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Sumário
Capa
Folha de rosto
Introdução
I. Identidade epistemológica deste volume
II. Destinatários desta obra
III. Estrutura do volume atual
Capítulo I - NIILISMO: PATHOS DOMINANTE DA CULTURA MODERNA
I. Esclarecimento semântico
II. Atual pathos niilista e sua incidência social
III. Scholia
Capítulo II - A QUESTÃO DA VERDADE: PREMISSA PARA A QUESTÃO DO SENTIDO
I. Fundamento do sentido: a verdade e o ser
II. Do alfa ao ômega e vice-versa
III. O sentido: não inventado, mas descoberto e interiorizado
IV. Niilismo como posição intelectual e sua refutação
V. Scholia
Capítulo III/1 - DESEJO DE SENTIDO: PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICO-FILOSÓFICA
I. Desejo de sentido e de sentido último: natural no ser humano
II. Estrutura e dinâmica do desejo natural
III. Desejo de infinito: seu fundamento
Resumo conclusivo em forma de teses
IV. Desejo de sentido: constante de todo ser, quer físico, quer metafísico
V. Scholia
Capítulo III/2 - DESEJO DE SENTIDO NO CONTEXTO DA MODERNIDADE
I. Desejo de sentido: ob-jetivo, não pro-jetivo
II. Desejo de sentido último: desejo confuso de deus
Iii. Sistema de respostas para a questão do sentido
IV. Scholia
Capítulo IV - SABEDORIA: SABER DO SENTIDO SUPREMO
I. Sabedoria: sua natureza e implicações
II. Três vias para a descoberta do sentido
III. Scholia
Capítulo V - FELICIDADE: A “FACE RIDENTE” DO SENTIDO
I. Felicidade: que é e em que consiste
II. Representações da felicidade
III. Sentido da vida: busca da felicidade ou do sumo Bem?
IV. A felicidade possível nesta vida
V. A ultima felicitas: a parusia do sentido
VI. Salvação: nome para sentido e felicidade
VII. Scholia
Capítulo VI - SENTIDO DO UNIVERSO: O SUPRASSENTIDO
I. A problemática do porquê do mundo
II. Homem: sentido (imediato) do mundo
III. Deus: sentido (final) do mundo
IV. Cristo: sentido (sobrenatural) do mundo
V. Scholia
Capítulo VII - DEUS: SENTIDO DA EXISTÊNCIA
I. Deus é o sentido: prova geral e confirmações
II. Religião: mediação de sentido
III. Scholia
Capítulo VIII - CRISTO: SENTIDO REVELADO
I. Cristo-sentido: perspectiva da fé
II. Textos neotestamentários conotando cristo-sentido
III. Identificação racional de cristo com o sentido
IV. Maria: ícone feminino do sentido
V. Scholia
Conclusões do volume
Ficha catalográfica
Introdução
No volume I de nossa trilogia, �zemos a análise e a crítica da
problemática atual do sentido.1 Foi uma parte prevalentemente negativa.
Com este volume, entramos na parte mais positiva: onde está efetivamente
o sentido. Se o primeiro volume se quis sobretudo analítico, o presente terá
um forte teor especulativo, no melhor sentido do termo, exigindo, por isso,
maior esforço intelectual. Mais tarde, no volume III, abordaremos a parte
prática da questão em foco: como viver (pessoalmente) e fazer viver
(pastoral, pedagógica e sociopoliticamente) o sentido da vida.
I. IDENTIDADE EPISTEMOLÓGICA DESTE VOLUME
A presente obra tem um talho fortemente re�exivo ou �losofante. É que
a questão do sentido, por ser existencialmente determinante e tocar todas
as dimensões da vida, pede um pensar fundamental e globalizante. Ora,
um pensar assim só pode ser um pensar originário, como se quer toda boa
�loso�a. Pois como pensar o �m (telos), que confere sentido, sem pensar o
princípio (arché), que dá base ao sentido?
Mas como, por outro lado, resolver a questão do princípio e do �m sem
levantar a questão do transcendente, de que Deus é uma das �guras
decisivas? Mas pensar Deus é fazer teologia, na acepção simples e mesmo
etimológica de “discurso sobre Deus” (theo-loghia = sermo de divinitate).
Portanto, o estatuto epistemológico de nosso trabalho é de tipo �losó�co-
teológico. É, grosso modo, �losó�co como questão e teológico como
resposta. E é teológico também por tratar inclusive do Deus da fé ou da
revelação. Se quisermos, porém, situar nossa obra no quadro geral das
disciplinas teológicas, seu lugar mais adequado seria o da “teologia
fundamental”, pois, como consta dessa disciplina, nosso trabalho parte da
problemática humana da busca de sentido, dissolve criticamente os falsos
caminhos propostos e desenvolve teoricamente as aberturas racionais à
proposta da fé.
Não que se trate aqui de resolver de uma vez por todas a questão do
sentido, como quem “mata uma charada”, como parece pensar
Wittgenstein. De fato, no �nal de seu Tractatus, a�rma que o “problema da
vida”, para quem o “resolveu”, “desaparece”. Sumiria de tal modo que
aquele para quem “o sentido da vida tornou-se claro” já não saberia “dizer
em que consiste esse sentido”.2 Para nós, ao contrário, a questão do sentido,
por sua importância e extensão existenciais, é recorrente. Conquanto
alguém pretenda ter encontrado o sentido da vida, essa questão não deixa
de se repor sempre, mormente nas provações, pedindo, quer a renovação
da resposta uma vez dada, quer mesmo uma nova resposta.
Também não é verdade que quem resolveu a questão do sentido não
sabe dizer em que consiste esse sentido. Certo, pode não saber dizê-lo e
justi�cá-lo por lhe faltar formação cultural, como sucede com a maioria
dos crentes. Mas que o sentido possa ser descoberto e dito
conceitualmente, é isso o que as grandes concepções do mundo, religiosas,
�losó�cas e mesmo ideológicas, sempre �zeram. No que tange ao
cristianismo, proclama-se alto e bom som que o sentido de tudo é, em
absoluto, Cristo. É o que, no fundo, recomenda Pedro ao escrever: “Estai
sempre prontos para, em vossa defesa (prós apologian), responder a quem
vos pede a razão (lógon) da esperança que está em vós” (1Pd 3,15).
II. DESTINATÁRIOS DESTA OBRA
Obviamente, a discussão teórica acerca da problemática do sentido não
interessa imediata e diretamente o povo em geral, que não tem tempo nem
condições para tanto, mas, sim, as classes educadas e nessas a
intelectualidade e os jovens. Tais são, em verdade, os parceiros do diálogo
nessa obra. Cristo mesmo, se por um lado preferiu dirigir sua palavra aos
pequenos e oprimidos (cf. Lc 4,18; 7,22), por outro não desdenhou o
diálogo com os “doutores” de Israel, como Nicodemos (cf. Jo 3,1-21), e
outros chefes, especialmente nos últimos dias de seu ministério em
Jerusalém (cf. Mt 19-23). O mesmo fez Paulo em relação aos �lósofos de
Atenas (cf. At 17,16-34). Declara, de resto, no início da epístola aos
Romanos: “Sou devedor a gregos e a bárbaros, a sábios e a ignorantes” (Rm
1,14).
Ademais, os grandes pensadores cristãos nunca se furtaram ao confronto
com a elite cultural do tempo, e isso desde os primeiros apologistas
cristãos, como Justino, Taciano, Orígenes e Tertuliano, passando por
Agostinho, Tomás, Pascal e Schleiermacher, até nossos dias, como se vê na
pessoa do Papa Ratzinger. Por isso mesmo, nosso escrito não está isento de
certa intenção apologética, na acepção primeira de defesa e exaltação da
fé, o que implica inevitavelmente uma ponta polêmica contra seus
oponentes.
Quanto às pessoas piedosas mais simples – e são a grande maioria –, a
discussão acerca do niilismo pouco lhes diz respeito, mesmo se seus efeitos
nefastos não deixam de atingi-las. Elas têm em geral a tranquila convicção
de possuírem pela fé a chave que lhes dá acesso ao “livro do destino”,
selado com sete selos (cf. Ap 5). De fato, não escolheu Deus “os
pequeninos” como con�dentes de seus segredos, à exclusão dos “sábios e
entendidos” (cf. Mt 11,25-26; 1Cor 1,26-29)? Toda a história da fé o atesta,
e o con�rmam também os próprios grandes Doutores, como Agostinho e
Tomás, ao se referirem à piedosa “velhinha” (vétula) ou à “avozinha”
(anicula) cristã, que sabe mais do mistério do mundo do que o maior
pensador privado de fé.3
Em verdade, uma coisa é saber vivencialmente o sentido, como se dá
com a maioria dos crentes, e outra é sabê-lo teórica e articuladamente, o
que não é de todos, mas dos que são chamados e têm as condições para
isso. Existe efetivamente um “abismo conceitual” entre a questão do
sentido e sua resposta articulada. Para vencer tal abismo, a razão não pode
fazê-lo por um salto, mas como por uma ponte. E essa precisa ser
construída através de um trabalho lento, bem arquitetadono seu
todo e, por outras, quando se trata de ler e entender o “texto do mundo”
em seu conjunto, a hermenêutica existencial espontânea toma a forma que
a tradição chamou de “sabedoria”. Com efeito, esta é, por excelência, a
“ciência do sentido da vida”, tomando-se cada termo dessa expressão,
“ciência”, “sentido” e “vida”, em seu sentido eminente. Mas disso
trataremos mais adiante, no capítulo IV.
Como esse excurso deixa entrever, a questão (existencial) do sentido,
que acabamos de ver, pressupõe a questão (metafísica) do ser, quando não
coincide com ela. Mas isso veremos melhor no próximo capítulo.
7. Correntes psicológicas: posições contrastantes frente à
questão do sentido
Perguntar pelo sentido é perguntar pela saúde da vida, saúde existencial
e frequentemente também psicológica. Freud estava convencido do
contrário: “Quando começamos a nos questionar sobre o sentido da vida e
da morte, é que estamos doentes, pois tudo isso não existe de maneira
objetiva”.49 E argumentava: a vida, em si, não tem sentido algum; ela só tem
o sentido que lhe damos. Essa posição é coerente com o ateísmo do pai da
psicanálise, ateísmo, de resto, convencional em seu tempo. Efetivamente,
se Deus não passa de uma neurose infantil, a vida é entregue à exclusiva
disposição de cada um. Há, contudo, outros psicólogos, grandes também,
que não pensam assim.
De fato, ao contrário de Freud, C. G. Jung julga a religião como fonte de
saúde.50 Ele constatou que o problema psicológico de todos os seus
pacientes que tinham passado a metade de vida (35 anos) estava, sem
exceção, ligado à questão da religião, de modo que nenhum deles se curou
sem ter recuperado a dimensão religiosa da existência.51 O pai da
tiefpsychologie confessa: “Mais ou menos um terço dos meus pacientes não
estão afetados por neurose clínica de�nível, mas sofrem do fato de estarem
suas vidas desprovidas de sentido e de conteúdo”.52 Era sua convicção de
que “cada um adoece porque perdeu o que as religiões vivas sempre
ofereceram a seus �éis: um sentido de vida”.53 As neuroses seriam
simplesmente “sofrimentos de uma alma que não encontrou seu sentido de
vida”.54 Para Jung, não bastaria, pois, conscientizar-se das próprias neuroses
para superá-las, como pensava Freud. Precisaria ainda saber que as
“potências do mundo subterrâneo”, geradores de sofrimento psíquico, só
podem ser vencidas com a “ajuda espiritual que as religiões asseguram”, ou
seja, “com uma verdade sobre-humana, revelada”.55
Outro discípulo de Freud, Alfred Adler (+1937), também critica a teoria
do mestre, dizendo-a “destituída de objetivo e orientação”, e isso
principalmente por sua posição ateia de base. Diversamente de Freud,
Adler considerava a �gura de Deus na psicologia individual como “a mais
esplêndida manifestação do objetivo da perfeição”. Para ele, Deus, por
designar o ser perfeito, in�nito, bom e justo, é a encarnação da ideia de
grandeza e perfeição, podendo, por isso, potenciar ao extremo o impulso
humano para a perfeição.56
Já a terceira “escola vienense de psicoterapia”, depois das de Freud e
Adler, fundada por Victor Frankl, pôs em seu centro a ideia de sentido.57
Daí seu nome “logoterapia”. Ela visa a uma “vida cheia de sentido”.58 Essa
linha terapêutica parte da constatação de que a falta de sentido é hoje uma
“neurose de massas”. Seria mais precisamente a “neurose noogênica”,
matriz de muitas outras. As três vias de sentido propostas por Frankl são:
relações de amor (homo sensiens), atividades criativas (homo faber) e
reelaboração do sofrimento (homo patiens). Para ele, o sentido a que essas
três vias conduzem só pode ser concreto e delimitado, como são concretas
e limitadas as situações patológicas a que responde. Isso, contudo, não
impede que tal sentido se abra para um sentido maior, um sentido
abrangente e último, que Frankl chama de “metassentido” ou
“suprassentido”, campo próprio das religiões. Assim, se o sentido particular
é como o sentido da cena de um �lme, o “metassentido” seria o sentido do
�lme inteiro.
O freudiano J. Lacan, considerando que só a religião lida com a ideia de
Deus, �gura tida até a modernidade como a chave da questão do sentido,
chegara à conclusão de que a questão do sentido é uma questão
essencialmente religiosa. De encontro, porém, ao seu mestre Freud, que,
no Futuro de uma ilusão (1927), sustentara que a religião é uma ilusão sem
futuro, porque a ciência, com suas luzes, iria desvanecê-la, Lacan julga que
a religião, sem deixar de ser ilusão, tem futuro e um futuro mais
consistente que a própria psicanálise e sua pretendida cienti�cidade, pois,
quanto mais a ciência for mostrando a face problemática da realidade,
agravando o “mal-estar na civilização” (título de outro livro de Freud, de
1930), tanto mais as pessoas iriam recorrer à ilusão religiosa para suportar
tal situação.59
Digamos, de passagem, que uma teoria assim, que tem a vida como tal
por contraditória, irracional e absurda, só pode levar a uma postura niilista,
e disso tem consciência Lacan et consimiles. Mas a teoria que sustenta o
absurdo da vida não é ela mesma absurda, por antinatural e contraditória?
Se é assim, então a ideia da “projeção” volta-se aqui contra seus criadores:
“projeção do desejo” (desejo de Deus e, portanto, de sentido) não seria a
religião, mas, antes, a psicanálise (enquanto deseja o ateísmo e projeta o
niilismo). Nesse caso, não se deveria levantar uma suspeita radical, que é a
de ser o ateísmo uma postura humanamente irracional e, por conseguinte,
falsa?
Esclareçamos, �nalmente, que a psicologia, de qualquer tendência que
seja, só pode abordar a “questão Deus” do ponto de vista puramente
funcional, isto é, Deus como uma função do psiquismo, função que,
dependendo da linha psicológica, pode servir ou não para �ns
terapêuticos. Agora, que Deus exista realmente, devendo ser buscado e
amado por si mesmo, isso é uma questão que foge efetivamente à
perspectiva psicológica, ou que, pelo menos, só pode nela �car
pressuposta. Tal era, de resto, a posição de Jung, e nisso ele tinha toda
razão.
8. O modo feminino de pôr e resolver a questão do sentido
A relação da mulher com o mundo não é certamente a mesma que a do
homem. Por isso, uma coisa é perguntar pelo sentido ao modo do varão, e
outra, ao modo da mulher. Ora, o modo de pôr a pergunta do sentido
condiciona de antemão sua resposta, como fazia observar Wittgenstein ao
dizer mais em geral: “Diga-me o que você pergunta e eu lhe direi a resposta
que você espera”.60
Quanto à mulher, é inegável que ela possui uma a�nidade especial com
a vida e seu valor, com a dignidade e a sacralidade das coisas,
especialmente as da esfera do numinoso. A razão é que o “princípio
feminino”, que nela se encarna e aí resplende, privilegia os mistérios sobre
os negócios, a sapiência sobre a ciência, a inteligência intuitiva sobre a
razão lógica. Ademais, o feminino representa a dimensão de esperança nos
projetos, de graça nas lutas, de acolhida nas conquistas, en�m, de
signi�cado nos fatos.
Por estar mais conectada com a estrutura natural da vida e da existência
em geral, o modo feminino de pôr e resolver a questão do sentido se
mostra mais próximo ao da tradição clássica e, por isso mesmo, mais crítico
à cultura moderna e ao seu racionalismo. Daí por que um feminismo, que,
por ressentimento, mimetize o padrão masculino, longe de abrir o mundo
para o sentido, acaba afundando-o ainda mais na violência e no niilismo.
Bastem aqui essas indicações sumárias. Deixemos que um tema assim
tão delicado �que para ser desenvolvido por outros sujeitos. De nossa
parte, nos contentamos aqui em mostrar concretamente o “rosto feminino
do sentido” quando tratarmos da “bendita entre todas as mulheres”:
Maria.61
II
CAPÍTULO
A questão da verdade: premissa para a
questão do sentido
O presente capítulo, assim como parte do próximo, consistirá numa
abordagem essencialmente �losó�ca da questão do sentido. Ora, desse
ponto de vista, o sentido pode ser tomado em duas perspectivas. A
primeira é subjetiva e entende sentido como intençãoou propósito de vida.
É o sentido-para-mim. Aqui estamos no plano antropológico-existencial
ou, simplesmente, humano. Nesse caso, a questão do sentido (subjetivo)
pressupõe a questão metafísica.
A segunda perspectiva é objetiva e toma o sentido como �nalidade ou
alvo. Situamo-nos aqui no plano do ser, seja esse cosmológico (do ser físico,
enquanto visa a um �m e tem, pois, um sentido), seja ontológico (do ser
metafísico, enquanto contém transcendentalmente a razão de �nalidade e
de sentido). É o sentido-em-si. Essa última perspectiva é radical e funda a
primeira. Pois o que importa na vida não é ter um “sentido qualquer”, mas
ter o “sentido certo”. Nesse caso, a questão do sentido (objetivo) não
pressupõe a metafísica, como no primeiro caso, mas já tem em si mesma
um caráter metafísico, além de físico-cosmológico, como veremos.
Nesse capítulo tomaremos o sentido do ponto de vista subjetivo, isto é,
como questão humana, e mostraremos como a questão existencial do
sentido pressupõe a questão metafísica do ser. Deixaremos para o próximo
capítulo (cap. III/1) abordar o sentido do ponto de vista objetivo, para
então mostrar, ainda que de modo extremamente sintético, que a busca de
sentido, por ser uma constante de todo ser, já é, por si mesma, uma
questão metafísica.
I. FUNDAMENTO DO SENTIDO: A VERDADE E O SER
1. Questão da verdade: anterior à questão do sentido
Seria a questão do sentido a questão mais radical? Em relação a nós, sim,
pois é a questão que mais nos angustia e por cuja resposta mais ansiamos.
Mas, tomada em si mesma, não é a questão mais radical. Pois, se é certo
que a questão do sentido diz respeito ao �m, que é sempre um bem ou
valor, o que importa é saber se aquele �m, bem ou valor é verdadeiro.
Portanto, por trás da questão do sentido, está a questão da verdade. O
verum está na base do bonum. O ser humano só pode buscar o bem
verdadeiro, nem que seja apenas em aparência, assim como o Espírito das
trevas só pode seduzir trans�gurando-se em “anjo de luz” (2Cor 11,14).
Portanto, encontrar um sentido qualquer para a vida não é tudo nem o
principal. De resto, não há quem não dê um sentido qualquer à sua vida,
tenha consciência disso ou não. A questão decisiva é saber se o sentido que
se dá à vida é verdadeiro e, por conseguinte, se é sólido, consistente, se
segura a vida em seus trancos e barrancos. Pois, que é um sentido que não
con�ra luz e energia à vida? Ilusão, fumo, nada.
Ensinava Spinoza a “não confundir o sentido de um discurso com a
verdade das coisas”.1 Igualmente, Wittgenstein advertia sobre a distinção a
se fazer entre “fazer sentido” e “ser verdadeiro”.2 Também para H. Arendt,
“verdade e signi�cado não são a mesma coisa.”3 Mas foi G. Frege (+1925)
quem, com base em sua célebre distinção entre sinn (sentido) e bedeutung
(signi�cado ou referente), insistiu na distinção entre valor de sentido e
valor de verdade.4 Essa distinção, a nosso ver, vale tanto no plano lógico-
linguístico quanto no existencial. De fato, no plano lógico-linguístico,
“sentido” é a adequação da linguagem com o pensamento, enquanto
“verdade” é a adequação do pensamento com a realidade objetiva.
Analogamente no plano existencial, “sentido” é a adequação da minha vida
com meu propósito fundamental, enquanto “verdade” é a adequação do
meu propósito fundamental com a realidade objetiva.
Se é assim, há coisas que “fazem sentido”, mas que não são
“verdadeiras”. É o que sucede frequentemente com as paixões amorosas e
com os ideais políticos: ambos movem poderosamente as pessoas e dão
sentido às suas vidas, mas, na medida em que o sentido que dão é ilusório,
isto é, não passa pela prova da realidade, acabam falindo e decepcionando.
Isso nos permite dizer, falando raso, que existem sentidos “sensatos” ou
razoáveis e sentidos “insensatos” ou absurdos. A questão toda é encontrar
os primeiros e neles se �xar.
Poder-se-ia, da mesma forma, perguntar se não haveria também o
inverso: verdades sem sentido. No extremo, sim. É quando uma verdade
tornou-se tão distante de nós que perdeu toda relação com nossa vida.
Fala-se então numa “verdade abstrata”, que “nada diz”. De fato, para que
uma verdade se torne signi�cativa e seja vivenciada por alguém, precisa
que mostre certa vinculação com a existência desse alguém. Sem isso, seria
como ter o ouro e não saber transformá-lo em moedas de ouro. Portanto,
se é certo que a verdade funda o sentido da vida, não é menos certo que a
verdade precisa mostrar-se capaz de informar, quali�car e orientar a vida
se não quer permanecer estéril. Com efeito, se a metafísica, como “ciência
da verdade” (Aristóteles), não desaguar na ética e na religião, como formas
do autêntico “saber viver”, é árvore que não fruti�cou.5
Se na cultura dominante de hoje grassa a “crise de sentido”, chamada
comumente “crise de valores”, é porque há por trás dela uma crise mais
profunda: a “crise da verdade”, tema no qual insistia o papa Ratzinger.6
Pois sentidos, valores, propósitos existem hoje aos montes. A questão é: são
sentidos, valores, propósitos realmente verdadeiros?
2. Questão do ser: ainda anterior à questão da verdade do
sentido
Certo, a questão da verdade está no fundamento da questão do sentido.
O sentido precisa ser verdadeiro se quer efetivamente orientar a vida e
levá-la a bom termo. Mas como sabê-lo? Surge então uma pergunta ainda
mais fundamental: a “questão do ser”; em particular, do ser real ou
objetivo. Pois, que seria um sentido que não corresponde a nada de real ou
objetivo? Portanto, para que algo dê um sentido verdadeiro à vida, é
necessário que exista realmente. Platão a�rmava que, se há ciência, só pode
ser acerca da verdade e que, se há verdade, só pode ser acerca do real.7
Aliás, a metafísica clássica já ensinava que, antes do bonum, temos o
verum, mas que ainda antes do verum vem o ens. Esta mesma ordem vige
em Deus mesmo, como viu o melhor da �loso�a antiga. É o que declara
Santo Agostinho: “Todos os �lósofos que falaram do Deus sumo e
verdadeiro reconheceram isto: que Ele é o Autor das coisas criadas, a Luz
das cognoscíveis e o Bem das que se hão de praticar; e que Ele é para nós o
Princípio da natureza, a Verdade da doutrina e a Felicidade da vida”.8
Também a teologia cristã põe na Trindade a seguinte ordem de origem:
primeiro o Pai, como o Ser ou Aquele-que-é; depois o Filho, como a
Palavra ou a Verdade; e por �m o Espírito, como o Amor ou a Bondade.
Portanto, tudo o que é ou existe (Pai), é também verdadeiro, ou seja,
inteligível ou luminoso (Filho), assim como bom, isto é, apetecível ou
desejável (Espírito).
Para tornar mais claros os pressupostos teóricos da questão do sentido,
vale aqui uma comparação. Como a Samaritana do Evangelho de João
(cap. 4), temos sede da água do sentido; se não bebermos dela,
morreremos. O sentido: eis a primeira questão, a mais urgente. Agora vem a
questão seguinte: qual é, onde está e quem tem a água do sentido, aquela
que mata verdadeiramente a sede? A verdade: eis a segunda grande questão.
Por �m, vem a última questão: Existe realmente essa água viva? O ansiado
poço de Jacó seria miragem ou coisa real? A existência real: eis a terceira
questão, aquela que é, em si mesma, a mais fundamental de todas.
Como se vê, o existencial se apoia no metafísico. Em nosso caso, a
questão do sentido e de sua verdade se funda �nalmente na questão do ser,
ou seja, daquilo que é, quer no plano da essência, quer no da existência,
sendo esta última ainda anterior à primeira.9 Portanto, a “crise de sentido”
remete à “crise da verdade” e esta remete, ultimamente, à “crise do ser” ou,
melhor, ao “olvido do ser”, para falar como Heidegger. A própria encíclica
Fides et Ratio, ao mesmo tempo em que relembra à �loso�a seu objetivo
permanente, que é a busca da verdade, também no que tange ao sentido
da vida (cf. n. 1, 2, 26-27, 76, 102, passim), vê no “olvido do ser” a raiz
última do niilismo (n. 90).10
Portanto, para equacionar bem a questão do sentido, é preciso abordá-la
a partir de seus princípios primeiros, o que implica pôr-se no plano da
�loso�aprimeira ou metafísica.11 Isso certamente não dispensa a livre
decisão da vontade em ordem ao sentido, mas garante a tal decisão a
verdade de seu objeto, ou seja, que o objeto escolhido seja verdadeiro.
Ademais, a questão do sentido, por ser uma questão natural e universal,
só se põe porque sua resposta preexiste à própria questão, e esta resposta
só pode ser verdadeira, como é verdadeiro, ou seja, genuíno, tudo o que é
natural. O sentido está (objetivamente) dado antes ainda de ser
(subjetivamente) achado. E é no vigor de sua presença, mesmo oculta, que
se levanta a pergunta sobre ele. E ainda que não poucos pensadores
modernos digam que “a questão do sentido não faz sentido”, eles só podem
fazê-lo dentro do insuperável horizonte do sentido. A própria opção niilista
não passa, muitas vezes, de reação despeitada perante um sentido que se
esperava e que desgraçadamente faltou ao encontro.
Vê-se, pois, que, no fundo, o niilismo, antes de ser falta de �m, é falta de
princípio. O processo de des�nalização e, portanto, de dessigni�cação, só
se explica bem por uma obra mais radical: a de desfundamentação. Se o
niilista diz que tudo é sem �nalidade, sem sentido e, portanto, que tudo
acaba em nada, é justamente porque, para ele, nada tem fundamento,
nada segura as coisas no ser. De fato, pensa ele, como teriam ainda um
telos as coisas que não têm sequer uma arché? Fica assim claro que, como
diz o povo, “o buraco é mais embaixo”, a saber: não no telos, mas na arché.
Tinha razão Heidegger em sustentar que o niilismo axiológico de Nietzsche
se enraizava em algo de mais profundo: o niilismo ontológico.12 Com
efeito, só vale o que é.
Vê-se, pois, que a discussão sobre o �m ou o sentido da vida nos leva à
questão do princípio. A fórmula metafísica do niilismo é: “do nada para o
nada”. É como diz, de modo pessimista, um epitá�o antigo: In nihil ab
nihilo quam cito recidimus (do nada para o nada quão rapidamente
caímos).13 Tal seria o périplo do ser, um périplo perfeitamente vão, uma
aventura sem ventura. Nessa ótica, toda existência é à toa, nada vale a
pena. A vida não passaria de sonho, o qual, no dizer de F. Pessoa, seria “tão
verdadeiro que não tem sentido nenhum”.14
De tudo o que vimos se depreende que a sinnfrage pressupõe
�nalmente a seinsfrage, assim como o �nis pressupõe o principium. Por
outras: a teleo-logia tem em sua raiz uma arqueo-logia, ou seja, uma onto-
logia. Por outras ainda: a escatologia se funda na protologia. Portanto, a
questão do sentido, conquanto seja, para nós (subjetivamente), a questão
primeira e mais urgente, não é, em si mesma (objetivamente), uma questão
primária e original. É uma questão segunda, derivada: derivada da questão
da verdade. Mais: é mesmo uma questão terceira, pois, antes ainda da
questão da verdade, vem a questão do ser.
Eis, pois, como �ca �loso�camente equacionada a questão do sentido.
Outra coisa é resolvê-la vivencialmente. Mas se o encaminhamento da
questão é bem-feito, a solução é mais que possível: ela vem a galope.
3. Deus: Sentido, por ser a Verdade e o Ser
Vimos que a teleologia, como teoria dos �ns ou dos sentidos, requer em
sua base uma arqueologia, ou seja, uma ontologia, como teoria do ser e de
seus princípios. É o que a tradição �losó�ca veio a chamar de metafísica.
Ora, a grande metafísica, como mostra a melhor tradição �losó�ca, e
não só ocidental, culmina na ontoteologia: a teoria de Deus como sendo
concretamente o Ens summum. Essa tradição evidencia que, no ápice
extremo da razão, o “Ser transcendental”, ainda abstrato, alcança sua
forma real e concreta no “Ser transcendente”, ou seja, no “próprio ser
subsistente” (Ipsum esse subsistens). Para além disso, o lógos humano não
pode ir. Pode ainda apenas pôr-se à escuta de uma eventual palavra que o
Mistério pode proferir, porquanto esse pode se revelar quando, a quem e
como bem lhe aprouver. A fé judeo-cristã testemunha, por sua parte, que
Ele de fato se revelou na história, primeiro como YHWH, “Aquele que é” (e
está com seu Povo), e depois, de modo insuperável e de�nitivo, como Uni-
trindade em Jesus Cristo.
Que signi�ca isso para a problemática do sentido? Que, ao se pleitear
Deus como sentido do mundo, importa garantir previamente que Deus
exista objetivamente e não é apenas efeito do wishfull thinking. Para Deus
ser o sentido verdadeiro e absoluto, pressupõe-se que exista realmente,
competindo à razão, se necessário, assegurar-se deste dado primordial.
Portanto, do ponto de vista racional, a primeira questão concerne a Deus
enquanto “é em si e para si”, de modo que sua de�nição conceitual é
precisamente Ens a se et ad se. Só depois é que se põe a questão de Deus
enquanto “é para nós”. Ele aparece, pois, primeiro, como “o Existente” por
de�nição e, em seguida, como o Existente em relação a nós, podendo, pois,
dar sentido à nossa existência.
Certo, Deus-em-si somente pode ser entendido enquanto Ele é um
Deus-para-nós. Mas esse “para nós” (phainómenon) é apenas condição
transcendental para o desvelamento do “em si” (noúmenon). O olho que vê
a árvore não determina o ser da árvore, mas dá apenas espaço para que a
árvore possa aparecer em sua nudez essencial. A razão não é criadora e
sequer formatadora da realidade, como tende a dizer a �loso�a moderna.
Não; em sua acepção originária, razão é intuição (noûs), enquanto
reconhecimento do mundo tal como ele é “em si mesmo”; é “consciência
que vê”; é um abrir dos olhos da mente em direção ao mundo e
surpreendê-lo em seu “ser sem pose”; é lógos que acolhe o ser como ser e o
deixa entrar em si tal como ele é; é, en�m, “abertura ao mundo” como
espaço para a livre epifania das coisas, clareira em que essas coisas podem
desdobrar livremente sua essência.15 Em suma, o “para nós” do
conhecimento é um “para nós receptivo”, que, como tal, é justamente
condição subjetiva do “em si”, ou seja, do conhecimento objetivo.
Portanto, antes de mostrar que Deus é signi�cativo para nossa vida, é
preciso mostrar que o Deus de que se trata é verdadeiro e, antes disso
ainda, que Ele existe. Isso de julgar que Deus existe porque, senão, o
mundo seria absurdo, levantou, justamente na cultura moderna, a suspeita
de Deus ser uma miragem, isto é, criação imaginária de nosso desejo. Para
essa crítica, Deus ora seria apenas mero “funcionário do sentido” ou o
“serviçal” de nossa felicidade;16 ora uma invenção da fantasia humana
para explicar a irracionalidade do mundo (M. Weber); ora uma elaboração
mitológica para confortar a alma perplexa (E. Morin); ora um calmante de
nossa angústia diante da contingência e da morte (M. Onfray); ora uma
“chave mágica” que abriria todas as portas (W. James); ora a solução ilusória
para os problemas sem solução (F. Gullar); ora, en�m, mera fabulação da
alma humana em sua desolação existencial (Freud), alienação
socioeconômica (Marx) e ressentimento por sua fraqueza e insigni�cância
diante dos grandes e bem-sucedidos (Nietzsche). Eis ilustrações da crítica
que os modernos, principalmente desde Feuerbach, levantaram contra a
religião como “projeção”. Em termos da problemática do sentido, a religião
não passaria de um “refúgio dos pobres de sentido”, como declarou um
deles.17
Entretanto, como chegamos a mostrar, essa crítica tem seu ponto cego.
Ela não viu que o desejo de Deus é natural, e não arbitrário e, além disso,
que tal desejo não é puramente subjetivo, mas possui sua objetividade,
conquanto segunda. Por causa do caráter natural do desejo de Deus, é
normal que o homem busque a Deus, principalmente quando acossado
pelo sofrimento. Contudo – e nisso a crítica moderna ajuda –, �car nesse
aspecto primário seria ceder a uma concepção funcionalista da religião,
incapaz de aceder à sua essência, essência essa que consiste em nossa
relação com Deus, que, como absoluto, pede fé absoluta, expressa na
adoração e no amor sobre todas as coisas. Portanto, partir da ânsia de
sentido para provar Deus vale, sem qualquer sombra de dúvida, do ponto
de vista existencial (pedagógico, pastoral etc.); mas, do ponto de vista
teórico, vale apenas parcialmente,isto é, como argumento dialético (ou
probante), não, porém, do ponto de vista teórico-apodítico, o único que
refuta e�cazmente a sempre renovada suspeita da “projeção”. Veremos
melhor tudo isso mais adiante (cap. III/2).
Efetivamente, a primeira a�rmação digna de Deus é esta: “Deus é Deus”,
ponto; o resto vem depois. Pois só “Aquele que é” pode também ser, segura
e efetivamente, “Aquele que está ao nosso lado”. Tais são, em verdade, os
dois sentidos pelos quais o grande pensamento cristão entendeu YHWH, o
nome impronunciável. Começou por entendê-lo, ao modo hebraico, como
nomen misericordiae, mas deu-se logo conta de que devia ser entendido
também e mais radicalmente, ao modo grego, como nomen substantiae.18
Pois, sem ser ou existir em absoluto, como poderia Deus ser efetivamente
misericordioso? Tal articulação foi, de fato, processada, de modo genial,
pelo pensamento da fé, de tal modo que fez do sentido metafísico-grego de
YHWH o substrato racional do sentido histórico-salví�co.
Por outro lado, dir-se-ia ao modo de Lutero: que importa a mim um
Deus que existe e é verdadeiro se não é ou não vem a ser “meu Senhor e
meu Deus”? Efetivamente, um Deus “em si”, e não “para nós”, como seria
ainda digno de nosso interesse, crédito e amor? Para falar como Pascal em
seu testamento, esse Deus seria o árido “Deus dos �lósofos e sábios”, não o
consolador “Deus de Jesus Cristo”. Só um Deus “diante do qual se possa
ajoelhar, rezar e dançar” pode ser o Deus do nosso coração, como queria o
velho Heidegger. Tal é, efetivamente, a crítica que a �loso�a hoje
dominante faz ao Deus da ontoteologia ou da teodiceia.
Essa crítica, contudo, se mostra curta, além de mal posta. É, com efeito,
coisa forçada opor a imagem do Deus da fé ao Deus da razão. Sem dúvida,
o Deus �losó�co não basta ao homem e ao seu desejo. É-lhe, todavia,
necessário como base natural para o Deus da religião e da fé. Pois, se é
certo que só um Deus que se interessa pelos humanos pode interessar o
coração desses, é também certo que só um Deus realmente existente pode
satisfazer sua inteligência e assegurar a seu coração a verdade objetiva do
amor que lhe pode tributar. É por isso que a Igreja magisterial nunca
avalizou a contraposição entre o assim chamado “Deus da teodiceia” e o
“Deus da teologia”. Ao contrário, articulou as duas �guras, fazendo da
primeira o prolegômeno da segunda.
Digamos, pois, que, antes de ser “o Sentido” para nós, Deus é pura e
simplesmente “o Exist-ente”. Para ser-nos útil, Ele precisa antes ser
precioso. Pois como poderá Ele nos valer se não é por si mesmo valioso?
Disse F. Mauriac: “Um cristão não adere à fé porque é doce, mas porque é
verdadeira.”19 É que “a verdade primeiro liberta, depois consola”, como
escreveu G. Bernanos.20 Naturalmente, a pessoa humana costuma buscar a
Deus tangida pela necessidade. Contudo, se a pessoa �car nesse primeiro
impulso cai sob a suspeita de estar buscando um “Deus-tapa-buracos”.
Chega sempre o momento em que ela precisa discernir, mais ou menos
conscientemente, se o Deus que ela busca é realmente o Deus vivo e
verdadeiro, ou se não é um simulacro. Que a “necessidade de Deus” seja
nossa prioridade existencial, isso está fora de dúvida. Essa prioridade,
entretanto, não pode ser confundida com a prioridade ontológica pela qual
Deus aparece em sua verdade essencial e decisiva: o Absoluto.
E isso vale também para a religião. Mostrar a importância desta,
contentando-se em apelar para a necessidade que todo homem tem de um
sentido pleno, é ceder a uma visão utilitarista da religião. É, além disso,
praticar uma apologética rasa, que, nesse caso, só pode obter uma vitória
de Pirro, como julgava Adorno.21 Pois, como explicava esse pensador, “se
uma religião é aceita por causa de algo diverso de seu conteúdo de
verdade, suas bases só podem estar minadas”.22 A necessidade de sentido
e, por isso, de religião não demonstra a rigor a verdade de um e de outra.
Para legitimar uma fé não bastam razões funcionais, relativas à sua e�cácia.
É ainda necessário razões acerca de sua verdade intrínseca. Para apresentar
uma religião como fonte de sentido, é preciso que a questão de sua
verdade esteja resolvida de antemão. Só uma religião verdadeira pode
oferecer um sentido verdadeiro.
II. DO ALFA AO ÔMEGA E VICE-VERSA
A articulação que �zemos acima entre o sentido e seu fundamento
encontra sua expressão mais geral na articulação entre o alfa e o ômega, ou
seja, entre princípio e �m. Explicitemos a seguir como ela se apresenta,
recorrendo especialmente ao testemunho dos grandes pensadores.
1. Princípio e �m se requerem
Princípio e �m sempre vão juntos, um remetendo ao outro, como
sucede num círculo. Bem disse Heráclito: “Na circunferência de um
círculo, o começo e o �m se confundem”.23 Como informam os
dicionários de símbolos, o círculo é um dos símbolos geométricos mais
difundidos. Representa tudo o que é absoluto, perfeito, completo, total e
universal. Por isso, o círculo é símbolo de Deus (porque eterno), da alma
(porque imortal), do céu (porque côncavo), do orbe (porque redondo), do
cosmos (porque pensado esfericamente) e também do tempo perpétuo ou
do eterno retorno (porque circular).24
Por isso também a circulação é tida como a caminhada perfeita, pois ela
vai do início sem início ao �m sem �m. A viagem mais bela e acabada é a
de volta para casa, após a dor do afastamento e a saudade dos familiares. É
como disse Telêmaco, hóspede de Menelau, na Odisseia: “Meu coração é
um desejo só: voltar para casa”.25 Portanto, encontrar o sentido último é
voltar à origem primeira. De fato, como faz observar Santo Tomás, o desejo
supremo de cada coisa é encontrar o princípio de que surgiu.26 E
sentencia: “O efeito se volta sempre para seu princípio”.27 Por outras: toda
criatura busca seu criador. E é somente quando uma coisa é reconduzida
ou restituída a seu princípio que ela encontra sua perfeição e sua alegria.28
Como se vê, o mundo, junto com o homem, encontra seu sentido
quando chega a Deus, seu ponto ômega, mas depois de ter partido do
mesmo Deus, como de seu alfa. Desse modo, o cume da existência é ao
mesmo tempo a fonte dela. Portanto, o curso da existência, tanto humana
como cósmica, perfaz um círculo, feito de um exitus e de um reditus. Isso
vale de modo exemplar para Cristo, o qual a�rmou: “Sei de onde vim e sei
para onde vou” (Jo 8,14). Efetivamente, como registra João, Ele sabia que
“de Deus saíra e a Deus voltava” (Jo 13,3).
Somos feitos por Deus e para Deus, de modo que só chegamos ao �m
voltando para Ele. A odisseia humana e cósmica é um partir para voltar.
Nisso concordam místicos como Plotino e Eckhart, e �lósofos como Fichte
e Hegel.29 Para Plotino, em particular, o Uno é tanto o começo como o �m
da existência da alma, pois só voltando ao seu princípio a alma chega a seu
�m.30 Não é muito diferente para o Estagirita, segundo o qual, se Deus é a
arché que tudo move (primeiro motor), é precisamente por ser o telos
“desejado” por todos os seres.31
Orígenes está tão certo de que o início e o �m da história se fundirão
que funda aí seu polêmico theologoúmenon da apocatástasis, ou seja, a tese
teológica da restauração �nal em Deus de toda a criação, inclusive dos
demônios. Pois, argumenta, se tudo saiu bom das mãos de Deus, tudo
deverá voltar bom para lá. O pecado não passaria de um acidente de
percurso que não muda a rota �xada, acidente que é reparado no curso
mesmo do caminho de volta.32
Nessa questão, Sto. Tomás é axiomático: “O Fim responde ao
Princípio”.33 A grande lei da história, para o Angélico, se formula como
exitus a Deo et reditus ad Deum. E foi segundo o símbolo dessa lei, o
círculo, que o Angélico estruturou toda a sua grande Suma: “de Deus para
Deus”, fórmula que Alois Dempf declarou “meta�sicamente grande”.34
Para o Aquinate, o exitus a Deo pede a reditio in Deum, para poder se
fechar e, assim, se consumar.35 É como o rio que volta à fonte sob a forma
da chuva, para de novo re�uir.36 Assim, escreve ele, no mundo “efetua-se
certo movimento circular (regiratio seu circulatio),de sorte que todas as
criaturas retornam a Deus, como a seu Fim, do qual também provieram,
como de seu Princípio”.37 Ademais, para o Angélico, a Veritas prima é
também o “�nis de todos os nossos desejos e ações”.38 Deus é, pois, ao
mesmo tempo a origem e o destino do homem e do mundo. Assim, a
circulatio de Deus para Deus é o caminho pelo qual a criação se
aperfeiçoa. “O princípio e o �m do universo são uma coisa só (...). Por isso,
tanto a criação (...) como a graça provêm somente de Deus (...), primeiro
princípio e �m último das criaturas.”39
Mas não seria essa visão circular uma visão mítica da história, contrária à
visão bíblica, que seria linear, como sustentava Oscar Cullmann e muitos
outros depois dele?40 Em verdade, essa é uma contraposição esquemática
que, por ser demais simplista e cômoda, foi criticada por teólogos
importantes.41 Em verdade, essas duas concepções não se opõem. Com
efeito, a processio não exclui certa circulatio. Só exclui a circulatio mítica
do “eterno retorno do mesmo”, versão moderna do mito arcaico do
Ouroboros, a serpente que devora sua própria cauda.42 A história envolve
efetivamente os dois movimentos: o circular, enquanto nela se trata sempre
do homem e de suas eternas paixões; e o linear, enquanto nela o espírito
humano avança, e não só tecnicamente.43 De fato, o que faz a história ser
o que é senão a tensão entre as singularidades, que se sucedem como
�echas, e as repetições que voltam sempre como num círculo?44 Portanto,
o movimento da história não é nem só linear nem só circular, mas é a
síntese de ambos, como numa espiral. Toynbee compara justamente a
história a um carro, cujas rodas giram sobre si mesmas, mas que, em
virtude mesmo desse movimento circular, segue em frente.45
Na visão especi�camente cristã do tempo, o tempo segue em linha
recurva, de modo que, enquanto dá suas voltas, avança vetorialmente em
direção a um termo conclusivo. Portanto, o percurso histórico-salví�co do
êxitus et réditus não é simplesmente um círculo (repetitivo), mas uma
espiral (progressiva). Ademais, seu avanço é irreversível em virtude do
ephápax cristológico (cf. Hb 7,27; 9,12; 10,10) que pulsa em seu centro,
impedindo o processo de voltar sobre si mesmo ou, antes, impelindo-o
infalivelmente, se bem que não fatalmente, em direção ao Reino
escatológico.
Só uma visão espiralada, e não simplesmente circular, explica por que
Deus criou o mundo. Pois, que utilidade haveria para o mundo em sair de
um ponto para simplesmente voltar ao mesmo ponto, fosse tal ponto Deus?
Nesse caso, não valeria mais �car lá onde estava? Mas não; Deus criou o
mundo para que progredisse, se aperfeiçoasse e atingisse sua plenitude. É o
que evoca justamente a �gura da espiral.
Sem dúvida, o mundo voltará a Deus, não, porém, como partiu, mas
carregado de todas as riquezas que recolheu no caminho. É assim que
efetivamente a Escritura imagina o �m dos tempos: como colheita de uma
seara que amadureceu (cf. Mc 4,29; Mt 13,39; Ap 14,14-20). O ser
humano, de modo todo particular, por causa de sua liberdade, agrega, sim,
algo ao plano divino, não, certamente, por necessidade, mas pela livre
disposição de Deus, que quis parceiros para sua obra. Deste modo, o
Ômega em que deságua a criação não aparecerá apenas como o Alfa
reencontrado, mas como o Alfa consumado, ou seja, como a entelécheia do
mundo, entendida como sua realização plena e perfeita.46
Eis, pois, a maravilhosa espiral que desenha a aventura humana e
cósmica: nascemos de Deus e de seu Amor, e somos destinados a Deus e à
sua Glória.47 O Primum principium é também o Finis ultimus, e a Caritas
prima (Ap 2,4) é também o Summum bonum. Tal passagem, porém, não se
dá sem que intercorra entre um ponto e outro o labor produtivo da história
salví�ca. Portanto, a protologia pede e espera a escatologia, como parusia
do Deus semper maior.
Tudo isso mostra que não estamos “precipitados” ou “jogados aí”, no
meio das coisas, nem somos um “acidente” de percurso da evolução, como
julgam não poucos pensadores modernos. Antes, fomos criados pelo Amor
primeiro e para o Amor último. É, pois, sob o grande arco de um misterioso
desígnio de amor que o homem e o mundo cumprem seu dramático e ao
mesmo tempo esplêndido destino.
2. Articulação entre “arché” e “telos”
Vimos que arché e telos, para perfazerem o todo, requerem-se
mutuamente; não, contudo, pelas mesmas razões, mas por razões distintas.
T. S. Eliot, no poema East Cock, escreveu no primeiro verso: “Em meu
princípio está meu �m”; e no último verso: “Em meu �m está meu
princípio”.48 Parecem formulações perfeitamente reciprocáveis, quando,
em verdade, são distintas. A primeira se situa propriamente na ordem do
ser, enquanto a segunda está na ordem do fazer.
Comecemos, pois, desenvolvendo o primeiro sentido, isto é, que o
princípio inclui o �m e pulsa em sua direção. O princípio é efetivamente a
mola que leva as coisas a seu termo. Se o princípio não contivesse de algum
modo o �m, este não passaria de puro “objeto de desejo”, um sonho
ilusório e nada mais. Mas, se o �m dá sentido, é justamente porque se
antecipa ao próprio desejo para atraí-lo como princípio primeiro de seu
movimento. Por isso, Aristóteles aconselha: sempre “salvar o que importa: o
princípio”.49 Pois, estando salvo o princípio, o �m e tudo o mais podem
ser salvos. Ao contrário, como emenda Santo Tomás, “em tudo, a pior
degeneração é a do princípio, do qual depende todo o resto”.50 Também
Platão sentenciou: “O princípio é como um deus, que tudo salva”.51 De
fato, se a raiz está viva, a árvore pode reverdecer.
Na re�exão �losó�ca, a ideia de “princípio” tem um lugar central, se não
é mesmo a ideia formalmente fundante de toda a �loso�a. Pois, que é
�loso�a, no fundo, senão o pensamento que busca os princípios primeiros
de tudo? Foi provavelmente Anaximandro o primeiro pensador a conferir
ao termo princípio, arché, densidade epistemológica ao aplicá-lo ao
ápeiron, o in�nito, que identi�cou com Deus mesmo.52 A sentença de
Hipócrates “é o mesmo o princípio e o �m” parece dizer que o �m está
contido no princípio, se não, o princípio não seria tal.53
Para o Doutor Angélico, o principium difere de tudo o mais pela
dignidade, pelo poder e pela causalidade.54 Também para Heidegger o
anfängliche, o inicial, é o que mais importa, donde poder-se tirar o
truísmo: o princípio é o principal. Para aquele pensador, o princípio é
virtualmente tudo, tal uma fonte perene de que �uem todos os rios, ou
uma reserva de riquezas que esperam vir à luz. Diz ele: O princípio tem a
“paz que guarda sua hora”.55 Ricoeur fala da arché como Ursprung, o
originário sem origem, o “começo sem início”.56 Cacciari diz o mesmo,
apenas invertendo o vocabulário: dá à arché o nome de “início”, o qual
seria o incondicionado, condicionando tudo o mais, inclusive o que chama
a “origem”.57
Como dissemos, o princípio contém tudo e mais ainda o �m e o sentido
que dele provém. Criticando a ideia de progresso como “veneno” a ser
extirpado, escreve S. Weil: “Nada pode ter por destinação senão aquilo que
tem por princípio”.58 Isso vale especialmente quanto a Deus, como viu
Pascal: “É impossível que Deus jamais seja o �m se Ele não é o
princípio”.59 R. Guardini explica que Deus é princípio, sim, mas um
princípio que nos acompanha até o �m; e é também �m, o �m que atua
desde o princípio, de modo que toda a existência é, sim, thêsis para um
telos, ou seja, posição voltada para um objetivo, mas arrancando sempre de
uma arché.60
Portanto, a a�rmação de um Deus consumator, que a tudo dá sentido,
só pode se sustentar sobre a base da admissão do Deus creator.
Efetivamente, se se admite que o �m assenta sobre o princípio, então, se
não há Criador (pessoal, providente e amoroso), também não há um
Finalizador (consumador, juiz e salvador escatológico). Precisa, pois, dar
por assentado que, se Deus cria, cria-para, ou seja, cria com um propósito;
cria, portanto, em função de um �m. Logo, toda criatura tem um sentido.
Mas, excluída a ideia de criação, como aparece o mundo? Como puro devir
que se desvaneceno nada. E o homem? Mero geworfene, como diz
Heidegger, ou, traduzido com as palavras de F. Pessoa, um ser “arremessado
para o mundo”. Seria, pois, um ser casual, joguete talvez de uma potência
cega e impessoal, tal o Destino dos antigos. Seria, em suma e �nalmente, o
desgraçado “ser para a morte”, lobrigado pelo �lósofo citado. De fato, o que
pode esperar um geworfene?
Se os niilistas modernos negam à vida o �m último, é por lhe negarem
de antemão o princípio primeiro. Ou seja, seu niilismo provém de seu
ateísmo. De fato, quem nega Deus perde o norte existencial e,
consequentemente, o rumo da vida. O mundo então se torna absurdo,
inclusive em seu sentido etimológico: parece não só caótico, mas
cacofônico.
Não se pode, por outro lado, encarecer de tal modo o princípio que se
venha a desvinculá-lo de toda conclusão prática. Seria cair no erro do
“principismo”, fatal na vida política e mais ainda no agir moral. Em
verdade, princípio é sempre “princípio de”, de sorte que “princípio só” não
é princípio. Todo princípio verdadeiro pulsa na direção da aplicação, como
a semente em direção à planta. Mesmo assim, o princípio não esgota seu
vigor em suas aplicações efetivas, mas guarda sempre o segredo de novas
aplicações, sem o quê, estas se degradam em agitação, tumulto, rotina e
tédio. Essa consideração já nos encaminha para o segundo polo da
dialética entre arché e telos.
Efetivamente, tudo o que acabamos de ver vale no plano ontológico.
Como dissemos, é nesse plano que o princípio vem primeiro e reina. Já no
plano da ação, é o �m que tem a primazia. “No plano do desejo e da ação,
o �m vale como princípio”, sentencia o Aquinate.61 Pois é o �m que move
o agente a agir. De fato, agente algum age ou produz alguma obra
simplesmente por acaso, mas sempre em vista de um �m, isto é, de um
propósito. O �m nele se antecipa à execução.
Portanto, na ordem prática, é a causa �nal que anima e move a causa
e�ciente, como, de resto, todas as outras causas, podendo, assim, ser
chamada de “causa das causas” ou “princípio dos princípios”. Retomando o
célebre dito agostiniano, se foi Deus que nos fez (“�zeste-nos”), só podia
nos ter feito para Ele (“para Ti”), já que somos dotados de espírito e,
portanto, abertos ao in�nito. Quer dizer: se viemos de Deus é para
voltarmos para Ele. Ou, numa fórmula de Pio XII, se somos ab Alio é para
sermos ad Alium.62
À diferença do que sucede em nós, mortais, princípio e �m são, como
num círculo, uma só coisa no seio do Eterno.63 Diz justamente o Angélico:
“Em Deus esse círculo se fecha sobre si mesmo”.64 Sendo Absoluto, Deus é
a arché e o telos absolutos: o princípio sem princípio e o �m sem �m. Mas,
enquanto Ele é, em si mesmo, simultaneamente Alfa e Ômega, para nós,
contudo, Deus aparece distinto: aparece como Criador, enquanto é
princípio; e como Consumador, enquanto é �m. Assim, como Causa
primeira, Deus é adorável; como Destino último, é amável. Portanto,
começo e �m são coisas da história, não da eternidade ou de Deus, que
não tem começo e �m, mas é começo e �m da história.65 Em Deus há
começo e �m apenas como processo eterno ad intra, no seio da Trindade,
processo que, em seguida, se re�ete ad extra como curso do mundo, cujo
processo é, ao mesmo tempo, origem, forma e fundamento.66
Portanto, o mundo vem de Deus em função de um “para”: para voltar,
enriquecido, a Deus. É, pois, como Criador que Deus é também Planejador.
É porque Ele é o primeiro Agente que Ele é também o último Fim. Isso
signi�ca que, quando Deus cria, cria já segundo um plano e com um
propósito: trazer a criatura para junto de si, fazendo-a partilhar de sua
felicidade. Essa não é uma �nalidade que aproveite a Deus (�nis cui), já
que, sendo plenitude, Ele não precisa de nada. Ao contrário, trata-se de
uma �nalidade absolutamente gratuita (�nis qui), que redunda em
proveito exclusivo da criatura.67
Com efeito, Deus opera ad extra exclusivamente segundo um “plano de
amor” (cf. Ef 1,3-11). É isso que o move à criação, redenção e consumação
do homem e do mundo. Diríamos então que o “sonho de amor” que Deus
tem para sua criação é efetivamente o motor de toda a história da salvação.
E é desse “sonho de amor” que provém todo o sentido do mundo.
III. O SENTIDO: NÃO INVENTADO, MAS DESCOBERTO E
INTERIORIZADO
Os antigos, com a ideia de “destino” ou “fado”, julgavam que o sentido já
está dado e que a ele o mortal tem que se dobrar. Os modernos, com seu
cioso antropocentrismo, acham que o sentido é algo que o homem se dá
segundo seu arbítrio. A verdade, porém, está no meio: o sentido não é fatal
(fatum), nem feito (factum), mas é algo dos dois.
1. A dupla face do sentido
O sentido ou �m último de nossa vida é nossa realização plena. É o
desabrochamento de todo o nosso ser em todas as suas potencialidades. É a
a�rmação soberana de nosso ser. Numa palavra mais comum, é nossa
felicidade plena. É isso justamente que todos, em todos os lugares e desde
sempre, desejam ansiosamente, de modo consciente ou inconsciente.
Por que é tal o nosso destino, �nalidade ou sentido da vida? Porque tal é
também nossa constituição ontológica. Como dissemos: atrás da questão do
sentido está a questão do ser, da identidade ou verdade de nosso ser.
Portanto, o sentido �nal de nossa vida já vem inscrito em nosso DNA
ontológico. Ora, nós, como seres racionais, somos abertos ao in�nito, ao
eterno. É lá que está nosso sentido último.
Tal sentido último, conquanto ainda formal e abstrato, vago e geral, é
algo de inelutável. Ele não cai debaixo de nossa vontade ou decisão. Não é,
pois, algo de disponível, de opcional. Quem, de fato, opta por se desgraçar,
se perder e se aniquilar? Essa �nalidade ou sentido último é tão
indisponível e inexorável que se pode chamar de destino ou, talvez melhor,
destinação. E é tão pouco matéria de escolha, como o são os axiomas
geométricos ou o curso dos astros. Digamos, pois, que o sentido último,
entendido como nossa realização plena, é supremamente objetivo. Trata-se,
porém, de uma objetividade que nada tem de impositivo, mas de
grati�cante. Que bom que somos assim e que nosso destino é o
desabrochamento do que somos!
Agora, porém, vem a pergunta: Em que consiste concretamente esse
sonho irreprimível? Melhor ainda: como alcançá-lo? Por que caminho? É
aqui que entra a nossa liberdade. É nesse ponto que somos interpelados,
intimados mesmo a fazer nossa opção. É como diz o Angélico: “O que age
por vontade preestabelece para si o �m pelo qual age, diferentemente do
agente natural, que age em vista de um �m preestabelecido por outro”.68
Nesse ponto, as opções são as mais variadas possíveis. Elas vão desde a
busca das riquezas até a busca de Deus, passando pela prática do amor e
da justiça. Normalmente esses modos pessoais de realizar o sentido último
são chamados de “ideais”, “propósitos” ou “projetos fundamentais” de vida.
Portanto, a �nalidade última do homem ou o sentido da vida tem um
aspecto objetivo, que é inelutável; e tem um aspecto subjetivo, que é
opcional.69 Os estoicos chamavam o �m objetivo e geral de télos, e o �m
subjetivo e concreto de skópos.
Ora, é nesse último plano que se põe concretamente a grande pergunta
hoje: a pergunta sobre o sentido. Pois, se sou destinado à felicidade, quero
saber em que consiste e como lá chegar. É como o jovem do evangelho que,
ansioso, como todos, por entrar na vida eterna, pergunta: “Mestre, que
devo fazer de bom para ter a vida eterna?” (Mt 19,16). E toda a questão
aqui é encontrar um ideal ou propósito concreto de vida que seja
verdadeiro, a saber: que seja adequado ao �m último ou, por outras, que
leve efetivamente lá. Será o dinheiro, o poder, o sexo, a ciência, a política?
Ou então a ética? Ou �nalmente a religião? Não vale, portanto, qualquer
opção. E mesmo que eu descubra a opção verdadeira, é preciso que eu a
assimile, a vivencie ou, como se diz, a subjetive. Eu preciso aderir ao
sentido mais consistente, acolhê-lo, seguir por ele, como o caminheiro
segue pela estrada. Se bem que a estrada já esteja traçada e conduza ao
destino (é o sentido dado),o viajante necessita fazer sua caminhada, se
quer chegar àquele destino (é o sentido acolhido). Se o caminhante não
quiser perder o caminho e assim se perder, é mister que siga consciente e
deliberadamente pela estrada feita.70
O sentido tem efetivamente dupla face: material e formal. É material
quando tomado em sua grandeza autônoma e objetiva. É, por exemplo, o
dinheiro para o avarento e Deus para o adorador. E é formal quando
apropriado subjetivamente. É a posse do dinheiro para o avarento e é a
comunhão com Deus para o adorador. Sob o primeiro aspecto, trata-se do
sentido simpliciter falando; sob o segundo, do sentido visto operative.71 É
a diferença entre jogo e jogada: jogo é o lado objetivo do sentido, coisa de
todo o mundo; jogada é o lado subjetivo do sentido, coisa de cada um. Em
suma, sentido é sempre “sentido-de”, e essa é sua face objetiva; e é ao
mesmo tempo “sentido-para”, e tal é sua face subjetiva. Explicitemos como
essas duas faces se articulam.
De fato, o sentido é em parte predeterminado e em parte a se
determinar.72 De um lado, o sentido é pré-constituído e, do outro, ele é a
se constituir enquanto livremente abraçado. Ele é pré-existente e ao
mesmo tempo a se efetuar. Só nos seres sem razão o sentido é �xo, ou seja,
predeterminado, como o curso da �echa para seu alvo.73 É tão somente
em Deus que o sentido é, ao mesmo tempo, absolutamente determinado
(por sua essência) e absolutamente livre (por sua vontade libérrima).
As duas faces do sentido, respectivamente objetiva e subjetiva,
correspondem à dupla dimensão do ser humano, que é ser de natureza e,
ao mesmo tempo, um ser de liberdade. Como ser de natureza, está dado,
tem uma estrutura ontológica; como ser de liberdade, ele se faz, atuando as
possibilidades inscritas em sua estrutura. Como ser de natureza, nasce e
vive dentro das condições prévias à sua existência; como ser de liberdade,
pode optar livremente a partir e no seio dessas condições. Como ser de
natureza, ele tem um “destino”, uma sina, que é, por exemplo, ter tais
genitores, ser varão e viver em tal tempo; como ser de liberdade tem uma
“destinação”, uma vocação, que é o modo como elabora seu destino
segundo um propósito a se dar, como, por exemplo, constituir família,
assumir tal pro�ssão e morar em tal cidade.74
Ora, como ser de natureza, o homem “tem sentido”: o sentido embutido
em sua estrutura espiritual; como ser de liberdade, ele “dá sentido” à sua
vida, elaborando aquele sentido em função de uma opção livre. Por isso o
sentido, para começar, não se inventa, mas se descobre e, depois de
descoberto, se segue; não se cria, mas se reconhece e, depois de
reconhecido, se vivencia. O sentido é como o tesouro escondido no campo
de que falou Cristo (cf. Mt 13,44): importa descobri-lo para dele tomar
posse. O sentido não se produz, mas se revela e, depois de revelado, se
assume. A palavra do verdadeiro buscador do sentido soa: “Se assim é, pois
que assim seja!”.
Sim, as coisas “têm sentido” (sentido objetivo), mas é preciso que o
homem também “dê sentido” (sentido subjetivo) às coisas, apropriando-se
do sentido dado e conformando-se a ele, assim como o caminheiro se
conforma às voltas do caminho para chegar ao seu destino. Digamos, pois,
que o sentido faz o homem, sim, mas que também o homem faz o sentido.
Poder-se-ia sinteticamente dizer: o homem “dá” à vida o sentido que ela
“tem”. Se, por um lado, o sentido é preestabelecido pelo desígnio divino,
inscrito na ordem da natureza e também na da graça, por outro lado ele é
cumprido não só pelo homem, mas igualmente pelo mundo físico; aquele,
porém, livremente, e este por necessidade.
Conquanto não seja produzido, mas dado, o sentido requer sempre do
ser humano um ato de liberdade. Ademais, acolher um sentido já dado
exige muito mais de nosso livre-arbítrio do que produzir o próprio sentido.
Pois é diante do que a supera que nossa liberdade é desa�ada ao extremo.
Isso se veri�ca, por exemplo, nos grandes infortúnios da vida e
especialmente diante da morte. Assim, aceitar a morte que nos é reservada
é uma manifestação mais alta de liberdade do que escolher o próprio
gênero de morte, seja lá o que digam os que, em defesa da eutanásia, fazem
apelo à pretensa “liberdade de morrer”. Igualmente, entrar numa câmera
de gás orando e abençoando os inimigos exige uma liberdade maior e mais
elevada do que fazê-lo blasfemando a Deus e amaldiçoando os algozes,
como mostrou Viktor Frankl.75 A chamada “liberdade de consentimento”
perante o que nos transcende é efetivamente a mais alta expressão de nossa
liberdade.
E, entre todas as formas de consentimento, a mais alta é a que se
manifesta na obediência da fé, como é maximamente evidente no �at à
vontade de Deus, dado por Jesus no Getsêmani (cf. Mt 26,42; Hb 10,7-10)
e, depois, no �at que sua Mãe deu à palavra de Deus na Anunciação (cf. Lc
1,38).76 De resto, a fé, assim como o sentido, de que é a forma suprema
(em verdade, sobrenatural), tem esta dupla face: objetiva e subjetiva. É
objetiva enquanto me é proposta em toda a sua positividade histórica e
dogmática (�des quae), sendo nisso um dom de Deus; e é subjetiva
enquanto a acolho e vivencio (�des qua), tanto que Lutero ousou chamá-la
“criadora da divindade”, “em nós”, porém.77
Digamos, para concluir, que, embora o sentido possa ser de antemão
�xado, ele precisa ser livremente aceito. Sendo o alvo da vida, o sentido
está certamente já pre�xado. Ele precisa, contudo, ser atingido pelo
homem, e isso não se dá sem a intervenção de sua liberdade.
Depois de termos visto como as duas dimensões do sentido se
entrelaçam, vejamos cada uma delas em si mesma.
2. A face objetiva do sentido
Que o sentido é algo de real e objetivo, ou seja, que não é posto ou
criado arbitrariamente por nós, mas está nas próprias coisas, isso �ca
evidente quando se faz a análise da experiência do sentido. De fato, diante
do sentido, nos pomos naturalmente numa atitude de busca, de escuta, de
espera. E, quando o sentido aparece, sentimos que ele se impõe
efetivamente a nós: surpreende-nos, arrebata-nos, ilumina-nos e guia-nos.
E se nos opomos a ele, ele nos resiste. E se não o seguimos, continua, assim
mesmo, a nos acenar e atrair.
Se traduzirmos a experiência do sentido em termos de valor, vemos que
a objetividade do sentido �ca ainda mais clara. A tradução do sentido em
valor é possível, como vimos, em virtude do seguinte encadeamento lógico:
o sentido provém do �m, o �m é o bem que se busca, e o bem é valor;
portanto, o sentido é o valor. Pois bem, postos perante um valor, sentimos
sua atração, sua solicitação, sua provocação. Ele nos exige e nos impele
para o mais, para o mais alto. Essa objetividade, melhor ainda, essa
ascendência e eventual transcendência do valor em relação à nossa
consciência experiencia-se em particular no senso ético, o qual, quando é
seguido, provoca fatalmente em nosso íntimo aprovação e paz de
consciência e, quando é contrariado, provoca desaprovação e remorso.
A experiência da objetividade do valor põe em evidência que o valor é
uma qualidade transcendental que afeta as coisas em sua constituição
própria. As coisas são boas “em si mesmas” (se bem que não “por si
mesmas”, mas pelo Summum bonum, fonte originária de toda bondade).
Elas são ontologicamente dignas e, por isso, apetecíveis, desejáveis,
amáveis. Essa bondade das coisas é natural, nativa. Não é derivada,
deduzida e muito menos projetada por nossa imaginação ou produzida por
nosso livre-arbítrio. De resto, a grande tradição clássica, herdada pela
Igreja, ensinou que a fonte primeira de valor e, por conseguinte, de sentido
de uma coisa é a própria coisa em sua natureza íntima, vindo em seguida, e
só em seguida, a intenção ou o sentido subjetivo, agregando-se, por �m, as
circunstâncias exteriores.78
A objetividade do sentido resplandece quando se trata do sentido do
mundo universo. Como a existência deste independe do homem, seu
eventual sentido independe igualmente dele. Portanto, se o universo tiver
um sentido, esse só pode ser transtemporal. Pois, seo sentido invocado for
posto dentro do tempo, participará de sua problemática (�nitude, morte) e
ele mesmo exigirá um sentido. É o que requer a boa lógica, como mostram
inúmeros pensadores, e dos grandes.79 O sentido do todo não pode, em
absoluto, ser criado pelo homem, mas preexiste necessariamente a ele e o
supera in�nitamente. É, portanto, um sentido supremamente objetivo, por
ser precisamente, segundo a expressão de F. Pessoa, “o inominável
supertranscendente”.80 Sendo “transcendente a mais não poder”, esse
sentido é inalcançável e indisponível ao homem, a menos que ele não se
revele graciosamente e não se entregue de alguma forma.
Ora, a objetividade transcendente do sentido se mostra com toda a força
no mistério da encarnação do Lógos, o Sentido ou Razão de tudo. Nesse
mistério o Sentido tornou-se tão objetivo que se fez “carne” (Jo 1,14),
dando-se, assim, a ver, ouvir e tocar com nossas próprias mãos (1Jo 1,1-
2).81 Dessa forma tornou-se o Norte para onde aponta a agulha magnética
de todos os espíritos. A esses compete apenas, mediante a fé, deixar-se
atrair por esse divino magneto, sem pretender alterá-lo, como diz muito
bem Charles Péguy:
Há gente que quer aperfeiçoar o Cristianismo. É assim como querer aperfeiçoar o Norte, a direção do
Norte. Que prêmio de inteligência não mereceria quem quisesse aperfeiçoar o Norte! Existem
direções, rumos, que foram fixados uma vez por todas: o Norte no mundo físico e o Cristianismo no
mundo místico. Há pontos que foram dados uma vez por todas em ambos os mundos, no mundo
natural e no mundo sobrenatural, no mundo físico e no mundo místico. E todo o trabalho, todo o
esforço deve ser, ao contrário, no sentido de manter esses rumos, essas orientações, em vez de
melhorá-las.82
Mas, se Deus é o sentido absoluto do mundo, não o é em função de si
próprio, mas do próprio mundo, que, sem Ele, seria absurdo e sequer
existiria. Mas se Deus é o sentido absoluto de tudo, qual é o sentido de
Deus? Ora, Deus não tem sentido; Ele é sentido, pura e simplesmente.
Aprouve, contudo, a Deus dar-se um sentido extra se, como professa o
Credo niceno-constantinopolitano: “e por amor de nós homens e de nossa
salvação, desceu dos céus”. É o que se deu no evento-Cristo. Mas, ainda
que a obra salví�ca de Deus tenha o homem por bene�ciário imediato, ela
redunda, ao �m e ao cabo, ad maiorem Dei gloriam, sendo Cristo o
mediador único tanto da salvação do homem como da glori�cação de
Deus. Reencontramos assim a grande espiral da história da salvação: ex
Deo, per Christum, in Deum.
3. A face subjetiva do sentido
A experiência da exterioridade (objetiva) dos valores é, ao mesmo
tempo, a experiência de nossa interioridade (subjetiva), a que apelam os
mesmos valores, em vista de sua apropriação pessoal, de modo a se
tornarem valores acolhidos, amados e seguidos. O valor pede a abertura do
espírito (razão e vontade), como a luz pede a abertura dos olhos e a
música, a dos ouvidos.83 É a ideia de “subjetivação”, que, quando
autêntica, é sempre subjetivação de algo que está aí, e não autoprodução
arbitrária, quando não imaginária.
O momento subjetivante do sentido revela que cada um, como foi dito,
é “pai de si mesmo”, ou seja, forja seu próprio destino, segundo a máxima
antiga: Faber est suae quisque fortunae. Nessa linha, eu “construo” meu
mundo, de modo que “o mundo é meu próprio mundo”, como escreveu
Wittgenstein.84 Não construo, porém, “meu mundo” do nada, ad libitum,
mas reprocessando o mundo que aí está, em sua facticidade, a partir de
minhas próprias opções.
Como enfatizaram os chamados existencialistas, somente o ser humano,
a rigor, “ex-siste”, no sentido de emergir da imanência do mundo para a
liberdade e a criação. “Ex-sistir” seria estar fora e além de si mesmo. É o
que funda a chamada autotranscendência. Enquanto o “viver” é um ato
passivo e, no limite, vegetativo, o “existir” é ativo e posicional, é transiente e
transcendente. Existir signi�ca cumprir a própria vida, desenvolvendo as
múltiplas possibilidades que ela traz. É ser executivamente, erguendo-se
acima do próprio ambiente e de seus condicionamentos. Existir, en�m, é
amar viver, é importar-se com viver; e não viver, assim, sem mais.85
Certo, existir é sair da imanência, mas para ir aonde? Para um existir
mais e um existir melhor. Para tanto, existir comporta um decidir, e isso a
partir do próprio poder-ser. É, pois, um abrir-se ao futuro de si mesmo. O
ser humano é aquilo que pode ser e que decide ser. Sob esse aspecto, a
existência precede a essência, como queria Sartre. A decisão, contudo, não
passará de expressão da “vontade de potência” se não conta com o a priori
do sentido objetivo. Notemos, porém, que existência é mais que abertura
para o futuro de si. É também abertura ao real total, portanto também ao
in�nito. Em síntese, o homem é um ser que “tem” existência, uma
existência relativa, derivada daquele Ser que, por sua vez, “é” existência, a
existência absoluta.86
Já que o sentido, em sua objetividade mesma, corresponde à abertura
estrutural da subjetividade humana, ele não se impõe automaticamente ao
homem nem pode ser imposto violentamente. O sentido pode ser apenas
proposto. Ele só pode, pois, apelar para a liberdade do homem e interpelar
sua consciência, podendo então ser aceito ou rejeitado. Nesse último caso,
porém, quem sai frustrado não é o sentido, que permanece o que é, em sua
soberana objetividade, mas o próprio homem, que perde em integridade e
realização.
Ora, quando é o sentido transcendente do mundo que interpela nossa
liberdade, é então que a interpela no grau mais extremo. A transcendência,
como suprema objetividade, exige a mais radical subjetivação. Essa se
realiza em termos de uma aceitação e de uma entrega que são
intencionalmente ilimitadas. Tais atitudes correspondem, respectivamente,
à fé e à adoração, expressões de uma liberdade em sua abertura mais
extrema. Assim, quanto mais o Summus se torna Intimus, mais o ser
humano se realiza, ou seja, se diviniza.
A liberdade, porém, habitada que é por uma estranha compulsão para o
mal, necessita da libertação da graça para poder crer e adorar comme il
faut. Com efeito, como o escritor convertido Julien Green (+1998) pôs em
relevo em seu romance Moïra, o ser humano nasce marcado por essa
misteriosa e trágica “fatalidade” de pecar, donde o nome do romance.87
Essa “fatalidade”, como efeito da Queda primordial, foi bem descrita por
Paulo nos primeiros capítulos da Epístola aos Romanos, especialmente em
7,14-26. Contudo, mais que móira (fatalidade), valeria chamá-la de anánke
(necessidade), como faziam os antigos, que aplicavam esse conceito não só
aos determinismos exteriores e �siológicos, mas também aos interiores,
como os psicológicos (compulsões) e os morais (vícios).88 Desses últimos,
efetivamente, quem poderá quebrar as correntes senão, como exclama
triunfante o Apóstolo, “a graça de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor” (Rm
7,25)? Essa foi, com efeito, sua experiência maior, como é a de todo aquele
que se converte ao Senhor.
IV. NIILISMO COMO POSIÇÃO INTELECTUAL E SUA REFUTAÇÃO
Ao termo de toda a re�exão de talho �losofante que �zemos nesse
capítulo, ensaiemos uma brevíssima apreciação crítica do niilismo,
primeiro, e principalmente, como pensamento; depois, como �loso�a de
vida; em seguida, como posição fundada no puro devir; e �nalmente, em
suas consequências práticas.
1. Niilismo como �loso�a de rigor
Que vale, pois, o niilismo como lógos ou, melhor, como �loso�a teórica,
condensada na fórmula sumária “tudo é nada”? Digamos de chofre que, em
rigor de �loso�a, o niilismo �losó�co nada vale, e isso a partir de suas
próprias palavras. Pois dizer que tudo é nada não é, porventura, dizer que
a realidade é a não realidade, que o ser é o não ser? Ora, de toda evidência,
isso vai contra o princípio mais elementar de todo o pensar, para não dizer
da metafísica, princípio esse formulado por Parmênides, quando disse: “O
ser é o ser e o não ser é o não ser”, o que Aristóteles denominou “princípio
de contradição” e os modernos de“princípio de identidade”. Portanto, o
niilismo �losó�co é impossível, por ser contraditório.89
Se ele existe, pois está aí, no mercado �losó�co, só pode ser como
pseudo�loso�a, uma �loso�a aparente, em suma, como uma �loso�a
sofística. De fato, como viu Platão, o so�sta se compraz no não-ser,
enquanto o �lósofo busca o ser.90 Efetivamente, dizendo que tudo é nada,
que quer o niilista senão propor uma �loso�a do não ser, ou seja, em
termos técnicos, uma “me-ontologia” (mê on = não ser)? Ora, isso é
possível, sim, mas apenas como retórica. É o que já tinha feito Górgias,
famoso retórico grego do século V, num escrito (o que não aceita o papel?)
que intitulou precisamente “Sobre o não-ser”.91 Essa empresa �losó�ca é
tão extravagante que, para escarnecer do falar empolado e vazio, os gregos
cunharam até a palavra “gorgear” (talvez pudéssemos, por assonância,
traduzi-la por “gorjear”). A sofística niilista hoje é tanto mais sedutora
quanto mais bem falante, como é evidente no caso de Nietzsche. Mas, disse
Platão, quem fala o nada, nada fala.92
2. Niilismo como �loso�a de vida e sua base: o ateísmo
Se como �loso�a de rigor o niilismo é nada, já como �loso�a de vida,
como postura existencial, o niilismo é um “caso sério”. Em verdade, está aí
seu forte. Pois, conquanto tome as vestes do logos, o niilismo é
principalmente um pathos, ou seja, o sentimento do absurdo. O niilista
professa que, embora haja coisas da vida que têm sentido, a vida como um
todo já não tem sentido, pois tudo terminaria na morte, portanto no nada.
Algo disso a�rmam também as religiões, só que essas encarecem mais ainda
a realidade da “outra vida”, coisa que falta totalmente no niilismo.
Ademais, carecendo de logos em sua base, o pathos niilista, embora
beirando o trágico, carece de espessura ontológica. É o que observou K.
Rahner: “Quem vive sem encontrar sentido em sua existência não tem o
direito de considerar muito profundo seu ceticismo. Não é preciso cavar
muito fundo para concluir que nada existe por detrás do mundo visível.
Essa pretensa ‘profundidade’ não se distingue da super�cialidade”.93
Observemos que, como �loso�a de vida, o niilismo não é sequer
originário, pois, como dissemos muitas vezes, o niilismo deriva do ateísmo.
É precisamente porque desertou de Deus que a alma moderna está deserta
de Deus. Escreveu Agostinho com lapidar brevidade: Deseruit et desertus
est: abandonou e �cou abandonado.94 Não admira, pois, que todo niilista
seja ateu.
Mas será todo ateu niilista? Não parece, se nos ativermos ao caso Nietz- 
sche, que se declara ateu, mas se quer ao mesmo tempo “vencedor do
niilismo”. Esse pensador empreendeu efetivamente a tentativa mais
poderosa de fundar o sentido sem apelar para o Transcendente,
substituindo-o pelo próprio imanente, agora radicalizado na ideia de
“eterno retorno do mesmo”. Sem embargo, essa solução revelou-se pior que
o problema posto. Pois falar no “eterno retorno do mesmo” não é o mesmo
que falar no “eterno retorno do absurdo”? Cai-se, pois, aqui, no absurdo de
vencer o absurdo com mais absurdo ainda. Nunca o niilismo havia
ostentado uma face mais horrorosa, se bem que sob a mais bela máscara
literária, pois enquanto os outros niilismos quiseram ser a vitória do “nada
inocente”, o de Nietzsche tornou-se de fato a vitória do “nada doloroso”.95
Forçoso é, pois, concluir que, se todo niilista é ateu, a recíproca também é
válida: todo ateu é de fato niilista, ainda que o negue.
Repitamos: querer dar um sentido à vida fazendo abstração de Deus é
como querer ver furando os olhos. É sem sentido querer encontrar sentido
à exclusão do sentido fontal. Tal é a contradição fatal em que caem os
ateus. Trata-se, porém, de uma contradição mais existencial que lógica,
como a daquele que fecha obstinadamente os olhos para o sol e depois se
queixa de que vive na escuridão. Sem dúvida, a equivalência
“Sentido=Deus” não é autoevidente. Antes, pressupõe duas coisas: primeiro
que Deus existe e, depois, que, se existe, Ele é o sentido de tudo. Sem
embargo, é possível provar (dialeticamente) e até demonstrar
(apoditicamente) ambas as coisas, como efetivamente faremos mais adiante
(cap. VII).
3. O “devirismo” como raiz do niilismo
Mas, se o niilismo é uma �loso�a derivada do ateísmo, o próprio ateísmo
é, por sua vez, uma �loso�a derivada do que podemos chamar “devirismo”,
por admitir tão somente o devir, mas que corresponde ao que outros
chamam imanentismo, �nitismo, relativismo, fenomenismo, secularismo,
materialismo, naturalismo, �sicalismo etc. No plano existencial o
pensamento do “devirismo” é vivido em termos de “opção pela �nitude”
ou, mais simplesmente, como um limitar-se a “cuidar do próprio jardim”,
segundo a fórmula voltairiana.
A título de pensamento �losó�co, o devirismo se refuta sem di�culdade,
mostrando que não há devir sem uma realidade eterna, transtemporal, em
que ele se fundamenta e sustenta. Pois o ser �nito se apoia necessariamente
no ser in�nito, o ser contingente no ser necessário, o ser móvel no ser
imóvel e assim por diante. É o que a�rma, de modo límpido, Aristóteles:
“Não poderia existir o devir (génesin) se não existisse nada de eterno
(aídion)”.96 E mais adiante: “Se, além do sensível, não existisse nada,
sequer haveria princípio, ordem, geração, movimento cósmico. Deve, pois,
existir um princípio do princípio”.97
Agora, radicalizar o devirismo ou o �nitismo a ponto de negar que exista
qualquer fundamento nas coisas, como pretende hoje o autoproclamado
antifundacionalismo, é negar não só a questão do sentido, mas a própria
�loso�a, e cair na so�staria. Pois a busca pelo fundamento de tudo ou pelo
princípio que uni�que toda a realidade, busca que se chamou de “paixão
jônica”, constituiu não só a origem histórica de toda a cultura ocidental,
em boa parte hoje mundializada, mas representa, mais radicalmente ainda,
sua alma secreta e perene.
Ora, se as coisas desse mundo não podem existir sem um fundamentum
ou principium, também não podem existir sem um �nis, um sentido para o
qual foram feitas, como vimos há pouco, ao descrevermos a interpelação
recíproca entre o Alfa e o Ômega. Desse modo, o niilismo como falta de
um �m absoluto tem sua origem no niilismo como falta de um começo
absoluto, ou seja, como ateísmo. Aparece assim, mais uma vez, como o
pensamento do absurdo se impõe apenas em virtude do falso pressuposto,
tácito ou confesso, de que as coisas não têm fundamento, sendo, por isso,
destituídas de todo conteúdo ou substância. Seriam como cebolas: sem
caroço algum, como querem nossos “desconstrucionistas”.
4. Algumas consequências práticas do niilismo
Agora, quanto às suas consequências éticas, o niilismo representa uma
�loso�a cômoda, enquanto favorece a autodesresponsabilização moral.
Com efeito, se a morte zera tudo, que importa que se viva como canalha ou
como pessoa decente? O próprio Eclesiastes confessa, desanimado, que, se
o destino do sábio e do insensato é o mesmo, não há vantagem em ser sábio
(cf. Ecl 2,12-16). Daí para o hedonismo é um passo. De fato, o niilismo
intelectual, �loso�a de elite que é, funciona frequentemente para justi�car,
quando não ocultar, um ethos hedonista, apenas aureolado daquele
re�namento chique que toda intelligentsia gosta de ostentar.
Digamos �nalmente que o niilismo contribui, mau grado seu, para
evidenciar, por contraste, o próprio pensamento do sentido. Pois, na
contraluz da fórmula niilista “Tudo vem do Nada e volta para o Nada”,
resplandece a fórmula do sentido “Tudo vem do Ser e volta para o Ser”.
V. SCHOLIA
1. Criar sentido: a pretensão da modernidade tardia
Para a modernidade ilustrada do século XVIII, a raison racionalista ainda
oferecia uma base universal para os valores ou sentidos, como mostrarão
depois suas melhores conquistas: os direitos humanos, a democracia e a
tecnociência. Já para o tardo-moderno (segunda metade do século XX),
que reduziu a razão a seu uso tecnocientí�co, o sentido da existência se
instaura a partir de um ato de liberdade, entendida como poder de
fundação e de criação.
Sem sombrade dúvida, é perfeitamente possível, além de legítimo,
“produzir” um sentido, ou seja, investir uma coisa com uma �nalidade
particular. Não é o que acontece com os produtos da criação humana?
Depende efetivamente do homem tanto construir um edifício quanto dar-
lhe o uso ou o sentido que quiser, como o de ser um lar, um santuário ou
uma prisão. É justamente por produzir algo com um propósito consciente
e livre que o homem se distingue do animal, como mostrou Marx na
análise do trabalho.98 Portanto, em relação aos artefatos, o homem cria
realmente sentido.
Entretanto, em relação às coisas da natureza, o homem encontra um
sentido já nelas inscrito e que ele é chamado a descobrir e respeitar, como
ensina a Laudato si’.99 Os gregos já distinguiam a ordem da physis
(natureza) e a ordem do nomos (lei). A primeira tem suas leis e �ns
próprios, que o homem precisa conhecer e pôr, em seguida, a seu serviço.
O nomos corresponde ao que chamamos cultura: é o que o homem estatui
livremente, nunca, porém, idealmente, em contradição com a physis. Por
isso mesmo, no caso em que o homem for retrabalhar e ressigni�car as
coisas naturais, ele precisa partir do reconhecimento do valor ou sentido
autônomo dessas coisas. Cedendo, contudo, à arrogância e à con�ança em
seu poder técnico, o homem moderno fez o contrário, provocando, entre
outros efeitos nefastos, a atual crise ecológica.100 Quanto à existência
humana, ela me é dada de imediato pela natureza e �nalmente pelo
Criador. Por uma parte, ela já vem carregada de um sentido, quer natural
quer sobrenatural, sentido de que não posso dispor a meu bel-prazer. Por
outra parte, ela me é oferecida, junto com seu sentido originário, para que
eu a acolha, a reconheça e a reelabore em liberdade, de acordo, porém,
com seu sentido originário.
Não é, contudo, assim que pensa o homem da modernidade tardia. Para
ele, Deus morreu, não existem mais valores objetivos, tudo é relativo ao ser
humano, tudo é permitido. O tardo-moderno se entende como “sujeito
ponente” ou “constituinte”, tanto que se compraz em falar na “produção de
sentido”.101 Fala também em “doação de sentido” (sinngebung), em
“realização de sentido (sinnverwirklichung ou sinnerfüllung) ou ainda em
“criar sentido” (sensemaking). Tudo isso se reduz ao “construtivismo” pelo
qual certas organizações, inclusive religiosas, “criam” identidades,
pertenças e quadros interpretativos para dar sentido retrospectivo a
eventos discrepantes em relação às expectativas de seus membros.102
A própria história, para os pós-modernos, deixa de ter qualquer curso
objetivo; antes, ela rola, como uma esfera, em todas as direções. Assim se
exprime um deles: “A história não tem sentido; tem somente o sentido que
lhe imprimem os que a fazem”.103 É como o �lósofo Theodor Lessing
(+1933) intitulou um livro seu: “A história como doação de sentido para o
sem-sentido”.104 A história não passaria do grande horizonte dentro do
qual os sentidos nascem e morrem. Pois, se tudo é �lho de Cronos, tudo
também será devorado por ele.
Ainda nos meados do século XIX, Marx, nas pegadas de Hegel, falava na
“autoprodução do homem por seu trabalho e ação em geral”.105 Contudo,
foi a partir dos anos sessenta do século XX que se passou a re�etir mais
largamente sobre a questão da “invenção de si” e da construção da própria
“identidade”.106 Passou-se então a lucubrar os chamados “processos de
subjetivação”, entendidos como estratégias pelas quais o sujeito cria ou
produz seu próprio estilo de vida a partir do que recebe ou experimenta
em seu mundo vital (família, mídia, amizades, religião etc.). É assim que,
para essa corrente de pensamento, cada um fabrica seu próprio sentido de
vida. Nessa questão, também os partidários do “debolismo” pleiteiam a
escolha livre dos sentidos a partir dos “repertórios” culturais em presença,
ou mesmo a criação do sentido. Para eles, defender a objetividade dos
sentidos é coarctar o exercício da liberdade e pavimentar a via para a
imposição e a violência.107
Ora, que o sentido implique certa subjetivação, isso precisa ser
reconhecido, como vimos logo atrás. Contudo, a subjetivação não pode ser
absoluta e sequer prioritária. Pois inevitável é a pergunta: A partir de que
princípios ou critérios criar ou escolher esse ou aquele sentido? Sem uma
instância objetiva de julgamento, seria o mesmo matar ou morrer, amar ou
odiar, blasfemar ou louvar. Ora, sem uma base de verdade, como vimos, é
impossível obter um sentido verdadeiro. Contudo, quer-se hoje proceder à
“produção da verdade”, contradizendo tanto o mais comezinho bom senso,
quanto o grande pensamento �losó�co, para ambos os quais a verdade se
busca e acolhe, não se produz, assim como não se produz o sentido que ela
funda. Mas não: o tardo-moderno pretende recriar o mundo à sua imagem
e semelhança, bem como reinventar sua vida e seu sentido. Mas isso é tão
absurdo como uma máquina escrever seu próprio manual de uso.108
Há também quem invoque a imaginação, vista como um poder
meta�sicamente criador de sentido e reencantador, como sustentou o
�lósofo hispano-americano George Santayana (+1952). Repercutindo o
verso de Shakespeare: The best in this kind are but shadows (em tudo isso
o melhor ainda são as sombras), o referido pensador julga que, sendo o real
podre, o que temos de melhor é ainda a imaginação, que nos permite
idealizar o real, cercando-o de um halo de sentido.109 Nosso Rubem Alves
(+ 2014) se aproxima dessa espécie de “metafísica da imaginação” ao falar
da religião e da teologia como de algo que se passa essencialmente em
nossa representação e é produto de seu poder fabulador. Diz que, se temos
um olho para ver as coisas existentes, temos outro para ver as coisas
imaginadas ou desejadas, como sucederia com o mistério do Natal.110
Aqui, entretanto, se fundem e confundem a ordem metafísica e a ordem
imaginária, tornando indistinguíveis teologia e literatura, �loso�a e
fantasia, e, no extremo, doxa e episteme, como se imaginação fosse o
mesmo que intelecção.
Como explicar o triunfo do subjetivismo tardo-moderno em relação ao
sentido? É que, eliminando o Absoluto, cada um acaba se entendendo
como o absoluto de si e de sua vida; em suma, como autocriador; portanto,
como origem e de�nidor dos próprios valores. De fato, o efeito �nal e fatal
da “morte de Deus” é isto mesmo: a perda de qualquer fundamento sobre o
qual construir um sentido sólido, com a consequente exposição da vida à
violência da subjetividade infrene. Tire Deus do mundo, e o que sobra? O
eu e seus caprichos. Era o que asseverava o Papa Ratzinger logo no início
de seu ponti�cado. E enquanto o grande lema de Jesus era: “Não o que eu
quero, mas o que tu queres”, o do homem sem Deus é: “Não o que tu
queres, mas o que eu quero”. Ao contrário de Maria, que disse em sua
humildade: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”, o homem totalmente
emancipado diz com insolência: “Faça-se em mim segundo a minha
palavra”.
Mostra, entretanto, a experiência mais comezinha que, na prática, a
opção de uma subjetividade autolegisladora, longe de propiciar liberdade e
generosidade, favorece o egoísmo, cuja expressão mais vulgar é o
hedonismo. A alternativa heroica é coisa de poucos. Seriam os “Super-
homens” de Nietzsche, os “ex-sistentes” e “autênticos” de Heidegger, as
“personalidades” ou a “nova nobreza” de Jaspers,111 os “anarcas” de
Jüngel,112 todos, espécimens que o século XX produziu às dúzias, mas por
cuja arrogante “autenticidade” as massas humanas pagaram caríssimo. É
um fato que as tragédias sangrentas do século XX se devem à hybris pela
qual o homem se quis produtor e recriador de si e do mundo, ideal que se
encarnou nas �guras lúgubres desses “engenheiros da história” que foram
Stalin, Hitler, Pol Pot et caterva. Aí não sobrou rastro da naivität e a pietät
do pensamento, a que se referia P. Wust para falar da essência mais íntima
da razão, que a faz inclinar-se reverentemente perante a verdade, em vez
de inclinar violentamente a verdade a seu arbítrio.113
Para legitimar a pretensão à autofundação, muitose sempre árduo.
É o que modestamente intentamos nessa obra, sempre conscientes de
nossos limites pessoais, reconhecíveis quer pelo esforço da re�exão, quer
pelo labor da argumentação, quer pela fadiga da redação.
III. ESTRUTURA DO VOLUME ATUAL
Indiquemos os capítulos em que o presente volume se estrutura,
apresentando seu conteúdo essencial.
O capítulo I começa por relembrar o que dissemos no volume I sobre a
semântica do sentido, mostrando que se trata de um conceito todo
polarizado pela ideia de �nalidade. Retomaremos, em seguida, a descrição,
agora com novas tonalidades, da experiência do niilismo hoje. Insistiremos,
por �m, em dizer que a causa de fundo da atual crise de sentido está no
abandono do transcendente.
No capítulo II diremos que a “questão do sentido” pressupõe a “questão
da verdade” e, antes ainda, a “questão do ser”. Pois, como podemos decidir
do sentido da existência sem re�etir sobre o que é a existência e, antes
ainda, o que é o ser? Ora, o saber do ser como tal é tarefa da “�loso�a
primeira”, chamada comumente metafísica. Como se vê, do ponto de vista
antropológico-existencial, a questão do sentido não é uma questão
primeira, mas uma questão derivada. Pois, antes de vermos se uma coisa
tem sentido para nós, precisamos examinar o que ela é em si mesma, sem o
que, cai-se numa visão meramente subjetiva de sentido. Mostraremos
efetivamente que o sentido não é algo arbitrariamente inventado, mas
também não é um destino inelutável, sendo antes uma oferta a ser
livremente acolhida e subjetivamente vivida.
O capítulo III tratará do desejo de sentido e de sua consistência real. Por
sua extensão material, esse capítulo constará de duas partes. A primeira
(capítulo III/1) abordará o desejo de sentido como uma dimensão natural
ou constitutiva do ser humano, e isso pelo fato de ser esse, em sua essência,
espírito. Mostraremos, ademais, que o desejo do sentido não está inscrito
apenas no ser humano, mas também nas próprias coisas, enquanto são
dinâmicas, e até mesmo no coração do ser, enquanto é dotado de valor e
�nalidade. Nesse caso, a questão do sentido não pressupõe, mas põe a
questão metafísica.
Já na segunda parte desse capítulo (III/2), confrontaremos o que foi dito
do desejo natural de sentido último com a problemática moderna do
desejo, enquanto essa concebe tal objeto como criação fantástica,
puramente subjetiva, do próprio desejo. Mostraremos, ao contrário, que o
desejo natural de sentido último tem um caráter objetivo ou, melhor,
objetivante, apontando, ainda que de modo geral e indeterminado, para a
ideia de um in�nito realmente existente, que seria Deus.
O capítulo IV examina o acesso epistemológico correto para se
encontrar o sentido da vida. Veremos que o discurso apto para elaborar a
questão do sentido é o que a grande tradição chamou “sabedoria”,
entendida efetivamente como o saber supremo do que é supremo. Veremos
também que uma sabedoria restrita ao horizonte �losó�co-racional pode
chegar a descobrir, sim, o sentido da existência, mas tal descoberta
permanece extremamente precária, devendo ser completada e
transcendida por uma fonte mais alta, que é o saber revelado.
Vem em seguida o capítulo V, que examina a questão da felicidade,
quali�cada pelo chamativo nome de “face ridente” do sentido.
Mostraremos que a felicidade consiste essencialmente na união com o
Transcendente. Veremos também que, vista a desproporção entre o desejo e
seu objeto, a busca da felicidade nesta vida revela-se �nalmente aporética,
só podendo se resolver efetiva e de�nitivamente no além e como oferta do
além.
O capítulo VI discutirá onde se encontra o sentido último do mundo
universo, visto como morada do homem. Diremos que o mundo existe, de
imediato, em função do ser humano e, �nalmente, do Criador. A revelação
cristã acrescenta que o mundo foi feito por Cristo e para Cristo. Seja como
for, o sentido último do todo, incluindo o homem, está e só pode estar, por
exigência lógica, fora do todo. Será, pois, um suprassentido. Somente nessa
perspectiva se supera tanto uma visão imanentista do cosmos (�sicalismo),
como uma visão reduzida do homem (humanismo fechado) e da sociedade
(historicismo).
O capítulo VII discutirá a identidade desse suprassentido. Qual é seu
nome? Em resposta, defenderá a tese de que o suprassentido responde pelo
nome de “Deus”, como designação do �m de tudo e, antes ainda, do
princípio de tudo. Buscaremos mostrar que só Deus responde de modo
de�nitivo e pleno à questão do sentido. Ele seria, pois, o supremo
signi�cante que ressigni�ca tudo, o metavalor que valora tudo e o único
poder que vence o nada. Fica assim racionalmente posta a segunda cabeça
da ponte por sobre o abismo teórico que se abre entre sentido e Deus. Para
as grandes maiorias, porém, a passagem para o outro lado do abismo se dá
não através da razão, mas da religião, que é, por excelência, a “instituição
do sentido”. A Igreja em particular, enquanto se apresenta ao mundo como
a “comunidade de salvação” em Cristo, pode-se dizer o “sacramento do
sentido”. Entretanto, para serem ponte para o sentido “Deus”, as religiões
precisam manter a pureza de sua identidade e a e�cácia de sua ação, sob
pena de se transformarem em seu contrário, ou seja, em fautores de
niilismo.
O capítulo VIII e último tratará especi�camente do sentido, enquanto
revelado e encarnado em Cristo. A partir de argumentos quer de teor
histórico, quer teológico, buscaremos mostrar que o “homem Jesus” tornou-
se, do ponto de vista histórico-salví�co, a via real para o destino de�nitivo
do homem, destino esse simbolizado pela �gura evangélica do Reino. É
principalmente por seu mistério pascal que Jesus se revela como o
vencedor do nada, hipostasiado no pecado e na morte. Se Jesus, como
homem, é o sentido-rumo de tudo, já como Deus, é o sentido-destino de
tudo. Mas, enquanto Cristo se ergue como o ícone absoluto do sentido,
Maria, sua mãe e colaboradora, se levanta como ícone do sentido ao modo
feminino.
Como se vê, a problemática deste volume é fundamentalmente teórica,
especi�camente �losó�co-teológica. Nela buscaremos equacionar e
resolver a quaestio magna do sentido segundo suas principais linhas de
força. Parece temerário meter ombros a tão momentosa questão e
apresentar-lhe uma saída. Já não cantara Heine: “As têmporas dos tristes
mortais, cingidas de mitras antigas e de negros barretes, atormentam o
cérebro em vão” com o intuito de resolver o “enigma da vida”?4
Mas não. Apostando na força da própria razão e confortados pela luz da
fé, ousamos, sim, assumir tal empresa, sempre, porém, cum con�dentia
divini auxilii, como escreve o Angélico ao abrir a “Suma”. À gravidade da
questão proposta, assim como à consciência de nossa limitação no
enfrentá-la, parecem assentar bem estes versos do grande �orentino:
Mas quem pensar no momentoso tema
e nos ombros mortais que o acometem
entende que esses tremam sob a carga.
Tal mar não é para pequena barca,
é mar que fende apenas proa audaz
e requer piloto que não se poupe.5
I
CAPÍTULO
Niilismo: pathos dominante da cultura
moderna
I. ESCLARECIMENTO SEMÂNTICO
Antes de abordarmos o tema anunciado no título, precisamos fazer aqui
alguns esclarecimentos de caráter semântico acerca do termo “niilismo” e,
antes ainda, de “sentido”, pressuposto pelo primeiro termo. Pois, para
vencer o “niilismo” e dar “sentido” à vida, importa ter ideias claras. Vida
com sentido só pode ser vida clara. Ora, a clareza da vida pede a clareza
do pensamento. E a clareza do pensamento começa com a clareza da
linguagem.
Semântica é condição básica de qualquer debate, sob pena de se cair no
so�sma mais elementar: a ignoratio elenchi, ou seja, a ignorância do que está
em debate. Sem essa cautela metodológica, muitos pensadores não
equacionaram corretamente essa questão decisiva, a do sentido, deixando-
a em suspenso. Daí a necessidade de fazermos aqui, logo na entrada, uma
declaratio terminorum.
1. “Sentido”: o que é isso?
Retomemos aqui sucintamente o esclarecimento dado sobre o sentido de
“sentido” logopensadores
modernos, desa�ando a grande tradição ética, quer �losó�ca, quer
religiosa, que fundava o “bem para nós” no “bem em si”,114 sustentam, ao
contrário, que o bem e o mal, o sentido e o absurdo estão em nós, em nosso
juízo, e não nas coisas, em sua estrutura entitativa. Spinoza, por exemplo,
a�rmava que bem é tudo o que favorece a conservação de nosso ser, e mal,
tudo o que a prejudica.115 Mesmo para o severo Wittgenstein, a ética diz
respeito apenas à nossa vontade e nada ao mundo.116 O cume do
subjetivismo ético é atingido por Nietzsche, ao proclamar: “O homem é
que pôs valores nas coisas a �m de se conservar. Foi ele que deu um
sentido às coisas (...). Por isso se chama ‘homem’, isto é, um avaliador.
Avaliar é criar. (...) Pela avaliação se dá valor. Sem avaliação, a noz da
existência seria oca”.117
Inúmeros são os escritores de hoje que declaram que a vida por si
mesma não tem sentido, dependendo de cada um conferir-lhe um
qualquer. Diz, por exemplo, H. Miller: “Já que a vida não tem sentido, é
preciso dar-lhe um”. Também para E. Fromm, a vida só tem o sentido que
cada um lhe atribui. Um �lósofo brasileiro diz que a vida só tem o sentido
que cada um lhe confere a partir do que é e do que quer ser.118 Saint-
Exupéry deu forma esotérico-literária à essa opinião com uma sentença,
hoje banal: “Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a fez tão
importante”.119 Mas tal pensamento não equivale no plano afetivo ao não
menos banal “vale quanto custa”? A verdade não estaria exatamente no
inverso: “Foi a importância da tua rosa que valeu o tempo que perdeste
com ela”?
Efetivamente, Pascal já tinha notado: “Inúteis são os protestos da razão:
esta não pode pôr o preço nas coisas”.120 Isso nada mais é que eco do dito
peripatético: Existimare non est in nobis: não compete a nós dar o preço
das coisas, ou seja, estabelecer seu valor. O que podemos é apenas
reconhecer, registrar e declarar, tais almoxarifes morais, o valor que as
coisas trazem embutido nelas mesmas. O homem é, sim, um “avaliador”,
mas apenas enquanto �xa o preço (subjetivo) das coisas por seu valor
(objetivo). O contrário, como querem os tardo-modernos, nos leva à
axiologia do mercado selvagem, se de axiologia ainda se pode falar.
Se colocamos acima a questão do sentido como derivada da questão da
verdade e, antes ainda, da questão do ser, foi para dizer que a raiz do
sentido é algo que lateja no coração das coisas, antes ainda que lhes
façamos qualquer pergunta. Por certa intuição ou “senso do sentido”,
percebemos que o próprio ser já é bom em si, tem valor, pode ser buscado
como �m e pode conferir, por isso mesmo, sentido à vida. A vida aparece
então como possuidora de uma solidez ontológica que a torna con�ável.
Experimentam-se as coisas como “sensatas” e válidas em sua textura
autônoma, podendo-se nelas apoiar, sem que nos defraudem e traiam. Ora,
se o sentido está latente nas coisas como as pérolas no fundo do mar, ao
homem nada mais resta senão buscar essas pérolas, recolhê-las, para com
elas se enriquecer ou então se adornar.
2. O equívoco dos antigos: o destino ou a fatalidade do
sentido
Como antípodas dos tardo-modernos, os antigos, em geral, pensavam o
sentido como algo de predeterminado. Era o destino, que os gregos
chamavam ora moira (sorte inevitável de cada um), ora heimarmene
(fatalidade), ora ananke (necessidade, determinismo), ora ainda tyche
(acaso, fortuna).121 Os latinos falavam no fatum, visto como uma força
totalmente transcendente e heterônoma, a que tudo estaria submetido,
homens e deuses que fossem. A verdade é que um senso de fatalidade
pesava sobre a maioria das culturas do mundo antigo e, mais ainda, sobre
as do mundo arcaico.122
Na esfera dessas culturas, o sentido último de tudo já está dado e é
inexorável. O homem é apenas joguete nas mãos de uma potência suprema
e estranha. Sua liberdade só vale para algumas jogadas, enquanto o
resultado �nal do jogo já está dado, e é implacável. Heitor, antes de partir
em combate contra Aquiles, consola a esposa Andrômaca, dizendo-lhe: “Ao
destino homem algum pode escapar, seja ele covarde ou corajoso, uma vez
que nasceu”.123 O fatalismo de Homero é partilhado também pelos
trágicos gregos.
Também junto aos antigos germanos a crença no destino era central.
Repristinada pelo nazismo, foi condenada por Pio XI nestes termos: “Não
crê em Deus quem (...), segundo uma pretensa concepção dos antigos
germanos de antes de Cristo, coloca o sombrio e impessoal Destino no
lugar do Deus pessoal”.124 Ressaibos dessa concepção arcaica subsistem na
ideia heideggeriana de geschick (destino), visto como a “ultrapotência” que
insere o homem inelutavelmente no tempo e o faz produzir geschichte
(história).125 Também Splenger julgava que as civilizações não são regidas
por decisões ou leis, mas por um poder mais alto: o famoso “Destino” ou
Moira.126
Para o Islã, a ideia de destino se situa entre a da providência cristã e a da
fatalidade pagã. Da primeira, o Islã retém a ideia da vontade soberana de
Allah e de seus decretos. Da segunda conserva a ideia da inexorabilidade
desses decretos, independentemente do que façam os homens. Tal é, em
particular, o signi�cado da surata 97 do Corão, intitulada Al-qadr, onde se
fala justamente da “noite de al-qadr”, ou seja, a “noite do destino”.127 É
crença, entre os muçulmanos, que nessa noite são de�nidos, do modo
irrevogável, os decretos de Deus.
A doutrina da predestinação de São Paulo, desenvolvida um tanto
rigidamente por Santo Agostinho, com sua ideia de massa damnata, foi
ulteriormente enrijecida por seus intérpretes, como Gottschalk, Calvino e
Jansenius, levando ao que se convencionou chamar de predestinacionismo.
Contudo, o Magistério da Igreja sempre rejeitou qualquer predestinação
fatalista que comportasse a anulação do livre-arbítrio.128 Com efeito, o
conceito de destino fatal se opõe a uma antropologia que leva a sério o
homem e sua liberdade, como é a do cristianismo, que além da providência
divina, sempre acreditou na liberdade humana e nos preceitos da oração e
da correção fraterna. Desde cedo, a religião cristã se opusera tenazmente à
sombria concepção da fatalidade, largamente difundida em todo o mundo
helenístico.129 Eis as palavras atribuídas a Clemente de Alexandria: “Os
que creem em Cristo, passaram do Reino da Fatalidade (heimarmene) para
o Reino da Providência”.130 Para Eusébio de Cesareia, fatum é um “nome
vazio”, “inventado pelo Diabo”. E para Gregório Magno, até seu uso deveria
ser rejeitado.131
Note-se que o velho “destino” reaparece hoje em correntes do marxismo
e do freudismo, sobretudo no estruturalismo, enquanto encarecem de tal
maneira o poder das “estruturas” que acabam reduzindo a liberdade a uma
ilusão. Por outro lado, para vencer o “destino das estruturas” não basta
apelar para o poder criativo da subjetividade, como propõem o
existencialismo e outros voluntarismos, inclusive de corte marxista.132 Só
uma subjetividade que se faz medir pela verdade e se abre ao evento da
graça tem condições de sobrepujar as estruturas vigentes, seja para alterá-
las, seja para criar novas.
Digamos en�m que se usa às vezes “destino” também para designar as
determinações a que a natureza e as circunstâncias nos submetem. Seria
tudo o que cabe em sorte a alguém, não no �m da vida, mas em seu curso:
o tempo e o lugar do nascimento, o sexo, a idade, os pais, a educação, tal
ou tal sistema econômico, político ou outro.133 Corresponde ao que os
estoicos chamavam “o que não depende de nós”.134 Trata-se, contudo, aí
de um uso ambíguo de “destino”, pois dá a entender que tais
determinações têm, sobre a liberdade, uma força determinante, e não
apenas condicionante. Efetivamente, está sempre no poder do homem livre
assumir ou não tais determinações, ressigni�cá-las e eventualmente alterá-
las.
Isso vale especialmente para a política, enquanto processo que pode se
impor à liberdade física do homem, mas não à sua liberdade espiritual,
como é evidente no revolucionário e mais ainda no mártir. Portanto, só em
termos muito relativostem razão Napoleão quando disse a Goethe em
Erfurt: “A política é o destino!”.135 Tem mais razão Heidegger ao
contrapor-lhe este outro dito: “O espírito é o destino”, argumentando que a
“essência do espírito é a liberdade”.136 Isso, em verdade, vai na linha do
decisionismo ao qual, no plano prático, se inclinava o �lósofo, enquanto,
no plano teórico-�losó�co, como vimos, aproximava-se antes do fatalismo
de corte vétero-germânico.
3. “Destino” como equivalente legítimo de �m ou sentido
Pode-se, contudo, entender “destino” simplesmente como sinônimo do
termo �nal da existência, da mesma forma como se fala do “destino” de
uma viagem. Nessa acepção, perguntar sobre o sentido da vida é perguntar
sobre o destino do homem. E sobre essa pergunta se debruçaram todas as
sabedorias do mundo, como registra a encíclica Fides et Ratio (n. 1,2). Tem
razão quem disse: “Chegar à morte sem ter pensado sobre o destino
humano é morrer como um cão”.137
Todo homem tem seu destino, isto é, certo curso de vida e um termo
determinado. Diz a Escritura: “O Senhor é quem dirige os passos do
homem. Como poderá o homem compreender o próprio destino?” (Pr
20,24). Jesus, do mesmo modo, mostra-se consciente de ter um destino,
como quando diz: “O Filho do Homem vai por seu caminho, como está
determinado” (Lc 22,22). Aqui “determinado” nada tem de determinístico,
mas se refere à vontade soberana e amorosa do Pai. Outra vez, Cristo diz
que cumpre as “Escrituras” (Mc 14,49; 15,28; Lc 24,27.32; Jo 19,24.28.37)
ou simplesmente “o que está escrito” (Lc 18,31; 24,46). Aqui igualmente
não há nada do fatalístico maktub islâmico, mas apenas a expressão do
plano amoroso do Pai, que solicita a vontade livre do Filho, como se pode
notar em sua oração no Getsêmani: “Abba, não o que eu quero, mas o que
tu queres” (Mc 14,36).
Mais em geral, “destino” coincide com noção de providência divina.
Ensina o Vaticano I: “Todas as coisas que Deus criou, Ele as guarda e
governa através de sua providência” (DH 3003). Nessa acepção precisa,
Santo Tomás tem por aceitável o uso da palavra “destino”.138 Leibniz
distingue o fatum christianum, o mais livre de todos, do fatum
mahometanum, assim como do fatum stoicum, o mais coagente.139
Camões, contudo, na linha de Gregório Magno que evocamos, prefere
evitar o termo “fado”, de conotações pagãs, substituindo-o pelo de
“providência”, como se vê nestes versos de Os Lusíadas: “Ocultos os juízos
de Deus são; / As gentes vãs, que não nos entenderam, / Chamam-lhe fado
mau, fortuna escura, / Sendo só providência de Deus pura”.140
Embora o termo “providência” (prónoia) tenha sido tomado de
empréstimo, pelos Padres, ao estoicismo, ele foi expurgado de todo e
qualquer traço de fatalidade que porventura nele subsistisse. Para a fé
cristã, a Providência inclui, não exclui, a ação livre do ser humano. O
plano da Providência implica o encontro, conquanto desigual, de duas
liberdades: a divina e a humana, de modo que a divina, sem destruir a
humana, mas assumindo-a, acaba prevalecendo. Portanto, o destino para o
cristão corresponde ao Plano de Deus, à Vontade do Pai, ao Governo divino
do mundo, onde o homem é chamado a ser parceiro de Deus, conquanto
menor. Assim, pôde escrever Agostinho: “Nada acontece neste mundo
visível sem que, do fundo de seu palácio invisível, o sumo Imperador não
tenha ordenado ou permitido”.141
Ora, se Deus é efetivamente o �m absoluto do mundo, o ponto ômega
da história (cf. Ap 1,8), pode-se declarar com toda verdade: “Deus é o
destino”. De fato, o mundo retornará inescapavelmente a Deus, por bem
ou por mal. Como todos os rios dão no mar, assim todas as coisas
desaguam em Deus. “Mesmo aqueles que o transpassaram” (Ap 1,7),
mesmo os que querem fugir d’Ele, dão �nalmente de encontro a Ele, como
diz Santo Agostinho: “Querendo subtrair-se à tua bondade, deram na tua
justiça e caíram sob a tua severidade”.142
Ora, para a fé, como veremos no último capítulo da presente obra, o
destino divino do mundo se encarnou em Jesus de Nazaré. Assim, a
a�rmação de Cristo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” equivale a
dizer: “Eu sou o destino”.143 De fato, Cristo, por ser Deus com o Pai (cf.
Ap 1,8; 21,6), é também o Ômega da história, seja esta pessoal, social, ou
cósmica (cf. Ap 22,13). Cristo é, pois, o Destino do mundo, o Sentido de
tudo.
Aqui a “roda” inexorável do destino antigo, que Nietzsche quis repor em
movimento, é substituída em de�nitivo pela “rota” de uma destinação
livre.144 Quer dizer que aqui não existe “destino” como fatalidade
impessoal e cega, mas mais propriamente “destinação” como desígnio
pessoal de Deus, ao qual o homem é chamado a participar.145 O fatum
cristão tem nome, rosto e coração, seja do lado de Deus que o estabeleceu,
seja do lado do homem, seu destinatário. É também esse caráter pessoal e
livre que está por trás dos numerosos dei (era necessário) e derivados,
bastante presentes no Novo Testamento (cf. Lc 9,22; 22,37; 24,26.44; Jo
3,7.14.30 etc.). Trata-se aí da chamada “necessidade hipotética”, que, por
mais imperiosa que pareça, se dá sempre num contexto de uma aliança
libérrima entre Deus e o homem.
Assim, o sentido último está imperiosamente dado, sim, mas não sem
solicitar o consentimento e a acolhida do homem. Ele é graciosamente
proposto, jamais imposto. Se é infalível, não é, de modo algum, fatal. Por
infalível, o sentido �nal acabará se cumprindo irresistivelmente, mesmo
que o homem lhe resista até a obcecação. Só que, neste caso, o destino por
Deus estabelecido não se cumpre em favor de quem lhe resistiu,
resultando, antes, em sua perda e condenação.146 Ao contrário, para
quem a ele aderiu se resolverá em recompensa. Daí dizer o salmista: “Meu
destino está seguro em tuas mãos” (Sl 15,5), designando inclusive “destino”
com outras palavras, como “parte”, “cálice”, “lote” e “herança” (v. 5-6).
Tirante seu aspecto impessoal, certeiro é o célebre verso do estoico
Cleantes: “O destino conduz quem nele consente e arrasta quem lhe
resiste”.147
Agora, quais sejam os caminhos concretos que a Providência adota para
realizar o plano de sua vontade na existência pessoal, histórica e cósmica;
por outras, qual seja o sentido particular desta ou daquela peripécia do
drama da vida e da história, quer nos aspectos que chamamos anódinos,
quer nos que julgamos trágicos, tudo isso está oculto sob os espessos véus
do mistério. O que parece casual pode se revelar no �m providencial,
como intuiu a poetisa paranaense Helena Colodi, ao escrever: “Um
encontro ocasional altera todo um destino”. Só a fé garante que tudo
desemboca num destino de misericórdia, que tudo redime, tudo recapitula
e passa tudo a limpo. Daí que, perante os grandes dramas da vida, ao
cristão só resta dizer, como Nicolau de Cusa: “Ignoro, mas adoro”; ou como
Paulo: “Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são
impenetráveis seus juízos e inexploráveis seus caminhos” (Rm 12,33); ou
mais ainda como Jesus agonizante: “Pai, em tuas mãos entrego o meu
espírito” (Lc 23,46).
Isso, contudo, não impede o teólogo de perscrutar, sedulo, pie et sobrie,
como recomenda o Vaticano I (DH 3016), os planos abissais de Deus, tal
como fez o próprio Paulo na Carta aos Romanos, ao longo de três densos e
tensos capítulos (9-11) a respeito do “destino” de Israel. Foi somente
depois de ter encarado o mistério e sentido de sua vertigem que o Apóstolo
experimentou toda a sua abissalidade. Ao contrário, contentar-se, perante
o incompreensível, em fechar os olhos, baixar a cabeça e dizer logo
“amém” não é digno de um ser racional e desonra Quem o fez tal.
Para fechar esse item, digamos que, perante o destino, há para o homem
duas posições de fundo, dependendo de como o destino é concebido: se o
destino equivale à fatalidade, segue-se a resignação amarga do homem
antigo ou então o desa�o despeitado, mas �nalmente impotente, de
Prometeu, dos estoicos, de Nietzsche e de muitos modernos; mas, se o
destino é o nome de Deus e de sua Providência amorosa, então segue-se o
abandono à vontade divina, a entrega con�ante ao Pai,atitude de que
deram exemplo os santos, em particular a Virgem Maria e maximamente
Jesus na cruz.
III
CAPÍTULO
PARTE 1
Desejo de sentido: perspectiva
antropológico-�losó�ca
Constatamos a crise e a busca de sentido. Relembremos que se trata aqui
do sentido por excelência, não do sentido disso ou daquilo, mas do sentido
da vida, da existência, do todo. Sim, o homem busca sentido. Mas deseja
ele realmente sentido? Há hoje quem diga que o desejo de sentido é ilusão
e até absurdo.
É preciso, pois, examinar essa questão de base. Quanto é real e
profundo o desejo de sentido? Seria tal desejo simples veleidade ou é algo
de estrutural no ser humano? Como se vê, essas são questões que implicam
certa concepção do homem, do homem como “ser desejante”. Nossa
perspectiva é, portanto, aqui a da antropologia �losó�ca, como indica o
subtítulo desse capítulo.
Queremos, pois, mostrar aqui três teses essenciais para a questão do
sentido, teses que estão em contraste com o pensamento moderno.
Buscaremos provar, em primeiro lugar, que todo o ser humano deseja um
sentido de vida e que tal desejo é natural, incoercível. Em contrapartida,
para muitos pensadores modernos, o desejo de sentido é meramente
opcional, quando não inútil.
Em segundo lugar, mostraremos que o desejo de sentido é natural
porque se funda na natureza racional do ser humano, natureza que o faz
estruturalmente aberto a um sentido último absoluto. Ao contrário, o
mainstream da cultura moderna diz que o desejo de sentido tem sua raiz na
imaginação ou no mero arbítrio do homem, portanto em camadas
super�ciais da alma humana.
Em terceiro e último lugar, a�rmaremos que o sentido da vida
verdadeiro e último se encontra numa realidade transcendente, enquanto a
intelligentsia moderna diz que está em alguma realidade imanente,
empírica ou ética que seja.
Essas teses con�guram uma espécie de “antropologia do sentido”
enquanto buscam estabelecer no próprio ser humano as condições de
possibilidade, tanto do equacionamento da questão do sentido, como de
sua resposta.
I. DESEJO DE SENTIDO E DE SENTIDO ÚLTIMO: NATURAL NO SER
HUMANO
1. Os termos da questão: sentido em planos distintos
Para �ns de clareza semântica, tanto verbal como conceitual, digamos
que, para nós, buscar o sentido da vida é o mesmo que buscar seu �m
último. Como insistimos desde o volume anterior, é o �m que de�ne o
sentido. Agora, buscar o �m último da vida é buscar seu bem supremo, seu
sumo bem. De fato, o �m tem sempre caráter de bem, não importa, no
momento, se verdadeiro ou aparente.
Avancemos: buscar o sumo bem da vida é o mesmo que buscar o valor
supremo, sendo “valor” o nome que os modernos preferem ao clássico
“bem” dos antigos. Acrescentemos ainda que buscar o bem ou o valor
supremo da vida é o mesmo que buscar a felicidade, esse valor que se quer
por si mesmo e pelo qual se quer tudo o mais. Entendida não apenas como
prazer, conquanto sumo, mas como a “plenitude de todos os bens”,
felicidade serve de equivalente existencial para sentido.1 Portanto, buscar o
sentido da vida é buscar a felicidade, sua fonte.
Poderíamos sintetizar o que acabamos de dizer na seguinte equação:
desejo de sentido = desejo de �m último = de sumo bem = de valor supremo = de
felicidade plena. Mas, como a questão da felicidade levanta uma
problemática especí�ca, trataremos dela extensamente mais adiante, no
capítulo V.
2. Desejo de sentido e desejo de verdade
Se quiséssemos aprofundar o esquema acima, sem, porém, subtilizá-lo,
deveríamos ainda dizer que, em seu ponto mais extremo, o que deseja
mesmo o ser humano é a verdade, mais precisamente, o conhecimento da
verdade. Não dissemos no capítulo anterior que a questão da verdade era
prévia à do sentido? “Verdade” é absolutamente a mahavákya, a grande
palavra, não outra, ainda que seja o “Amor”. “Verdade” é a única palavra
que mereceria ser escrita com letras garrafais. Onde está a verdade, a
verdade das coisas, da vida, do mundo? Tal é a máxima questão de ser
racional. Sem a verdade, o que é o sentido, assim como todos os seus
correspondentes, como �m e bem, ou valor e felicidade, senão realidades
suspeitas, perigosas, em suma, ambíguas?
Efetivamente, verdade é a única palavra não ambígua. Ela é
absolutamente positiva e fonte de positividade para todas as outras. É o
quali�cador transcendental de tudo, inclusive de si mesma: a verdade só
pode ser verdadeira, nunca falsa; do contrário, não será verdade, mas
apenas aparência de verdade, ou seja, so�sma. A verdade quali�ca
inclusive o bem; pois, sem a verdade, como distinguir entre o bem e o mal,
tanto mais que o mal costuma se mascarar de bem? Mesmo o amor, que,
em nossa cultura, se quer um dos poucos valores indiscutíveis, ele mesmo
está sob a jurisdição da verdade. Em verdade, amor é um dos valores mais
ambíguos que existem. O que não se faz em nome do amor? Mas o que é o
amor se não for verdadeiro? Sim, a verdade vem antes do amor, como, de
resto, no dogma trinitário, o Verbo vem antes do Espírito, de modo que este
procede daquele.2 Uma cultura que, como a nossa, renunciou à ideia de
verdade, segundo denúncia dos últimos papas, não sabe amar.3 Sem a
verdade, o amor pode ser tudo e até seu contrário: ódio, crime, violência,
destruição e morte. Só o amor verdadeiro é amor de verdade: pleonasmo
atualmente necessário, tal é a confusão mental de uma cultura que
dispensou o serviço da verdade.
A primazia ontológica da verdade é o núcleo da posição �losó�ca de
Santo Tomás, que foi por isso chamado de “intelectualista” no sentido mais
elevado. É isso, de resto, que distingue o Angélico não só dos voluntaristas,
mas também dos racionalistas.4 Declara ele peremptoriamente: “Não há
desejo que mais eleve (o espírito) do que o desejo de conhecer a verdade”.5
Continua: é aí, “e não em outra coisa, que está nossa última felicidade”.6
Diz ainda: “O último �m de todo homem, assim como de todas as suas
operações e seus desejos, é conhecer a verdade primeira”.7 Encarece: o que
“o homem deseja mais que tudo”, como “coisa que lhe é própria”, é
“conhecer a verdade”.8 Daí a severa advertência do Doutor:
“Envergonhem-se, pois, os que buscam a felicidade em coisas ín�mas,
quando ela está posta em tal altura”, isto é, no plano da verdade última.9
Logo no início da Suma contra os gentios a�rma peremptório: “A verdade é o
�m supremo do universo”.10 Ninguém mais que Santo Tomás insistiu tanto
nisto: nós fomos feitos para conhecer, ou seja, para ver. De fato, é na visio
Dei que está o coração da felicidade.11
Efetivamente, antes de querer o �m último, o bem supremo, o valor
máximo, a felicidade plena e o sentido derradeiro, o ser humano quer
mesmo é a verdade: a verdade fontal. Pois que adiantaria possuir todo �m,
todo bem ou valor, toda felicidade, en�m, todo sentido, se tudo isso não
fosse verdadeiro, mas falso ou ilusório? Ao contrário, se temos o
conhecimento da verdade primeira, com isso nos vem toda a felicidade e
tudo o que ela implica: o amor, o gozo e a paz.12
Se é assim, então a equação que traçamos acima se completaria deste
modo: desejo de sentido = desejo de �m último = de bem supremo = de valor
máximo = de felicidade = en�m, de verdade.
3. Desejo de sentido: lei da ultimação
O mais comezinho exame do cotidiano mostra que nada fazemos senão
com um propósito, certo ou errado, elevado ou rasteiro, consciente ou
inconsciente. É como sentenciaram os mestres medievais: “Todo aquele que
age, age em vista de um �m”.13 Essa é uma constatação banal, sobre ser
inegável. Há, pois, no ser humano uma busca espontânea de sentido.
A ideia de “vontade de sentido” está na base da logoterapia.14 Seu
fundador, Viktor Frankl, a contrapôs à “vontade de sexo” de Freud e à
“vontade de autoa�rmação” de Adler. Para ele, efetivamente, a “vontade”
ou “desejo”, “busca” ou “sede” e mesmo “necessidade” de sentido é algo de
“fundamental”, “ontológico”, “estrutural”, “originário”, “condição de
possibilidade” de tudo o que o ser humano faz. Essa vontade lhe é tão
“essencial” e, por isso, tão “autenticamente humana” que se impõea todos
de modo incondicional.15 Não importa a condição histórica ou social em
que alguém se encontre, terá sempre fome de sentido.16 A “necessidade de
sentido” seria irredutível a qualquer outra.17 Trata-se de uma forma pela
qual o homem exprime sua “autotranscendência”, isto é, sua pulsão para se
superar, para ser mais.18 Ora, tal pulsão, para Frankl, se abre à perspectiva
de um “suprassentido”, que seria concretamente Deus, mas que, de per si,
não se imporia.19 O autor procura calçar todas essas a�rmações em
pesquisas empíricas e em sua própria experiência clínica.
Mas, além de o homem desejar sentido para isto ou aquilo, ele deseja
um sentido último, ponto de convergência de todos os seus sentidos
particulares. Trata-se de um sentido culminante, que entende ser, por isso
mesmo, total e pleno, enquanto busca dar à totalidade da vida unidade e
perfeição. Tal sentido é o sentido por excelência, “sentido” em sua acepção
simples e absoluta. Trata-se, pois, do sentido supremo e totalizante. É, de
fato, para essa acepção resolutiva e pleni�cante que se aponta quando se
fala no sentido “da vida”, “da existência” ou “do mundo”. Quando, pois, se
fala no “desejo de sentido”, trata-se aí não do desejo de um sentido parcial,
aquele que diz respeito a um setor da vida, mas do desejo de um sentido
total, enquanto se refere à existência do mundo como um todo e, em
particular, à vida em sua inteireza. Nesse caso, desejo de sentido
corresponde ao que poderíamos chamar “desejo oceânico”.20
Mas por que o homem buscaria irresistível e impacientemente um �m
último? Não poderia se contentar com �ns parciais? Não; o homem precisa
de um �m último para dar convergência e, portanto, unidade à sua vida,
vida que é sempre complexa e contraditória. Sem um �m último, a vida
humana se reduz a uma sucessão de episódios sem nexo, como contas
soltas, privadas de um �o que faça delas um colar. Ora, só o �m último dá
à vida unidade e completude, tal como um laço que enfeixa as espigas
antes dispersas. Aprofundando a questão, pode-se perguntar por que seria
compulsiva a busca de unidade. É porque a unidade é ligada à vida e ao ser
em geral: à vida, por essa ser agregação, enquanto morte é desagregação; e
ao ser, que, como tal, é e quer ser uno.
Há, pois, na mente humana, um imperativo estrutural, ou seja, uma
exigência objetiva de “ultimação” em vista sempre da uni�cação. O homem
não pode não “ultimar” seus atos, ou seja, direcioná-los, consciente ou
inconscientemente, para um �m último, seja lá qual for. Essa é uma lei
férrea do espírito humano, que, por ser aberto ao in�nito, busca
irresistivelmente um objeto �nal uni�cante. A “ultimação” é uma fatalidade
imprescritível da mente humana, um dado antropológico que não pede
mais que ser reconhecido.
Agora, onde cada um “ultimará” concretamente sua vida pessoal, essa já
é outra questão. É uma questão na qual entra a vontade livre de cada um,
não menos que seu juízo. Se “ultimar” a própria vida é, abstratamente, o
destino geral de todo homem, já o destino concreto em que cada homem
“ultimará” sua vida dependerá de sua liberdade. Para se referir a esse
imperativo, fala-se hoje em termos de “opção fundamental de vida”.21
II. ESTRUTURA E DINÂMICA DO DESEJO NATURAL
Falamos aqui em termos de “desejo de sentido”. Mas poderíamos falar,
mais largamente, em “vontade de sentido”. Desejo e vontade aqui se
equivalem. Deixemos, por ora, de lado tanto a forma restrita de desejo, que
é o desejo emocional, sentimento do que falta, quanto a forma extensa de
desejo, signi�cando apetite, pulsão, inclinação ou tendência em geral.22
Concentremo-nos, antes, no desejo voluntário, ou simplesmente na
vontade. Para compreender, porém, de modo adequado a vontade de
sentido, precisamos antes saber o que é mesmo a vontade em sua natureza
e em sua dinâmica própria.
1. Os dois planos da vontade
Pois bem, comecemos por constatar que a cultura moderna não fala
tanto em vontade quanto em liberdade. Ela privilegiou a ideia de liberdade,
entendendo-a como o poder de se determinar para isso ou para aquilo.
Porém a liberdade não é o todo da vontade, mas apenas um atributo dela.
A vontade é uma potência mais complexa e mais profunda que a liberdade.
De fato, se cavamos no subsolo metafísico da vontade, o que encontramos?
Encontramos que a vontade possui, como tudo, uma natureza própria,
uma estrutura determinada. Ora, segundo tal estrutura ou natureza, a
vontade visa sempre ao bem, como seu objeto próprio, não importa a
forma que esse bem tenha. A vontade é essencialmente a “faculdade do
bem”, assim como a inteligência é a “faculdade da verdade”. Portanto, já de
entrada, a vontade está predeterminada para o bem, bem que é seu objeto
e, ao mesmo tempo, seu objetivo ou �m.
A orientação da vontade para o bem é algo de natural e necessário. A
vontade não pode não querer o bem como tal, como também não pode
querer o mal como tal. O mal ela só pode querê-lo sob a forma de bem.
Assim, por exemplo, a droga: a vontade só pode querê-la pelo prazer que
proporciona ou pelo dinheiro que se obtém por sua venda. Portanto, a
vontade não é livre de visar seja lá ao que for. Antes, em seu dinamismo
mais profundo, a vontade está �nalizada para o bem. Em sua estrutura
originária, ela é uma pulsão humana espontânea em direção a tudo o que é
valioso e digno. Seria como o “instinto do bem”.
E agora vem o paradoxo: é só a partir dessa determinação estrutural
para o bem que a vontade é livre: livre em relação à forma que o bem terá
para ela. É então que a liberdade, chamada agora livre-arbítrio, emerge
como força de autodeterminação, de decisão, de opção. Mas aqui já
estamos num plano segundo da vontade, plano que deriva do primeiro e
nele se apoia. A vontade, pois, só emerge como liberdade num momento
ulterior e derivado em relação ao seu dinamismo intrínseco.
Santo Tomás chama esses dois planos ou momentos da vontade,
respectivamente, “vontade como natureza” e “vontade como livre-arbítrio”.
A primeira gera movimentos necessários, porque imperativos, e a segunda,
movimentos contingentes, porque opcionais.23 São João Damasceno, citado
por Santo Tomás, usa duas palavras diferentes para indicar esses dois
planos, momentos ou funções da vontade: thélesis, para designar a vontade
que quer simplesmente, e boúlesis, para a vontade que decide ou opta.24 M.
Blondel, por sua parte, distinguia entre volonté voulante e volonté voulue,
que poderíamos verter por “querer querente” e “querer querido”.
Poderíamos chamar essa dupla conceitual de “vontade instintiva” e
“vontade livre”, e, para afastar confusões, quali�car seus atos respectivos de
“volitivos” e de “voluntários”.
2. Desejo natural: principais características
Como se apresenta o caráter “natural” do desejo de felicidade ou de
sentido? O quali�cativo “natural” diz que o impulso para o sentido último
pertence à natureza do próprio desejo, à sua estrutura essencial, à sua
dinâmica intrínseca. Trata-se de uma pulsão originária do ser humano, um
bem de raiz seu. É um impulso ou apetite conatural à constituição
ontológica do homem, assim como à sua experiência existencial. A
abertura ao sentido transcendente não é, em si mesma, sobrenatural.25 Tal
abertura é, antes, natural, sendo sobrenatural apenas seu preenchimento
ou realização. Trata-se, pois, de uma inclinação inata, espontânea,
instintiva para o sentido �nal, anterior a toda e qualquer decisão
consciente. É assim que se manifesta a vontade em sua constituição natural
(voluntas ut natura), previamente a qualquer ato elícito ou expresso seu.
O traço mais importante do desejo natural é seu caráter objetivante,
enquanto ele visa um objeto realmente existente. Pelo fato de tal desejo ter
um caráter ontológico, isto é, profundamente real, como seria ainda
possível que seu objeto não seja igualmente real? Mas, como esse traço é
hoje o mais contestado, deixemos para discuti-lo em profundidade mais
adiante. Por ora, limitemo-nos a outros três traços essenciais do desejo
natural de sentido, a saber: seu caráter inelutável, indeliberávele universal.
1) Inelutável
Todo homem busca um sentido último à sua vida e à existência em
geral, e isso de modo incoercível, irreprimível e, de certa forma, inexorável.
É um impulso imperioso, coagente e mesmo necessitante. Sim, o sentido
pertence ao mundo da ananke: do que não pode não ser. “Somos
condenados ao sentido” (Merleau-Ponty). O sentido é, para o homem, a
“questão fatal”, enquanto questão inescapável, incontornável. Nessa
acepção, o sentido é o destino, e não só como �nalidade, mas também
como fatalidade. Um sentido qualquer todo homem tem que ter, por força
de ser o que é. Agora, qual seja em concreto tal sentido, isso já é outra
questão, envolvendo um juízo e uma decisão, e disso trataremos mais
adiante.
A partir de J. Lacan, generalizou-se a distinção entre “necessidade”, que
corresponderia ao apetite �siológico, o qual é imperativo e saciável; e
“desejo”, que representaria o apetite psicológico, o qual é livre e insaciável.
Sexo seria necessidade, e Eros, desejo.26 A realidade, entretanto, é mais
complexa: desejos e necessidades se entrecruzam. Assim, pode-se falar
tanto de “desejos físicos” (de comida, por ex.), como de “necessidades
espirituais” (de verdade, p. ex.). Tem razão Epicuro quando distingue
vários tipos de desejos, entre os quais justamente os “desejos necessários”.27
Ora, o desejo de sentido ou de felicidade cai na categoria dos desejos
naturais e necessários. Ele é tão coagente (no plano racional) quanto
qualquer instinto (no plano biológico). A sede de felicidade e de sentido é
tão implacável como a sede de água, e até mais. Como ninguém pode
desejar a sede como tal, assim também ninguém pode desejar a desgraça e
o absurdo. Por isso, tanto se pode falar em “desejo” de sentido, como de
“necessidade” de sentido, ou mesmo de “faro”, “senso” e “instinto” de
sentido. Há, efetivamente, um “instinto de sentido”, como há um “instinto
de felicidade”, que com ele se identi�ca. Diz Santo Tomás: “A vontade de
ser feliz não pertence ao livre-arbítrio, mas ao instinto natural”. 28 O mesmo
se pode dizer da vontade de ter um sentido na vida.
Não sendo suprimível, a busca do sentido último, mais que recorrente, é
permanente. Recorrentes são apenas os momentos agudos ou picos em que
esse desejo se manifesta. Fora disso, ele continua latejando no fundo da
consciência, como um coração pulsante, mesmo quando não se pensa
nisso. Não há ser humano que não busque, e efetivamente não tenha, um
sentido para sua vida. Como dissemos, trata-se sempre de um sentido �nal
e global. É aquilo pelo qual o homem �nalmente vive, não importa onde
sua liberdade �xe tal sentido, se, por exemplo, no sexo ou na mística.
Mas, se a questão do sentido é inelutável, por que hoje se lamenta tanto
o “vazio”, a “falta” ou a “crise” de sentido? É que com essas palavras não se
visa propriamente a ausência de sentido em geral, mas a ausência de um
sentido verdadeiro, autêntico, consistente. O problema do “homem
moderno” não é que ele esteja “passando fome” de sentido, mas que esteja
mal nutrido ou subnutrido. Alimenta sua alma com um pão sem
substância, em vez de se alimentar com o “pão supersubstancial”.29 Há, sim,
hoje uma “questão” de sentido, mas não de sentido em geral, de um
sentido qualquer, mas mais precisamente de um “sentido verdadeiro”,
sólido, que, como veremos, só pode ser um metassentido, um sentido
absolutamente transcendente, o qual, de fato, se identi�ca com Deus
mesmo.
Ora, sintetizando o que acabamos de dizer sobre a “questão do sentido”
hoje, digamos:
a) Nessa questão, não se trata da falta total de sentido, como quer certo
niilismo (absoluto), pois isso é impossível, dado que todo agente racional
só vive e age movido por um sentido qualquer.
b) Também não se trata da falta de um sentido último ou transcendente,
global e totalizante, o que é igualmente impossível ao viver do homem.
Este sempre “ultimará” o sentido da vida num valor qualquer, por mais
baixo que seja, tal a droga.
c) Se há hoje uma “questão do sentido” é precisamente em relação a um
sentido que seja verdadeiro, consistente, satisfatório, e não à falta de todo
e qualquer sentido.
d) Para ser tal, o sentido só pode ser absolutamente transcendente. Em
outras palavras, só pode ser um suprassentido.
e) Ora, esse suprassentido é concretamente Deus, como teremos ainda de
mostrar.
É, pois, segundo o condensado das três primeiras teses que, a nosso ver,
a “questão do sentido” precisa ser colocada, podendo assim, com as duas
últimas, ser bem resolvida.
2) Indeliberável
Esse traço decorre do anterior: se o desejo de sentido é natural, ele não é
matéria de livre escolha. Só é objeto de livre escolha a resposta que cada
um dá àquele desejo, mas não o desejo como tal. Daí sentenciar Santo
Tomás: “O homem é senhor de seus atos e escolhas, mas não de seu apetite
de sentido último”.30 Somos tão pouco senhores do desejo de sentido �nal
como o somos de ter fome e sede, de sentir sono ou atração sexual. O
sentido é objeto coagente da vontade natural, contra a qual o homem nada
pode. Ele não pode não querer um sentido �nal de vida. O que ele pode,
livremente, é de�nir qual é esse sentido. Aqui volta à mente a metáfora da
sede: não se pode decidir não ter sede; o que se pode decidir é apenas
como matar a sede.
O mesmo se pode dizer desse “equivalente risonho” do sentido que é a
felicidade. A felicidade não pode não ser querida e buscada pelo ser
humano. É o que sublinha o Angélico: “Pelo fato de ser ordenado, por
necessidade natural, para o �m último, o homem não pode não querer ser
feliz”.31 Chega a dizer que o homem deseja tão naturalmente a felicidade
como o lobo à ovelha.32 Segundo ele, estamos, em suma, “condenados” a
buscar a felicidade. É uma tese que ele repete ad nauseam.33 E com ele
concordam outros grandes pensadores.34 Ora, se o �m último é o sentido
supremo do homem, é também por necessidade que o homem vai atrás de
tal sentido. Já nascemos embarcados, em demanda do porto �nal, com a
diferença, porém, de que cada qual ajuíza o lugar desse porto e, assim, a
direção de seu navegar.
Sem a busca de sentido, o homem �caria paralisado e colapsaria. De
fato, a vontade de sentido supremo, independentemente da forma
concreta que toma, é, para o Doutor Angélico, o “fundamento e o
princípio” de todos os atos humanos. É o motor imóvel e perpétuo de toda
a sua atividade.35 O que pode o homem é apenas – e é o que mais importa
– decidir onde pôr sua felicidade e como buscá-la. É nessa acepção
segunda que “a busca de felicidade” (the pursuit of happiness) foi registrada
entre os “direitos inalienáveis” do homem, primeiro na Constituição dos
EUA (1787) e depois na de vários outros países. Já a “busca da felicidade”
como pulsão primeira não é objeto de direito algum, mas apenas de
constatação.
Como em relação à felicidade, o homem nada pode contra o desejo
originário e espontâneo de sentido; só pode decidir onde pôr o sentido da
vida e como buscá-lo. Nisso o Aquinate é claro: “Todos os homens
concordam em desejar o �m último, porque todos desejam realizar sua
perfeição. Contudo, quanto à questão de onde pôr esse �m último, já nesse
ponto nem todos concordam”.36 Por conseguinte, o desejo de sentido,
como todo desejo natural, não é matéria de deliberação, mas apenas de
reconhecimento de sua existência. Se há deliberação, é precisamente em
relação à resposta concreta que cada um dá àquele desejo incoercível.
Portanto, é só por uma ilusão, nascida da arbitrariedade, que os
“modernos” acreditam poder ab-rogar esse desejo radical. Um deles, por
exemplo, diz que as multidões pós-modernas não têm demanda alguma de
sentido, enquanto seriam neutras ou indiferentes àquela questão e
viveriam, como diz, no “buraco negro do sentido”.37 Outro a�rma que “o
pagão não sente necessidade de salvação” e de “vida eterna”,38 nomes
religiosos para sentido. Um terceiro, usando ainda outro nome, confessa:
“Não tenho desejo ou necessidade de imortalidade”.39 Mas não: o absurdo é
tão contrário à natureza humana que Camus fala nessa “revolta metafísica”
quefaz o homem “erguer-se contra a própria condição e contra a criação
inteira” e especialmente “contra a dor de viver e de morrer”.40
Por mais que neguem a existência do desejo de sentido, esses
pensadores não podem efetivamente aboli-lo. Ao contrário, o próprio fato
de se insurgirem contra tal desejo denuncia seu equívoco. São obrigados a
se haver com ele como com um hóspede indesejável. Mais que em
equívoco, os “modernos” laboram em contradição: a de recusar o
irrecusável, porquanto trata-se de uma recusa arbitrária, além de inócua,
que não os impede de buscarem, malgrado seu, um sentido último, por
mais baixo que o situem na escala de valores.
Mas donde provém a di�culdade que sente o “moderno” de admitir este
dado antropológico obstinado: a existência de uma vontade natural ou
estrutural, orientada para o bem, a felicidade, o sentido? Certamente da
mentalidade, tipicamente moderna, segundo a qual o ser humano é
essencialmente liberdade, detentor do poder radical de de�nir sua
identidade, de decidir seu bem e seu mal, de determinar seu �m e seu
sentido próprios. Essa mentalidade recebeu foros �losó�cos através das
ideias de “metafísica do sujeito”, “sujeito constituinte”, “vontade de
potência”, “autonomia” e outras mais, que, sob um vocabulário especioso,
escondem, em verdade, uma boa dose de hybris e de autoendeusamento.
3) Universal
Se o desejo de sentido é natural, enquanto faz parte da estrutura da
natureza humana; ademais, se, sendo natural, é impositivo e não sujeito à
deliberação, então ele só pode ser universal. Não há cultura na terra que o
possa ignorar, como, de resto, testemunha a universalidade do fenômeno
religioso, inclusive entre os povos tidos comumente como destituídos de
preocupações religiosas, como os chineses.41 Não; não há sequer um ser
humano que não seja, em seu profundo, movido e mesmo atormentado
por esse desejo. Há os que se declaram, como Weber e Freud, destituídos
de qualquer “sensor religioso”. Pode até ser, mas não certamente de “sensor
do sentido”, do qual o primeiro é apenas uma especi�cação.
Efetivamente, o senso do sentido é tão próprio do homem como é o
senso da verdade e do bem, do qual deriva. O bicho não pede por sentido.
Seus apetites são limitados ao seu umwelt, o mundo que o circunda. O
gado pasta tranquilamente no campo, sem pôr-se problema algum de
sentido. Seu mundo acaba onde acaba a cerca. Só o ser racional tem
problemas de sentido, e tem tais problemas justamente porque ele é o
único animal que pensa para além e acima de todas as cercas. Sua
felicidade não se põe no plano dos sentidos (corporais), como é para o
bruto, mas no plano do sentido (espiritual). Tem razão Santo Agostinho ao
dizer: “É melhor ser um homem que chora do que um verme feliz”.42 John
S. Mill diz o mesmo quando escreve: “É melhor ser um homem insatisfeito
do que um porco satisfeito”.43
Assim, não será sem autoengano que alguém poderá dizer: “A questão
do sentido não me interessa!”. Da mesma forma, não há como cancelar em
de�nitivo tal questão do horizonte da cultura, de modo que um dia se
venha a perguntar, entre espantado e indiferente: “Sentido da vida: que é
isso?”. Todo e qualquer sujeito humano, na medida mesma em que é
humano, deseja e quer, busca e tem um sentido de vida qualquer.
Para veri�car a existência geral desse desejo, podemos invocar aqui
numerosos testemunhos da experiência humana na história.44 Há quem,
para isso, recorra também a pesquisas empíricas, como faz Frankl. Mas o
interesse maior dessas pesquisas não está em mostrar quantos têm desejo
de sentido (seria chover no molhado), mas quantos têm consciência
explícita desse desejo e de que forma buscam satisfazê-lo. Pois, como
dissemos, onde pôr o sentido, isso é coisa da autodeterminação de cada ser
humano, enquanto desejar o sentido, isso é determinismo de sua natureza
espiritual. Como se vê, a diferença entre vontade originária e instintiva e
vontade derivada e livre opera sempre no ser humano, não importando se
a vontade originária é consciente de si ou se é apenas vivida.
III. DESEJO DE INFINITO: SEU FUNDAMENTO
1. Vontade: abertura originária ao in�nito
A vontade, que os antigos chamavam também de apetite racional, é
animada, em sua estrutura originária, por uma dinâmica transcendental,
pela qual ela tende a superar todos os limites e se abrir à totalidade do real.
É pulsão para o bem universal e integral. É desejo de absoluto, de in�nito,
desejo que é, ele mesmo, in�nito em sua potencialidade, por estar aberto a
tudo em absoluto.45 Até deus o ser humano deseja ser, correta ou
abusivamente que seja. A dinâmica ascensional do desejo humano é tão
forte que não susta sequer perante o impossível.46
Essa abertura ao universal e in�nito é reconhecida também pela
encíclica Fides et Ratio, quando a�rma: “O coração do homem (...) suspira
pela riqueza in�nita que está além, porque intui que nela está guardada a
resposta que aplaca toda questão ainda não resolvida” (n. 17). Diz ainda:
“O homem procura uma explicação de�nitiva, um valor supremo, para
além do qual não existam nem possam existir ulteriores perguntas ou
apelos” (n. 27). O desejo geral de um sentido conclusivo é algo de
primordial e de elementar. Sua determinação ou concretização vem
naturalmente depois. É como a fome, que vem antes e independe do
alimento que a venha satisfazer. O desejo de sentido é tal que sempre
acossa o homem, quer este o saiba, quer não; quer queira, quer não. E não
é por desatender ao desejo do sentido que tal desejo desaparece; antes, se
aguça implacavelmente, como a sede. É um aguilhão contra o qual é inútil
recalcitrar.
Agora, se a vontade se volta naturalmente para o bem, é porque a
inteligência lhe mostrou a verdade na forma do bem. Pois como amar o
que não se conhece? Mas, antes ainda de se voltar para a verdade, a
inteligência se volta para o ser, como assegura o Angélico, repetindo
Avicena.47 Em suma, a alma está nativamente voltada para o ser, que
apreende inicialmente, pela razão, como verdadeiro e em seguida, pela
vontade, como bom. Mas, se o homem deseja o in�nito, é porque sente sua
radical precariedade e quer superá-la. É, pois, aqui, no solo existencial, que
o desejo humano se enraíza, antes ainda de vir à consciência e à liberdade.
Ademais, não é só o homem que “geme” por libertação da “vaidade” ou
mortalidade, mas toda a natureza, como a�rma o Apóstolo: “A criação está
em ansiosa expectativa (...), aguardando ser libertada da escravidão da
corrupção”. Por isso “geme e sofre como dores de parto” (Rm 8,19.21.22).
Clamat creatura ad Creatorem. Assim, o gemido cósmico ressoa no gemido
humano, clamando por redenção e achando aí seu sentido pleno. Portanto,
o desejo de sentido é “natural” não só porque pertence à natureza humana,
mas também porque é inerente à natureza física em seu profundo.
Em verdade, para o Angélico, o desejo natural tem por objeto tudo o
que convém à natureza do homem em todos os seus níveis. Os desejos
naturais seriam, portanto: 1) no nível físico, subsistir ou viver e mesmo viver
para sempre (imortalidade), podendo-se ainda acrescentar: crescer, se
expandir, assim como, de modo mais elementar, comer, beber, dormir,
fazer sexo, excretar etc.; 2) no nível emocional, sentir amor, esperança,
alegria, temor e tantas outras emoções; 3) no nível espiritual, buscar a
verdade, especialmente a verdade primeira; tender ao bem, em particular
ao sumo bem ou à felicidade plena; e ainda unir-se ao seu princípio (por
exemplo, para um �lho, honrar o pai; para a criatura, amar seu criador).
Todos esses objetos são naturais ao ser humano, sendo, portanto, desejados
ex necessitate, independentemente da forma concreta que venham a
tomar.48
Por ser espiritual e se enraizar no mais profundo da alma, o desejo
natural de sentido pleno é tão poderoso que supera qualquer outro desejo
humano, tanto o físico, como a sede, quanto o emocional, como a libido.
Com esses, o desejo de sentido pode ter analogias, não equivalências. Sim,
a ânsia por sentido se parece com a sede de água e com a fome de sexo,mas é muito mais potente e necessitante que uma e outra. E é, ao mesmo
tempo, mais decisiva, pois não compromete apenas a satisfação temporal
do homem, mas seu destino eterno. Em suma, é de modo absoluto que o
humano precisa do absoluto.
2. Espírito: fundamento do desejo de sentido in�nito
Por sua radicalidade, a pergunta pelo sentido absoluto não pode ser
esquivada. Ela faz do homem um ser interrogativo, que põe tudo em
questão: a si mesmo e ao mundo. E toda resposta que o homem der fora do
absoluto será engolida por aquela pergunta absoluta.49
Dissemos que o próprio fato de o desejo humano visar o universal, para
além de todo o material, é uma prova da natureza essencialmente
espiritual do homem, de sua transcendência em relação ao mundo
empírico. Se a imaginação humana é capaz de imaginar o in�nito, é
porque há nela algo de espiritual, que é precisamente a razão. Portanto, a
raiz do desejo de in�nito não é a imaginação, mas a razão.
É efetivamente o espírito que de�ne uma vida propriamente “humana”,
como sugere Rudolf Euken, Nobel de literatura de 1908, ao se perguntar:
“A vida humana deve ser compreendida como o mais alto grau da
natureza, desenvolvida como tal, ou nela aparece um novo grau de
realidade – o espírito?”.50 Esse �lósofo repõe a questão com outras palavras:
“Será a vida humana um simples acessório da natureza ou será o ponto de
partida de um mundo novo?”.51 Para aquele pensador, é certo que o
homem proveio da natureza, mas, como por uma reviravolta ontológica,
ele a superou, dando origem a um mundo autônomo, de que a cultura é a
expressão mais evidente. Assim, a “vida humana” é, por um lado, o ponto
de chegada da natureza e, por outro, o ponto de partida do espírito. Assim,
conclui Euken, o homem passou do “reino da exterioridade”, próprio da
natureza, para o “reino da interioridade”, típico do espírito. Isso é, de resto,
con�rmado pela Gaudium et Spes, quando a�rma: “Por sua vida interior, o
homem excede a universalidade das coisas” (n. 14,2).
O homem é um ser que se transcende a si mesmo, que toma distância
do mundo e é capaz de objetivar o mundo e julgá-lo, a �m de encontrar-
lhe o sentido. É para isso que aponta a famosa sentença de Pascal: “O
homem supera in�nitamente o homem”.52 Em suma, o homem é um
“animal metafísico”.53 É metafísico por constituição ontológica, enquanto o
homem se situa para além do físico, não importando se esse físico é o
mundo exterior ou o próprio corpo e a própria psique, com suas emoções e
fantasias. Os diálogos de Platão, por exemplo, não se reduzem aos 1.350
gramas de um cérebro genial, habitado por 100 bilhões de neurônios e 100
trilhões ou talvez um quadrilhão de sinapses. Assim também, um único
olhar de carinho de uma mãe para seu bebê é outra coisa e muito mais que
as simples informações que um milhão de axiônios, acumulados no nervo
óptico, mandam para o cérebro.54 Ademais, é por ser metafísico que o
homem pode justamente “fazer metafísica”, isto é, levantar questões
transcendentais, como as relativas à verdade, ao bem, à beleza, ao amor, à
liberdade, à morte, a Deus e, em particular, ao sentido da existência.
O ser racional possui uma alma espiritual e imortal. Segundo a Bíblia, o
“sopro de Deus”, infundido no homem, fez dele a imago Dei.55 É daí que
provém sua abertura transcendental ao universal, ao in�nito, ao absoluto,
ao último, em suma, à transcendência, seja lá a forma concreta que tenha
essa transcendência. O fato é que o homem, em virtude da abertura ao
universal, congênita à sua estrutura espiritual, quer ou deseja tudo.
Tal desejo é tão inerente ao homem e à sua condição de ser contingente
que seu aguilhão se manterá até mesmo na outra vida, quer esteja no céu
ou no inferno: neste, para ser incessante e eternamente frustrado (se o
condenado nada desejasse, não sofreria); no céu, para ser incessante e
crescentemente cumulado. A dialética do desejo no céu é explicada por
Santo Tomás assim: se, do lado de seu objeto (Deus), o desejo se sacia
plenamente (por causa da in�nidade divina), do lado do sujeito o desejo
pode crescer sempre, de modo ilimitado.56 Por isso, a felicidade do céu
deve ser entendida dinamicamente, como algo que cresce à proporção
mesmo em que seu desejo é saciado.57 Assim, a água da felicidade, ao
mesmo tempo que sacia – como garante Jesus em João: “Quem beber da
água que eu lhe der jamais terá sede” (Jo 4,14; cf. 6,35; Mt 5,6; Ap 7,16) –,
suscita sempre mais sede, como a�rma o Eclesiástico: “Quem me bebe
ainda terá sede” (Eclo 24,29). Também para Dante, se os justos no limbo
não sofrem, sem serem por isso totalmente felizes, é porque continuam a
desejar Deus, ainda que em vão, como o poeta os faz confessar: “Desejamos
sem esperança”.58
Em sua verdade mais profunda, o desejo humano de in�nito é apenas
um eco da presença viva do Espírito de Deus no espírito humano, como
diz João Paulo II na encíclica Redemptoris Missio:
O homem solicitado incessantemente pelo Espírito de Deus nunca poderá ser totalmente indiferente
ao problema da religião, mantendo sempre o desejo de saber, mesmo se confusamente, qual o
significado da sua vida, da sua atividade e da sua morte. O Espírito está, portanto, na própria origem
da questão existencial e religiosa do homem, a qual surge não só de situações contingentes, mas da
estrutura própria de seu ser (n. 28,2).
Só um homem que depositou no In�nito real sua con�ança tem desde
já seu desejo substancialmente satisfeito, embora não totalmente. Abrigado
em Deus, ele goza de uma paz profunda, ainda que imperfeita. Por certo,
seu coração pulsa ainda, inquieto. É a inquietação do amante que
encontrou seu amado, mas que ainda teme: teme perdê-lo ou teme não ser
digno dele. E é pela mesma razão e contrario que o ateísmo e, por
conseguinte, o niilismo nunca outorgarão a paz profunda pela qual todo
coração anseia. Não há niilismo sereno e menos ainda feliz. O niilista será
sempre uma criatura mal resolvida, um coração atormentado, justamente
porque não atinou com a resposta verdadeira ao seu desejo mais
verdadeiro. Equivoca-se, portanto, H. Arendt ao dizer que “desejo
duradouro” não existe, pois, quando satisfeito, o desejo desaparece; se, ao
contrário, durasse sempre, seria frustrado sem cessar, e essa seria a imagem
do inferno.59 Ela não percebeu nem a profundidade do desejo humano,
enquanto se enraíza em nossa estrutura ontológica, fazendo com que,
enquanto o homem é homem, é sempre um ser desejante; nem sua
transcendência, pois que esse desejo pode encontrar no In�nito real sua
realização, sem por isso perder seu dinamismo congênito.
Digamos, para resumir e fechar o que viemos dizendo, que o ser
humano, como um todo, é pulsão para sua realização, ou seja, para sua
perfeição, ou ainda para sua enteléquia ou �nalização. Quando o homem
realiza todas as suas potencialidades, então chegou ao seu �m, está
�nalizado. Será realmente um téleios, um perfeito, ou, como se diz do
Buda, será um tathagata, “aquele que adveio”, isto é, aquele que realizou a
verdade de seu ser.
3. Identidade do ser humano: base do sentido da vida
O que acabamos de ver con�rma o que tínhamos a�rmado no capítulo
anterior, isto é, que a questão do sentido tem em sua base a questão da
verdade. Efetivamente, a questão do �m de alguma coisa depende da
questão da verdade ou natureza dessa coisa. Qualis natura, talis �nis. A
coisa será o que é. No caso do homem, a teleologia depende da
antropologia. Tal sentido, qual identidade. Portanto, só quem sabe da
essência do homem saberá de seu sentido. Qualis homo, talis �nis. O destino
do homem está inscrito em seu código ontológico. O seu “para onde” já
está prede�nido em seu “quem sou”.
Quem de�ne o ser humano como algo de tão efêmero como uma
“bolha” (Varrão et alii) ou um “fungo” (C. Lévi-Strauss) só pode atribuir-lhe
como destino o mais completo desvanecimento. Mas quem chega a uma
escatologia tão niilista acerca da vida é porque adotou, antes ainda, uma
protologia negativista. Pois, se julga que o homem vem do nada, dirá que
nada também será seu destino. Assimtambém, quem acha que todas as
coisas que estão sob o céu não passam de “cachorros de palha”, que pode
ainda esperar do homem, posto ele também entre esses animais �ctícios?60
Pior: com conceito assim tão mísero do homem, como se pode ainda amá-
lo?
Ao contrário, se adotamos uma antropologia consistente, adjudicaremos
também ao homem um sentido consistente. Assim, se o homem é
verdadeiramente imago Dei, ele não pode deixar de buscar seu arquétipo:
Deus mesmo. Se ele é “planta do céu” (Platão) ou, melhor ainda, se ele é
“�lho do céu” (Dante), então o céu será seu destino. Se ele é
essencialmente espírito, então seu �m será o mundo espiritual. De fato, o
espírito se compara a uma chama e, como toda chama, sobe. Quando, no
começo do Paraíso, Dante descreve sua admiração por estar no paraíso,
Beatriz lhe explica que esse fato é natural, já que ele foi feito para aquele
lugar superior, como o fogo para cima e a água para baixo. Seria, antes, de
se admirar se o homem permanecesse na terra. A guia celeste diz ainda ao
poeta que todas as criaturas navegam, através do “grande mar do ser”, em
direção ao “porto” �nal de tudo: Deus, as coisas irracionais fazendo-o por
“instinto”, e o ser racional, livremente.61
Justamente porque é livre, o homem pode contrariar sua vocação
ontológica para cima, como o raio, que, apesar de sua natureza ígnea, em
vez de subir, vem para baixo. Efetivamente, quando um homem se
acostuma com coisas baixas, inclina-se para baixo, por força dessa segunda
natureza que é o hábito. Mas isso só é possível a custo da deformação de
sua natureza originária e essencial, passando então o homem a viver numa
situação patológica, aborrecendo a virtude como o doente dos olhos
aborrece a luz do sol. Daí a máxima peripatética: “O que cada um é, assim
os valores lhe parecem”.62 Desse modo, o ambicioso põe no poder seu
summum bonum, e o hedonista, no prazer. Ao contrário, quem se habituou
a buscar ideais elevados, que dão à vida um sentido elevado, passa a julgar
as coisas a partir da mesma elevação ética ou espiritual. Tais hábitos,
viciosos ou virtuosos que sejam, nunca são meros automatismos, mas frutos
do livre-arbítrio, tanto em sua atualização, quanto em seu princípio, tendo
sido adquiridos mediante a prática de atos livres.63
Em relação à liberdade em de�nir nossa própria identidade e ao sentido
que lhe corresponde, importa aqui acrescentar algo de mais profundo e, ao
mesmo tempo, mais misterioso: é a estranha inclinação para o mal que
todos experimentamos, ao mesmo tempo que nos sentimos intimamente
convocados para o bem. Essa é uma experiência dramática, que foi tão
bem descrita por Paulo (cf. Rm 7,14-27). A ela se refere também Pascal, ao
lançar essa incisiva pergunta: “Se o homem é feito para Deus, por que é tão
avesso a Ele?”.64 A�rma o mesmo em outro passo: “Os homens são ao
mesmo tempo capazes de Deus e indignos dele; capazes pela sua natureza
primeira, indignos pela sua corrupção”.65 Esse é um paradoxo que o
próprio Pascal explica, evocando o mistério do Pecado original, ao
escrever: “Nascemos tão contrários ao amor de Deus, e ele nos é, contudo,
tão necessário, que devemos ter nascido culpados”.66
É dessa condição dramática que advém ao ser humano a di�culdade de
encontrar, por si mesmo, o verdadeiro sentido da vida. Mas, por
compensação, vem-lhe surpreendentemente ao encontro a luz poderosa da
Revelação, que lhe mostra sua verdadeira identidade e, assim, seu destino
derradeiro.
RESUMO CONCLUSIVO EM FORMA DE TESES
Ao termo do que dissemos acima, enucleemos a �loso�a antropológica
do sentido nas três teses seguintes:
Tese I: Todo ser humano quer necessariamente não apenas um sentido para
isso ou aquilo, mas um sentido último para tudo.
A busca de um sentido em tudo o que faz, inclusive e principalmente
um termo último na vida é coisa inata no homem. Há nele como que um
“instinto do sentido”. “Ultimar o sentido” é um imperativo incontornável,
uma lei in�exível do espírito humano. Cada um se dá necessariamente um
“projeto fundamental de vida” e assim um sentido global à sua existência. A
autodoação de sentido é um ato espontâneo e incoercível, mesmo se, em
geral, pouco explícito.
Ora, dizer que todo homem se dá e tem um �m último é dizer que ele
se dá e tem um absoluto qualquer, um transcendente, um sumo bem, um
in�nito, um bem universal e integral, um incondicional, um tesouro
máximo, um ideal de felicidade, um projeto fundamental de vida e até
mesmo um “deus” qualquer. Todas essas expressões praticamente se
correspondem.
Portanto, isto de dizer que o homem moderno sofre de uma “crise de
sentido” não é, a rigor, verdadeiro, pela boa razão de que é impossível viver
sem um sentido qualquer, seja ele explícito ou implícito, certo ou errado.
Daí insistirmos em dizer que a crise do homem moderno não é de sentido
em geral, mas, mais precisamente, de sentido verdadeiro.
Tese II: Agora, onde está concretamente o sentido último – isso depende da
livre escolha de cada um com base em um juízo de valor.
A lei da ultimação se torna, nas mãos de cada pessoa individual, um
“poder” de ultimar. Se todos têm de ultimar seu projeto de vida, nem todos
precisam ultimá-lo no mesmo patamar. É como se houvesse um grande
ostensório diante do qual todos têm de se ajoelhar, mas em cujo centro
cada um põe a divindade de sua escolha.
A pergunta concreta a que cada um tem de responder não é ter um
sentido na vida, mas precisamente onde pôr esse sentido. Colocada de
maneira mais viva, a pergunta decisiva é: Onde está a felicidade, aquela
que daria um sentido pleno à vida? Há quem ponha a felicidade na relação
sexual e há quem a ponha na unio mystica. Um acha sua realização em
queimar judeus, e outro em cuidar dos leprosos, para falar como Camus.
Um se sente feliz com ser bêbado, e outro só com ser imperador do
mundo, falando como Sartre. Vê-se, pois, que, se a felicidade é almejada
por todos, nem todos a procuram no mesmo lugar.
Portanto, o sentido é nossa bênção ou nossa maldição; tudo depende da
liberdade de cada um e do conteúdo que ela confere à vida.
Tese III: O sentido último do homem é Deus; ou então é um ídolo.
Embora essa tese deva ainda ser provada, como faremos mais adiante
(cap. VII), não é inútil pô-la antecipadamente aqui, a �m de, com ela,
completar a questão do sentido do ponto de vista da antropologia
metafísica.
Digamos, pois, que, na escolha pessoal e livre do conteúdo concreto que
se dá ao anseio de sentido e felicidade, só há estas opções: ou se escolhe
uma realidade transcendente, e essa, quando verdadeira, só pode ser o
Deus vivo; ou se escolhe uma realidade imanente, e essa só pode ser um
ídolo mudo. Trata-se de um dilema inescapável: ou se opta pelo absoluto
realmente existente, e esse se chama Deus, ou por um relativo
absolutizado, e isso se chama ídolo. Esse último é o caso do “homem
moderno”, que, tendo-se afastado da fé em Deus, viu-se obrigado a se
agarrar às diversas ideologias, com seus deuses falazes, que só podiam dar
um sentido falaz à existência.
Poder-se-ia aventar uma terceira opção, média entre Deus e o ídolo.
Seria a opção ética, como, por exemplo, a opção pela justiça. Mas essa
opção, além de ser a de uma minoria, agnóstica ou ateia que seja, é
extremamente precária, pois só em casos raríssimos se mantém ao longo do
tempo, coincidindo então com a opção implícita por Deus. Na maioria dos
casos, a opção ética, sem o sustento da fé religiosa, cede e decai para o lado
do ídolo, seja ele grande (Justiça, Liberdade, Beleza), ou pequeno (carreira,
trabalho, mulher). E assim voltamos à alternativa inescapável: ou Deus ou
um substituto seu.67
IV. DESEJO DE SENTIDO: CONSTANTE DE TODO SER, QUER
FÍSICO, QUER METAFÍSICO
Prometemos, no início do capítulo anterior, abordar a questão �losó�ca
do sentido do ponto de vista objetivo, tomando sentido como �nalidade-
em-si. É o que faremos em seguida, ainda que de modo necessariamente
sumário.
Vimos acima que o ser humano tem uma estrutura desejante. Isso se
manifesta tanto na vida de cada indivíduo como na vidacoletiva. Biogra�a
ou história, toda vida humana é processo, animado por um �m resolutivo.
Vimos que esse �m ou sentido já vem inscrito em �ligrana na textura
natural da vontade humana, precisando, porém, se consumar através de
um ato livre da vontade, enquanto decide por esse ou aquele sentido.
1. O ser físico e seu desejo de sentido
Mas, perguntamos, a realidade extra-humana (inclusive do homem,
enquanto natureza) não tem, ela também, uma estrutura processual? Tem,
sim, não importa o nome que se lhe dê: apetite, pulsão, vontade,
tendência, busca, elã, ímpeto, dinamismo, amor, desejo. Por acaso a vida
como um todo não conhece evolução? E o cosmos também não tem
história? Em verdade, tudo se move, como tinha percebido Heráclito. Tudo
evolui, avança, sobe. Mesmo no seio do todo em evolução existem
realidades particulares que mostram de modo manifesto esse dinamismo
universal. Assim a luz: ela se irradia naturalmente e inde�nidamente.
Também a vida: ela busca sempre mais vida. Igualmente o amor: ele quer se
comunicar e multiplicar. Portanto, esse traço pulsional pertence à estrutura
de todo ser. É o que reza o dito peripatético: “A natureza é amante do ser”
(Natura est entis amans).
Donde vem toda essa pulsão que leva as coisas para a frente? Os antigos,
como Platão e os estoicos, falavam numa “alma do mundo”. O certo é que
existe um desejo obscuro, animando tudo. Esta visão dinâmica e
ascensional da realidade foi sustentada por muitos pensadores,
sobressaindo Aristóteles. Esse �lósofo tem uma visão dinâmica do mundo e
do ser em geral.68 Para ele, tudo carrega uma tendência à expansão, ao seu
desabrochar (entelécheia). Os seres �nitos, em particular, trazem em sua
essência um dinamismo (dynamis) aberto à sua atualização (enérgheia).
Reina em tudo a teleologia. Portanto, tudo tem uma �nalidade, tudo tem
um sentido.
Mas, além do Estagirita, há outros grandes pensadores que sustentam
uma visão dinâmica ou processual do mundo. Re�ramos alguns deles, pelo
menos em algumas de suas intuições que sustentam essa visão.
- Os estoicos creem que existe nos seres vivos um impulso congênito, que
visa à própria conservação e incremento, e que chamaram de oikéiosis.
- Santo Agostinho, inspirando-se nos estoicos, vê o mundo como grávido
de “razões seminais”.69
- Santo Tomás entrevê o amor latejando em tudo: amor natural nos seres
materiais, sensível nos animais e voluntário nos racionais.70 Tudo é movido
pelo amor de alguma coisa.71 Em suma: o amor é o motor de tudo.
- Spinoza põe no centro de sua metafísica o conatus, o esforço de cada
coisa de “perseverar em seu ser”. Num ser espiritual, esse impulso torna-
se consciente e quer durar inde�nidamente.72
- Leibniz dota suas mônadas de percepção e apetição, a�rmando que “o
que não age sequer existe”.
- Schopenhauer vê o “mundo como vontade” e vontade de vida, e isso
constituiria seu noúmenon ou sua essência.
- Nietzsche amplia a ideia schopenhaueriana e põe no coração das coisas a
“vontade de potência”, pela qual elas sem cessar buscam inde�nidamente
se expandir, conquistar, transbordar.
- G. Simmel e outros vitalistas, como Dilthey, Bergson, Spengler, Whitehead
e Jonas, sustentam que a vida quer sempre mais vida, num processo
permanente de autossuperação.
- M. Blondel, em sua célebre tese L’action (1893), diz que a vontade (volonté
voulante) está sempre à frente de sua obra (volonté voulue), só se
aplacando no in�nito.
- Sartre e os existencialistas sublinham a ideia de existência como
emergência, transcendência de si e autocriação.
Como se nota, para esses pensadores, tudo é movido por um estranho
desejo. As coisas mesmas parecem abrigar um cor inquietum. Mas por que
anseia esse cor inquietum universal? Se a realidade física se move, avança e
sobe, vai �nalmente para onde? Eis posta a inescapável pergunta acerca do
sentido. Tal pergunta é imposta pela realidade objetiva, e não apenas pelo
homem e sua razão interrogativa. Não; o homem só faz é tomar
consciência dessa pergunta, formulá-la e dar-lhe uma resposta pessoal.
Como dissemos acima, o desejo humano de sentido não passa de eco do
desejo de sentido, presente nas próprias coisas.
Pois bem, para que alvo aponta o mundo físico em seu desejo natural?
Para onde vai a�nal o �uxo do cosmos? Surgem aqui três alternativas: 1) ou
esse �uxo se expande inde�nidamente, como acontece com a luz; 2) ou
vai em direção à sua plena realização imanente, para, em seguida, se
extinguir, como uma �or; 3) ou volta ao estado anterior, num perpétuo
“retorno do mesmo”, como as estações do ano; 4) ou se destina �ne �naliter
a um objetivo determinado e de�nitivo, como uma seta a seu alvo.
As três primeiras alternativas – digamo-lo de modo sumário – são
irracionais. A primeira é irracional por impossível, pois nada pode se mover
em direção ao inde�nido, isto é, sem um alvo determinado, como assevera
Santo Tomás: “A natureza nunca inclina para o movimento pelo próprio
mover-se, mas por algo de determinado...”.73 A segunda alternativa é mais
irracional ainda, pois pressupõe um movimento que vai �nalmente para o
nada. De fato, por que �orir se é para murchar e morrer? Para que lançar a
�echa, sem um alvo a ser atingido? A terceira alternativa é irracional por
ser absurda. Mostramos, contra Nietzsche, que o “eterno retorno” não passa
de uma resposta sofística, que, longe de dar uma saída para o absurdo, faz
pior: consagra-o.
Sobra a quarta alternativa, a única que aposta num sentido conclusivo e
pleno, e que, assim, além de satisfazer o coração, satisfaz plenamente a
razão (e tal é o escopo de todo nosso estudo). Naturalmente, essa
alternativa pressupõe a intervenção de uma potência transcendente ao
processo natural do mundo, intervenção que em nada viola tal processo
por ser seu fundamento, mas antes o eleva e consuma.
Ademais, essa alternativa tem a virtude de integrar, a partir do
Transcendente, o grão de verdade que há nas três outras. Da primeira,
mantém a ideia de expansão potencialmente in�nita, agora, porém, no
interior do próprio In�nito real. Da segunda, resgata a ideia da realização
imanente, que, conquanto passe pelo nada, triunfa sobre ele em virtude do
poder próprio do Ser subsistente e imortal; da terceira, recupera a ideia do
“eterno retorno”, enquanto concebe o curso recorrente do mundo na
forma de uma espiral que, sustentado pelo que é o Eterno substancial,
recapitula tudo e leva tudo a termo.
Como se depreende, a questão do sentido, antes ainda de ser uma
questão do homem, é uma questão da realidade física como um todo. Não
é, pois, só o homem que deseja o sentido, mas o próprio mundo. Se toda
realidade é animada por uma pulsão básica para um objetivo determinado,
ela deve, por conseguinte, estar dotada de sentido. Tal é a cosmovisão
chamada teleologia ou �nalismo. Se é assim, o sentido, antes de ser um
propósito do ser humano ou uma projeção de seu desejo, é uma
postulação da própria realidade em seu todo natural.
2. O ser metafísico: seu desejo de ser e ser mais
Demos um passo a mais, agora para o fundo. Deixando o plano físico
pelo metafísico, veremos que a questão do sentido aparece não mais
apenas como uma questão cosmológica, mas também, e mais radicalmente
ainda, como uma questão ontológica ou metafísica. Com efeito, antes ainda
de ser uma questão do ser humano ou cósmico, a questão do sentido é
uma questão do ser como tal. Para não nos perdermos em ronronadas
especulativas, em vez do ser, falemos do existir; em vez do ente, falemos do
existente, de qualquer existente.
Pois bem, existir e, mais ainda, viver é bom. É emergir da esfera do nada
e se estabelecer na esfera da existência. É maravilhoso que existam coisas
em vez de nada. Esse é o assombro primordial de todo o pensar.74 Existir é,
portanto, positividade que triunfa sobre a negatividade. É, pois, se a�rmar
como qualquer coisa, como algo ou como alguém.
Ademais, todo existente quer existir, insiste em existir, tanto que resiste a
toda tentativa de destruição. O existente não só persiste na existência, mas
quer ser mais, buscacrescer e triunfar.
Portanto, o existente não é só sujeito do desejo de existir, mas também
objeto. O existente ama existir, e existir cada vez mais. Existir, além de
admirável, é desejável. É, pois, objeto do desejo transcendental.
Ora, a título de objeto, o existir é e dá sentido. Que quer dizer isso senão
que existir, o simples existir, “faz todo sentido”? Eis aí o que é sentido, em
seu nível mais elementar e primordial, sentido que é base e fonte de todos
os outros sentidos.
Certo, existir é melhor que não existir. Mas quando o existir é tão
atormentado que ofusca toda esperança? Então, o não existir aparece como
uma opção melhor que o existir. É verdade; isso, porém, não é regra, mas
exceção. Por outras, não é per se que o existir se tornou odioso, mas per
accidens. Foi, como se diz, um acidente de percurso; quanto à viagem, era,
em si mesma, boa.
Sem embargo, não podemos aqui cair na ingenuidade. Não há
porventura mil expressões da sabedoria humana que falam da vida como
trabalho, luta, provação? Para os budistas, por exemplo, “a vida é dor”. Para
os gregos, e não só para eles, não ter nascido é para o homem a coisa
melhor.75 O Eclesiastes declara que tudo é vaidade, azáfama e a�ição do
espírito. Jó a�rma: “A vida do homem é provação”, de�nição que Santo
Agostinho se compraz em repetir. Os próprios cristãos falam deste mundo
como um “vale de lágrimas”, um “exílio”. Por �m, Jesus mesmo não fala do
“fardo de cada dia”? Quem não sente, especialmente em certos dias, a
verdade da expressão “a fadiga de ser homem”? Então, não têm razão os
modernos quando falam do “mal de viver” ou do “absurdo da vida”?
Para um discernimento, digamos, para começar, que nessas a�rmações
não se fala do mero existir, mas do existir especi�camente humano. Ou
seja, passou-se do plano da existência indistinta ao da vida propriamente
humana. Ora, quanto a essa, é verdade que, considerada apenas em seu
percurso biológico que vai do nascimento à morte, a vida, com suas dores e
lágrimas, realmente não compensa. Pode compensar para os happy few, mas
não para a maioria. Seja como for, a vida na terra não tem um sentido �nal
exitoso, pois para todos �nda com a morte. Vista, porém, na perspectiva da
imortalidade e, portanto, da recompensa eterna, quer se chame Reino do
céu ou Nirvana, a vida humana ganha sentido e vale a pena: a pena de suas
dores e lágrimas, como mostramos no volume anterior.76 Se, portanto, se
pode justi�car um otimismo ontológico, trata-se sempre de um otimismo
dramático, conquanto não trágico.
Agora, por que o existir propriamente humano não é alegria pura, mas
vem acompanhado de provação? Por outras, por que a vida tem um caráter
dramático? Isso não se deve simplesmente à contingência ou �nitude
humana, como querem alguns, por não admitirem justamente uma visão
transcendente da vida. Não; a �nitude, de per si, não implica nada de
negativo, mas apenas dependência de um ser necessário e in�nito. Ora, tal
dependência pode ser perfeitamente vivida de modo grato e jubiloso, como
vimos.77
Se a vida humana tem um caráter dramático, isso se deve, numa
primeira abordagem, à sua natureza evolutiva, pela qual a vida, toda vida,
avança em geral a preço de outras vidas, como mostra a teoria da evolução.
Contudo, no caso da vida humana, esse preço não é vivido como normal,
mas como misterioso, além de excessivo. Como explicar esse paradoxo? A
Revelação cristã o explica por uma queda primordial que afetou toda a
experiência humana, inclusive a mais exaltante, inoculando nela um
estranho travo de amargor. E, assim como o big bang primordial deixou no
universo um eco na “radiação cósmica de fundo”, também a queda original
deixou na existência humana uma “radiação espiritual de fundo”, que
explica essa dolência sutil que lateja no fundo secreto de todo viver.
Agostinho o notou, ao dizer: “Faz prova de um senso re�nado quem se
sente golpeado mesmo quando tudo vai bem”.78
Contudo, a “dor de viver” não é a substância do viver, mas tão somente
um acompanhante adventício. Em seu fundo mais fundo, viver é alegria e,
portanto, sentido. Traduzindo isso na linguagem seca da metafísica clássica,
que recolhe, contudo, um longo e árduo itinerário não só de pensamento,
mas também de experiência, dizemos o seguinte. Todo ser é bom e é, por
isso, valioso, precioso, digno. Por isso mesmo, todo ser é também desejável.
E, sendo desejável, todo ser é �m: objeto/objetivo da vontade. Ora, todo
�m é e dá sentido. Formalizando, diríamos: ser = bom = desejável = �m =
sentido. Logo, em extrema síntese: SER = SENTIDO.
Bastam esses breves acenos para nos fazer vislumbrar o que é uma
“metafísica do sentido”.
V. SCHOLIA
1. Testemunhos do desejo de sentido na experiência histórica
e na literatura
O desejo de sentido é amplamente atestado, seja na experiência
humana concreta, seja na literatura que lhe dá voz. Quanto à primeira, por
menos que uma pessoa se debruce sobre sua própria experiência de vida,
não poderá deixar de notar o desejo fundamental de sentido, e de sentido
absoluto. Disso há muitos sinais. O mais simples e claro é o da experiência
do amor. Que apaixonado não deseja que seu amor seja eterno, in�nito,
absoluto? O mesmo vale para o amor de mãe, a amizade profunda e para
todo “grande amor”.
Tomemos agora a questão do sentido último em sua “face ridente”, a
felicidade. Basta um pouco de introspecção para constatar em nós o apelo
à felicidade, e a uma felicidade perfeita, a saber: plena e estável, pois só
com esses dois quali�cativos a felicidade se mostra à medida de nosso
desejo. Essa pulsão interior, essa espécie de instinto ou faro em direção à
felicidade, ao sentido último da vida, anima também nossos ideais e
ambições, nossos sonhos e esperanças, essas que, na expressão de
Aristóteles, nada mais são que “sonhos de olhos abertos”.
Essa mesma experiência se faz também, agora em negativo, quando
sentimos uma insatisfação difusa em relação à vida, por mais bem-sucedida
que seja. Em tudo, recitava Pasolini, “sempre falta alguma coisa”.79
Con�dencia uma esposa que, mesmo no seio da relação amorosa mais
plena, sentia que “precisava ainda de outra coisa, de algo todo diferente”.80
O mesmo senso de insatisfação se faz presente na vida de um par de
recém-casados, após dois ou três meses de convivência: ela olha para ele e
diz suspirando: “E eu que pensava que existia algo a mais”.81 O sentimento
enigmático de inde�nido mal-estar perante a própria existência foi
�namente expresso por um poeta nosso, Guilherme de Almeida (+ 1969):
Uma fina saudade vai varando
A quietude cansada do meu tédio.
Mas, saudade do quê? de quem?...
(...)
Tudo, em torno de mim, é luminoso,
alto e macio, deslizante e lindo;
tudo é apenas um lúcido presente:
é a negação perfeita da saudade...
E, no entanto – por quê? por quem?... – eu vejo
e ouço passar na terra a minha vida
cantando uma cantiga vagarosa
de água que leva flores na descida...82
Esse senso difuso de vazio e frustração bate especialmente na meia-
idade, no que se chamou a “crise dos quarenta”.83 Mas essa experiência
reponta também no curso do cotidiano, quando, não se sabe como, emerge
de repente, do fundo escuro do inconsciente, o sentimento de que na vida
“falta alguma coisa”, que não se sabe bem o que é. Tal insatisfação às vezes
se reduplica com a ilusão de que, “os outros, sim, é que são felizes”, ilusão
que o povo condensou no provérbio: “A grama do vizinho é sempre mais
verde.” É o que constata também Horácio: “Por que ninguém está contente
com a própria sorte e louva a dos outros?”.84
Esse sentido do vazio é às vezes tão voraz que se tem a impressão de que
nem céus nem terra poderiam satisfazê-lo. Kant o notou: “Dê a um homem
tudo o que deseja, e (...) sentirá que esse tudo ainda não é tudo”.85 Assim
também Leopardi: “Considerar a amplidão inestimável do espaço, o
número e a massa maravilhosa dos mundos e achar que tudo é pouco e
pequeno para a capacidade da própria alma”.86 Dizem o mesmo nossos
poetas: “Mundo mundo, vasto mundo, / mais vasto é meu coração” (C.
Drummond);87no primeiro capítulo do volume I de nossa trilogia.1 Como
pudemos lá constatar, e disso demos algumas ilustrações, há uma enorme
confusão no debate atual acerca do que se entende por “sentido”.2
Para nós, a ideia de “sentido” comporta as seguintes noções: direção,
�m, valor e signi�cado, que comporiam assim um “quadrilátero
semântico”. Expliquemos essas noções.
Primeiro, direção. “Sentido da vida” é como “sentido” de uma rua, do
curso de um rio, da trajetória de uma �echa, das pegadas de um animal.
Vale como direção. Sentido da vida é, pois, a direção, orientação ou rumo
que se imprime à vida.
Mas, como direção é sempre direção “para” um objeto ou para um
objetivo qualquer, surge então a ideia de �m (�nalidade, propósito,
intenção, escopo etc.). Fim é o alvo para a seta, o porto para o navio ou o
destino para o viajante. Porque de�ne ou confere a direção, �m é o
conceito mais determinante na questão do sentido. Fim é, pois, o princípio,
o fundamento, a fonte do sentido. Só tem sentido uma coisa que tem um
�m. Sem um �m qualquer, uma coisa ou ação é sem sentido, ou seja, é
absurda.
É tão decisivo o �m para a questão do sentido que é comum se tomar
metonimicamente o �m pelo sentido, como quando se diz que isso ou
aquilo “é” o sentido da vida, em vez de “dá” sentido à vida. Temos aí um “é”
causativo. De resto, a linguagem ordinária, via de regra, identi�ca sentido
com �m, como faremos nós também no curso desse trabalho. A
identi�cação da pragmática linguística sentido = �m é tanto maior quanto
mais angustiante e premente é a sinnfrage em nosso tempo. De fato,
perguntar: “Qual é o sentido da vida?” é mais que perguntar simplesmente:
“Qual é a direção da vida?”; é perguntar “Para que viver?”, ou ainda: “Qual
é a �nalidade da vida?”. Podemos, assim, dizer que sentido denota sempre
�nalidade, seja essa buscada ou alcançada.
Um bom sinônimo de “sentido”, na dupla acepção de �nalidade e
direção, é “propósito”. Destacando o segundo elemento do termo, “pro-
pósito” signi�ca uma �nalidade “aí posta”, ou seja, posta por um sujeito,
por uma consciência. É, portanto, algo de intencional. Focando agora o
primeiro elemento do termo em questão, “pro-pósito” evoca a ideia de
movimento para a frente, de direção, como se vê também nas ideias de
pro-gresso e pro-jeto. Vida com sentido é, em suma, “vida com propósito”.3
Como ainda veremos, há um gradiente de �ns, de tal modo que o �m de
uma ação se torna meio para outra. Há, pois, �ns-meios e há �ns-�ns. Os
�ns-meios ou �ns intermediários são às vezes chamados de “metas”.
Acrescentemos que o �m de uma ação nem sempre está totalmente fora ou
à frente da mesma, mas pode estar dentro dela, na forma de auto�m. Esse
seria um “�m intrínseco”.4 Na categoria de �m intrínseco entram, em
absoluto, Deus e a felicidade, mas também, relativamente, a virtude, a arte,
o jogo e o prazer em geral. Todas essas realidades são, cada uma à sua
medida, auto�ns e, a esse título, são também autovalores e autossentidos,
absolutos ou relativos que sejam. Para evitar ambiguidades, notemos que, à
diferença da tradição clássica, há pensadores modernos que distinguem
entre sentido e �m, entendendo �m apenas como �m extrínseco. Mas
trata-se aí de uma noção reduzida de �m.5
Vamos agora à terceira ideia de sentido: valor. É a palavra moderna para
o conceito clássico de “bem”, com a diferença de que a ideia de valor
destaca o aspecto “atração” subjacente à ideia de “bem”. Como equivalente
de bem, “valor” é um conceito transcendental, sendo, pois, predicável de
todo o ser. Perguntar efetivamente sobre o “valor da vida” é perguntar sobre
a “bondade” da vida, ou seja, se ela é boa, se “vale a pena” ser vivida. Se,
como lemos no início da Ética a Nicômaco, “o bem é o que todas as coisas
buscam”, então o bem tem razão de �m. Ele é o objeto e, ao mesmo tempo,
o objetivo de qualquer apetite. Ora, se valor equivale a bem, e bem tem
razão de �m, então valor coincide com �m.
Desse modo, dizer que a vida tem valor é o mesmo que dizer que a vida
tem um �m (bom). Aqui também, como no caso do �m, o valor pode ser
intrínseco à coisa ou ação (valor-em-si ou autovalor) ou então extrínseco
(valor-para). Essa distinção equivale àquela que os clássicos punham entre,
respectivamente, bonum honestum e bonum utile. Se hoje, porém, se prefere
falar em “valor”, em vez de “bem” ou “�m”, é porque, na moderna deriva
semântica, valor conota algo de importante, de atraente e, além disso, de
presente, o que nem sempre acontece com a ideia de “bem” e de “�m”.
Vejamos, �nalmente, a quarta acepção de sentido: sentido como
signi�cado ou ainda como explicação, razão de ser, entendimento, em
suma, como inteligibilidade. É o que os gregos chamavam de noûs ou lógos e
os latinos de ratio, mens e mesmo sensus. Se, do ponto de vista puramente
semântico, inteligibilidade é a acepção primeira de “sentido”, já do ponto
de vista lógico é a última, pois é resultado das acepções anteriores.
Efetivamente, quando a vida tem um �m que lhe dá sentido, ela se torna
inteligível, clara, como que explicada. Ela ganha sua razão de ser: tornou-
se compreensível, seu signi�cado é entendido. Então a vida brilha, tem sua
lógica, “faz sentido”. A vida aí aparece como uma “frase”, contendo um
sentido que pode ser decodi�cado. Como se pode deduzir, o “porquê”
lógico da vida resulta de seu “para quê” existencial e concreto.
Explicitemos um pouco mais o sentido entendido como razão ou lógos,
coisa que não �zemos no primeiro volume. O sentido é o que efetivamente
dá razões para viver (no plano da inteligência), dando, assim também,
motivações para lutar (no plano da vontade). O sentido, como razão, faz
com que a vida se mostre inteligível, compreensível, legível, interpretável;
racional, sensata, ordenada, coerente; luminosa, clara, lógica. Assim, dizer
que “algo faz sentido” é dizer que “algo tem lógica”. Portanto, o sentido-
razão tem uma função manifestativa. É con-sciência, re-�exão. A existência
aparece então como um texto, um relato, um livro a ser lido, decifrado e
compreendido.6
Isso não signi�ca que o sentido, como razão de ser, seja sempre claro aos
olhos da mente. Ao contrário, o sentido é muitas vezes oculto e misterioso,
oferecendo-se como objeto de fé e de esperança. A dor e a morte, em
particular, não mostram em geral, de imediato, um sentido, uma razão.
Mas podem muito bem ter um sentido, caso as considerarmos a distância,
principalmente se as situarmos num horizonte maior, como, por exemplo,
dentro do plano divino. Já falar em “vida sem sentido” ou “vida absurda” é
falar em vida irracional, incompreensível, portanto vida desordenada,
confusa. Seria, em suma, uma algaravia, um caos.
Se perguntarmos, agora, como se articulam as referidas noções de
“sentido” dentro do pacote semântico que as constituem, diremos que elas
se desdobram logicamente nestes três momentos, que podem ser assim
sumarizados:
1) O “�m” é o “bem” que se busca, é o “valor” que importa e atrai. Pode
ser designado por outros nomes, tais como: causa, ideal, paixão, objetivo,
propósito, intenção, projeto.
2) O “�m” dá “sentido”, direção, rumo, orientação às coisas. Por outras,
dá �nalização, ordenação, destinação, movimento, foco, centro de
convergência. Tal é o efeito objetivo, direto e principal de �m.
3) O “�m” dá também, e colateralmente, tudo o mais: razão ou
inteligibilidade (é como luz ou sol), motivação e esperança (é como mola
ou motor), sabor ou gosto de viver (é como sal), animação e vida (é como
alma), alegria, plenitude ou satisfação do coração (é como sorriso), encanto
ou fascínio (é como vinho), uni�cação e harmonia da vida (é como
mandala), segurança e tranquilidade (é como âncora ou rocha).
Essas últimas conotações constituem efeitos colaterais do �m, todas elas
maravilhosas. Eles se dão na alma, sendo, pois, subjetivos, mas a partir de
uma base objetiva. Com isso não se diz que sentido é, sempre e de
imediato, luz e encanto, mas que, em perspectiva, dá luz e encanto
também ao que aparece como negativo e absurdo, tais as inevitáveis cruzes
da vida.“Para o desejo do meu coração, o mar é uma gota” (Adélia
Prado).88
Mesmo conhecendo, hoje, mais e melhor a imensidão do universo, o ser
humano se sente apertado dentro dele. De resto, não seria essa vontade do
sem-limite, esse impulso para o in�nito a força oculta que leva a ciência
moderna à exploração espacial? Quando é que o homem dirá: “É isso!
Cheguei! Basta!”? Poderá dizê-lo num momento e por um momento, mas
logo sobrevém, mais uma vez, o demônio da insatisfação, a segredar:
“Ainda não!”. Bem que o homem gostaria de paralisar para sempre
instantes de plenitude, como quis Pedro no Tabor: “Como é bom, Senhor,
estarmos aqui. Se quiseres, farei três tendas...” (Mt 17,4). Mas em vão! Tudo
é fugidio! Todo êxtase desvanece. Volta ao coração a inquietude indômita e
tormentosa, tão bem expressa nesta sentença ascética da Índia: “A ti louvo,
ventre, porque te satisfazes com alguns legumes. Mas não a ti, coração
maldito, que não te contentas nem com centenas de desejos”.89
A própria Bíblia testemunha essa inquietação sem �m do coração
humano: “Os olhos não se fartam de ver” (Ecl 1,8). É a insaciável
“concupiscência dos olhos” (1Jo 2,16), que aqui vale metonimicamente por
desejo. Efetivamente, esse desejo não conhece limites, sequer os do
interdito divino. Já em suas primeiras páginas, a Escritura mostra nossos
protoparentes às voltas com a tentação de ser “como deuses” (Gn 3,15).
Prossegue contando outras tentativas do mesmo sonho impossível: é
Nabucodonosor que quer ser “como o Altíssimo” (Is 14,14) e diante de cuja
estátua todos têm que “se prosternar e adorar” (Dn 3); é o rei de Tiro, que
proclama com arrogância: “Eu sou um deus: sentei-me no trono de Deus”
(Ez 28,2); é Antíoco Epífanes, que se põe insolentemente “acima de todos
os deuses” e investe “contra o Deus dos deuses” (Dn 11,36).
Mas quantos monarcas antigos, tais os faraós egípcios, os imperadores
assírios, os grandes reis persas, assim como os célebres conquistadores
Alexandre e César não reivindicaram o status divino? Do primeiro diz
Sêneca: “Houve neste mundo um homem que, depois de ter tudo, ainda
desejou mais: foi Alexandre”.90 Pascoli imagina o grande conquistador,
depois de ter conquistado a Índia, contemplando, na última praia do
mundo, a lua que se levanta, inacessível, sobre o mar. Põe-se a lacrimejar,
impotente: “E assim, depois de tudo, chora: chora com seu olho negro
como a morte; chora com seu olho azul como o céu”.91 Já nosso Machado
de Assis vai pela ironia: “O mundo era estreito para Alexandre; um desvão
de telhado é o in�nito para as andorinhas”.92
E o segundo, Júlio César, então? Mais que sob os golpes dos conjurados,
caiu vítima de sua insaciável “vontade de potência”. Não lhe bastaram
cinco “triunfos”. Foi pouca a “apoteose” que o Senado lhe tributou,
conferindo-lhe o título de “deus”, com direito a estátuas, sacerdotes e
culto. Continuou sonhando: quer dominar os partas e os citas, estendendo
assim o império do Atlântico ao mar Cáspio. Pois só então se sentirá maior
que o grande Alexandre. E apesar de ter, como dictator, todos os poderes
na mão, quer ainda restaurar a monarquia e ser coroado rei (rex, basileus),
título que ele ambiciona mais que tudo, inclusive o de deus. E foi
justamente quando, nos idos de março, entrando no Senado para propor e
receber o título supremo, vinte e três punhais puseram à terra seus desejos
desmedidos.93 Sobre a campa desses heróis poderia constar o epitá�o do
irrequieto Marechal Trivulzio, o Grande (+1518): “Aqui descansa aquele
que nunca descansou”.94
Mesmo entre os escritores da Idade moderna, há muitos, principalmente
os românticos, que exaltaram a ânsia do in�nito que atormenta o coração
do homem. Shelley fala do “desejo da mariposa pela estrela”.95 Aliás, a
palavra latina de-sider-ium não tem sider (estrela) no meio? Antero de
Quental des�a sonetos e mais sonetos para descrever a inquietude eterna
do coração humano. Hölderlin, no Hyperions Jugend (1795) descanta,
maravilhado, o anelo humano por crescer sempre mais e mais. A luta é
interminável e a redenção é sempre e para sempre adiada. Nächstens mehr!
(na próxima vez, mais!): é a última palavra do jovem Hypérion. Para o
poeta, “é a glória do homem nunca estar satisfeito”. Sua satisfação está em
não se satisfazer com nada jamais. É viver, sem descanso, de aventura em
aventura.
Hölderlin, contudo, não é o primeiro dos que, por não vislumbrarem
qualquer saída para a inquietude humana, decidem que a não saída é a
própria saída. Antes dele, Hobbes (+1679) tinha posto o objeto do desejo
num “contínuo progresso”: “Só no prosseguimento pode haver
contentamento”.96 Segundo o �lósofo, o desejo é um contínuo passar “de
um objeto a outro”, sem qualquer �nis ultimus ou summum bonum, que ele
julga inexistentes.97 Igualmente Lessing (+1781), em Uma réplica, preferia a
busca errante da verdade à sua posse: “Se Deus segurasse na sua mão
direita toda a verdade e na sua esquerda só a busca da verdade, embora
com a condição de eu errar sempre, e me dissesse: ‘Escolhe’, eu agarraria
humildemente a sua esquerda e diria: ‘Pai, dai-ma; a verdade pura é só
para vós’”. 98
Para o Goethe do Fausto, a aposta do protagonista com o Diabo é uma
existência feita de aventuras contínuas, de tal modo que Me�sto terá a
alma de Fausto no dia em que este, deslumbrado por certo portento,
quiser, para gozá-lo, parar o tempo e disser: “Pare, pois! Tu és tão belo!”.99
O próprio Agostinho já tinha entrado em diálogo com um jovem pensador,
Licêncio, que arvorava como lema seu a procura sem �m da verdade,100
�gura precursora dos modernos céticos, agnósticos e relativistas. Vimos que
uma progressio ad in�nitum não se sustenta mais que uma regressio ad
in�nitum, pois, sem um termo atrativo, não há ação ou desejo que se
ponham em movimento.
Por sua parte, os existencialistas exploraram a angústia sem fundo e a
ambição sem limites da vida humana. Sartre de�ne o homem como
“paixão inútil”, pois, aspirando ao status supremo de ens a se, acaba
inevitavelmente no mais rotundo fracasso. Não se exprime de modo
diverso Camus, quando, em seu Calígula, plagiando Pascoli, faz o
imperador pedir nada menos que... a lua, a inalcançável lua.101 O que isso
signi�ca, explica-o o autor em outro escrito: “O mundo assim como está
não é suportável. Preciso da lua, da felicidade, mesmo da imortalidade, de
qualquer coisa que seja loucura talvez, mas que não pertença a este
mundo”.102 Re�ramos, por �m, nossos psicanalistas, que falam do desejo
como de uma pulsão jamais colmatável, tal uma ferida que sangra sempre,
sem nunca cicatrizar. E então? – pergunta-se. “Então é a castração”: tal é a
receita desses sábios.103 Essa, em verdade, não passa da con�ssão de
impotência em dar sentido à vida, depois que se eliminou sua fonte
transcendente.
A vontade, genuinamente humana, de um sentido pleno pode-se
resumir na expressão agostiniana cor inquietum, experiência essa que o
prêmio Nobel de literatura (1975), Saint-John Perse, traduz assim: “Escuta,
ó noite, (...) o grande passo soberano da alma sem cova, como fera
circulando sobre lajes de bronze”.104 De olhos abertos ou fechados,
ninguém pode proibir ninguém de sonhar com esta fonte misteriosa de que
jorram paz, doçura e amor em abundância, como canta nosso Paulinho da
Viola no samba Dança da solidão:
Quando vem a madrugada meu pensamento vagueia,
Corro os dedos na viola contemplando a lua cheia.
Apesar de tudo, existe uma fonte de água pura,
Quem beber daquela água não terá mais amargura.
Como não pensar aqui no Cristo, que se revelou à Samaritana como a
verdadeira “água viva” que dessedenta para sempre e que se torna no
coração de quem a toma uma “fonte de água que jorra até a vida eterna”
(Jo 4,10-14)?
2. O “cor inquietum” de Santo Agostinho
Ninguém como Agostinho expôs com tanta �neza a dinâmica do desejo
humano.105 É conhecidíssima sua a�rmação no início das Con�ssões e que
vale como seu leitmotif: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e inquieto está o nosso
coração enquanto não se aquietar em ti”.106 O grande Doutor vê nessa
inquietaçãoa marca da grandeza humana, ao declarar mais adiante:
Através dessa mesma miserável inquietação (...) mostras o bastante quão grande fizeste a criatura
racional, à qual não basta de modo algum, para seu descanso bem-aventurado, tudo o que é inferior
a Ti. Sequer a si mesma se basta.107
Para ele, o desejo, por sua própria natureza, é abertura ao in�nito. Por
isso, desejo é, no �m, desejo de Deus. É “dilatação” (extensio) da alma
rumo a Deus. Como dilatação, desejo é caminho-para (Deus) e é, ao
mesmo tempo, recipiente-de (Deus).
Mas o desejo pode se desgarrar de seu �m natural: é a “dispersão”
(distensio). É quando cai na enfermidade (languor).108 Fechou-se em si e
passou a amar a criatura por si mesma. Esse é um amor desordenado, e se
chama “cobiça” (cupiditas). Ao contrário, quando o desejo se abre e ama
Deus e a criatura por Deus, torna-se um amor ordenado, e se chama
propriamente “caridade” (caritas).109 Portanto, o desejo bom é o que tem
um objeto bom; o desejo mau é o contrário: o que tem um objeto mau. O
primeiro eleva e o segundo rebaixa.
Amando o mal ou amando mal, a alma gira no vazio e é condenada ao
ciclo das necessidades.110 Gira em círculo, buscando a satisfação entre as
coisas relativas, mas em vão. De fato, “quando se afasta d’Aquele que só
basta, o homem não basta mais a si mesmo nem lhe basta mais bem
algum”.111 Mas na caritas, ao contrário, a alma se ergue até Deus: “Assim
cheguei, num ímpeto de trépida visão, ao próprio ser”.112
Essa é uma teoria que Agostinho experimentou em sua própria carne. A
inquietude do homem sem Deus, ele a sentiu quando, adolescente, foi
viver em Cartago, conhecida então como a “cidade dos prazeres”. Descreve
com que ânsia se atirou então sobre os amores passionais a �m de encher
seu coração com a felicidade que podiam dar. Mas reconhece que maiores
ainda foram os “trabalhosos laços de servidão” desses amores e os “golpes
ardentes” que deles recebeu, com seus “ciúmes, suspeitas, temores, iras e
altercações”.113 Daí o contínuo tormento de seu coração: “Não encontrava
lugar de descanso nas coisas exteriores, nem elas me acolhiam, de modo
que pudesse dizer: ‘Basta! Está bem!’”.114 Mas por que essa insatisfação?
Porque – responde ele – a coisas eram inferiores a mim e só Tu eras
superior e, por isso, só Tu podias ser para mim o gaudium verum.115
Confessa em um passo de extrema emoção:
Oh! Caminhos tortuosos! Desgraçada ousadia de minha alma, que, afastando-se de ti, esperava
encontrar algo de melhor! Ela se vira e se revira: e de costas, e de lado, e de bruços; e tudo acha
duro; e só tu és descanso! Mas eis que chegas e nos libertas dos enganos miseráveis, e nos pões
no teu caminho, e nos consolas. E nos dizes: Correi! Eu mesmo vos levarei e vos conduzirei lá aonde
quero vos levar.116
É que o desejo está sempre e para sempre aberto ao in�nito, ao sentido
absoluto, à felicidade plena.117 Esse é o objeto intransponível do desejo,
porque desejado por si mesmo e pelo qual a alma deseja tudo o mais. Mas
que nome tem essa felicidade? Para Agostinho, chama-se Deus.118 Diz,
efetivamente, “esta é a felicidade: gozar por Ti, de Ti e por causa de Ti; fora
dessa felicidade não há outra”.119 E vice-versa: Deus é a felicidade:
“Procurando-te a Ti, procuro a felicidade de minha vida”.120 O homem
pode ter tudo, mas sem Deus não se sentirá feliz, como diz num sermão:
Se Deus vos dissesse: “Tu não verás jamais meu rosto, mas terás toda a felicidade terrestre, todos
esses bens que abundarão para ti. Eis-te cumulado de todos os favores temporais, que não poderás
perder nem abandonar. Que queres mais?”. E o casto temor põe-se a chorar, a gemer e a gritar: “Ah!
Não. Que me tirem tudo, mas não a felicidade de te ver!”. 121
É verdade, Santo Agostinho convida à introspecção da própria alma,
para aí encontrar Deus: “Não vás para fora, antes, volta-te para ti mesmo”.
Sua dialética, porém, acrescenta um segundo termo: sair de si, como
quando diz: “Transcende-te também a ti mesmo”.122 Em Agostinho, o
movimento psicoantropológico de des-cendência é completado pelo
movimento ontológico de trans-cendência. Se o primeiro apreende Deus
como o “mais íntimo que meu íntimo”, o segundo O experimenta como
“superior ao meu cimo”.123
Em Agostinho, a veritas intima se desdobra em veritas summa. A via
antropológica se completa com a via cosmológica. O clamor da natureza
consagra a voz da consciência, a intencionalidade objetiva consuma e, ao
mesmo tempo, con�rma a intuição subjetiva. O caminho que o grande
Doutor propõe pode ser sintetizado nesta fórmula: do exterior para o
interior e do interior para o superior.124
Como se vê, a subjetividade agostiniana é uma subjetividade
transcendida. Nisso ela se distingue da moderna, que permanece
prisioneira de si mesma. A dialética agostiniana triunfa sobre o
psicologismo, o narcisismo, o idealismo e outras formas de subjetivismo,
moderno ou pós-moderno que seja.
3. Céu como metáfora da transcendência
Em todas as culturas e religiões, o céu, assim como seus elementos
urânicos, como o sol, a lua, as estrelas e as nuvens, sempre foi tido pelo
símbolo da transcendência. Isso porque o céu é uma realidade vasta, alta e
inacessível, e é, além disso, origem de fenômenos estranhos e poderosos.125
O céu representa o inatingível, aquilo que supera a capacidade humana, “o
além de nós mesmos”.126 “O objetivo do homem deve estar além do seu
alcance – senão, para que o céu?”, disse o grande poeta Robert Browning.127
Apesar de todas as incursões da astronomia, que no início da
modernidade abalaram a imagem tradicional do céu, esse recuperou seu
antigo e eterno encantamento e continua a evocar outros céus. De fato, a
potência evocativa do céu físico é tão indestrutível como o próprio céu. E
isso está ligado à estrutura do nosso pensamento, que só pode pensar o
supranatural, que é sem espaço e sem tempo, ao modo do natural, que é
constitutivamente espaçotemporal. Por isso atribuímos a Deus e aos bem-
aventurados um lugar que chamamos precisamente “céu”. Céu é também o
“lugar do sentido”, o “para onde” vamos. Por outras, é o “lar” de nossa
identidade plena, o “destino �nal” de nossa aventura neste mundo, a “casa
do Pai”. “Reino dos céus” não é por acaso a metáfora que Jesus preferiu
(aparece mais de cem vezes nos evangelhos) para falar da plenitude
humana e divina?
O céu das nuvens foi e será sempre símbolo dos céus inteligíveis e
místicos. É assim que temos o céu das ideias puras, que Platão chamava de
Hiperurânio. A tradição judaica distingue, para além do “primeiro céu”, o
das estrelas, o “segundo céu”, onde vivem os santos, e ainda o “terceiro
céu”, morada do Altíssimo (cf. 2Cor 12,2). Visto como termo do destino
humano, o céu é o lugar metafórico do sentido. Paulo VI falava “daquele
céu que, ele (o homem), ávido de verdade e vida, deseja desesperadamente
e, de modo vago, tem a intuição de que deve ser seu próprio destino”.128 É
a pátria do ser humano totalmente cumprido, como recita o Catecismo da
Igreja Católica: “Os eleitos (...) lá conservam ou, melhor, lá encontram sua
verdadeira identidade, seu próprio nome (cf. Ap 2,17)” (n. 1025).
A contemplação do céu, especialmente nas noites estreladas, sempre
suscitou admiração no coração humano. “Narram os céus a glória do
Senhor” – canta o Salmista (Sl 18). “Ora, direis, ouvir estrelas” – exclama
nosso Olavo Bilac. “O silêncio dos espaços in�nitos me apavora” – confessa
Pascal. Junto com “consciência dentro de si”, Kant se declara fascinado
pelo “céu acima de si”.
As especulações astrológicas do mundo antigo estavam ligadas à ideia do
sentido da vida e da história, pois cria-se que nos astros estaria inscrito o
destino dos humanos e das nações. Foi assim que os magos, investigando a
linguagem dos céus, chegaram a intuir a chegada do rei dos judeus e do
mundo inteiro (cf. Mt 2,1-12).
Segundo testemunho de Aristóteles, Anaxágoras, perguntado sobre qual
seria o escopo ou o sentido da vida humana, respondeu: “Os deuses nos
geraram para contemplar o céu”. Signi�cava com isso, como explicou
Cícero,que a vocação do ser humano é a busca gratuita do conhecimento,
e não a busca do lucro ou da fama.129 Verdadeiro, além de belo, é o verso
de Ovídio: “Deus deu ao homem um rosto sublime e mandou-o olhar para
o céu e levantar o rosto para as estrelas”.130
O céu sempre foi para os antigos objeto de um olhar contemplativo e
religioso. Para consolar a mãe exilada, Sêneca dizia-lhe que os homens
podem nos tirar todos os bens exteriores, mas não o que é propriamente
nosso: a alma e... o céu. Este, em verdade, se eleva sobre qualquer lugar,
inclusive na terra do exílio. Sua beleza inalterável é sempre oferecida à
nossa admiração. Ora, continua Sêneca, isso nem sempre acontece na
pátria, pois aí quanto mais as construções crescem, mais escondem o
céu.131 Já para o homem medieval, o céu tinha ainda mais importância.
Obsedado que era pela escatologia, o medieval vivia suspirando pelo céu. A
terra, para ele, não passava de um campo de luta para conquistar o céu.132
Totalmente outra é a perspectiva dos modernos secularizados. Esses
olham para a terra com o objetivo de dominá-la e fazer dela o paraíso.
Quanto ao céu físico, tornou-se apenas um espaço a conquistar, empresa
em que foram precedidos pelos titãs e pelos habitantes de Babel com sua
torre (cf. Gn 11,1-9). Trata-se de uma �loso�a terrenista, que
desafortunadamente contaminou vastas áreas da própria Igreja, levando-a
ao enfraquecimento da indispensável tensão escatológica que deveria
animar a ação cristã na história. Mas o céu simbólico é tão insuperável
como o astronômico. Conquanto desprezado, ele continua a evocar a
transcendência, como escreve G. Papini, ao fazer um moderno falar, entre
sincero e despeitado:
Odeio o céu. E com o pior tipo de ódio: o ódio impotente. (...) O céu é uma injúria perpétua e
insuportável. (...) O desafio do céu estrelado é desproporcional, prepotente, vergonhoso. (...) O céu é
somente o velário sinistro em que leio, toda noite, a sentença de minha irremediável nulidade.133
Nietzsche radicalizou o desprezo pelo céu, denunciando a crença nos
“além-mundos”. O “outro mundo” seria um “nada celeste”.134 Eis a
pregação de Zaratustra: “Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer �éis à
terra e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças
supraterrestres”.135 Os homens não devem mais “procurar atrás das estrelas
uma razão para morrer e oferecer-se em sacrifício”, mas “sacri�car-se pela
terra para que a terra pertença um dia ao Super-homem”.136 Ora, o Super-
homem é o “sentido da terra”.137 Mas, se o céu não evoca mais o mundo
platônico dos valores e menos ainda a sede do Criador, e se, contudo,
permanece onde sempre esteve, que pode ainda lembrar? Para o �lósofo de
Röcken, a “abóbada cerúlea” doravante não passa de uma caixa de dados a
fazer seus lances caleidoscópicos no bem-aventurado Reino do Acaso.
Agora, sob a imensa vastidão do céu, cada coisa, liberta da “servidão do
�m”,138 viveria uma existência divina, absolutamente gratuita e
auto�nalizada.
Entretanto, a prometida era de liberdade e criação que se seguiria à
morte de Deus não parece ter realizado a profecia de Zaratustra. A terra,
crendo-se curada de seu feitiço pelo céu, conseguiu inicialmente encantar
o homem moderno. Mas já agora perdeu seu charme. O homem moderno,
tendo feito a volta da terra através de suas navegações e outras viagens de
exploração, inclusive espaciais, viu seus limites e acabou enfadando-se
dela. O último grande sobressalto de amor pela terra foi e é, para muitos, a
ecologia. Mas a inquietude humana permaneceu, bem como a saudade de
outro mundo possível.
“O homem está perdido porque não olha mais para o céu”, teria dito E.
Ionesco. Felizmente, no tempo pós-moderno, aumentam os que voltam
novamente seus olhos para o céu. Talvez tenham ouvido a advertência do
Salmista: “Não levanteis tão alto vossa fronte. Não faleis assim com a nuca
insolente” (Sl 74,6); e sua lição: o sentido “não vem nem do oriente, nem
do ocidente”, mas vem do alto, de onde só poderia vir (cf. Sl 74,7-8). O
sentido vem como a luz que caiu, perpendicular, do alto quando do Natal
de Cristo (cf. Lc 2,9), o “sol que nasceu do alto” (Lc 1,78). De fato, o céu
foi sempre o cenário privilegiado da epifania do sentido. Quando a
Escritura diz que “os céus se abriram”, como no batismo de Jesus (Mt 3,16),
no martírio de Estêvão (At 7,56) e ainda no Apocalipse (11,19; 15,5), não
está falando da revelação do sentido?
O céu, portanto, permanece, em sua verticalidade, o símbolo da
transcendência absoluta do destino humano, ao contrário do horizonte,
que é o símbolo da transcendência meramente relativa, tal como a professa
o progressismo. Ora, a alma não se contenta com um “mais”; ela quer um
“outro”. O céu é a resposta ao seu desejo absoluto de absoluto. O céu é, no
dizer das Escrituras, nossa “pátria” verdadeira (Hb 11,16), o lugar de nossa
“cidadania” (políteuma: Fl 3,20), a “cidade do Deus vivo” (Hb 12,22) “cujo
arquiteto e construtor é Deus mesmo (Hb 11,10), o “Reino inabalável” e
de�nitivo (Hb 12,28; cf. Dn 7,18), a “Jerusalém do alto” (Gl 4,26), a
“Jerusalém celeste” (Ap 21,2.10-27).
Ao contrário do que crê o homem secular, o céu não está vazio, mas
cheio. Mais: o céu é a plenitude por excelência, plenitude de ser, que é
Deus. O céu é essencialmente Deus e sua presença irradiante, isto é, sua
glória. Que seria o céu se fosse apenas um estado de beatitude e paz, tal o
Nirvana? Não, o céu, assim como o sentido que ele simboliza, não é em
essência uma coisa, mas uma pessoa. E a pessoa, pelo fato de pensar e
amar, é absolutamente a maior dignidade, a mais alta expressão do ser.
Qualquer estado impessoal, por mais beatí�co que seja, é inferior à pessoa.
O sentido, portanto, é uma pessoa e, por isso também, é pensamento e
amor. Os cristãos dizem tudo isso, e ainda mais, quando dizem Trindade.
É por isso que a abóbada do céu, que se arqueia sobre o mundo, evoca,
para quem crê e espera, a plenitude de Deus e de seu amor e, tal uma
caixa de ressonância mágica, faz a vida ressoar com melodias divinas. Mas,
quando o céu da poesia e da mística desaparece, então a melodia da vida
se perde naquilo que o céu se tornou: espaço in�nito e morto, que nada
mais ecoa.
Para Camus, a vida seria absurda porque a contradição entre o desejo
in�nito e a realidade �nita é insolúvel. Mas isso só é verdade se não existe
céu. Ao contrário, se o céu existe, ele é precisamente o lugar onde essa
contradição se resolve, pois aí o desejo in�nito encontra �nalmente sua
resposta in�nita: Deus. Pois, se Deus existe, o céu também existe. É seu
mundo e seu reino. E, se o céu existe, então existe o ansiado “país da
felicidade”. E, por sorte, existe também a “escada” que lhe dá acesso (cf. Jo
1,51).
4. Desejo de eternidade: vivemos “como se” fôssemos
eternos
Nosso coração pede sempre por sentido, esteja nisso enganado ou não.
É o que testemunha Saint-Exupéry: “Nós todos agimos como se qualquer
coisa superasse em valor a vida humana, mas o quê?”. Também o grande
biólogo Jean Rostand: depois de constatar que a “febril atividade local do
homem não tem sentido nem �nalidade, perdido que está num cosmos
inerte e desmedido”, conclui: “Por isso, ciosamente recurvado sobre si
mesmo, o homem se consagrará humilde e terrestremente à realização de
seus planos estreitos, levando-os tão a sério como se visasse �ns eternos”.139
Esse “como se” denuncia a presença, no íntimo do ser humano, de uma
pulsão misteriosa e irrecusável em direção à mais genuína verdade. Da
mesma forma e de um modo particularmente eloquente, P. Teilhard de
Chardin considera uma “verdade psicológica”’ e uma “lei fundamental da
ação” a convicção de que só agimos em função da eternidade. Eis suas
palavras:
Homem nenhum levantaria o mindinho para a menor tarefa se ele não fosse movido pela convicção,
mais ou menos obscura, de que trabalha infinitesimalmente (...) para a edificação de qualquer coisa
de Definitivo. (...) É necessário nada menos que a atração do que se chama o Absoluto (...) para
deslanchar a nossa frágil liberdade. Assim, tudo o quediminui minha fé explícita no valor celeste dos
resultados de meu esforço degrada, sem remédio, minha capacidade de agir.140
Fichte já tinha proclamado: “Não podemos amar coisa alguma se não a
consideramos como eterna”.141 Só amamos de fato o terrestre se vier
aureolado de céu. Apegamo-nos para valer ao temporal apenas quando
ungido de eternidade. É essa identi�cação misteriosa que a religião
promove e que a propaganda comercial explora.
O in�nito é a apoteose do �nito. Mesmo o mal só atrai se nimbado de
in�nito. O viciado se lança sobre o objeto de seu prazer como sobre a
própria felicidade, ainda que essa se encontre aí numa forma pervertida.
Amamos isto ou aquilo em particular só porque isto ou aquilo representa
outra coisa, in�nitamente maior.
Nisto Platão tinha razão: as coisas visíveis são apenas sombras das
realidades invisíveis. Goethe, por sua vez, declara no �m do Fausto: “O
efêmero é símbolo do eterno”. Os Upanixades dizem com propriedade: “É
só por amor de Brahman que o homem tem amor à mulher”.142 Sim,
porque o amor passional é adoração: no objeto imediato do desejo, o
apaixonado adora �nal e inconscientemente a Deus.143
5. “O sentido do mundo deve estar fora do mundo”
É o que escreveu, com todas as letras, Wittgenstein no Tractatus.144 Mais
adiante, lança uma sentença análoga: “A solução do enigma da vida no
espaço e no tempo acha-se fora (sic) do espaço e do tempo”.145 Se bem que
devamos mais adiante, no capítulo VI, discutir de modo sistemático se o
sentido do mundo está dentro ou fora do mundo, antecipemos aqui o que
diz a esse respeito Wittgenstein, por causa da analogia que essa questão
(lógica) oferece com a questão (antropológica) do desejo de sentido, como
diremos no �m desse scholion.
Notemos, para começar, que a sentença capital citada tem caráter não
ontológico, mas puramente lógico, como, de resto, são todas as sentenças
daquele tratado, chamado justamente logico-philosophicus. Trata-se, mais
especi�camente, de uma sentença lógico-hipotética, que pode ser
transcrita assim: “Se o mundo tem um sentido, esse sentido só pode estar
fora dele”. Isso é claro; pois, se o sentido estivesse no mundo, seria parte do
problema, e não seria mais sentido, mas ele mesmo teria de receber de fora
um sentido. Aquela sentença não mostra que existe um sentido para o
mundo, mas apenas que a necessidade de haver um sentido para o mundo
é somente uma necessidade hipotética, ou seja, só vale no caso em que o
mundo realmente tenha sentido.
Disso se depreende que a questão real e primeira é se o sentido
postulado realmente existe (para ser positiva e efetivamente o sentido do
mundo). Essa é a questão principal que precisa de resolução. Como vimos,
o sentido do mundo supõe demonstrada (por fora do desejo) a existência
de Deus, que, como Transcendente, está efetivamente “fora do mundo” e
pode, a esse título, dar sentido ao mundo. Mas, se não existe um “fora do
mundo”, como pensam os materialistas, então também não existe Deus e,
não existindo Deus, também não existe um sentido do mundo. O mundo,
portanto, seria sem sentido. Como se vê, o materialista é ateu por
implicação e niilista por conclusão.
Pode-se argumentar de modo análogo em relação ao mortalismo.
Efetivamente, se o sentido da vida só pode estar no post mortem, e se não
existe um post mortem, então, não existe um sentido da vida, senão como
invenção arbitrária. Portanto, a vida se revela absurda. Diga-se de passagem
que esse niilismo não impede que os ateus, chamem-se eles materialistas ou
mortalistas, encontrem, se não “o” sentido da vida, pelo menos “algum”
sentido na vida. De todos os modos, �ca claro que, se o sentido do mundo
pressupõe a admissão do Transcendente real, o niilismo pressupõe sua
negação.
Portanto, a sentença de Wittgenstein não demonstra efetivamente a
existência do sentido do mundo, mas apenas a transcendência desse
sentido, na hipóstese data non concessa, de que tal sentido exista, chame-se
ou não Deus. É um postulado que expressa apenas uma exigência do
pensamento e que pode ser assim formulado: o sentido do mundo
(provado que exista) “deve estar” (não se diz “está”) “fora do mundo”, ou
seja, deve ser transcendente ao mundo. Teria de ser de fato um
suprassentido.
Mas, se a sentença de Wittgenstein não serve como argumento
demonstrativo ou apodítico para a existência de um suprassentido, pode,
sim, servir de argumento probante ou dialético para aquela existência. Se
não pode demonstrá-la, pode, sim, mostrá-la – e já é muito. A existência de
um sentido transcendente ao mundo aparece como altamente provável
não só pelo fato de não estar em contradição com a existência do mundo,
mas sobretudo porque se harmoniza com ela e lhe convém à perfeição.
Seria, de fato, muito estranho se o postulado lógico de um sentido
transcendente fosse tão somente lógico e não re�etisse em nada a estrutura
ontológica do mundo. Pois, como pode ser que a razão peça uma coisa e a
realidade lha negue? É, com efeito, um pressuposto universal, mesmo se
irre�exo, de que existe uma misteriosa “harmonia pré-estabelecida” entre a
razão e a realidade, harmonia que Einstein encareceu sob a designação de
“religiosidade cósmica” e que constitui o dogma que sustenta toda a
empresa cientí�ca. Justi�ca-se, portanto, a leitura teologizante da sentença
wittgensteiniana, enquanto a toma como uma razão probante da existência
de Deus. Essa leitura é, de todos os modos, logicamente mais consistente
que a leitura niilista.
De resto, o argumento da exigência lógica do sentido transcendente
para o mundo é tão postulatório quanto o argumento do desejo existencial
de sentido transcendente para a vida. Ademais, ambos se reduzem a
variações do celebérrimo “argumento ontológico” de Santo Anselmo.
Imputa-se tradicionalmente a esse argumento o uso indevido da metábase,
isto é, a passagem injusti�cada do plano da lógica para o plano da
realidade. Mas nessa objeção não se leva na devida conta a natureza única
da questão em foco: o fato de se tratar da questão suprema. Ora, para tal
questão o uso da metábase é perfeitamente legítimo, se não da lógica
demonstrativa, ao menos da lógica dialética. Assim, se partindo da ideia de
Deus não se pode demonstrar rigorosamente sua existência, pode-se pelo
menos mostrar sua grandíssima probabilidade. Como variações do
argumento ontológico, tanto o argumento da exigência lógica de sentido
como o de sua busca existencial, conquanto não sejam lógico-
demonstrativos, possuem claras virtudes dialético-morais. Se as razões
demonstrativas ou apodíticas se dão “por fora da mente” e exibem a solidez
da objetividade do mundo, as probantes ou dialéticas se dão “por dentro
da mente” e mostram a força de convencimento que só a dinâmica da
subjetividade da pessoa humana é capaz de conferir.
Esclareçamos, como nota �nal, que, em toda a nossa argumentação,
usamos a distinção feita por Aristóteles entre razões (ou argumentos, ou
ainda provas) apodíticas (ou demonstrativas ou ainda “cientí�cas”), que o
�lósofo estabelece nos Analíticos, e razões dialéticas (ou probantes), que ele
examina nos Tópicos. Essa distinção é decisiva também para discernir o
valor de verdade que pretende veicular o chamado “desejo natural de
sentido”, problemática que trataremos no próximo capítulo.146
III
CAPÍTULO
PARTE 2
Desejo de sentido no contexto da
modernidade
Nessa segunda parte do capítulo III, trataremos do desejo natural
confrontando-o com a problemática moderna, na medida em que essa
atribui ao desejo uma particular capacidade de criação imaginária,
sobretudo no que tange ao sentido religioso da vida.
Queremos mostrar, em primeiro lugar, que o desejo de sentido,
enquanto é natural, não projeta ilusoriamente seus conteúdos, inclusive os
transcendentes, mas simplesmente os postula devido à correspondência do
desejo natural com a realidade objetiva. Sem embargo, e essa é a nossa
segunda tese, veremos que o desejo de sentido, aponta, sim, para Deus,
mas de modo ainda vago e geral, permitindo muitos equívocos. Por �m,
mostraremos as várias alternativasque se apresentam, do ponto de vista
antropológico, para o sentido da vida, mostrando que o Transcendente real
é a única que se mostra à medida mesma do ser humano.
I. DESEJO DE SENTIDO: OB-JETIVO, NÃO PRO-JETIVO
1. A explicação dos “modernos”: desejo projetivo
Desde o Iluminismo, muitos e importantes pensadores sublinharam a
dimensão de projeto ou tarefa que habita em todo ser humano. Alguns
deles chamaram tal dimensão de “abertura”, “transcendência” e mesmo
“autotranscendência”. Entre os fautores dessa ideia, podemos citar Nietz- 
sche, Freud, Heidegger, Jaspers, Scheler, Bloch, Marcuse, Adorno, Sartre,
D. Heinrich, Wahl e Frankl, mas também cristãos como Blondel, Tillich,
Rahner, Metz, Boros, Schillebeeckx, Zubiri, Lonergan, Alfaro e De Finance.
Para todos eles, o homem busca sempre se superar, seja para a frente
(transcendência horizontal), seja para cima (transcendência vertical). Esse
traço se mostra em todas as faculdades do homem: no sentimento, na
imaginação, na inteligência, na vontade, assim como em seu agir. O
homem seria, sobretudo, desejo, no sentido largo de pulsão, tendência,
dinamismo.1
Mas a que coisa visaria a autotranscendência? Qual seria o termo do
desejo humano? A maioria dos pensadores modernos nega que seja Deus.
Para eles, Deus não é o objeto real do desejo, mas seu produto imaginário.
Deus, portanto, não seria um ser objetivo, mas projetivo, enquanto
projetado pelo desejo na tela da imaginação. Assim, um sentido último,
que transcenda este mundo, não passaria de efeito fantástico do desejo.
Entraria na categoria do wishfull thinking: pensamento ou crença derivada
do desejo. Seria, pois, essencialmente “ilusão”, tal como Freud a de�niu.2
Para tais autores, Deus ou qualquer outro absoluto seria uma miragem.
E explicam: de tanto querer Deus, a mente o toma por real. Não diz
uma parêmia muito difundida que somos propensos a acreditar facilmente
no que desejamos? Deus seria, pois, uma alucinação, algo de doentio. O
�lósofo A. Comte-Sponville declara expressamente que Deus corresponde
demais a nosso desejo para não ser um logro. É, como diz um provérbio,
“bonito demais para ser verdadeiro”. Para esse pensador, a fé seria uma
ilusão entendida como “desejo crédulo”. Na fé funcionaria, de modo
exemplar, o mecanismo do autoengano: objetivar desejos intensos. Para o
mesmo �lósofo, o “desejo de Deus”, em vez de justi�car a crença em Deus,
serve, antes, para justi�car a descrença nele.3
Como é sabido, Feuerbach foi o primeiro �lósofo que explicou
sistematicamente a religião como criação imaginária da mente humana.4
Desde então, essa explicação foi aceita pelas grandes mentes que marcaram
o último século: Marx, Nietzsche e Freud, ainda que cada um a modulasse
a seu modo. Tornou-se, até recentemente, a teoria dominante da
intelectualidade laicista. Freud, em particular, de�niu a religião como
neurose infantil. Diz de modo taxativo e um tanto ponti�cal: “Quanto às
necessidades religiosas, considero irrefutável sua derivação do desamparo
infantil e da nostalgia do pai, que o primeiro suscita. Tal sentimento não se
mantém apenas desde a infância, mas é reanimado sem cessar pela
angústia ante a onipotência do destino”.5 Para o pai da psicanálise, até que
o homem não renuncie à ilusão religiosa, será sempre uma criança, sem
poder aceder à maturidade.
De fato, o ideal da modernidade foi o homem prometeico, totalmente
emancipado, principalmente de Deus. Esse foi, de resto, um ideal de
grandeza que exerceu enorme poder de sedução sobre gerações,
especialmente entre jovens e entre intelectuais. Houve mesmo teólogos, e
dos grandes, que, seduzidos pelo ideal moderno de emancipação,
chegaram a a�rmar, como fez, por exemplo, D. Bonhöffer, que “arranjar-se
na vida sem Deus” é condição para se viver hoje como homens adultos,
livres, honestos e responsáveis.6
A teoria de Deus como projeção é tão convincente junto aos modernos
em geral que acabou se tornando para eles como um lastro teórico e moral
ao qual apelar com segurança para negar peremptoriamente qualquer
objetividade e valor à religião. Não dissera Marx, sem pestanejar sequer,
que, depois da crítica de Feuerbach, a questão religiosa estava em princípio
“arquivada” para sempre?7
Apesar de dominante, essa é apenas uma interpretação, a negativa, do
desejo de in�nito. Pois existe também uma interpretação positiva: aquela
dos que entendem o desejo de in�nito não só como constitutivo
inarredável do homem, mas ainda como dinamismo que levaria o homem a
crescer e a criar sempre mais, superando continuamente seus limites e
produzindo o novo na história. Poderíamos chamá-los de pensadores
in�nitistas ou transcendentalistas, entre os quais podemos contar com
escritores como Goethe, Hölderlin e os românticos em geral, assim como
Rilke; e ainda com �lósofos como Lessing, Nietzsche, Jaspers, Manheim, E.
Bloch, Cacciari, Adorno, A. Adler e outros.
Para esses inefáveis encomiastas do “in�nito sem �m”, anda-se
simplesmente por andar, sem outra intenção, e nisso estaria a realização
humana. Mas que é isso, senão dar o próprio problema por solução? Esse é,
em verdade, um achado pouco mais que literário, além de nada ter de
original. De fato, a ideia de uma “busca eterna” não passa de mais uma
versão da tese absurda do “eterno retorno”, corolário de uma visão da vida
como puro devir.
Para refutar esses “amantes da roda” ou do girar sem destino, bastaria o
sarcasmo ao estilo de Bernanos: “Isso de correr sem saber para onde é coisa
de imbecis”.8 Guardando, porém, a gravidade que o assunto requer,
invoquemos o taciturno Tomás de Aquino, o qual já tinha denunciado a
impossibilidade humana de um “processo ao in�nito”, mostrando que tal
processo paralisaria tanto o desejo como a ação. Desejo e ação, com efeito,
só se movem na perspectiva de um termo �nal conclusivo.9 Ou seja,
falando clara e diretamente: sem esperança de alcançar o termo �nal, não
é possível nenhum movimento, como nenhuma vida. Só o in�nito de�nido
sustenta e realiza o desejo, enquanto o in�nito inde�nido o mata.10
Como se vê, os intelectuais que sustentam a ideia de que Deus é uma
criação ilusória do homem fazem-no a partir e em força de um partis pris
de caráter positivista e ateísta. Não é, pois, a descoberta, pretensamente
cientí�ca, de que Deus é uma ilusão que os levou ao ateísmo, mas, ao
contrário, é sua pro�ssão de ateísmo que os levou a defender o caráter
ilusório de Deus. Em verdade, a cultura acadêmica dos dois últimos séculos
parecia efetivamente ter batido o martelo sobre a questão da religião com
um “não se discute mais nisso!”. Contudo, a afetada segurança dessa
posição foi abalada nos últimos anos pela irrupção, na ribalta cultural, do
fator religioso, ostentando as formas mais diversas, que vão desde a escolha
mais subjetiva da própria espiritualidade até a imposição terrorista de um
credo monolítico.
Entre os modernos há ainda os que concordam que o desejo de Deus ou
de um in�nito qualquer está tão enraizado no fundo mais fundo do ser
humano que se mostra efetivamente indestrutível. Esses mantêm, assim
mesmo, a ideia de que tal desejo é ilusório. Que fazer, então, com ele? O
que esses pensadores propõem, em perfeita lógica, é reconhecer
francamente esse desejo, sem ceder às suas miragens. É conviver
realisticamente com ele, desenganando-se conscientemente de suas
criações imaginárias. É, en�m, assumi-lo corajosamente, renunciando às
suas inevitáveis ilusões com toda a determinação e lucidez possíveis. Só
assim se dariam provas de liberdade, independência e maturidade
humana. Mas quem não vê que tudo isso, embora teoricamente lógico, é
existencialmente algo de arti�cial e forçado?
Seja como for, esta é a pars destruens que propõem os “projetistas” do
desejo. Sua pars construens consistiria em reorientar a energia desse desejo,
sempre renascente, em direção a objetos “reais”, ou seja, a ideais
efetivamente terrestres, como foram os ideais sociais dos últimos duzentos
anos e que vigoraram até recentemente. Já para o homem pós-moderno,
que se desenganou tambémdesses ideais, tratar-se-ia agora dos ideais
individuais, como o próprio sucesso afetivo, pro�ssional ou outro, com
base na chamada “opção pela �nitude”.
2. Há desejo e desejo: desejo necessário e desejo arbitrário
Mas o objeto in�nito do desejo seria, de fato, puramente imaginário,
como apregoa o mainstream cultural? O desejo de felicidade seria
meramente projetivo, fantástico, destituído, portanto, de toda objetividade?
Por outras, existe ou não existe realmente a felicidade, o in�nito, o sentido
que o desejo intenciona? O alvo supremo da seta do desejo é posto pelo
próprio desejo ou a ele preexiste?
Vimos que, para os “modernos”, a ideia de felicidade plena, seja lá que
forma tenha, inclusive a religiosa, é imaginária no duplo sentido: de ser
mero produto da imaginação e de ter natureza imaginária. Mas aí há um
so�sma, na base do qual reina uma confusão conceitual. Efetivamente, o
fato de desejar alguma coisa não garante, por si só, sua não existência. Tal
coisa pode existir como pode não existir. Pode existir como nos casos do
recém-nascido que busca o seio da mãe, ou do adolescente que “deseja
mulher”, casos em que, com toda evidência, os objetos do desejo, mãe e
mulher, existem. Mas pode também não existir, como no caso do “príncipe
encantado” com quem a mocinha sonha em se casar, ou no do “paraíso
terrestre” que o revolucionário almeja criar.
Há, porém, que considerar que, nos referidos exemplos, os desejos
respectivos não são da mesma ordem. Os primeiros citados (da criança e
do adolescente) são desejos naturais ou inatos, enquanto os segundos (da
mocinha e do revolucionário) são desejos voluntários e livres. Os primeiros
são compulsórios; os segundos, opcionais. Aqueles são indestrutíveis; esses,
não. Por �m, os desejos naturais são universais, enquanto os livres são
puramente particulares.11
Ora, entre os desejos naturais não existem apenas os físicos, mas
também os emocionais e ainda os espirituais. Entre estes últimos temos
principalmente o desejo do bem em geral e, mais ainda, do sumo bem, que
é a felicidade e o sentido da vida. Não há, efetivamente, quem queira o mal
como tal, e menos ainda quem busque a desgraça por si mesma. O mau só
faz o mal para tirar daí algum bem pessoal; o suicida só se priva da vida
para se libertar de um tormento pior que a própria morte; o masoquista só
ama a dor pelo prazer que daí aufere; por �m, o niilista só defende o
absurdo em vista de uma positividade qualquer, como o ressentimento
contra os desenganos da vida ou mesmo a vaidosa vontade de
impressionar.
E embora haja casos em que os objetos reais dos desejos naturais
apareçam sob formas ilusórias, como no caso clássico da “miragem” para as
caravanas sedentas, trata-se sempre de casos acidentais. Nessas
circunstâncias excepcionais, os objetos do desejo natural são por si mesmos
(per se) objetivos, e tal é o caso da água, embora possam ser ilusórios por
acaso (per accidens), e esse é o caso da miragem.
3. Desejos naturais: objetivos, não imaginários
Há, portanto, desejo e desejo. Os desejos naturais visam aos objetos que
têm toda a chance de ser reais; os livres, não. Enquanto esses últimos não
têm garantia de ser reais, sendo de fato muitas vezes meramente projetivos,
os primeiros são por si mesmos objetivos ou, melhor, objetivantes. Nas
pegadas de Aristóteles, Santo Tomás repete o axioma: “O desejo natural
não pode ser vão”.12 Alhures diz mais diretamente: “O apetite natural
sempre tende para um bem que existe na realidade”.13
A razão básica desta verdade é que os desejos naturais estão tão ligados à
natureza mesma do homem que o levam espontaneamente a ansiar pela
própria perfeição ou autorrealização, o que é outra maneira de falar da
vontade de felicidade e, portanto, de sentido pleno. Se tais desejos são tão
necessitantes é porque constituem mecanismos que garantem a vida, a
saúde e a felicidade geral de todo ser humano. Assim são a fome e a sede:
elas provêm à busca do necessário para a sobrevivência do indivíduo,
enquanto o desejo sexual tem a mesma função em relação à sobrevivência
da espécie.
E isso vale mais ainda para o desejo natural de felicidade ou de sentido:
esse desejo provê à realização última do ser humano em seu plano
espiritual. Por que seu objeto ou seu objetivo seria puramente imaginário?
Quem o a�rma não o faz a partir de uma análise objetiva do desejo, que,
como vimos, não permite tal ilação, mas apenas a partir de uma �loso�a
materialista, preconcebida e mais ou menos inconsciente.
De resto, por seu caráter natural e, por isso, necessitante, a sede de
sentido, de sumo bem, de felicidade é análoga à sede de água.14 Ora, a
água não deixa de existir só porque foi desejada. Antes, o desejo natural
dela é prova de que ela deve existir. Do mesmo modo, se nós, seres
aeróbios, necessitamos do oxigênio do ar para viver, é sinal de que existe
oxigênio na atmosfera. Ora, o desejo de sentido pleno e felicidade perfeita
não é, em sua ordem, menos coagente e objetivante do que qualquer
desejo natural de tipo físico, como o desejo de comer, de dormir, de
respirar, de excretar. Quanto à pulsão sexual, o vulgar “desejo de mulher”,
é menos natural que o de sentido e, por isso, menos imperioso, pois, se o
primeiro pode ser submetido à abstinência, o último, de modo nenhum.
Mais: por ser um desejo espiritual, portanto, sui generis, o desejo de
sentido é mais objetivante do que qualquer outro desejo natural, físico ou
emocional que seja. Seu clamor por realidade é mais alto, ardoroso e
dramático. Por isso também sua frustração é mais desesperadora, muito
mais que a falta de água ou de sexo. É literalmente infernal: irremediável.
O coração humano deseja tão intensa e decisivamente o sentido que, se ele
chegasse a ver o absurdo face a face, não aguentaria e colapsaria. Mas, se os
homens e as mulheres continuam vivendo e sobrevivendo, não é
justamente porque intuem, para aquém de todas as razões teóricas, que há
um sentido na vida? Não bastaria essa prova viva para mostrar que vale a
pena viver? Além disso, o caráter universal do desejo de sentido, que vimos
acima, também depõe vigorosamente a favor de sua objetividade. De fato,
um homem pode, às vezes, se enganar ansiando por coisas que não
existem, mas não todos os homens e sempre.
Já entre os gregos se encontra a ideia, a�m à dos modernos, de que a
esperança é um anestésico feito para suportar o absurdo da vida. É o que se
lê no Prometeu acorrentado, quando Ésquilo faz o referido herói proclamar:
“Impedi os mortais de ver sua sorte mortal. Como? Com o remédio das
cegas esperanças. Eis um grande dom que dei aos mortais” (v. 248-250).
Talvez fosse esse também o sentido do mito da “caixa de Pandora”, que,
uma vez aberta, deixou todos os males se espalharem pela terra, �cando aí
retida apenas a esperança. Esta não passaria de um logro. Seria, pois, ela
também um mal, ainda que um “belo mal”, como Hesíodo diz da mulher
na Teogonia (v. 585).15 Mas não. Esse é o discurso ardiloso da raposa que,
como conta uma fábula de Esopo, vendo uma gralha faminta, esperando,
no alto de uma �gueira, que os frutos amadurecessem, quis dissuadi-la
dizendo: “Minha amiga, não adianta alimentar esperanças. Elas só nos
enchem de ilusões”.16 A contrapé dessa ideia sofística, Platão, no Fédon,
conseguiu apresentar os títulos de racionalidade que sustentam
e�cazmente a esperança na imortalidade. E é em virtude de tal esperança
que, para o grande �lósofo, a vida presente, com todas as suas agruras,
encontra sua justi�cação existencial, além de racional.
Pode-se, pois, sustentar que, embora o desejo de sentido ou de
felicidade não baste para demonstrar rigorosamente a existência de um e
de outra, permanece, contudo, uma prova extremamente plausível dos
mesmos. E, dado que esse desejo tem caráter in�nito, a realidade a que ele
visa só poderá ser igualmente in�nita, como é concretamente Deus. Sendo
a sede de felicidade e de sentido uma pulsão natural e universal análoga à
sede de água, seria muito estranho e extremamente improvável se a água
da felicidadeplena e do sentido último não existisse na realidade, mas
apenas na imaginação sob a forma de ilusão. Como é, pois, possível que a
realidade empírica seja tão contrária ao desejo humano?
Seja como for, uma coisa é certa: quem a�rma a inexistência do objeto
in�nito do desejo de in�nito envereda inevitavelmente pelo caminho do
pessimismo. Só pode ter uma visão assombrada do mundo aquele para o
qual as forças do caos e do mal sobrepujam as da ordem e do bem. Como
então não se infelicitar com a frustração contínua e sem esperança do
irreprimível desejo de plenitude?
4. Provas suplementares em prol da verdade do desejo de
sentido
A hipótese da existência do sentido não só é muito mais lógica do que a
absurdista, mas é também muito mais satisfatória do ponto de vista
existencial. À objeção dos modernos de que a felicidade, que aquela
hipótese promete, repousa sobre um engodo, pode-se replicar e�cazmente
apelando, em primeiro lugar, para a prova dos frutos. Efetivamente, quem
diz ter encontrado o sentido da vida (e a maioria o encontra no plano
religioso, e com toda razão, como veremos) sente-se muito mais realizado
do que quem nega esse sentido. Tal senso de realização se expressa não só
em sentir-se mais feliz, mas em querer ser mais humano, solidário e aberto
em relação aos outros.
De fato, mais que qualquer outra instituição, a religião contribuiu para
produzir na história �guras do mais alto nível humano: santos, místicos,
homens e mulheres de caridade, assim como intelectuais, artistas,
governantes e guerreiros da mais elevada estatura moral, fenômeno
impossível de explicar apenas apelando para o argumento da ilusão. Eis,
pois, aí uma prova suplementar, essa a posteriori, que con�rma a
objetividade do desejo de in�nito. Tal prova nos parece tão forte que, se,
por impossível, Deus fosse uma ilusão e a realidade um absurdo, essa ilusão
e esse absurdo seriam preferíveis à verdade e ao sentido, justamente pelo
efeito de beatitudo subjetiva e de humanitas objetiva que aquela ilusão e
aquele absurdo produzem e produziram na história.
Mas existe ainda outra prova suplementar que reforça a tese da verdade
do desejo de Deus: é que esse desejo é tão pouco subjetivo que é ele
mesmo questionado por seu próprio objeto: Deus. Os projetistas
argumentam que Deus corresponde demais ao nosso desejo e que
justamente por isso ele seria suspeito. Mas isso não é sempre verdade. Pois,
para responder ao nosso desejo, Deus pode exigir a conversão do desejo
subjetivo, e costuma fazê-lo. É o que se pode comprovar pelo exemplo das
grandes testemunhas da fé, como Abraão, Maria de Nazaré e Paulo de
Tarso. De todos eles Deus pediu uma entrega radical que implicava a
superação dos conteúdos imediatos do seu desejo pessoal. Isso vale mais
ainda para Jesus, como aparece claramente no episódio do Horto das
Oliveiras (“não o que eu quero, senão o que tu queres”: Mc 14,36) e, de
modo supremo, em sua cruci�cação (“Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonaste?”: Mc 15,34). Efetivamente, nesses episódios, o desejo
subjetivo de Cristo foi submetido a uma quenose e aniquilação insuperáveis
(cf. Fl 2,6-8). Assim, perante um Deus que contrasta dessa maneira o
desejo, a tentação seria antes desejar que Ele não existisse do que o
contrário.
Sim, o desejo de Deus, para amadurecer e chegar a seu termo
transcendente, precisa absolutamente sofrer uma puri�cação, uma
conversão, uma cruci�cação. Para acolher a Deus, o homem tem que
morrer à forma imediata do desejo. Deus não se coloca, em geral, na linha
direta do desejo. Desse, a cruz quebra o percurso retilíneo. Por quê? Porque
o desejo é e será sempre transcendido por aquele que é o próprio
Transcendente. “Deus é maior que nosso coração” diz João (1Jo 3,20); e
Paulo: “O que não subiu ao coração do homem, é isso que Deus preparou
para os que o amam” (1Cor 2,9). A Liturgia igualmente fala das “promessas
que superam todo o desejo”.17 Ora, se Deus é “mais eu do que eu mesmo”,
Ele é igualmente e sempre o totaliter alter. Ele realiza, sim, efetiva e
plenamente a lógica do desejo, mas não sem interrompê-la em seu curso
espontâneo, a �m de puri�cá-la e abri-la a seu objeto soberano e
misterioso.
Portanto, pelo fato de que Deus questiona e ultrapassa meu desejo
imediato, dou-me conta de que não é o meu desejo que cria Deus; é, antes,
Deus que põe à prova os conteúdos de meu desejo. Pois, se dependesse só
de meu desejo, por que eu renunciaria a talhar um Deus à medida de meu
desejo? Mas, se é Deus e seu desejo que medem o meu, então �ca claro,
para mim, que é Ele que determina meu desejo, e não o contrário.
Invoquemos �nalmente uma última prova indireta sobre a verdade do
desejo de sentido e mesmo do desejo de Deus. É a que dão seus próprios
adversários. Com efeito, esse desejo é tão incoercível que eles mesmos o
experimentam, obrigando-se a reprimi-lo, talvez mais por orgulho do que
por convicção. Mas, denegando-o, eles contribuem inconscientemente
para con�rmá-lo, mostrando, sem querer, de que lado está a verdade.
Poucos como Nietzsche sentiram com tanta intensidade a força do “instinto
religioso” e tentaram sufocá-lo de modo mais implacável e até mesmo
blasfemo: “Maldizei todos esses demônios covardes que há em vós e
quereriam gemer, juntar as mãos e adorar”.18 Freud mesmo se sente tocado
pela sedução que exerce a religião, ao confessar, não sem ironia: “Seria até
muito belo se existissem um Deus, criador do Universo e Providência
benigna, uma ordem moral universal e uma vida ultraterrena.”19 Mas foi o
�lósofo católico J. Guitton (+1999) que, traduzindo uma con�ssão do
escritor incrédulo P. Valéry (+1945), deu uma das expressões mais notáveis
do desejo de Deus que pulsa mesmo no coração dos que julgam negá-lo, ao
estender este poema:
Se Deus existisse, eu seria perpetuamente feliz.
Eu não poderia pensar em outra coisa senão n’Ele.
Eu me sentiria envolvido em ternura e proteção.
E a vida nada mais seria para mim
Que a espera do grande encontro com Ele.
Se Ele existisse, nada seria sem sentido para mim.
E eu seria bom para com todos,
Como um milionário que lança seu ouro,
Simplesmente pelo prazer de dar prazer.
Mas Ele não existe, e eu não sou feliz.20
Fica, assim, estabelecida a força de convencimento da prova dialética do
desejo de sentido. Sim, se apenas uma realidade chamada Deus pode
responder plenamente à nossa sede de sentido pleno, então tal realidade
deve mesmo existir. Não fosse assim, como explicar a perpétua inquietude
do nosso coração? Seríamos assim tão mal feitos? Certo, a imaginação
explica muitos de nossos desejos e seu caráter frequentemente ilusório.
Mas como explicar um desejo como este, tão arraigado, compulsivo,
insistente e, por isso, universal, além de sadio e elevado, senão admitindo a
existência dessa realidade que se costuma chamar de Deus e que deve, sim,
saciar plenamente o coração humano?
5. O lado certo da teoria da projeção
Devemos, sem embargo, reconhecer e honrar a parte de verdade que
contém a tese “moderna” do caráter imaginário do desejo de in�nito,
concretamente, de Deus. Pode-se, com efeito, conceder a essa teoria que
existe efetiva e inevitavelmente certa atividade projetiva ou fantástica no
desejo de in�nito. E não podia ser diferente, pela boa e simples razão de
que o in�nito divino, por seu caráter transcendente, não pode ser
humanamente apreendido e visado senão mediante uma representação
sensível, elaborada pela imaginação. Já sentenciava Aristóteles: “Sem
imagem (phantasma) a alma não pode de modo algum entender”.21 Em suas
pegadas, Santo Tomás elaborou a teoria da conversio ad phantásmata,
segundo a qual todo pensamento, por mais abstrato que seja, como o
referente ao ser, à existência, ao espírito e a Deus, nunca se desprende
totalmente da imagem de que proveio; antes, precisa, vez por vez, voltar-se
para ela se quer manter seu poder cognitivo, de sorte que todo conceito
vem sempre acompanhado por uma representação imaginária, como o cão
por sua sombra.22 Isso, contudo, não quer dizer em absoluto que a
imaginação cria o objeto “Deus”,mas apenas que ela exerce, em relação a
ele, uma função mediadora. Portanto, a intenção do desejo não se detém
na mediação, mas a usa como que de um trampolim para lançar-se em
direção à realidade que a supera, não sem antes puri�car tal mediação,
aperfeiçoá-la e �nalmente removê-la.23
Pode-se ir mais longe e admitir a gênese psicológica da ideia de Deus Pai
tal como foi descrita por Freud, sem, por outro lado, se alinhar com ele
quando a�rma que tal gênese invalida a crença na existência objetiva de
Deus.24 Aqui a tese freudiana peca por reducionismo psicológico. A questão
da existência de Deus é uma questão de outra ordem que meramente
psicológica: é uma questão ontológica ou metafísica. Há certamente uma
relação entre as duas questões. De fato, a ideia espiritual de Deus não pode
não se apoiar em processos psicológicos, sendo o homem o que é: um
“espírito encarnado no mundo”, portanto feito também de fantasias e
emoções.25 Com efeito, como chegar à ideia de Deus Pai senão pela
experiência concreta de um pai? Isso, contudo, não signi�ca que o Pai
celeste seja mera projeção do pai terrestre ou mesmo sua simples
sublimação. Não; o que ocorre antes é que o homem, por ser espírito,
consegue superar dialeticamente o pai sensível ou emocional em direção
ao pai espiritual ou transcendente.
Deve-se também reconhecer uma ponta de verdade na a�rmação dos
modernos sobre o caráter insaciável do desejo humano, tal uma ferida sem
remédio, uma chaga sempre hiante. Em O futuro de uma ilusão, Freud deu
uma expressão radical dessa insatisfação irremediável, dizendo que o ser
humano busca a felicidade, mas não está programado para ela. O homem
estaria, de nascença, fadado ao fracasso. A verdade que existe aí é que o
desejo de sentido não pode, de fato, se preencher neste mundo, e a razão
disso é simples: a desproporção insanável entre o in�nito do desejo e o
�nito deste mundo.26 Tal raciocínio, porém, para cedo demais. Contra o
preceito platônico, ele não “leva o argumento até o �m” e não se pergunta
se não existe efetivamente um mundo, que a tradição religiosa chama de
“céu”, onde o desejo humano possa ser plenamente saciado. E aqui
chegamos ao ponto nevrálgico da teoria de Deus como projeção do desejo:
seu fundamento materialista, mais especi�camente, cienti�cista.
6. Refutação da teoria da projeção: seu pressuposto
cienti�cista
De fato, para os “modernos”, se o desejo de felicidade nunca vem a
termo, é simplesmente porque este termo, ao ver deles, não existe na
realidade. Admitem que o homem deseja, sim, outro mundo, mas julgam
que esse mundo não existe. Como se vê, por trás da ideia da
insaciabilidade do desejo de in�nito está uma visão materialista e ateia da
vida, que, para esses intelectuais, toma em geral a forma de cienti�cismo.
Com efeito, a teoria da projeção pressupõe uma �loso�a in�cionada de
cienti�cismo, enquanto só admite como real o que a ciência mostra e
prova. Isso é particularmente claro em Freud, cujo positivismo cientí�co só
admitia fatos positivos.27 Mas, se o que valem são os fatos positivos, por que
Freud não levou em conta o seguinte fato maciço, fartamente exibido pela
história: o das grandes �guras humanas que a religião produziu e que
foram tanto mais sadias, maduras e independentes quanto mais piedosas?28
Ele só não viu isso por estar imbuído do ateísmo, coriáceo a priori
dogmático de seu tempo, que ele herdou ainda antes de empreender suas
pesquisas cientí�cas, como foi demonstrado.29
Certo, se o in�nito não existe como In�nito real, o desejo de in�nito só
pode ser vão e absurdo. Mas, defender o absurdo do desejo de in�nito
implica defender o absurdo da própria existência, enquanto essa estaria
fadada a buscar uma coisa impossível, por inexistente. Mas não é isso
mesmo o “cúmulo do absurdo”? Aqui se acrescenta absurdo ao absurdo,
pois, além do absurdo do desejo, declara-se o absurdo da existência. Em
vez disso, não é mais lógico e mais sensato sustentar o contrário, isto é: que
o desejo de sentido pleno postula, por seu movimento objetivo, a existência
de uma plenitude igualmente objetiva? Pois, se o dinamismo do desejo de
in�nito é tão real quanto natural, o in�nito que lhe corresponde e o suscita
não deve ser menos real e objetivo. Falando teologicamente, deve-se dizer
que não é o desejo de in�nito que cria o In�nito, mas é o In�nito que cria o
desejo de in�nito. Nesse caso vale o axioma metafísico de que o efeito não
pode ter mais verdade que a causa, assim como a chama não pode ter mais
calor que a brasa que a produz.30
Evidentemente, o desejo de sentido é subjetivo, mas trata-se aqui de
uma “subjetividade objetiva”, enquanto tal desejo se impõe à consciência e
à experiência de todo indivíduo. Um dos sinais mais claros da objetividade
desse desejo é sua universalidade. Não há, efetivamente, coração humano
que não queira o sentido pleno. E esse é o bem supremo que todo ser
humano, sem exceção, busca incansavelmente e que a maioria chama de
felicidade. O homem está voltado para isso como a planta para o sol.
Estranho seria se não fosse assim. Seria efetivamente inexplicável o fato de
existir na natureza uma pulsão real sem seu correspondente real. E, assim
como não há heliotropismo sem helios, assim não poderia haver
“teleotropismo” se não existisse realmente um telos, um sentido qualquer.
Em verdade, o desejo natural de felicidade nada mais é que a
participação, pelo homem, do desejo de sentido que permeia e anima todo
o cosmos. Com efeito, tudo no mundo é pulsão para o mais. Tudo é
evolução, expansão, desenvolvimento em direção a um misterioso pléroma.
No fundo de cada ser pulsa uma misteriosa vontade: vontade de ser, de se
a�rmar, de viver, de poder, de desabrochar. Com vimos, essa vontade não é
só um princípio cosmológico, mas metafísico.31 Em todo ser há tendência,
pulsão, dinamismo. Isso se dá até no Ser divino, não, porém, por falta,
como nas criaturas, mas tão somente por superabundância de amor.32 De
resto, a mitologia e a poesia, antes ainda da �loso�a e da ciência, intuíram
a existência de um Eros universal que anima o curso do mundo. Pois bem,
esse Eros ou amor cósmico se traduz, no coração humano, em desejo
natural próprio do homem, ou seja, desejo racional e volitivo.
Como se vê, a aceitação da existência de um sentido pleno e
pleni�cante não só se mostra racionalmente mais satisfatória que a hipótese
contrária, mas é a única hipótese que satisfaz a razão, por mais que a
primeira se pretenda cientí�ca e realista. Ademais, a prova do caráter
objetivante que o desejo de in�nito tem sobre o coração humano tem mais
força que qualquer prova cientí�ca e mesmo matemática, pelo fato de
corresponder ao que, no homem, há de mais genuíno, profundo e
inelutável: o apelo à felicidade, na qual se acha sua plena realização. Esta
prova tem, pois, a força de um �o duplo, feito da união da lógica com a
moral, da razão com a existência.
7. A sensatez profunda da realidade
O acordo radical entre desejo intra animam e realidade extra animam
mostra que a realidade total, na qual o ser humano está inserido, é um
conjunto harmônico, um sistema lógico, inteligível, racional. Se os
modernos destacam nela contradições, principalmente em relação aos seus
desejos humanos, é porque se �xam apenas na face visível da realidade, o
phainómenon, sem ir até seu coração metafísico, o noúmenon. Mas já
Heráclito, o obscuro, sentenciava: “A harmonia invisível é preferível à
harmonia visível”.33
Os modernos têm, efetivamente, di�culdade em perceber a “harmonia
invisível” ressoando no mais profundo da realidade. Mostram-se pouco
capazes de ouvir o potente cantus �rmus que absorve todas as dissonâncias
do mundo, fazendo-as concorrer para a beleza geral do todo.
Escandalizados com os inegáveis ruídos que a melodia do mundo contém,
tendem a declarar o mundo absurdo. Absurdum era, efetivamente, o nome
que os latinos davam a um som desagradável ao ouvido. A �xação moderna
nas contradições visíveis do mundo se deve, em grande parte, ao primado
que se concedeu à ciência na construção de uma imagemda realidade, a
chamada “visão cientí�ca do mundo”. Mas esta visão, por se basear no
aspecto empírico do mundo, só pode apreender sua superfície, que, em
boa parte, se mostra efetivamente fragmentária e caótica, deixando seu
fundo substancial na obscuridade.
Ora, para perceber a harmonia profunda do mundo, é preciso descer
até sua dimensão metafísica e espiritual e então, e só então, reintegrar sua
dimensão física ou natural, harmonizando suas dissonâncias. Para iluminar
esse confronto, vale evocar esta outra sentença de Heráclito: “É do que está
em luta que nasce a mais bela harmonia”.34 A fé na racionalidade
fundamental do mundo era uma convicção �rme e comum de toda cultura
antiga, como testemunham tais axiomas: natura nihil facit frustra (a
natureza nada produz em vão); natura non de�cit in necessariis (a natureza
não falha no que é necessário). Mas não é essa a fé originária e atemática
de todo ser humano quando se põe a pensar sobre o mundo e com ele
interagir?
Também a Bíblia, e de modo todo particular, oferece uma visão sensata
do mundo, enquanto ordenado e bom, como aparece com toda a clareza
no relato da criação. Para a visão bíblica, o mundo, porque criado por um
Deus sábio e bondoso, é verdadeiro e bom, sendo, portanto, inteligível e
amável. Sem embargo, a Bíblia é bastante realista para reconhecer o lado
obscuro do mundo e o faz falando do pecado e de suas consequências.
Mas, para ela, o pecado é algo de adventício, que, por mais grave que seja,
não chega a destruir a ordem básica do mundo. Ele pode inclusive ser
redimido e, assim, reintegrado na harmonia �nal do todo, podendo até
mesmo contribuir para seu esplendor.
Do mesmo modo, a aposta na racionalidade fundamental do mundo,
como dissemos, foi a fonte de onde nasceu a ciência moderna e é o
aguilhão que sustenta ainda hoje seu progresso. Pois, sem crer na ordem
racional do mundo, como ainda tentar descobrir tal ordem e traduzi-la em
equações? Já a metafísica clássica sustentava que o ser, todo ser, inclusive o
físico, é verum, ou seja, tem uma relação intrínseca com a inteligência. Ele é
inteligível e tem, por isso, razão de ser, o que é o mesmo que dizer: ele tem
sentido.
Visto, pois, em profundidade, o mundo é dotado de sentido. Ele é
sensato. O que é insensato é tresler o texto do mundo, �cando na
super�cialidade de sua letra e recusando-se a penetrar na profundidade de
seu sentido. Mas é o que fazem os cientistas ateus, que, nesse ponto, não se
mostram menos “literalistas” ou “fundamentalistas” do que os religiosos de
que costumam zombar.
Desse modo, �ca mais uma vez con�rmado o fato de que o desejo de
sentido nada mais é que uma expressão particular, privilegiada, da
“harmonia pré-estabelecida” que existe entre a estrutura de nosso desejo
inato e a estrutura objetiva do mundo. Ora, se a fé nessa conexão estrutural
vale para a ciência, como não valeria, e com maior razão, para o sentido da
vida?
II. DESEJO DE SENTIDO ÚLTIMO: DESEJO CONFUSO DE DEUS
1. Desejo de felicidade: desejo de Deus?
Contra a tese da projeção ilusória do desejo de in�nito (de felicidade, de
sentido), provamos que esse desejo visa �nalmente a um in�nito real. Ora,
o in�nito real só pode ser Deus, que é o In�nito por de�nição. Isso
precisou ser provado, porque isso não é evidente por si mesmo, como pode
parecer para os piedosos, não sem razões. Pois, se não pudéssemos provar a
realidade objetiva de Deus como o in�nito desejado, o “projetista” poderia
nos objetar dizendo, entre cético e irônico: “Sim, só Deus enche o coração
de sentido. Agora, só uma coisa: Deus existe?”. Antero de Quental (+1891)
traduziu essa aporia num soneto que termina assim: “Virou-se para Deus
minha alma triste! / E achei a paz na inércia e esquecimento... / Só me falta
saber se Deus existe!”.35
Acerca do valor de verdade da “prova do desejo”, devemos reconhecer
que é só de modo vago e geral que o senso do in�nito remete a Deus. Santo
Tomás diz efetivamente que o desejo de felicidade não fornece uma notícia
clara e segura de Deus, mas apenas uma ideia confusa (sub quadam
confusione). E dá um exemplo: é como alguém que espera Pedro e, vendo
vir um vulto parecido com Pedro, presume que seja ele. Isso quer dizer que
o instinto de felicidade faz presumir ou suspeitar seriamente de Deus, sem
chegar, porém, a garantir que seja mesmo Ele. Não é, pois, de modo
nenhum demonstrável e menos ainda autoevidente que a ideia inata de
felicidade ou de sentido seja a ideia mesma de Deus.36
Do ponto de vista epistemológico, não se pode tirar, pura e
simplesmente, a equação: Felicidade = Deus. Pode-se apenas dizer que a
felicidade é algo parecido com Deus. É justamente por causa de sua
aparência ou, como diz o Angélico, similitudo com Deus que a felicidade
pode ser identi�cada com Ele, mas não forçosamente.37 De fato, como faz
observar Santo Tomás em seu sólido realismo, não são poucos os que, ao
pensar na felicidade plena, não pensam logo em Deus, mas em outras
coisas, como nos prazeres, nas riquezas e na fama.38 Isso porque entre
felicidade e Deus não há, de imediato, uma relação de identidade, mas
apenas de semelhança, como dissemos. Daí também o engano em que cai,
por exemplo, o avarento quando, tomando o semelhante pelo igual,
confunde o dinheiro com Deus, dando-lhe até um nome religioso: Mamon
(cf. Mt 6,24).
E assim como não conhecemos a Deus imediatamente, mas só por
intermédio de suas semelhanças impressas nas criaturas, do mesmo modo
também não desejamos naturalmente a Deus de modo direto, mas apenas
enquanto desejamos a felicidade, que é algo de semelhante a seu amor.39
Deus é tão pouco o “primeiro objeto do desejo” quanto é o “primeiro objeto
do pensamento”, ao contrário do que pensavam os ontologistas, como
Malebranche, Gioberti, Ubaghs e Rosmini.40 E como Deus só vem ao
pensamento no horizonte da ideia de ser, assim também Ele só vem à
vontade no horizonte do desejo de in�nito, de modo que a ideia de ser e o
desejo de in�nito são, para nós, anteriores à ideia de Deus e ao desejo de
Deus. E como a ideia de Deus como tal não é inata, não o é tampouco o
desejo de Deus como tal, sendo ambos acessíveis a nós só partir das
criaturas.
Assim, o desejo de transcendente é tão vago e geral como o é o desejo de
felicidade, que, como dissemos, é seu “nome ridente”. Sendo, pois, a
felicidade uma ideia brumosa, ela só pode valer para Deus de um modo
igualmente brumoso. Ora, o simples desejo de felicidade ainda não diz em
que consiste efetivamente a felicidade, assim como o desejo de comer nada
diz ainda do modo como saciar a fome. Também a expectativa do Messias
ardia no coração dos contemporâneos de Cristo (cf. Lc 3,15), mas a
maioria estava longe de achar que o Messias esperado era Jesus mesmo.
2. Prova eudemonológica de Deus: dialética, não apodítica
Se o desejo de felicidade não demonstra por si só a existência de Deus,
ele pode servir de base ou ponto de partida argumentativo para chegar lá.
Se esse desejo não aponta sem mais a Deus, aponta-o certamente em
pontilhado, de modo que a razão pode aduzir argumentos que, sobre
aquele pontilhado, tracem uma linha contínua que vá dar em Deus
mesmo. Pode-se, pois, mostrar que efetivamente a felicidade a que aponta
nosso desejo é Deus mesmo.
Esta seria a que se chamou a “prova eudemonológica” da existência de
Deus, prova que, no horizonte da problemática do sentido, se traduz em
termos de “prova noológica”. Há quem a�rme que essa prova tem um
caráter demonstrativo. Seria, pois, uma prova coagente, irrefutável, e não
uma prova meramente dialética, provável, convincente.41 Contudo, isso
equivaleria a exagerar seu rigor epistemológico. Pois o in�nito que
intenciona a vontade desejante só parece ser Deus, mas sem garantia. É por
isso que o desejo de in�nito frequentemente se equivoca, �xando o in�nito
na �gura de uma realidade �nita, que, para tanto, se mascara de in�nito,
como a riqueza, o poder, a fama e o prazer. Então, o desejo de in�nito, em
vez de ser a mão que se abre para o in�nito verdadeiro, torna-se mão que
se fecha sobre umin�nito ilusório.
Como vimos há pouco, a conexão entre desejo natural de in�nito e
Deus como seu correlato objetivo não é necessitante, não sendo, por isso,
demonstrativa. Diz o Angélico que o fato de um “desejo natural”
permanecer inane ou frustrado não é propriamente algo de irracional (ele
teria podido dizer contra rationem), mas é certamente algo de “não
razoável” (diz praeter rationem).42 Seria, pois, para ele, algo de sem sentido
(meaningless), mas não de absurdo (nonsense). Portanto, para o Aquinate, a
ideia da inanidade do desejo natural, que os modernos sustentam, não é,
em si, impensável ou contraditória. É apenas uma ideia praticamente
improvável.
Mas, se, acerca da existência de Deus, a prova eudemonológica não tem
força demonstrativa, tem, sim, força dialética ou probante. Há quem
pretenda negar-lhe todo caráter probatório alegando que ela incidiria no
erro análogo ao da famosa “prova ontológica”: a metábase ou passagem
indébita de gênero. Pois, enquanto no caso do argumento ontológico se
passava ilegitimamente do plano lógico para o ontológico, aqui se passa do
plano psicológico para o ontológico. Pode-se, contudo, replicar que o
desejo natural de sentido último, se não mostra que Deus “tem”
necessariamente de existir, mostra, contudo, que Deus “deve” muito
provavelmente existir. Se não, como explicar um desejo assim tão natural,
inerradicável e universal? Um desejo assim seria tão estranho quanto o é a
sede, caso negássemos a existência da água. Mas, como, a partir da sede,
posso inferir a existência provável da água, assim também a partir do
desejo de in�nito posso provar, se não a existência do in�nito, pelo menos
a alta probabilidade de sua existência. O argumento eudemonológico não
comete, pois, o equívoco da metábase, mas produz uma inferência legítima
de um desejo natural para seu correspondente real.43
Portanto, se o desejo de felicidade não fornece uma prova apodítica da
existência de Deus, fornece, sim, uma prova dialética. Esta prova, relativa
ao desejo, pode ser formulada nos termos usados por Santo Tomás em
relação à inteligência:
Nossa inteligência, em seu ato de entender, se estende ao infinito. (...) Esta ordenação da
inteligência para o infinito seria vã caso não existisse alguma realidade inteligível infinita. É
necessário, pois, que exista alguma realidade inteligível infinita, que deve ser a realidade máxima.
Ora, tal realidade dizemos que é Deus. Deus, portanto, é infinito.44
Nietzsche ridicularizava o raciocínio: “Se não houvesse Deus, a vida
seria intolerável; portanto, é necessário que haja um Deus”.45 Essa seria
uma prova pueril e por isso desprezível. É como se Deus devesse existir em
função de nossos desejos. Argumenta-se que um Deus assim nem Deus
seria, pois não seria o absoluto, aquele que existe por si só. Seria antes um
Deus ex machina, um Deus meramente funcional, uma espécie de
“funcionário do sentido”.46 Nesse caso, a fé se degradaria num credo quia
consolans.47 Seria apenas um truque psicológico. Por isso, há quem, por
honestidade intelectual, pre�ra a verdade do absurdo à mentira de um
sentido.
Sem embargo, embora o argumento “Deus precisa existir para...” seja
formulado de uma forma tão subjetivista e funcionalista que se presta
efetivamente à contestação e à irrisão, esse argumento, em sua formulação
sumária, refere-se, em verdade e no fundo, à existência de Deus, não,
porém, como resposta a um desejo arbitrário de sentido (voluntas ut ratio),
mas justamente a um desejo necessário (voluntas ut natura), que, como
vimos, requer a existência de seu objeto.
Repetimos: esse é um argumento propriamente probatório da existência
de Deus, todavia seu argumento rigorosamente demonstrativo da mesma
vem de outra instância: da realidade do mundo, cuja existência
contingente exige a de um ser necessário. Daí também por que Santo
Tomás exclui formalmente a prova eudemonológica de suas célebres vias
demonstrativas da existência de Deus.48 Na ordem epistemológica, o
argumento noológico vale como meia demonstração, espécie de meia-sola
racional. Na ordem existencial, porém, esse argumento, dito dialético,
supera de longe qualquer prova demonstrativa. Se ele não é tão bom para
se pensar Deus, é, contudo, excelente para se encontrar a Deus, como
diremos logo mais.
Fechando essa seção e resumindo tudo, a�rmemos que, se, por um lado,
o desejo natural de sentido depõe fortemente a favor de Deus, por outro,
não o impõe necessariamente. Como se deduz, esta posição situa-se a meio
caminho entre a tese dos incrédulos modernos, que pecam por excesso de
suspeita em relação ao desejo de felicidade e à sua virtude probante, e a
posição dos eudemonologistas, que pecam por excesso de con�ança neste
mesmo desejo, julgando-o apodítico.
3. A demonstração da existência de Deus: força racional e
limitação moral
A demonstração rigorosa da existência de Deus, como se vê na grande
tradição antiga e medieval, passa por fora do mundo subjetivo, onde se
situa o mundo do desejo. Ela se faz, antes, a partir do mundo objetivo e, no
que concerne ao sentido, se resume assim: se o mundo exige um sentido,
por ser um todo bem ordenado, isto é, um “cosmos”, é porque existe um
Ordenador.49 Em suma, o mundo foi criado por uma Inteligência suprema
com uma intenção, com um �m e, portanto, com um sentido. Tal é, em
síntese, a “quinta via” que propõe Santo Tomás para demonstrar a
existência de Deus. Essa prova, tirada ex gubernatione rerum, tem caráter
apodítico. O mundo aí é visto como uma �echa que, em pleno voo,
denuncia inexoravelmente um �echeiro: sicut sagita a sagitante, segundo a
concisa metáfora tomasiana.50
Todavia, as provas objetivas ou cosmológicas da existência de Deus,
conquanto apodíticas, não chegam a arrebatar a adesão da maioria. Por
quê? Porque, ainda que sejam coagentes e irretorquíveis do ponto de vista
racional, não o são do ponto de vista existencial. De fato, elas se dirigem
mais à razão que ao coração, com seus sentimentos e sua liberdade. Elas
questionam o pensamento mais que à própria existência humana. Ora, o
pensar autêntico não é, a rigor, um fato da razão, mas do homem por
inteiro, operando, isto sim, através da razão.51 As provas apodíticas valem
apenas nos círculos restritos dos �lósofos, e visam o saber das coisas,
enquanto as dialéticas ou morais valem para todos e visam o saber da vida
e o modo de vivê-la. Por isso mesmo, são as provas mais usadas por todos
os que lidam com gente: pais, educadores, pastores e terapeutas,
principalmente quando tratam das questões existenciais de seus assistidos.
É o que Pascal tinha percebido com agudez ao escrever:
As provas metafísicas de Deus acham-se tão afastadas do raciocínio dos homens e são tão
complicadas que causam pouca impressão. E, ainda que servissem para alguns, só serviriam durante
o instante em que veem a demonstração; uma hora mais tarde, receiam ter-se enganado.52
Por isso, para abrir aos incrédulos o acesso à fé, Pascal optou pelas
provas de tipo moral ou existencial, que aqui chamamos de dialéticas.
Essas falam mais ao “coração” (sentimento) que ao “espírito” (razão). Pois é
no coração que se se encontram os maiores obstáculos à fé, que são as
paixões, especialmente a soberba e a sensualidade. As razões morais visam
persuadir a alma a se converter a Deus e a fazer sua vontade, e não apenas
“fazer ver” as verdades da fé, como ocorre com as razões “metafísicas” ou
“geométricas”. Essas, para Pascal, são inúteis e estéreis para o que mais
importa: a salvação.53 Em síntese, diríamos: sobre Deus e o sentido, a
certeza racional (apodítica) nos é dada pelo mundo, mas a segurança
existencial (dialética) nos vem do desejo.
Agora, para quem tem fé e está nela consolidado, todas as provas de
Deus se mostram superadas, embora não canceladas. Pois esse então já não
“pensa Deus”, mas “vê Deus”... “com os olhos do coração” (Ef 1,18). Prova
então a Deus como prova um pudim: provando-o. Ora, quem provou Deus
está de posse de uma apoditicidade toda sobrenatural, em virtude da qual
dispensa toda e qualquerCerto, dor é sempre dor (e tal é o ponto de vista material), mas dor
com sentido e dor sem sentido são coisas abissalmente diversas (e tal é o
ponto de vista formal).
Respondamos, por �m, à objeção radical segundo a qual a questão do
sentido é uma falsa questão ou, pior, seria uma não questão. Para
Nietzsche, por exemplo, ter uma �nalidade seria uma “escravidão” de que
é preciso “se libertar”.7 Para ele, os “homens superiores” devem “esquecer o
‘por’”: “Nada façais ‘por’, nem ‘devido a’, nem ‘porque’. Precisais cerrar os
ouvidos a essas palavras falsas”.8 A vida valeria por si mesma, como o jogo e
a dança. Nessa ótica, as coisas não têm sentido, simplesmente porque não
precisam ter. Elas são o que são. Seu sentido são elas mesmas. As coisas
seriam, portanto, tautegóricas ou autorreferenciais.
Discurso bonito, mas falso, insensato, um anóetos lógos, como diria o
Filósofo e talvez também o Apóstolo (cf. Tm 1,14; Tt 3,3). Pois tudo ou
quase tudo tem um �m ou um sentido. Só Deus, e somente Ele, não “tem”,
em absoluto, um �m ou um sentido, justamente porque “é” o �m ou o
sentido de tudo. Dizer que cada coisa é o que é, sem estar ordenada a
nada, seria atribuir indebitamente a uma coisa relativa o que compete
exclusivamente ao Absoluto: a asseidade ou absolutez.
Em verdade, esse auto�nalismo é a pseudometafísica silenciosa dos
hedonistas, que anseiam por gozar de cada coisa, alheios a qualquer
consideração relativa às suas consequências e menos ainda a seu �m. É a
canonização de um modo de vida totalmente antagônico à sabedoria
milenar dos povos, que ensina a ter sempre os olhos no �m: In omnibus
respice �nem. “De tudo é preciso ver o �m”, como a�rmava o sábio Sólon ao
presunçoso rei Creso.9 Também a Escritura recomenda: “Lembra-te de teu
�m e jamais pecarás”.10
2. “Niilismo”: semântica do termo através de seu uso
Tomamos aqui “niilismo” na acepção geral e simples de “crise de
sentido”, sem levantar questões sobre a propriedade conceitual daquele
termo. Entendemos, outrossim, “crise de sentido” não como privação de
todo sentido, como parece sugerir o termo “niilismo”, derivado justamente
de nihil (nada), mas, antes, como inconsistência de sentido. Se aqui há
nihil, não é nem pode ser como vazio de sentido, mas apenas como
perspectiva segundo a qual o �m de tudo é o nada. Ora, se uma coisa vai
dar em nada, é como se já não valesse nada mesmo.
Mas por que então não usar, em vez de “niilismo”, palavras mais
comuns, como “pessimismo” e “decadência”? É justamente porque
“niilismo” evoca uma problemática eminentemente �losó�ca, enquanto diz
respeito à natureza ou essência destas realidades fundamentais que são o
ser, a existência, a vida, a razão, a liberdade, o mundo, o todo. Já
“pessimismo” remete a uma questão de fundo psicológico, enquanto
designa a tendência psicoemocional de destacar o lado negativo da vida.
Por seu lado, “decadência” indica um fenômeno principalmente
sociocultural: o de uma sociedade ou cultura que perde vitalidade e
declina.
Sem embargo, esses diferentes conceitos encontram-se, em geral,
misturados, porque os distintos processos que eles evocam estão, na
realidade, entrelaçados. Seja como for, dos três conceitos, o mais amplo e
profundo é o “niilismo” (�losó�co). Ele inclui e, ao mesmo tempo, supera
tanto o “pessimismo” (psicológico) quanto a “decadência” (cultural), ainda
que tanto um como outra possam se dar foros de �loso�as, na medida em
que tentam racionalizar de modo radical e sistemático suas respectivas
posições. Devido ao alcance teórico de “niilismo”, preferimos usar aqui esse
termo, embora, como advertimos acima, o usemos na acepção �losó�ca
geral de “falta de sentido” ou, melhor ainda, de “crise de sentido”.
Como evocado há pouco, niilismo, na acepção de hemorragia do
sentido, mais do que um estado, é um processo, regido pela perspectiva
�nal do nada de�nitivo, da morte irreversível. Nessa concepção,
efetivamente, o nada, antes de ser o ato �nal de tudo, atravessa todo o ser,
como a mortalidade perpassa a vida humana, antes ainda de se efetuar na
morte.
Esbocemos, agora, os vários momentos do processo niilista, momentos
nem sempre lineares, mas acavalados ou mesmo rami�cados, parecendo
antes formas de niilismo, em vez momentos. Tais momentos ou formas
podem ser assim descritos.
1) Tudo começa com o imanentismo, termo �losó�co para a “paixão
pelo mundo”, especialmente pelo “mundo do homem”: de seu poder, de
sua razão e de sua liberdade. É a conversio ad criaturas agostiniana.
2) Depois, como postulado do valor exclusivo do mundo e
principalmente do homem, surge o ateísmo, pelo qual Deus aparece como
rival ou inimigo tanto do mundo e seu valor, como do homem e sua
grandeza. É a aversio a Deo.
3) Aparece então o mortalismo, como consequência do ateísmo. Pois, se
não há um Transcendente, também não haveria eternidade, mas apenas
talvez o “eterno retorno”, que não passa, em verdade, de um mito religioso
e um so�sma �losó�co.
4) Mas, se “amanhã morreremos”, então “comamos e bebamos”: eis, pois,
o hedonismo, inclusive epicurista, como resultado mais imediato e
ordinário de uma vida vista como efêmera, mortal.
5) Então, se tudo passa, é porque tudo é precário, �nito, relativo.
Levanta-se então o relativismo ou, numa palavra mais pernóstica, o
�nitismo, que diz: não há nada de in�nito, absoluto e eterno; tudo é �nito,
relativo e temporal.
6) Segue-se daí a banalização das coisas, inclusive da vida e do ser
humano, banalização que anuncia o “advento da era da frivolidade”, em
que toda ação e relação se tornam levianas, fúteis, ocas, sem conteúdo,
literalmente: nonadas.
Finalmente, atinge-se o ato extremo que sela o curso niilizante, como a
morte sela a mortalidade: o �m ou cessação de tudo, a aniquilação, o nihil
triumphans.
Portanto, segundo o pensamento niilista, por trás e no �m de tudo
estaria “a medonha verdade do absurdo”.11 A existência teria o rosto da
Górgona: petri�cante de horrendo. Esse é também um dos sentidos que se
pode tirar do poema de Schiller: A imagem velada de Saís (1795).12 Fala-se aí
de um jovem que, sedento da “verdade” (diríamos do sentido de tudo), que
Ísis ocultaria sob seu véu numinoso, vai a Saís, cidade da deusa, entra à
noite no seu templo e, com mão sacrílega, arranca-lhe o véu, mas cai como
morto aos pés da imagem. Interrogado sobre o que viu, só consegue emitir
balbucios incompreensíveis. Mas, se tudo acaba no nada, tudo vale ainda
qualquer coisa? Se tudo, no fundo, é nada, tudo, no �m, é nada. É só uma
questão de mais ou menos tempo. Se no �m o que espera a todos é a
morte, que diferença faz viver mil anos, ou cem, ou dez? O destino �nal
iguala a todos. Santo Agostinho estava convencido: “Não é longo o que tem
�m”.13 Assim, se Adão tivesse vivido até hoje e “hoje morresse, teria vivido
poucos dias, pois os terminou a todos”.14 Pascal é mais trágico: “Por mais
belo que tenha sido o drama, o último ato é sempre sangrento: cobre-se a
cabeça de terra e tudo se acabou”.15
Portanto, se o ato �nal é “niilismo” (atual), todo o processo anterior, em
todos os seus momentos, será também “niilismo” (virtual), pois é do �m
que o processo ganha sentido e, neste caso, um sentido negativo. Tal nos
parece a lógica essencial do niilismo, e isso sem ainda discutirmos sua
consistência �losó�ca, que, como veremos, é racionalmente insustentável,
quer em seu princípio (ateísmo), quer em seu meio (�nitismo), quer em
sua conclusão (mortalismo).16
II. ATUAL PATHOS NIILISTA E SUA INCIDÊNCIA SOCIAL
No volume anterior (cap. IV), de�nimos a atmosfera de niilismo
reinante na cultura moderna com a palavra “desesperança”. Dissemos que
esta se manifesta, de modo particular, no tédio, na angústia e na depressão.
Acrescentamos lá que o clima de niilismo se mostra em meia dúzia de
sintomas que dão na vista: a própria depressão como doença, os suicídios
em alta, a difusão das drogas, a desnatalidade deliberada, a banalização do
sexo, assim como da violência, e ainda por outros sintomas, tais como a
corrupção, o sincretismo e a frivolidade.
Vamos agoraoutra prova, podendo assim ser chamada de
“metapoditicidade”.54 Assim foi com Paulo, ofuscado pela luz do
Ressuscitado e ganho de vez para Cristo, mas também com os Apóstolos
depois da experiência da vinda do Espírito, ao a�rmarem, impávidos
perante as ameaças de castigo: “Não podemos deixar de falar do que vimos
e ouvimos” (At 4,20). E é assim, em geral, para todo o crente. Seguro da
verdade de sua experiência interior, ele desa�ará todos os mundos, visíveis
e invisíveis, com todos os seus elementos, e dirá com o Apóstolo: “Quem
nos separará do amor de Cristo?”, e concluirá com inteira con�ança:
“Absolutamente nada nos poderá separar do amor de Deus em Cristo” (Rm
8,31.39).
Sem embargo, a convicção interior que tem o homem de fé, por maior
que seja, não basta para imunizá-lo das ilusões que sempre o espreitam na
esfera da subjetividade. Isso o obriga a se confrontar continuamente, seja
com as razões objetivas que a fé, em sua positividade, dele requer, seja com
a prova exterior dos frutos que toda fé coerente reclama (cf. Mt 7,15-20).
Torna-se, assim, claro que o desejo de sentido tem sólidos títulos de
racionalidade, fornecendo à busca pessoal de sentido um fundamento
objetivo enquanto assentado na natureza mesma do humano. Assim
também é posta em xeque a irracionalidade do niilismo, por mais que seus
fautores pretendam sobrepujá-lo com as bravatas infantis do amor-ódio de
um Nietzsche, de um Camus (“Não há destino que o desprezo não vença”)
e, antes deles, de um Farinata (“Como se tivesse imenso despeito pelo
inferno”).55
4. Superioridade do argumento noológico: seu caráter
existencial
Sem dúvida, o argumento do desejo de in�nito, por ser dialético, não
tem o rigor formal do argumento apodítico. Mas isso não signi�ca que lhe
seja em tudo inferior. Com efeito, o que mais importa na vida de um ser
humano? Não é a liberdade, a justiça, o amor e a fé? Ora, tudo isso não cai
sob a jurisdição da lógica demonstrativa e de seu rigor, mas da lógica
dialética. Enquanto a primeira funciona bem no “reino da necessidade” e
de seus determinismos, a segunda é a lógica adequada ao “reino da
liberdade” e de suas determinações. O primeiro reino é o da natureza”
(física), enquanto o segundo é o da existência (humana). Quem não vê que
cada reino exige um tipo de argumentação própria, sendo o segundo, onde
se põem as chamadas questões “existenciais”, muito mais importante que o
primeiro, que é o das questões ditas “cientí�cas”?
Ora, se a lógica do “reino da liberdade” vale para o mundo humano,
vale in�nitamente mais para o mundo divino e sobrenatural, que é onde
vigora a máxima liberdade e até mesmo a “Própria Existência Subsistente”
(Ipsum Esse Subsistens). A lógica que aí vigora é a “lógica da fé”, cujas
verdades são, falando em geral, mais vinculantes que as da razão. E não é
por serem inferiores à razão que tais verdades não se podem demonstrar,
mas é justamente ao contrário: é por serem superiores ou “metapodíticas”.
Trata-se efetivamente aí de verdades “sobrenaturais”, que são, como tais,
suprarracionais, não infrarracionais e menos ainda irracionais, sem deixar,
contudo, de ser sumamente razoáveis. Demonstrá-las seria rebaixá-las,
como ensina, com a clareza habitual, Santo Tomás:
Quero, em primeiro lugar, te advertir de que, nas discussões contra os incrédulos acerca dos artigos
da fé, não deves te esforçar por provar a fé através de razões necessárias. Isso derrogaria a
sublimidade da fé, cuja verdade supera toda mente criada, não só humana, mas também angélica,
sendo, antes, aceita por nós como revelada por Deus mesmo. (...) Portanto, a intenção do polemista
cristão não é provar a fé, mas defendê-la.56
Até mesmo as famosas “cinco vias” desse Doutor, embora constituam
provas demonstrativas da existência de Deus, por partirem do mundo
objetivo e de seus determinismos, têm escassa e�cácia moral sobre o
coração do homem. Por quê? Porque, embora sejam teoricamente
coagentes, não o são na prática. Fazem mais apelo à razão que ao coração.
São, antes, expressões da “verdade lógica” – a verdade ao modo grego:
“adequação do intelecto com a realidade” – do que da “verdade
existencial” – verdade ao modo bíblico: “adequação da vida com a
verdade”.
O próprio autor das “cinco vias” tem consciência de seus limites no
plano humano ou existencial. Pois, embora a�rme claramente a
possibilidade da via racional para Deus, reconhece realisticamente que ela
é particularmente trabalhosa, acessível a poucos, além de alcançar
resultados muito precários. É o que mostra precisamente no primeiro artigo
da Suma teológica.57 Para ele, o acesso a Deus se dá muito mais pela via
religiosa que pela via puramente racional. Nisso, o Angélico nada mais fez
que exprimir o ponto de vista da Igreja, não por acaso dogmatizado
segundo a formulação do mesmo Doutor.58 A Igreja sabe, por sua longa
experiência pastoral, que não é na razão, mas no coração do homem que
Deus encontra seu eco mais forte. É apenas a elite intelectual, não o povo
em geral, que precisa passar pelo caminho da razão para acreditar em
Deus. Isso, contudo, não a dispensa de adentrar, ela também, o caminho
do coração, que é onde o ser humano se concentra, se assume por inteiro e
decide seu destino.
Se é assim, para atinar com a questão existencial por antonomásia, que é
a do sentido, a via real é a via dialética, enquanto arranca do desejo de
plenitude que lateja no fundo de todo o ser humano. Mais que provar
racionalmente Deus, as provas dialéticas ajudam a prová-lo
experimentalmente. Se Deus é “inteligível à mente”, é ainda mais “sensível
ao coração”. E é justamente no coração do homem que o clamor por Deus
ressoa com mais força. É aí, mais que no mundo, que o Criador deixou sua
assinatura mais clara. Pois é aí que está efetivamente impressa a imago Dei.
O desejo de in�nito aparece, pois, como a voz mais eloquente em favor da
grandeza humana e de seu destino, como já tinha constatado Santo
Agostinho.59 Baudelaire expressou a mesma ideia nestes versos:
Sem dúvida, Senhor, jamais o homem vos dera
Testemunho melhor de sua dignidade
Do que esse atroz soluço que erra de era em era
E vem morrer aos pés de vossa eternidade.60
Ora, se isso é verdade em relação à condição humana em geral, é-o mais
ainda hoje, no atual momento histórico, quando testemunhamos uma nova
sede de Deus como sentido efetivo do homem e do mundo. De fato, na
cultura atual, vai-se delineando a alternativa supremamente determinante
entre Fé e Absurdo, Religiosidade e Niilismo, Deus e Nada.61 E tudo indica
que é o primeiro polo dessa alternativa que está tomando atualmente a
dianteira. O “homem moderno” volta à razão, enquanto reconhece que
pretender dar, sem Deus, sentido à vida é como querer inventar... a roda
quadrada.
5. O desejo de in�nito visto à luz da fé
Se o argumento eudemonológico ou noológico não serve para
demonstrar a existência de Deus, serve para presumi-la como muito
provável. É o que vimos e mostramos. Mas, uma vez admitida a existência
de Deus, seja por razão, seja por fé, o argumento tirado do desejo de
in�nito reforça, a posteriori, a convicção da existência divina. Tudo se passa
como se Deus se tornasse evidente – não só intelectual, mas também
existencialmente – apenas depois de acolhido na fé. À luz da fé, e somente
a essa luz, �ca claro que, como diz S. Roberto Belarmino, o mundo inteiro
não seria capaz de preencher o coração humano, justamente porque,
sendo capax Dei, só poderá ser pleni�cado por Deus mesmo.62 Assim, a
sede incontida de in�nito que arde no coração de cada ser humano
aparece como a assinatura do Criador em seu coração: res mea. Em outra
comparação, é o selo que Deus apôs na alma do homem, destinando-a a si
mesmo: ad Deum.
Se Deus infundiu em nosso coração o eros por Ele, foi para que fosse por
nós buscado e Ele então pudesse se entregar a nós a �m de nos cumular
com sua graça. Um dos grandes espirituais do grand siècle, o Cardeal
Bérulle (+1629) dava graças a Deus por ter imprimido em nossa natureza o
“movimento para Ele”, e isso desde que fomoscriados. E continuava: “É um
movimento tão profundo e tão poderoso que a vontade não pode alcançá-
lo para combatê-lo, o pecado cometido não pode freá-lo e o inferno não
poderá destruí-lo”. Para aquele autor, o inferno consistiria justamente no
con�ito intérmino entre esse movimento natural para Deus e o movimento
da vontade livre contra Deus.63 O tormento do inferno torna-se assim uma
prova a posteriori de quanto é objetivo nosso desejo de in�nito. O mesmo
se pode dizer, agora em positivo, da felicidade eterna do céu.
Para todo o ser humano que, rompendo o círculo estreito da razão, se
abre às questões existenciais, a prova noológica, embora racionalmente
limitada, tem um grandíssimo poder de esclarecimento e de
convencimento morais. Mais que arrebatar a adesão da razão, ela cativa o
coração. Efetivamente, Deus é, para o ser humano, importante demais para
ser aceito apenas pela coerção lógica da razão. Se assim fosse, seria apenas
um Deus adequado ao mundo e aos seus mecanismos anônimos. Seria, no
dizer de Pascal, apenas “o Deus dos �lósofos e dos sábios”. Já o Deus dos
homens e do seu coração só pode ser aquele que solicita e, ao mesmo
tempo, respeita o livre-arbítrio. Esse é o Deus das religiões, como quer que
se chame: Allah, Brahman ou mesmo Nirvana. Esse é, mais que tudo, o
“Deus de Abraão, de Isaac e Jacó, o Deus de Jesus Cristo”, na expressão
pascaliana. É, portanto, não apenas um Deus para se conhecer, como no
deísmo, mas sobretudo um Deus para se amar, adorar e servir.
6. Fazendo o ponto do desejo de in�nito e de seu valor de
verdade
Após o laborioso percurso acerca do valor de verdade ou a força
argumentativa do desejo de in�nito, podemos resumir os resultados a que
chegamos nas três teses seguintes:
1. Contra os “projetistas” modernos, devemos sustentar que o desejo de
sentido ou o “sentimento oceânico” se refere �nalmente ao Transcendente
real. A razão mostra que o pontilhado daquele desejo leva a Deus. Deus é a
�gura que encarna da maneira mais convincente o ideal do sentido
absoluto. É, pois, por sua dinâmica intrínseca que o desejo de sentido
insinua fortemente que Deus existe e que só Ele pode responder
plenamente àquele desejo. Seria, de resto, estranho que houvesse um
“sentimento oceânico” sem oceano real algum. Em suma, mesmo sem ser
apodítico, o argumento do desejo de in�nito fornece, sim, uma prova,
prova de tipo dialético, acerca da existência de Deus. Agora, para quem
admite Deus, por fé ou por razão, o pontilhado do desejo de in�nito
desdobra-se em convicção moral e, mais ainda, em certeza espiritual
absoluta.
2. Agora, contra os eudemonologistas apressados, devemos sustentar
que o desejo ou senso de felicidade ou de sentido designa Deus apenas de
modo vago e geral. Ou seja, a partir desse desejo ou senso não podemos
rigorosamente demonstrar a existência de Deus, mas apenas prová-la
dialeticamente. Isso já é muito, pois, dado que a questão do sentido é uma
questão mais moral que racional, as provas dialéticas se prestam melhor
para esse tipo de questão. A questões existenciais há que responder de
modo existencial.
3. É só a partir da realidade do mundo que se pode demonstrar a rigor a
realidade de Deus. Mas, uma vez admitida a existência de Deus, quer por
argumentação racional (dialética e mesmo apodítica), quer por aceitação
de fé, �ca também claro que somente Deus, e mais ninguém, pode
responder ao desejo de sentido absoluto, por outras, ao “sentimento
oceânico”. Pois só Ele é efetivamente, no dizer de S. João Damasceno, o
“oceano sem praias da substância”.64 Só o Absoluto responde ao absoluto.
III. SISTEMA DE RESPOSTAS PARA A QUESTÃO DO SENTIDO
1. Cinco respostas �nitas à busca de sentido in�nito: os
“cinco er”
Vimos que o desejo do sentido pleno é natural; que, por ser natural, esse
desejo é objetivo, não projetivo; e que todo homem busca ex necessitate um
�m último para sua vida, �m que lhe confere “o” sentido da vida. Há, pois,
no homem como que uma injunção estrutural, que é a de “ultimar” o
sentido de sua vida.
Agora vem a pergunta: Onde o homem “ultimará” seu bem último, o
sentido último de sua vida, en�m, sua felicidade? Essa é a verdadeira,
grande e decisiva questão. Em que consiste, pois, concretamente o sentido
último e pleno da existência? Que nome tem? Como se vê, para responder
à questão do sentido, passamos agora do plano formal e abstrato, além de
coagente, para o plano material e concreto, além de livre.
Como respostas à questão do sentido ou da felicidade, encontramos, em
primeiro lugar, aquelas que são radicalmente imanentes ou �nitas. Essas
respostas põem o sentido ou a felicidade em valores sensíveis. Elas
poderiam se enfeixar sob o título de hedonismo, tenha ele a forma mais
vulgar do “comamos e bebamos”, própria dos homens-massa, ou a forma
mais so�sticada do “desfrutar o melhor da vida”, típica das classes
“educadas”.
Seguindo uma longa tradição �losó�ca, são fundamentalmente cinco as
respostas imanentes que se dão à questão do sentido ou da felicidade. De
vez que, em português, todas elas terminam em “er”, chamemo-las
didaticamente os “cinco er”, que seriam: prazer, poder, ter, parecer e saber.
Descrevamo-las de forma breve, antes de discernir in totum sua capacidade
de colmatar o desejo de sentido.
1. Prazer. Essa é certamente a face mais clara e comum, para não dizer
vulgar, com que aparece o ideal de felicidade. Na cultura atual, esse ideal
tem sua expressão privilegiada no sexo e, em conexão mais ou menos
aleatória com ele, na paixão amorosa.65 Tomado como ideal, o prazer
erotico-sexual nos leva a um nível infra-humano.
2. Poder. Depois do prazer, o poder se apresenta como o rosto mais
atraente da felicidade. Se o ideal do prazer é mais popular, o do poder é
mais elitista. E, ao contrário do prazer, o poder como ideal eleva o homem
acima de seus limites, na busca de “ser como Deus”, produzindo, assim, os
mais graves efeitos.
3. Ter. Possuir bens materiais é o ideal do avarento e do ganancioso.
Divinizado como Mamon, o dinheiro se oferece como a materialização da
felicidade ou, melhor, como o grande meio para lá chegar. O ideal de
acumular riquezas é potentemente favorecido por um sistema capitalista
não social e juridicamente enquadrado.66
4. Aparecer. Incluímos sob esse termo a busca da fama, da honra e da
glória. É o ideal das modelos, artistas e atletas. Mas a preocupação por
aparecer é geral na cultura atual, com seu “culto do corpo” e a difusão da
autoimagem pelas novas mídias.
5. Saber. Tomamos aqui essa palavra em sua acepção hoje dominante: o
conhecimento técnico-cientí�co, voltado utilitariamente para a dominação
das coisas e das pessoas. Contudo, esse ideal de vida, por requerer altos
custos �nanceiros e intelectuais, é apanágio de pouca gente, se bem que
permaneça como objeto geral de admiração e louvor.
2. Nada de �nito pode satisfazer o desejo de in�nito
Diante dessas �guras de ideais de vida, a pergunta é: Poderiam elas dar
uma resposta adequada à busca de felicidade e, portanto, ao desejo de
sentido para a vida? Por pouco que se re�ita, a resposta é não. E isso pela
simples razão de que se trata aí de valores �nitos, absolutamente
insu�cientes para preencher um desejo in�nito. São respostas limitadas
para uma pergunta ilimitada. Entre pergunta e resposta subsiste, pois, uma
desproporção insanável. A resposta aqui é claramente imanente e secular,
enquanto a pergunta é inegavelmente transcendente e espiritual. Daí
porque todas as saídas enumeradas são fatalmente decepcionantes,
frustrantes.
Os incrédulos de hoje o sabem e, por não verem outra saída, se
conformam. Essa resignação lúcida é, para eles, a única atitude realista,
corajosa e adulta num mundo que creem desencantado, deserto de Deus.
Mas existem também muitos crentes que, em sua vida prática, optam por
aquelas respostas limitadas. Assim o denuncia Paulo: “Muitos dentre vós se
comportam como inimigos da cruz de Cristo. Seu deus é o ventre e seu �m
é a morte. Só buscam o que é terrestre” (Fl 3,18-20). Tais cristãos admitem
na teoria a lei doReino do céu, mas vivem na prática sob o regime do
Reino da terra. Apostam no espírito, mas “militam segundo a carne”, na
expressão do mesmo apóstolo (2Cor 10,3).
Essa incoerência é chamada pela consciência cristã de “pecado”, e
“pecado mortal” quando rompe com a fonte de todo o ser, que é também o
sentido último de tudo: Deus. Mesmo nesse caso, a fé nunca é vã. Ela
guarda ainda e sempre um sentido: o de ser um princípio latente de
mudança e redenção, como ensinou o Concílio de Trento:
Se alguém disser que, perdida a graça pelo pecado, juntamente se perde sempre também a fé; ou
que a fé que resta não é verdadeira fé, por não ser viva; ou que aquele que tem a fé mas não a
caridade não é cristão: seja anátema.67
Tal é a vantagem, coeteris paribus, do crente, embora pecador, sobre o
incrédulo. É a vantagem de quem perdeu o caminho, mas sabe ainda para
onde vai; diferentemente do incrédulo, que perdeu não só o caminho, mas
até o destino de seus passos.
3. O logro da idolatria secular: tomar o in�nito potencial pelo
in�nito real
Mas, por que o ser humano se engana ao colocar nos valores �nitos a
resposta ao seu desejo in�nito de sentido e felicidade? Por que ele “ultima”
o sentido num bem �nito em vez do in�nito? É por causa da semelhança
que existe entre o �nito e o in�nito, entre a criatura e o Criador – em
suma, entre o êidolon e o êidos. A razão, seduzida pelas projeções da
imaginação, toma uma coisa pela outra. Em virtude desse mecanismo de
assemelhação, acontece frequentemente que os poderosos se tenham por
deuses, os ricos se achem onipotentes, as beldades se façam chamar de
divas, os intelectuais se tomem por oniscientes e os libertinos julguem o
sexo o paraíso das delícias.
Como explica o Angélico, de per si, o desejo de objetos limitados é
limitado e se satisfaz com tais objetos, como aparece claramente nos
animais, que, quando satisfeitos em seu apetite de alimento ou de sexo,
não pedem mais. Isso não acontece nos seres humanos, precisamente pelo
fato de que nesses a razão interfere na pulsão instintiva, esperando desta a
satisfação plena por que a razão naturalmente anseia. Nisso, com toda a
evidência, eles se enganam, por tomarem aí o �nito do prazer sensível (no
caso, os da cama e mesa) pelo in�nito de Deus.68
Esse engano se veri�ca também no caso da paixão amorosa (caso
individual), assim como no da luta revolucionária (caso social). Uma e
outra dessas experiências são concebidas e vividas como a solução do
problema humano e social, respectivamente. Tanto o apaixonado como o
revolucionário sonham com o paraíso: o primeiro costuma chamá-lo de
“felicidade”, e o segundo, de “utopia”. Devido ao estado de exaltação em
que se encontram, os apaixonados e os revolucionários assomam como os
devotos mais ardentes e �éis para com seus respectivos ídolos.
O mesmo logro atinge os ideólogos do “progresso”. Identi�cando-o com
o mero “crescimento” material (técnico, econômico e militar), consideram-
no como su�ciente para fazer uma sociedade de homens felizes. Ignoram
que o verdadeiro progresso para uma sociedade de humanos consiste no
“desenvolvimento” que corresponde à natureza ética e espiritual dos
próprios humanos, como advertiu o papa Paulo VI.69 Eis, nessa linha, uma
página inédita de L.-J. Lebret, assessor de vários papas para as questões
sociais e redator da encíclica Pacem in Terris:
Os homens se jactaram com o termo progresso. Puseram-no em todos os molhos. (...) Mas ninguém
tinha realmente, ou inteligentemente, o cuidado do progresso humano. A humanidade capitulou
diante da tarefa mais essencial: o progresso equilibrado, o progresso total, que leva em conta, a
cada momento, os homens concretos, seu tamanho, os ritmos fundamentais de sua vida, suas
necessidades de família e de amizades, sua necessidade de evasão e de grandeza, sua necessidade
de sinceridade e de aventura, sua necessidade carnal e espiritual, sua necessidade das coisas e sua
aspiração por Aquele que é o princípio das coisas.70
Mas por que a assemelhação com o divino, em vez de operar em favor
do Deus vivo e verdadeiro, o que seria mais razoável, opera, ao contrário,
em favor de um ídolo? Por outras, por que a semelhança que a ideia de
sentido tem com a de Deus leva a mente humana em direção à ilusão e não
à verdade? Por que o mortal se engana numa matéria assim tão
determinante para seu destino de�nitivo? En�m, por que o ser racional
busca o sentido e a felicidade fora de Deus, quando sua razão e mesmo sua
intuição julgam que só n’Ele se encontram essas coisas?
Árdua é a resposta, não sendo este o lugar para aprofundá-la. Digamos
apenas que o engano aqui se deve à força da paixão que assedia o homem
e lhe obscurece a razão. Tal força se agrava numa cultura infensa à
dimensão espiritual da vida, como é a nossa. Se, para os medievais, o céu
ou a vida eterna era, sem contestação, o sentido último da vida, para os
“modernos” é a terra e o que nela se passa. Ademais, lateja no fundo de
todo homem o dilema, em virtude do qual o sentido espiritual, por certo,
nos atrai, mas o sentido carnal nos seduz. Esse drama foi bem descrito por
Paulo (cf. Rm 7,14-24; Gl 5,16-25). Se perguntamos agora por que o
homem se encontra assim tão profunda e intimamente dividido, a fé
responde falando na queda primordial.71 Tal é, mesmo do ponto de vista
racional, a hipótese mais convincente para explicar a condição dramática
em que vive o ser humano e que a tradição chamou de “estímulo para o
pecado” (fomes peccati) ou simplesmente “concupiscência”.
Seja como for, podemos a�rmar que o in�nito do desejo sensível, não
importa a forma que revista entre os “cinco er”, é um “mau in�nito”
(Hegel). É um in�nito meramente potencial, porque limitado à matéria. De
fato, a uma quantidade determinada sempre se pode acrescentar mais um,
e assim inde�nidamente, num processo ad in�nitum. Mas esse é, em
verdade, um in�nito frustrante, desesperador, infernal. Ao contrário, o
“bom in�nito”, que realiza o desejo do coração humano, é o in�nito real,
atual, pleno. In�nito é justamente o nome �losó�co que muitos �lósofos
deram como próprio de Deus, desde Anaxágoras com seu ápeiron, até
Descartes, passando por Duns Scotus.72
Por sua parte, o Angélico explica que Deus é “in�nito” no sentido
negativo de “sem limite” (sendo Ele o In�nito ontológico ou qualitativo,
portanto, o “bom in�nito”), não, porém, no sentido privativo de “sem
forma” (caso em que seria o in�nito matemático ou quantitativo, portanto,
o “mau in�nito”). Assim, pelo fato de que Deus é a forma puríssima, sem
matéria alguma, ou seja, a “forma subsistente por si mesma”, e porque “a
forma é o princípio de conhecimento”, Ele é o ser “maximamente
cognoscível por si mesmo”, não, porém, “para nós”. Com efeito, Ele é tão
luminoso que, diante d’Ele �camos ofuscados como a coruja diante do
sol.73
Agora, quando o �nito é tomado e tratado pelo que é, ele pode dar um
sentido, igualmente �nito, à vida. É o que sucede com a dupla “família e
trabalho”, lote da maioria dos mortais. Mas para que o �nito seja tratado
como tal, ou seja, para que seja visto em sua verdade �nita, importa
admitir o In�nito real como sua medida reguladora. Trata-se, porém, aqui
de um In�nito considerado não apenas como ideia, a “ideia reguladora” do
idealismo kantiano, mas como a Realidade mais sólida, tal como a postula
todo sadio realismo.
De tudo isso emerge a grande alternativa a que todo homem é
implacavelmente confrontado: ou o In�nito verdadeiro ou o in�nito falso;
ou a Realidade transcendente ou seu ersatz; em suma, ou Deus ou o ídolo.
Não há como fugir. Quem foge já decidiu, e decidiu mal.
4. O dever moral, o “sexto er”, como resposta à questão do
sentido
Examinamos até agora as saídas deste mundo para o sentido e a
felicidade, que chamamos os “cinco er” e que se condensam no
hedonismo, vulgar ou chique que seja. Precisamos agora nos debruçar
sobre a ética. Pode a ética dar sentido à vida, sentido que seja satisfatório?
No plano social, hoje privilegiado, há quem veja o sentido da vida no
compromisso com a justiça,a paz e a ecologia, com a luta pelos Direitos
Humanos; em suma, com o amor ao próximo, especialmente aos pobres e
sofredores. Já no plano individual, aparece a integridade ética como um
ideal de vida, louvado e admirado hoje como ontem. Foi em torno desse
ideal que se construíram as grandes sabedorias de vida, como o budismo e
o jainismo, o confucionismo e o taoísmo, além de sólidos sistemas éticos,
como o estoicismo, o farisaísmo, sem excluir o kantismo.
O próprio Paulo não hesitou a considerar a “sindérese”, isto é, a
consciência moral, um digno substituto da lei divina para os “pagãos” (cf.
Rm 2,14-15). Chegou mesmo a compendiar toda a lei divina no preceito
ético: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Rm 13,9; Gl 5,14). Até
Jesus parece ter resumido “a lei e os profetas” num preceito moral único:
“Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles” (Mt 7,12),
além de ter feito da misericórdia em favor dos necessitados o critério de
salvação (cf. Mt 25,31-46; Lc 10,25-37).
Situando-nos do ponto de vista da subjetividade, digamos logo que a
resposta especi�camente ética à questão do sentido e da felicidade não é,
por certo, falsa, mas é claramente insu�ciente. Ela também é uma resposta
�nita, enquanto circunscrita aos horizontes do mundo. Ela dá certamente
sentido à vida, mas apenas até certo ponto. Efetivamente, o
comportamento moral, quer no âmbito individual, quer social, está longe
de trazer a felicidade por que anseia o coração humano. Antes, provoca,
não poucas vezes, incompreensão, perseguição e mesmo morte.
É verdade: o agir ético confere algo de inestimável: a paz da consciência,
pelo que Cícero considerava a virtude como “recompensa de si mesma”.74
Não obstante, o ideal puramente ético, conquanto bem-sucedido na terra,
acaba no �m vencido pela morte, “matada ou morrida” que seja. Esse é seu
limite fatal. Daí que, privado de uma dimensão transcendente, o ideal ético
só pode conferir um sentido imanente à existência humana. Desta forma, a
ética não tem como aplacar o desejo do homem, o qual busca
incansavelmente um sentido in�nito e realmente transcendente.
O ideal ético da vida, em que pese sua superioridade qualitativa sobre o
hedonista, na medida em que é falto do transcendente, permanece, ele
também, preso ao cárcere da imanência. Isso nos obriga a acrescentar à
lista dos cinco “er” imanentes mais um “er”: o “dever”, apesar de sua
especi�cidade. Pelo que passaríamos agora a ter a fórmula “5+1 er”,
expressão que, se por um lado põe o dever na lista das respostas imanentes
à questão do sentido, por outro, permite dar-lhe o destaque que merece em
relação aos outros “er”.
Mesmo assim, é preciso observar que, como acontece com qualquer
outro “er”, o dever, entendido a título de ética puramente intramundana,
corre também o perigo de se degradar em ersatz do absoluto, seja no
âmbito do cotidiano, seja no social. No âmbito do cotidiano, essa perversão
acontece quando o senso do dever, perdendo toda �exibilidade, subverte a
hierarquia dos valores, como ocorreu com o legalismo farisaico,
veementemente censurado por Jesus: “Ai de vós escribas e fariseus
hipócritas! Pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e desprezais
os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a �delidade”
(Mt 23,23).
Já no âmbito social, a deformação da ética, como resultado de sua
absolutização, é mais grave e é por isso também mais evidente. É o caso das
grandes ideologias que seduziram os espíritos nos dois últimos séculos e
cujos ideais foram de tal modo majorados que se transformaram em ídolos,
e ídolos sangrentos. Assim, o ideal radicalizado da liberdade fez surgir o
liberalismo, o amor imoderado da justiça pariu o comunismo; a paixão pela
própria nação, o fascismo e outros nacionalismos; e o fervor místico pela
própria raça, o nazismo. Tais são os resultados funestos em que
redundaram os valores éticos quando dissociados de Deus e de sua lei.
Até aqui intentamos refutar a tese de que a ética constituiria a
substância do sentido ou da felicidade. Fizemo-lo usando o método
indutivo, isto é, a partir dos efeitos de sentido da via ética, efeitos esses que
vimos serem limitados e até mesmo perigosos. Sem embargo, pode-se
também refutar a mesma tese de modo dedutivo, isto é, partindo da
essência da ética, como fez Santo Tomás. Ele mostrou efetivamente que a
ética não pode constituir o sentido ou a felicidade da vida, argumentando
que a ética não existe para si, mas para outra coisa. De fato, ela estaria, em
primeiro lugar, a serviço da paz individual e social. Em segundo lugar, por
ser essencialmente ação e esforço interior, a ética se ordenaria não a si
mesma, nas ao descanso e à contemplação fruitiva. Em terceiro lugar, ela
teria por meta suprema a paz com Deus na comunhão de amor com Ele.75
Para Tomás, tudo isso mostra, com toda a evidência, que, em relação ao
sentido, a ética é tão somente funcional. Por outras, ela mesma não
constitui a essência do sentido ou da felicidade, mas é apenas um meio
para isso. De fato, para o Angélico, as chamadas “boas obras” não são a
substância da felicidade, ou seja, do sentido transcendente, mas seu
caminho.76 De resto, a II parte da Suma teológica, que trata da moral,
arranca da ideia de felicidade como sendo a �nalidade última do homem,
a qual por sua vez se encontra apenas na comunhão com Deus (I-II, q. 3-
4). Mostra em seguida que, para chegar lá, o homem precisa se mover
através das virtudes morais e, mais ainda, das teologais (I-II, q. 5, a. 7).
Com isso torna-se claro que a ética não é da ordem dos �ns, mas dos meios
para um �m superior. Ela não é o sentido-�m, mas apenas o sentido-
direção.
Sem dúvida, é particularmente no agir ético que o ser humano vive
“como se” o sentido, a felicidade e Deus mesmo existissem. Efetivamente,
no agir ético o homem experimenta um senso misterioso do in�nito e do
eterno, sem cuja virtude ele não se disporia sequer a levantar o mindinho,
como se exprimiu Teilhard de Chardin. Cícero, por sua parte, estava
convencido de que, se o homem chega a ponto de dar a vida para construir
a cidade temporal na justiça, é porque ele se sente movido pela convicção
obscura de estar construindo a cidade eterna.77
Se é assim, seria, por acaso, correto a�rmar que, do ponto de vista
objetivo, a ética oculta, em seu fundo, um ideal religioso, podendo assim
dar um sentido transcendente, ainda que implícito ou atemático, à vida?
De fato, não é a consciência o “primeiro vigário de Cristo”, como a�rmou
Newman?78 Não ensina a Igreja que um ateu que segue sua consciência não
o faz sem a graça, estando, pois, no caminho da salvação (cf. LG 16)? Não
a�rmou Cristo que as “obras de misericórdia” em favor de seus “irmãos
menores” são feitas em realidade a Ele mesmo e dão assim acesso ao Reino
da glória (cf. Mt 15,31-46)?
Em relação a essa laboriosa questão, basta aqui dizer que as proposições
que apenas vimos e que põem um nexo estreito entre ética e salvação têm
caráter apenas assertivo, não conclusivo. Pois, para a Escritura – mas isso
vale também para a simples razão –, a ética, conquanto necessária, de
modo nenhum é su�ciente para a realização plena do homem. Como
sempre ensinou a Igreja e como explicou o Angélico logo no primeiro
artigo da Suma, o ser humano, para chegar ao seu destino transcendente,
precisa ainda da religião e mesmo da revelação.79
5. Só o In�nito real pode satisfazer o desejo natural de
in�nito
Vimos que, seja lá o que digam os optantes da �nitude ou do devir, o
desejo de in�nito não deixará nunca de aguilhoar o coração humano, não
importa se manifesto ou latente, se sabido ou ignorado, se assumido ou
reprimido, se alimentado com o pão da terra ou com o maná do céu.
Dissemos também que nenhuma realidade imanente pode responder ao
desejo natural de um sentido transcendente, a não ser de modo ilusório e
mesmo pervertido, que é quando o imanente se disfarça de transcendente.
Em suma, a meta última do desejo só pode ser o metassentido ou, melhor,
o suprassentido. Resta, porém, saber se o suprassentidoé Deus mesmo.
E a resposta aqui é positiva e só pode sê-lo, como, de resto, já
mostramos. De fato, só um ser transcendente real, atual e pleno pode
satisfazer real, atual e plenamente a sede natural de sentido. Ora, tal
transcendente real é e só pode ser Deus mesmo. Portanto, à exclusão de
todas as hipóteses imanentistas, resta que só a “hipótese Deus” pode
responder satisfatoriamente à busca de um sentido transcendente.
Portanto, o suprassentido, postulado pelo desejo de transcendente, só pode
ser o próprio Transcendente: Deus. Podemos assim tirar a equação: sentido
= Deus.
Antecipando o que deveremos tratar de modo amplo no capítulo VII,
digamos sinteticamente que a equação acima representa a conclusão tanto
de uma prova dialética quanto de uma apodítica: de uma prova dialética,
enquanto o próprio desejo natural de sentido in�nito faz suspeitar
seriamente da existência real desse in�nito; e de uma prova apodítica,
enquanto pressupondo ser demonstrado, a partir do mundo objetivo, que
Deus existe, �ca igualmente demonstrado que só Ele pode saciar
plenamente o coração humano, como faz, de resto, Santo Tomás ao
discutir a questão da felicidade.80 Efetivamente, se Deus realmente existe, o
sentido último só pode ser Ele mesmo. Desse argumento segue o corolário:
somente quem admite Deus, por razão ou por fé, pode dar um sentido
cabal à sua vida. Vimos há pouco que o poeta Paul Valéry, partindo da
premissa “se Deus existisse, eu seria feliz”, concluiu, melancólico: “Mas
Deus não existe e eu não sou feliz”, enquanto o crente chega, exultante, à
conclusão oposta: “Deus existe, e eu sou feliz”.
Ao termo deste percurso, no qual examinamos as alternativas dadas à
questão da felicidade e do sentido, e em que concluímos que Deus e só Ele
é a resposta satisfatória àquela questão, devemos acrescentar mais um “er”
aos outros seis, que seria o “crer”. Teríamos, assim, a fórmula
mnemotécnica �nal das 7 (sete) respostas possíveis à referida questão, e
que seria: “5+1+1=7 er”, onde: 5 (cinco) seriam as respostas clara e
totalmente imanentes e que, por serem tais, só podem constituir respostas
inadequadas, se não ilusórias, a uma questão transcendente; 1 (uma), a
resposta ética, que, embora transcendente tanto em sua raiz quanto em sua
intenção objetiva última, é imanente em sua realização e, por isso,
incompleta; e �nalmente 1 (uma), a resposta religiosa ou da fé, a única
objetivamente consistente e subjetivamente satisfatória, porque dá
efetivamente uma resposta transcendente a uma questão transcendente.
Acrescentemos que essas sete opções de sentido podem-se reduzir às
três grandes respostas clássicas que foram dadas na história do Ocidente à
questão da felicidade ou do sentido, respectivamente a do epicurismo, a do
estoicismo e a do cristianismo. A resposta do epicurismo, privilegiando o
“prazer”, recolhe as cinco primeiras opções; a resposta do estoicismo,
centrada no “dever”, designa a opção ética; e a resposta do cristianismo,
expressa no “crer”, representa a opção religiosa ou espiritual.
6. Sete teses para resumir o capítulo III em suas duas partes
Ao termo da longa e laboriosa re�exão que ocupou todo o capítulo III,
em suas duas partes, retomemos tudo e sintetizemos em poucas teses o
resultado �nal a que chegamos. Relembremos, antes disso, os termos da
questão, tais como os propusemos. Dissemos, pois, que existe uma
correspondência logicamente progressiva entre as ideias de: �m último =>
sumo bem ou valor supremo => felicidade => sentido. Condensando: �m
último => sentido. Retomada essa clari�cação semântica prévia, venhamos
às teses.
Tese 1: Existe indubitavelmente em todo o ser humano o desejo de
sentido, como se prova pela análise �losó�co-antropológica da vontade,
con�rmada pelos testemunhos da experiência humana, quer individual,
quer social, especialmente aquela registrada pela grande literatura.
Tese 2: O desejo de sentido, por ser natural, não é meramente projetivo
ou fruto da ilusão, como pensam muitos modernos. Antes, o desejo de
sentido tem tudo para ser objetivo, mostrando que o sentido a que aponta
deve existir realmente.
Tese 3: Nada de �nito, seja de natureza física, emocional ou mesmo
ética, pode satisfazer o desejo de sentido e de felicidade. Pois todas essas
realidades, sendo �nitas, não se podem comensurar com o desejo in�nito
que lateja no coração de todo o ser humano.
Tese 4: Só o Deus vivo e verdadeiro, por ser o In�nito real, pode
realmente preencher o vazio hiante que todo homem sente em seu peito. E
é justamente da intensidade dramática desse sentimento que irrompe,
inelutável, a fortíssima presunção de sua verdade objetiva.
Tese 5: Para o ser humano, o desejo de sentido pleno não é sem mais o
desejo de Deus, como parecem dizer os fautores da “abertura
transcendental ao transcendente”. É, sim, desejo de Deus, mas de modo
confuso, podendo por isso mesmo ser confundido com outra coisa, como o
dinheiro, o sexo ou a fama. Daí a necessidade de um juízo e uma opção
pessoais que não sejam só éticos, mas também de fé.
Tese 6: O desejo da plenitude de sentido, se não demonstra a rigor a
existência de Deus, como sustentam os eudemonologistas ou noologistas,
fornece, contudo, uma prova dialética daquela mesma existência. A
demonstração rigorosa da existência de Deus só se dá por fora do desejo,
no extra animam, ou seja, indutivamente, partindo da realidade do mundo.
Mas, uma vez demonstrado Deus, pode-se também demonstrar que Ele é o
sentido pleno da existência.
Tese 7: Contra os “projetistas” modernos, é possível, sim, provar
dialeticamente que o desejo de sentido desenha em pontilhado Deus
mesmo. Por ser instintivo e universal, esse desejo não é puramente
imaginário, mas visa certa objetividade. Depõe, assim, em favor da
realidade de Deus como termo último a que aponta e aporta o desejo
humano. Este é um argumento probatório, de tipo dialético, que tem,
entretanto, mais força moral sobre o ser humano a respeito de Deus que
qualquer outro argumento apodítico, porque fala mais ao coração que à
cabeça. Apontando decididamente para Deus, constitui a resposta mais
adequada à questão existencial mais alta: a do destino humano.
IV. SCHOLIA
1. Versão tardo-moderna das respostas imanentes à questão
do sentido
Vejamos como se apresentam especi�camente em nossos dias as
respostas imanentes à questão da felicidade ou do sentido. Deixando de
lado o chamado povo-massa, entidade nunca ausente no curso da história
e para a qual a felicidade consiste no hedonismo vulgar do “comamos e
bebamos”, assim como aquela parte do pós-moderno que se mostra aberta
à dimensão espiritual da vida, concentremo-nos na elite tardo-moderna ou
pós-moderna, como se queira chamá-la, aquela que produz e divulga os
ideais dominantes da cultura.
Para essa elite, dita culta, o desejo de sentido absoluto, se bem que
insaciável, seria um desejo de per si absurdo e frustrante. Para ela, isso que
a cultura popular desde sempre chama de céu e considera como símbolo
da plenitude bem-aventurada e sempre sonhada pelo coração humano,
isso não existe na realidade. Segundo ela, depois da ruptura decisiva e sem
precedentes que foi a “morte de Deus”, o céu se acabou. Só sobrou este
mundo, o único mundo real, o qual, infelizmente, não está feito à medida
do desejo humano. Por isso mesmo, a vida humana é absurda, aporética,
falimentar, trágica. É assim que se expressa o �lósofo niilista.
Uma visão tão pessimista só pode gerar uma atitude de conformismo e
resignação diante da vida. É o ethos do “�nitismo” dos modernos. E isso em
nome da “realidade” e em desa�o a todas as “ilusões” da metafísica e da
religião. O “moderno” é um asceta de tipo estoico, enquanto renunciou, de
caso pensado, a todo desejo expresso de felicidade. Desesperou
conscientemente de qualquer satisfação transcendente, chame-se
felicidade, imortalidade, salvação ou, simplesmente, céu. Tal é a conclusão
lógica de sua visão fundamentalmente materialista ou mortalista da vida.
Reconheçamos que se trata de uma visão amarga da vida, sob a qual se
esconde,em verdade, algo da reação despeitada da raposa de Esopo, a
qual, não podendo alcançar as uvas cobiçadas, declara-as verdes.
A conclusão prática a que aporta essa visão não pode ser outra: “Vamos
cuidar da vida e aproveitar o que ela tem de bom”. Pelo que se vê, o
moderno pós-ideológico é um renunciante, mas não em função da
libertação espiritual, como é o caso do sannyasi, mas em função de um
hedonismo chique: o presentismo elegante e re�nado. O presentista esnobe
busca a eternidade no instante, enquanto considera as coisas boas e
agradáveis da vida – como costuma dizer – “eternas enquanto duram”. A
única transcendência em que acredita é a transcendência horizontal,
emergente e em ascensão contínua. Tendo efetivamente deixado para trás a
ideia de revolução, decidiu pelo melhorismo permanente. Nisso
concordam pensadores modernos tão diferentes como Th. Adorno e L.
Ferry. E, ainda que admitam saltos dialéticos e passagens de patamar, a
transcendência deles é deste mundo e dá-se sempre neste mundo.
Existe, porém, hoje uma raça particularmente radical de niilistas.
Enquanto os niilistas modernos podem ser chamados de “ascetas do
absurdo”, já os tardo-modernos são os “místicos do absurdo”. Se os
primeiros se apresentam graves e taciturnos, estes se querem joviais, quase
dançantes. Vattimo, por exemplo, tece o “elogio do niilismo”, propondo-o
como o novo evangelho que abriria ao pós-moderno as portas de uma vida
criativa e intensa. Kundera vai ainda mais longe: dá “vivas à
insigni�cância”, declarando-a “a essência da existência” e prescrevendo
como receita à vida insigni�cante a arte de amá-la assim mesmo. Que
lógica: resolver um absurdo com outro! Ouçamo-lo:
A insignificância é (...) a essência da existência. (...) Isso exige muitas vezes coragem para
reconhecê-la (...) e para chamá-la pelo nome. Mas não se trata apenas de reconhecê-la, é preciso
amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la.81
Como se vê, todos eles são epígonos de Nietzsche e, como tais, nada
mais fazem que reciclar, como já �zera seu mestre, o velho amor fati dos
estoicos. Como dissemos, tal proposta não passa de masoquismo
metafísico, que mal esconde um desespero surdo e resignado. Contra o
absurdo, de nada adianta apelar para o heroísmo, como persistem em fazer
os pensadores niilistas.82 Esse seria sempre um heroísmo sem causa e
estúpido, resultando mais absurdo que o absurdo contra o qual se levanta.
O que ainda impede a �loso�a niilista de, em sua lógica, arrastar seus
fautores à autodestruição é o “desejo natural” de felicidade que pulsa
secretamente no seu mais profundo. Trata-se de um instinto obscuro, de
uma intuição misteriosa, en�m, de um “senso do sentido”, que é
efetivamente muito mais forte que todas as razões sofísticas que se podem
levantar contra ele.
Houve, no passado, pensadores cujas �loso�as se aproximam deste ideal
�nito da vida. Contudo, os antigos guardavam ainda uma atitude
comedida, conquanto triste, perante a vida. Não ostentavam, por isso, a
pose trágica e despeitada dos tardo-modernos. O Eclesiastes, por exemplo,
recomenda gozar das coisas boas da vida, mas não deixa no �m de lembrar
o dia do juízo (Ecl 12,13-14). Exceto por sua perspectiva escatológica, o
Eclesiastes se aproxima do antigo texto egípcio (do II milênio a.C.)
intitulado “Diálogo do desesperado com sua alma”, para o qual, já que não
se sabe nada do outro mundo, o melhor é aproveitar o bem que este
mundo oferece.
Do mesmo modo, na Grécia, o poeta Simônides ensinava que o “homem
deve se ocupar do que é humano, e o mortal do que é mortal”,
aconselhando deixar as coisas divinas e imortais para os deuses imortais.
Nisso o seguem �guras como Ésquilo, Eurípides e Píndaro. Mesmo se,
opondo-se a Simônides, Aristóteles tenha proposto a imitação de Deus
através da atividade meditante, seu ideal de vida revela-se ainda muito
limitado, como observa seu admirador, Tomás de Aquino, para quem a
felicidade não está, como queria o �lósofo, em “contemplar como Deus” o
quanto possível, mas, sim, em “contemplar a Deus mesmo”, o que só é
possível na outra vida, coisa que passou longe da mente do Estagirita,83
levando seus estudiosos, como Aubenque e Boulnois, a falarem do aspecto
trágico da ideia aristotélica de felicidade.
Na Roma imperial, Horácio prega a renúncia a toda ambição, fosse ela
mundana ou espiritual, por um ideal que chamou de aurea mediocritas.
Cícero não �ca atrás, ao a�rmar que o homem deve �car “contente dentro
dos limites da natureza”. Lucrécio não é de outra opinião.84 Saltando para
o século do Iluminismo, sabemos da fórmula com que Voltaire resumia a
sabedoria da vida: “cuidar do próprio jardim”. Mais perto de nós, Carducci,
perante o irresoluto “enigma do universo”, manda “cuidar da vida”,
consigna moral que apenas se distingue da hedonística “goze da vida”.85
Já o tardo-moderno típico, radicalizando essa posição, desistiu de se
elevar em direção ao céu, para se instalar de�nitivamente nos estreitos
horizontes da terra. Ignorante de sua natureza de ave dos grandes espaços,
conformou-se com ser animal de terreiro. E em vez das asas, desenvolveu
as patas.
2. Confusão entre in�nito inde�nido e in�nito de�nido
Como vimos, o desejo de sentido é uma versão particular do conhecido
desejo de in�nito. Que in�nito é esse: eis a grande questão, questão
trabalhosa, para a qual só podemos aqui �ncar algumas balizas.
Relembremos, para começar: não é racionalmente garantido que o
in�nito do desejo seja sem mais o In�nito “Deus”. É Deus, sim, mas apenas
de modo confuso. Para prová-lo, trazemos aqui dois fatos maciços: um
tirado da �loso�a moderna, e outro da realidade mesma da vida.
Quanto ao primeiro fato, é inegável a existência de grandes �lósofos
modernos que, para poderem dar conta do mundo e dar-lhe um sentido,
puseram a necessidade lógica de um princípio incondicionado, existindo
por si (aseitas), incausado, totalmente independente, absoluto, en�m,
in�nito. Contudo, não chegaram a identi�car esse in�nito com Deus. Para
o in�nito, usam, é verdade, grandes conceitos como: “transcendente”,
“incondicional”, “absoluto” e até mesmo “Deus” (como �zeram Spinoza e
Hegel), mas entendem todos esses conceitos no horizonte de um
imanentismo radical.
O “in�nito” desses �lósofos modernos será a “Substância” para Spinoza,
o “Eu absoluto” para Fichte, a “Natureza” para Schelling, o “Espírito
absoluto” para Hegel, a “Vontade de vida” para Schopenhauer, a “Vontade
de potência” para Nietzsche, a “Matéria” para os materialistas, o “Todo”
para os panteístas, o “Acaso” para Monod e cia., o “Abismo quântico” para
certos cientistas atuais e assim por diante.86 Mas todos esses “absolutos”,
“transcendentes” ou “in�nitos” estão longe de coincidir com o absoluto, o
transcendente e o in�nito que a philosophia perennis (sem falar da fé)
identi�cou com o Deus vivo e verdadeiro. Neles, antes, se identi�ca com
qualquer outra realidade, que se parece com Deus, mas que não é Deus
mesmo. Esse fato cultural expressivo mostra que o desejo de in�nito, assim
como a ideia que está em sua base, é um desejo realmente confuso: ele
aponta, sim, para Deus, mas não de modo evidente.
Para darmos disso um exemplo concreto, tomemos a ideia de “in�nito”
de G. Leopardi, como aparece no célebre soneto homônimo. Não se trata aí
certamente do In�nito divino, mas do Todo, ao modo dos panteístas. São,
como diz o poeta, esses “espaços sem �m” e “sobre-humanos silêncios”. É,
em síntese, esse “mar” em que o poeta deseja “docemente naufragar”.87 Essa
metáfora nos lembra o famoso “sentimento oceânico” a que se referia R.
Rolland e que, segundo Freud, não remete a realidade in�nita alguma.88
Como se vê, o in�nito por que anseia o coração humano não é,
racionalmente falando, de entrada e sem mais o Deus vivo e verdadeiro,
que o melhor da razão e da religião chamou simplesmente de Deus. O
in�nito do desejo aponta, sim, para Deus, mas apenas como um vulto, não,
porém, como �gura bem delineada.
Passamos agora para o segundo fato maciço: o da vida ordinária do
homem comum. Essa mostraclaramente que, embora todos sintam o
desejo de in�nito, nem todos o identi�cam com Deus. Ao contrário, uns o
põem na riqueza, outros no prazer, os terceiros no poder, outros ainda na
fama ou em qualquer outra realidade �nita, tomada ilusoriamente por
in�nita. Para que esse desejo natural se traduza em desejo de Deus mesmo
e não no desejo de qualquer outra realidade assemelhada, é preciso que
intervenha, da parte do homem, um juízo pessoal e uma opção livre. Só
assim o inde�nido do in�nito se de�ne, e se de�ne nessa ou naquela
forma, ou seja, numa �gura verdadeira ou então numa enganosa.
Portanto, acerca da questão do desejo de transcendência, de in�nito, de
felicidade, en�m, de sentido absoluto, é preciso distinguir cuidadosamente
entre o plano formal ou abstrato dessa questão e seu plano material ou
concreto. Com efeito, uma coisa é a mera abertura à transcendência, e
outra a abertura concreta a Deus. Assim também, o desejo geral e instintivo
de transcendência é uma coisa, e outra é o desejo concreto e deliberado do
Transcendente real. O in�nito do desejo espontâneo é apenas um in�nito
vago e genérico, enquanto o in�nito do desejo voluntário é um in�nito real
e concreto. Observemos, ademais, que nem sempre o in�nito real e
concreto é o in�nito verdadeiro, como é efetivamente Deus, mas pode ser
também o in�nito falso ou ilusório, como são todos os ídolos, dependendo
do discernimento intelectual e da escolha livre de cada indivíduo.
Nesse ponto precisamente, importa notar que não é por igual que,
racionalmente, o in�nito do desejo natural pode ser Deus ou então outra
coisa. Não; segundo as razões que já demos, o in�nito do desejo “só pode
ser” (é a prova apodítica a partir do mundo) ou pelo menos “deve ser” (é a
prova dialética a partir do desejo de in�nito) Deus mesmo. Agora, se a
razão moderna nesse ponto discorda é, no fundo, porque vem, desde o
início, condicionada pelo cogito cartesiano, seu pecado original. E se, nessa
mesma questão, o vulgo igualmente se engana e toma um valor mundano,
em particular o prazer, pelo in�nito concreto, é porque ele também vem
condicionado pelo pecado original (agora sem metáfora), que o faz
inclinar-se ao sensível mais que ao espiritual.
Por outro lado, é também um fato inegável que o coração piedoso
identi�ca espontaneamente a transcendência, a felicidade, o sentido com
Deus, como se vê no conhecido fecisti nos ad te de Agostinho. De modo
semelhante, é comum as mentes religiosas declararem que “o ser humano é
naturalmente religioso”. A espontaneidade com que elas identi�cam a
felicidade ou o sentido com Deus provém do hábito que têm de tratar com
Deus e que se tornou nelas uma segunda natureza. Ora, o hábito leva a
familiarizar-se com as coisas e, assim, a naturalizá-las. É em virtude do
hábito também, como Santo Tomás fez observar, que os simples acham, e
com certa razão, a existência de Deus evidente por si mesma, quando, do
ponto de vista racional, ela necessita em verdade de demonstração.89
Mas isso, que é compreensível do ponto de vista da fé vivida,
especialmente a dos humildes, já não o é mais em relação a uma teologia
de rigor, em particular a uma “teologia fundamental” que quer falar à
inteligência do “homem crítico”. De fato, muitas vezes os teólogos, cedendo
à força do costume que adquiriram no trato assíduo com a ideia de Deus,
passam, com todo desembaraço, da ideia de in�nito abstrato e potencial
para a do in�nito concreto e real, identi�cado com Deus. O mesmo se
passa em relação a outros conceitos elevados, como “transcendente”,
“absoluto”, “supremo”, “último”. Pula-se aí por cima das necessárias
mediações teóricas e se declara, sem mais, que tais conceitos remetem à
ideia do Deus vivo e verdadeiro. Ora, dizer de chofre: “o transcendente é
Deus”, “o sentido é Deus”, é um salto que o coração piedoso pode dar, sem
outras justi�cativas, mas não a razão crítica, que procede sempre passo a
passo, como “por rodeios” (Hegel). Tangido talvez por certa pressa
apologética, o teólogo pula de pés juntos o já referido “abismo conceitual”
que se abre entre sentido e Deus, e acaba identi�cando e, assim,
confundindo o sentido com o Sentido, o transcendente com o
Transcendente, en�m, o in�nito com o In�nito divino.
Esse parece ser o caso de K. Rahner ou pelo menos do que se tornou a
vulgata de sua teologia que chamamos de “rahnerismo”. Pois bem, seus
fautores, constatando que o homem, por ser espírito, vem, desde o
nascimento, dotado de uma “abertura transcendental ao transcendente”,
que quali�cam como “existencial sobrenatural”, pensam logo em Deus,
desde que, para eles, essa abertura esteja preenchida de conteúdo ético.90
Ocorre o mesmo com P. Tillich, com sua ideia de “incondicional”, a qual
vem igualmente identi�cada, sem maior discernimento, com Deus mesmo.
Passa-se então à ideia equívoca de que todo ser humano, sabendo ou não,
querendo ou não, é religioso e até mesmo cristão, bastando para isso que
conduza uma vida moralmente autêntica. Nessa perspectiva, a fé acaba
sendo vista apenas como uma tomada de consciência acerca do conteúdo
sobrenatural que se passa alhures, ou seja, na instância ética. Mas quem
não vê a fatal capitis diminutio que sofre aí a ideia cristã de fé?
O fundamento dessa estranha versão do cristianismo é a tese de que em
tudo o que o homem conhece e ama, conhece e ama “implicitamente” a
Deus, como teria dito Santo Tomás.91 Contudo, nesse Doutor, aquela tese
tem um caráter ontológico, e não existencial. Ela diz respeito a todo ser, e
não somente ao ser humano em seu agir. Trata-se, pois, do amor a Deus
“implícito” no nível do ser, e não ainda do sentir ou do agir. O que a�rma o
Angélico é que o conhecimento e o amor de qualquer ser, desde o da pedra
até o do Diabo, passando pelo do homem (ut natura), só pode provir de
uma fonte primeira, chamada Deus. Outra coisa é o amor instintivo ou
desejo natural de in�nito, de felicidade ou de sentido que está presente e
operante no ser racional e só nele, justamente por causa de seu caráter
espiritual. Por certo, nesse desejo humano incoercível também está
“implícito” Deus, porém de modo vago e geral, sub quadam confusione, no
dizer do próprio Doutor.92 Na prática, o objeto do desejo in�nito revela-se
ambíguo, podendo ser verdadeiro, e então é Deus; ou então aparente ou
falso, e então é um ídolo, tal a riqueza, o prazer ou o renome, dependendo
da opção livre de cada pessoa.
Portanto, a “explicitação” desse desejo instintivo equivale à de�nição
que cada um dará desse amor vago e confuso, transformando-o, no melhor
dos casos, em amor consciente e voluntário de Deus. Como se vê, a
“explicitação” do amor de Deus, “implícito” no amor instintivo de sentido,
é, para o Angélico, algo de ativo, envolvendo a razão e a vontade humanas.
Está longe de ser simplesmente um reconhecer ou tematizar.93 O caráter
constitutivo da “explicitação” do amor instintivo de Deus funda toda a
estrutura confessante e sacramental da Igreja e sua necessidade humano-
moral e divino-positiva. Portanto, para amar a Deus não basta a ética, como
pretextam os que veem no amor ao próximo a presença “implícita” do
amor de Deus, mas precisa ainda, em regra, de uma fé confessa.
Como se pode inferir, emergem dessa problemática três “implícitos”: o
ontológico (do ser), o existencial (do sentir) e o ético (do agir). Portanto, o
conceito de “implícito” não é unívoco e não é, por conseguinte, unívoca
sua “explicitação”. Ora, reduzir a “explicitação” à chamada “tematização”,
espontânea ou elaborada que seja, é esvaziar a fé de sua substância
sobrenatural e reduzir o cristianismo a uma gnose, se não a uma ideologia.
Pelo que dissemos até agora, tudo leva a crer que o in�nito (inde�nido)
do desejo se fecha efetivamente na alternativa: ou Deus (in�nito
verdadeiro) ou um ídolo (in�nito ilusório). Poder-se-ia, contudo, aventar
uma terceira opção e pensar no in�nito do Bem, tenha ele a forma da
justiça, da paz, da vida ou de um outro valor ético qualquer.94 É justamente
nessa determinação moral do in�nito que se baseiam as �loso�asque veem
na ética o sentido último da vida e as teologias que a têm como via da
salvação. Contra essa espécie de “terceira via”, respondamos sinteticamente
que, além de ser a posição de uma minoria secularista, se bem que
in�uente, mostra-se tão precária que se inclina na prática para um dos
lados da alternativa: o do Deus/ídolo, como mostra a mais comezinha
experiência, tanto pessoal como social. E assim voltam a se fechar as duas
lâminas cortantes da tesoura fatal: ou Deus ou o ídolo.
Fiquemos nessas breves indicações, porquanto se trata de uma
problemática assaz complexa e, por isso, trabalhosa. Em que pese a
louvável preocupação e mesmo a pressa que as correntes aqui visadas
manifestam em evangelizar o “homem secular”, o que está em questão aqui
é por demais grave para um teólogo se permitir articulações descuidadas,
atropelando as necessárias distinções na abordagem de uma problemática
tão delicada como essa. Heráclito advertia: “Não conjeturemos
levianamente sobre as coisas grandes”.95 Por outro lado, o que busca no
fundo o tão invocado “homem moderno”? Não será, porventura, o Deus
vivo e verdadeiro, mais que qualquer outra coisa, por mais ética que seja?
Decididamente, não será com ética que se vai encher o coração de um
buscador de sentido, como, aliás, de qualquer homem. Ética – o mundo
pode dar, mas não a fé. Agora, para o cristianismo, dar ética apenas é dar
“mais do mesmo”. Pior: dissolver a fé na ética é produzir ideologia, e disso
nosso tempo está farto.
O que dissemos da identi�cação do desejo de sentido transcendente
com Deus vale também em relação ao propalado desiderium naturale videndi
Deum (desejo natural de ver a Deus), aforismo corrente nos atuais meios
teológicos.96 Pois bem, aí também se dá a confusão entre o plano formal,
abstrato e genérico da questão e seu plano material, concreto e especí�co.
De fato, o que todo homem naturalmente “deseja ver” ou conhecer não é
bem Deus, mas, antes, a verdade das coisas, a essência do todo. Mas quem
não quer isso? Quero saber tudo: tal é o desejo, falado ou calado, de todo o
ser pensante. Agora, isso de dizer, sem a menor cerimônia, que todo o
mundo quer conhecer ou ver naturalmente a Deus desa�a o realismo mais
comezinho. Para sustentar essa tese, invoca-se, aqui também, a autoridade
de Santo Tomás, quando este, grave e rigoroso como era, nunca em seus
escritos usou aquele descuidado aforismo.97
Por certo, o homem deseja Deus, mas não assim tão direta e claramente
quanto faz pensar o dito aforismo, mas apenas obscura e confusamente. É
como disse São Paulo no Areópago: o homem procura Deus “às
apalpadelas” (At 17,27). Dizer assim, sem mais, que todo o ser humano
busca a Deus não é verdade, nem de razão nem de fato. Não é uma
verdade de razão porque, como mostramos antes, aquele in�nito não é
clara e seguramente Deus, mas o é apenas de modo nebuloso. Não é
também uma verdade de fato, porque o in�nito desejado por todos é, na
prática de muitos, outra coisa que Deus, mas algo que toma seu lugar,
como o dinheiro, o sexo, a droga e quantos mais ídolos que se oferecem à
opção de cada um.
Entende-se que, por força do hábito, nas culturas pré-modernas, todas
fundamentalmente religiosas, se passasse sem maiores problemas do
in�nito do desejo para o in�nito real. Aí, a distinção lógica entre os planos
formal (ou abstrato) e material (ou concreto) em relação ao desejo de
sentido era culturalmente pouco relevante. Mas, numa cultura (ainda)
hegemonicamente secular, como a nossa, é exatamente na direção
contrária que joga a força do hábito. Sua tendência é dissociar de Deus o
in�nito desejado, desviando seu dinamismo em direção a um in�nito
mundano qualquer. Daí a necessidade hoje de a teologia insistir na
distinção decisiva entre o in�nito de Deus e qualquer outro in�nito. Só
assim a fé será apresentada em sua novidade absoluta e a cultura crítica
receberá a resposta de sentido a que tem direito.
3. Religiões de substituição: sinais do desejo irreprimível do
transcendente
Uma prova e contrario de que a busca do sentido último visa
forçosamente o transcendente, mesmo quando tal sentido é efetivamente
posto no imanente, é o fenômeno tipicamente moderno da chamada
ersatzreligion ou religião de substituição. Pensadores do porte de R. Aron,
K. Jaspers e E. Voegelin mostraram de modo convincente que, na fase mais
ateia da modernidade, a do século XX (e, não por nada, a mais violenta),
houve ideologias políticas que se tornaram verdadeiras “religiões de
substituição”, como o comunismo, o nazismo e o nacionalismo.98 Essas
sobressaíram às outras ideologias, menos duras, mas que também buscaram
ocupar o trono de Deus, como a Justiça de Proudhon, a Humanidade de
Comte, a Vontade de potência de Nietzsche, sem excluir o Dever de Kant.99
Prolongando o pensamento dos citados Aron, Jaspers, Voegelin e outros
mais, como Proudhon, D. Cortés e K. Löwith, o �lósofo político Carl
Schmitt defende a tese de que, em seu núcleo, toda política é
inescapavelmente teológica, enquanto tende sempre a absolutizar seus
ideais. Seria, em verdade, uma pseudorreligião que se ignora. Para aquele
jurista, todo poder é, no fundo, ex gratia Dei e toda guerra é essencialmente
“guerra de religião”, mesmo quando aquele e esta se dão sob a invocação
de entidades seculares, como povo, justiça, revolução e tradição, as quais,
assim mesmo e para todos os efeitos, acabam quase sempre
absolutizadas.100
Entre os escritores, talvez nenhum como Dostoiévski tenha enfatizado
tanto e de modo tão penetrante o desejo compulsivo do divino presente
em todo o homem. Em Os possessos, escreve: “Há no homem a necessidade
de saber e de crer que existe algures (...) uma felicidade perfeita e calma”.
E ainda: “Se acabassem por privar os humanos desse in�nitamente grande,
eles não mais desejariam viver, e morreriam de desespero. O
incomensurável e o in�nito são tão necessários ao homem como o pequeno
planeta em que se move”. Faz um mujique dizer: “O homem não pode
viver sem se ajoelhar. Se nega a Deus, ajoelhar-se-á perante qualquer
ídolo”.101 Em Os irmãos Karamazov, falando da terceira tentação de Cristo,
diz o escritor: “Inclinar-se ao in�nitamente grande: eis toda a lei da
existência humana”.102 Ouçamos, por �m: “O coração humano tem um
vazio que só Deus pode preencher”.103
Pascal dissera o mesmo: “O abismo in�nito só pode ser preenchido por
um objeto in�nito: Deus!”.104 À crítica de Bonhöffer do Deus tapa-buraco,
replicou o �lósofo Antisseri: Se o “buraco a tapar” é o sentido da vida, Deus
é um legítimo “tapa-buraco”.105 Porque criado e, portanto, contingente, o
homem é um adorador nato. Se não adora o Deus verdadeiro, adorará um
deus falso: um ídolo. Como mostram os profetas, os ídolos são criações do
próprio homem, quando toma algo de relativo e o absolutiza (cf. Is 40,19-
20; 41,6-7; 44,12-17; Jr 10,3-4.9; Br 6; Hab 2,18-19). Podem ser o dinheiro,
a tecnologia, a fama ou qualquer outra coisa. No “Documento de Puebla”,
os bispos escrevem: “O homem, já desde o início (...), em vez de adorar ao
Deus verdadeiro, adorou os ídolos...” (n. 185). E põem, entre os ídolos de
hoje, a riqueza (cf. n. 493-494).
Santo Tomás a�rma claramente: “Nada de �nito pode aquietar o desejo
do intelecto; pois, a qualquer �nito que se lhe dê, o intelecto aventa
sempre algo além”.106 Por isso só Deus pode saciar a alma em sua sede de
in�nito. São Bernardo diz muito bem: “O homem, porque capaz de Deus,
não poderá se satisfazer com algo menos que Deus. A alma racional pode
se encher de todas as outras coisas, mas não pode ser preenchida por
nenhuma”.107 Para o �lósofo hebreu A. Heschel, o homem busca muito
mais que a si mesmo: ele anseia por Deus. Só o permanente, o duradouro,
o eterno pode aquietar seu coração, sedento de in�nito. Para aquele
pensador, o ser humano vive, certamente, no tempo, mas é mais que o
tempo. A prova é que tem consciência do tempo e pode medi-lo. Ademais,
no tempo ele identi�ca o permanente, que é como as borlas do vestido da
eternidade.108
Vindo ao pós-moderno, encontramos laicistas que,decepcionados com
as pseudo-religiões políticas de ontem e seus trágicos efeitos, não querem
mais saber de religião, sequer em hipótese. Pretendem ultrapassar o dilema
“ou Deus ou ídolo”, optando pelo devir, pela �nitude. Querem, a qualquer
custo, dar adeus a todo e qualquer deus. Querem simplesmente a terra,
sem qualquer céu. Seriam, segundo Feuerbach, os “ateus consumados”, na
acepção de que, não só não creem em Deus, mas sequer em seus atributos:
onipotência, sabedoria, amor etc. São, pois, não só ateus do sujeito Deus,
mas ateus também dos predicados de Deus.
Mas seria, porventura, possível viver sem religião alguma, verdadeira ou
falsa que seja? Pode-se, por acaso, evitar a alternativa entre Religião
autêntica e Religião de substituição? Teria o “partido da �nitude”
conseguido se estabelecer e vencer a necessidade de in�nito, que até agora
se impôs a toda a humanidade, inclusive aos próprios modernos, embora à
socapa? Não; na prática, os próprios fautores da �nitude, sem exceção,
tomam necessariamente o imanente pelo transcendente, o penúltimo pelo
último, o �nito pelo in�nito. Como todo mundo, eles também trazem um
altarzinho no coração para aí instalarem devotamente seus próprios
deuses, por discretos que sejam. Um porá sua carreira, outro seu �lho, o
terceiro uma mulher, o quarto seu partido, o quinto a ciência e assim por
diante.
É também o que constatava Pascal: “O espírito crê e a vontade ama tão
naturalmente que, na ausência de objetos verdadeiros, têm de voltar-se
para os falsos”.109 E isso vale de modo todo particular para Deus. Lutero
escreveu: “Aquilo, pois, a que prendes o coração e te con�as, isso, digo, é
propriamente o teu deus”, verdadeiro ou falso que seja.110 Goethe não
pensa diferente: “O que cada um acha de melhor, a isso chama de deus,
seu deus”.111 Como se vê, os espíritos mais penetrantes viram que é
impossível ao ser humano viver sem algum absoluto, isto é, sem um deus
qualquer.
Em verdade, a rejeição de toda transcendência que certos pós-modernos
exibem não passa de biombo para esconder os ídolos caseiros que trazem
no coração e que veneram às escondidas, como fazia a Raquel bíblica com
seus teraphim (cf. Gn 31,19.32-35). Vai sem dizer que, enquanto os ídolos
da modernidade clássica eram naturalmente mais fáceis de identi�car,
graças aos grandes templos que lhe foram dedicados, o mesmo não ocorre
com os deusinhos pós-modernos, cultuados que são em capelas discretas e
oratórios ocultos. Em resumo: a pretensa “opção pelo �nito” não passa, em
realidade, de uma opção arbitrária e veleidosa em favor de algum ídolo
inconfessado. Seja como for, entre Deus e o ídolo, tertium non datur.
O próprio ateísmo, por paradoxal que pareça, se reduz também a uma
religião sucedânea, embora sub contrario. Negando Deus, ele não deixa de
pôr em seu lugar qualquer outro sucedâneo dele, como a matéria, a
natureza, o ocaso, a ciência, a justiça, a humanidade ou mesmo o eu,
realidades que, para isso, foram devidamente idolatradas. Para Santo
Agostinho, o ateísmo, como negação total de qualquer deus, só existe como
ilusão. Diz: “Forçosamente, querendo ou não, o homem é servo das coisas
nas quais põe sua felicidade”. Portanto, ele inevitavelmente adora algo que
tem por superior. O ateísmo, para Agostinho, não passa de “outro gênero
de idolatria”. É um “culto pior e inferior” aos demais.112 É do mesmo
parecer o escritor F. Werfel: “O ateísmo materialista é também apenas uma
religião, a pior de todas”.113 Não é à toa que muitas vezes o ateísmo se opõe
agressivamente à religião. É porque ele funciona precisamente como uma
religião. Notou-o Kafka: “O bolchevismo levanta-se contra a religião
porque ele próprio é uma religião”.114 Mesmo o laicismo pode se tornar
uma religião sucedânea, e inclusive das mais fundamentalistas.
Mas a forma mais sutil de religião de substituição é a própria religião,
quando se faz substituta de si mesma. Aí uma forma falsa de religião tomou
o lugar da forma verdadeira. Isso acontece, em primeiro lugar, quando a
religião perde sua essencial transcendência e se mundaniza, tomando, por
exemplo, uma forma fundamentalmente política, como nos casos de certa
“cristandade” ontem e da sharia hoje. Um segundo caso em que uma forma
falsa de religião substitui a verdadeira acontece quando a religião decai
ainda mais baixo que o mundanismo, assumindo as formas pervertidas do
satanismo, do fanatismo e do terrorismo. Se no primeiro caso o Mistério
sacrossanto foi substituído pelo mundo, aqui o foi pelo submundo da
irracionalidade. Assim falsi�cada, a religião torna-se uma potência niilista,
na medida em que, desacreditada, favorece o secularismo. Entretanto, para
falar como Pascal, a verdadeira religião zomba da falsa.
A razão de fundo da impossibilidade de despedir de�nitivamente Deus,
sem substituí-lo por um ou vários ídolos, é que o homem é razão ou
espírito e este está estruturalmente aberto ao universal, ao todo, ao in�nito,
ao transcendente, ao meta-físico, ao sobrenatural. O homem tende
efetivamente a pensar e a querer tudo. Essa é sua constituição natural. A
facilidade com que se deixa seduzir pelo parcial e �nito se explica
justamente por sua sede ardente de totalidade e in�nito. E essa não há
como não desalterar: se não é com água pura, será com água malsã. É
como disse o profeta: “Abandonaram a mim, fonte de água viva, para cavar
para si cisternas rachadas, que não retêm água” (Jr 2,13).
A compulsão pelo sentido último foi vista claramente por Santo Tomás.
Diz que, sem um �m último qualquer, mesmo �nito e relativo, baixo e
falso, o homem não moveria um dedo. Explica que toda busca humana
pressupõe um termo �nal que sustenta seu dinamismo. Sem esse termo,
não há como mover toda a série dos �ns intermediários.115 É como na
“copa do mundo”: é a Taça Jules Rimet que anima toda a parafernália que a
copa comporta. E, se a sabedoria se de�ne pela busca dos valores últimos,
para Santo Tomás não deixa de ser sabedoria também “tomar um valor
terreno pela causa mais elevada e pelo �m último”.116 Diz, contudo, que
essa é uma sabedoria equivocada, uma “sabedoria má”, que Paulo chama
“sabedoria do mundo” (1Cor 3,19).117 Trata-se, em verdade, de um sub-
rogado da sabedoria autêntica.
Portanto, se o sentido último não é Deus, será necessariamente qualquer
outra coisa. É como a�rma expressamente o Angélico: “Quem se afasta do
�m devido é obrigado a estabelecer para si algum �m indevido”.118 E isso
por força do que chamamos a “lei da ultimação”. Por exemplo, o hedonista
é tal porque, deixando de �xar no transcendente verdadeiro sua felicidade
mais elevada, �xa-a no nível da cama e mesa. E é nesse nível baixíssimo
que está sua religião real. Calvino diz que o espírito humano é uma
máquina de produzir ídolos.119 Mas a fé no Deus vivo e verdadeiro, e só ela,
pode sustar tal produção. A mais elementar antropologia, tanto a cultural
quanto a �losó�ca, mostra que o homem é um animal religiosum, um
adorador, um sacri�cador (de si ou de outro), quer se assuma ou não como
tal. Devido à sua natureza espiritual e à sua abertura transcendental ao
transcendente, o homem não tem como driblar a alternativa: ou o
Transcendente verdadeiro (Deus) ou o transcendente falso (idolátrico, sub-
rogatório).
Mesmo os que optam por um grande valor ético como a justiça – posta
no acme da escala axiológica, à exclusão de todo Legislador transcendente
– acabam transformando esse valor num novo ídolo, embora menos sinistro
que o da raça ou da nação, mas não menos mortífero, como sucedeu com
o comunismo. Justiça também fora o grande ideal de Proudhon, como
mostrou em seu tratado do mesmo nome. Mas, por mais que o �lósofo
entenda aí a justiça como ideia puramente transcendental e não como
realidade objetiva, recusando-lhe expressamente a adoração, exalta,
contudo, de tal modo esse valor que acaba idolatrando-o.120 Efetivamente,
a ética não é por sua natureza transcendente. É-o apenas em seu
fundamento e em seu �m, que é Deus. Desse modo, desconectada dele, a
ética, como toda realidade humana, por mais nobreque seja, se degrada
em ídolo e se volta contra si mesma, autorizando a injustiça em nome da
justiça. Que a justiça, uma vez idolatrada, seja também tirânica e
sangrenta, provam-no claramente os horrendos crimes perpetrados, no
século XX, pelos regimes marxistas, que, em nome desse ídolo,
massacraram milhões de cidadãos, e não só ricos.
Dão sinal de ingenuidade os teólogos que imaginam que quem opta pela
justiça opta sem mais por Deus. Como dissemos, confundem aí a abertura
abstrata ao transcendente e seu preenchimento concreto, que
apressadamente interpretam como sendo univocamente Deus. Além de
bater de frente contra a natureza da fé, esse equívoco se choca contra a
consciência dos sujeitos morais. Como vimos, a efetuação concreta da
busca de sentido último é uma obra da liberdade, dependendo, portanto
do sujeito e de sua consciência, tanto em seu discernimento quanto em sua
opção. E não existe magia hermenêutica que tenha o condão de
transformar, como que pelas costas do sujeito, uma opção que se quer
explicitamente ateia (em verdade, idolátrica) em opção implicitamente
religiosa e de fé.
A verdade é que, quando o transcendente se degrada em imanente,
instala-se a violência. Tal foi a experiência histórica de ontem no Ocidente
(com a “cristandade”, enquanto não hesitou em usar a violência
inquisitorial, missionária e das cruzadas em benefício e sob a invocação da
fé) e de hoje no Oriente Médio (com o fundamentalismo islâmico). Mas o
mesmo sucede no caso inverso, isto é, quando o imanente se alça a
transcendente, como ocorre com os totalitarismos. De fato, ao não se dar
espaço à transcendência, é a imanência que invade sub-repticiamente seu
lugar. Surge então o imanentismo, que é sempre idolátrico e, por isso,
sedento de sangue.
Por isso também, somente reconhecerá César como César aquele que
reconhece Deus como Deus (cf. Mc 12,17). Só sabe o que é relativo quem
sabe o que é o absoluto. Só conhece realmente o mundo como mundo
quem conhece a Deus como Deus. Como se vê, só a transcendência guarda
com segurança a imanência e a gere bem. Em suma, só a opção por Deus
em sua divindade mantém o mundo em sua mundanidade.
4. Fuga diante da inevitável questão do transcendente
Vimos que o desejo de in�nito é implacável. Ele não pode ser destruído
nem pela violência, como tentaram os países comunistas, nem pela
sufocação cultural, como pretendeu a modernidade laicista. Constata-o o
Vaticano II: “A própria civilização moderna, não por si mesma, mas porque
demasiadamente comprometida com as realidades terrestres, pode muitas
vezes di�cultar o acesso a Deus” (GS 19, 2, in �ne). No fundo, não existem
“homens do �nito” e “homens do in�nito”, como pretendeu Lynch.121 Todo
homem é voltado para o in�nito.
Vimos também que o homem pode responder mal a esse desejo: tomar o
inde�nido pelo in�nito, em suma, pôr o ídolo em lugar de Deus. É quando
o desiderium Dei deu lugar à cupiditas terrenarum. Isso é tanto mais verdade
quando se sabe que o amor à mentira espreita sempre o homem. O Salmo
4 conhece a existência de homens “de corações fechados”, que têm o
“gosto do nada” e que “correm atrás da mentira” (v. 3). Diz também que
estes buscam a felicidade na “abundância de seu trigo e de seu vinho novo”
(v. 8), e não na “luz que se levanta da face de Deus” (v. 7).
Por corresponder à natureza espiritual do ser humano, a questão do
sentido é inescapável. Mesmo assim, há sempre quem tente fugir dela
através das mais variadas formas do divertissement pascaliano.122 As formas
mais comuns hoje são o álcool, a droga, o sexo fácil, a mídia, en�m o
barulho. Seria à toa que, segundo um mito, o deus do vinho, Baco, foi
criado por Sileno, o sátiro guardião da “sabedoria do absurdo”? Busca-se
justi�car a fuga perante a questão do sentido apelando para a indiferença
ou neutralidade, às vezes sob as vestes �losó�cas do ceticismo ou do
agnosticismo.123 Mas essa opção pela não opção equivale de fato a uma
opção: a opção por um sentido curto. Conquanto curto, esse não deixará
de ser, no caso, o sentido último.
Com efeito, não se importar com a questão do transcendente é como
não se importar com respirar, comer, beber e dormir. Se alguém não se
importa com Deus, se importará com qualquer outro sucedâneo: a família,
o trabalho, o próprio ego. Como seria possível uma “indiferença
transcendental” em relação ao transcendente? Aqui só é possível a
“indiferença categorial”: não se importar com essa ou aquela categoria de
transcendente, mas não com transcendente nenhum; assim como é
possível não se importar com essa ou aquela categoria de água, mas não
com água nenhuma.
A história nos mostra várias propostas de vida que pretendem fazer
abstração de todo sentido transcendente. Essas oferecem uma sabedoria
adequada apenas para esta vida. Conhecemos várias dessas propostas. Vem,
em primeiro lugar, o epicurismo, que apresenta um estilo de vida, digamos,
nobremente prazeroso, sem preocupações com os deuses e com outra vida.
Essa �loso�a foi atualmente reeditada por alguns pensadores, que lhe
agregaram ecleticamente elementos provindos de outras tradições.
Também o Rubayat, famoso poema de Omar Khayyam, descarta de caso
pensado qualquer interesse pela transcendência, para limitar-se a gozar do
“vinho” da vida. “Os professores e os sábios silenciosos morreram sem se
entenderem no tocante ao ser e ao não-ser. Meus irmãos! Ignorantes,
continuemos a saborear o suco dos bons cachos e deixemos que os grandes
homens se regalem com as passas.”124 O Qohélet igualmente, dando-se
conta de que tudo é vaidade, se resigna a uma vida honesta nos quadros
desta existência passageira, conquanto não negue certa dimensão
escatológica da vida.
Citemos �nalmente a �loso�a chinesa, tal como foi exposta por Lin
Yutang e sobre a qual nos deteremos um momento.125 Ela propõe um
terrenismo positivo e tranquilo, feito de harmonia e benevolência,
destituído de preocupações propriamente religiosas, como, de resto, se
pode constatar no próprio confucionismo. É, em suma, a mensagem de um
amor sereno pelo existente. Protótipo dessa atitude, T’ao Yüanming (+427
d.C.), um dos maiores poetas chineses, viveu de bem com a vida, sem ter-
se minimamente inquietado com questões transcendentais, como as
relativas à alma, à redenção, ao céu e a Deus, tendo, no �m, morrido com
toda a serenidade.126
Contudo, de acordo com o mesmo Yutang, também os chineses fazem a
experiência da “evaporação da vida”. Também para eles a vida é uma festa
que chega ao �m, como tudo o mais. Ao término de uma reunião feliz, há
quem constate resignado: “Até a feira mais gloriosa deve chegar ao seu
�m”. Também os poetas de lá cantam a precariedade da vida. Um deles, Li
Po, escreve: “Nossa vida �utuante é como um sonho”; e outro, Wang
Hsichin: “Sejam longas ou curtas nossas vidas, todos caminhamos para o
nada”. Evocam igualmente a saudade da amada, a tristeza do entardecer, a
fragilidade da �or da cerejeira, o desaparecer do céu primaveril e o
minguar da lua. Toda a poesia chinesa é carregada de um toque de tristeza,
não menos que sua pintura, envolta em geral na úmida névoa do mistério.
Disse A. Keith: Quanto menos os chineses esperam por outra vida e “creem
que este mundo é um céu, tanto mais procuram fazer dele um céu de
fato”.127
Portanto, como qualquer ser humano, tanto o chinês como o epicurista
fazem a experiência da contingência, do taedium vitae, do mal-de-vivre, da
angústia sem objeto, assim como do anelo de felicidade e do sonho do
paraíso. Mais: nenhum deles pode se esquivar das “crises existenciais”, tais
como a ruptura de uma relação amorosa, a perda de um ente querido, um
fracasso pro�ssional, afetivo, escolar ou mesmo militar, bem como o
sentimento de culpa. Apertando mais a questão, não há quem possa driblar
os grandes e irreparáveis males antropológico-existenciais de que Buddha
fez a experiência, ou seja: a doença, a velhice e a morte. Essas experiências
assinalam a “impermanência” inelutável de toda existência, com suas
inescapáveis “perturbações básicas”.128
Com efeito, quem de nósredescrever nosso zeitgeist niilista, não mais destacando,
como no volume I, os sintomas empíricos do niilismo, mas agora os
sentimentos com que o chamado “homem moderno” vive o niilismo.
1. Descrição da experiência atual de niilismo
Relembremos que a questão do sentido não é uma questão exclusiva do
chamado “homem moderno”. É, antes, uma questão radicalmente humana,
sendo, por isso, universal e perene. O próprio fenômeno das religiões,
como “comunidades de sentido”, dá testemunho do caráter universal e
perene dessa questão. Assim, todo e qualquer ser humano pode dizer,
como Bernanos: “O demônio de meu coração se chama ‘para quê?’”.17
De fato, é a própria vida que confronta o homem com a pergunta acerca
do sentido, sobretudo nas chamadas situações-limite. Não só: a vida como
tal já é em si mesma problemática. Ela se apresenta como um “mistério
natural”, conquanto só possa ser resolvido pelo Mistério sobrenatural. Pois
a vida, em si mesma, é uma coisa de que o homem não pode livremente
dispor. Ela vem de mais longe e vai para mais longe que ele. A Evangelium
Vitae diz com razão que a vida, com todos os seus desa�os, é uma
“realidade sagrada”, digna de “veneração”, um “dom esplêndido” (EV 22).
Sem embargo, a questão do sentido é posta e vivida por cada tempo ao
modo desse tempo. Ora, como dissemos, o nosso é um “tempo de
transição”. Como era vivido o niilismo até ontem? Como pode, pois, ser
descrita, de imediato, a experiência do niilismo? Podemos designá-la
através de várias expressões, como senso do “absurdo”, como sensação de
uma “vida insípida” e, especialmente, como sentimento de um “mundo
desencantado”. Eis, pois, três expressões particularmente signi�cativas do
atual zeitgeist niilista. Comentemo-las.
Comecemos com o “desencantamento do mundo”, expressão cunhada
por Schiller, mas retomada e difundida por Max Weber. Foi a metáfora
mais usada, especialmente na academia, para descrever a “situação
espiritual” do moderno mundo secularizado. Com essa expressão quer-se
dizer que, ao contrário do mundo antigo, o moderno, despojado que foi da
presença de forças tidas por ultraterrenas, deixou de ter magia. Pior: o
mundo está destituído de qualquer sentido ultramundano.18 No mundo
pré-moderno, ao contrário, o mundo era habitado por realidades
encantadas e as coisas tinham sentido. Quando o absurdo irrompia,
ameaçador, era vencido �nalmente pela fé num sentido último: Deus e sua
providência. Vivia-se na convicção de que “no �m, tudo dá certo”.
Ora, com a modernidade racionalizante, que busca explicar tudo a
partir de causas intramundanas, o edifício daquele mundo, saturado de
sentido, ruiu. O encanto das coisas desvaneceu. O “canto do sentido”
deixou de ressoar. Soa apenas a fala objetiva da ciência, traduzindo a voz
seca das coisas. Fora dessa linguagem, as coisas silenciam.
Além de “desencantamento”, há outra metáfora que descreve bem o
pathos do niilismo atual: “vida insípida”. Essa designação é mais simples e
popular que “desencantamento”. Parece mesmo que hoje a vida não tem
mais sabor, que perdeu seu sal. O próprio “moderno” não tem mais “apetite
existencial”. Perdeu o gosto de viver. Em outras palavras, a vida tornou-se
sem graça, enfadonha, desinteressante. Tal é o “sentimento da vida” na
atual cultura hegemônica.
Venhamos à terceira expressão para descrever o pathos niilista de hoje:
“vida absurda”. Seria uma vida sem porquê e, por isso mesmo, sem
inteligibilidade. Se ainda canta, é desa�nando. Mas “desa�nado” não é
justamente o sentido literal da palavra “absurdo”? Nessa acepção, a vida
ostenta um per�l confuso e caótico, destituída que foi de toda lógica ou
racionalidade que não seja a puramente técnica ou instrumental.
Outras metáforas para o atual niilismo são tiradas, vez por vez, dos
vários âmbitos vitais da existência humana. Se pensarmos em poesia,
diremos que a vida é sentida hoje como “prosaica”, isto é, trivial, ordinária,
rotineira. Se usarmos o código da cor, a vida parecerá “desbotada”, ou
apresentará um quadro monocolor. Se utilizarmos a linguagem da luz, a
existência se apresentará “apagada”, sombria, envolta em neblina, quando
não em trevas. Recorrendo à metáfora oriente, ligada à da luz, falaremos de
uma sociedade desorientada.19 Em termos de paixão, dir-se-á que a vida
carece de intensidade, que falta entusiasmo de viver, fervor para ir adiante,
motivação para lutar. Se evocarmos, por �m, a ideia de alma, falar-se-á
numa existência “des-animada”, isto é, sem vitalidade, ânimo, vibração: em
suma, numa vida sem vida: pálida, exangue, moribunda.
2. Incidência social do niilismo, diferenciada por classe
Como mostramos no volume I, o niilismo não atinge por igual todas as
classes sociais. Isso vale não só em seus sintomas empíricos, mas também
no pathos com que é subjetivamente vivido.20
De fato, o niilismo é, antes de tudo, uma disposição espiritual própria
das minorias cultas, mas que é projetada por elas sobre a sociedade por
inteiro, fazendo com que a disposição niilista venha a constituir o clima
dominante, conquanto não geral. De fato, como bem disse Goethe, o
espírito do tempo não passa do espírito dos senhores do tempo.21 Tais
senhores seriam efetivamente, para falar com o Apóstolo, como os
“espíritos do ar” (cf. Ef 2,2) que “fazem o sol e a chuva” de uma época,
enquanto de�nem o “clima” ou “espírito” do tempo. São, de fato, espíritos
que obscurecem, com a fumaceira de seu niilismo, o sol do sentido,
embora com efeitos diferenciados, na medida em que vitimam maiormente
as classes médias, e não tanto o povo, que pode ainda levantar, por defesa,
o escudo de sua sabedoria milenar.
Dissemos, em outro capítulo do volume anterior, que o chamado pós-
moderno signi�ca, no fundo, pós-niilismo, pois tudo indica que estamos
entrando, efetivamente, numa fase pós-niilista da cultura.22 Se a expressão
“mudança de época” deve ser preferida à expressão “época de mudança”, é
precisamente porque a parábola da idade moderna está declinando, ao
mesmo tempo em que ascende a parábola de uma nova idade, cujos
contornos positivos estão apenas se delineando.
Como se pode deduzir, a situação espiritual de hoje, longe de ser
simples, é extremamente complexa e contraditória, como sucede, de resto,
nos períodos de passagem em geral. Para esclarecer, de forma breve, essa
situação, operemos com dois recortes: um diacrônico (o histórico), em que
examinamos como era o niilismo até ontem, isto é, na modernidade; e, a
seguir, como ele se apresenta hoje, nos tempos ditos pós-modernos; e outro
sincrônico (o social), em que faremos uma análise de classe de como, em
cada um dos referidos momentos, a elite e a massa respectivamente se
posicionaram.
Acerca do pathos niilista vigente até ontem, isto é, no seio da
modernidade declinante, já falamos o bastante, de modo que não
precisamos aqui nos delongar. Digamos apenas, em termos de classe, que a
elite intelectual moderna, depois de ter gerado e difundido uma visão
secularista da vida, a �m de obviar a função da religião que fora excluída,
elaborou toda sorte de ideologias, elucubrando, como consumação de sua
ambição, o aberrante projeto de um “mundo sem Deus”. Quanto às bases
populares, a religião manteve, também na Idade Moderna, sua vigência,
embora reprimida e deslegitimada pelo bem arquitetado “blefe intelectual”
de seu declínio irreversível.23
Vindo agora ao pathos niilista hoje, ou seja, em tempos de pós-
modernidade ascendente, pode-se constatar a reemergência signi�cativa,
no plano das classes cultas, da “questão do sentido”, sinalizada justamente
pela preposição “pós”. Pós-moderno não seria apenas pós-ideológico e pós-
secular, mas também, e por isso mesmo, pós-niilista. Contudo, a
intelligentsia pós-moderna não responde à decisiva questão do mesmo
modo. Dá-se antes, em seu seio, uma polarização: boa parte dela se abre ao
religioso e se reaproxima das bases religiosas; outra parte, menor, continua
a resistir à nova sensibilidade, colocando-se na defensiva e resignando-se a
um ateísmo frouxo, que �ca a um passo do niilismo, enquantoestá imunizado de experiências análogas da
que fez o jovem Agostinho, ao perder um amigo queridíssimo, tendo, por
isso, que se confrontar sem escape com a questão do sentido da vida?129
Vimos que, há quatro mil anos, Gilgamesh, como narra a epopeia que traz
o mesmo nome, viveu uma experiência parecida: o herói, inconformado
com a morte do amigo Enkidu, decide ir em busca, custe o que custar, da
árvore da imortalidade, mostrando assim que o ser humano não se
contenta com o que essa vida pode dar.
Por �m, a vontade de in�nito e de eterno emerge também na própria
experiência do amor, cujas juras falam sempre de �delidade eterna,
ignorando o convencional “até que a morte os separe”. “O amor é mais
forte do que a morte” (Ct 8,6). Dido, sobre o corpo de Siqueu, jura não
desposar mais ninguém. Segundo a conhecida frase de G. Marcel, “amar é
dizer: Tu não morrerás jamais”. Os apaixonados querem deter o curso do
tempo no momento de enlace. Já o êxtase místico requer, com mais força
ainda, a suspensão do mundo espaçotemporal, como quando Pedro, na
trans�guração do Tabor, exclama: “Senhor, como é bom estarmos aqui!
Façamos aqui três tendas” (Mt 9,5). Por ine�cazes que sejam essas
experiências, não deixam de testemunhar, de modo inequívoco, a “vontade
de eternidade” que habita o coração do ser humano.
Mas, se todas essas experiências são naturais e universais, surge então a
pergunta: Não apontam elas para uma realidade objetiva, que as
transcenda e lhes dê satisfação? Na “�loso�a chinesa”, tal como foi visto
acima, não haveria lugar para o transcendente. Essa visão, contudo, não
representa a totalidade da �loso�a daquela grande e antiquíssima cultura.
Pensemos em duas importantes correntes do pensamento chinês, o taoísmo
e o budismo chan, as quais não só admitem a existência do transcendente,
que chamam de Tao e de Nirvana respectivamente, mas a têm como a
realidade por excelência, se não única. E mesmo na visão geral que têm os
chineses do mundo, especialmente entre os confucianos, nunca falta o
conceito-chave Tian, geralmente traduzido como “céu”.
Não se trata, com essas observações críticas, de justi�car a adoção do
método pastoral, que Bonhöffer achava desonesto, que é o de explorar os
momentos de dúvida e fraqueza do homem para introduzir sub-
repticiamente a questão de Deus.130 Trata-se, antes, de apelar para a
verdade humana mais profunda onde ressoa, invencível, a exigência do
in�nito, exigência essa que o teólogo citado ousou questionar. Pois, ao
julgar que o homem moderno tinha-se �nalmente libertado do “a priori
religioso”, da necessidade de Deus, tornando-se, assim, radicalmente
secular, Bonhöffer cometeu um equívoco imenso.131 Não percebeu que a
religião, em sua essência, não é uma questão da história e de suas
vicissitudes, mas uma questão do homem e de sua natureza mais profunda.
5. Os modernos perante o desejo de in�nito: diferentes
posições
Entre os intérpretes modernos do desejo de in�nito, comecemos por
referir os pensadores de linha cienti�cista. Para grande parte desses, o
desejo de in�nito, especi�camente o desejo religioso, não faz parte da
condição humana, podendo ser desconstruído. Esse desejo nasceria da
ilusão e seria feito de ilusão. Eles creem que o progresso cientí�co, na
medida em que desvela cada vez mais a realidade, desvanecerá essa ilusão
e o homem viverá então de acordo com a “realidade”. Para eles, o homem
maduro, libertado da ilusão religiosa, se contentaria com desejar objetos
“reais”, como o amor humano (Feuerbach), a ciência (Comte), a história e
sua luta de classes (Marx), e por aí vai.
A maioria dos marxistas, em particular, dá uma interpretação
puramente sociológica do desejo de in�nito. Consideram-no como um
problema de pequeno-burgueses ou “coisa de românticos e
existencialistas”.132 Digamos logo: essa é uma visão tão super�cial e
contradiz tão claramente a experiência humana comum, feita de mal e
culpa, de sofrimento e morte, que mal merece uma refutação. Para mostrar
que problemas existenciais não são apanágio dos ricos e cultos, bastaria
lembrar um dos clássicos da música sertaneja brasileira: “Tristeza do Jeca”.
Contudo, à diferença dos marxistas, a grande maioria dos pensadores de
hoje reconhece que o homem é, realmente, habitado pelo tormento do
absoluto ou, se quisermos, pelo daimon da transcendência. Ilusório não
seria então o desejo de in�nito, mas seu objeto. Enquanto o desejo é real e
persistente, seu objeto seria ilusório, devendo ser abandonado. O que varia
nesses pensadores é apenas o juízo que dão desse desejo. Entre eles há os
resignados, que julgam tal desejo enganoso e, ao mesmo tempo,
insuperável. Conformando-se com esse paradoxo, receitam a “opção pelo
�nito”. Mas há também os exaltados, que se mostram otimistas em relação
ao desejo de in�nito, que entendem não como busca de um inexistente
in�nito divino, mas do in�nito desenvolvimento humano. Descrevamos
essas duas categorias.
1) Os resignados ou pessimistas
Esses julgam que a sede humana de sentido é implacável e aplacável ao
mesmo tempo, enquanto essa sede, não podendo ser erradicada, pode,
pelo menos, ser controlada. Para eles, o homem precisa renunciar a todo e
qualquer absoluto, seja ele Deus ou seus sucedâneos, e resignar-se à
�nitude radical e insuperável de sua condição. Assim Lacan e outros
pensadores atuais, como U. Galimberti, S. Natoli e A. Comte-Sponville.
Temos também M. de Unamuno, que deseja ardentemente Deus e a
imortalidade, mas não crê que essas coisas existam. Heidegger anseia pelo
Sein, mas o vê como inacessível. Sartre diz que o homem tem paixão por
ser Deus, mas que, no �m, fracassa. Para Camus, o homem quer um
sentido absoluto, mas só tem por sorte o relativo. Malraux fala da incontida
esperança humana, mas se trata de uma “esperança sem terra prometida”.
Beckett, em Esperando Godot, descreve, de forma dramática, o homem
como um ser à espera, mas trata-se aí de uma espera vã.
Por seu lado, K. Jaspers a�rma peremptoriamente: “Sem transcendência,
não há existência”. Sua transcendência, de�nida por ele como a
capacidade de o homem ir além de sua circunstância, revela-se em
particular nas chamadas “situações-limite”: luta e dor, culpabilidade e
morte. Essas são as constantes de toda a existência humana, mudando
apenas fenomenicamente, não substancialmente. São invariantes
irredutíveis e insuperáveis em si mesmas, de tal modo que não podem ser
mudadas, mas tão somente clari�cadas. Todavia, se, para aquele �lósofo, as
situações-limites, são um muro intransponível, esse muro pode ser, pelo
menos, pintado pelos humanos, por exemplo, através da arte e mesmo da
religião.133
Eis, pois, a que se reduz o papel do homem e de sua liberdade: maquilar
a realidade através da arte, como já teriam feito os gregos, segundo o
Nietzsche do Nascimento da Tragédia. Seja como for, Jaspers reconhece,
melancólico: “no �m, o que há é o naufrágio”. A “fatalidade do naufrágio
universal”: tal é o veredicto categórico que, segundo aquele pensador, a
razão apõe a toda existência.134 Acrescenta, em compensação: Se o homem
não pode salvar do naufrágio o navio da existência, pode, contudo,
escolher onde e quando naufragar. Mas, que consolação! Magra, em
verdade!
2) Os exaltados ou otimistas
Esses, mais numerosos que os anteriores, podem se chamar também
in�nitistas ou transcendentalistas. Para eles, o desejo de in�nito é o chão
em que se enraíza o impulso humano para o crescimento “sem �m”, na
dupla acepção: sem uma �nalidade e sem um �nalizar. O ser humano seria
– como lobrigou Dostoievski numa novela – um “engenheiro” que nunca
cessa de construir, sendo seu objetivo na terra o próprio processo de
criar.135 O desejo seria a alma da “dinâmica da transcendência”, pela qual o
homem pode avançar e subir sempre mais. Haveria, pois, aqui, uma
transcendência (potencial) sem transcendente (real). É como um vértice
que vai se preenchendo à medida que se vai abrindo ao longo da história.
A �gura mais expressiva da visão de um dinamismo sem �m é a do
super-homem nietzschiano. Seria oalguns
poucos intelectuais se enrijecem num ateísmo fora de moda, irônico,
dogmático, além de polêmico.
Já nas bases populares da pós-modernidade, devido ao relaxamento da
hegemonia laicista, dá-se uma soltura da pulsão religiosa. Esta �oresce em
três direções, duas extremas e uma média: as extremas são, por um lado, a
explosão das novas formas de religiosidade e, por outro, o enrijecimento
fundamentalista, enquanto a tendência média, a mais promissora, vai na
direção da renovação das grandes tradições religiosas.
Seja como for, é inegável que há, nesse tempo de transição, uma
sobreposição relativa de duas parábolas em curso. A da pós-modernidade
ascende, acavalando-se à da modernidade, que declina, enquanto os
respectivos vetores se embaralham, tornando difícil seu discernimento.
Tomando, porém, o processo como um todo e buscando captar sua
principal linha de força, podemos discernir o início da “passagem epocal”
da modernidade secularista e niilista para a pós-modernidade aberta ao
mistério e à sua sabedoria.
Mais dados sobre o espírito do nosso tempo, no que concerne à questão
do sentido, serão dados nos scholia que seguem.
III. SCHOLIA
1. Dramatismo inédito com que é posta hoje a questão do
sentido
Como dissemos e repetimos, a questão do sentido acossou a
humanidade desde sempre e universalmente. Disso podemos aqui dar
algumas ilustrações, todas arcaicas. A primeira é o escrito egípcio de mais
de quatro mil anos atrás: Diálogo do desesperado com sua alma.24 Aí se nos
mostra um “cansado de viver”, perguntando-se, no meio das a�ições que
sofre, se não seria melhor libertar-se da vida em de�nitivo. A solução �nal
que aí se dá aparenta-se à do Eclesiastes: contentar-se com o que a vida
tem de bom. O Diálogo do harpista, contemporâneo do Diálogo do
desesperado, transmite a mesma �loso�a: é inútil se lamentar e desesperar a
respeito das adversidades da vida. Essas seriam leis da natureza, às quais o
homem deve se resignar, procurando tirar da vida o que ela tem de bom.
Outra ilustração, posterior às duas anteriores de um par de séculos, é a
mais antiga epopeia que conhecemos: Gilgamesh.25 Registro do desejo
humano de imortalidade, como sentido desta vida mortal, conta esse texto
que Gilgamesh, o rei de Uruk, inconformado com a morte de seu caríssimo
amigo Enkidu, enfrenta mil perigos para se apossar da “árvore da vida”,
cujo fruto outorgaria a almejada imortalidade. Mas, quando o herói, já de
posse de uma muda daquela árvore, está para chegar à sua cidade, eis que
aparece uma serpente que lhe arrebata o ramo miraculoso. Desespera-se o
rei, mas tem que �nalmente se conformar com o destino inelutável de todo
o mortal: a “terra sem retorno”.
Dos documentos antigos relacionados ao sentido, conhecemos também
o mito grego de Sileno, os livros bíblicos do Eclesiastes e de Jó e outros mais
que recordamos no primeiro volume de nossa trilogia.26 Mas que são esses
textos antigos, bastante raros, em confronto com a torrente da literatura
moderna falando do “absurdo da vida”, do “vazio existencial” ou da “crise
de valores”? Os antigos tinham certamente o “problema do mal”, mas não
do “mal de viver”, como têm os modernos. E mesmo quando os antigos
sentem o “mal de viver”, como no caso do budismo, eles, ao contrário dos
modernos, conhecem a saída, que é, no caso referido, precisamente o
Nirvana. A sociedade moderna é a primeira e a única, na história do
mundo, que problematiza a vida como tal, de sorte que se pode falar aqui
de um “inédito cultural”.
Talvez não haja nenhum sintoma mais claro do ineditismo cultural que
o pathos niilista hoje representa do que o próprio termo “sentido”, de uso
tão frequente hoje. Com efeito, no mundo antigo, essa palavra mal existia.
Os gregos tinham noûs e lógos, mas são termos que signi�cam muitas outras
coisas além de “sentido”. Entre os latinos, as palavras mens, ratio e até
sensus não têm a carga existencial de nosso “sentido”. Para dizer o que
entendemos por “sentido”, os antigos falavam, de modo genérico e difuso,
em termos de �m último, bem supremo, vida digna, imortalidade,
felicidade e outros. Os hebreus dispõem de um rico e alto vocabulário para
nosso “sentido”, como Fim, Esperança, Salvação e principalmente Palavra
(Dabar = Lógos). Contudo, entre eles também não encontramos um
equivalente linguístico unívoco ao nosso termo “sentido”.
Que signi�ca esse estranho e contrastante fato linguístico? Signi�ca que,
se os antigos não tinham um termo próprio para isso que chamamos
“sentido”, era porque para eles essa questão não era problemática: eles
viviam sua vida com sentido. Se nós, ao contrário, falamos tanto em
sentido, é porque nossa vida está com dé�cit de sentido. Digamos, falando
em geral, que eles tinham a resposta sem a pergunta (formalizada),
enquanto nós temos a pergunta sem a resposta (formalizada), o que deixa a
noção de sentido, apesar de muito evocada, semanticamente imprecisa.
Para sermos claros, digamos que o que faz a diferença entre modernos e
pré-modernos não é a questão do sentido como tal, mas a extensão e a
intensidade com que essa questão é posta. Quanto à extensão, o niilismo
atinge, embora não de modo homogêneo, a dinâmica inteira da cultura
moderna. Quanto à intensidade, nenhuma cultura levantou a questão do
sentido de modo mais insistente, obsessivo, angustiado e quase
desesperado do que a moderna. É que nunca como hoje houve tanta falta
de sentido, em sua acepção antonomástica. De fato, se reduzíssemos a três
ou quatro as coisas que mais fazem falta no mundo atual: comida,
liberdade, paz e sentido, esta última é a maior e a mais grave. E não é o
sentido como o oxigênio espiritual de uma cultura? Daí clamar-se hoje
monotonamente por “sentido, sentido, sentido”.
Ademais, o dramatismo da atual crise de sentido é tanto maior quanto
mais determinante é a atual “transição de época”, por envolver
precisamente a questão supremamente determinante: a da Realidade
omnideterminante. Tal dramatismo faz com que a grande linha de
demarcação na cultura moderna não corra entre capitalismo e socialismo
nem mesmo entre democracia e autoritarismo, inclusive totalitário, mas
antes entre secularismo e religiosidade. Esse confronto, em verdade, traduz
para nosso tempo a gigantomaquia que, desde o início da história, se trava
entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas, em suma, entre Deus e o Nada, e
que as Escrituras representam como luta entre o Criador e Leviatã ou
Tiamat (cf. Jó 3,8; 7,12), encarnações das potências do Mal.
Relembremos, todavia, que o niilismo, com seu tônus dramático, não
vale sem mais para a cultura geral, mas, sim, para a cultura dominante. A
angústia do absurdo é a sorte ou, melhor, a opção das “classes cultas”,
estendendo-se a partir e através delas pelo conjunto da sociedade. Trata-se
de uma angústia tanto mais profunda quanto maior se mostra a tragédia
que a provocou: a “morte de Deus”. Essa tragédia, realmente suprema, não
suscitou o heroísmo supremo que o evangelista do Super-homem
augurava. Ao contrário, produziu nas almas um niilismo avassalador. Pois,
quando se apaga o sol, como impedir que as trevas cubram a terra (cf. Mt
27,45)? Retirando-se a “pedra angular” do mundo, como sua cúpula não
ruiria, esmagando tudo (cf. Mt 21,42.44)?
2. Causa do dramatismo atual acerca da questão do sentido:
a “morte de Deus”
Como chegamos a essa situação espiritual inédita representada pelo
niilismo? É que os “modernos” provocaram um evento igualmente inédito:
a “morte de Deus”. Essa foi a revolução mais trágica da história religiosa do
mundo, revolução que subverteu todo o seu edifício valorial e dividiu o
curso histórico em, por assim dizer, “antes de Deus” e “depois de Deus”. De
fato, o aspecto central e decisivo da revolução moderna não foi o
“cientí�co” (Galileu), nem o “�losó�co” (Descartes), nem o “religioso”
(Lutero), mas foi exatamente a opção pelo homem no lugar de Deus. Essa
foi a verdadeira “revolução copernicana”, no dizer de Kant. Do
antropocentrismo a modernidade passou para o secularismo e en�m para o
a-teísmo, preâmbulosdo atual niilismo. Se antes o ateísmo era um crime,
fato de minorias, agora surgia como um direito e até como um ideal
universal, proposto na fórmula “um mundo sem Deus”. Eis a tragédia
absoluta do homem: a morte do Absoluto.27 E é desse evento aberrante e
fatal que se eleva a fumaça negra do desencanto, da insipidez e do
absurdo, que envolveu o mundo moderno e penetrou em sua alma. Foi
assim que o mundo foi destituído dos “três m’s”: mistério, maravilha e
milagre.
Mas, sem esses “três m’s”, o que sobra do mundo? A mesmice existencial;
por outras: o “eterno retorno do mesmo”, pelo qual o oceano da realidade
será sempre o mesmo, a saber: o que as ciências revelam dele. Mudam
apenas suas ondas, ou seja, os produtos tecnológicos e culturais. Sucede
então o que de mais terrível o espírito poderia imaginar: a clausura
de�nitiva da existência no samsara (ciclo dos renascimentos), à exclusão de
qualquer moksa (libertação). Ora, não havendo mais qualquer
transcendência vertical nem qualquer ordem sobrenatural, não haverá
também mais nada de verdadeiramente extraordinário. Toda mudança, por
mais “maravilhosa” que seja, seja ela cientí�ca, técnica, artística ou política,
não passará de alteração super�cial no imenso mar do mesmo, fazendo
com que a toda a história não passe de “mais do mesmo”.
Mas lá onde o “mesmo” começa seu reinado, começa também o reinado
do tédio. Quando se dá adeus ao Mistério, dá-se também adeus às
maravilhas da graça: a conversão, a recriação interior, o perdão dos
pecados, a redenção da alma. Adeus também aos milagres, especialmente o
milagre da misericórdia oferecida aos perdidos e o da caridade, que liberta
os abandonados de toda sorte. Lá domina o mundo fenomênico,
prosseguindo inexoravelmente seu caminho circular e esmagando, como o
carro de Juggernaut, todo sonho humano de verdadeira transcendência:
libertação do espírito e ressurreição da carne. Faltará pouco para que o
mundo sem graça do tédio não se converta no mundo desgraçado do
desespero, verdadeira antessala do inferno.
Como mostramos à farta em nosso volume anterior, os responsáveis
desse clima, até ontem dominante, foram, em nível social, os intelectuais
laicistas e, em nível mundial, a Europa laica, que bem por isso mereceria o
nome de “Niilândia”.28 Foram eles que geraram este mostro: o chamado
“mundo sem Deus”. Foi sonho para os “modernos”, mas pesadelo para as
massas. Esse sonho, nunca antes sonhado, deu origem a uma experiência
histórica que foi vivida por seus fautores como uma epopeia exaltante, mas
que constituiu, em verdade, um projeto-processo aberrante, o qual, se, por
impossível, tivesse tido êxito, teria perpetrado a tragédia por excelência, a
catástrofe suprema, que deixaria pálido o mais horroroso ragnarök.29
O fato é que, após a primeira fase de sobre-excitação ideológica, o
projeto secularista acabou lançando sobre o mundo os quatro sinistros
cavalos do niilismo: o tédio, a angústia, a depressão e a libido mortis com
seu séquito fúnebre: suicídio, droga, esterilidade e banalização do sexo e da
violência. Ademais, as crenças coletivas da modernidade, como razão,
liberdade e progresso, entraram irreversivelmente em crise. Ora, sem
crenças não há sociedade que sobreviva. A esse propósito escrevia Goethe
há quase dois séculos:
Todas as épocas em que predomina a crença, sob qualquer forma, são esplêndidas, corajosas,
frutuosas para os contemporâneos e para os pósteros. Pelo contrário, todas as épocas em que a
descrença, sob qualquer forma, prevalece, embora brilhem por um momento de esplendor postiço,
desaparecem dos olhos da posteridade.30
3. O sentido madruga
Se perguntássemos, ao modo do profeta, “a quantas anda a noite do
niilismo”, receberíamos talvez a resposta que a sentinela deu: “Amanhece”
(cf. Is 20,11-12). Efetivamente, Deus volta a jogar no proscênio do mundo.
Busca-se hoje o sentido em seu solo nativo: no elemento da transcendência
religiosa. Existe efetivamente hoje uma aristocracia de pensadores que
voltam a buscar no mundo da espiritualidade um sentido consistente à
existência. São como os �lósofos que São Paulo encontrou em Atenas:
buscando um sentido maior, estão em verdade “buscando a Deus... como
que às apalpadelas” (At 17,27). Esses seriam os únicos incrédulos que
Pascal julgava “razoáveis”: os que não creem em Deus, mas o procuram.31
Abrem-se, pois, de novo tempos de fé.32
Subsistem, contudo, da velha elite cultural os que selaram o túmulo de
Deus, pretendendo tornar sua morte irreversível, como outrora tentara o
Sinédrio em relação ao Cruci�cado, conquanto em vão. Resignam-se à
escuridão do sem sentido, simulando indiferença. Pensam como escrevia
Villiers de l’Isle-Adam: “Viver? Os criados pensarão nisso por nós”.33 E
repetem: “Não faz sentido pensar na questão do sentido”. A saída? Viver,
sem perder tempo com questões de sentido. Era a fórmula de Voltaire:
“Trabalhar sem pensar: só assim a vida se torna suportável”. Não era
diferente a de G. Carducci: “Agir, sem re�etir sobre o mistério do mundo”.
Exibem um niilismo resignado, que, se não é sereno, também não se quer
trágico. Assim vivem ou, melhor talvez, “tentam viver” (P. Valéry). E,
enquanto vão “bocejando sua vida” (Chateaubriand), alguns se fazem de
mestres, administrando aos jovens a “hóstia envenenada da crítica e da
negação”.34
Sem embargo, essa elite decadentista está na contramão da história e
também do gênio das massas populares. Com efeito, essas, que sempre
foram religiosas, são hoje atravessadas por grande efervescência espiritual,
que, apesar de se polarizar nos extremos do fundamentalismo e de formas
religiosas desbordantes, renova-se e cresce de modo positivo no seio das
grandes religiões. Ademais, surge um novo fator que pode favorecer a
ascensão e a difusão do sentimento religioso e fazer recuar o secularismo e,
por consequência, o niilismo: as novas mídias: a internet e o celular. Entre
as variadíssimas opiniões que aí se caldeiam, estão as religiosas, protegidas
agora da repressão ostensiva e do desprezo público que a modernidade
hegemônica votava ao divino. É possível que as surpresas que as redes
sociais produziram na área política possam se reproduzir, e quem sabe
maiores, na área religiosa.
Seja como for, é um fato que o secularismo, porque obra arti�cial e
forçada do projeto da modernidade, cede e recua tão logo o “natural
profundo” do homem, especialmente o instinto religioso, pode livremente
se manifestar. Disso são provas, no passado, a falência completa do ateísmo
de Estado e, no presente, o descrédito crescente do laicismo acadêmico-
midiático. Saberão, contudo, as grandes instituições religiosas “redimir”
esse kairós (Ef 5,16)?
Se quisermos resumir os passos segundo os quais o pathos niilista evoluiu
nos dois últimos séculos, cotejando-os com a parábola do �lho pródigo, já
usada por nós na mesma linha,35 traçaríamos o seguinte quadro:
1) Modernidade madura (séculos XIX e XX): tempo da mais aguda
“paixão pelo mundo” e da “morte de Deus”. O lugar de Deus é tomado ou,
melhor, usurpado pelas realidades mundanas através de um trabalho de
ideologização. É o �lho pródigo que se liberta do pai e ganha o mundo.
2) Modernidade tardia (século XX, segunda metade): tempo de uma
vida desencantada, insossa, caótica. Os ídolos perdem seu halo e
desmoronam por força de uma segunda secularização. Da paixão pelo
mundo, passou-se à indiferença e �nalmente ao ódio. Surge o senso de um
niilismo absoluto: nada tem sentido, tudo é nada. É o �lho pródigo
reduzido à miséria e obrigado, para sobreviver, a “cuidar de porcos”.
3) Pós-modernidade (a partir do �nal do século XX): tempos pós-niilistas.
A experiência desesperante do niilismo agudo levou ao dilema: crer ou
perecer. Deus reemerge então como única saída positiva. Madrugada: a
noite do absurdo vai adiantada e o dia do sentido se aproxima (cf. Rm
3,12). O �lho pródigo põe-se a caminho de casa.
4) Modernidade superada (a partir do século XXI): Nova era do sentido.
Deus volta a ocupar o lugar que lhe compete: no coração do homem e do
mundo. O �lhopródigo reencontra o pai, que o acolhe
misericordiosamente em casa.
Eis aí um esquema, em verdade conjetural, que pode ajudar a entender
a história do declínio, morte e ressurreição do sentido.
4. Tentativas atuais de sair do niilismo
Ainda que o sentimento do inconsistente e do vazio assalte por vezes
todo ser humano, tal sentimento acossa com particular acuidade o homem
moderno, devido justamente ao atual clima de ausência de Deus. Cresce
então a angústia existencial, descambando facilmente no tédio e na
depressão. Agudiza-se então, como por reação, a ânsia por uma “vida
�amejante de sentido”.36 Procura-se um sentido que encha o coração até a
saciedade e torne a vida deslumbrante, ardente, transbordante, em suma,
apaixonante.
Fantasias infantis! Pois, dentro do horizonte deste mundo, o que é que
pode encher e pleni�car verdadeiramente a vida? A resposta mais imediata
é: o prazer sensível. É a via mais batida e também a mais vulgar: o
hedonismo, seja lá que outro nome tome. Essa �loso�a de vida se desdobra
hoje em consumismo, de que o marketing é o grande promotor. Aí o sentido
são os sentidos: ver, transar, em suma, curtir.
Mas quem ignora que a satisfação dada pelo prazer sensível tem um
caráter sempre pontual e momentâneo? E então volta o sentimento do
vazio, que tem que ser novamente preenchido, e assim sucessivamente. É a
maldição das Danaides: encher um tonel desfundado. Esse ciclo repetitivo
leva �nalmente ao desespero, como se vê claramente no caso da
drogadição, mas também e mais em geral em relação ao sexo, ao poder, à
fama e ao dinheiro.
A realidade é que na terra vige a inelutável condição humana, que
Agostinho de�ne como egestas (necessidade).37 Buda deu-lhe o nome de
“dor” (dukkha) e seus seguidores de sunyata (vacuidade), enquanto os
gnósticos antigos falam de kénoma. Ora, o ansiado pléroma só pode ser uma
categoria escatológico-transcendente. O pleno, assim como o perfeito, se
existem, só podem se dar no que as Escrituras chamam “Reino dos céus”.
Aí, sim, exclama o referido Doutor, “minha vida será verdadeiramente viva
porque estará toda cheia de Vós”.38 Em confronto com essa plenitude, os
prazeres terrestres não passam, no melhor dos casos, de suas pálidas
imagens. Tomá-los, porém, pela realidade plena é iludir-se, alienar-se e
frustrar-se.
Para além da via hedonista, foi a luta social que, até anteontem, nos
tempos modernos, se apresentou como alternativa apta a “encher a vida de
sentido”. É um fato que milhões de jovens, nas décadas de 60 e 70 do
século XX, queriam-se “revolucionários” e punham o sentido da vida na
criação de uma “nova sociedade”. Mas, desde ontem, isto é, desde os anos
90, os projetos históricos perderam sua força de propulsão sociopolítica.
Eles não mobilizam mais a massa dos jovens, a não ser de modo esporádico
e pontual. A juventude de hoje, em sua maioria, não sonha mais com uma
utopia social. Seu horizonte de esperança é curto: o futuro próximo.
Navega à vista: visa a esse ou àquele trabalho, esse ou aquele parceiro
sexual e afetivo, e pouco mais.
Se nem o hedonismo nem a política enchem a vida de sentido, o que
sobra no cenário de hoje? A olhos vistos, a religião. É a terceira saída.
Efetivamente, a religião, por natureza e vocação, abre o ser humano à
perspectiva do transcendente, única realidade à medida do cor inquietum.
Todavia, a própria religião corre hoje vários riscos, o primeiro dos quais é se
enviscar na lógica do consumismo, tornando-se mera agência de consolo
emocional imediato, quando não se degrada na mais grosseira simonia, em
detrimento de sua perspectiva espiritual e de sua tensão escatológica.
Outro risco que corre atualmente a religião é contentar-se em repristinar
suas “verdades eternas” e trocar apenas suas formas externas, poupando-se
o necessário esforço de renovação. Ora, uma religião se renova
reapropriando-se, em cada época, do núcleo permanente de sua
mensagem fundadora. Só assim poderá atualizá-lo em função de cada
contexto histórico, conferindo-lhe uma nova linguagem e novas estruturas.
Pois, sem um trabalho de assimilação espiritual, qualquer renovação não
passará de uma obra exterior, arti�cial, passageira.39
5. Sofrimento: lugar principal da irrecusável questão do
sentido
A vida dos mortais é feita de altos e baixos, regida que é pela “lei da
ondulação”. Ao lado dos “momentos culminantes”, a vida comporta
“momentos abissais”. É quando dominam sofrimento e morte. É então que
a vida mostra-se absurda, no sentido literal de “dissonante”. Aí a
contingência é vivida, não como graça, mas como desgraça, perda,
decadência.
É então que se levanta impreterivelmente a pergunta: “Onde está o
sentido da vida?” E mesmo que se responda “Deus”, levanta-se nova
pergunta: “Onde está Deus?” Assim foi com Jó e, mais que tudo e todos,
com Cristo moribundo. E assim é também com todo crente nas horas de
crise profunda. De fato, é quando a vida se torna problemática que a
questão do sentido se põe. Quando, em 1555, Lisboa foi arrasada por um
terremoto, Voltaire se perguntou sobre o porquê daquela desgraça. Antes,
porém, nem ele nem ninguém tinha se perguntado por que Lisboa existia
ou tinha de existir, pois o fato de existir é por si mesmo algo de bom e
sensato. É, em suma, coisa autoevidente.40
Ensinava Goethe que se passa com a alma o que se passa com o corpo:
ela só tem consciência de si quando as coisas vão mal. É quando há uma
pedra no sapato que sentimos o sapato; é quando o dente dói que nos
lembramos dos dentes. Ocorre o mesmo em relação ao sentido: este só é
“sentido” pela alma quando “faz falta”. Quando está presente, é como a luz
ou o ar: não se notam. Portanto, sentido é o normal e saudável; o não-
sentido é o anormal e patológico.
Em célebre poema, escreveu nosso Drummond: “No meio do caminho
tinha uma pedra”, acrescentando: “Nunca me esquecerei desse
acontecimento (...) que no meio do caminho tinha uma pedra”.41 Por que o
poeta insiste num fato aparentemente tão banal, quanto uma pedra no
caminho, a ponto de tratá-lo como algo de inesquecível? Precisamente
porque não é efetivamente normal que haja uma pedra no meio do
caminho: a pedra aí está fora de lugar. Assim também é estranho e
antinatural que a pedra do absurdo se anteponha a nossos passos. É, pois,
quando fazemos experiência do não-sentido, quando o absurdo dói, que
nos damos conta da necessidade de um sentido consistente para a vida.
O sentido é a saúde do espírito. Quando falta sentido, o espírito adoece.
E é então que notamos a importância do sentido, da mesma forma que nos
damos conta da importância da saúde quando estamos doentes. Mais
propriamente que um “animal doente” (Hegel), o homem é um animal
suscetível de doença; em nosso caso, a doença do absurdo. E é para isso
mesmo que existem as religiões. Essas “instituições de sentido” são
verdadeiras instituições hospitalares. Dentre todas as religiões, o budismo e
o gnosticismo antigo são as que mais sublinharam a experiência do mundo
como alienação, estranhamento. O primeiro fala da vida como sofrimento
(dukkha) e o segundo da sensação de “ser lançado aí”, disposição essa que a
geworfenheit heideggeriana iria mais tarde ecoar.42 Ambas as religiões, mas
isso vale para todas elas, entendem curar e libertar o ser humano dessa sua
alienação existencial.
Também para o judeo-cristianismo a “experiência do mundo” que o
homem faz depois que deixou o paraíso é feita, em boa parte, de dores de
parto para a mulher, penas do trabalho para o varão, a dominação
permeando as relações entre ambos e, �nalmente, a morte como volta ao
pó (cf. Gn 3,16-19). Contudo, para a Bíblia, mesmo depois do pecado, o
mundo não perdeu sua bondade criacional e continua reservado à
plenitude escatológica, que as Escrituras chamam de “novos céus e nova
terra” (Is 65,17; 66,22; 2Pd 3,13; Ap 21,1). Ademais, para a fé bíblica, existe
uma alienação mais profunda que a existencial, sendo dessa a origem: o
pecado como alienatio a vita Dei (Ef 4,18). Por isso também, sua promessa
de sentido último é mais que a simples superação da conditionhumaine: é a
comunhão eterna com Deus no amor.
Seja como for, para todo ser humano, a pergunta pelo sentido é
inelutável como é inelutável sua resposta. Já que é a vida que põe a
pergunta, é a vida também que responde. É, pois, executivamente, ou seja,
por um “ato axiomático” (R. Euken) que o ser humano dá sua reposta à
inescapável questão do sentido. Estamos tão “condenados ao sentido”, na
expressão de Merleau-Ponty, como estamos “embarcados”, segundo Pascal,
na viagem da vida em direção a seu destino. Todo homem tem ou então
põe inevitavelmente um sentido de vida, certo ou errado que seja, quer
pense nisso ou não.
O sentido é a alma da vida. É o que dá à vida movimento e impulso. Pois
o �m é a força que atrai, puxa, move e motiva a vida. Viver é sempre viver
por algo ou por alguém. Viver sem sentido é vegetar, o que, para o homem,
só é possível como estado clínico. Para o ser humano, não existe o absurdo
radical, o vazio total do sentido, o niilismo absoluto. Mesmo a experiência
extrema, além de equívoca, do suicídio é uma a�rmação paradoxal do
sentido: a libertação de uma pena sentida como insuportável.
6. O mistério das coisas e seu sentido como mais-valia
Amor, homem, vida, morte: tudo é mistério.43 O mundo está
impregnado e, ao mesmo tempo, aureolado de transcendência. Há nele
algo que grita por mais que si mesmo. No mistério do mundo transparece
um mistério maior, que as religiões chamam Deus. É uma presença secreta,
que brilha e rebrilha no coração das coisas. Embora sofra certo
ofuscamento por causa da hybris do homem, essa luz não se apagou de
todo, mas continua a coar por mil frestas.
Tal é o milagre da criaturalidade, maravilha que arranca de um coração
sensível os mais belos hinos de louvor, como o hino ao esplendor da
criação que é o Salmo 103, o cântico das criaturas dos três jovens na
fornalha (Dn 3,52-90); o poema da criação de Ben Sirac (Ecl 42,15-43,37);
o “grande alarido” das criaturas “foi ele quem nos fez” (Sl 99,3) que ouviu
Agostinho quando lhes perguntou quem era Deus (Conf. X, 6, 9-10); e
�nalmente o comovente “Cântico do irmão sol” do Poverello.
Certamente, Deus, que, como �m último, dá o sentido último ao
mundo, é, em relação a ele, totaliter alter. Ele lhe é absolutamente
transcendente e é, além disso, invisível e inefável por natureza. Entretanto,
Ele não é estranho ao mundo, pois Ele mesmo o fez e nele deixou as
marcas de “seu poder sempiterno e de sua santidade” (Rm 1,20). Se bem
que invisível em si mesmo, Deus se faz de certa forma visível,
transparecendo nas e pelas criaturas, como declara Paulo: “As perfeições
invisíveis de Deus (...) se tornam visíveis à inteligência através de suas
obras” (Rm 1,20).
Só espíritos estreitos acham que o céu e a terra podem caber inteirinhos
dentro de sua cacholinha. Mas quem não percebe o mistério do mundo,
como irá perceber o mistério maior de Deus? “Voltaire, como todos os
preguiçosos, odiava o mistério”, dizia Baudelaire.44 Para o poeta, o mistério
não deixa de assediar o homem, como diz nestes versos: “Servo de Jesus,
cortesão de Vênus, / (...) / Em tudo o homem sofre o terror do mistério, / E
só olha para o alto com um olho tremente”.45 Até os acasos concorrem para
a beleza do conjunto como se fossem dissonâncias propositadas no seio da
sinfonia cósmica.
Uma existência puramente material e empírica, reduzida a dados e
destituída de todo signi�cado, como a que a ciência projeta, seria o “horror
nu”.46 Mas a ótica cientí�ca não capta a totalidade do real. E nem pode
fazê-lo, simplesmente porque ela assim o decidiu por princípio, isto é, de
entrada, enquanto procura abstrair do aspecto qualitativo e signi�cativo
das coisas. Nisso ela é estruturalmente reducionista. De fato, em relação ao
ser total, ela opera um recorte arbitrário, que resulta, por exemplo, em
matemática, em física, em química ou em qualquer outra ciência. Podemos
assim dizer que a ciência, por opção metodológica, é tão niilista quanto
ateia.
Mas naturalmente, para além do que a ciência vê e experimenta,
subsiste o “mais” das coisas: é seu sentido. E sentido não é um fato, é antes
a alma do fato. O fato é suscetível de análise cientí�ca, não o sentido. Esse
só se deixa compreender por um ato da inteligência. Não é também mera
emoção, que a psicologia poderia estudar; é antes o princípio da emoção.
Esse “mais” é uma dimensão metafísica ou transcendente das coisas,
dimensão essa que só a intuição do espírito pode captar.
Contudo, é somente aos olhos de uma visão rasa das coisas, como é a
empirista, tenha ela forma cientí�ca ou espontânea, que o valor intrínseco
delas aparece como um valor agregado. Não, o sentido como “mais-valia”
ou como valor excedente não é algo que se acrescenta às coisas de fora,
mas faz parte de sua constituição ontológica. É tal valor ou sentido que faz,
por exemplo, com que uma pessoa seja mais que um espécimen do gênero
“homem”, que pai seja mais que genitor, que �lho seja mais que cria, que
amor seja mais que sexo, que mulher seja mais que fêmea, que casa seja
mais que abrigo, que refeição seja mais que nutrição, que lua seja mais que
satélite, que o céu seja mais que espaço estelar, em suma, que a vida seja
mais que biologia.47
Com efeito, todo ser tem valor justamente pelo que é, enquanto é �m
transcendental de uma vontade. Ora, �m, como dissemos, é a fonte de
todo sentido. Isso �ca claro quando se observa uma cadeia de �ns, tal
como a que se evidencia na seguinte ilustração: o sentido (ou a �nalidade)
dos sons é a música, o sentido da música é emoção estética e o sentido da
emoção estética é ela mesma (�m ou sentido imanente) ou então outra
coisa, por exemplo, a oração (�m ou sentido transiente). Esse encaixe de
sentidos nada tem de estranho e arti�cial. Ele representa antes a espessura
constitutiva do tecido de nosso cotidiano.
Como se vê, o sentido como mais-valia das coisas corresponde aqui a
signi�cado ou princípio de inteligibilidade, o quarto aspecto de nosso
“quadrilátero semântico”. Lembremos, porém, que o sentido-
inteligibilidade depende do sentido-�nalidade, que é o aspecto primeiro e
fontal de sentido. De fato, se, por exemplo, lar é a mais-valia da casa, ou
seja, se casa é mais que abrigo, mas lar, é porque lar é a �nalidade da casa.
Essa maravilhosa e ao mesmo tempo simples “epifania das coisas” que
chamamos de sentido é por nós percebida em nosso cotidiano de modo
espontâneo e natural. O sentido (extraordinário) das coisas (ordinárias) é
por nós decodi�cado o mais das vezes de modo irre�exo como por certa
“hermenêutica existencial”. Tal hermenêutica faz parte do nosso modo
humano de viver as coisas. Com efeito, o homem, por sua essência racional
ou, melhor, espiritual, não vê simplesmente o mundo como um bicho vê;
antes, lê o mundo, vendo em tudo a irradiação de um sentido. Para nós, é
impossível existir sem “viver” as coisas e lhes desvelar o sentido. É só mais
tarde que pode ocorrer a tematização discursiva do sentido descoberto. O
ser humano revela-se assim um hermeneuta nato, um ser interpretante, em
suma, um “ser de sentido”. Ele é tal precisamente por ser portador do lógos,
pelo qual lhe compete não conferir sentido às coisas, mas, antes, “recolher”
(leghein) o sentido que delas se irradia e que as cerca como um halo.48
E é justamente esse modo humano e ordinário de “viver mundo”,
enquanto capacidade de desvelar em tudo um sentido, que dá origem ao
precioso fenômeno que é a cultura, esse imenso sistema de sentidos,
expressos e encarnados no que chamamos os símbolos. E o que é a
antropologia cultural senão o estudo desses símbolos e de sua
interpretação? De modo semelhante, a ciência da história é o esforço de ler
um sentido, especi�camente uma intenção, que, como alma, anima e
ilumina o corpo dos fatos. As outras ciências humanas são essencialmente
(e às vezes até se chamam) hermenêuticas exatamente por tratarem do
homem, ser “racional”, que vê ou mesmo põe uma intenção, uma ratio, em
suma, um sentido em tudo o que lhe diz respeito.
Quando, entretanto, se trata de decifrar o “código da existência”

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