</p><p>Afasta-se, assim, do pensamento maniqueísta:</p><p>MALÉVOLA: dona do mal. Direção: Joachim Rønning. EUA: Walt Disney</p><p>Pictures, 2019. 118 min.</p><p>Décadas depois, a linha de análise dos formalistas russos influenciou os estudiosos do estruturalismo</p><p>francês, movimento intelectual que teve o seu auge na década de 1960 e originou-se a partir das</p><p>contribuições nos estudos linguísticos de Ferdinand de Saussure.</p><p>A análise estrutural da narrativa foi alvo de estudo de nomes como Barthes, Greimas, Brémond,</p><p>Todorov e Genette, entre outros autores. Suas teorias foram fundamentais para o surgimento da</p><p>narratologia e, posteriormente, dos estudos narrativos em sentido mais amplo, que também abrangem</p><p>as narrativas não literárias.</p><p>Nesse sentido, “compreender uma narrativa não é somente seguir o esvaziamento da história, é</p><p>também reconhecer nela ‘estágios’, projetar os encadeamentos horizontais do ‘fio’ narrativo sobre um</p><p>eixo implicitamente vertical” (BARTHES et al., 2013, p. 27).</p><p>Na teoria greimasiana, são identificadas três categorias atuacionais e vinte funções, agrupadas por</p><p>oposições. Na essência, essas funções reduzem-se à ruptura e à restituição da ordem. Nos romances</p><p>românticos, por exemplo, a estrutura básica é formada pelos obstáculos que impedem a união do casal</p><p>e pela superação desses obstáculos.</p><p>Saiba mais</p><p>Sobre o assunto, leia o livro:</p><p>BARROS, D. L. P. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2011.</p><p>Brémond determinou uma sequência elementar a toda narrativa, com três funções: uma que abre a</p><p>possibilidade do processo, uma que realiza tal possibilidade e uma que conclui o processo, com sucesso</p><p>ou fracasso (GOTLIB, 2006). Ele procurou desenvolver um modelo formal aplicável a todos os tipos de</p><p>relato, com base na ideia de que a narrativa é um conjunto de elementos que devem ser analisados.</p><p>61</p><p>STORYTELLING</p><p>Brémond propôs um método de análise baseado simultaneamente na ideia de sequências e funções,</p><p>argumentando que toda narrativa parte de uma possibilidade em direção a uma atualização e a um</p><p>resultado. Segundo ele, “onde não há sucessão, não há narrativa” (BRÉMOND, 2013, p. 118).</p><p>Saiba mais</p><p>Para saber mais sobre a estrutura de uma narrativa, leia o livro:</p><p>GOTLIB, N. B. Teoria do conto. 11. ed. São Paulo: Ática, 2006.</p><p>Essas três funções podem ser observadas em diversas narrativas, como no conto “Amor”, de Clarice</p><p>Lispector, reproduzido a seguir.</p><p>Amor</p><p>Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu</p><p>no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no</p><p>banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.</p><p>Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam</p><p>banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era</p><p>enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que</p><p>estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara</p><p>lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte.</p><p>Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas</p><p>apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água</p><p>enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando</p><p>com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava</p><p>a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.</p><p>Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam</p><p>dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais</p><p>sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava</p><p>blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo</p><p>vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados</p><p>e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima</p><p>desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se</p><p>emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.</p><p>No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um</p><p>lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a</p><p>surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem</p><p>62</p><p>Unidade I</p><p>verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe</p><p>estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que</p><p>também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes</p><p>invisíveis, que viviam como quem trabalha – com persistência, continuidade, alegria. O que</p><p>sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação</p><p>perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca</p><p>algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.</p><p>Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa</p><p>estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas</p><p>funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na</p><p>sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto – ela o abafava com</p><p>a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer</p><p>compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando</p><p>voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a</p><p>noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres.</p><p>Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos.</p><p>Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo.</p><p>E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.</p><p>O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava</p><p>anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e</p><p>uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.</p><p>O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi</p><p>então que olhou para o homem parado no ponto.</p><p>A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se</p><p>mantinham avançadas. Era um cego.</p><p>O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila</p><p>estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava chicles.</p><p>Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar – o coração</p><p>batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o</p><p>que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos.</p><p>O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e</p><p>deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a</p><p>impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada – o</p><p>bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô</p><p>despencou-se do colo, ruiu no chão – Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada</p><p>antes de saber do que se tratava – o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.</p><p>63</p><p>STORYTELLING</p><p>Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão</p><p>de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível.</p><p>O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no</p><p>embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam</p><p>entre os fios da rede. O cego</p><p>interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que</p><p>acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros</p><p>e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.</p><p>Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego</p><p>mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.</p><p>A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede</p><p>perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as</p><p>compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava</p><p>feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava</p><p>pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de</p><p>sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível… O mundo se tornara de novo um mal-estar.</p><p>Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe</p><p>que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à</p><p>tona da escuridão – e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas</p><p>não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao</p><p>banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas</p><p>com a mesma calma com que não o eram.</p><p>O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava</p><p>agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho</p><p>uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma</p><p>revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando</p><p>chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência</p><p>de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela</p><p>havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma</p><p>mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo… E o</p><p>cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.</p><p>Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha</p><p>tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente</p><p>feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de</p><p>modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso.</p><p>E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.</p><p>Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que</p><p>estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno</p><p>de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter</p><p>saltado no meio da noite.</p><p>64</p><p>Unidade I</p><p>Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela</p><p>procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava</p><p>a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando</p><p>o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou</p><p>os portões do Jardim Botânico.</p><p>Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no</p><p>Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou</p><p>muito tempo.</p><p>A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia</p><p>dentro de si.</p><p>De longe via a aleia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos</p><p>cobria o atalho.</p><p>Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós.</p><p>Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio</p><p>sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho,</p><p>suave demais, grande demais.</p><p>Um movimento leve e íntimo a sobressaltou – voltou-se rápida. Nada parecia se ter</p><p>movido. Mas na aleia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pelos eram macios. Em</p><p>novo andar silencioso, desapareceu.</p><p>Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um</p><p>pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada.</p><p>Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.</p><p>Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios</p><p>de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de</p><p>sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se</p><p>as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era</p><p>profundo. E a morte não era o que pensávamos.</p><p>Ao mesmo tempo que imaginário – era um mundo de se comer com os dentes, um</p><p>mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o</p><p>abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega – era fascinante, a</p><p>mulher tinha nojo, e era fascinante.</p><p>As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou</p><p>que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela</p><p>estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até</p><p>ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias</p><p>65</p><p>STORYTELLING</p><p>boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou</p><p>rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada… Mas</p><p>todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados</p><p>pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que</p><p>sentia o seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.</p><p>Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os</p><p>pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.</p><p>Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se</p><p>com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a</p><p>alameda. Quase corria – e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba.</p><p>Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu</p><p>espantado de não a ter visto.</p><p>Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com</p><p>a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito – o que sucedia? A piedade pelo cego</p><p>era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu</p><p>a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da</p><p>janela brilhavam, a lâmpada brilhava – que nova terra era essa? E por um instante a vida</p><p>sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino</p><p>que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria</p><p>e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula. Porque a vida era</p><p>periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo. Do mesmo</p><p>modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que</p><p>a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de</p><p>machucá-lo. Como se soubesse de um mal – o cego ou o belo Jardim Botânico? – agarrava-se</p><p>a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível,</p><p>disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha… Havia</p><p>lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles… Tenho medo, disse. Sentia as</p><p>costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou</p><p>o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te</p><p>esquecer, disse-lhe.</p><p>A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta</p><p>do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue</p><p>subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.</p><p>Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?</p><p>Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água</p><p>escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha?</p><p>É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior</p><p>vontade de viver.</p><p>66</p><p>Unidade I</p><p>Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a</p><p>pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado que lhe havia ferido os</p><p>olhos. O Jardim Botânico, tranquilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia</p><p>à parte forte do mundo – e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria</p><p>obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior</p><p>de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água</p><p>nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não</p><p>fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era</p><p>uma piedade de leão.</p><p>Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também</p><p>sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo</p><p>luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com</p><p>este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se</p><p>e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.</p><p>Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante.</p><p>O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a</p><p>pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água – havia o horror da flor se entregando</p><p>lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto</p><p>da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo</p><p>corpo tremia. As gotas d’água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão.</p><p>O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente.</p><p>Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o</p><p>creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida.</p><p>Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o</p><p>suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.</p><p>Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.</p><p>Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando</p><p>no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças</p><p>ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a</p><p>dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim,</p><p>a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados</p><p>do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o</p><p>coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a</p><p>uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.</p><p>Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma</p><p>mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego</p><p>desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer</p><p>movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia</p><p>67</p><p>STORYTELLING</p><p>aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago.</p><p>O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.</p><p>Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo</p><p>para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.</p><p>— O que foi?! gritou vibrando toda.</p><p>Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:</p><p>— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.</p><p>Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si,</p><p>em rápido afago.</p><p>— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.</p><p>— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.</p><p>Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se</p><p>rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele,</p><p>é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher,</p><p>levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.</p><p>Acabara-se a vertigem de bondade.</p><p>E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um</p><p>instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela,</p><p>soprou a pequena flama do dia.</p><p>Fonte: Lispector (1998b, p. 19-29).</p><p>Inicialmente, no conto, temos uma situação de ordem, que é quebrada com a aparição de um</p><p>elemento (o cego mascando chicletes). Ocorre, então, uma etapa de desordem interior, em que a</p><p>personagem vê seu “destino de mulher” abalado. Por fim, ocorre o retorno à situação inicial, ainda que</p><p>mudanças psíquicas tenham acontecido à personagem.</p><p>4 TEXTO NARRATIVO</p><p>4.1 Tipologia textual</p><p>Certamente, você deve ter reparado que existem diversos tipos de textos que apresentam estruturas</p><p>e elementos de composição diferentes. Alguns contam uma história, outros defendem um ponto de</p><p>vista e outros orientam como devemos agir.</p><p>68</p><p>Unidade I</p><p>Observe, por exemplo, os quatros trechos a seguir.</p><p>O primeiro é o início no segundo capítulo de Iracema, de José de Alencar.</p><p>Trecho 1</p><p>Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.</p><p>Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da</p><p>graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu</p><p>sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.</p><p>Fonte: Alencar (s.d.).</p><p>O segundo é um trecho de A sangue frio, de Truman Capote.</p><p>Trecho 2</p><p>Perry e Dick tinham deixado aquela cidade portuária uma hora antes, depois de lá passar</p><p>toda a manhã à procura de trabalho como marinheiros em várias companhias de navegação.</p><p>Uma das empresas ofereceu-lhes emprego imediato num navio-tanque destinado ao</p><p>Brasil, e, na verdade, os dois estariam agora a caminho caso seu futuro empregador não</p><p>tivesse descoberto que nenhum dos dois tinha inscrição no sindicato nem um passaporte.</p><p>Estranhamente, a decepção de Dick foi superior à de Perry: “O Brasil! É lá que estão</p><p>construindo uma nova capital. A partir do zero. Imagine só, chegar a um lugar numa altura</p><p>destas! Qualquer imbecil pode fazer fortuna”.</p><p>“Aonde vocês estão indo?”, perguntou Perry ao garoto.</p><p>“Sweetwater.”</p><p>“Onde fica Sweetwater?”</p><p>“Em algum lugar, nesta direção. No Texas. Johnny, aqui, é meu avô. E uma irmã dele</p><p>mora em Sweetwater. Quer dizer, Deus queira que ainda more. Achamos que ela morava</p><p>em Jasper, no Texas. Mas quando chegamos a Jasper, as pessoas nos contaram que ela e a</p><p>família tinham se mudado para Galveston. Mas ela não estava em Galveston – e uma mulher</p><p>de lá disse que ela tinha ido para Sweetwater. Confio em Deus para que a gente consiga</p><p>encontrar ela, Johnny”, disse ele, esfregando as mãos do velho, como que para descongelá-las,</p><p>“está ouvindo, Johnny? Estamos viajando num belo Chevrolet quentinho – modelo 56”.</p><p>O velho tossiu, virou ligeiramente a cabeça, abriu e fechou os olhos e tornou a tossir.</p><p>Dick disse: “Escute aqui. Qual é o problema dele?”</p><p>Fonte: Capote (2003, p. 261).</p><p>69</p><p>STORYTELLING</p><p>O próximo texto é um trecho do texto “Tipologia textual: os diferentes tipos textuais”, de Flávia Neves.</p><p>Trecho 3</p><p>As</p><p>tipologias textuais, também chamadas de tipos textuais ou tipos de texto, são as</p><p>diferentes formas que um texto pode apresentar, visando responder a diferentes intenções</p><p>comunicativas.</p><p>Os aspectos constitutivos de um texto divergem mediante a finalidade do texto: contar,</p><p>descrever, argumentar, informar…</p><p>Diferentes tipos de texto apresentam diferentes características: estrutura, construções</p><p>frásicas, linguagem, vocabulário, tempos verbais, relações lógicas, modo de interação</p><p>com o leitor…</p><p>Fonte: Neves (s.d.).</p><p>Vejamos agora o último trecho:</p><p>Trecho 4</p><p>MODO DE PREPARO</p><p>Bata todos os ingredientes no liquidificador por dois minutos.</p><p>Em seguida desligue e, com uma colher, misture a farinha que grudou no copo do</p><p>liquidificador.</p><p>Bata novamente só para misturar e reserve.</p><p>Unte a frigideira com um fio de óleo e leve ao fogo até aquecer.</p><p>Com o auxílio de uma concha, pegue uma porção de massa e coloque na frigideira, gire</p><p>a frigideira para espalhar bem a massa.</p><p>Abaixe o fogo e deixe dourar por baixo, em seguida vire do outro lado e deixe dourar,</p><p>repita o processo com toda a massa.</p><p>Fonte: Silva (s.d.).</p><p>Você notou que os quatro textos apresentam estruturas e funções diferentes? No primeiro, o foco é</p><p>fornecer ao leitor, por meio de comparações, características físicas da personagem Iracema, no romance</p><p>de José de Alencar. No segundo, temos um episódio que envolve os personagens Perry e Dick, assassinos</p><p>da família Clutter no Kansas em um trecho do famoso livro-reportagem de Truman Capote. No terceiro,</p><p>há uma explicação didática sobre os tipos textuais. No quarto, por fim, vemos uma sequência de ordens</p><p>para se fazer um prato.</p><p>70</p><p>Unidade I</p><p>Portanto, temos, na sequência, os tipos textuais: descritivo, narrativo, expositivo e injuntivo. Trata-se,</p><p>assim, de tipos textuais diferentes.</p><p>Nesta disciplina, o foco é o texto narrativo, aquele que conta uma história, real ou ficcional. Entre</p><p>os gêneros textuais que têm tal estrutura estão: romances, contos, crônicas, reportagens, telenovelas,</p><p>músicas, séries e games, entre outros.</p><p>Lembrete</p><p>A narratologia é o ramo da teoria da literatura que se dedica a estudar</p><p>o texto narrativo.</p><p>Repare que o trecho 1 faz parte de um romance de José de Alencar. A obra tem estrutura narrativa,</p><p>mas o trecho selecionado é descritivo. A descrição, geralmente, é muito necessária nas narrativas para</p><p>apresentar personagens, épocas e ambientes.</p><p>Os textos narrativos pressupõem transformações no tempo. A estrutura narrativa tradicional</p><p>apresenta as fases mencionadas a seguir.</p><p>• Situação inicial: na situação inicial, apresenta-se um panorama dos personagens, do cenário e</p><p>da época.</p><p>• Conflito (ou complicação): o conflito refere-se a algo que quebra a estabilidade da situação</p><p>inicial. Sem isso, a história não se desenvolve.</p><p>• Desenvolvimento: no desenvolvimento, com base no conflito, a história continua com as atitudes</p><p>dos personagens.</p><p>• Clímax: o clímax é o momento de maior tensão.</p><p>• Desfecho: o desfecho corresponde ao final da história, em que há uma solução (feliz ou não)</p><p>para o conflito.</p><p>Essas partes serão retomadas nos itens seguintes.</p><p>Observação</p><p>A mera sucessão de fatos não constitui uma narrativa. Se um colega</p><p>relata que pegou um ônibus às sete horas, chegou ao trabalho às oito</p><p>horas, almoçou às 13 horas e foi para casa às 18 horas, não há conflito.</p><p>Nesse caso, temos, portanto, apenas um relato.</p><p>71</p><p>STORYTELLING</p><p>Como já dissemos, um texto narrativo deve ter verossimilhança, isto é, o que é narrado deve parecer</p><p>verdadeiro para o leitor. Devemos, aqui, diferenciar verossimilhança e plausibilidade. A verossimilhança</p><p>diz respeito à lógica interna do texto, e a plausibilidade refere-se à correspondência com o que</p><p>conhecemos do real.</p><p>Imaginemos uma história de alguém que voa, sem máquinas ou asas. Só com uma capa. Se estivermos</p><p>no campo da ficção, em um episódio do Super-homem, por exemplo, isso é verossímil, e não importa</p><p>que isso seria impossível na realidade. No entanto, se for uma reportagem, ainda que o jornalista crie</p><p>uma explicação para tal fenômeno no enredo, a ação não é plausível, pois o discurso jornalístico deve</p><p>ser ancorado na realidade.</p><p>Observação</p><p>Mesmo na literatura, a questão da plausibilidade é tratada de forma</p><p>diferente conforme o movimento. Por exemplo, na literatura fantástica, o</p><p>fato de um coelho falar, como no caso do texto “Teleco, o coelhinho”, de</p><p>Murilo Rubião, é perfeitamente aceitável, é inquestionável. Na literatura</p><p>realista, cujo fundamento é a plausibilidade, isso seria impossível, a não</p><p>ser que o personagem que falasse com o coelho estivesse sonhando ou</p><p>estivesse fora do juízo.</p><p>4.2 Elementos constitutivos da narrativa</p><p>Existem elementos comuns às histórias, por mais diferentes que sejam. São eles:</p><p>• enredo;</p><p>• narrador;</p><p>• personagens;</p><p>• espaço;</p><p>• tempo.</p><p>4.2.1 Enredo</p><p>O enredo corresponde à história propriamente dita. Trata-se do conjunto de ações que acontecem</p><p>ao longo da narrativa. Esse conjunto recebe outros nomes, conforme a perspectiva de quem o analisa.</p><p>Uma distinção importante e necessária é separar discurso e história. A história/estória corresponde</p><p>aos eventos em ordem cronológica, implicando ações e personagens que as executam; o discurso</p><p>corresponde à “palavra real dirigida pelo narrador ao leitor” (TODOROV, 2008, p. 138).</p><p>72</p><p>Unidade I</p><p>Regina Zilberman (2012, p. 129) também explica que</p><p>o âmbito do discurso é o da composição, que depende do trabalho com o</p><p>narrador que conta a história, valendo-se de distintos modos narrativos.</p><p>O âmbito da história é o dos acontecimentos, a matéria pura a partir da qual</p><p>se constrói a ação do narrador ao se projetar a comunicação com o leitor.</p><p>Com base nessa distinção, os formalistas russos diferenciam trama e fábula. A fábula é composta</p><p>pela sucessão cronológica dos acontecimentos. A trama é constituída pela ordem e pela forma com que</p><p>os acontecimentos são apresentados ao leitor.</p><p>Tomachevski, no ensaio “Temática”, apresenta a diferença, conforme mostrado a seguir.</p><p>Chama-se fábula o conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são</p><p>comunicados no decorrer da obra. Ela poderia ser exposta de uma maneira</p><p>pragmática, de acordo com a ordem natural, a saber, a ordem cronológica e</p><p>causal dos acontecimentos, independentemente da maneira pela qual estão</p><p>dispostos e introduzidos na obra.</p><p>A fábula opõe-se à trama, que é constituída pelos mesmos acontecimentos,</p><p>mas que respeita sua ordem de aparição na obra e a sequência das</p><p>informações que se nos destinam (TOMACHEVSKI, 1978, p. 173).</p><p>O elemento estruturador do enredo é o conflito, pois ele é responsável pela criação de tensão,</p><p>necessária à boa narrativa. No entanto, vale ressaltar que o conflito não é, como o nome pode falsamente</p><p>sugerir, necessariamente uma briga ou um desentendimento.</p><p>Lembra-se do conto “Amor”, de Clarice Lispector, que apresentamos anteriormente? O conflito é</p><p>interno à personagem, disparado pelo encontro com um cego mascando chiclete. Esse elemento faz com</p><p>que Ana tenha sua vida abalada. Se não houvesse o conflito desencadeado pelo cego, a personagem</p><p>seguiria para casa, manteria sua rotina, e a narrativa não teria “graça”.</p><p>Geralmente, tendo o conflito como elemento estruturante, as narrativas dividem-se nas seguintes</p><p>partes: exposição, complicação, clímax e desfecho.</p><p>Vamos tomar como exemplo a seguinte versão da fábula “A cigarra e a formiga”.</p><p>A cigarra e a formiga</p><p>Era uma vez uma cigarra que vivia saltitando e cantando pelo bosque, sem se preocupar</p><p>com o futuro. Esbarrando numa formiguinha, que carregava uma folha pesada, perguntou:</p><p>— Ei, formiguinha, para que todo esse trabalho? O verão é para gente aproveitar! O verão</p><p>é para gente se divertir!</p><p>73</p><p>STORYTELLING</p><p>— Não, não, não! Nós, formigas, não temos tempo para diversão. É preciso trabalhar</p><p>agora para guardar comida para o inverno.</p><p>Durante o verão, a cigarra continuou se divertindo e passeando por todo o bosque.</p><p>Quando tinha fome, era só pegar uma folha e comer. Um belo dia, passou</p><p>uma narrativa. Agora pense: por quais narrativas nos interessamos? Além</p><p>de prestarmos mais atenção naquelas que têm conteúdos importantes ou necessários para nós, também</p><p>somos envolvidos pelas histórias bem contadas. Há pessoas que não sabem contar bem uma piada, e</p><p>ela perde a graça. Há outras que não dosam adequadamente os elementos da narrativa, e a história</p><p>fica chata. Isso significa que, além de termos uma boa história, precisamos saber contá-la. Por isso,</p><p>storytelling é uma junção de duas palavras (story + telling).</p><p>Não há fórmulas fixas para se construir uma boa narrativa, mas o conhecimento de conceitos e de</p><p>alguns exemplos é fundamental para que você desenvolva essa técnica.</p><p>Assim, o objetivo da disciplina Storytelling é fazer com que o aluno desenvolva ferramentas de</p><p>linguagem em diferentes mídias, tradicionais ou não, e explore recursos de produção de bons textos e</p><p>conexões em narrativas aplicadas às demandas das diferentes áreas da comunicação.</p><p>Essa habilidade é essencial para o jornalismo. O jornalismo, afinal, vive de narrativas. Podemos</p><p>dizer que o jornalista é um contador de histórias da contemporaneidade. E essas histórias precisam ser</p><p>bem contadas!</p><p>Bom estudo!</p><p>8</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Era uma vez um jovem estudante que sonhava em ser jornalista. Esforço e vontade eram características</p><p>que não lhe faltavam. Ainda criança, imaginava-se no telejornal, para orgulho da família. Ele desejava ter</p><p>sucesso profissional, mas também aspirava contribuir, com seu trabalho, para que as pessoas tivessem</p><p>acesso a informações e a leituras diversas da realidade. Idealista, pensava que deveria lutar por um</p><p>mundo mais justo.</p><p>Neste ano, o sonho do nosso personagem começou a se concretizar: foi aprovado no curso que tanto</p><p>queria. Com a matrícula feita, acessou, no site da instituição, as disciplinas que cursaria e, entre elas,</p><p>estava Storytelling. O que seria isso? A curiosidade o atiçou...</p><p>Gostou da estória? Identificou-se com aspectos dela? Este início do nosso livro-texto tem como</p><p>função mostrar a você, caro aluno, como as narrativas, por mais simples ou comuns que sejam, nos</p><p>atraem, nos despertam o interesse.</p><p>Esta disciplina, Storytelling, aborda a arte de contar histórias, tão presentes em nossas vidas.</p><p>Trata-se de uma técnica que tem ganhado destaque no mundo comunicacional.</p><p>Para que se aplique a técnica de storytelling como ferramenta de comunicação, é necessário ter</p><p>alguns conhecimentos básicos de áreas diversas, como teoria literária, marketing, jornalismo, psicologia,</p><p>sociologia e história. Por quê? Porque as narrativas são textos (orais ou escritos), que envolvem linguagem</p><p>e são produzidos em determinadas épocas e em determinados lugares, com funções e intencionalidades</p><p>distintas. Não se restringem a áreas específicas e dependem do bom repertório de quem os produz.</p><p>Assim, para abordarmos o conteúdo desta disciplina, este livro-texto foi dividido em três unidades</p><p>(unidade I, unidade II e unidade III).</p><p>Na primeira unidade, estudamos conceitos e definições do storytelling e abordamos o poder que as</p><p>histórias/estórias têm sobre os seres humanos desde tempos remotos. Também explicamos, de forma</p><p>breve, as estruturas clássicas das narrativas, como a narrativa do mito e a narrativa dos contos de fada.</p><p>Ainda, detalhamos os elementos que constituem uma narrativa.</p><p>Na segunda unidade, apresentamos o uso da técnica do storytelling nas áreas de jornalismo e</p><p>marketing. Embora a contação de estórias acompanhe a humanidade desde os primórdios, ela tem</p><p>ganhado destaque no mundo corporativo apenas nos últimos anos. O novo contexto tecnológico, marcado</p><p>fortemente pela internet e pelas redes sociais, tem impulsionado novos paradigmas comunicacionais.</p><p>O excesso de informações a que somos diariamente submetidos tem estimulado a busca por novas</p><p>formas de atrair a atenção das pessoas. Para facilitar a apreensão de conceitos, mostramos alguns casos</p><p>de storytelling, bem-sucedidos ou não.</p><p>Por fim, na terceira unidade, comentamos sobre o uso dessa técnica na publicidade e sobre o</p><p>fenômeno da narrativa transmídia, especialmente no jornalismo.</p><p>9</p><p>STORYTELLING</p><p>Unidade I</p><p>1 STORYTELLING: CONCEITOS E DEFINIÇÕES</p><p>1.1 Introdução ao storytelling</p><p>O sociólogo, crítico literário e ensaísta alemão Walter Benjamin escreveu, em 1936, um ensaio</p><p>intitulado “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, cuja proposta era fornecer uma</p><p>análise social, cultural, histórica e literária do romance (pós-)moderno. Esse texto tornou-se ponto</p><p>obrigatório no estudo da literatura e do ato de narrar. Nele, Benjamin afirma que narrar é um componente</p><p>essencial à experiência; em termos muito simplificados, narrar a vida é viver. Quando narramos nossas</p><p>experiências, estamos revivendo-as, ressignificando-as e tornando-as coletivas. Em outras palavras,</p><p>estamos dando sentido ao vivido.</p><p>Benjamin escreveu sobre o ato de narrar no século XX, e o conceito de storytelling só se tornou um</p><p>campo de estudos popular em anos ainda mais recentes. No entanto, o ato de contar histórias é algo</p><p>que acompanha a espécie humana desde tempos muito remotos.</p><p>As pinturas rupestres, nossos mais comuns indicativos do desenvolvimento de sociedades e</p><p>culturas, contam histórias, e as mais antigas delas a que temos acesso foram produzidas por volta de</p><p>40.000 a.C., no período Paleolítico Superior. O Épico de Gilgamés (ou Gilgamexe) compila uma série</p><p>de histórias acerca do herói mitológico de mesmo nome, quinto rei da dinastia de Uruque da Suméria,</p><p>que governou por volta de 2900 a.C. Na China, histórias são contadas sobre a dinastia Xia, Estado que</p><p>existiu aproximadamente entre 1900 e 1350 a.C. na província de Henan. O Velho Testamento, com todas</p><p>as histórias nele compiladas, foi escrito entre 1500 e 450 a.C. Recontamos até hoje, ao menos no mundo</p><p>ocidental, diferentes variantes da história de Cleópatra, faraó do Egito no século I a.C., tão lendária que</p><p>era considerada uma reencarnação da própria deusa Ísis. Todos esses são apenas exemplos de que temos</p><p>conhecimento da antiga prática de contar histórias.</p><p>10</p><p>Unidade I</p><p>Figura 1 – Pinturas rupestres no Parque Nacional do Catimbau, em Pernambuco</p><p>Figura 2 – Tábua sobre a epopeia de Gilgamés, também conhecida como a Tábua do Dilúvio</p><p>11</p><p>STORYTELLING</p><p>Mas por que contamos histórias, afinal? Por que a prática do storytelling parece estar tão firmemente</p><p>integrada com a história humana?</p><p>Se observarmos animais sociais (isto é, animais que vivem em grupos), veremos que eles desenvolvem</p><p>formas de comunicação próprias. Para animais que vivem e caçam em conjunto, a comunicação é</p><p>essencial, independentemente do modo como ela seja feita. Não é incomum que os macacos de um</p><p>mesmo bando revezem-se no papel de vigia, por exemplo, alertando o resto do grupo quanto à presença</p><p>de predadores e à existência de outras possíveis ameaças; para tanto, eles fazem uso de um sistema</p><p>predominantemente vocal de comunicação. Em outras palavras, a capacidade do bando de se comunicar</p><p>interfere diretamente em suas chances de sobrevivência. Como nós, humanos, compartilhamos com os</p><p>macacos modernos um ancestral comum, é bastante possível, se não provável, que as linguagens humanas</p><p>tenham surgido a partir da necessidade de nos comunicarmos uns com os outros e, posteriormente,</p><p>evoluído para o uso de palavras como símbolos.</p><p>Mas como histórias poderiam ter servido para aumentar nossas chances de sobrevivência?</p><p>Geralmente, quando tratamos do processo evolutivo da espécie humana, costumamos falar de</p><p>polegares opositores, de nossa lenta transição para andar em duas “patas” em vez de quatro, da criação</p><p>de ferramentas, do desenvolvimento da agricultura… Talvez, falemos também do desenvolvimento das</p><p>linguagens. O que não costumamos explorar com mais profundidade, tanto pela escassez de evidências</p><p>históricas quanto pela relativa impopularidade do tema na mídia, é a ideia de culturas pré-históricas.</p><p>Conforme já mencionamos, sabemos que nossos ancestrais paleolíticos já produziam arte,</p><p>de novo perto da</p><p>formiguinha carregando outra pesada folha.</p><p>A cigarra então aconselhou:</p><p>— Deixa esse trabalho para as outras! Vamos nos divertir. Vamos, formiguinha, vamos</p><p>cantar! Vamos dançar!</p><p>A formiguinha gostou da sugestão. Ela resolveu ver a vida que a cigarra levava e ficou</p><p>encantada. Resolveu viver também como sua amiga. Mas, no dia seguinte, apareceu a</p><p>rainha do formigueiro e, ao vê-la se divertindo, olhou feio para ela e ordenou que voltasse</p><p>ao trabalho. Tinha terminado a vidinha boa.</p><p>A rainha das formigas falou então para a cigarra:</p><p>— Se não mudar de vida, no inverno você há de se arrepender, cigarra! Vai passar</p><p>fome e frio.</p><p>A cigarra nem ligou, fez uma reverência para rainha e comentou:</p><p>— Hum!! O inverno ainda está longe, querida!</p><p>Para cigarra, o que importava era aproveitar a vida, e aproveitar o hoje, sem pensar no</p><p>amanhã. Para que construir um abrigo? Para que armazenar alimento? Pura perda de tempo.</p><p>Certo dia, o inverno chegou, e a cigarra começou a tiritar de frio. Sentia seu corpo</p><p>gelado e não tinha o que comer. Desesperada, foi bater na casa da formiga. Abrindo a porta,</p><p>a formiga viu na sua frente a cigarra quase morta de frio. Puxou-a para dentro, agasalhou-a</p><p>e deu-lhe uma sopa bem quente e deliciosa. Naquela hora, apareceu a rainha das formigas</p><p>que disse à cigarra:</p><p>— No mundo das formigas, todos trabalham e se você quiser ficar conosco, cumpra o</p><p>seu dever: toque e cante para nós.</p><p>Para cigarra e para as formigas, aquele foi o inverno mais feliz das suas vidas.</p><p>Fonte: Portal Educação (s.d.).</p><p>No texto apresentado, temos, no início, a exposição, que estabelece como era a vida da cigarra e da</p><p>formiga. A complicação acontece quando a cigarra é alertada sobre a possibilidade de ficar sem comida</p><p>74</p><p>Unidade I</p><p>no inverno e isso ocorre. O clímax acontece quando ela pede abrigo à formiga. O desfecho é a solução</p><p>encontrada, em que formigas e cigarra ficam felizes.</p><p>Na versão clássica, contada por Esopo e La Fontaine, o desfecho é outro: a cigarra, com fome e frio</p><p>no inverno, procura ajuda, mas a formiga se nega a auxiliá-la. A cigarra morre, portanto.</p><p>Em outras versões, paródias, a cigarra faz sucesso, fica milionária com seu canto, e a formiga continua</p><p>carregando folhas.</p><p>Repare que as estórias estão sempre ligadas ao contexto ideológico da sociedade em que se</p><p>inserem. A crueldade da formiga ao negar ajuda passou a ser considerada, mais recentemente, como</p><p>pedagogicamente inadequada às crianças, assim como a “lição” de que cantar (ou seja, a arte) é uma</p><p>atividade improdutiva.</p><p>Saiba mais</p><p>Para estudar melhor o enredo e os demais elementos da narrativa, leia:</p><p>GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. 9. ed. São Paulo: Ática, 2006.</p><p>Observam-se diferenças no trato com o enredo conforme o gênero textual. Segundo Nádia Battella</p><p>Gotlib (2006, p. 40), “o conto termina logo após o clímax; o romance deve apresentar o clímax antes do</p><p>final, terminando por epílogo ou falsa conclusão”.</p><p>4.2.2 Narrador</p><p>O narrador é aquele que nos conta a estória. Trata-se de uma instância criada pelo autor e projetada</p><p>na narrativa. Não deve, portanto, ser confundido com o autor.</p><p>Por exemplo, em Dom Casmurro, quem narra a estória é Bentinho, não é Machado de Assis. Bentinho</p><p>é um personagem criado pelo autor, e a ele é concedido a voz de narrador.</p><p>Saiba mais</p><p>Em A hora da estrela, de Clarice Lispector, temos um interessante jogo</p><p>de espelhos entre autora, narrador (Rodrigo S. M.) e Macabéa:</p><p>LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.</p><p>75</p><p>STORYTELLING</p><p>A classificação básica do narrador é feita em três tipos, mencionados a seguir.</p><p>• Narrador-personagem: quando quem narra também participa da história.</p><p>• Narrador-observador: quando quem narra não participa da história nem sabe o que se passa no</p><p>íntimo dos personagens.</p><p>• Narrador-onisciente: quando quem narra não participa da história e tem acesso aos</p><p>pensamentos e emoções dos personagens.</p><p>Essa é a divisão normalmente ensinada nas escolas. No entanto, a questão do narrador historicamente</p><p>tem sido objeto de estudos e discussões acadêmicas. O objetivo aqui não é detalhar esses estudos, mas,</p><p>sim, apresentar um panorama das principais classificações.</p><p>A discussão sobre aquele que narra o que viveu, viu ou imaginou data da Antiguidade. Platão e</p><p>Aristóteles já faziam a distinção entre imitar (modo dramático) e narrar.</p><p>Observação</p><p>O modo dramático refere-se à ausência do narrador, observado em uma</p><p>peça teatral, por exemplo, em que os personagens falam por si. Lembra-se</p><p>do trecho da peça Prometeu acorrentado que apresentamos anteriormente?</p><p>Trata-se de um texto em modo dramático, escrito por Ésquilo.</p><p>Os filósofos gregos foram retomados por diferentes pensadores ao longo da história, que discutiram</p><p>a questão dos gêneros literários e do narrador. Hegel, por exemplo, dedicou-se ao estudo da objetividade</p><p>para distinguir o gênero épico dos gêneros dramático e lírico.</p><p>Mas é apenas no final do século XIX e no início do XX que passa a se construir de forma mais</p><p>sistemática uma teoria do foco narrativo.</p><p>Perry Lubbock, em 1921, propôs um modelo de tipos de narrador, afirmando que a arte narrativa é</p><p>governada pelo problema do ponto de vista. Ele também faz a distinção entre narrar (telling) e mostrar</p><p>(showing), discutindo o grau de interferência do narrador. Essa oposição baseia-se na diferença entre</p><p>sumário (panorama) e cena. Na cena, os acontecimentos são mostrados ao leitor, sem a mediação do</p><p>narrador; no sumário, o narrador os resume e conta.</p><p>Jean Pouillon, em 1946, deteve-se na questão de como revelar a interioridade das personagens em</p><p>uma narrativa. Ele propõe, então, sua teoria das visões. Segundo ele, a relação narrador-personagem</p><p>poderia acontecer de três formas:</p><p>76</p><p>Unidade I</p><p>• a visão com;</p><p>• a visão por trás;</p><p>• a visão de fora.</p><p>Na visão por trás, o narrador sabe mais sobre a personagem e seu destino. Podemos dizer que ele é</p><p>onisciente. Na visão com, o narrador limita-se ao saber da personagem. Na visão de fora, limita-se ao</p><p>externo, sem entrar nos pensamentos ou nas emoções da personagem.</p><p>Tzvetan Todorov, na década de 1960, também associou os tipos de visão às possibilidades de</p><p>conhecimento da matéria narrada. Assim, o narrador pode saber mais do que as personagens, tanto</p><p>quanto elas ou até menos. Assim, segundo o estudioso estruturalista, temos as possibilidades a seguir,</p><p>em que N representa o narrador e P representa a personagem.</p><p>• N > P (o narrador sabe mais do que as personagens).</p><p>• N = P (o narrador sabe tanto quanto as personagens).</p><p>• N</p><p>era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia</p><p>de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade</p><p>moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve,</p><p>ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a</p><p>correr, sem conhecer as ruas da cidade.</p><p>Fonte: Assis In: Gledson (2007, p. 466).</p><p>Perceba que, com ironia, o narrador critica as relações baseadas na escravidão, observadas na</p><p>sociedade brasileira.</p><p>No tipo onisciente neutro, o narrador fala em terceira pessoa e pode se colocar acima dos fatos e</p><p>das personagens, mas não faz intromissões, como ocorre no tipo apresentado anteriormente. Veja um</p><p>exemplo, extraído do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert.</p><p>A mulher fora em tempos louca por ele; amara-o com mil e uma atitudes de servilismo,</p><p>que ainda mais o afastaram dela.</p><p>Outrora jovial, expansiva e apaixonada, tornara-se, ao envelhecer (como o vinho que,</p><p>exposto ao ar, se transforma em vinagre), mal-humorada, lamurienta, nervosa. Sofrera tanto,</p><p>sem se queixar, ao princípio, quando o via correr atrás de todas as marafonas da aldeia e</p><p>quando, à noite, voltava dos piores lugares, embrutecido e a cheirar à bebedeira! Depois, o</p><p>orgulho dela revoltara-se. Então tornara-se calada, engolindo a raiva num estoicismo mudo</p><p>que conservou até à morte.</p><p>78</p><p>Unidade I</p><p>Mantinha-se continuamente ocupada, tratando dos negócios da casa. Ia falar aos</p><p>advogados, ao juiz, recordava-se do vencimento das letras, conseguia prorrogações; e, em</p><p>casa, passava a ferro, cosia a roupa, lavava, vigiava os trabalhadores, liquidava as contas,</p><p>enquanto, sem se preocupar com coisa nenhuma, o senhor, permanentemente entorpecido</p><p>numa sonolência amuada de que só despertava para lhe dizer coisas desagradáveis,</p><p>continuava a fumar ao canto da lareira e a cuspir nas cinzas.</p><p>Quando ela teve um filho, foi preciso entregá-lo a uma ama.</p><p>Logo que voltou para casa, o garoto foi amimado como um príncipe.</p><p>A mãe alimentava-o com doces; o pai deixava-o correr descalço e, para se mostrar</p><p>filósofo, dizia até que ele podia andar todo nu, como os filhotes dos animais. Ao contrário</p><p>das tendências maternas, tinha ele um certo ideal viril da infância, segundo o qual procurava</p><p>formar o filho, querendo que este fosse educado duramente, à maneira espartana, para</p><p>adquirir uma boa constituição. Mandava-o ir deitar-se às escuras, ensinava-o a beber</p><p>grandes doses de rum e a insultar as procissões. Mas, como era por natureza pacífico, o</p><p>miúdo correspondia mal aos seus esforços.</p><p>Fonte: Flaubert (2000, p. 8).</p><p>No tipo “eu” como testemunha, o narrador fala em primeira pessoa, mas da periferia dos</p><p>acontecimentos. Em outras palavras, o narrador é uma personagem secundária da trama. Podemos citar</p><p>como exemplo as aventuras de Sherlock Holmes, narradas por seu fiel companheiro Watson.</p><p>Enquanto eu os observava, Stapleton levantou-se e saiu da sala, enquanto sir Henry</p><p>enchia o seu copo outra vez e recostava-se na cadeira, fumando o charuto. Ouvi uma porta</p><p>rangendo e o ruído nítido de botas sobre o saibro. Os passos atravessaram o caminho do</p><p>outro lado do muro atrás do qual eu estava agachado. Olhando por cima, vi o naturalista</p><p>parar diante da porta de uma dependência no canto do pomar. Uma chave girou numa</p><p>fechadura, e, quando ele entrou ali, ouvi um ruído curioso de luta vindo de dentro. Ele ficou</p><p>apenas um minuto ali dentro; depois ouvi a chave girar outra vez e ele passou por mim e</p><p>entrou novamente em casa. Vi quando ele entrou na sala onde estava seu convidado e voltei</p><p>cautelosamente para o lugar onde meus companheiros estavam esperando para contar-lhes</p><p>o que vira.</p><p>— Você diz, Watson, que a mulher não está lá? — perguntou Holmes quando eu</p><p>terminei meu relato.</p><p>— Não.</p><p>79</p><p>STORYTELLING</p><p>— Onde ela pode estar, então, já que não há luz em nenhum outro cômodo,</p><p>exceto na cozinha?</p><p>— Não posso imaginar onde ela esteja.</p><p>Eu havia dito que sobre o grande charco de Grimpen pairava uma cerração branca e densa.</p><p>Ela estava vindo lentamente em nossa direção e se acumulava como um muro daquele lado,</p><p>baixa mas espessa e bem definida. A lua brilhava sobre ela, e parecia um grande campo de</p><p>gelo bruxuleante, com os cumes dos picos rochosos distantes como rochas colocadas sobre</p><p>a sua superfície. O rosto de Holmes virou-se para ela e ele resmungou impaciente enquanto</p><p>observava o seu avanço lento.</p><p>Fonte: Doyle (2017, p. 861).</p><p>No tipo protagonista, o narrador em primeira pessoa conta sua própria história. Ele narra de um</p><p>centro fixo, sem acesso ao estado mental das demais personagens. Além de Bentinho, de Dom Casmurro,</p><p>podemos tomar como exemplo Riobaldo, de Grande sertão: veredas, como se vê no trecho a seguir.</p><p>Explico ao senhor! o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o</p><p>homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo</p><p>nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê</p><p>que me faz! e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha</p><p>certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído,</p><p>que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia.</p><p>Já sabia, esperava por ela – já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem</p><p>de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de</p><p>ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu</p><p>estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até! nas crianças – eu digo. Pois não</p><p>é ditado! menino – trem do diabo? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento...</p><p>Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemoinho...</p><p>Fonte: Rosa (2019, p. 10).</p><p>No caso de narrador com onisciência seletiva múltipla, a história vem diretamente dos pensamentos</p><p>e das emoções das personagens por meio do discurso indireto livre. Veja o trecho de Vidas secas,</p><p>como exemplo.</p><p>Ouviu o falatório desconexo do bêbedo, caiu numa indecisão dolorosa. Ele também dizia</p><p>palavras sem sentido, conversava à toa. Mas irou-se com a comparação, deu marradas na</p><p>parede. Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por</p><p>80</p><p>Unidade I</p><p>isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que</p><p>mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo. Desentupia o bebedouro,</p><p>consertava as cercas, curava os animais – aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo</p><p>em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa?</p><p>Se não fosse aquilo... Nem sabia. O fio da ideia cresceu, engrossou – e partiu-se. Difícil</p><p>pensar. Vivia tão agarrado aos bichos... Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia</p><p>defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demônio daquela história entrava-lhe na</p><p>cabeça e saía. Era para um cristão endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria</p><p>meio de entendê-la. Impossível, só sabia lidar com bichos.</p><p>Fonte: Ramos (2019, p. 18).</p><p>No caso de narrador com onisciência seletiva, temos uma categoria bastante semelhante à anterior.</p><p>A diferença é o que o narrador acompanha os pensamentos e as emoções de uma personagem apenas.</p><p>Podemos citar como exemplo Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, em que o narrador</p><p>permanece colado à protagonista, Joana.</p><p>Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada</p><p>veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou</p><p>a funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os</p><p>frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a</p><p>ferver. Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá-lo</p><p>e ao som da música inexistente e ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de</p><p>dança bem leves, alados.</p><p>Então subitamente olhou</p><p>com desgosto para tudo como se tivesse comido demais</p><p>daquela mistura. “Oi, oi, oi...”, gemeu baixinho cansada e depois pensou: o que vai acontecer</p><p>agora agora agora? E sempre no pingo de tempo que vinha nada acontecia se ela continuava</p><p>a esperar o que ia acontecer, compreende? Afastou o pensamento difícil distraindo-se com</p><p>um movimento do pé descalço no assoalho de madeira poeirento. Esfregou o pé espiando</p><p>de través para o pai, aguardando seu olhar impaciente e nervoso. Nada veio porém. Nada.</p><p>Difícil aspirar as pessoas como o aspirador de pó.</p><p>Fonte: Lispector (1998c, p. 7).</p><p>No caso de narrador do tipo dramático, a história é contada pela fala dos personagens, como no</p><p>teatro. Como exemplo, leia o trecho inicial da crônica “Sexa”, de Luis Fernando Verissimo.</p><p>81</p><p>STORYTELLING</p><p>— Pai...</p><p>— Hmmm?</p><p>— Como é o feminino de sexo?</p><p>— O quê?</p><p>— O feminino de sexo.</p><p>— Não tem.</p><p>— Sexo não tem feminino?</p><p>— Não.</p><p>— Só tem sexo masculino?</p><p>— É. Quer dizer, não. Existem dois sexos. Masculino e feminino.</p><p>— E como é o feminino de sexo?</p><p>— Não tem feminino. Sexo é sempre masculino.</p><p>— Mas tu mesmo disse que tem sexo masculino e feminino.</p><p>— O sexo pode ser masculino ou feminino. A palavra “sexo” é masculina. O sexo masculino,</p><p>o sexo feminino.</p><p>— Não devia ser “a sexa”?</p><p>Fonte: Verissimo (2001 p. 53).</p><p>No tipo câmera, o narrador é praticamente excluído da narrativa, que acontece na forma de flashes,</p><p>como se eles fossem captados por uma câmera. Temos como exemplo o conto “Circuito fechado”, de</p><p>Ricardo Ramos.</p><p>Circuito fechado</p><p>Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma,</p><p>creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente,</p><p>toalha. Creme para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata,</p><p>82</p><p>Unidade I</p><p>paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço. Relógio, maço de cigarros,</p><p>caixa de fósforos, jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapos.</p><p>Quadros. Pasta, carro. Cigarro, fósforo. Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papéis, telefone,</p><p>agenda, copo com lápis, canetas, blocos de notas, espátula, pastas, caixas de entrada, de</p><p>saída, vaso com plantas, quadros, papéis, cigarro, fósforo. Bandeja, xícara pequena. Cigarro</p><p>e fósforo. Papéis, telefone, relatórios, cartas, notas, vales, cheques, memorandos, bilhetes,</p><p>telefone, papéis. Relógio. Mesa, cavalete, cinzeiros, cadeiras, esboços de anúncios, fotos,</p><p>cigarro, fósforo, bloco de papel, caneta, projetos de filmes, xícara, cartaz, lápis, cigarro,</p><p>fósforo, quadro-negro, giz, papel. Mictório, pia. Água. Táxi, mesa, toalha, cadeiras, copos,</p><p>pratos, talheres, garrafa, guardanapo, xícara. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Escova</p><p>de dentes, pasta, água. Mesa e poltrona, papéis, telefone, revista, copo de papel, cigarro,</p><p>fósforo, telefone interno, externo, papéis, prova de anúncio, caneta e papel, relógio, papel,</p><p>pasta, cigarro, fósforo, papel e caneta, telefone, caneta e papel, telefone, papéis, folheto,</p><p>xícara, jornal, cigarro, fósforo, papel e caneta. Carro. Maço de cigarros, caixa de fósforos.</p><p>Paletó, gravata. Poltrona, copo, revista. Quadros. Mesa, cadeiras, pratos, talheres, copos,</p><p>guardanapos. Xícaras. Cigarro e fósforo. Poltrona, livro. Cigarro e fósforo. Televisor, poltrona.</p><p>Cigarro e fósforo. Abotoaduras, camisa, sapatos, meias, calça, cueca, pijama, espuma, água.</p><p>Chinelos. Coberta, cama, travesseiro.</p><p>Fonte: Ramos (2012, p. 18).</p><p>Saiba mais</p><p>Para compreender melhor o narrador, leia o livro:</p><p>LEITE, L. C. M. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 2002.</p><p>Observação</p><p>Perceba que a escolha do tipo do narrador depende do efeito que se</p><p>pretende criar no texto.</p><p>4.2.3 Personagens</p><p>As personagens são as responsáveis pelas ações da história e podem ser classificadas de acordo com</p><p>diferentes critérios.</p><p>Em relação ao papel desempenhado no enredo, podem ser divididas em protagonistas, antagonistas</p><p>e secundárias.</p><p>83</p><p>STORYTELLING</p><p>Em relação aos protagonistas, eles podem ser heróis ou anti-heróis. O herói apresenta características</p><p>superiores em relação a seu grupo. Já o anti-herói apresenta características iguais ou inferiores às</p><p>características do seu grupo.</p><p>Como exemplo de anti-herói, temos o Leonardinho, “filho de uma piscadela e de um beliscão”,</p><p>protagonista do romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.</p><p>Veja, no trecho a seguir, que o protagonista já se opunha às características clássicas de um herói</p><p>desde a infância.</p><p>Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e batizado do</p><p>nosso memorando, e vamos encontrá-lo já na idade de sete anos. Digamos unicamente que</p><p>durante todo este tempo o menino não desmentiu aquilo que anunciara desde que nasceu:</p><p>atormentava a vizinhança com um choro sempre em oitava alta; era colérico; tinha ojeriza</p><p>particular à madrinha, a quem não podia encarar, e era estranhão até não poder mais.</p><p>Logo que pôde andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava tudo que lhe</p><p>vinha à mão. Tinha uma paixão decidida pelo chapéu armado do Leonardo; se este o deixava</p><p>por esquecimento em algum lugar ao seu alcance, tomava-o imediatamente, esganava com</p><p>ele todos os móveis, punha-lhe dentro tudo que encontrava, esfregava-o em uma parede, e</p><p>acabava por varrer com ele a casa; até que a Maria, exasperada pelo que aquilo lhe havia de</p><p>custar aos ouvidos, e talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além</p><p>de traquinas, guloso; quando não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava; trazia-lhe</p><p>bem maltratada uma região do corpo; porém ele não se emendava, que era também teimoso,</p><p>e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas.</p><p>Assim chegou aos sete anos.</p><p>Fonte: Almeida (2011, p. 19).</p><p>Quanto à caracterização, as personagens podem ser divididas em planas e redondas. As primeiras</p><p>apresentam poucos atributos e não são complexas. Em alguns casos, são caricaturais. As segundas,</p><p>por sua vez, apresentam complexidade e são definidas por características físicas, sociais, psicológicas,</p><p>ideológicas e morais.</p><p>As falas e os pensamentos dos personagens podem ser introduzidos na narrativa de três formas:</p><p>pelo discurso direto, pelo discurso indireto e pelo discurso indireto livre. Vejamos tais tipos de discurso.</p><p>• Discurso direto: no discurso direto, o narrador reproduz o que o personagem disse e, normalmente,</p><p>usa para isso aspas ou travessões.</p><p>84</p><p>Unidade I</p><p>• Discurso indireto: no discurso indireto, o narrador expressa com suas palavras o que o personagem</p><p>falou ou pensou.</p><p>• Discurso indireto livre: no discurso indireto livre, o pensamento do personagem mescla-se com</p><p>a voz do narrador.</p><p>Tomemos o exemplo a seguir.</p><p>Exemplo I</p><p>— Você não pode fazer isso comigo, disse Tom. Ele pensou em tudo que já havia feito</p><p>por aquela moça.</p><p>— Isso é uma ingratidão, continuou o rapaz.</p><p>Agora vejamos o próximo exemplo:</p><p>Exemplo II</p><p>Tom disse à moça que ela não poderia agir daquela forma com ele, pois seria uma</p><p>ingratidão depois de tudo o que ele havia feito por ela.</p><p>E, por fim, vejamos o último exemplo:</p><p>Exemplo III</p><p>Você não pode fazer isso comigo, disse Tom. Quanta coisa ele já havia feito por ela! Não</p><p>era justo! Era, sim, uma ingratidão.</p><p>No exemplo I, temos a reprodução em discurso direto da fala de Tom e, na sequência, a voz do</p><p>narrador. Em II, só o narrador se expressa e conta, em discurso indireto, o que o personagem falou.</p><p>Em III, temos o mesmo início de I, com o discurso direto da fala do personagem. Na sequência, temos</p><p>a expressão do pensamento do personagem mesclado na voz do narrador. Repare que não há qualquer</p><p>indicação de que se trata do pensamento dele. Não, há, por exemplo, como em I, a menção de que “Tom</p><p>pensou” ou “Ele achava”. Observe que, no último exemplo, fica a impressão de termos “mergulhado” na</p><p>cabeça de Tom.</p><p>85</p><p>STORYTELLING</p><p>Você deve ter lido Vidas secas, de Graciliano Ramos. Anteriormente, apresentamos um trecho do livro.</p><p>Na obra, uma personagem</p><p>importante é a cachorra Baleia. O narrador onisciente da história permite</p><p>que o leitor saiba o que a personagem sente e com o que ela sonha: um paraíso cheio de preás. Sem o</p><p>discurso indireto livre, isso não seria possível.</p><p>Observação</p><p>O discurso indireto livre está condicionado à existência do</p><p>narrador onisciente.</p><p>4.2.4 Espaço</p><p>O espaço refere-se aos lugares em que se passa a história.</p><p>De acordo com Cândida Vilares Gancho, o termo “espaço” diz respeito ao lugar físico onde ocorrem</p><p>os fatos e, para designar um lugar psicológico, social ou econômico, usamos o termo “ambiente”.</p><p>Assim, entende-se por ambiente</p><p>o espaço carregado de características socioeconômicas, morais e psicológicas</p><p>em que vivem as personagens. Neste sentido, ambiente é um conceito que</p><p>aproxima tempo e espaço, pois é a confluência destes dois referenciais,</p><p>acrescida de um clima (GANCHO, 2006, p. 27).</p><p>O ambiente está, portanto, relacionado às condições histórico-sociais e às características das</p><p>personagens e pode, também, refletir os conflitos vividos por elas.</p><p>Na fase do ultrarromantismo, os ambientes sombrios e úmidos refletiam o estado emocional das</p><p>personagens como se vê, por exemplo, nos contos de Noites na taverna, de Álvares de Azevedo.</p><p>Além disso, o ambiente pode fornecer índices para o andamento do enredo, especialmente em</p><p>narrativas policiais ou de suspense. É o que ocorre no conto “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan</p><p>Poe, em que o narrador atende ao pedido de um velho amigo e vai até sua casa.</p><p>Leia o início do conto e veja como fica claro que a casa exerce um papel importante na narrativa.</p><p>A queda da casa de Usher</p><p>Durante todo um dia de outono, monótono, escuro e silencioso, quando as nuvens</p><p>pendiam opressivamente baixas no céu, eu tinha passado sozinho, a cavalo, por um trecho</p><p>de terreno singularmente lúgubre e, finalmente me encontrei, quando as sombras da noite</p><p>se aproximavam, diante da triste visão da Casa de Usher. Não sei o motivo, mas, ao primeiro</p><p>vislumbre do edifício, uma sensação de insuportável melancolia permeou meu espírito. Digo</p><p>86</p><p>Unidade I</p><p>insuportável, pois a sensação não foi aliviada por quaisquer daqueles sentimentos algo</p><p>prazenteiros, porque poéticos, com os quais a mente normalmente acolhe até mesmo as</p><p>imagens naturais mais horrendas do desolado ou do terrível. Observei a cena diante de</p><p>mim – a casa e a paisagem simples, características da propriedade, as paredes desoladas,</p><p>as janelas como órbitas vazias, poucos canteiros de ervas daninhas e alguns troncos alvos</p><p>de árvores podres – com uma profunda depressão da alma que não consigo comparar</p><p>a nenhuma sensação terrena com mais propriedade do que à depressão após a euforia</p><p>causada ao fumador pelo ópio – o amargo retorno à vida diária, o terrível cair do véu.</p><p>Havia uma frigidez, uma prostração, uma repugnância do coração – um temor não</p><p>suavizado em pensar que nenhum estímulo da imaginação seria capaz de extrair qualquer</p><p>coisa do sublime. O que era – parei para pensar –, o que era que tanto me desalentava ao</p><p>olhar a Casa de Usher? Era um mistério totalmente insolúvel; nem conseguia alcançá-lo</p><p>com as ideias nebulosas que me abarrotavam enquanto ponderava. Fui forçado a ceder</p><p>à conclusão insatisfatória de que, fora de qualquer dúvida, há combinações de desígnios</p><p>naturais muito simples que, desse modo, têm o poder de nos afetar, mas que a análise desse</p><p>poder está entre as reflexões que se encontram além do nosso alcance.</p><p>Era possível, refleti, que um mero arranjo diferente de pormenores da cena, dos detalhes</p><p>do quadro, fosse suficiente para modificar ou, talvez, aniquilar sua capacidade para</p><p>impressões penosas; e, agindo de acordo com essa ideia, conduzi meu cavalo até a íngreme</p><p>beirada de um pequeno lago negro e lúgubre que se estendia liso como um espelho perto</p><p>da moradia e olhei abaixo – com um tremor mais intenso do que antes – para as imagens</p><p>invertidas e modificadas dos arbustos cinzentos, dos troncos lívidos das árvores e das janelas</p><p>iguais a órbitas vazias.</p><p>Contudo, eu agora me propunha residir algumas semanas nessa mansão sombria. Seu</p><p>proprietário, Roderick Usher, fora um dos meus alegres companheiros de infância; mas</p><p>muitos anos haviam se passado desde o nosso último encontro. Uma carta, entretanto, me</p><p>alcançara recentemente numa parte distante do país – uma carta dele –, na qual, em sua</p><p>importuna natureza tempestuosa, não admitira senão uma resposta pessoal. O manuscrito</p><p>evidenciava uma agitação nervosa. O redator falava de uma aguda doença física, de uma</p><p>desordem mental que o oprimia e de um desejo intenso de me ver, como seu melhor, e de</p><p>fato seu único amigo pessoal, com a finalidade de tentar, pela alegria de meu convívio,</p><p>algum alívio de sua enfermidade.</p><p>Fonte: Poe (2014, p. 9-10).</p><p>4.2.5 Tempo</p><p>Toda história acontece em um período de tempo, que pode ser mais ou menos determinado. Quando</p><p>pensamos no tempo, pensamos tanto na duração da história quanto na época em que ela ocorre.</p><p>87</p><p>STORYTELLING</p><p>A época constitui o pano de fundo para o enredo e não coincide necessariamente com a da produção</p><p>da obra. Por exemplo, George Orwell, em meados do século XX, projetou uma sociedade totalitária</p><p>distópica no futuro, na obra 1984. Umberto Eco, na década de 1980, escreveu o romance O nome da</p><p>rosa, cuja história se passa na Idade Média.</p><p>Lembrete</p><p>A época em que se passam os contos de fadas é imprecisa.</p><p>Devemos diferenciar o tempo narrativo, ou diegético, do tempo discursivo, relativo à narração.</p><p>Por exemplo, quando você vai contar a sua vida em um processo seletivo, você condensa seus anos</p><p>em alguns minutos e procura destacar aquilo que julga mais importante para conseguir seu objetivo.</p><p>Observação</p><p>Segundo o Dicionário de termos literários (MOISÉS, 1978), diegese</p><p>é o termo divulgado pelos estruturalistas franceses para designar o</p><p>conjunto de ações que formam uma história narrada segundo certos</p><p>princípios cronológicos.</p><p>Nem sempre as narrativas seguem o tempo linear. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado</p><p>de Assis, por exemplo, o defunto autor começa sua narrativa com seu enterro e depois relembra sua</p><p>trajetória desde a infância.</p><p>Lembrete</p><p>Uma boa narrativa depende da combinação adequada dos elementos</p><p>aqui apresentados. As escolhas do autor interferem no efeito que o texto</p><p>terá sobre o leitor.</p><p>Assim, uma diferenciação importante a ser feita é entre tempo cronológico e tempo psicológico.</p><p>O tempo cronológico transcorre na ordem natural dos fatos no enredo, de modo linear. É mensurável em</p><p>horas, dias, meses, anos, séculos. O tempo psicológico, por sua vez, transcorre de acordo com os desejos</p><p>ou com as lembranças do narrador ou das personagens.</p><p>Para captar a atenção do público, algumas narrativas começam no meio do enredo e depois</p><p>acontecem flashbacks, que remetem ao que já teria ocorrido até se chegar àquele ponto. Na sequência,</p><p>apresenta-se o desenrolar das ações. Esse recurso recebe o nome de in media res.</p><p>88</p><p>Unidade I</p><p>O controle do tempo é fundamental para o envolvimento do leitor na história. Destacam-se, assim,</p><p>as analepses e as prolepses. As analepses consistem na apresentação, na narrativa, de tempos passados.</p><p>Trata–se de um fenômeno de anacronia, a qual também chamamos de flashback, cutback ou switchback,</p><p>muito usado em livros e filmes, por exemplo. As prolepses, por sua vez, consistem na antecipação, na</p><p>narrativa, de tempos futuros.</p><p>Resumo</p><p>Nesta unidade, apresentamos conceitos e definições de storytelling,</p><p>com um breve panorama de como as histórias/estórias são marcantes para</p><p>o ser humano desde tempos remotos. Em épocas primitivas, ao redor da</p><p>fogueira, ou na contemporaneidade, ao redor dos celulares, as pessoas</p><p>compartilham narrativas que transmitem conhecimentos e crenças e</p><p>contribuem para a organização do mundo.</p><p>As histórias têm poder sobre nós, como procuramos mostrar nesta</p><p>unidade. Elas atuam sobre nosso imaginário e influenciam nossos valores</p><p>e nossas ações. As narrativas refletem e (re)constroem o modo como</p><p>enxergamos</p><p>o mundo.</p><p>Além disso, na unidade I, abordamos a importância dos mitos na</p><p>apreensão do mundo para diferentes povos. Mostramos como as figuras e</p><p>os temas subjacentes a eles ainda fazem parte da nossa vida.</p><p>Também expusemos a jornada do herói com suas etapas, estrutura</p><p>presente nos mitos antigos e em narrativas (pós-)modernas, como Star Wars.</p><p>Na intenção de entendermos as estruturas narrativas, apresentamos,</p><p>ainda, de forma breve, as considerações de Vladimir Propp sobre os contos</p><p>maravilhosos e os desdobramentos de sua teoria para os estudos da narrativa.</p><p>Por fim, elencamos os elementos constitutivos de qualquer narrativa:</p><p>narrador (foco narrativo), personagens, espaço, tempo e enredo.</p><p>Apresentamos características e classificações de cada elemento, não com o</p><p>intuito de se decorar um modelo, mas, sim, de se compreender a importância</p><p>da escolha desses elementos no efeito construído pela narrativa.</p><p>89</p><p>STORYTELLING</p><p>Exercícios</p><p>Questão 1. Leia o texto a seguir, de Millôr Fernandes, uma paródia da tradicional fábula “A raposa</p><p>e as uvas”, atribuída a Esopo.</p><p>A raposa e as uvas</p><p>Figura 26</p><p>De repente a raposa, esfomeada e gulosa, fome de quatro dias e gula de todos os tempos, saiu do</p><p>areal do deserto e caiu na sombra deliciosa do parreiral que descia por um precipício a perder de vista.</p><p>Olhou e viu, além de tudo, à altura de um salto, cachos de uvas maravilhosos, uvas grandes, tentadoras.</p><p>Armou o salto, retesou o corpo, saltou, o focinho passou a um palmo das uvas. Caiu, tentou de novo,</p><p>não conseguiu. Descansou, encolheu mais o corpo, deu tudo que tinha, não conseguiu nem roças a uvas</p><p>gordas e redondas. Desistiu, dizendo entre os dentes, com raiva: “Ah, também não tem importância.</p><p>Estão muito verdes”.</p><p>E foi descendo, com cuidado, quando viu à sua frente uma pedra enorme. Com esforço empurrou a</p><p>pedra até o local em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra, perigosamente, pois o terreno era</p><p>irregular e havia o risco de despencar, esticou a pata e… conseguiu! Com avidez colocou na boca quase</p><p>o cacho inteiro. E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito verdes!</p><p>Moral: a frustração é uma forma de julgamento tão boa como qualquer outra.</p><p>FERNANDES, M. Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1991. p. 118.</p><p>90</p><p>Unidade I</p><p>Com base na leitura, avalie as afirmativas.</p><p>I – A narrativa apresenta os componentes da estrutura aristotélica clássica: apresentação, conflito,</p><p>clímax e desfecho.</p><p>II – Na versão de Millôr Fernandes, a moral da estória é modificada; por isso, não podemos apontar</p><p>no texto elementos constitutivos das fábulas tradicionais.</p><p>III – Só há, na estória de Millôr, uma personagem; logo, essa narrativa não apresenta conflito.</p><p>É correto o que se afirma apenas em:</p><p>A) I.</p><p>B) II.</p><p>C) III.</p><p>D) I e III.</p><p>E) II e III.</p><p>Resposta correta: alternativa A.</p><p>Análise da questão</p><p>Temos, na narrativa de Millôr Fernandes, as quatro partes da estrutura clássica:</p><p>• a apresentação, que mostra a raposa que, com fome, encontra os cachos de uvas;</p><p>• o conflito, que é marcado pela incapacidade de a raposa pegar os cachos de uvas;</p><p>• o clímax, que relata o fato de a raposa usar a pedra para alcançar os cachos de uvas;</p><p>• o desfecho, que expõe as constatações de que as uvas estavam mesmo verdes e de que o esforço</p><p>não valeu a pena.</p><p>Trata-se, portanto, de uma fábula que apresenta todos os elementos constitutivos, como as demais.</p><p>Ela difere, apenas, pela inversão do desfecho e, consequentemente, da moral.</p><p>91</p><p>STORYTELLING</p><p>Questão 2. Leia o conto de Clarice Lispector.</p><p>Felicidade clandestina</p><p>Clarice Lispector</p><p>Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto</p><p>enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos</p><p>da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias</p><p>gostaria de ter: um pai dono de livraria.</p><p>Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho</p><p>barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem</p><p>do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra</p><p>bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.</p><p>Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho.</p><p>Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas,</p><p>de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem</p><p>notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que</p><p>ela não lia.</p><p>Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como</p><p>casualmente, informou-me que possuía “As reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato.</p><p>Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o.</p><p>E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e</p><p>que ela o emprestaria.</p><p>Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar</p><p>num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.</p><p>No dia seguinte, fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim</p><p>numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o</p><p>livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em</p><p>breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu</p><p>modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia</p><p>seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava,</p><p>andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.</p><p>Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e</p><p>diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para</p><p>ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal</p><p>92</p><p>Unidade I</p><p>sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu</p><p>coração batendo.</p><p>E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não</p><p>escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer,</p><p>às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja</p><p>precisando danadamente que eu sofra.</p><p>Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro</p><p>esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina.</p><p>E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.</p><p>Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa,</p><p>apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de</p><p>sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco</p><p>elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa</p><p>mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu</p><p>daqui de casa e você nem quis ler!</p><p>E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada</p><p>da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida</p><p>e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se</p><p>refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você</p><p>fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que</p><p>eu quisesse” é tudo o</p><p>que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.</p><p>Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu</p><p>não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que</p><p>segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até</p><p>chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.</p><p>Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter.</p><p>Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda</p><p>mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por</p><p>alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.</p><p>A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no</p><p>ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.</p><p>Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em</p><p>êxtase puríssimo.</p><p>Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.</p><p>LISPECTOR, C. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016, p. 393-396.</p><p>93</p><p>STORYTELLING</p><p>Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas.</p><p>I – O uso do narrador-protagonista, segundo a classificação de Friedman, faz com que o leitor viva</p><p>a estória de acordo com a perspectiva da menina que queria o livro emprestado.</p><p>II – Não há, na narrativa, qualquer indício que faça referências ao tempo ou ao espaço, pois o foco</p><p>é relação entre a menina e o livro desejado.</p><p>III – O narrador em primeira pessoa não permite a manifestação da fala dos demais personagens,</p><p>pois é a voz dele que controla o que é narrado.</p><p>É correto o que se afirma apenas em:</p><p>A) I e II.</p><p>B) II e III.</p><p>C) I.</p><p>D) III.</p><p>E) I e III.</p><p>Resposta correta: alternativa C.</p><p>Análise da questão</p><p>O narrador é em primeira pessoa (narrador-protagonista, segundo a classificação de Friedman) e, por</p><p>isso, o leitor vive a estória na perspectiva da menina. As demais personagens manifestam-se por meio</p><p>do discurso direto e do discurso indireto. Além disso, há, na narrativa, indícios do tempo e do espaço:</p><p>sabemos que a estória se passa no Recife, na época da infância da protagonista. Como informação</p><p>adicional, vale mencionar que o livro desejado foi publicado em 1931.</p><p>94</p><p>Unidade II</p><p>Unidade II</p><p>5 STORYTELLING E NARRATIVA JORNALÍSTICA</p><p>5.1 Narrativa jornalística e narrativa literária</p><p>Até aqui, abordamos especialmente as narrativas literárias. Isso se justifica porque, em termos de</p><p>composição estética, elas têm destaque.</p><p>No entanto, no nosso dia a dia, predominam inúmeras narrativas não literárias: pessoais, institucionais</p><p>ou midiáticas. Nas narrativas midiáticas, incluem-se as narrativas jornalísticas e publicitárias.</p><p>Neste item, abordaremos a narrativa jornalística em seus diferentes formatos. No jornalismo, as</p><p>notícias e, especialmente, as reportagens apresentam estrutura narrativa.</p><p>Observação</p><p>Há textos jornalísticos que apresentam estrutura expositiva ou estrutura</p><p>argumentativa, como se vê em editoriais e artigos, por exemplo.</p><p>A narrativa é a essência do jornalismo. Nas palavras de Ricardo Kotscho (1990, p. 82), o “repórter, no</p><p>fundo, é isso, um contador de histórias da vida presente”.</p><p>Observação</p><p>Informar e comentar são duas funções básicas do jornalismo. Com base</p><p>nessas funções, são definidos os gêneros jornalísticos.</p><p>Assim, falar de storytelling nessa área deveria ser quase um pleonasmo. No entanto, isso não ocorre</p><p>porque o modo de produção industrial transformou o texto jornalístico em informação objetiva.</p><p>Nas palavras de Walter Benjamin (1994, p. 203),</p><p>cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto,</p><p>somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já</p><p>nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase</p><p>nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a</p><p>serviço da informação.</p><p>95</p><p>STORYTELLING</p><p>Portanto, na visão do filósofo e crítico literário, o jornalismo, a serviço da informação, estaria</p><p>matando a narrativa. Repare que esse texto de Benjamin foi escrito em 1936.</p><p>Na sua perspectiva, a magia da narrativa tradicional estaria em queda porque a informação aspira a</p><p>uma verificação imediata e a arte de narrar consiste precisamente em evitar explicações.</p><p>De fato, no século XX, assistimos à padronização dos textos informativos da imprensa. A adoção de</p><p>manuais de redação, com a introdução do lead e da pirâmide invertida, padronizou a forma de se relatar</p><p>um acontecimento.</p><p>Observação</p><p>O lead, que ocupa o início da notícia, apresenta ao leitor os elementos</p><p>essenciais do fato: o quê, quem, quando, onde, como e por quê.</p><p>O formato de pirâmide invertida consiste em começar o texto pelo mais</p><p>importante. Trata-se de uma hierarquização que prevê que, mesmo se o leitor</p><p>parar de ler a notícia no meio, ele já terá as informações mais relevantes.</p><p>O Brasil aderiu aos manuais de redação e aos paradigmas norte-americanos</p><p>na década de 1950.</p><p>Essa padronização faz com que o texto noticioso não seja envolvente, não desperte no leitor o prazer</p><p>da leitura, mesmo que haja boas histórias para contar. Na verdade, podemos dizer que as histórias a que</p><p>o jornalismo tem acesso são inúmeras e ricas, mas o modo de contá-las tornou-se pobre. Em outros</p><p>termos, em muitos casos, temos a story, mas é necessário trabalhar o telling.</p><p>Palacios e Terenzzo (2016) comentam que o escritor Affonso Romano de Sant’Anna, no posfácio</p><p>de A morte e a morte de Quincas Berros d’Água, de Jorge Amado, revelou que os fatos do livro eram</p><p>reais e que haviam sido noticiados pelos jornais. No entanto, como matéria jornalística, a história não</p><p>despertou interesse. Foi necessário o talento literário de Jorge Amado para dar vida a ela.</p><p>Observação</p><p>A notícia, enquanto formato padronizado do gênero informativo, não</p><p>pode ser entendida como uma narrativa no sentido que temos trabalhado</p><p>neste livro-texto. Ela conta um fato e apresenta todos os elementos como</p><p>pessoas, tempo e espaço, mas sua forma peculiar de relatar a distancia</p><p>da narrativa literária a que temos nos referido neste material. Trata-se</p><p>de um relato que não segue a estrutura clássica: apresentação, conflito,</p><p>clímax e desfecho.</p><p>96</p><p>Unidade II</p><p>Na década de 1960, jornalistas e escritores norte-americanos, em reação ao texto objetivo e</p><p>padronizado, lançaram as bases do que ficou conhecido como new journalism.</p><p>Gay Talese, Tom Wolf, Norman Mailer e Truman Capote foram nomes de destaque nessa vertente.</p><p>A ideia era aliar técnicas de apuração jornalística com os recursos narrativos da literatura. O new</p><p>journalism alterou as rotinas produtivas, pois exigia apuração cuidadosa e demorada, com a observação</p><p>participante do repórter a fim de se extraírem os sentimentos dos personagens, descrever cenários e</p><p>reações e recriar diálogos. Além disso, pressuponha grande trabalho estilístico do texto.</p><p>São inegáveis as aproximações entre jornalismo e literatura, a tal ponto que se fala em jornalismo</p><p>literário. Como afirma Marcelo Bulhões, a narratividade está “intimamente vinculada à necessidade</p><p>humana de conhecimento e revelação do mundo ou da realidade” (BULHÕES, 2007, p. 40).</p><p>Lembrete</p><p>Narratividade é a qualidade de contar algo por meio de uma sucessão</p><p>de estados de transformação.</p><p>Saiba mais</p><p>Sobre o tema, leia:</p><p>PENA, F. Jornalismo literário. São Paulo: Contexto, 2006.</p><p>BULHÕES, M. Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo:</p><p>Ática, 2007.</p><p>Como ressalta Antonio Candido (2011), a literatura é essencial para humanizar e desenvolver o</p><p>imaginário, a fantasia e os pensamentos. Ela permite que conheçamos melhor os outros, estimula a</p><p>empatia. Essas funções também podem, em certa medida, ser desempenhadas pelo jornalismo, se ele</p><p>não se limitar ao texto burocrático, meramente informativo.</p><p>Nas décadas de 1960 e 1970, José Hamilton</p><p>Ribeiro ganhou sete vezes o Prêmio Esso, a maior</p><p>condecoração do jornalismo brasileiro, por contar histórias do dia a dia dos brasileiros comuns e,</p><p>paradoxalmente, praticamente desconhecidas.</p><p>Ribeiro também produziu inúmeras grandes reportagens relacionadas a acontecimentos mundiais.</p><p>Em 1968, na Revista Realidade, fez a cobertura da Guerra do Vietnã. Lá, pisou em uma mina e se feriu a</p><p>ponto de ter a perna amputada.</p><p>Leia um trecho de uma das reportagens produzidas por ele.</p><p>97</p><p>STORYTELLING</p><p>Guerra é assim</p><p>A operação começa. Um vietnamita pequenino, com uniforme do Exército americano, é</p><p>o espião que diz ter descoberto o esconderijo vici. Leva-nos em fila indiana, pelos caminhos</p><p>mais difíceis. Passamos por baixo de imensas moitas espinhentas, atravessamos rios com</p><p>água pelo peito, rompendo quilômetros de brejo, empapando a roupa de lama. Caminhamos</p><p>sob tensão e suspense: se houver de fato subterrâneo vietcong, por certo haverá luta. Eles</p><p>não deixariam sem guarda uma posição tão preciosa. Sinto muito medo. Uma mina é</p><p>descoberta e o pavor aumenta: é sinal de presença do vici. Em todos os rostos a angústia</p><p>faz a sua marca.</p><p>A uma hora, depois de quatro de caminhada, o espiãozinho confessa que se confundiu</p><p>e errou o caminho. Está perdido: só pode orientar-se de novo se voltar ao ponto de partida.</p><p>A operação é adiada para outro dia e isso provoca grande alegria em todo mundo.</p><p>O capitão recebe pelo rádio aviso de que os helicópteros chegarão para levar, às pressas,</p><p>a Companhia D para a ponte de Quang Tri. Há informação de que o vietcong está minando.</p><p>Em cinco minutos, pousam dois helicópteros grandes, barrigudos, de duas hélices, e três dos</p><p>pequenos. A companhia inteira se acomoda – nós também – e vamos rapidamente para</p><p>a ponte ameaçada. O desembarque é febril, todo mundo de arma embalada e disposição</p><p>de combater. Quinze minutos depois tudo se acalma; a informação era falsa. Voltamos ao</p><p>acampamento e minha calma dura pouco: o Serviço de Inteligência informa que hoje os</p><p>morteiros cairão sobre nós. Recebo orientação para, ao primeiro aviso, correr para os abrigos</p><p>subterrâneos e ficar até que venha a ordem de sair.</p><p>Com tal notícia, dormir não é fácil. De madrugada, ouço um barulhão. Quero correr para</p><p>o subterrâneo, mas me mantenho; todo mundo dorme tranquilamente, não é possível ser</p><p>bombardeio. Ansioso, aguardo um pouco para acostumar bem os ouvidos. E fico sem graça:</p><p>o barulho era de trovão. Logo depois, a chuva cai sobre o acampamento. A informação sobre</p><p>os morteiros também era falsa.</p><p>Nota da Redação – No dia seguinte, Hamilton Ribeiro interrompia suas anotações</p><p>na linha de frente: uma mina vietcong arrancou-lhe a parte inferior da perna esquerda.</p><p>Realidade já publicou, no número de maio, o que foram as duas semanas de sofrimento</p><p>vividas por seu repórter no front vietnamita. Agora, Hamilton Ribeiro prepara-se para deixar</p><p>os Estados Unidos, onde esteve em tratamento antes de receber uma perna mecânica.</p><p>Fonte: Ribeiro (s.d.).</p><p>Repare que o narrador é em primeira pessoa, fato pouco comum em reportagens que procuram</p><p>criar efeito de objetividade. No caso, a escolha da perspectiva de quem narra é fundamental, pois a</p><p>experiência do repórter no campo de batalha é extremamente relevante para a matéria.</p><p>98</p><p>Unidade II</p><p>Observação</p><p>O texto informativo do jornalismo tem como padrão o uso do narrador</p><p>observador (3ª pessoa).</p><p>Atualmente, Eliane Brum é um dos nomes de destaque na arte de revelar histórias de personagens</p><p>anônimas. Leia como exemplo o texto a seguir.</p><p>O Exílio</p><p>Elas vivem uma ao lado da outra. Uma em cada cama. Duas ilhas que não se tocam. Há</p><p>algum tempo Vany nem mesmo enxerga Celina. A artrite que lhe devora as articulações não</p><p>permite que mova o pescoço para a esquerda. Celina vislumbra o perfil de Vany, mas tem o</p><p>olhar eclipsado pela janela da rua.</p><p>Duas mulheres em uma geriatria. Exiladas.</p><p>Duas náufragas que decidiram expor suas almas na antessala do esquecimento.</p><p>Antes de Vany Pontes chegar à geriatria, quatro anos atrás, Celina Costa teve outras três</p><p>vizinhas de cama. Uma morreu e as outras se mudaram.</p><p>Então Vany chegou. Desde o primeiro segundo, compreendeu a vista que teria pelo resto</p><p>dos dias. A porta entreaberta da sala. Foi isso que aterrorizou Vany. Aquele mundo de velhos.</p><p>Um sentado ao lado do outro. Mas sem se tocarem, sem conversarem. Exilados do outro,</p><p>exilados de si mesmos. A TV ligada o dia inteiro, mas sem perceberem. Esperando pelo café,</p><p>pelo almoço, pelo jantar. Pelo lanche.</p><p>Um dia perguntaram a cada um o nome dos colegas de sofá. Nenhum sabia. Consumiam</p><p>os dias um ao lado do outro, mas desconheciam o nome um do outro.</p><p>Foi isso que massacrou Vany desde o princípio. O futuro à espreita. Estagnado na mesma</p><p>cena. A última cena da sua vida exatamente ali, do outro lado da porta.</p><p>A doença havia começado a penetrar no corpo de Vany quando ela tinha 40 anos.</p><p>Professora de História, sempre havia desejado entender o mundo. Então a dor começou.</p><p>Pelas mãos. Depois pelas pernas. Penetrando pela espinha. A cada dia lhe comendo as horas,</p><p>o fôlego. Doença de fazer louco, um dia disseram.</p><p>Os pais morreram. Sobrou Vany. Que começou a cair. Como se os ossos se liquefizessem.</p><p>E então a geriatria apareceu como a estrada que não se bifurca.</p><p>99</p><p>STORYTELLING</p><p>Da cama, Vany começou a reparar que os velhos não chegavam prostrados. Quando</p><p>chegavam, ainda havia um elo entre eles e o mundo, entre eles e a vida. Então, as horas</p><p>mortas iam lhes solapando a consciência e a vontade. Iam lhes roubando o sentimento e o</p><p>sentido. Um dia se exilavam. Primeiro, morria a mente. Depois, o corpo. A dona da geriatria</p><p>ocultava a morte, inventava uma desculpa, e o velho sumia da poltrona. No dia seguinte</p><p>outro tomava seu lugar. A espiral do esquecimento se repetia.</p><p>Foram tantas e tantas vezes que Vany assistiu a esse mesmo filme. Rebobinado e</p><p>rebobinado repetidamente.</p><p>Celina, não. Celina escolheu a janela da rua como mundo. Ela sabe quem chega, quem</p><p>sai, onde o cachorro do vizinho faz cocô, qual é o carro que estaciona em lugar proibido</p><p>e sempre, invariavelmente, se intriga com a mendiga velhinha, cheia de sacolas, que sobe e</p><p>desce a calçada sem horário definido. Onde será que ela dorme? Será que ela lava as</p><p>roupas? Ontem ela usava uma saia bonita.</p><p>Apenas um vidro a separá-la do mundo de lá. Do lado, na cama, ao alcance da mão,</p><p>uma caixa de sapatos contém toda a sua vida. Um batom, um cartão de Natal não enviado</p><p>porque não coube no envelope, um elástico para arrumar as calcinhas, uma medalha de</p><p>Nossa Senhora. Um radinho de pilhas com o telefone de um pronto-socorro grudado. E as</p><p>cartas. Celina escreve para o presidente da República, escreve para outros governantes. Para</p><p>um antigo pretendente, que parou de responder. Será que morreu?</p><p>Cartas iniciadas em um caderno e jamais remetidas. Como a escrita em 24 de junho,</p><p>quando fez 73 anos: “Hoje eu estou completando meus 18 anos...”</p><p>Aos 65 anos, Vany decidiu lutar contra a cena emoldurada pela porta da sala. A distância</p><p>diminuindo dia a dia, o corpo artrítico arrastado para lá como que atraído por um buraco</p><p>negro. Aterrorizada, Vany pediu a uma amiga, uma artista plástica chamada Dilva Lima, que</p><p>lhe ensinasse a terapia da arte. Foi quando começou. Carregadas pela voz da professora,</p><p>Vany e Celina trilharam florestas e mergulharam as pernas mortas em rios imaginários.</p><p>Sentiram a textura de folhas e flores. Atravessaram tempestades e assistiram a um pôr do</p><p>sol. Nesses intervalos entre a dor e a porta da sala as duas escapavam, quase se tocavam.</p><p>Apenas seus corpos permaneciam estirados sobre a cama. A mente ia longe. Nessas horas, os</p><p>dedos retorcidos de uma, as mãos esquecidas de outra desenhavam o movimento perdido.</p><p>Aprisionavam o movimento imaginado, como se assim pudessem contê-lo. Conter algo em</p><p>si mesmas de movimento e de possibilidade.</p><p>Primeiro, Vany cobriu páginas e páginas de peixes que nadavam. Depois, os peixes</p><p>viraram borboletas que voavam. A evolução encerrou-se com um ser</p><p>humano em posição</p><p>fetal. Um dia Vany desenhou um grande coração, vários corações em camadas, em cores</p><p>diferentes, um dentro do outro. Nesse dia o coração entrou em colapso e ela teve de ser</p><p>internada às pressas no hospital. Celina desenhou a si mesma, em cinza e negro, de pé sobre</p><p>pernas antigas, debaixo de uma tempestade.</p><p>100</p><p>Unidade II</p><p>Enquanto a pilha de desenhos da alma crescia ao redor da cama, a angústia foi</p><p>aumentando dentro de Vany. Suas pinturas eram seu legado. Sua tentativa última de explicar</p><p>o inexplicável. Vany temeu que, quando a dor finalmente a vencesse, no dia seguinte mesmo,</p><p>quando outra ocupasse a sua cama no redemoinho amnésico da geriatria, seu mundo fosse</p><p>sepultado com ela. Desfeito ao lixo, como se nunca houvesse existido uma Vany tentando</p><p>buscar o mundo sem pernas que a carreguem. Nem uma Celina escapando todos os dias</p><p>pela janela da rua.</p><p>Foi quando Vany inventou a exposição. Sonhou que seus desenhos poderiam viajar no</p><p>lugar de suas pernas. Imaginou vendê-los e reverter a renda em benefício de uma creche de</p><p>crianças exiladas. Acalentou a utopia de que seus anseios sobrevivessem a ela. Fossem livres.</p><p>Com a ajuda da amiga, as pinturas atravessaram o quarto, a soleira da porta, e</p><p>alcançaram a sala. Cobriram as paredes. Mas era previsível. E aconteceu. Os velhos não</p><p>perceberam a subversão do morredouro. Tô bem surda, tô bem cega, desculpa-se Adélia,</p><p>79 anos, que ainda cuida da irmã Josephina, de 87. Augusto desconhece onde está. Pensa</p><p>que está casado com a dona da casa e que o neto da mulher é seu filho. E Elza, 78, não</p><p>consegue vislumbrar a possibilidade de virar-se de frente para a parede e enxergar. Elza</p><p>é incapaz de adivinhar a possibilidade de mudar a posição da cadeira. Eu sento de costas</p><p>para a parede, não vejo nada, murmura, surpreendida que falem com ela. Vany e Celina</p><p>perceberam que travavam uma luta desigual contra o exílio. Celina voltou os olhos para</p><p>a janela da rua. E Vany continuou sua busca pela chave do mundo. Não desistiram. Sem</p><p>pernas para correr do destino, Vany e Celina resistem. Seguem seu combate silencioso</p><p>contra o naufrágio da vida.</p><p>Poucos foram ver a exposição. Não faz mal. Agora, sempre que Vany e Celina avistam</p><p>o outro lado da porta, vislumbram mais do que o exílio. Chegaram lá. Com nadadeiras,</p><p>cores e asas.</p><p>Ninguém percebeu, mas Vany e Celina conseguiram o que poucos conseguem. Mudaram</p><p>a última cena de suas vidas.</p><p>Fonte: Brum (2012, p. 63).</p><p>Repare que não se trata de uma notícia. O foco não é o factual. No entanto, isso não quer dizer que</p><p>não recebemos informações. A narrativa humanizada nos permite olhar para o cotidiano de duas idosas</p><p>em uma clínica, tentando vencer o tédio e a solidão. Com a narrativa, entramos no mundo de Vany e</p><p>Celina e conhecemos um pouco das suas vidas.</p><p>O resgate de personagens anônimas sem que haja um fato surpreendente as envolvendo como</p><p>pauta é algo que vai contra a corrente da padronização e da objetividade do texto jornalístico.</p><p>101</p><p>STORYTELLING</p><p>Saiba mais</p><p>Leia as histórias produzidas pela repórter Rebeca Kritsch no livro</p><p>Redescobrindo o Brasil, publicado em 2002 pela Editora Panda. A jornalista,</p><p>a pedido do diretor de redação do jornal O Estado de S. Paulo, viajou</p><p>sozinha, de carro, pelo país e chegou a lugares que nem estavam no mapa</p><p>para coletar narrativas.</p><p>KRITSCH, R. Redescobrindo o Brasil. São Paulo: Panda, 2002.</p><p>A jornalista e professora Cremilda Medina há anos defende que o repórter deve se encantar pelas</p><p>histórias humanas, deve exercitar a escuta solidária e o olhar atento.</p><p>Leia o início do perfil “A dama das miudezas”, produzido por Cremilda Medina.</p><p>Conhece dona Arminda? A grega da lojinha de miudezas da praça Buenos Aires? Sim, já</p><p>comprei linhas lá; aquela senhora é grega? É sim, e tem essa loja na praça há muitos anos,</p><p>você deve procurá-la.</p><p>Outros me recomendaram dona Arminda, a judia dos armarinhos. Dizem que a farmácia</p><p>e a loja dela são os estabelecimentos mais antigos no miolo de Higienópolis. Os imóveis</p><p>testemunham décadas de conservação.</p><p>Dona Arminda, a grega, ou a judia, corre num pé só para atender a clientela. À volta dos</p><p>60 anos, inteira, de calças compridas, modernas no corte, cabelos pintados, unhas também,</p><p>despacha com eficiência: a senhora que busca uma lã para acabar o tricô para o neto; o</p><p>menino que quer caderno e cola Pritt; mãe e filha que vêm comprar um tipo especial de linha</p><p>brilhante, para bordar; o senhor que procura um presentinho, brinquedo de preferência,</p><p>para o neto que vai lá em casa hoje; a velha dama que escolhe outro presente, pode ser</p><p>roupa, bijuteria, uma coisinha qualquer, a sobrinha não é muito exigente... Os tamanquinhos</p><p>ortopédicos de dona Arminda, toc-toc, atravessam o Bazar Buenos Aires Ltda.</p><p>Não é grega. Nem judia. O sotaque a trai: é portuguesa.</p><p>Fonte: Medina (2008, p. 10).</p><p>Com esse início, temos uma descrição do ambiente que, na verdade, reflete as características da</p><p>protagonista. Também ficamos conhecendo sua origem estrangeira. A jornalista opta por um narrador</p><p>em primeira pessoa, que dá voz aos personagens por meio do discurso direto e indireto. Em algumas</p><p>102</p><p>Unidade II</p><p>passagens, isso ocorre sem a indicação gráfica de quem se pronuncia, pois o fluxo do texto nos permite</p><p>identificar quem fala.</p><p>Com esses exemplos, vemos que, apesar da tendência da chamada grande imprensa em adotar</p><p>paradigmas objetivos, com textos formatados segundo padrões de manuais, muitos profissionais</p><p>permaneceram alimentando o jornalismo com narrativas.</p><p>Saiba mais</p><p>Aprofunde-se sobre o assunto com o livro de Cremilda Medina:</p><p>MEDINA, C. A arte de tecer o presente: narrativa e cotidiano. São</p><p>Paulo: 2008.</p><p>Observação</p><p>As chamadas matérias de interesse humano, como a apresentada, são</p><p>classificadas como textos do jornalismo diversional, pois elas permitem o</p><p>prazer da leitura para além da informação. Nessas matérias, é necessário que</p><p>o redator tenha sensibilidade para não descambar para o sentimentalismo</p><p>ou para o pieguismo. Também se deve ter cuidado para não se apelar ao</p><p>sensacionalismo, como se verá na sequência.</p><p>5.2 Histórias e sensacionalismo</p><p>É necessário mencionar que, muitas vezes, uma notícia ou reportagem, para chamar a atenção, vale-se</p><p>da exacerbação das emoções ou mesmo da propagação de mentiras que podem atrair o leitor. Essa</p><p>conduta antiética é incompatível com a boa práxis jornalística. A possibilidade de divulgação rápida e</p><p>abrangente com as redes sociais atualmente faz com que a proliferação de notícias falsas seja muito</p><p>grande. No entanto, esse fenômeno não é novo.</p><p>Muitas histórias são distorcidas, exageradas ou mesmo inventadas de forma a atrair o público.</p><p>O jornalismo sensacionalista utiliza muito esse artifício.</p><p>Segundo Marcondes Filho (1986), o sensacionalismo atua como nutriente psíquico, desviante</p><p>ideológico e descarga de pulsões instintivas. Trata-se, no seu entender, do grau mais radical da</p><p>mercantilização da informação.</p><p>Em 1975, o jornal Notícias Populares, um dos grandes títulos do jornalismo sensacionalista nacional,</p><p>fez história ao narrar o nascimento do bebê-diabo.</p><p>103</p><p>STORYTELLING</p><p>Roosevelt Garcia (2017) narra o fato da forma reproduzida a seguir.</p><p>O dia 11 de maio de 1975, dia das mães, seria um domingo sem grandes novidades, como</p><p>qualquer outro dia das mães naquela época. Mas a edição daquele dia de um jornal mudaria</p><p>tudo. Desde as primeiras horas da manhã, as bancas estavam lotadas de pessoas comprando</p><p>o jornal Notícias Populares, já famoso naquela época por suas histórias exageradamente</p><p>sensacionalistas, e que trazia estampada em letras garrafais a manchete “Nasceu o Diabo</p><p>em São Paulo”. Eles acertaram em cheio no imaginário popular! Todo mundo queria saber a</p><p>história do bebê que tinha nascido num hospital de São Bernardo do Campo, com chifres,</p><p>rabo e ameaçando todo mundo assim que nasceu.</p><p>Fonte: Garcia (2017).</p><p>Observação</p><p>Repare que o relato anterior é, também, um exemplo de storytelling,</p><p>uma vez que o texto reconstrói a cena do dia</p><p>em que a notícia foi publicada.</p><p>De acordo com Angrimani Sobrinho (1995), que entrevistou o então secretário de planejamento do</p><p>jornal, a história foi inventada para preencher a lacuna de um plantão de sábado. Um repórter do jornal</p><p>havia ido ao ABC para checar uma pauta, que era infundada. Ele fez uma crônica, que foi transformada</p><p>em manchete do dia seguinte.</p><p>Leia, a seguir, o início da matéria.</p><p>Durante um parto incrivelmente fantástico e cheio de mistérios, correria e pânico por</p><p>parte de enfermeiros e médicos, uma senhora deu à luz num hospital de São Bernardo do</p><p>Campo a uma estranha criatura, com aparência sobrenatural, que tem todas as características</p><p>do diabo, em carne e osso. O bebezinho, que já nasceu falando e ameaçou sua mãe de morte,</p><p>tem o corpo totalmente coberto de pelos, dois chifres pontiagudos na cabeça e um rabo de</p><p>aproximadamente cinco centímetros, além do olhar feroz, que causa medo e arrepios.</p><p>Parece que tudo começou na Semana Santa, quando o marido da mulher, que é muito</p><p>religioso, convidou-a para ir à igreja ver a procissão. A mulher, grávida, bateu a mão na</p><p>barriga e respondeu indignada:</p><p>— Não vou enquanto este diabo não nascer!</p><p>E foi o que aconteceu. A mulher acabou tendo como filho um monstrinho horripilante,</p><p>peludo, que, ao falar, mais parece que está mugindo. […].</p><p>Fonte: Agrimani Sobrinho (1995, p. 146).</p><p>104</p><p>Unidade II</p><p>Apesar de tantos indícios de não plausibilidade, os leitores sentiram-se atraídos pela história.</p><p>O tema do bebê-diabo ocupou 22 edições do jornal. Segundo Angrimani Sobrinho (1995, p. 140),</p><p>dia após dia, “Notícias Populares” conseguiu encontrar assunto para</p><p>manter o diabo na manchete e destacar o assunto em longas reportagens</p><p>especiais nas páginas internas, tendo como “fonte de alimentação” o</p><p>próprio imaginário dos leitores que, com sua atitude ingênua, crédula ou</p><p>egocêntrica, se predispunham a se compactuar com a farsa.</p><p>O autor ainda destaca que relatos semelhantes remontam aos séculos XII e XIII e atravessam as</p><p>épocas seguintes. Trata-se de narrativas que mexem com as crenças e a imaginação das pessoas de</p><p>diferentes épocas e lugares e, por isso, mesmo com elementos que apontam para a falta de verdade,</p><p>despertam o interesse do público.</p><p>Veja, na figura a seguir, a chamada para o assunto.</p><p>Figura 27 – Capa do Notícias Populares sobre o caso</p><p>Observação</p><p>Quando uma notícia apresenta desdobramentos sequenciais,</p><p>denominamos, no jargão jornalístico, de suíte.</p><p>Saiba mais</p><p>Conheça esse e outros casos no livro Danilo Angrimani Sobrinho:</p><p>ANGRIMANI SOBRINHO, D. Espreme que sai sangue. São Paulo:</p><p>Summus, 1995.</p><p>105</p><p>STORYTELLING</p><p>5.3 Storytelling no jornalismo contemporâneo</p><p>Como já dissemos, o storytelling é uma técnica, ou uma arte, para narrar fatos, com uma construção</p><p>textual envolvente, seja ela impressa, seja ela audiovisual. Ao enfatizar a narração e a descrição,</p><p>recriam-se cenas e personagens, com a intenção de despertar sensações no público, para que ele se</p><p>identifique com a história e aprecie o texto jornalístico.</p><p>Devemos destacar que storytelling não se confunde com jornalismo literário, embora haja relação</p><p>entre eles. Vamos explicar melhor: as matérias classificadas como jornalismo literário são histórias</p><p>bem contadas, assim, essas narrativas sempre encantaram e envolveram os leitores. Podemos dizer,</p><p>atualmente, que elas se valem do storytelling, ainda que não se usasse essa nomenclatura até um tempo</p><p>atrás. Entretanto, nem todas as matérias que utilizam a ferramenta storytelling constroem, de fato, um</p><p>texto com características da narrativa literária. Muitas só procuram criar um começo mais atrativo, por</p><p>exemplo, ou destacar elementos que despertam o interesse do leitor.</p><p>Nas palavras de Karenine Cunha e Paulo Mantello (2014, p. 60),</p><p>A técnica do storytelling não necessariamente está atrelada à reportagem</p><p>densa e literária dos veículos impressos, que hoje precisam adaptar-se à</p><p>convergência de plataformas, à profusão de informações disponíveis e ao</p><p>enxugamento das redações. Portanto, storytelling está mais próximo de</p><p>uma técnica de redação do que de ser outra nomenclatura para o Novo</p><p>Jornalismo, visto que pode ser aplicado em qualquer meio de comunicação</p><p>e em qualquer natureza de texto.</p><p>Os autores ainda destacam que o storytelling não tem como objetivo transpor os relatos jornalísticos</p><p>do campo noticioso e reclassificá-los na literatura. Trata-se de uma possibilidade de condução do texto</p><p>que mantém a preocupação na informação, e não apenas na estética da linguagem.</p><p>Assim, vale a definição de Antonio Núñez (2007): storytelling é uma ferramenta de comunicação</p><p>estruturada em uma sequência de acontecimentos que apelam a nossos sentidos e emoções.</p><p>Ana Estela de Sousa Pinto (2009) explicita a estrutura básica para contar histórias jornalísticas de</p><p>forma envolvente, essa estrutura é dividida em quatro partes, indicadas a seguir.</p><p>• Anzol: o anzol ocupa o primeiro parágrafo e apresenta um mistério, um problema, uma</p><p>característica marcante de um personagem, capaz de fisgar o leitor.</p><p>• Foco: o foco, apresentado na sequência do anzol, oferece explicações para a história, mantendo a</p><p>retórica e fazendo com que o leitor continue a acompanhar o relato.</p><p>• Provas: as provas buscam dar veracidade ao relato, apropriando-se de técnicas da objetividade</p><p>jornalística, como dados estatísticos ou explicações de fontes técnicas.</p><p>106</p><p>Unidade II</p><p>• Resgate: o resgate ocorre em um final tão elaborado quanto o começo, muitas vezes fazendo</p><p>remissão ao início do texto, caracterizando uma estrutura circular.</p><p>Observação</p><p>Em inglês, chama-se de story qualquer matéria – terminologia técnica</p><p>que designa todos os formatos jornalísticos do gênero informativo (nota,</p><p>notícia, entrevista, perfil ou reportagem).</p><p>Dessa forma, uma narrativa jornalística envolvente deve combinar personagens e contextos, de</p><p>modo a oferecer para o leitor uma leitura da realidade.</p><p>Vejamos, como exemplo, uma notícia sobre a morte de Jaime Dias Sabino, conhecido “papagaio de</p><p>pirata” que frequentava enterros de celebridades. Ele ficou conhecido por acompanhar, durante anos,</p><p>velórios e sepultamentos de pessoas famosas. O texto foi também mencionado por Cunha e Mantello</p><p>(2014) como exemplo de storytelling no jornalismo diário.</p><p>A notícia elaborada pelo jornalista Fabio Brisolla foi publicada em 26 de outubro de 2013 no caderno</p><p>Cotidiano da Folha de S. Paulo.</p><p>‘Papagaio de pirata’ de funerais morre no Rio</p><p>FABIO BRISOLLA</p><p>DO RIO – 26/10/2013</p><p>Em uma tarde nublada, ontem, Jaime Dias Sabino, 87, chegou para ficar em um de seus</p><p>locais preferidos: o cemitério São Francisco Xavier, na zona portuária do Rio.</p><p>Desta vez, Sabino morreu. Nas anteriores, ele aparecia como “figurante” de velórios</p><p>e sepultamentos. Mesmo sem conhecer o falecido, caminhava até os familiares com ar</p><p>consternado, manifestava seu pesar e permanecia postado próximo ao morto.</p><p>Não raras vezes, garantia a oportunidade de segurar em uma das alças do caixão até a</p><p>cova. Comovidos, familiares nem se davam conta de fazer a pergunta óbvia: afinal, quem</p><p>era aquele sujeito?</p><p>No jargão popular, Sabino era “papagaio de pirata”, termo normalmente usado para</p><p>designar pessoas que ficam atrás de jornalistas e fotógrafos com o objetivo de aparecer</p><p>para as câmeras. Foi assim que ele se colocou em situações curiosas.</p><p>Sabino conduziu, por exemplo, os caixões do ex-jogador Didi (2001), da cantora</p><p>Emilinha Borba (2005) e do ex-senador Artur da Távola (2008). Passou três dias na Bahia,</p><p>107</p><p>STORYTELLING</p><p>onde acompanhou de perto a movimentação no velório de Irmã Dulce (1992). Acabou</p><p>fotografado ao lado dos políticos Antônio Carlos Magalhães, ex-governador e senador pela</p><p>Bahia, e José Sarney (PMDB-AL), hoje presidente do Senado.</p><p>Em entrevista a Jô Soares, Sabino disse ter comparecido às cerimônias fúnebres de</p><p>Tim Maia, Cazuza e Chacrinha. Citou com satisfação o adeus à Hebe Camargo, a que teria</p><p>assistido de perto.</p><p>Sabino, mais conhecido como Jaiminho, era por vezes tachado de</p><p>inconveniente.</p><p>A reportagem da Folha chegou a encontrá-lo em fevereiro de 2013, quando um incêndio</p><p>no apartamento do marchand Jean Boghici, em Copacabana, destruiu preciosidades</p><p>de seu acervo.</p><p>Boghici saiu do local abatido. Ao se aproximar do carro para ir embora, eis que surgiu</p><p>Sabino fazendo pose.</p><p>Uma repórter protestou: “Até aqui? Você não respeita ninguém?”</p><p>Sempre vestia ternos. Dizia ter mais de 200 modelos em sua casa no bairro do Rocha, na</p><p>zona norte. “Eu uso terno e gravata até para dormir. Se eu morrer, não vou dar trabalho para</p><p>ninguém. É só pegar e empurrar para dentro do caixão. Já tô prontinho, prontinho”, disse.</p><p>Funcionário público aposentado, ele teve um infarto.</p><p>De terno branco, Sabino foi enterrado às 15h em uma sepultura na ala de gavetas do</p><p>cemitério. Cerca de 80 pessoas estiveram na cerimônia.</p><p>Fonte: Brisolla (2013, p. C5).</p><p>Observe que o texto segue o esquema apontado anteriormente. O início aborda o fato de forma</p><p>a fisgar a atenção do leitor (“anzol”). Apresenta-se o personagem e atiça-se a curiosidade do leitor</p><p>com a afirmação de que o lugar de que ele mais gostava era um cemitério. Na sequência, citam-se os</p><p>fatos, com um breve histórico das “façanhas” de Sabino, com suas comprovações. Por fim, retorna-se</p><p>ao cenário inicial, com mais dados sobre sua morte e seu enterro. No caso, temos a estrutura circular</p><p>apontada por Ana Estela Pinto.</p><p>Compare o texto lido com o lead da notícia a seguir, sobre o mesmo fato, publicada em</p><p>outro veículo.</p><p>108</p><p>Unidade II</p><p>Jaime Sabino, o mais famoso “papagaio de pirata” do Brasil, faleceu nesta quinta-feira,</p><p>aos 83 anos, no Hospital de Ipanema, após sofrer um infarto. O corpo de Jaiminho, como era</p><p>carinhosamente chamado, foi sepultado na tarde desta sexta-feira, no Cemitério do Caju,</p><p>na Zona Portuária.</p><p>Fonte: Bruno (2013).</p><p>Note que, na notícia do jornal O Dia, temos o esquema clássico do lead: o fato, com seus elementos</p><p>essenciais, está no primeiro parágrafo do texto. Sabemos quem morreu, quando e o motivo e, também,</p><p>onde ele foi sepultado. Há sensível diferença entre os dois começos das notícias. Perceba que, no</p><p>segundo exemplo, o leitor não se sente estimulado a seguir a leitura, uma vez que ele já teve acesso às</p><p>informações factuais necessárias. Na matéria de Brisolla, a estrutura conduz o leitor até o fim do texto.</p><p>Leia, agora, a reportagem a seguir, publicada na Revista Época.</p><p>Isolada na pandemia, aposentada viraliza ao imitar memes, famosos e pinturas</p><p>Jane Moretto, de 77 anos, começou a reinterpretar imagens como passatempo durante</p><p>quarentena, mas logo suas fotos foram parar na internet e fizeram sucesso</p><p>Rodrigo Castro – 16/01/2021</p><p>Figura 28 – Jane Moretto começou a reinterpretar fotos e pinturas. Na imagem, Maria Luiza Castilho</p><p>faz releitura de um retrato de Frida Kahlo. Foto: Arquivo pessoal</p><p>Bastaram um chapéu com laço, um cardigã branco adornado com um broche e um colar</p><p>para que a aposentada Jane Moretto, de 77 anos, se transformasse na rainha Elizabeth II.</p><p>Isolada durante a pandemia, ela começou a imitar personalidades, pinturas e memes para se</p><p>distrair. O que era para ser apenas uma brincadeira entre família viralizou depois que uma</p><p>de suas filhas publicou as reinterpretações das imagens em suas redes sociais.</p><p>109</p><p>STORYTELLING</p><p>Figura 29 – Jane Moretto imitando a rainha Elizabeth II. Foto: Arquivo pessoal</p><p>Desde a última quarta (13), quando teve a ideia e a colocou em prática, Jane tem recebido</p><p>ligações de amigos e mensagens, algumas até com sugestões. Entre suas reproduções, estão,</p><p>por exemplo, a famosa pintura “O Grito”, do norueguês Edvard Munch, a obra “Después del</p><p>Baile”, do espanhol Ramón Casas, e “A dama com o véu”, do sueco Alexander Roslin.</p><p>Figura 30 – Jane Moretto imitou pinturas como ‘O Grito’ e ‘Después del Baile’. Foto: Arquivo pessoal</p><p>“Resolvi fazer uma brincadeira com minhas filhas Ana e Mariana e comecei a mandar as</p><p>fotos. Mas aí viralizou. Todo mundo me ligando e querendo compartilhar comigo, mandando</p><p>novas ideias. É muito engraçado. Fiz mais para me distrair, não pensei que ia ter tanta</p><p>repercussão”, afirmou Jane.</p><p>110</p><p>Unidade II</p><p>A aposentada revira o guarda-roupas atrás dos figurinos mais verossímeis e de bijuterias</p><p>ou ornamentos que componham a imitação. Os cliques ficam por conta da amiga e xará</p><p>Jane, que mora no mesmo prédio e às vezes lhe faz companhia. É ela também quem ajuda</p><p>nas montagens, inclusive com fotos antigas, como uma ao lado do falecido marido José</p><p>Roberto, na qual posavam como o principal casal da família real britânica.</p><p>Figura 31 – O casal Jane e José Roberto posa como a rainha Elizabeth e o príncipe Philip. Foto: Arquivo pessoal</p><p>“O importante é a ideia. Não dá para fazer às vezes tão igual. Eu pesquiso e vejo o que</p><p>dá para fazer o mais parecido possível. A gente improvisa as roupas, e ela (Jane) tira as fotos,</p><p>porque sozinha eu não consigo. É a minha figurinista (risos)”, disse com bom humor.</p><p>À espera da vacina, a aposentada raramente sai de casa durante a pandemia. Ela diz contar</p><p>nos dedos quantas vezes visitou familiares – sempre com máscara, distanciamento social</p><p>e todos os cuidados preconizados por autoridades de saúde. Solitária, a solução foi ocupar</p><p>seu tempo com leitura, quebra-cabeça, TV e piano. Ao menos até surgir o novo passatempo.</p><p>Mãe de três filhos, uma delas médica, Jane optou por ficar sozinha com o isolamento.</p><p>A aposentada ficou viúva em 2018, meses após completar bodas de ouro. Seu marido, que</p><p>sofria de esclerose múltipla, foi acometido por uma obstrução intestinal fatal aos 76 anos.</p><p>Figura 32 – Jane revira o guarda-roupas para ficar o mais próximo possível de sua inspiração. Foto: Arquivo pessoal</p><p>111</p><p>STORYTELLING</p><p>“Procuro enfrentar tudo o que aparece. Eu me considero uma mulher muito feliz. Meu</p><p>marido foi meu primeiro namorado, casamos, vivemos 50 anos juntos. Quando fiquei sem</p><p>ele, fiquei muito arrasada. Mas procurei enfrentar a situação. O que não tem remédio a</p><p>gente tem que enfrentar da melhor maneira possível”, disse.</p><p>Com idade que lhe credencia ao grupo prioritário conforme o plano de vacinação no</p><p>Brasil, a aposentada conta as horas para receber o imunizante e poder retomar a rotina e</p><p>seus hobbies, principalmente viajar. Cansada de ficar presa em casa, ela quer voltar a ser</p><p>simplesmente a Jane. As semelhanças com a rainha Elizabeth não vão muito além.</p><p>Fonte: Castro (2021).</p><p>Na matéria da Revista Época, os elementos que mais chamam a atenção, no primeiro momento, são</p><p>as fotografias. Há, ainda, as características peculiares da personagem, como a idade, e o modo como ela</p><p>ganhou destaque a ponto de se tornar pauta para o veículo. Esses fatores despertam a curiosidade do</p><p>leitor, que decide dedicar alguns minutos à leitura do texto.</p><p>Neste ponto, devemos mencionar, ainda que de forma breve, o impacto que o desenvolvimento da</p><p>internet teve na práxis jornalística. Tito Eugênio Santos Souza (2018, p. 1) aponta que</p><p>a diversidade de linguagens, gêneros discursivos e formatos existentes na</p><p>contemporaneidade, no entanto, sinaliza muito mais que uma simples</p><p>mudança nas rotinas de produção da notícia envolvendo os diferentes</p><p>veículos de comunicação: as próprias formas de narrar os fatos, tais como</p><p>estes são reconstruídos discursivamente pelo jornalismo, ressignificam-se e</p><p>engendram outras novas, como sintoma do espírito de um tempo marcado</p><p>por constantes e vertiginosas transformações.</p><p>Em um cenário marcado pelo excesso de informações, em que a atenção do indivíduo é disputada</p><p>por vários emissores, o jornalismo contemporâneo tem como desafio representar o real, informar e</p><p>possibilitar ao leitor a interpretação do mundo em que vive com um formato atraente.</p><p>Esse contexto estimula, portanto, a adoção da técnica storytelling no meio jornalístico a tal ponto</p><p>que ela tem sido abordada em cursos e oficinas direcionados a profissionais e estudantes da área.</p><p>Devemos ainda destacar que o uso de storytelling é diferente dependendo da mídia utilizada. Os</p><p>textos de revista, em geral, tendem</p><p>um dos</p><p>elementos importantes de uma cultura, alguns 40.000 anos atrás. Coincidentemente ou não, estima-se</p><p>que também nesse período os seres humanos tenham desenvolvido uma linguagem mais semelhante</p><p>à nossa. Além disso, por volta do período Paleolítico Superior, existem evidências da existência de ao</p><p>menos uma religião.</p><p>Para um exemplo mais claro de como as histórias que contamos são ferramentas de cultura,</p><p>avancemos no tempo para os contos de fadas. Pensemos na história de Chapeuzinho Vermelho, por</p><p>meio da qual ensinamos nossas crianças que elas devem obedecer aos adultos. Ou na história de</p><p>Cinderela, por meio da qual ensinamos que nossos sonhos podem se realizar se formos boas pessoas e</p><p>trabalharmos duro. Histórias nos ensinam valores socioculturais, nos ensinam como “devemos” ser. Não</p><p>é à toa que elas mudam com o tempo, que variam de lugar para lugar; a Branca de Neve da Disney, por</p><p>exemplo, tem muito pouco em comum com a sua antecessora nos contos dos irmãos Grimm. A versão</p><p>dos irmãos Grimm, imaginamos, é em si diferente das versões orais contadas antes deles. E, ainda que a</p><p>história seja a mesma, as lições que ela contém podem mudar de acordo com a interpretação.</p><p>Consideremos as muitas histórias acerca de Joana D’Arc, personagem histórica que rapidamente se</p><p>tornou também mitológica: seu papel central nas batalhas da França contra a Inglaterra pode conter</p><p>tanto uma lição acerca do poder do divino quanto uma lição acerca da importância da mulher, mesmo</p><p>em campos tradicionalmente considerados masculinos. Ou, ainda, recordemos as histórias bíblicas e</p><p>suas muitas possíveis leituras.</p><p>12</p><p>Unidade I</p><p>Figura 3 – Joana D’Arc – Arquivos Nacionais (França) – AE-II-2490. Datado entre os séculos XV e XX</p><p>Figura 4 – Pôster de O martírio de Joana D’Arc (La passion de Jeanne d’Arc), de Carl Theodor Dreyer, 1928</p><p>13</p><p>STORYTELLING</p><p>Agora, aplique o mesmo princípio em tempos bem mais remotos. Imagine nossos ancestrais,</p><p>naquela clássica imagem que criamos em nossas mentes, em volta da fogueira, e a importância dos</p><p>ensinamentos por histórias. Uma história de caça pode fornecer informações importantes acerca das</p><p>melhores técnicas e táticas, a história de alguém que morreu depois de ser picado por uma cobra pode</p><p>nos ensinar que aquele animal é venenoso, a história de alguém que foi curado de uma doença</p><p>pode nos indicar possíveis práticas de cura. É claro que as informações que tiramos de histórias nem</p><p>sempre são exatas ou corretas; é sempre possível que o sucesso da caça tenha tido mais a ver com sorte</p><p>do que com habilidade, que a vítima da cobra tenha na verdade morrido de outra coisa que não veneno,</p><p>que a recuperação do doente tenha ocorrido independentemente das técnicas de cura. Histórias não</p><p>são fatos, são experiências.</p><p>Substitua a fogueira por uma mesa, e nossos ancestrais por nós, humanos modernos. Quase</p><p>inevitavelmente, compartilhamos histórias e somos afetados por elas. Tem-se falado muito atualmente</p><p>da propagação de notícias falsas (fake news), principalmente por meio das redes sociais. Esse fenômeno</p><p>é mais um exemplo do poder de sedução das histórias. Tendemos a tomar por verdade aquilo que,</p><p>de alguma forma, queremos que seja verdade, aquilo que melhor se encaixa com nossas experiências</p><p>pessoais, nossas crenças, nossas histórias.</p><p>A charge a seguir ilustra como temos tendência a acreditar naquilo que confirma nossas crenças.</p><p>Figura 5 – Fake news</p><p>As redes sociais são, afinal, espaços de histórias, e, ainda que saibamos que fato e experiência são</p><p>coisas distintas, nada é tão real ou verdadeiro para nós quanto nossas próprias experiências. É preciso</p><p>que exercitemos frequentemente nossa compreensão para que sejamos capazes de reconhecer quando</p><p>nossa experiência não coincide com os fatos, ou mesmo para que reconheçamos que nossa experiência</p><p>não constitui nenhum tipo de verdade universal. Tendemos a desejar, compreensivelmente, que nossas</p><p>experiências sejam validadas pelas histórias dos outros e, quando encontramos histórias que cabem em</p><p>14</p><p>Unidade I</p><p>nossas identidades, damos a elas caráter de verdade. É clara a armadilha em que nos colocamos com</p><p>essa expectativa, já que, insistiremos novamente, histórias não são fatos, não são verdades universais e,</p><p>certamente, não são o que poderíamos chamar de imparciais ou neutras.</p><p>Histórias são flexíveis, mas raramente acidentais e nunca sem propósito. Elas constroem e destroem</p><p>pessoas, perpetuam empresas e instituições, apagam culturas, formam e inibem identidades... Mais do</p><p>que isso, as histórias e suas estruturas variam de cultura para cultura, mas o fato de que existem</p><p>histórias a serem contadas não, o que parece corroborar a hipótese de que o ato de contar histórias tem</p><p>algo de primitivo; algo, talvez, das próprias raízes de nossas linguagens.</p><p>Lembrete</p><p>Histórias não são fatos, são experiências.</p><p>O ato de narrar é tão poderoso que Walter Benjamin vê na mudança do papel do narrador na</p><p>literatura um indício de mudança estrutural da própria experiência humana; tão persistente que lemos</p><p>até hoje histórias contadas e escritas há milênios; tão sedutor que frequentemente torna nossas vidas</p><p>mais toleráveis. Quantas pessoas não buscaram escapar para universos de fantasia como os presentes</p><p>em O Senhor dos Anéis, Harry Potter, Star Wars e outros? O que são os RPGs senão oportunidades</p><p>de contarmos nossas próprias histórias em outras realidades? Quantas pessoas não sentem alívio em</p><p>compartilharem suas histórias? Não à toa, o campo da psicologia também dá ênfase à narração como</p><p>elemento de descobertas e aprendizagens. Quantas pessoas não se sentem confortadas ou inspiradas</p><p>pelas narrativas de outros?</p><p>Histórias têm poder. Embora isso só venha a ser propriamente reconhecido nas áreas mais comerciais</p><p>contemporaneamente, várias formas de estudo decorrem, ao menos em parte, desse princípio.</p><p>A própria arte – a literatura, o teatro, o cinema e a pintura, por exemplo – provém em parte do poder das</p><p>histórias. Os estudos religiosos e mitológicos existem porque entendemos que as histórias são indícios</p><p>e influenciadores culturais. Em outras palavras, não é preciso ir muito longe para compreender por</p><p>que storytelling se tornou, com tanta velocidade, uma ferramenta potente para certas áreas, como</p><p>o marketing.</p><p>1.2 O que é storytelling?</p><p>Storytelling é um termo em inglês que pode ser diretamente traduzido para “contação de estórias”.</p><p>Conforme já discutimos, estórias aparecem nos mais diversos âmbitos da sociedade; filmes e livros,</p><p>sabemos, contam histórias, mas elas também são contadas por jornais, por marcas, por indivíduos em</p><p>redes sociais.</p><p>15</p><p>STORYTELLING</p><p>Observação</p><p>Alguns autores preferem usar, em português, o termo “estória”, no lugar</p><p>de “história”, valendo-se da distinção de sentido entre as duas palavras.</p><p>História estaria relacionada a fatos reais; estória, por sua vez, estaria ligada</p><p>à ficção. Trata-se de uma diferença que aparece claramente na língua</p><p>inglesa: history e story. No Brasil, durante um tempo, usamos os dois</p><p>termos, respeitando a distinção entre eles. No entanto, isso foi alterado e</p><p>permaneceu apenas “história”. Mesmo assim, há quem defenda o uso de</p><p>“estória” para o que se narra em filmes, novelas, séries, romances, contos</p><p>etc., e “história” para os acontecimentos ocorridos realmente.</p><p>Neste livro-texto, em vários contextos, usaremos “estórias”. Não queremos</p><p>com isso estabelecer uma fronteira rígida entre ficção e realidade, mas</p><p>apenas sinalizar essa distinção.</p><p>Apontamos, também, que a contação de estórias é uma parte antiga e importante das artes como</p><p>um todo e que aquilo que cerca nossas histórias e estórias também é de suma importância; não à</p><p>toa, diversos romances longos podem ter seus enredos resumidos em um ou dois parágrafos, mas</p><p>perdem aquilo que os torna especiais no processo. Parafraseando Paul Valéry, filósofo e escritor francês</p><p>dos séculos XIX e XX, resumir uma obra de arte é matá-la, porque como contamos as estórias é mais</p><p>importante, nas artes, do que as estórias</p><p>a apresentar maior extensão e maior aprofundamento, além de mais</p><p>imagens. Além disso, historicamente, gozam de maior liberdade estilística em comparação às matérias</p><p>de jornais. No ambiente digital, podem ser explorados recursos adicionais, com outras linguagens, como</p><p>vídeo e áudio. As histórias passam a ser contadas pela combinação de características herdadas do</p><p>impresso com as possibilidades de uso dos suportes digitais.</p><p>112</p><p>Unidade II</p><p>Um bom exemplo do uso de storytelling em uma narrativa multimídia é a matéria “Snow fall”,</p><p>produzida pelo repórter John Branch e equipe para o The New York Times em 2012. Além de Branch,</p><p>a reportagem contou com a colaboração de 11 especialistas em gráficos e design, um fotógrafo, três</p><p>pessoas responsáveis pelos vídeos e uma colaboradora de pesquisa.</p><p>O projeto foi composto por seis blocos, com textos, gráficos interativos, fotos, animações e vídeos, e</p><p>recebeu o Prêmio Pulitzer em 2013.</p><p>A reportagem aborda, de forma inovadora, uma avalanche de neve que aconteceu no estado de</p><p>Washington em fevereiro de 2012 e que matou três dos 16 atletas que praticavam snowboard nas</p><p>encostas do vale Tunnel Creek, nas montanhas Cascade. O destaque se deu não apenas pelo formato,</p><p>que permitiu a interatividade dos leitores, mas também pela intensidade da apuração, que promoveu a</p><p>contextualização do acontecimento.</p><p>Leia o início da matéria.</p><p>A neve explodiu por entre as árvores sem nenhum aviso, a não ser um ruído de</p><p>último segundo, uma parede branca de dois andares e o grito agudo de Chris Rudolph:</p><p>“Avalanche! Elyse!”</p><p>Exatamente o que os 16 esquiadores e snowboarders procuravam – neve fresca e fofa –</p><p>instantaneamente se tornou o inimigo. Em algum lugar acima, um prado intocado rachou</p><p>na forma de um raio, cortando uma laje de quase 60 metros de largura e 90 centímetros de</p><p>profundidade. A gravidade fez o resto.</p><p>A neve se espatifou e se espalhou pela encosta. Em segundos, a avalanche tinha o</p><p>tamanho de mais de mil carros descendo a montanha e pesava milhões de libras.</p><p>Movendo-se a cerca de 11 quilômetros por hora, ele se chocou contra as árvores antigas e</p><p>robustas, quebrando seus galhos e rasgando a casca de seus troncos.</p><p>A avalanche, em Washington’s Cascades, em fevereiro, passou por algumas árvores e</p><p>rochas, como as ondas do oceano ao redor da proa de um navio. Outros ele capturou</p><p>e aumentou sua carga violenta.</p><p>Em algum lugar lá dentro, também carregava pessoas. Quantos, ninguém sabia.</p><p>Fonte: Branch (2012).</p><p>O projeto é apontado por diversos autores, entre eles Palacios e Terenzzo (2016), como um bom</p><p>exemplo do futuro do jornalismo e do uso do storytelling.</p><p>113</p><p>STORYTELLING</p><p>“Snow fall” cumpre o que Cunha e Mantello apontam como característica do storytelling:</p><p>a técnica do storytelling resulta em um texto sinestésico: atinge os cinco</p><p>sentidos, não deixando que o sujeito fuja da mensagem. Pode ser visto,</p><p>ouvido, trazer a lembrança de um aroma, de um sabor ou de um toque.</p><p>A sinestesia ocorre mesmo que o texto seja de um jornal impresso, a priori</p><p>focado na leitura e no sentido da visão. O propósito da técnica do storytelling</p><p>é, a partir de um sentido preponderante, acionar os outros, graças à forma</p><p>de estruturar o relato jornalístico (CUNHA; MANTELLO, 2014, p. 59).</p><p>Observação</p><p>Sinestesia é o cruzamento de sensações geradas pelos sentidos.</p><p>Quando dizemos que temos um perfume doce, por exemplo, estamos</p><p>usando referência do olfato e do paladar. Um texto provoca sinestesia</p><p>quando afeta nossos sentidos.</p><p>Outro exemplo bastante emblemático é uma reportagem de fôlego, conduzida pela repórter Ângela</p><p>Bastos e pelo fotógrafo Charles Guerra: “As quatro estações de Iracema e Dirceu”. A matéria foi elaborada</p><p>para o Diário Catarinense com a intenção de retratar a vida de pessoas que compõem as estatísticas</p><p>daqueles que vivem abaixo da linha da pobreza. Durante dois anos e sete meses, eles acompanharam</p><p>a rotina de Iracema e Dirceu, agricultores, e seus 14 filhos, que sobrevivem com uma renda menor que</p><p>54 reais por pessoa.</p><p>Veja, na figura, o menu interativo da página inicial do projeto.</p><p>Figura 33 – Home da matéria, com menu interativo</p><p>114</p><p>Unidade II</p><p>A reportagem ganhou o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos em 2015.</p><p>A questão da narrativa transmídia será mais detalhada adiante.</p><p>6 STORYTELLING COMO ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO NO MARKETING</p><p>6.1 Marcas e seus significados</p><p>Não tenho tempo a perder</p><p>Só quero saber do que pode dar certo.</p><p>(BRITTO; NETO, 1984)</p><p>Como vimos, a contação de história acompanha o ser humano desde sua origem com as mais</p><p>diversas funções. Recentemente, a técnica de envolver as pessoas por meio de narrativas ganhou status</p><p>de eficiente ferramenta de marketing. Dessa forma, tornou-se uma prática valorizada pelas empresas.</p><p>Segundo Adilson Xavier (2015, p. 15), o</p><p>clique deflagrador da revitalização do storytelling acontece no momento</p><p>em que o mundo digital se estabelece definitivamente entre nós, trazendo</p><p>novas conexões, novas oportunidades de expressão, novos poderes, novas</p><p>incertezas: uma realidade em que todos se tornam geradores de conteúdo e</p><p>unidades de mídia ao mesmo tempo.</p><p>O excesso de informações e de opções de consumo veio, paradoxalmente, acompanhado da falta da</p><p>capacidade de concentração e do tempo disponível.</p><p>Segundo Hebert Simon (apud PALACIOS; TERENZZO, 2016, p. 7),</p><p>em um mundo rico de informações, a riqueza de informações significa a</p><p>escassez de algo mais: a escassez do que quer que seja que a informação</p><p>consome. O que ela consome é bem óbvio: a atenção de seus recipientes.</p><p>Assim, uma riqueza de informação cria uma pobreza de atenção e a</p><p>necessidade de alocar a atenção eficientemente entre uma superabundância</p><p>de fontes de informação que podem consumi-la.</p><p>Dessa forma, a necessidade de despertar a atenção tornou-se um grande desafio para os profissionais</p><p>de comunicação.</p><p>115</p><p>STORYTELLING</p><p>Saiba mais</p><p>Thomas Davenport e Michael Goldhaber popularizaram, com seu</p><p>livro lançado em 2001, o conceito de “economia da atenção”. Trata-se da</p><p>constatação de que a atenção das pessoas é finita e de que o tempo é um</p><p>recurso escasso. Atenção e tempo são disputados por mídias e marcas.</p><p>DAVENPORT, T.; BECK, J. The attention economy: understanding the new</p><p>currency of business. Cambridge, MA: Harvard Business School Press, 2001.</p><p>Assim, as narrativas são essenciais, no atual contexto, para despertar a atenção do público. Além</p><p>disso, as histórias têm papel importante na formação e na consolidação da cultura organizacional, entre</p><p>os colaboradores da marca.</p><p>A figura a seguir estabelece um paralelo entre a necessidade das narrativas primitivas e a necessidade</p><p>das narrativas do meio corporativo atualmente.</p><p>Figura 34 – Benefícios da contação de histórias</p><p>Lembrete</p><p>No atual cenário competitivo e saturado de informações, as empresas</p><p>buscam formas de conquistar a atenção do consumidor.</p><p>116</p><p>Unidade II</p><p>Outro elemento em crise na atualidade é a afetividade, e ela é reavivada quando temos uma boa</p><p>narrativa. As pessoas prestam atenção em uma estória porque se envolvem com ela. Quantas vezes você</p><p>relutou em largar um livro no meio ou parar de ver um filme e uma série antes do fim? Dessa forma, uma</p><p>boa estória/história, bem contada, mexe com nossos sentimentos, ou, em outros termos, ela nos afeta.</p><p>Além disso, as narrativas trabalham com figuras, ou seja, com elementos concretos, que são, em</p><p>geral, mais bem absorvidos pelas pessoas. Por isso, conseguem transmitir valores mais facilmente.</p><p>Pense em uma fábula, por exemplo, “A raposa e as uvas”. A moral da estória é a lição de que “quem</p><p>não consegue o que deseja desdenha”. Parece abstrato, não? Com os elementos concretos da estória, no</p><p>entanto, a apreensão da ideia é mais fácil. Comprove isso com a leitura da fábula.</p><p>A raposa e as uvas</p><p>Chegando uma raposa a uma parreira, viu-a carregada de uvas maduras e formosas e</p><p>cobiçou-as. Começou a fazer tentativas para subir; porém, como as uvas estavam altas e a</p><p>subida era íngreme, por</p><p>muito que tentasse não as conseguiu alcançar. Então disse:</p><p>— Estas uvas estão muito azedas, e podem manchar-me os dentes; não quero colhê-las</p><p>verdes, pois não gosto delas assim.</p><p>E, dito isto, foi-se embora.</p><p>Fonte: Esopo apud Fuks (s.d.).</p><p>Com as figuras (elementos concretos), entendemos que a raposa só passa a falar mal das uvas</p><p>porque não consegue pegá-las. Assim, a ideia de que a frustração pode nos levar a desvalorizar o objeto</p><p>de desejo fica clara.</p><p>Lembrete</p><p>Conceitos, abstratos por natureza, quando materializados em figuras</p><p>(elementos concretos), são mais facilmente compreendidos.</p><p>Dessa forma, por meio de narrativas, consolidamos valores e crenças e somos capazes de persuadir.</p><p>Nas palavras de Adilson Xavier (2015, p. 20):</p><p>histórias dão sentido à vida. Sustentam nossos valores básicos, as religiões,</p><p>a ética, os costumes, as leis, os múltiplos aspectos culturais que nos cercam.</p><p>Histórias nos dão segurança, estabilidade grupal, erguem celebridades,</p><p>empresas e nações.</p><p>117</p><p>STORYTELLING</p><p>Por isso, muitas marcas têm decidido construir ou fortalecer sua imagem com a narrativa de sua história.</p><p>É comum, nesses casos, enaltecer o caráter batalhador do fundador, a sua capacidade de superação, a</p><p>sua ética, o seu esforço. Com isso, procura-se estabelecer um vínculo entre o consumidor e a marca.</p><p>Lembrete</p><p>Edgar Allan Poe recomendava a quem fosse iniciar o processo de</p><p>escrever estórias pensar em qual efeito se pretendia criar no leitor.</p><p>Imaginemos, então, a seguinte história: um empreendedor investe o que economizou com anos de</p><p>trabalho para abrir uma lanchonete de comidas árabes na Saúde, bairro de São Paulo. Mal ele inaugura,</p><p>com sucesso, o estabelecimento, aparece uma pandemia que faz com que as pessoas fiquem isoladas e</p><p>sua lanchonete seja fechada. Um amigo sugere uma parceria para que eles passem a entregar os produtos</p><p>em domicílios. Quando tudo indicava que os negócios iriam melhorar, o amigo avisa que deve voltar</p><p>para sua cidade natal, pois a mãe está doente. Sozinho, nosso protagonista entrega o estabelecimento,</p><p>mas continua, com sua esposa, a produzir os quitutes e passa a vendê-los em uma van que percorre</p><p>as ruas do bairro. A vizinhança aprova a qualidade dos produtos, e o empreendimento dá certo. Nosso</p><p>personagem agora já tem mais três veículos em circulação pela cidade, com funcionários trabalhando</p><p>para ele, e sua marca já é reconhecida pelos consumidores.</p><p>Você notou que a estrutura da história lembra o esquema tradicional de um conto? Temos uma</p><p>situação inicial estável, então algo acontece que quebra a estabilidade; por fim, ocorre a superação</p><p>dos obstáculos. No meio da narrativa, aparece a figura do “doador”, que ajuda o herói, mas essa ajuda</p><p>depois é retirada e ele deve enfrentar sozinho o problema. No caso, o “agressor” não é uma pessoa, mas</p><p>a conjuntura provocada pela pandemia.</p><p>Lembrete</p><p>Recorde a estrutura dos contos de fadas proposta por Vladimir Propp.</p><p>Isso significa que um bom storyteller deve conhecer muitas estórias, ler muitos contos e romances,</p><p>assistir a muitos filmes e peças teatrais. Esse repertório lhe permite desenvolver a arte de contar bem</p><p>uma história.</p><p>Observação</p><p>Rafael Rez (2017) expõe seis elementos que constituem uma</p><p>boa storytelling:</p><p>1) Quem (o protagonista).</p><p>118</p><p>Unidade II</p><p>2) Onde (o cenário da estória).</p><p>3) Acontecimento emocional.</p><p>4) Acontecimento improvável.</p><p>5) Conflito.</p><p>6) Desfecho.</p><p>O autor estabelece, como exemplo, um paralelo entre a estrutura de um</p><p>conto de fadas e a história de um empresário bem-sucedido.</p><p>Voltemos ao nosso empreendedor do exemplo anterior. Caso sua marca resolvesse usar sua história</p><p>de superação como ferramenta de marketing, poderia haver bons resultados, pois as pessoas tendem a</p><p>criar empatia com a personagem batalhadora e bem-sucedida.</p><p>No entanto, e se a história fosse falsa? E se, na verdade, o empreendedor construiu a marca com a</p><p>herança de família e nunca, de fato, tenha se empenhado na administração do estabelecimento? A farsa</p><p>seria descoberta e isso teria impacto na marca.</p><p>Esse impacto ocorre porque, no caso de histórias de marcas, a verdade é um elemento importante.</p><p>O público espera que aquilo que é narrado sobre a trajetória das empresas tenha correspondência no</p><p>real. Essa expectativa só não ocorre quando a marca deixa claro ao público que a história é ficcional.</p><p>Lembrete</p><p>Plausibilidade e verossimilhança são conceitos distintos. A história da</p><p>marca, além de verossímil, deve ser plausível e verdadeira.</p><p>A marca de sorvetes Diletto, por exemplo, enfrentou problemas devido à promoção de imagem com</p><p>base em uma história falsa. A empresa divulgou que sua origem remontava ao ano de 1922, quando</p><p>um senhor italiano, Vittorio Scabin, que tinha paixão por sorvetes, criou uma receita à base de frutas</p><p>frescas e neve. Isso teria ocorrido na região de Vêneto. Com a Segunda Guerra Mundial, sua família teria</p><p>migrado para o Brasil e abandonado o ramo. Então, dez anos após a morte de Vittorio, seus netos teriam</p><p>resolvido reinaugurar aqui a marca Diletto, com o mesmo slogan do avô: “la felicitá é um gelato”.</p><p>No entanto, em 2014, uma repórter investigou a história, conversando até com moradores da cidade</p><p>italiana. Ela descobriu que o senhor Vittorio nem sequer havia existido. O avô do fundador da empresa</p><p>era, de fato, da Itália, mas nunca fabricou sorvetes.</p><p>119</p><p>STORYTELLING</p><p>Observação</p><p>Repare no importante papel do jornalismo em checar histórias.</p><p>A credibilidade da profissão depende da apuração correta das informações.</p><p>Foi feita uma denúncia ao Conar, que recomendou a alteração da comunicação, com a sinalização</p><p>de que se tratava de uma história ficcional. A empresa resolveu retirar o nonno do logo da empresa e</p><p>substituiu-o pelo urso polar.</p><p>Saiba mais</p><p>Para saber mais sobre o case, leia a monografia:</p><p>KASTELIC, P. H. F. Era uma vez uma marca: storytelling e ficção na</p><p>construção identitária da Diletto. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso</p><p>(Bacharelado em Comunicação Social) – Escola Superior de Propaganda e</p><p>Marketing (ESPM), São Paulo, 2013.</p><p>Outro caso de marca que teve problemas com dados falsos foi a Hollister. Ela havia divulgado que</p><p>sua fundação se dera em 1922, mas Dave Eaggers, no The New Yorker, desmentiu a empresa, afirmando</p><p>que sua origem era bem mais recente: no ano 2000. Não se trata de apenas uma questão de datas, mas,</p><p>sim, de tradição e credibilidade.</p><p>As empresas não precisam somente se voltar aos seus históricos, podem, também, optar por</p><p>contar histórias de consumidores com seus produtos ou, ainda, inventar estórias que construam o</p><p>significado desejado.</p><p>Em qualquer caso, é importante que as imagens criadas nas narrativas correspondam às ações</p><p>da empresa. Não é possível, por exemplo, que uma marca construa uma história de responsabilidade</p><p>socioambiental e, na realidade, danifique o meio ambiente ou não respeite os direitos humanos. Essa</p><p>incoerência fatalmente será percebida pelo público.</p><p>Nas palavras de Palacios e Terenzzo (2016, p. 33):</p><p>a ética do storytelling está intimamente ligada à ética do autor e narrador.</p><p>Mas uma coisa é certa: o próprio storytelling pune. Empresas que queiram</p><p>forjar e esconder informações ou mentir devem saber que correm grande</p><p>risco de reputação. Quanto mais generalizar ou esconder, menos autêntico</p><p>vai ser e mais vulnerável vai ficar.</p><p>120</p><p>Unidade II</p><p>Observação</p><p>Nas palavras de Palacios e Terenzzo (2016, p. 62), “storytelling significa</p><p>ter a habilidade de encontrar ou criar histórias fortes, com propósito</p><p>estratégico, narradas com excelência”.</p><p>6.2 Marcas e arquétipos</p><p>Esperamos que tenha ficado claro que as marcas carregam consigo, além das características de seus</p><p>produtos, significados. O consumidor é permeado de ideias e impressões sobre os produtos e suas marcas.</p><p>McDonald’s, por exemplo, é uma marca que representa a cultura norte-americana. Em muitos casos, a</p><p>presença de uma loja sua em uma região é tomada como símbolo da influência dos Estados Unidos.</p><p>A carga simbólica de uma marca, portanto,</p><p>atua no imaginário dos consumidores e influencia</p><p>nas decisões de compra. Por isso, o significado construído pode ser entendido como parte do ativo</p><p>de uma marca.</p><p>Lembrete</p><p>Quando se vende um produto, não se comercializam apenas seus</p><p>atributos, mas também os benefícios que eles carregam. Ao comprar um</p><p>iPhone, por exemplo, a pessoa adquire não só um aparelho que lhe permite</p><p>falar com outras pessoas e acessar a internet, mas também o status e a</p><p>modernidade que a marca representa.</p><p>Assim, a imagem que a marca constrói é de extrema importância para os negócios da empresa.</p><p>Margaret Mark e Carol Pearson, na obra O Herói e o Fora da lei, abordam como as marcas se valem</p><p>do poder dos arquétipos na sua construção. As autoras identificam 12 arquétipos a que geralmente as</p><p>marcas se associam e os relacionam com as motivações dos consumidores. São eles:</p><p>• Criador;</p><p>• Prestativo;</p><p>• Governante;</p><p>• Bobo da corte;</p><p>• Cara comum;</p><p>121</p><p>STORYTELLING</p><p>• Amante;</p><p>• Herói;</p><p>• Fora da lei;</p><p>• Mago;</p><p>• Inocente;</p><p>• Explorador;</p><p>• Sábio.</p><p>Mas o que seriam os arquétipos? Carl Jung, que em seus estudos trabalhou bastante essa questão,</p><p>define-os como “formas ou imagens de natureza coletiva, que ocorrem em praticamente toda a Terra</p><p>como componentes de mitos e, ao mesmo tempo, como produtos individuais de origem inconsciente”</p><p>(apud MARK; PEARSON, 2019, p. 18).</p><p>Jung observou que as fantasias humanas seguem padrões narrativos bem conhecidos porque</p><p>compartilhamos uma herança psíquica que subverte as diferenças de tempo, espaço e cultura. Os</p><p>arquétipos remetem, dessa forma, a modelos universais e atemporais.</p><p>Segundo Joseph Campbell (apud MARK; PEARSON, 2019, p. 18):</p><p>Jung tomou emprestado o conceito de arquétipos das fontes clássicas,</p><p>incluindo Cícero, Plínio e Santo Agostinho. Adolf Bastian lhes deu o nome de</p><p>“ideias elementares”. Na Austrália, eram denominados “os Eternos do Sonho”.</p><p>Para Campbell, mitos e arquétipos são expressões do eterno impulso humano de encontrar um</p><p>significado para a criação.</p><p>Há, portanto, figuras que permeiam o imaginário (ou o inconsciente) coletivo e que se manifestam</p><p>nas narrativas.</p><p>Repare, por exemplo, na imagem arquetípica presente em Cinderela. Temos a ideia do amor ideal,</p><p>entre a moça pobre e o príncipe, que, até hoje, sustenta tantas outras estórias em filmes e romances,</p><p>apesar das mudanças culturais e ideológicas.</p><p>Segundo Mark e Pearson (2019), algumas marcas, sabidamente, procuram se associar a uma dessas</p><p>figuras. Para elas, alcançar o significado arquetípico é um pré-requisito para a eficácia do marketing.</p><p>As autoras apresentam, no quadro a seguir, uma lista dos arquétipos, com as respectivas funções</p><p>na vida das pessoas e com exemplos de marcas que associam sua imagem a eles. Segundo elas, “os</p><p>122</p><p>Unidade II</p><p>arquétipos proporcionam o elo perdido entre a motivação do cliente e as vendas dos produtos” (MARK;</p><p>PEARSON, 2019, p. 27).</p><p>Quadro 1 – Os arquétipos e suas funções básicas na vida das pessoas</p><p>Arquétipo Ajuda as pessoas a Exemplo de marcas</p><p>Criador Criar algo novo Williams-Sonoma</p><p>Prestativo Ajudar os outros AT&T (Ma Bell)</p><p>Governante Exercer o controle American Express</p><p>Bobo da corte Se divertirem Miller Lite</p><p>Cara comum Estarem bem assim como são Wendy’s</p><p>Amante Encontrar e dar amor Hallmark</p><p>Herói Agir corajosamente Nike</p><p>Fora da lei Quebrar as regras Harley-Davidson</p><p>Mago Influir na transformação Calgon</p><p>Inocente Manter ou renovar a fé Ivory</p><p>Explorador Manter a independência Levi’s</p><p>Sábio Compreender o mundo em que vivem Oprah’s Book Club</p><p>Fonte: Mark; Pearson (2019, p. 27).</p><p>As imagens arquetípicas sugerem a realização de desejos humanos, dando vazão a emoções e a</p><p>anseios profundos. E, na sociedade pós-moderna, marcada pelo consumismo, pelo individualismo e pela</p><p>ausência de utopias, entre outras características, a mercadoria desempenha uma função mediadora</p><p>entre o indivíduo e sua satisfação.</p><p>E como essas imagens arquetípicas são trabalhadas? Por meio de narrativas. As narrativas criam</p><p>significados, e isso é fundamental para as pessoas.</p><p>Palacios e Terenzzo (2016, p. 256) destacam que vivemos em uma sociedade em que a funcionalidade</p><p>de um produto é um pré-requisito, ou seja, não se considera a possibilidade de que ele não funcione</p><p>e, nesse cenário, as decisões de compra são baseadas nas expectativas de que a compra promova</p><p>experiências positivas. Para Mark e Pearson (2019, p. 31), “os arquétipos fazem a intermediação entre</p><p>os produtos e a motivação do consumidor porque oferecem uma experiência intangível do significado”.</p><p>Lembrete</p><p>Lembre-se de que, quando mencionamos os mitos, falamos de ideias</p><p>comuns a diferentes povos em diferentes épocas. Mudam-se os elementos</p><p>concretos dos mitos, mas permanecem as ideias subjacentes. Os arquétipos</p><p>estão presentes nas narrativas míticas.</p><p>123</p><p>STORYTELLING</p><p>O esquema a seguir posiciona, em eixos ortogonais, os principais impulsos humanos. Todos nós</p><p>tendemos a um ou a outro ponto conforme o momento de nossas vidas. Em algumas fases, queremos</p><p>ter mais independência, não desejamos nos encaixar em nenhum grupo. Em outras palavras, aspiramos</p><p>nos sentir integrados, valorizamos o sentimento de pertencimento.</p><p>Mestria</p><p>Estabilidade</p><p>IndependênciaPertença</p><p>Figura 35 – Eixos da teoria motivacional</p><p>O quadro a seguir mostra a divisão em grupos dos doze arquétipos muito explorados pelas marcas</p><p>de acordo com os impulsos humanos, descrevendo, também, os medos e os anseios com os quais</p><p>eles trabalham.</p><p>Quadro 2 – Relação entre os arquétipos e a motivação do consumidor</p><p>Motivação Estabilidade &</p><p>controle</p><p>Pertença &</p><p>prazer</p><p>Risco &</p><p>mestria</p><p>Independência &</p><p>satisfação</p><p>Criador Bobo da corte Herói Inocente</p><p>Prestativo Cara comum Fora da lei Explorador</p><p>Governante Amante Mago Sábio</p><p>Medo do</p><p>consumidor</p><p>Ruína financeira,</p><p>doença, caos</p><p>incontrolável</p><p>Exílio, orfandade,</p><p>abandono, ser</p><p>esmagado</p><p>Ineficácia,</p><p>impotência,</p><p>desamparo</p><p>Cair na armadilha,</p><p>ser traído, vazio</p><p>Ajuda o</p><p>consumidor a: Sentir-se seguro Ter amor/</p><p>comunidade Realizar-se Encontrar a</p><p>felicidade</p><p>Fonte: Mark; Pearson (2019, p. 31).</p><p>Observe que as figuras do Criador, do Prestativo e do Governante atraem as pessoas que valorizam</p><p>a estabilidade e desejam se sentir seguras. Embora as figuras apresentem características diferentes</p><p>(criar algo novo, ajudar as pessoas e exercer o controle, respectivamente), elas encontram-se sob o</p><p>mesmo impulso.</p><p>No segundo grupo, temos as figuras do Bobo da corte, do Cara comum e do Amante, que têm</p><p>em comum a valorização do sentimento de pertença, de ser bem aceito. Os tradicionais comerciais</p><p>de marcas de cerveja costumam trabalhar esses arquétipos, apresentando a bebida como forma de se</p><p>pertencer a um grupo e de se divertir.</p><p>O Herói, o Fora da lei e o Mago, por sua vez, valorizam a mestria, a capacidade de arriscar-se a algo</p><p>excepcional.</p><p>124</p><p>Unidade II</p><p>Por fim, o Inocente, o Explorador e o Sábio estão relacionados à independência, à autonomia.</p><p>As marcas, de acordo com seus produtos e seu público-alvo, procuram associar-se preferencialmente</p><p>a um arquétipo.</p><p>Segundo Margaret Mark e Carol Pearson (2019), parte da responsabilidade de a marca Levi’s ter</p><p>perdido prestígio e participação no mercado deve-se ao fato de que ela não se manteve fiel a um</p><p>arquétipo. Antes, associava-se ao Explorador, depois passou para o Cara comum e, na sequência, mudou</p><p>para o Bobo da corte. Formou uma colcha de retalhos arquetípica, o que comprometeu sua imagem.</p><p>As autoras também citam a postura da Nike, que durante muito tempo adotou a figura do Herói e</p><p>tornou-se estereotipada e insegura naquele papel. Demonstrou publicamente</p><p>sua perda de autoconfiança, trocando de agências de publicidade e gerentes</p><p>de produto – quando a verdadeira solução estava em aproveitar com</p><p>mais profundidade e segurança a Jornada do Herói, inesgotável fonte de</p><p>inspiração para o arquétipo do Herói (MARK; PEARSON, 2019, p. 24).</p><p>No caso da Nike, devemos também lembrar as várias denúncias, que circularam na imprensa e nas</p><p>redes sociais,</p><p>sobre a exploração de mão de obra na fabricação de seus produtos. Em um contexto</p><p>de rápida profusão de informações e de uma formação ideológica que preza as atitudes éticas de</p><p>responsabilidade socioambiental, tais acusações tiveram impacto na marca.</p><p>Mark e Pearson (2019) citam a ação da Coca-Cola como um exemplar caso do arquétipo do Inocente,</p><p>com a promessa do paraíso. A felicidade tem sido tema frequente nas campanhas da marca, ainda</p><p>que com variações nas figuras que a cobrem.</p><p>Há alguns anos, uma campanha veiculada no país apresentava um comercial em que o personagem,</p><p>um menino, orgulhava-se de seu pai, motorista da empresa, que levava alegria aos consumidores,</p><p>envasada nas garrafas do refrigerante. Um erro, porém, na frase final da peça prejudicou a mensagem,</p><p>pois dizia: “Meu pai é motorista da Coca-Cola, mas também leva alegria a muita gente”. O uso da</p><p>conjunção adversativa (“mas”) deu sentido negativo à profissão do pai e, consequentemente, à marca.</p><p>O erro foi posteriormente corrigido.</p><p>Saiba mais</p><p>Para se aprofundar nos arquétipos propostos por Margaret Mark e Carol</p><p>Pearson, leia:</p><p>MARK, M.; PEARSON, C. O Herói e o Fora da lei: como construir marcas</p><p>extraordinárias usando o poder dos arquétipos. São Paulo: Cultrix, 2019.</p><p>125</p><p>STORYTELLING</p><p>Resumo</p><p>Nesta unidade, iniciamos a apresentação do storytelling como</p><p>ferramenta de comunicação.</p><p>Expusemos que, apesar de a narrativa ser a essência do jornalismo, a</p><p>padronização do relato jornalístico segundo os moldes norte-americanos</p><p>de produção da notícia retirou da profissão a capacidade de construir</p><p>histórias envolventes. Por isso, o storytelling tem se mostrado uma técnica</p><p>capaz de quebrar o tom monocórdico e burocrático dos textos formatados</p><p>pelos manuais de redação.</p><p>Além disso, a construção de narrativas sobre a história das marcas ou</p><p>sobre experiências de consumidores tem se mostrado eficiente instrumento</p><p>na consolidação da imagem das marcas.</p><p>Vimos, também, que as marcas utilizam arquétipos na construção</p><p>de sua imagem. Apresentamos, em linhas gerais, o estudo de Mark e</p><p>Pearson, segundo o qual há 12 arquétipos – divididos em quatro grupos</p><p>de acordo com o impulso humano predominante – os mais comumente</p><p>explorados pelas empresas.</p><p>Exercícios</p><p>Questão 1. Leia o texto a seguir.</p><p>Pacientes são presenteados com concerto dentro de hospital</p><p>JAIRO MARQUES</p><p>DE SÃO PAULO – 18/12/2013</p><p>Quando os acordes de “Como é Grande o meu Amor por Você”, de Roberto Carlos, começaram</p><p>a tomar conta de um dos quartos da enfermaria da Santa Casa de São Paulo, na manhã de ontem</p><p>(17), as pacientes Janete Aparecida dos Santos, 60, e Rosa Vanzo, 67, deixaram as dores de lado e se</p><p>emocionaram às lágrimas.</p><p>E não foram apenas as duas que puderam receber “flores” representadas por obras de Vivaldi ou de</p><p>Mozart, como diz o maestro e médico Samir Wady Rahme, que comandou o concerto.</p><p>Durante toda a manhã de ontem, em comemoração aos dez anos do projeto “Música nos Hospitais”,</p><p>internos, visitantes e funcionários foram presenteados com obras clássicas entoadas no local por 14</p><p>instrumentistas.</p><p>126</p><p>Unidade II</p><p>“Entrei na igreja para me casar ao som dessa música. Que momento mais lindo”, diz Janete enquanto</p><p>ouve “Jesus, Alegria dos Homens”, de Johann Sebastian Bach.</p><p>Internada desde o começo do mês para combater uma hepatite, ela tirou várias vezes a máscara de</p><p>respiração durante a apresentação para vibrar e sorrir.</p><p>Alma</p><p>“Música tem um poder enorme de agir positivamente nas pessoas. Grandes mestres trabalharam</p><p>muitos anos para adquirir uma fórmula em suas composições que transmitisse valores universais e uma</p><p>força de pensamento. A música é linguagem da alma”, afirma Rahme.</p><p>A iniciativa, que é bancada pelo Ministério da Cultura, pela Associação Paulista de Medicina e pela</p><p>multinacional farmacêutica Sanofi, já percorreu 53 hospitais em 19 cidades do país.</p><p>“Estamos lisonjeados em receber esse concerto aqui na Santa Casa. O som leva alegria e tranquilidade</p><p>para todos os que estão no ambiente”, declarou o médico Raimundo Rafaeli Filho, diretor clínico da</p><p>instituição.</p><p>Em tratamento contra um câncer no pulmão, dona Rosa recebeu a notícia de que teria alta</p><p>médica e iria para casa, depois de mais de um mês de internação, no mesmo momento em que</p><p>acompanhava o concerto.</p><p>“Que dia maravilhoso, meu Deus, que momento gostoso estou vivendo agora.”</p><p>A apresentação ainda deu direito aos presentes se encantarem também com “Fascinação”, eternizada</p><p>na voz de Elis Regina, “Smile”, de Charlie Chaplin, “Sampa”, de Caetano Veloso, e “Trem das Onze”, de</p><p>Adorinan Barbosa.</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3ciKnyW. Acesso em: 18 jan. 2021.</p><p>Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas.</p><p>I – O início do texto serve como um “anzol” para fisgar o leitor, pois já esgota o fato em si mesmo ao</p><p>apresentar os seis elementos básicos do lead.</p><p>II – O texto esclarece, para o leitor, o que é o projeto “Música nos Hospitais” no primeiro parágrafo,</p><p>valendo-se do formato da pirâmide invertida.</p><p>III – O texto utiliza a técnica do storytelling, pois apresenta uma cena inicial fictícia, sem</p><p>referencialidade.</p><p>127</p><p>STORYTELLING</p><p>Assinale a alternativa correta.</p><p>A) Nenhuma afirmativa é correta.</p><p>B) Somente a afirmativa I é correta.</p><p>C) Somente a afirmativa III é correta.</p><p>D) Somente as afirmativas I e II são corretas.</p><p>E) Somente as afirmativas II e III são corretas.</p><p>Resposta correta: alternativa A.</p><p>Análise da questão</p><p>O texto vale-se do storytelling, mas o discurso jornalístico não pode ser ficcional. Ele apoia-se na</p><p>referencialidade dos acontecimentos. O texto não segue o padrão da notícia, em que temos lead e</p><p>formato de pirâmide invertida. O leitor, só com o primeiro parágrafo, não tem as informações básicas</p><p>sobre o que aconteceu. A estrutura textual apresenta as fases apontadas por Ana Estela Pinto para uma</p><p>narrativa jornalística mais envolvente.</p><p>Questão 2. Leia o texto a seguir.</p><p>A cada 6 horas, uma pessoa morrerá de melanoma na Austrália. Como esse dado virou um dos</p><p>exemplos de storytelling no marketing?</p><p>Essa percepção estimulou a missão da empresa global de tecnologia IBM a usar a inteligência</p><p>artificial para “superar o melanoma” e defender a detecção precoce do câncer mais letal.</p><p>O Watson, a IA de ponta da empresa, pode detectar melanoma com 31% mais precisão do que o olho</p><p>nu – algo que pode fazer toda a diferença para a sobrevivência.</p><p>Lançado em Bondi Beach durante a alta temporada, os australianos todos os dias ficaram diante</p><p>de um espelho e foram analisados pela Watson, que determinou e examinou elementos diversos, como</p><p>idade, sexo e cobertura de proteção solar.</p><p>Se quaisquer riscos ou irregularidades fossem detectados, o participante iria direto para um</p><p>especialista no local para tratamento adicional.</p><p>Durante um único fim de semana, mais de 800 pessoas foram ajudadas, com 22% sendo encaminhadas</p><p>para uma consulta de acompanhamento.</p><p>128</p><p>Unidade II</p><p>Com o Watson, a IBM conseguiu se mostrar não apenas como uma marca de tecnologia de primeira</p><p>linha, mas também como uma empresa que se preocupa ativamente com a saúde de seus consumidores.</p><p>HAYFAZ, A. Exemplos de storytelling geniais de marcas que você precisa conhecer.</p><p>Vooozer, [s.d.]. Disponível em: http://bit.ly/38sGoyC. Acesso em: 29 jan. 2021 (adaptada).</p><p>Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas e a relação proposta entre elas.</p><p>I – No caso relatado, a empresa valeu-se do arquétipo do Prestativo, que trabalha com as necessidades</p><p>humanas de estabilidade e controle.</p><p>PORQUE</p><p>II – As empresas têm utilizado a técnica do storytelling para chamar a atenção dos consumidores e</p><p>construir sua imagem.</p><p>Assinale a alternativa correta.</p><p>A) As afirmativas I e II são proposições verdadeiras, e a II justifica a I.</p><p>B) As afirmativas I e II são proposições verdadeiras, e a II não justifica a I.</p><p>C) A afirmativa I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa.</p><p>D) A afirmativa I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira.</p><p>E)</p><p>As afirmativas I e II são proposições falsas.</p><p>Resposta correta: alternativa B.</p><p>Análise das afirmativas</p><p>I – Afirmativa correta.</p><p>Justificativa: a IBM mostrou-se uma empresa preocupada com a saúde das pessoas, o que se</p><p>relaciona com o arquétipo do Prestativo. Esse arquétipo liga-se ao desejo que as pessoas têm por</p><p>estabilidade e controle.</p><p>II – Afirmativa correta.</p><p>Justificativa: o storytelling tem sido uma importante ferramenta para a construção das imagens</p><p>das marcas.</p><p>As duas afirmativas não têm entre si uma relação de causa e consequência.</p><p>129</p><p>STORYTELLING</p><p>Unidade III</p><p>7 STORYTELLING E OS TEXTOS PUBLICITÁRIOS</p><p>Leia a crônica a seguir de Luis Fernando Verissimo.</p><p>O estranho procedimento de dona Dolores</p><p>Começou na mesa do almoço. A família estava comendo – pai, mãe, filho e filha – e de</p><p>repente a mãe olhou para o lado, sorriu e disse:</p><p>— Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais</p><p>e é mais gostoso.</p><p>O pai virou-se rapidamente na cadeira para ver com quem a mulher estava falando. Não</p><p>havia ninguém.</p><p>— O que é isso, Dolores?</p><p>— Tá doida, mãe?</p><p>Mas dona Dolores parecia não ouvir. Continuava sorrindo. Dali a pouco levantou-se da</p><p>mesa e dirigiu-se para a cozinha. Pai e filhos se entreolharam.</p><p>— Acho que a mamãe pirou de vez.</p><p>— Brincadeira dela...</p><p>A mãe voltou da cozinha carregando uma bandeja com cinco taças de gelatina.</p><p>— Adivinhem o que tem de sobremesa?</p><p>Ninguém respondeu. Estavam constrangidos por aquele tom jovial de dona Dolores, que</p><p>nunca fora assim.</p><p>— Acertaram! — exclamou dona Dolores, colocando a bandeja sobre a mesa. – Gelatina</p><p>Quero Mais, uma festa em sua boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga.</p><p>O pai e os filhos começaram a comer a gelatina, um pouco assustados.</p><p>130</p><p>Unidade III</p><p>Sentada à mesa, dona Dolores olhou de novo para o lado e disse:</p><p>— Bote esta alegria na sua mesa todos os dias. Gelatina Quero Mais. Dá gosto comer!</p><p>Mais tarde o marido de dona Dolores entrou na cozinha e a encontrou segurando uma</p><p>lata de óleo à altura do rosto e falando para uma parede.</p><p>— A saúde da minha família em primeiro lugar. Por isso, aqui em casa só uso o puro</p><p>óleo Paladar.</p><p>— Dolores...</p><p>Sem olhar para o marido, dona Dolores o indicou com a cabeça.</p><p>— Eles vão gostar.</p><p>O marido achou melhor não dizer nada. Talvez fosse caso de chamar um médico. Abriu</p><p>a geladeira atrás de uma cerveja. Sentiu que dona Dolores se colocava atrás dele. Ela</p><p>continuava falando para a parede.</p><p>— Todos encontram tudo o que querem na nossa Gelatec Espacial, agora com prateleiras</p><p>superdimensionadas, gavetas em Vidro-Glass e muito, mas muito mais espaço. Nova Gelatec</p><p>Espacial, a cabe-tudo.</p><p>— Pare com isso, Dolores.</p><p>Mas dona Dolores não ouvia.</p><p>Pai e filhos fizeram uma reunião secreta, aproveitando que dona Dolores estava na frente</p><p>da casa, mostrando para uma plateia invisível as vantagens de uma nova tinta de paredes.</p><p>— Ela está nervosa, é isso.</p><p>— Claro. É uma fase. Passa logo.</p><p>— É melhor nem chamar a atenção dela.</p><p>— Isso. É nervos.</p><p>Mas dona Dolores não parecia nervosa. Ao contrário, andava muito calma. Não parava</p><p>de sorrir para o seu público imaginário. E não podia passar por um membro da família sem</p><p>virar-se para o lado e fazer um comentário afetuoso:</p><p>— Todos andam muito mais alegres desde que eu comecei a usar Limpol nos ralos.</p><p>131</p><p>STORYTELLING</p><p>Apesar do seu ar ausente, dona Dolores não deixava de conversar com o marido e</p><p>com os filhos:</p><p>— Vocês sabiam que o laxante Vida Mansa agora tem dois ingredientes</p><p>recém-desenvolvidos pela ciência que o tornam duas vezes mais eficiente?</p><p>— O quê?</p><p>— Sim, os fabricantes de Vida Mansa não descansam para que você possa descansar.</p><p>— Dolores...</p><p>Naquela noite o filho levou um susto. Estava escovando os dentes quando a mãe entrou</p><p>de surpresa no banheiro, pegou a sua pasta de dentes e começou a falar para o espelho.</p><p>— Ele tinha horror de escovar os dentes até que eu segui o conselho do dentista, que</p><p>disse a palavra mágica: Zaz. Agora escovar os dentes é um prazer, não é, Jorginho?</p><p>— Mãe, eu...</p><p>— Diga você também a palavra mágica. Zaz! O único com HXO.</p><p>O marido de dona Dolores acompanhava, apreensivo, da cama, o comportamento da</p><p>mulher. Dona Dolores caminhou, languidamente, para a câmara, deixando cair seu robe</p><p>de chambre no caminho. Enfiou-se entre os lençóis e beijou o marido na boca. Depois,</p><p>apoiando-se num cotovelo, dirigiu-se outra vez para a câmara.</p><p>— Ele não sabe, mas estes lençóis são da nova linha Passional da Santex. Bons lençóis</p><p>para maus pensamentos. Passional da Santex. Agora tudo pode acontecer...</p><p>Dona Dolores abraçou o marido. Que olhou para todos os lados antes de abraçá-la</p><p>também. No dia seguinte certamente levaria a mulher a um médico. Por enquanto, pretendia</p><p>aproveitar. Fazia tanto tempo. Apagou a luz, prudentemente, embora soubesse que não</p><p>havia nenhuma câmara por perto. Por via das dúvidas, por via das dúvidas.</p><p>Fonte: Verissimo (1994, p. 48-50).</p><p>No nosso dia a dia, na sociedade de consumo em que vivemos, somos constantemente submetidos</p><p>aos apelos dos textos publicitários. Eles estão presentes quando lemos um jornal ou uma revista,</p><p>assistimos a um programa na televisão, ouvimos rádio, abrimos uma página na internet, vamos ao</p><p>mercado ou andamos na rua. De forma bem-humorada, a crônica mostra isso. Reconhecemos, nas falas</p><p>de dona Dolores, as marcas desse discurso, que enaltece as qualidades de um produto e faz crer que a</p><p>vida é melhor com ele.</p><p>132</p><p>Unidade III</p><p>Observamos, na expressão da personagem, as frases afirmativas, o uso do testemunhal confirmando</p><p>as vantagens do produto e a linguagem direcionada a um receptor, ainda que “invisível”. O humor da</p><p>crônica consiste justamente no deslocamento desse discurso construído na publicidade para as situações</p><p>“reais” dos personagens. Percebemos que ele parece artificial, pois está fora do seu universo enunciado.</p><p>Nessa perspectiva, com esse deslocamento, compreendemos melhor como o discurso publicitário</p><p>atua no sentido de persuadir o consumidor. De fato, o alto grau persuasivo é uma das características</p><p>mais marcantes desse tipo de texto. Sua função é induzir o receptor a comprar um produto, um serviço</p><p>ou uma ideia. Para isso, o texto publicitário vale-se de recursos e estratégias.</p><p>Embora no dia a dia, os verbos “persuadir” e “convencer” sejam usados como sinônimos, há diferença</p><p>entre eles. Podemos dizer que “convencer” refere-se à atuação do enunciador no âmbito racional.</p><p>São apresentados argumentos que fazem com que o interlocutor aceite o ponto de vista do emissor.</p><p>“Persuadir”, por sua vez, indica a ação de fazer com que o outro aja da forma desejada, ainda que não</p><p>acredite, de fato, no que é dito.</p><p>Como diz Carrascoza (1999), um discurso que busca convencer dirige-se à razão do receptor, por</p><p>meio de raciocínio lógico e provas concretas, e o discurso que deseja persuadir pretende atingir a</p><p>vontade e o sentimento do interlocutor. O discurso publicitário mexe com os desejos e os sonhos das</p><p>pessoas, por isso se diz que ele é persuasivo. Mesmo que, por exemplo, racionalmente a pessoa saiba</p><p>que, com determinado shampoo não terá os cabelos tão bonitos quanto os da modelo no comercial, ela</p><p>é seduzida pelo desejo de beleza. Isso não significa que o texto publicitário não trabalhe, também, com</p><p>o convencimento, apresentando provas para levar o consumidor à compra.</p><p>Observação</p><p>Mark e Pearson (2019) destacam a importância do efeito placebo</p><p>no marketing. Observa-se que pessoas se sentem melhores, ou mais</p><p>importantes, ou mais felizes, ou mais bonitas, simplesmente por terem</p><p>adquirido o produto que lhes prometia esses benefícios.</p><p>As mensagens publicitárias são “impostas” ao público nas atividades mais corriqueiras. Essa é</p><p>outra das principais características desse tipo de texto e deve ser levada em consideração na hora de</p><p>produzi-lo. Não se trata de um texto procurado pelo leitor, diferentemente de outros, como os jornalísticos,</p><p>os literários e os didáticos, por exemplo. O texto publicitário</p><p>deve, antes de tudo, conquistar a atenção</p><p>do receptor.</p><p>É comum que as pessoas não detenham a leitura nos anúncios ou que se levantem do sofá durante</p><p>os comerciais. Atualmente, na internet, o consumidor conta com a possibilidade de “pular o anúncio”</p><p>para ver o vídeo que deseja. Assim, o desafio do texto publicitário é grande, pois há grandes chances</p><p>de ele nem sequer ser vislumbrado. Sua missão é, nos pouquíssimos segundos antes de o espectador</p><p>escapar, despertar o seu interesse.</p><p>133</p><p>STORYTELLING</p><p>Outra característica importante é a questão da extensão do texto. Na televisão e no rádio, o</p><p>publicitário tem poucos segundos para desenvolver sua estória. Na mídia impressa, há a limitação do</p><p>espaço da página. Dessa forma, o texto deve ser extremamente conciso, ou seja, a trama da narrativa</p><p>deve ser muito bem trabalhada.</p><p>Adilson Xavier (2015, p. 82) destaca que, de todos os storytellers, o publicitário é o que “mais</p><p>necessita de concisão para inserir a macronarrativa da marca em micro-historinhas de poucos segundos</p><p>e mínimas palavras”. Por isso, entre os criadores publicitários, encontram-se comumente “contistas e</p><p>roteiristas de curtas-metragens, gêneros narrativos mais apetitosos para os que convivem com a</p><p>permanente necessidade de sintetizar”.</p><p>Lembrete</p><p>Concisão refere-se à qualidade de um texto dizer o máximo com o</p><p>mínimo possível de palavras.</p><p>Na construção da persuasão, o publicitário deve optar por um modelo de texto: narrativo, descritivo,</p><p>argumentativo. Os textos narrativos tendem a envolver emocionalmente o receptor.</p><p>João Anzanello Carrascoza (2004) aponta a diferença entre os anúncios apolíneos e dionisíacos</p><p>com base na distinção entre as abordagens racionais e emocionais. As denominações referem-se, como</p><p>se percebe, aos deuses gregos Apolo e Dioniso, e são autoexplicativas. Apolo é tido como o deus do</p><p>equilíbrio, da luz. Dioniso, como o deus da embriaguez, das festas, das sensações.</p><p>Lembrete</p><p>Na unidade I, mencionamos brevemente o deus Dioniso, chamado de</p><p>Baco na mitologia romana.</p><p>Na variante apolínea do texto publicitário, o aconselhamento é direto e o discurso é lógico-formal.</p><p>Na variante dionisíaca, procura-se envolver o consumidor com uma estória. Trata-se de uma estratégia</p><p>que apela para o emocional, e a intenção de venda fica camuflada. Segundo Carrascoza (2004), as</p><p>narrativas dionisíacas apresentam, na verdade, duas estórias: uma que se desenvolve às claras, com</p><p>as ações dos personagens, e outra, apenas sugerida, que procura persuadir o receptor a comprar o</p><p>que se anuncia.</p><p>Assim, antes de a palavra storytelling firmar-se como ferramenta de destaque na comunicação</p><p>publicitária, Carrascoza já apontava, sob forte influência da literatura, a possibilidade de influenciar o</p><p>público contando estórias.</p><p>134</p><p>Unidade III</p><p>Um dos exemplos citados pelo autor é a campanha do Shopping Iguatemi, elaborada na década de</p><p>1990, que teve como tema ser o shopping o lugar onde a vida acontece. Para isso, foram criadas peças</p><p>que retratam cenas do cotidiano dos seus frequentadores, como se vê no anúncio a seguir.</p><p>Relógio do Shopping Iguatemi</p><p>Ele se perguntava por que nunca tinha tempo para ficar com o filho. Pai, como funciona</p><p>este relógio?... Tá vendo a água em cima daquela bola?... Ele ia explicando, e o garoto,</p><p>maravilhado com o relógio. Mas, para que serve o tempo, pai? Como é que as crianças</p><p>conseguem fazer esse tipo de pergunta? Tempo serve para medir as coisas que a gente</p><p>faz. A hora de acordar, de dormir. Daqui a pouco, por exemplo, eu tenho que te deixar na</p><p>casa da sua mãe. Ele esperava o tradicional por quê? Mas o garoto não fez a pergunta.</p><p>Devia estar se acostumando. Devia estar crescendo. Engraçado como as crianças crescem</p><p>rápido. Do telefone celular, ligou primeiro para a ex-mulher, depois para a empresa.</p><p>Comprou dois sorvetes e ficaram horas sentados, sem pressa, olhando o relógio d’água do</p><p>Shopping Iguatemi.</p><p>Shopping Iguatemi, onde a vida acontece.</p><p>Fonte: Carrascoza (2004, p. 32).</p><p>Repare que o publicitário coloca no ambiente do shopping (produto que se pretende vender) um</p><p>pai e um filho que tomam sorvete e mantêm seus laços. Percebemos que se trata de um casal recém-</p><p>separado e que a criança ainda se acostuma com a nova rotina. O pai é um executivo com bom poder</p><p>aquisitivo (o que condiz com o público-alvo do estabelecimento). Percebemos isso por indícios, como o</p><p>fato de ele ter um celular, o que naquela época era sinal de status.</p><p>O narrador em terceira pessoa é onisciente e reproduz as falas e os pensamentos dos personagens</p><p>em discurso direto, indireto e indireto livre. Com essa opção de foco narrativo, é possível revelar as</p><p>preocupações do pai em relação ao menino.</p><p>Segundo Carrascoza (2004, p. 33), para</p><p>tecer um texto publicitário dionisíaco, o redator deve manobrar minimamente</p><p>os elementos que alicerçam o universo da ficção, como o foco narrativo, o</p><p>enredo, as personagens, o ambiente e o tempo.</p><p>Lembrete</p><p>No discurso direto, ocorre a reprodução da fala do personagem. No</p><p>indireto, o narrador expressa o que o personagem disse. No indireto livre,</p><p>pensamentos do personagem e voz do narrador se misturam.</p><p>135</p><p>STORYTELLING</p><p>Saiba mais</p><p>Conheça melhor o trabalho de Carrascoza em:</p><p>CARRASCOZA, J. A. Razão e sensibilidade no texto publicitário. São</p><p>Paulo: Futura, 2007.</p><p>Devemos destacar, no entanto, que a narrativa publicitária tem características próprias, diferentes</p><p>de outras narrativas. Em primeiro lugar, no discurso publicitário, procura-se, em geral, criar uma vida</p><p>idealizada, em que problemas podem aparecer, mas são solucionados. O consumidor não deseja ver, nesse</p><p>tipo de narrativa, obstáculos e dificuldades instransponíveis, como aqueles que encontra na vida real.</p><p>Repare que, no exemplo apresentado, apesar da separação do casal e do sentimento de ausência</p><p>do pai, os dois personagens usufruem um momento de prazer e de companhia, proporcionado pelo</p><p>ambiente do shopping.</p><p>Outra característica importante é que a narrativa publicitária tende a ser, principalmente nos meios</p><p>impressos, abreviada. Algumas das fases da estrutura clássica (apresentação, conflito, clímax e desfecho)</p><p>podem ser suprimidas ou sobrepostas. Observe, no exemplo, que o texto já se inicia com a cena no</p><p>shopping, em um momento de tensão para o pai, que não sabe como o filho vai reagir à nova rotina</p><p>imposta pela situação da separação.</p><p>Por sua brevidade, a narrativa publicitária também costuma trabalhar com personagens estereotipadas</p><p>e situações clichês. Assim, as personagens tendem a ser planas, guiadas por anseios e necessidades</p><p>comuns, sem grandes problematizações. No exemplo, identificamos, pelas características apresentadas,</p><p>um executivo e um pai com apreensões comuns.</p><p>Observação</p><p>Estereótipo é um modelo que aplicamos a pessoas ou grupos sociais. Se</p><p>pensamos em um surfista, por exemplo, imediatamente imaginamos um</p><p>jovem bronzeado, com calção e chinelos. Um executivo, por sua vez, anda</p><p>com roupa social. A publicidade vale-se bastante dos estereótipos, pois eles</p><p>habitam o imaginário social e facilitam a identificação.</p><p>Lembrete</p><p>A narrativa é uma ferramenta de persuasão da publicidade e da propaganda.</p><p>136</p><p>Unidade III</p><p>A narrativa publicitária também pode se valer da linguagem não verbal. O anúncio a seguir, da década</p><p>de 1960, por exemplo, constrói uma narrativa essencialmente visual. O tema da durabilidade, principal</p><p>atributo do produto destacado pela mensagem, é trabalhado na sequência de fotos, que representam a</p><p>passagem de vários anos.</p><p>Observe que, pelas imagens, entendemos que o casal se conhece, namora (as roupas indicam que são</p><p>jovens) e a família vai aumentando. O carro, contudo, continua o mesmo e atende às necessidades deles.</p><p>Figura 36 – Anúncio da Volkswagen</p><p>137</p><p>STORYTELLING</p><p>Lembrete</p><p>A linguagem verbal é aquela que utiliza as palavras. A linguagem não</p><p>verbal, por sua vez, é aquela que se vale de outros signos.</p><p>Há, também, narrativas que são construídas por meio de diálogos. O exemplo a seguir mostra uma</p><p>cena que deixa pressuposto o interesse do rapaz pela moça (Renata) e a expectativa criada no encontro.</p><p>Repare que o foco utilizado é o modo dramático, em que as marcas do narrador são apagadas.</p><p>— Renata, eu queria te dizer uma coisa.</p><p>— Nossa, você ficou sério. Que foi?</p><p>— Sabe, esse jantar à luz de velas, o champagne, foi só para criar coragem.</p><p>— W-Walter...</p><p>— Sabe, desde que te vi, não penso em mais nada...</p><p>— Oh, Walter...</p><p>— Chega aqui bem pertinho e olha bem para mim.</p><p>— Sim... sim...</p><p>— Renata, eu te acho. [Obs.: no anúncio, aparece uma pequena mancha nesta fala,</p><p>sugerindo uma sujeira...]</p><p>— ...</p><p>— O que foi?</p><p>— Nada, nada.</p><p>— Mas o que houve?</p><p>— Nada, deixa para lá. Já é tarde, vamos embora?</p><p>Polyflon dental prev. O fio dental mais indicado contra as gafes.</p><p>Fonte: Medeiros (2013, p. 57).</p><p>138</p><p>Unidade III</p><p>O motivo pelo qual o romance não se concretiza fica subentendido, e o produto é sugerido como</p><p>solução para o problema.</p><p>Veja, a seguir, o layout do anúncio.</p><p>Figura 37 – Anúncio Polyflon</p><p>A estrutura narrativa tende a ser mais presente nos comerciais (peças publicitárias veiculadas no</p><p>meio televisivo), devido ao uso da linguagem audiovisual. Há muitos exemplos de grandes narrativas</p><p>publicitárias em comerciais. Na década de 1980, por exemplo, Washington Olivetto criou a campanha</p><p>“Meu primeiro sutiã” para a marca Valisère. O comercial, com bastante sensibilidade, narra a estória de</p><p>uma adolescente que começa a ver surgirem “seus primeiros raios de mulher” e ganha seu primeiro sutiã.</p><p>As cenas iniciais mostram a frustração da personagem, uma adolescente de cerca de 13 anos, por ver</p><p>que colegas suas, na escola, já usavam a peça íntima e ela ainda não. Ao chegar ao seu quarto, chateada,</p><p>é surpreendida pelo presente deixado por sua mãe em sua cama.</p><p>O comercial fechava com a frase: “O primeiro sutiã a gente nunca esquece”.</p><p>139</p><p>STORYTELLING</p><p>Observação</p><p>Atente para a nomenclatura mostrada a seguir.</p><p>Peça publicitária = qualquer tipo de texto veiculado em qualquer mídia.</p><p>Anúncio = peça publicitária impressa.</p><p>Comercial = peça publicitária televisiva.</p><p>Spot = peça publicitária radiofônica.</p><p>Saiba mais</p><p>Assista ao comercial “Meu primeiro sutiã” da Valisère:</p><p>MEU PRIMEIRO sutiã – Valisère. 1988. 1 vídeo (2 min). Publicado pelo canal</p><p>Eu Amo TV. Disponível em: https://bit.ly/3rILApx. Acesso em: 12 mar. 2021.</p><p>Em 2014, a campanha de despedida da Kombi, veículo da Volkswagen, emocionou muita gente e</p><p>projetou positivamente a marca. A campanha, intitulada “Os últimos desejos da Kombi”, foi criada com</p><p>o uso do storytelling transmídia. Começou em um site em que os consumidores podiam compartilhar</p><p>as histórias marcantes com o veículo por meio de postagens. Após isso, em mídia impressa e digital,</p><p>publicaram-se desejos do carro, como um testamento para 15 histórias escolhidas no site. Por fim,</p><p>mostrou-se a Kombi homenageando os proprietários que viveram uma história memorável com ela.</p><p>A campanha foi premiada com sete leões no Festival de Publicidade de Cannes 2014, sendo dois troféus</p><p>de ouro e cinco de bronze.</p><p>Outro exemplo bem-sucedido foi o comercial “Puppy Love”, desenvolvido pela agência Anomaly</p><p>em 2014 para a Budweiser. A peça foca a forte amizade entre um filhote de Labrador e um cavalo. No</p><p>enredo, o cachorrinho sempre dá um jeito de fugir do canil, durante o dia ou à noite, para encontrar</p><p>seu amigo. Então, aparece alguém para levá-lo embora da fazenda. Ele é colocado em um carro, mas o</p><p>cavalo corre atrás do veículo e consegue resgatá-lo. O filme finaliza com os dois brincando felizes. Toda</p><p>a trama é apresentada sem qualquer fala: apenas imagens e uma trilha sonora. No final, estampa-se na</p><p>tela a marca da cerveja, que só havia aparecido discretamente no boné do dono da fazenda.</p><p>Repare que a peça da Budweiser tem todas as características do que Carrascoza chama de texto</p><p>dionisíaco e que a estrutura do comercial segue o modelo clássico: apresentação, conflito, clímax e</p><p>desfecho. Temos, nas cenas iniciais, a apresentação do cachorrinho e do cavalo. A amizade entre eles</p><p>nasce, mas vem o conflito: os humanos estão sempre os separando. Ocorre a complicação, com o clímax,</p><p>140</p><p>Unidade III</p><p>em que decidem levar o cão embora da fazenda. O desfecho – feliz – vem com a intervenção dos cavalos</p><p>para resgatar o labradorzinho.</p><p>Em 2014, a União também se valeu do storytelling para firmar sua marca como parte integrante da</p><p>vida das pessoas em comemoração aos seus 105 anos de história. Nos segundos iniciais, aparece um</p><p>rapaz chorando ao lado da mulher, o que provoca comoção e interesse no espectador. Na sequência,</p><p>vem o letreiro: “Onde há União, habita a doçura”. Note que se explora a ambiguidade do nome da marca.</p><p>É, então, contada a história do casal que se conheceu, se apaixonou e sofreu com o aborto involuntário</p><p>da primeira gravidez.</p><p>Ainda como exemplos de storytelling na publicidade podemos citar as mensagens de Natal da Disney</p><p>e da Coca-Cola em 2020. A Disney, mestre na arte de contar histórias, produziu um vídeo em que o</p><p>vínculo entre avó e neta se dá pelo personagem Mickey. A neta, já jovem, não deixa a avó idosa sozinha</p><p>no Natal e recupera a magia do momento por meio do boneco.</p><p>A Coca-Cola, por sua vez, trabalhou o conceito de que a presença é o melhor presente. Em um</p><p>comercial de TV, por exemplo, um pai corre perigos e enfrenta desafios para levar a carta de sua filha</p><p>até o Papai Noel. É, então, conduzido para casa pelo bom velhinho e descobre que o pedido da filha era</p><p>ter o pai de volta.</p><p>A relação da Coca-Cola com o Papai Noel é antiga. Segundo Adilson Xavier (2015), o encontro data</p><p>de 1931 e tem origem na queda das vendas do refrigerante no inverno. De acordo com Xavier (2015,</p><p>p. 179), a “dobradinha da Coca-Cola com o famoso pintor e ilustrador Norman Rockwell alavancou de</p><p>tal forma a identidade entre Papai Noel e a marca que muita gente passou a acreditar que a Coca-Cola</p><p>teria criado o personagem”.</p><p>8 TRANSMÍDIA E STORYTELLING</p><p>8.1 Transmídia e crossmídia</p><p>O desenvolvimento de novas tecnologias, que permitiram outras formas de comunicação, trouxe</p><p>à tona a questão da transmidiação. Trata-se de um conceito que já existe há muito tempo, mas sua</p><p>evidência se tornou mais efetiva no século XXI.</p><p>O nome “transmídia”, formado pelo prefixo “trans” e pelo substantivo “mídia”, indica algo que vai</p><p>além da mídia. Em outros termos, trata-se da mensagem que se desdobra em múltiplas plataformas, em</p><p>uma situação em que várias mídias convergem e se entrelaçam. A narrativa transmidiática, portanto,</p><p>designa aquela que utiliza várias plataformas para contar uma história, sendo que cada texto tem sua</p><p>contribuição distinta.</p><p>141</p><p>STORYTELLING</p><p>Observação</p><p>Há estudiosos que apontam as narrativas bíblicas como transmidiáticas,</p><p>pois elas passaram da tradição oral para a escrita, para a pintura, para as</p><p>peças teatrais, para os filmes. Dessa forma, narrativa transmídia, embora</p><p>seja um termo contemporâneo, não é exclusiva do ambiente digital.</p><p>O conceito de transmídia ganhou destaque a partir dos estudos de Henry Jenkins, no final do</p><p>século XX. O autor apontou o surgimento, na indústria do entretenimento, de um novo tipo de produto,</p><p>denominado franquia. Nesse tipo de produção, o conteúdo não se concentra somente em uma mídia,</p><p>mas projeta-se por meio de extensões e de produtos licenciados, em um “empenho coordenado em</p><p>imprimir uma marca e um mercado a conteúdos ficcionais” (JENKINS, 2009, p. 47).</p><p>Saiba mais</p><p>Para se aprofundar no tema leia o livro:</p><p>JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.</p><p>De acordo com Jenkins, um texto central permite pontos de acesso ao enredo, que são explorados</p><p>em outras mídias, como jogos digitais, histórias em quadrinhos, sites, vídeos on-line, blogs, redes sociais</p><p>etc. Dessa forma, pode-se, por exemplo, desenvolver histórias de personagens secundários, apresentar</p><p>outras perspectivas da narrativa, completar lacunas da história, ou ainda ligar um filme a sua sequência.</p><p>Camila Augusta Pires Figueiredo (2020,</p><p>p. 46) aponta que,</p><p>no caso de narrativa transmídia ideal, não há redundância de informações,</p><p>mas cada mídia oferece novos níveis de revelação, que se juntam para</p><p>compor a narrativa completa da franquia.</p><p>Lembrete</p><p>Apresentamos, nos capítulos anteriores, exemplos de narrativas transmídias,</p><p>como a campanha de despedida da Kombi e a reportagem “Snow fall”.</p><p>Embora os termos crossmídia e transmídia sejam, muitas vezes, tomados como sinônimos, há</p><p>diferença entre eles.</p><p>142</p><p>Unidade III</p><p>O conceito de crossmídia está associado ao mesmo conteúdo divulgado em diferentes mídias.</p><p>É o caso, por exemplo, de adaptações de livros para o cinema. É também o que ocorre na publicidade:</p><p>tradicionalmente, as agências investem na produção de um conteúdo que é distribuído por diferentes</p><p>plataformas midiáticas. Ou seja, trata-se da mesma mensagem, com um formato específico para o meio.</p><p>Por exemplo, você já deve ter visto um comercial que tem a mesma mensagem de um spot de rádio.</p><p>A transmídia, por sua vez, é caracterizada pela complementação entre as mensagens veiculadas.</p><p>É como se fossem peças de um mesmo quebra-cabeça, que se complementam na formação do todo.</p><p>A pessoa, ao ter acesso aos vários textos, amplia sua compreensão global. Em outras palavras, há</p><p>expansão do conteúdo. No entanto, devemos ressaltar que, mesmo sendo partes do mesmo conjunto,</p><p>cada texto da narrativa transmídia mantém sua autonomia. Assim, se uma pessoa se interessar apenas</p><p>pelo filme, por exemplo, ela terá a compreensão completa da narrativa escolhida. Um exemplo bastante</p><p>emblemático é Star Wars.</p><p>O esquema a seguir ilustra a diferença aqui apontada.</p><p>Livro</p><p>TV</p><p>Web</p><p>Livro Filme</p><p>TV Web</p><p>Narrativa transmídia Narrativa crossmídia</p><p>Figura 38 – Diferença entre transmídia e crossmídia</p><p>Observe que a narrativa crossmídia pressupõe a transposição de conteúdo de uma mídia para outra</p><p>e a transmídia se estabelece com a complementação das mensagens de cada mídia.</p><p>De acordo com Jenkins (2009), a transmídia se apoia em uma tríade: a convergência dos</p><p>meios de comunicação, a cultura participativa e a inteligência coletiva. A convergência dos meios</p><p>de comunicação ocorre por meio dos fluxos de conteúdo em múltiplas plataformas de mídias, da</p><p>“cooperação entre múltiplos mercados midiáticos” e do “comportamento migratório dos públicos</p><p>dos meios de comunicação” (JENKINS, 2009, p. 29); a convergência “ocorre dentro dos cérebros dos</p><p>consumidores individuais e em suas interações sociais com outros” (JENKINS, 2009, p. 30). O autor</p><p>toma, ainda, o conceito de inteligência coletiva de Pierre Lévy, para quem as inteligências individuais</p><p>são somadas e compartilhadas, sendo potencializadas a partir do surgimento de novas tecnologias</p><p>de comunicação, como a internet, por exemplo. Lévy afirma que a inteligência coletiva possibilita</p><p>o compartilhamento da memória, da imaginação e da percepção, o que resulta na aprendizagem</p><p>coletiva e na troca de conhecimentos.</p><p>143</p><p>STORYTELLING</p><p>Observação</p><p>Marshall McLuhan, importante teórico da comunicação nos meados do</p><p>século XX, já apontava que, quando aparecem novas formas de comunicar,</p><p>são inventadas novas linguagens. Uma das máximas conhecidas por</p><p>representar seu pensamento é “o meio é a mensagem”.</p><p>De forma sintética, na perspectiva de Jenkins (apud FIGUEIREDO, 2020, p. 46), a narrativa transmídia,</p><p>na área do entretenimento, é uma estratégia normalmente utilizada para:</p><p>• fazer uma ponte entre um texto principal e suas sequências;</p><p>• prenunciar evoluções no enredo de uma obra;</p><p>• expandir a narrativa ou completar suas lacunas;</p><p>• desenvolver histórias de personagens secundários, detalhes e perspectivas da narrativa;</p><p>• oferecer apoio para o ingresso de um novo público à franquia;</p><p>• construir universos que não podem ser esgotados em uma só mídia.</p><p>Lembrete</p><p>A narrativa transmídia é dividida em histórias em diversas mídias, com</p><p>todas as suas partes integradas. Ela amplia o engajamento do público, pois</p><p>atinge diferentes nichos.</p><p>Na narrativa transmídia, a compreensão completa se concretiza no cruzamento de várias mídias,</p><p>em um sistema de rede intertextual e multitextual, constituindo uma experiência interpretativa</p><p>ampliada e complexa.</p><p>Observação</p><p>Após Roland Barthes e Claude Bremond, desenvolveram-se os estudos</p><p>de narrativas não literárias.</p><p>144</p><p>Unidade III</p><p>De acordo com João Carlos Massarolo (2013, p. 337):</p><p>No contexto cultural da convergência, a arte de contar histórias através de</p><p>diversas mídias, entendida […] como storytelling transmídia, se transformou</p><p>para os grandes conglomerados de mídia numa das principais estratégias</p><p>de entretenimento nas multiplataformas. Para as grandes empresas de</p><p>comunicação, a expansão da narrativa por diferentes plataformas serve como</p><p>estímulo para a criação de sinergias entre produtos por meio da integração</p><p>horizontal das áreas de entretenimento, visando ao desenvolvimento das</p><p>franquias de conteúdo (marcas). Neste contexto, o storytelling transmídia se</p><p>diferencia dos modelos narrativos convencionais, pela criação de universos</p><p>narrativos expandidos e pelo alto grau de complexidade narrativa.</p><p>O esquema a seguir ilustra a diferença entre as narrativas tradicionais e a transmidiática.</p><p>Filme Jogo Livro</p><p>O todo é maior que a</p><p>soma das partes</p><p>A união de todas</p><p>as mídias cria um</p><p>produto final ainda</p><p>melhor</p><p>Filme Jogo Livro</p><p>O todo é menor que</p><p>a soma das partes</p><p>A falta de união</p><p>das mídias cria</p><p>um produto final</p><p>desconexo que</p><p>desperdiça espaço</p><p>Transmídia</p><p>Forma típica de mídia</p><p>Figura 39 – Narrativas tradicionais e transmidiáticas</p><p>Devemos destacar, ainda, que a serialidade é uma característica comum às narrativas nesse formato.</p><p>8.2 Narrativa transmidiática e jornalismo</p><p>Como já apontamos, as rotinas produtivas jornalísticas são impactadas atualmente pelas novas tecnologias.</p><p>Mesmo os meios de comunicação tradicionais, como o rádio, sofreram transformações. Hoje, o rádio</p><p>está presente no meio digital, e novos formatos, como os podcasts, ganharam espaço.</p><p>145</p><p>STORYTELLING</p><p>Observação</p><p>Midiamorfose é o nome que se dá à metamorfose dos meios antigos.</p><p>As possibilidades oferecidas pelas ferramentas em ambientes convergentes oferecem, assim, novas</p><p>estratégias narrativas e novas produções em diferentes plataformas. Dessa forma, a convergência</p><p>midiática permite um fluxo maior de informação por diferentes mídias, possibilitando a composição de</p><p>narrativas de conteúdos informativos.</p><p>Segundo Renó (2012, p. 202),</p><p>o jornalismo transmídia é uma forma de linguagem jornalística que</p><p>contempla, ao mesmo tempo, distintos meios, com várias linguagens e</p><p>narrativas, a partir de inúmeros meios e para uma infinidade de usuários.</p><p>Para tanto, devem ser adotados recursos audiovisuais, de comunicação</p><p>móvel e de interatividade na difusão do conteúdo, inclusive a partir da</p><p>blogosfera e das redes sociais.</p><p>Canavilhas (2013) apresenta um conjunto de características que devem estar presentes em uma</p><p>narrativa transmídia jornalística:</p><p>• interatividade;</p><p>• hipertextualidade;</p><p>• multimidialidade integrada;</p><p>• contextualização.</p><p>O autor ainda destaca um conjunto de princípios, base para a aplicação da narrativa transmidiática</p><p>no jornalismo:</p><p>• compartilhamento do conteúdo;</p><p>• vários percursos e níveis de leitura;</p><p>• ininterruptibilidade;</p><p>• participação do público no conteúdo;</p><p>• possibilidade de imersão;</p><p>• não perecibilidade;</p><p>146</p><p>Unidade III</p><p>• explicações em múltiplas formas, com indicação de links para aprofundamento;</p><p>• contribuição para maior participação do público nas definições de políticas públicas.</p><p>Observação</p><p>A não linearidade é uma característica essencial do hipertexto.</p><p>A narrativa transmidiática é mais indicada a eventos pré-agendados ou temas “frios”, que são pauta</p><p>de grandes reportagens. As coberturas que se estendem por um período, sob a forma de suíte, também se</p><p>apresentam adequadas ao uso da transmidialidade. Vale destacar que é essencial o conteúdo expansível</p><p>para a prática da transmídia.</p><p>As notícias, que têm base no factual,</p><p>são mais propícias à prática de crossmídia.</p><p>Observação</p><p>No jargão jornalístico, chamamos de “frias” as pautas que não perdem a</p><p>validade de acordo com o momento. Em outras palavras, são matérias que</p><p>não precisam de um momento específico para serem veiculadas.</p><p>Um produto que tem sido bastante comentado no meio jornalístico é o “Caso Evandro”, conduzido</p><p>pelo professor e jornalista Ivan Mizanzuk. Trata-se de um podcast com conteúdo de jornalismo</p><p>investigativo a respeito de um crime ocorrido em Guaratuba, no Paraná, em 1992.</p><p>O produto conta com 36 episódios, divididos em seis blocos, e foi inspirado no podcast</p><p>norte-americano “Serial”. Segundo Mizanzuk, trata-se de “um filme para ouvir” (PODCAST…, 2019).</p><p>No final de 2020, foi anunciado que o “Caso Evandro” seria transformado em série.</p><p>Leia a resenha a seguir.</p><p>Podcast ‘Caso Evandro’ transforma reviravoltas de crime em espetáculo</p><p>Programa revisita morte de menino de sete anos em 1992, no Paraná, fato que ficou</p><p>conhecido como ‘As Bruxas de Guaratuba’</p><p>Marcella Franco</p><p>Do sucesso de “Twin Peaks” à audiência de José Luis Datena, são inúmeras as evidências</p><p>do fascínio mórbido que crimes exercem sobre a mente humana, sejam eles fictícios ou reais.</p><p>Porque reconstrói o assassinato de um menino, “Caso Evandro” já estaria no caminho do</p><p>147</p><p>STORYTELLING</p><p>sucesso, mas a equação que explica os impressionantes mais de 4 milhões de downloads do</p><p>podcast é um pouco mais complexa que apenas dar ao público aquilo que ele espera.</p><p>Criado e apresentado pelo recifense Ivan Mizanzuk, professor e jornalista que desde</p><p>a infância mora no Paraná, “Caso Evandro” tem seis partes em formato de “storytelling”</p><p>(narração de uma história), das quais quatro já estão no ar – as duas finais estão em fase de</p><p>produção –, e é a quarta temporada do “Projeto Humanos”.</p><p>Depois de contar histórias de personagens como uma sobrevivente do Holocausto e</p><p>uma mulher que teve fotos íntimas vazadas, Mizanzuk mirou uma lembrança de infância</p><p>como tema e se dedicou por dois anos às pesquisas que deram base aos 24 episódios da</p><p>temporada que relembra Evandro Ramos Caetano, de sete anos, morto em 1992.</p><p>O caso ficou conhecido no Paraná como “As Bruxas de Guaratuba”, cidade litorânea que,</p><p>hoje, tem 36 mil habitantes. Na época do crime, Mizanzuk tinha dez anos de idade, mas</p><p>foi na juventude que se interessou pela história do assassinato – de férias na praia com</p><p>os amigos, passou em frente a uma residência e ouviu de alguém que aquela era “a casa</p><p>das bruxas”.</p><p>Suas moradoras mais ilustres foram Celina e Beatriz Abagge, que ganharam o apelido</p><p>depois de acusadas de matar Evandro em um ritual satânico que deixou o corpo do</p><p>menino sem mãos, sem cabelos e sem vísceras. Celina era a primeira-dama do município, e</p><p>Beatriz, sua filha.</p><p>O fato de envolver magia negra e parentes de políticos é apenas uma migalha entre</p><p>os componentes surpreendentes do crime. E é nas reviravoltas surreais a cada final de</p><p>episódio, costuradas de maneira brilhante pelo roteiro de Mizanzuk, que mora o principal</p><p>mérito do podcast.</p><p>A cada capítulo, o ouvinte alterna entre achar que as rés são culpadas e inocentes,</p><p>entre eleger e isentar outros suspeitos, e chega ao extremo de desconfiar que tudo que está</p><p>escutando não passou de uma grande armação e, assim, Evandro nunca chegou a morrer.</p><p>Junte-se à singularidade do caso e ao talento do narrador-roteirista para contar histórias</p><p>a organização irretocável de uma quantidade absurda de material – autos com 60 volumes</p><p>e 20 mil páginas, para ser exato –, e tem-se a receita do triunfo.</p><p>Mesmo com um ou outro defeito inofensivo, como algumas introduções prolixas, “Caso</p><p>Evandro” consegue ser melhor do que sua grande musa inspiradora, o americano “Serial”.</p><p>Embora ambos tratem de crimes (e a humanidade morbidamente ama crimes, lembre-se,</p><p>independentemente de quão bizarros eles são), o distanciamento impresso por Mizanzuk</p><p>não só na narração, mas também no contato com os personagens, é elementar para manter</p><p>a tensão constante, algo que não acontece no programa de Sarah Koenig.</p><p>148</p><p>Unidade III</p><p>E só quem vive de narrar o horror sabe o valor que tem um espectador tenso – David</p><p>Lynch e Datena que o digam.</p><p>Fonte: Franco (2019).</p><p>Saiba mais</p><p>Saiba mais sobre narrativa transmídia em:</p><p>CANAVILHAS, J. Jornalismo transmídia: um desafio ao velho ecossistema</p><p>midiático. In: RENÓ, D. et al. Periodismo transmedia: miradas múltiples.</p><p>Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2013.</p><p>Resumo</p><p>Nesta unidade, comentamos sobre o poder persuasivo das narrativas</p><p>no discurso publicitário. Demos exemplos de como o storytelling tem sido</p><p>adotado em campanhas, inclusive no formato transmídia, como forma de</p><p>envolver o consumidor e motivá-lo à compra.</p><p>Por fim, no último item, abordamos brevemente a narrativa transmidiática,</p><p>caracterizada pela complementação inter e multitextual em diversas mídias.</p><p>Mostramos que o conceito tem ganhado destaque desde os estudos de</p><p>Henry Jenkins e que, atualmente, o jornalismo também tem se valido desse</p><p>formato no sentido de informar e de promover a possibilidade de interpretação</p><p>de fatos e fenômenos.</p><p>149</p><p>STORYTELLING</p><p>Exercícios</p><p>Questão 1. Leia o anúncio a seguir.</p><p>Adão da Silva bateu o carro, quebrou a cabeça, um pai, dois primos e um avô</p><p>Adão da Silva levava uma vida muito tranquila e confortável até o dia em que ele saiu meio alegrinho de</p><p>uma festa e, na primeira curva, uma árvore atravessou correndo na frente dele. Bem, pelo menos foi esta a</p><p>estória que ele contou no pronto-socorro. Agora, a outra parte da estória que ele não conta pra ninguém é que</p><p>não tinha um plano de saúde e que, para pagar o tratamento, precisou vender tudo o que ele, o pai, os primos</p><p>e o avô juntaram com tanto sacrifício. A estória de Adão não é muito diferente da estória de milhões</p><p>de outros brasileiros que não têm um plano de saúde. Gente que por um descuido perdeu tudo o que</p><p>conseguiu com uma vida de trabalho. [...] A estória de Adão tem um final feliz pelo menos para você.</p><p>Com ela você recebe uma lição às custas dele, do pai, dos primos, do avô e não às suas próprias custas.</p><p>Portanto, se você não quiser que a sua vida corra o risco de virar um inferno, não cometa o mesmo</p><p>pecado que ele. Ligue para o nosso plantão de vendas e faça um Golden Cross.</p><p>CARRASCOZA, J. A. Redação publicitária, São Paulo: Futura, 2003. p. 87.</p><p>Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas.</p><p>I – O anúncio, de caráter dionisíaco segundo a classificação de Carrascoza, conta a estória de Adão</p><p>da Silva de forma a mostrar a necessidade de se ter um plano de saúde.</p><p>II – O texto trabalha com palavras do universo semântico da Bíblia: Adão, inferno e pecado,</p><p>por exemplo.</p><p>III – O anúncio utiliza o narrador onisciente múltiplo, de acordo com a classificação de Friedman,</p><p>para mostrar como o acidente impactou toda a família.</p><p>É correto o que se afirma em:</p><p>A) I, II e III.</p><p>B) I e III, apenas.</p><p>C) II e III, apenas.</p><p>D) I e II, apenas.</p><p>E) II, apenas.</p><p>Resposta correta: alternativa D.</p><p>150</p><p>Unidade III</p><p>Análise da questão</p><p>O texto segue, segundo a classificação de Carrascoza, o modelo dionisíaco, pois se baseia em uma</p><p>microestória. O narrador utilizado é o observador, e não há onisciência no relato. Notamos que foram</p><p>escolhidas palavras do universo semântico bíblico para compor o texto.</p><p>Questão 2. Leia o texto a seguir.</p><p>Jornalismo transmídia é uma forma de linguagem jornalística que inclui, ao mesmo tempo,</p><p>diferentes mídias, com diversas linguagens e narrativas de diferentes mídias e para diferentes usuários.</p><p>Recursos audiovisuais, de comunicação móvel e de interatividade são adotados para a disseminação do</p><p>conteúdo, incluindo a blogosfera e as redes sociais, os quais incrementam significantemente a circulação</p><p>do conteúdo.</p><p>RENÓ, D. P. Transmedia journalism and the new media ecology: possible languages.</p><p>In: RENÓ, D. et al. Periodismo transmedia: miradas múltiples. Barcelona: Editorial UOC, 2014. p. 6.</p><p>Com base na leitura e nos seus conhecimentos,</p><p>avalie as afirmativas.</p><p>I – A narrativa transmidiática no jornalismo deve estar relacionada somente ao factual, ao noticioso,</p><p>uma vez que se vale das redes sociais.</p><p>II – A mesma notícia veiculada em um jornal impresso e em um site é um exemplo de transmídia.</p><p>III – A narrativa jornalística transmidiática é indicada para pautas do que chamamos de</p><p>grande reportagem.</p><p>É correto o que se afirma em:</p><p>A) I, II e III.</p><p>B) I e II, apenas.</p><p>C) I e III, apenas.</p><p>D) II e III, apenas.</p><p>E) III, apenas.</p><p>Resposta correta: alternativa E.</p><p>151</p><p>STORYTELLING</p><p>Análise da questão</p><p>A narrativa jornalística transmidiática é indicada especialmente para pautas que exigem intensa</p><p>apuração, ou seja, para pautas de fôlego. É composta por uma rede inter e multitextual, em diferentes</p><p>mídias. A mesma notícia em meios diferentes é um exemplo de crossmídia, processo no qual dada</p><p>narrativa é distribuída em segmentos de mídia distintos.</p><p>152</p><p>FIGURAS E ILUSTRAÇÕES</p><p>Figura 1</p><p>800PX-PINTURAS_RUPESTRES_-_VALE_DO_CATIMBAU_-_PERNAMBUCO_-_BRASIL.JPG. Disponível</p><p>em: https://bit.ly/3cpj1XN. Acesso em: 12 mar. 2021.</p><p>Figura 2</p><p>GILGAMESHTABLET.PNG. Disponível em: https://bit.ly/3bH5oV3. Acesso em: 11 mar. 2021.</p><p>Figura 3</p><p>JOAN_OF_ARC_MINIATURE_GRADED.JPG/402PXJOAN_OF_ARC_MINIATURE_GRADED.JPG. Disponível</p><p>em: https://bit.ly/2OQpfrv. Acesso em: 12 mar. 2021.</p><p>Figura 4</p><p>THE_PASSION_OF_JOAN_OF_ARC_%281928%29_ENGLISH_POSTER.PNG. Disponível em:</p><p>https://bit.ly/3bCxJf5. Acesso em: 11 mar. 2021.</p><p>Figura 5</p><p>AAA.JPG. Disponível em: https://bit.ly/3rHdYbN. Acesso em: 12 mar. 2021.</p><p>Figura 6</p><p>MENEGAZZO, M. A.; AMIZO, I. B. Van Gogh e o campo de trigo com corvos: da tela ao videoclipe.</p><p>Anuário Literário, Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 88, 2015. Disponível em: http://bit.ly/3rQaa7W.</p><p>Acesso em: 11 mar. 2021.</p><p>Figura 7</p><p>VEIGA, R. B. Uma conversa entre telas: o imaginário de Vicent Van Gogh no cinema de Akira Kurosawa.</p><p>2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Museologia) – Universidade Federal do Rio</p><p>Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. p. 71.</p><p>Figura 8</p><p>BUENO, M. E. Girando entre princesas: performances e contornos de gênero em uma etnografia com</p><p>crianças. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São</p><p>Paulo, 2012. p. 17.</p><p>153</p><p>Figura 9</p><p>SPENCER, N. Captain America: Steve Rogers. Nova Iorque: Marvel, 2017. v. 3 (Empire Building). p. 1.</p><p>Figura 10</p><p>SÓFOCLES. Édipo Rei. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: L&PM, 1998. p. 1.</p><p>Figura 11</p><p>PROENÇA, G. História da arte. São Paulo: Ática, 2013. p. 36.</p><p>Figura 12</p><p>PONTO-DE-VISTA.PNG. Disponível em: http://bit.ly/3tkqy0R. Acesso em: 12 mar. 2021.</p><p>Figura 13</p><p>CARROLL%20LEWIS%20ALICES%20069034.JPG. Disponível em: https://bit.ly/38Ee2Sg. Acesso em:</p><p>12 mar. 2021.</p><p>Figura 14</p><p>FILE:ALICE_IN_WONDERLAND_1951.JPG. Disponível em: http://bit.ly/3cjDspi. Acesso em: 11 mar. 2021.</p><p>Figura 15</p><p>BUENO, M. E. Girando entre princesas: performances e contornos de gênero em uma etnografia com</p><p>crianças. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo,</p><p>2012. p. 52.</p><p>Figura 16</p><p>WATTERSON, B. O melhor de Calvin. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. D2, 20 nov. 2003.</p><p>Figura 17</p><p>745PX-LERNAEAN_HYDRA_LOUVRE_CA7318.JPG. Disponível em: https://bit.ly/30NsfYu. Acesso em:</p><p>15 mar. 2021.</p><p>Figura 18</p><p>258?CB=20200216173034&PATH-PREFIX=PT-BR. Disponível em: https://bit.ly/2OSQDoX. Acesso em:</p><p>12 mar. 2021.</p><p>154</p><p>Figura 20</p><p>304PX-DIONYSOS_LOUVRE_MA87_N2.JPG. Disponível em: https://bit.ly/2OQwj7I. Acesso em: 12 mar. 2021.</p><p>Figura 21</p><p>800PX-DEATH_PENTHEUS_LOUVRE_G445.JPG. Disponível em: https://bit.ly/3rCYFks. Acesso em: 11 mar. 2021.</p><p>Figura 22</p><p>CLUBE DE CRIAÇÃO. Matou o pai, transou com a mãe e furou os olhos. 18º Anuário, [s.d.]. Disponível</p><p>em: http://bit.ly/3cbuDh4. Acesso em: 11 mar. 2021.</p><p>Figura 23</p><p>THE_DEATH_OF_ACHILLES_-_MODELLO.JPG. Disponível em: https://bit.ly/30AF2O4. Acesso em: 11 mar. 2021.</p><p>Figura 24</p><p>ROBOT-1083158_960_720.JPG. Disponível em: https://bit.ly/3cU0J1i. Acesso em: 11 mar. 2021.</p><p>Figura 25</p><p>MATOS, R. Vladimir Propp e a morfologia narrativa. Grupo de Pesquisa Intermídia, [s.d.]. Disponível em:</p><p>http://bit.ly/3lklUNy. Acesso em: 12 mar. 2021.</p><p>Figura 27</p><p>MACHADO, L. D.; ZORTÉA, M. A morte não usa calcinha: um livro de imagens inspirado nas histórias</p><p>do palhaço da Kombi publicadas pelo jornal Notícias Populares. 2012. Trabalho de Conclusão de Curso</p><p>(Bacharelado em Design) – Universidade Tecnológica do Paraná, Curitiba, 2012. p. 33.</p><p>Figura 28</p><p>CASTRO, R. Isolada na pandemia, aposentada viraliza ao imitar memes, famosos e pinturas. Época,</p><p>16 jan. 2021. Disponível em: http://glo.bo/3eypzq0. Acesso em: 5 mar. 2021.</p><p>Figura 29</p><p>CASTRO, R. Isolada na pandemia, aposentada viraliza ao imitar memes, famosos e pinturas. Época,</p><p>16 jan. 2021. Disponível em: http://glo.bo/3eypzq0. Acesso em: 5 mar. 2021.</p><p>155</p><p>Figura 30</p><p>CASTRO, R. Isolada na pandemia, aposentada viraliza ao imitar memes, famosos e pinturas. Época,</p><p>16 jan. 2021. Disponível em: http://glo.bo/3eypzq0. Acesso em: 5 mar. 2021.</p><p>Figura 31</p><p>CASTRO, R. Isolada na pandemia, aposentada viraliza ao imitar memes, famosos e pinturas. Época,</p><p>16 jan. 2021. Disponível em: http://glo.bo/3eypzq0. Acesso em: 5 mar. 2021.</p><p>Figura 32</p><p>CASTRO, R. Isolada na pandemia, aposentada viraliza ao imitar memes, famosos e pinturas. Época,</p><p>16 jan. 2021. Disponível em: http://glo.bo/3eypzq0. Acesso em: 5 mar. 2021.</p><p>Figura 33</p><p>BASTOS, A.; GUERRA, C. As quatro estações de Iracema e Dirceu, Diário Catarinense, [s.d.].</p><p>Disponível em: http://bit.ly/3lmIuFp. Acesso em: 12 mar. 2021.</p><p>Figura 34</p><p>PALACIOS, F.; TERENZZO, M. O guia completo do storytelling. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. p. 3.</p><p>Figura 35</p><p>MARK, M.; PEARSON, C. O Herói e o Fora da lei: como construir marcas extraordinárias usando o poder</p><p>dos arquétipos. São Paulo: Cultrix, 2019. p. 28.</p><p>Figura 36</p><p>MEDEIROS, L. O. A publicidade segundo Sherazade: um estudo sobre o uso de narrativas na publicidade</p><p>impressa brasileira. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Comunicação Social) –</p><p>Universidade de Brasília, Brasília, 2013. p. 55.</p><p>Figura 37</p><p>MEDEIROS, L. O. A publicidade segundo Sherazade: um estudo sobre o uso de narrativas na publicidade</p><p>impressa brasileira. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Comunicação Social) –</p><p>Universidade de Brasília, Brasília, 2013. p. 57.</p><p>156</p><p>Figura 38</p><p>LOPEZ, D. C.; VIANA, L. Construção de narrativas transmídia radiofônicas. Revista Mídia e Cotidiano. Rio</p><p>de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, p. 158, jan. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3qGhNMY.</p><p>Acesso em: 12 mar. 2021.</p><p>Figura 39</p><p>RAUGUST, G. D. A narrativa transmídia no jornalismo: o estudo das reportagens do GDI, do grupo RBS.</p><p>2018. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande</p><p>do Sul, Porto Alegre, 2018. p. 49.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>Audiovisuais</p><p>GO back. Intérprete: Sérgio Britto. Compositores: Sérgio Britto, Torquato Neto. In: TITÃS. Intérprete:</p><p>Titãs. [s.l.]: WEA, 1984. 1 LP, faixa 4.</p><p>HÉRCULES. Direção: Ron Clements; John Musker. EUA: Walt Disney Pictures, 1997. 93 min.</p><p>MALÉVOLA: dona do mal. Direção: Joachim Rønning. EUA: Walt Disney Pictures, 2019. 118 min.</p><p>MEU PRIMEIRO sutiã – Valisère. 1988. 1 vídeo (2 min). Publicado pelo canal Eu Amo TV. Disponível em:</p><p>https://bit.ly/3rILApx. Acesso em: 12 mar. 2021.</p><p>A ODISSEIA. Direção: Andrei Konchalovsky. EUA: NBC, 1997. 150 min.</p><p>PODCAST Projeto Humanos: O Caso Evandro vai virar série – entrevista com Ivan Mizanzuk. 2019.</p><p>1 vídeo (30 min). Publicado pelo canal Tecmundo. Disponível em: https://bit.ly/30TWX2q. Acesso</p><p>em: 17 mar. 2021.</p><p>SHE-RA e as Princesas do Poder. Direção: Noelle Stevenson. EUA: DreamWorks Animation</p><p>Television, 2018. 24 min.</p><p>Textuais</p><p>AGRIMANI SOBRINHO, D. Espreme que sai sangue. São Paulo: Summus, 1995.</p><p>ALENCAR, J. Iracema. [s.d.]. Disponível em: https://bit.ly/2OHRARh. Acesso em: 3 mar. 2021.</p><p>ALMEIDA, M. A. Memórias de um sargento de milícias. Brasília: Edições Câmara,</p><p>em si.</p><p>Exemplo de aplicação</p><p>Considere a estória a seguir.</p><p>Um rapaz consegue se casar com o amor de sua adolescência e tem um filho com ela. Um dia, passa</p><p>a desconfiar de que foi traído pela mulher e por seu melhor amigo. Ele começa a crer que o filho, de</p><p>fato, não é dele. A partir de então, afasta-se da esposa e da criança e torna-se um homem ensimesmado.</p><p>Achou interessante? Contada dessa forma, a história de Dom Casmurro não tem nada de genial.</p><p>O que a torna uma obra-prima da literatura mundial é a forma como Machado de Assis a conta.</p><p>Assim, nessa perspectiva, uma narrativa literária diferencia-se de outra não literária pelo trabalho</p><p>estético com a linguagem.</p><p>Reflita, com base nisso, sobre o quanto ler os resumos de obras literárias o afasta do valor que</p><p>elas têm.</p><p>16</p><p>Unidade I</p><p>Saiba mais</p><p>Para saber mais sobre a história contada por Machado de Assis em Dom</p><p>Casmurro, leia:</p><p>ASSIS, M. Dom Casmurro. 41. ed. São Paulo: Ática, 2019.</p><p>1.3 Storytelling como ferramenta e técnica</p><p>Em seu livro Storytelling: histórias que deixam marcas, Adilson Xavier define o conceito de storytelling</p><p>como “a tecnarte de elaborar e encadear cenas, dando-lhes um sentido envolvente que capte a atenção</p><p>das pessoas e enseje a assimilação de uma ideia central” (XAVIER, 2015, p. 11). O autor considera o ato</p><p>de contar histórias ao mesmo tempo uma técnica e uma arte, daí o neologismo tecnarte.</p><p>A definição de Adilson Xavier ilustra bem uma reinterpretação moderna baseada na teoria aristotélica</p><p>das narrativas. Não à toa, ele usa o termo “encadear”, isto é, colocar em cadeia no sentido de sequência,</p><p>que evoca a ideia aristotélica de começo, meio e fim como elementos sequenciais indissociáveis do</p><p>todo que formam.</p><p>Storytelling é, em síntese, a capacidade de contar bem boas estórias. O que torna sua conceituação</p><p>turbulenta é que ela propõe uma pergunta subsequente, mas não menos importante: o que é, afinal,</p><p>uma “boa história”?</p><p>Esse ponto é ainda mais contencioso do que a definição de storytelling em si. A verdade é que é</p><p>difícil estabelecer regras universais acerca do que constitui uma boa história. Somos influenciados pela</p><p>cultura dos Estados Unidos, por exemplo; isso ocorre em grande parte do mundo ocidental, de modo</p><p>que as histórias deles parecem caber bem em nosso repertório. Mas você já assistiu, por exemplo, a um</p><p>filme de Akira Kurosawa, um dos mais famosos e influentes diretores japoneses? Se sim, é possível que</p><p>tenha sentido bem mais as diferenças culturais do que com filmes estadunidenses. Talvez até tenha</p><p>percebido que aquilo que constitui uma história e, principalmente, o que constitui uma boa história,</p><p>é significativamente diferente na nossa cultura e na cultura japonesa. Embora as culturas ocidentais</p><p>tendam a um gosto pela linearidade cronológica (algo bastante aristotélico), Sonhos, por exemplo, é</p><p>um filme que obedece a uma cronologia própria, estranha a nós, mas provavelmente reconhecível, ao</p><p>menos em alguns aspectos, pelo espectador japonês.</p><p>17</p><p>STORYTELLING</p><p>Figura 6 – Cena do filme Sonhos, de Kurosawa</p><p>Figura 7 – Cena de “Corvos”, episódio de Sonhos, de Kurosawa</p><p>“Monte Fuji em vermelho” e “O demônio que chora”, respectivamente sexto e sétimo episódios de</p><p>Sonhos, são geralmente considerados os menos interessantes pelo espectador ocidental, mas, certamente,</p><p>refletem um aspecto histórico e cultural muito importante no Japão: o marcante trauma social dos</p><p>efeitos da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki. Em ambos, existe um tom pós-apocalíptico,</p><p>representando um mundo destruído pela radioatividade, um mundo vazio, em que a própria natureza</p><p>nos é estranha. Apesar de o medo generalizado de uma guerra nuclear ter infiltrado também a arte</p><p>ocidental, a experiência japonesa faz com que esse aspecto seja muito mais relevante.</p><p>Para fazermos uma comparação, tome como exemplos de storytelling ocidental as histórias de</p><p>super-heróis. Vejamos o caso de Bruce Banner, que, após um acidente que lhe causa envenenamento</p><p>por radiação, torna-se o Incrível Hulk (lembramos que o primeiro de seus quadrinhos foi publicado</p><p>em 1962, bem antes de Sonhos, lançado em 1990). O Hulk é geralmente um personagem destrutivo</p><p>e quase infantil em termos de temperamento, enquanto seu alter ego, Bruce Banner, é um cientista</p><p>18</p><p>Unidade I</p><p>racional e considerado brilhante por seus pares. Isto é, existe um aspecto de certa selvageria</p><p>associado à sua exposição à radiação. Ainda assim, o Hulk é um super-herói, um dos “mocinhos”.</p><p>Isso diz respeito à experiência estadunidense em relação à Segunda Guerra e ao uso da bomba</p><p>atômica: o uso de armas radioativas é selvagem e sub-humano como o Hulk, mas, como o Hulk, é</p><p>também um símbolo do poderio militar dos Estados Unidos, um símbolo de supremacia e força quase</p><p>ilimitada. Não é preciso ir muito longe para entender por que esse não é o caso na cultura japonesa.</p><p>Na verdade, as histórias de super-heróis podem fornecer valiosas pistas sobre a cultura e a história</p><p>dos Estados Unidos. O exemplo mais clássico é o Capitão América, criado em 1941 pela Timely Comics</p><p>(antecessora da Marvel Comics). Está longe de ser coincidência que, em plena década de 1940, tenha</p><p>surgido e ganhado popularidade um super-herói estadunidense patriota (também não é nenhum</p><p>acidente, afinal, que o traje do Capitão América seja direta e claramente baseado na bandeira dos</p><p>Estados Unidos), que luta contra as forças do Eixo.</p><p>Observação</p><p>Alemanha, Itália e Japão eram países do Eixo na Segunda Guerra</p><p>Mundial. Eles lutaram contra os Aliados, nos quais estavam os Estados</p><p>Unidos, a Inglaterra, a França, a União Soviética e muitas outras nações.</p><p>Nessa época, a cultura estadunidense já compreendia e dava muito valor ao poder das imagens,</p><p>dos símbolos e das histórias; por esse motivo, os Estados Unidos demoraram a se envolver na guerra.</p><p>Uma vez envolvidos na guerra, era preciso que houvesse uma expressiva e forte imagem do país como</p><p>um herói que luta contra as forças do mal. Como sugere Xavier em sua definição de storytelling,</p><p>era preciso que a história do Capitão América despertasse no público um sentimento de heroísmo</p><p>patriótico; aquilo que o autor chama de “ideia central”.</p><p>Veja, a seguir, imagens diferentes do super-herói. Observe que, na primeira figura, ele aparece</p><p>socando um homem que tem no braço um símbolo do nazismo. Na capa, que data de 1941, ele luta</p><p>sozinho com vários homens e, mesmo assim, temos a indicação de que ele sairá vitorioso. Já na</p><p>capa da figura seguinte, de 2017, o herói está, obviamente, fora do contexto da Segunda Guerra</p><p>Mundial (1939-1945). Mas ele aparece forte e destemido a lutar. Atrás da sua imagem, percebemos</p><p>o mapa dos Estados Unidos. É como se ele protegesse seu país.</p><p>19</p><p>STORYTELLING</p><p>Figura 8 – Capa da primeira edição de Capitão América, em março de 1941</p><p>Figura 9 – Capa de Capitão América (Steve Rogers, v. 3), em agosto de 2017</p><p>20</p><p>Unidade I</p><p>A criação e a divulgação de heróis e de suas histórias como estratégia política, especialmente nos</p><p>períodos de conflito, no entanto, não era algo novo nem nos anos de 1940. Na verdade, o nosso modelo</p><p>de herói ainda é, até hoje, muito reminiscente dos heróis gregos clássicos, como Ulisses e Aquiles, mas</p><p>nos aprofundaremos nos aspectos que dizem respeito à jornada do herói apenas mais adiante. Por</p><p>enquanto, buscamos apenas evidenciar como o que constitui uma boa história tem muito a ver com</p><p>questões culturais, políticas e históricas.</p><p>Listamos todos esses exemplos para que fique claro como storytelling é uma tecnarte, para usar</p><p>a terminologia de Adilson Xavier, flexível. Como toda técnica e toda arte, a contação de estórias está</p><p>sujeita ao seu contexto temporal, espacial e cultural.</p><p>1.4 Poética de Aristóteles e suas aplicações modernas</p><p>A narrativa é estudada desde a Antiguidade, com Platão e Aristóteles.</p><p>Platão, em A República, examina a poesia mais detalhadamente, procurando descrever algumas de</p><p>suas características.</p><p>De acordo com o filósofo, temos a seguinte perspectiva tripartida (ZILBERMAN,</p><p>2011.</p><p>ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Edipro, 2011.</p><p>157</p><p>ASSIS, M. Dom Casmurro. 41. ed. São Paulo: Ática, 2019.</p><p>BARROS, D. L. P. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2011.</p><p>BARTHES, R. et al. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.</p><p>BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, W. Magia</p><p>e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 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Isso não é tão óbvio quanto parece.</p><p>Aristóteles delineia uma série de critérios para o que constitui começo, meio e fim que não nos</p><p>são interessantes neste preciso momento; o que nos interessa é saber que a dramaturgia grega de</p><p>que falava Aristóteles não era constituída por histórias inéditas. Pelo contrário, a tradição literária</p><p>da época privilegiava aquelas histórias que já eram conhecidas pelo público, que faziam parte do</p><p>imaginário popular.</p><p>Hoje, consideramos bastante provável que os frequentadores do teatro no período grego clássico</p><p>já conhecessem, por exemplo, a história de Édipo. E, se a história já lhes era conhecida, ou ao menos</p><p>familiar, por que a preocupação de Aristóteles em produzir o que era essencialmente um manual de</p><p>dramaturgia focada nos aspectos de storytelling? De novo, a resposta parece ter mais a ver com como</p><p>a história é contada do que com o que ela conta.</p><p>21</p><p>STORYTELLING</p><p>Figura 10 – Édipo Rei</p><p>Figura 11 – Ilustração simulando a apresentação de uma peça teatral na Grécia clássica</p><p>22</p><p>Unidade I</p><p>O velho ditado “quem conta um conto aumenta um ponto” diz muito sobre storytelling. Você deve</p><p>conseguir se lembrar de um exemplo em que duas ou mais pessoas que passaram pela mesma experiência</p><p>descrevem os eventos de formas totalmente diferentes. Insistiremos que histórias não são fatos, mas</p><p>construções acerca de fatos, percepções e interpretações. É muito improvável, portanto, que um grupo</p><p>de pessoas que presenciou o mesmo fato conte a mesma história. Mais do que isso, consideraremos</p><p>algumas histórias melhores do que outras, ainda que factualmente elas se refiram à mesma coisa.</p><p>A figura a seguir ilustra que o mesmo fato pode ser visto de perspectivas diferentes, e isso certamente</p><p>altera o que será contado.</p><p>Figura 12 – Pontos de vista</p><p>Lembrete</p><p>Os primeiros passos de uma teoria da narrativa foram dados por Platão</p><p>e Aristóteles, na Antiguidade.</p><p>Com isso em mente, retomemos à Poética de Aristóteles. Segundo o filósofo grego, todos os</p><p>elementos de uma história devem estar conectados como vemos em uma corrente, em que uma parte</p><p>leva à outra, dialoga com a outra, e, assim, forma-se um todo coeso, que não pode ser separado de seus</p><p>elementos constitutivos sem desintegrar-se por completo. É por isso que a arte não pode ser resumida</p><p>sem perder pelo menos parte de sua essência: porque a construção da história depende do todo, que</p><p>depende das partes, e, desse modo, estabelece-se um ciclo em que a obra, se produzida com qualidade,</p><p>torna-se autossustentável, completa e viva.</p><p>Quando falamos há pouco em começo, meio e fim, nos referíamos a isto: não a partes separadas</p><p>do texto, como se fossem caixas colocadas em sequência, mas a elementos do todo que estão</p><p>intrinsecamente ligados.</p><p>23</p><p>STORYTELLING</p><p>Anton Tchekhov, escritor russo do século XIX, desenvolveu um princípio que chamamos de “a arma</p><p>de Tchekhov”. Basicamente, ele dita que, se em algum momento é apresentada ao leitor ou ao espectador</p><p>uma arma pendurada na parede, aquela arma precisa disparar. Trata-se de uma metáfora usada para</p><p>dizer essencialmente o mesmo que dizia Aristóteles: todos os elementos, cada uma das partes de uma</p><p>obra, devem ter algum propósito. Se indiquei ao público de minha peça, por qualquer meio que seja –</p><p>diálogo e construção de cenário, por exemplo – que há uma arma que fica pendurada na parede, na</p><p>perspectiva de Tchekhov, estou prometendo aos espectadores que aquela arma tem um propósito para</p><p>minha história. É aquele antigo elemento narrativo que também podemos chamar de foreshadowing:</p><p>dicas e momentos implícitos no texto que nos dão pequenos indícios do futuro.</p><p>Existem teorias que divergem parcial ou totalmente desses conceitos. Para alguns autores e críticos,</p><p>elementos “sem propósito” podem ser uma estratégia narrativa interessante. Além disso, precisamos</p><p>levar em conta que nossas narrativas contemporâneas já não seguem, necessariamente, começo,</p><p>meio e fim como estruturas cronológicas, de modo que, ao menos em seus aspectos literários, a teoria</p><p>aristotélica encontra-se um tanto quanto defasada. Menos defasada do que se poderia presumir, no</p><p>entanto, dada a distância geográfica e temporal entre a Grécia clássica e o Brasil contemporâneo, por</p><p>exemplo. Embora a perspectiva de Aristóteles não dê mais conta da literatura de maneira geral, ela é</p><p>fundamental em um de seus aspectos: a contação de estórias.</p><p>Outro ponto essencial apontado por Aristóteles diz respeito à verossimilhança. O filósofo abordou</p><p>tal conceito no estudo sobre as tragédias encenadas no seu tempo. De acordo com ele, a empatia do</p><p>público com a peça era possibilitada pela ilusão de verdade do que era narrado. A isso, ele denominou</p><p>verossimilhança (aparência de verdade). Trata-se da lógica interna do enredo que o torna verdadeiro</p><p>para o leitor, independentemente da verdade dos fatos.</p><p>Assim, um herói ter poderes mágicos é verossímil em uma narrativa, mesmo que esse fato não seja</p><p>verdadeiro no mundo real.</p><p>Observação</p><p>Em algumas narrativas, como as narrativas jornalísticas, os fatos, além</p><p>de verossímeis, devem ser verdadeiros.</p><p>Saiba mais</p><p>Para saber mais sobre a poética clássica, leia o capítulo 3 do livro Teoria</p><p>da literatura, de Regina Zilberman:</p><p>ZILBERMAN, R. Teoria da literatura I. Curitiba: IESDE Brasil, 2012.</p><p>24</p><p>Unidade I</p><p>2 O PODER DAS ESTÓRIAS</p><p>Os cientistas dizem que somos feitos de átomos,</p><p>mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias.</p><p>(GALEANO, 2013)</p><p>Fazemos questão de pontuar que algo comum a todas as nossas culturas conhecidas é a contação</p><p>de histórias. Culturas diferentes produzem histórias e estórias diferentes, mas storytelling está sempre</p><p>presente. Afinal, toda mitologia é composta de estórias.</p><p>A mitologia em torno dos mortos-vivos, como zumbis e vampiros, muito popular contemporaneamente,</p><p>também se tornou popular historicamente em um período em que a medicina ainda não conseguia nos</p><p>informar com precisão se alguém estava morto ou não. Como consequência disso, as pessoas eram</p><p>enterradas vivas com relativa frequência, alimentando as estórias, que, por sua vez, ressignificavam os</p><p>fatos não como um erro médico, mas como resultado de forças sobrenaturais.</p><p>Leia o trecho a seguir, extraído do conto “O enterro prematuro”, de Edgar Allan Poe. Nele, o</p><p>protagonista sofre de catalepsia e tem pavor da possibilidade de ser enterrado vivo.</p><p>O enterro prematuro</p><p>Permaneci imóvel alguns minutos, depois que essa imagem se apoderou de mim. E por</p><p>quê? Eu não podia armar-me de coragem para mover-me. Não ousava fazer o esforço</p><p>necessário para certificar-me de minha sorte, e, contudo, havia algo no meu coração que</p><p>me sussurrava que ela era fatal. O desespero – como de nenhuma outra desgraça que jamais</p><p>salteou o ser humano – só o desespero me impeliu, após longa irresolução, a erguer das</p><p>pálpebras de meus olhos. Ergui-as.</p><p>Estava escuro, totalmente escuro. Senti que o ataque tinha passado. Senti que a minha</p><p>doença há muito desaparecera. Senti que me achava agora completamente, em pleno uso de</p><p>minhas faculdades visuais. E, contudo, estava escuro, totalmente escuro, daquela escuridão</p><p>intensa e extrema da noite que dura para sempre.</p><p>Tentei gritar, e meus lábios e minha língua seca moveram-se convulsivamente, em</p><p>comum tentativa, mas nenhuma voz saiu dos cavernosos pulmões, que, como oprimidos sob</p><p>o peso de esmagadora montanha, arfavam</p><p>e palpitavam com o coração a cada trabalhosa</p><p>e penosa respiração. O movimento das mandíbulas, no esforço de gritar bem, mostrava-me</p><p>que elas estavam amarradas, como se faz usualmente com os mortos. Senti também que</p><p>jazia sobre alguma coisa sólida e que a mesma coisa também me comprimia estreitamente</p><p>em ambos os lados. Até então eu não me atrevera a mover qualquer dos membros; mas</p><p>agora, violentamente, levantei os braços que tinham estado até então sobre o peito, com</p><p>as mãos cruzadas. Eles bateram de encontro a uma madeira sólida, que se estendia sobre</p><p>25</p><p>STORYTELLING</p><p>uma altura de não mais do que seis polegadas de meu rosto. Não podia mais duvidar de que</p><p>repousava dentro de um caixão.</p><p>Fonte: Poe (2009, p. 16).</p><p>Observação</p><p>Edgar Allan Poe (1809-1849) é considerado o mestre das obras de</p><p>horror e suspense. Escreveu inúmeros contos e foi, também, crítico literário.</p><p>Algo semelhante ocorreu com as histórias de lobisomens; atualmente, acreditamos que o mito</p><p>do lobisomem tenha surgido de doenças até então pouco explicadas, como a raiva, cujos sintomas</p><p>incluem salivação excessiva, espasmos musculares e confusão mental, que podem dar ao infectado um</p><p>aspecto animalesco.</p><p>Para ilustrar mais uma vez o poder das estórias, aproveitamos o gancho das doenças mentais para</p><p>tratar das chamadas “síndromes ligadas à cultura” (culture-bound syndromes ou CBS). A licantropia</p><p>clínica, por exemplo, é a condição em que o afetado acredita ser ou se transformar em um animal.</p><p>O nome “licantropia” provém da mitologia dos lobisomens, também chamados licantropos.</p><p>Em países como o Japão, a Coreia e a China, que têm como forte aspecto mitológico a figura da</p><p>raposa como espírito ou demônio, a depender da tradição, encontramos síndromes em que os afetados</p><p>acreditam estar possuídos pelo espírito de uma raposa. Muitas doenças de caráter psiquiátrico podem</p><p>manifestar delírios religiosos, como a crença de que o afetado foi escolhido como mensageiro, profeta</p><p>ou mártir, ou a interpretação de alucinações como mensagens divinas.</p><p>Gostaríamos de apontar, no entanto, que isso não quer dizer que os membros de qualquer</p><p>comunidade religiosa venham a desenvolver transtornos mentais. Essa forma de pensamento nos levaria</p><p>a conclusões equivocadas, particularmente porque algumas religiões trabalham, de modo direto, com</p><p>aspectos de comunicação com o divino, visões e possessão. O que buscamos demonstrar é que as estórias</p><p>que nos constituem são tão fortes, tão intrínsecas e tão enraizadas, que influenciam aspectos que</p><p>consideraríamos mais distantes do âmbito da cultura, como as patologias. As estórias que constituem</p><p>nosso repertório, sejam elas mais ou menos factuais, fornecem ensinamentos que moldam nossas visões</p><p>de mundo, nossas interpretações e nossa própria identidade.</p><p>A “descoberta” desse campo tão influente pelo marketing foi, como se pode imaginar, absolutamente</p><p>revolucionária. Para além dos produtos, do relacionamento com o cliente, dos preços e dos eventos,</p><p>entre outras possibilidades, a marca pode ter um diferencial ainda mais marcante: uma história. Tanto</p><p>Adilson Xavier quanto Fernando Palacios e Martha Terenzzo listam, em seus respectivos livros acerca</p><p>de storytelling, numerosos exemplos de marcas que se tornaram populares em função, ao menos em</p><p>parte, de suas histórias. Trataremos mais detalhadamente desses casos adiante; por ora, nos limitaremos</p><p>a escolher um exemplo que ilustre bem a influência das histórias.</p><p>26</p><p>Unidade I</p><p>Porque acreditamos ser talvez o mais imediatamente reconhecível, começaremos pelo caso da</p><p>Disney – ela é, afinal, uma empresa que claramente se sustenta no campo das estórias. A princípio, as</p><p>estórias da Disney giravam em torno do personagem de Mickey Mouse, ratinho simpático criado em</p><p>1928. Walt Disney o havia nomeado Mortimer, mas sua esposa, Lillian Bounds, achou o nome muito</p><p>formal e sugeriu o substituto Mickey.</p><p>Essa foi só a primeira das mudanças sofridas pelo personagem: em 1929, Mickey tem sua primeira</p><p>aparição com as luvas brancas que se tornarão parte essencial do personagem, e, em 1930, Mickey, um</p><p>personagem que inicialmente fumava e bebia, já havia se tornado mais apropriado para crianças.</p><p>Embora Mickey e seus companheiros, como Minnie e Pluto, tenham feito imenso sucesso,</p><p>particularmente nos Estados Unidos, e ainda hoje sejam elementos proeminentes da imagem da Disney,</p><p>eles não foram capazes de sustentar, sozinhos, o sucesso comercial da empresa. Como era de se esperar,</p><p>concorrentes pela posição da Disney como o mais bem reconhecido estúdio de animação não demoraram</p><p>a surgir, e o ratinho foi lentamente perdendo seu charme. Em resposta, a Disney lançou uma série de</p><p>filmes de sucesso, a maioria deles recontações de histórias tradicionais de contos de fadas (Branca de</p><p>neve, Cinderela e A bela adormecida, por exemplo) ou de livros consagrados (Peter Pan, Mogli, Dumbo,</p><p>Bambi e Alice no País das Maravilhas, por exemplo).</p><p>Figura 13 – A Rainha de Copas em ilustração original de Lewis Carroll, 1862-1864</p><p>27</p><p>STORYTELLING</p><p>Figura 14 – Alice em Alice no País das Maravilhas. Disney, 1951</p><p>Nos anos de 1970, a Disney começava a perder sua popularidade. Nos anos de 1980, a competição</p><p>se acirrava ainda mais com Don Bluth, ex-animador da Disney, saindo na frente com seu próprio estúdio</p><p>(para o qual ele levou 11 outros animadores da Disney) e concorrentes internacionais como o Studio</p><p>Ghibli de Hayao Miyazaki ganhando força.</p><p>É quando começa o período que costumamos chamar de Renascença da Disney. Esse período</p><p>inicia-se em 1989, com o lançamento de A pequena sereia, e termina em 1999, com o lançamento de</p><p>Tarzan. Durante 10 anos, a Disney produziu uma série de sucessos comerciais e de crítica, como Rei Leão,</p><p>Hércules, Mulan, A bela e a fera e Aladin.</p><p>Figura 15 – Cena de Mulan, filme da Disney, 1998</p><p>28</p><p>Unidade I</p><p>Saiba mais</p><p>Conheça também o filme de animação japonesa Nausicaä do Vale do</p><p>Vento, do escritor, diretor e ilustrador Hayao Miyazaki:</p><p>THAÍS. Nausicaä do Vale do Vento completa hoje 36 anos. O Megascópio,</p><p>11 mar. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3l89FUq. Acesso em: 11 mar. 2021.</p><p>Até hoje, mais de 20 anos após o fim do período de extremo sucesso da Disney, esses filmes e seus</p><p>personagens persistem no nosso imaginário. Mais do que isso, eles sobrevivem como parte integral da</p><p>imagem da Disney e sua história. Nos mundos da Disney, os personagens mais populares não são mais</p><p>Mickey Mouse e seus companheiros, mas as “princesas”. Encaixamos na categoria de princesa essencialmente</p><p>qualquer mulher que protagonize um filme da Disney, embora as princesas da Disney propriamente ditas</p><p>sejam aquelas dos contos de fadas. Ser ou não uma princesa no sentido estrito não carrega importância</p><p>alguma: as “princesas” são um elemento integral da imagem da Disney enquanto produtora.</p><p>Talvez pelo seu ramo de atuação, diretamente ligado ao storytelling, a Disney percebeu com alguma</p><p>rapidez que histórias também eram importantes no âmbito da própria marca. Ela investiu em uma imagem</p><p>baseada na fantasia e nos contos de fadas. Criou o que são essencialmente cidades dedicadas aos seus</p><p>universos ficcionais, como o Walt Disney World e as Disneylands, presentes em vários lugares do mundo.</p><p>Construiu histórias acerca de seu criador, Walt Disney, que o colocam em um patamar quase divino.</p><p>Aproveitaremos este momento para tocar brevemente nas questões de verdade, de ficção e de</p><p>verossimilhança. Primeiro, insistimos novamente que histórias não são fatos, mas versões e interpretações</p><p>de fatos, ocorridos ou imaginados. Mesmo a mais factual das histórias apresenta uma das versões</p><p>possíveis de “verdade”, ou seja, ela é ao menos parcialmente ficcional.</p><p>Observação</p><p>O jornalismo trabalha com fatos e tem forte compromisso com a</p><p>verdade. Mesmo assim, suas narrativas são construções desses fatos. O bom</p><p>jornalismo sempre apresenta a melhor versão possível do que ocorreu, após</p><p>a apuração com diversas fontes.</p><p>Como seres humanos, gostaríamos que existissem verdades universais,</p><p>imparciais e objetivas, no</p><p>mínimo porque nossa interpretação de mundo seria mais simples. No entanto, vários âmbitos de estudo,</p><p>como a linguística, as ciências sociais e a psicologia, indicam que essa é uma visão excessivamente</p><p>simplista. Muitas “verdades” diferentes podem ser constituídas a partir dos mesmos fatos.</p><p>O Walt Disney como figura pública é uma possível versão dos fatos de sua vida como pessoa – uma</p><p>das muitas possíveis verdades. É contado que Disney certa vez disse a um amigo: “Eu não sou o Walt</p><p>29</p><p>STORYTELLING</p><p>Disney. Eu faço várias coisas que o Walt Disney não faria. Walt Disney não fuma. Eu fumo. Walt Disney</p><p>não bebe. Eu bebo”. Ou seja, o próprio Disney tinha ciência de que sua imagem pública não estava ligada</p><p>diretamente aos fatos, à sua história em sua totalidade, mas, com base nos fatos, criava-se uma nova</p><p>história. O Walt Disney público não bebe, não fuma, não é uma pessoa difícil de lidar, como descreviam</p><p>seus funcionários, e não morre. Afinal, o Walt Disney “pessoa” morreu em 1966, mas o nome persiste,</p><p>sua imagem persiste. Isto é, a história persiste.</p><p>Trataremos da suposta oposição entre realidade e ficção em mais detalhes adiante, mas citamos a</p><p>história criada pela marca acerca da figura de Walt Disney como exemplo de sua proeza em storytelling.</p><p>Ciente de que histórias nos permitem escapar da realidade para universos de fantasia, ela construiu</p><p>universos de fantasia no mundo real. Até hoje, não é difícil encontrarmos pessoas com algum tipo de</p><p>vínculo emocional com a Disney enquanto marca, seja esse vínculo baseado em suas histórias mais</p><p>antigas, seja em histórias mais contemporâneas. Esse vínculo leva as pessoas a visitarem os parques, que,</p><p>por sua vez, oferecem suas próprias histórias e lembranças, aprofundando o vínculo. Tudo isso é feito</p><p>quase exclusivamente no âmbito do storytelling.</p><p>Adilson Xavier trata, na obra já citada, de mais detalhes acerca do caso da Disney e seu uso de</p><p>storytelling, de modo que não nos estenderemos mais nesse caso específico. Nosso objetivo em</p><p>descrever, de maneira breve, o processo da Disney é simplesmente o de demonstrar como histórias são</p><p>importantes na construção de uma marca, e, no mesmo sentido, como são influentes e marcantes em</p><p>relação ao público.</p><p>Fica evidente que a influência social, cultural e psicológica das histórias representa uma poderosa</p><p>ferramenta no campo do marketing, bem como em muitos outros. Mais adiante, exploraremos as</p><p>funções específicas do storytelling em diferentes áreas. Por ora, buscaremos compreender os elementos</p><p>e estruturas que compõem uma estória.</p><p>Por fim, temos que lembrar que, quando falamos no poder das estórias, vem à mente As mil e uma</p><p>noites, obra em que Xerazade dribla a morte ao contar, todas as noites, uma história para o rei persa.</p><p>Após descobrir que a mulher era infiel, o rei Xariar decidiu que, a cada noite, desposaria uma virgem,</p><p>que seria morta na manhã seguinte, para que ele não fosse mais traído. O vizir era quem levava as moças</p><p>ao sultão. Um dia, uma filha do vizir, Xerazade, pede ao pai para ser ela a nova esposa, pois tem um plano.</p><p>Depois do casamento, Xerazade pede ao marido para que sua irmã entre no quarto para que possam</p><p>se despedir. A partir de então, ela começa a contar uma história que é interrompida, em um momento</p><p>crucial, com o amanhecer. O rei, curioso para saber o final da estória, concede mais um dia de vida de</p><p>Xerazade e isso se repete por mil e uma noites.</p><p>Assim, a habilidade em contar histórias não só salvou de Xerazade como também acabou com a</p><p>matança das jovens do reino.</p><p>Temos, assim, o importante ponto referente à infinitude das estórias.</p><p>30</p><p>Unidade I</p><p>Observação</p><p>Alguém lhe contava estórias quando você era criança? Além das</p><p>estórias presentes nos livros, muitos familiares apelam à imaginação para</p><p>criar estórias para as crianças.</p><p>Leia, agora, o conto “A quinta história”, de Clarice Lispector.</p><p>A quinta história</p><p>Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”.</p><p>E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque</p><p>nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites</p><p>me dessem. A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma</p><p>senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes</p><p>iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de</p><p>dentro delas. Assim fiz. Morreram.</p><p>A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim:</p><p>queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o</p><p>assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas</p><p>eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na</p><p>hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então,</p><p>comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um</p><p>vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém</p><p>acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranquila. Mas se elas, como os males secretos,</p><p>dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu</p><p>aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam.</p><p>Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem</p><p>pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca.</p><p>Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia</p><p>fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava</p><p>subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no</p><p>varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a</p><p>cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em</p><p>nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.</p><p>A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara</p><p>de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo</p><p>e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva</p><p>de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus</p><p>pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam</p><p>31</p><p>STORYTELLING</p><p>endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um</p><p>gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a</p><p>primeira testemunha do alvorecer em Pompeia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia</p><p>no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e</p><p>elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias</p><p>da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto</p><p>de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras – subitamente assaltadas pelo</p><p>próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava!</p><p>– essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que,</p><p>usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de</p><p>antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente</p><p>por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para</p><p>dentro de mim! é que olhei demais para dentro de...” – de minha fria altura de gente olho</p><p>a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à</p><p>brisa. Da história anterior canta o galo.</p><p>A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de</p><p>baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho</p><p>para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á</p><p>uma população lenta e viva em</p><p>fila-indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? Como quem já não dorme</p><p>sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão?</p><p>no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau</p><p>prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que</p><p>seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre</p><p>dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do</p><p>sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de</p><p>virtude: “Esta casa foi dedetizada”.</p><p>A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa</p><p>assim: queixei-me de baratas.</p><p>Fonte: Lispector (1999, p. 74-76).</p><p>Repare que, no início, o texto menciona As mil e uma noites, indicando que as histórias poderiam se</p><p>desdobrar infinitamente. Perceba, também, que há uma moldura que sustenta as cinco histórias. Cada</p><p>uma, no entanto, segue um caminho.</p><p>A primeira é quase um relato banal, factual, que será repetido nas demais. As narrativas, de fato, são</p><p>desenvolvidas, nas três histórias subsequentes. Na segunda, intitulada “O assassinato”, surgem toques</p><p>de crueldade, com a satisfação perversa da narradora em matar: “meticulosa, ardente, eu aviava o elixir</p><p>da longa morte”. Aparece o prazer de matar cada barata, com um “medo excitado”, como se eliminam os</p><p>males secretos. Observa-se que o verbo “aviar” remete ao preparo medicinal ou ao ofício de uma bruxa.</p><p>Ocorre, então, uma inversão irônica do mal. As baratas, que representam “naturalmente” o sujo, o mal,</p><p>passam a ser vítimas da perversidade sádica da dona de casa que cuida da higiene do lar.</p><p>32</p><p>Unidade I</p><p>Os requintes de maldade permanecem na terceira e na quarta histórias.</p><p>Na terceira, intitulada “Estátuas”, há a contemplação do resultado do assassinato, com os corpos</p><p>espalhados pela área de serviço, cada qual em uma posição, mas todos petrificados pela massa branca. Na</p><p>quarta, sem título, inicia-se a nova era, com a opção da narradora pela dedetização ante a possibilidade</p><p>do retorno infinito das baratas e do ritual de morte. Deve haver a escolha entre o “eu” e “a minha alma”,</p><p>entre a maldade instintiva e a vida construída na civilização. A narradora, na segunda história, havia se</p><p>referido ao seu “próprio mal secreto”, que a guiava no preparo da receita. A dedetização coloca a “placa</p><p>de virtude” porque suaviza os instintos cruéis.</p><p>A quinta narrativa apresenta um título estranho ao restante do conto, “Leibnitz e a transcendência</p><p>do amor na Polinésia”, e não chega a ser desenvolvida. O contraste entre o título e o início da história</p><p>soa irônico, uma vez que não parece haver relação entre eles.</p><p>Com esse exemplo, mostramos que, com o mesmo fato, ou com o mesmo mote, podemos desenvolver</p><p>inúmeras narrativas distintas.</p><p>Além disso, vemos que um episódio banal, como o fato de matar baratas, pode render várias estórias.</p><p>Exemplo de aplicação</p><p>Observe os quadrinhos da figura a seguir. Veja que as histórias/estórias que lemos mudam nosso</p><p>modo de ver o mundo, e isso, muitas vezes, exige de nós mais reflexão, mais esforço.</p><p>Figura 16 – Calvin e os livros</p><p>Reflita sobre a relação entre a leitura e a formação de uma pessoa.</p><p>33</p><p>STORYTELLING</p><p>3 ESTRUTURAS NARRATIVAS</p><p>3.1 Estrutura narrativa do mito</p><p>No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.</p><p>Ele estava no princípio com Deus.</p><p>Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez.</p><p>Nele, estava a vida, e a vida era a luz dos homens.</p><p>E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.</p><p>(João 1:1-5)</p><p>Toda cultura está intimamente ligada às suas narrativas mitológicas. Todo mito, afinal, é recheado de</p><p>simbolismos que se intercomunicam com a história de um povo. A Guerra de Troia é um fato histórico</p><p>que foi “mitificado”; o Egito, que nos seus períodos antigo e clássico dependia majoritariamente do rio</p><p>para sua prosperidade, tem vários mitos que cercam o Nilo; no Japão, em que por muito tempo foi usado</p><p>óleo de peixe para acender lanternas, existem mitos acerca de demônios na forma de gatos que ficam</p><p>em pé em duas patas, como os gatos fariam para alcançar as lanternas que cheiravam a peixe. Em outras</p><p>palavras, os exemplos são muitos e diversos.</p><p>A palavra mito provém do grego mythós, significando discurso, mensagem, palavra, narrativa ou</p><p>relato. O mito, verdade seja dita, é tudo isso. Mas gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que o</p><p>mito está etimologicamente ligado à linguagem: sem palavra, sem discurso, sem narrativa, não há mito.</p><p>Daí termos escolhido, como epígrafe desta seção, o mito de criação bíblico em que “no princípio era o</p><p>Verbo” (João 1:1).</p><p>As narrativas mitológicas têm mais consciência de si do que poderíamos imaginar: não é raro que</p><p>um mito de origem se refira à origem do próprio mito, por exemplo. Da mesma forma, as narrativas</p><p>mitológicas têm consciência de que dependem da palavra, da linguagem, da capacidade de comunicação</p><p>humana. Em outros termos, o mito é um conceito que só pode existir dentro de uma sociedade, um</p><p>povo, uma cultura.</p><p>Seres humanos são, como já salientamos, seres narrativos. Precisamos de histórias porque precisamos</p><p>de sentido – porque precisamos compreender o mundo de alguma forma. O mito existe para suprir</p><p>aquele doloroso vazio existencial na psique humana: a nossa incapacidade de conhecer tudo. Aquilo que</p><p>não entendemos precisa, ainda assim, ser explicado, para que tenhamos paz. O não saber é uma tortura</p><p>para o ser humano e, coincidentemente ou não, é também aquilo que nos move. O desconhecimento,</p><p>afinal, cria o mito, o simbolismo e a própria ciência.</p><p>Não à toa, vários de nossos mitos conhecidos, nas mais diversas culturas, tratam de aspectos como a</p><p>criação da espécie humana, da Terra e do Universo. Em geral, são o que chamamos de “mitos de criação”</p><p>ou “mitos de origem”.</p><p>34</p><p>Unidade I</p><p>Observe, por exemplo, a narrativa a seguir, extraída do livro Nascimentos, do historiador uruguaio</p><p>Eduardo Galeano. Nessa obra, ele aborda aspectos da América pré-colombiana e o processo dominador</p><p>da colonização.</p><p>O fogo</p><p>As noites eram de gelo e os deuses tinham levado o fogo embora. O frio cortava a carne</p><p>e as palavras dos homens. Eles suplicavam, tiritando, com a voz quebrada; e os deuses se</p><p>faziam de surdos.</p><p>Uma vez lhes devolveram o fogo. Os homens dançaram de alegria e alçaram cânticos</p><p>de gratidão. Mas de repente os deuses enviaram chuva e granizo e apagaram as fogueiras.</p><p>Os deuses falaram e exigiram: para merecer o fogo, os homens deveriam abrir peitos</p><p>com um punhal de pedra e entregar corações.</p><p>Os índios quichés ofereceram o sangue de seus prisioneiros e se salvaram do frio. Os</p><p>cakchiqueles não aceitaram o preço.</p><p>Os cakchiqueles, primos dos quichés e também herdeiros dos maias, deslizaram</p><p>com pés de pluma através da fumaça e roubaram o fogo e o esconderam nas covas de</p><p>suas montanhas.</p><p>Fonte: Galeano (2010, p. 22).</p><p>Veja que se trata de uma explicação mitológica para o domínio do fogo pelos homens. Outros povos</p><p>também criaram explicações para esse fenômeno. Na Grécia antiga, por exemplo, contava-se que o titã</p><p>Prometeu havia roubado o fogo de Zeus para dar aos mortais. Por essa ação, ele foi condenado a um</p><p>castigo horrível: foi acorrentado a um rochedo, e uma ave todos os dias devorava seu fígado, que se</p><p>regenerava à noite. Foi salvo muitos anos depois.</p><p>Leia um trecho da tragédia Prometeu acorrentado, elaborada por Ésquilo. Trata-se de uma peça teatral.</p><p>O poder</p><p>Eis-nos chegados aos confins da terra, à longínqua região da Cítia, solitária e inacessível!</p><p>Cumpre-te agora, ó Vulcano, pensar nas ordens que recebeste de teu pai, e acorrentar este</p><p>malfeitor, com indestrutíveis cadeias de aço, a estas rochas escarpadas. Ele roubou o fogo</p><p>– teu atributo, precioso fator das criações do gênio –, para transmiti-lo aos mortais! Terá,</p><p>pois, que expiar este crime perante os deuses, para que aprenda a respeitar a postetade de</p><p>Júpiter, e a renunciar a seu amor pela Humanidade.</p><p>Fonte: Ésquilo (2005, p. 5).</p><p>35</p><p>STORYTELLING</p><p>Repare que as duas narrativas, produzidas em épocas e em locais bem distintos, associam o domínio</p><p>do fogo ao ato de alguém tê-lo roubado dos deuses para doá-lo aos homens.</p><p>Em seu livro Antropologia estrutural, Claude Lévi-Strauss diz, acerca do mito, o que se reproduz</p><p>a seguir.</p><p>É melhor reconhecermos que o estudo dos mitos nos leva a constatações</p><p>contraditórias. Tudo pode acontecer num mito. A sucessão dos eventos não</p><p>parece estar aí submetida a nenhuma regra de lógica ou de continuidade,</p><p>qualquer sujeito pode possuir qualquer predicado, qualquer relação</p><p>concebível é possível. Contudo, os mitos, aparentemente arbitrários, se</p><p>reproduzem com as mesmas características e, muitas vezes, os mesmos</p><p>detalhes, em diversas regiões do mundo. Daí a questão: se o conteúdo do</p><p>mito é inteiramente contingente, como explicar que, de um extremo a outro</p><p>da terra, os mitos se pareçam tanto? […] Aproximar o mito da linguagem não</p><p>resolve nada: o mito faz parte da língua, é pela palavra que o conhecemos, ele</p><p>pertence ao discurso. Se quisermos dar conta das características específicas</p><p>do pensamento mítico, devemos, portanto, estabelecer que o mito está ao</p><p>mesmo tempo na linguagem e além dela (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 223-224).</p><p>Buscaremos aqui esclarecer alguns pontos da declaração de Lévi-Strauss. Precisamos estabelecer</p><p>que a linguagem, como a mitologia, é aparentemente arbitrária. Não há nada acerca dos sons da</p><p>palavra “mesa” que os conecte logicamente à mesa como objeto, por exemplo. Prova disso é que,</p><p>embora línguas geográfica, etimológica e culturalmente próximas ao português, como o espanhol,</p><p>usem sons semelhantes, isso está longe de ser verdade para todas as línguas do mundo. Existem</p><p>algumas semelhanças, por vezes, entre línguas muito diferentes, embora elas sejam menos consistentes</p><p>do que as semelhanças entre mitos, mas, de maneira geral, a língua é um sistema de signos arbitrários</p><p>que usamos para designar certas coisas.</p><p>E é por ser arbitrária e, principalmente, por ser essencial à comunicação humana, que a linguagem</p><p>nunca é neutra. Não existe “ponto morto” na linguagem, porque ela é toda feita de simbolismos, e</p><p>símbolos são necessariamente culturais.</p><p>As linguagens, em particular as linguagens verbais, são tão integralmente ligadas à nossa cultura que</p><p>se tornam quase indissociáveis de nossa psique. Pensamos em linguagem, imaginamos em linguagem</p><p>e sentimos em linguagem. Você já pegou raiva de um nome por causa de uma pessoa específica, por</p><p>exemplo? Já parou para pensar em como xingamentos são diferentes em diferentes línguas? Já percebeu</p><p>como, na tradução de obras em outras línguas, nomes são frequentemente mudados para evitar más</p><p>associações na língua-alvo?</p><p>As linguagens estão sujeitas aos aspectos sociais, culturais e psíquicos. Prova disso é que as línguas</p><p>mudam de acordo com o tempo, o espaço e o grupo: fossem as línguas formadas de elementos factuais,</p><p>era de se esperar que a variação fosse mínima, e, no entanto, observamos o contrário. Nenhuma</p><p>36</p><p>Unidade I</p><p>linguagem pode, portanto, ser neutra. E, se é pela linguagem que acessamos o mito, ele tampouco pode</p><p>ser neutro. Como diz Lévi-Strauss, o mito existe no campo do discurso, é parte da língua.</p><p>Mas por que, então, diz o autor que o mito está também além da linguagem? Ora, se a linguagem</p><p>se cria, varia e se adapta de acordo com elementos sociais, culturais, temporais e geográficos, o mesmo</p><p>pode ser dito do mito. E, sendo os simbolismos dos mitos integralmente ligados à sua cultura de origem,</p><p>esses mesmos simbolismos terão efeito na linguagem, que por sua vez terá efeito no mito, e assim por</p><p>diante. Linguagem e mito estão intrinsecamente ligados em um processo cíclico de formação cultural.</p><p>Além disso, Lévi-Strauss também observa que a linguagem exibe comportamentos e especificidades</p><p>no âmbito narrativo do mito. Embora o autor destaque, para os fins de seu trabalho, os aspectos</p><p>linguísticos específicos das narrativas mitológicas, gostaríamos de pontuar que esse fenômeno ocorre</p><p>em todo e qualquer campo discursivo; isto é, todo ambiente discursivo particular, como a esfera jurídica,</p><p>médica, jornalística ou publicitária, entre muitas outras, apresenta certas estruturas e particularidades</p><p>linguísticas próprias. Apresentaremos, posteriormente, por exemplo, uma das estruturas típicas de</p><p>narrativas ficcionais na forma da jornada do herói. A razão pela qual somos capazes de desenvolver</p><p>essa estrutura é que existem elementos discursivos comuns ao campo das narrativas ficcionais,</p><p>particularmente as narrativas de fantasia.</p><p>Lévi-Strauss também apresenta, baseado no que acabamos de discutir, “lições provisórias” acerca do</p><p>mito, apresentadas a seguir.</p><p>• Se os mitos têm um sentido, ele não pode decorrer dos elementos isolados que entram em sua</p><p>composição, mas na maneira como esses elementos estão combinados.</p><p>• O mito pertence à ordem da linguagem, faz parte dela; entretanto, a linguagem, tal como é</p><p>utilizada no mito, exibe propriedades específicas.</p><p>• Tais propriedades só podem ser buscadas acima do nível habitual da expressão linguística; em</p><p>outras palavras, elas são de natureza mais complexa do que encontramos em uma expressão</p><p>linguística de um tipo qualquer.</p><p>Se forem aceitos esses três pontos, ainda que como hipóteses de trabalho, decorrem deles duas</p><p>consequências muito importantes (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 226):</p><p>• como todo ser linguístico, o mito é formado por unidades constitutivas;</p><p>• essas unidades constitutivas implicam a presença de todas aquelas que intervêm normalmente na</p><p>estrutura da língua, a saber, os fonemas, os morfemas e os semantemas.</p><p>Cada forma difere da que a precede por um grau mais alto de complexidade. Por essa razão,</p><p>chamaremos os elementos que são próprios do mito (e que são os mais complexos de todos) de grandes</p><p>unidades constitutivas (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 226).</p><p>37</p><p>STORYTELLING</p><p>Ao tratarmos das estruturas da narrativa segundo Aristóteles, mencionamos sua premissa de que</p><p>uma história se constitui de partes indissociáveis do todo e de um todo indissociável de suas partes.</p><p>A ponderação de Lévi-Strauss de que o sentido do mito não pode decorrer das partes isoladas de sua</p><p>composição, mas da relação entre essas partes segue um caminho semelhante, em que a interligação</p><p>entre os elementos é mais importante do que os elementos em si.</p><p>Coincidentemente ou não, nossas línguas também se estruturam da mesma forma. Fonemas,</p><p>morfemas e semantemas são as unidades constitutivas de uma língua e, no entanto, não nos é</p><p>possível, salvo como exercício acadêmico, separá-los de seu todo. Não à toa, a fonologia, a morfologia</p><p>e a sematologia fazem parte do guarda-chuva teórico da linguística. E há, ainda, outro elemento:</p><p>a sintaxe, que se refere às possíveis relações entre palavras. Isto é, há um reconhecimento parcial</p><p>ou total de que o estudo linguístico precisa passar não só pelas partes, mas pela relação entre elas.</p><p>Lévi-Strauss propõe o mesmo para o mito.</p><p>3.1.1 Jornada do herói</p><p>Na tradição grega clássica, os heróis têm linhagens divinas. Vejamos os exemplos a seguir.</p><p>• Odisseu é um entre muitos bisnetos de Zeus;</p><p>• Héracles (ou Hércules) é um famoso herói grego, filho de Zeus;</p><p>• Aquiles é filho de Tétis, uma das nereidas (ninfas filhas de Nereu, antigo deus marinho associado</p><p>ao mar Egeu);</p><p>• Peleu é outro dos descendentes de Zeus;</p><p>• Helena, também conhecida como Helena de Troia, é filha de Zeus.</p><p>Vemos que heróis são semideuses, ao mesmo tempo humanos e sobre-humanos, mortais e imortais,</p><p>profanos e divinos.</p><p>Afinal, que mortal comum poderia interessar tanto aos deuses, ou sobreviver à sua ira? É preciso que</p><p>se seja um semideus, como Héracles, para sobreviver aos monstros lendários, como a Hidra de Lerna, o</p><p>Touro de Creta, o Leão de Nemeia; ou, no caso de Odisseu, o ciclope Polifemo, sobreviver</p>