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Sumário Capa Folha de rosto Introdução I. Identidade epistemológica deste volume II. Destinatários desta obra III. Estrutura do volume atual Capítulo I - NIILISMO: PATHOS DOMINANTE DA CULTURA MODERNA I. Esclarecimento semântico II. Atual pathos niilista e sua incidência social III. Scholia Capítulo II - A QUESTÃO DA VERDADE: PREMISSA PARA A QUESTÃO DO SENTIDO I. Fundamento do sentido: a verdade e o ser II. Do alfa ao ômega e vice-versa III. O sentido: não inventado, mas descoberto e interiorizado IV. Niilismo como posição intelectual e sua refutação V. Scholia Capítulo III/1 - DESEJO DE SENTIDO: PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICO-FILOSÓFICA I. Desejo de sentido e de sentido último: natural no ser humano II. Estrutura e dinâmica do desejo natural III. Desejo de infinito: seu fundamento Resumo conclusivo em forma de teses IV. Desejo de sentido: constante de todo ser, quer físico, quer metafísico V. Scholia Capítulo III/2 - DESEJO DE SENTIDO NO CONTEXTO DA MODERNIDADE I. Desejo de sentido: ob-jetivo, não pro-jetivo II. Desejo de sentido último: desejo confuso de deus Iii. Sistema de respostas para a questão do sentido IV. Scholia Capítulo IV - SABEDORIA: SABER DO SENTIDO SUPREMO I. Sabedoria: sua natureza e implicações II. Três vias para a descoberta do sentido III. Scholia Capítulo V - FELICIDADE: A “FACE RIDENTE” DO SENTIDO I. Felicidade: que é e em que consiste II. Representações da felicidade III. Sentido da vida: busca da felicidade ou do sumo Bem? IV. A felicidade possível nesta vida V. A ultima felicitas: a parusia do sentido VI. Salvação: nome para sentido e felicidade VII. Scholia Capítulo VI - SENTIDO DO UNIVERSO: O SUPRASSENTIDO I. A problemática do porquê do mundo II. Homem: sentido (imediato) do mundo III. Deus: sentido (final) do mundo IV. Cristo: sentido (sobrenatural) do mundo V. Scholia Capítulo VII - DEUS: SENTIDO DA EXISTÊNCIA I. Deus é o sentido: prova geral e confirmações II. Religião: mediação de sentido III. Scholia Capítulo VIII - CRISTO: SENTIDO REVELADO I. Cristo-sentido: perspectiva da fé II. Textos neotestamentários conotando cristo-sentido III. Identificação racional de cristo com o sentido IV. Maria: ícone feminino do sentido V. Scholia Conclusões do volume Ficha catalográfica Introdução No volume I de nossa trilogia, �zemos a análise e a crítica da problemática atual do sentido.1 Foi uma parte prevalentemente negativa. Com este volume, entramos na parte mais positiva: onde está efetivamente o sentido. Se o primeiro volume se quis sobretudo analítico, o presente terá um forte teor especulativo, no melhor sentido do termo, exigindo, por isso, maior esforço intelectual. Mais tarde, no volume III, abordaremos a parte prática da questão em foco: como viver (pessoalmente) e fazer viver (pastoral, pedagógica e sociopoliticamente) o sentido da vida. I. IDENTIDADE EPISTEMOLÓGICA DESTE VOLUME A presente obra tem um talho fortemente re�exivo ou �losofante. É que a questão do sentido, por ser existencialmente determinante e tocar todas as dimensões da vida, pede um pensar fundamental e globalizante. Ora, um pensar assim só pode ser um pensar originário, como se quer toda boa �loso�a. Pois como pensar o �m (telos), que confere sentido, sem pensar o princípio (arché), que dá base ao sentido? Mas como, por outro lado, resolver a questão do princípio e do �m sem levantar a questão do transcendente, de que Deus é uma das �guras decisivas? Mas pensar Deus é fazer teologia, na acepção simples e mesmo etimológica de “discurso sobre Deus” (theo-loghia = sermo de divinitate). Portanto, o estatuto epistemológico de nosso trabalho é de tipo �losó�co- teológico. É, grosso modo, �losó�co como questão e teológico como resposta. E é teológico também por tratar inclusive do Deus da fé ou da revelação. Se quisermos, porém, situar nossa obra no quadro geral das disciplinas teológicas, seu lugar mais adequado seria o da “teologia fundamental”, pois, como consta dessa disciplina, nosso trabalho parte da problemática humana da busca de sentido, dissolve criticamente os falsos caminhos propostos e desenvolve teoricamente as aberturas racionais à proposta da fé. Não que se trate aqui de resolver de uma vez por todas a questão do sentido, como quem “mata uma charada”, como parece pensar Wittgenstein. De fato, no �nal de seu Tractatus, a�rma que o “problema da vida”, para quem o “resolveu”, “desaparece”. Sumiria de tal modo que aquele para quem “o sentido da vida tornou-se claro” já não saberia “dizer em que consiste esse sentido”.2 Para nós, ao contrário, a questão do sentido, por sua importância e extensão existenciais, é recorrente. Conquanto alguém pretenda ter encontrado o sentido da vida, essa questão não deixa de se repor sempre, mormente nas provações, pedindo, quer a renovação da resposta uma vez dada, quer mesmo uma nova resposta. Também não é verdade que quem resolveu a questão do sentido não sabe dizer em que consiste esse sentido. Certo, pode não saber dizê-lo e justi�cá-lo por lhe faltar formação cultural, como sucede com a maioria dos crentes. Mas que o sentido possa ser descoberto e dito conceitualmente, é isso o que as grandes concepções do mundo, religiosas, �losó�cas e mesmo ideológicas, sempre �zeram. No que tange ao cristianismo, proclama-se alto e bom som que o sentido de tudo é, em absoluto, Cristo. É o que, no fundo, recomenda Pedro ao escrever: “Estai sempre prontos para, em vossa defesa (prós apologian), responder a quem vos pede a razão (lógon) da esperança que está em vós” (1Pd 3,15). II. DESTINATÁRIOS DESTA OBRA Obviamente, a discussão teórica acerca da problemática do sentido não interessa imediata e diretamente o povo em geral, que não tem tempo nem condições para tanto, mas, sim, as classes educadas e nessas a intelectualidade e os jovens. Tais são, em verdade, os parceiros do diálogo nessa obra. Cristo mesmo, se por um lado preferiu dirigir sua palavra aos pequenos e oprimidos (cf. Lc 4,18; 7,22), por outro não desdenhou o diálogo com os “doutores” de Israel, como Nicodemos (cf. Jo 3,1-21), e outros chefes, especialmente nos últimos dias de seu ministério em Jerusalém (cf. Mt 19-23). O mesmo fez Paulo em relação aos �lósofos de Atenas (cf. At 17,16-34). Declara, de resto, no início da epístola aos Romanos: “Sou devedor a gregos e a bárbaros, a sábios e a ignorantes” (Rm 1,14). Ademais, os grandes pensadores cristãos nunca se furtaram ao confronto com a elite cultural do tempo, e isso desde os primeiros apologistas cristãos, como Justino, Taciano, Orígenes e Tertuliano, passando por Agostinho, Tomás, Pascal e Schleiermacher, até nossos dias, como se vê na pessoa do Papa Ratzinger. Por isso mesmo, nosso escrito não está isento de certa intenção apologética, na acepção primeira de defesa e exaltação da fé, o que implica inevitavelmente uma ponta polêmica contra seus oponentes. Quanto às pessoas piedosas mais simples – e são a grande maioria –, a discussão acerca do niilismo pouco lhes diz respeito, mesmo se seus efeitos nefastos não deixam de atingi-las. Elas têm em geral a tranquila convicção de possuírem pela fé a chave que lhes dá acesso ao “livro do destino”, selado com sete selos (cf. Ap 5). De fato, não escolheu Deus “os pequeninos” como con�dentes de seus segredos, à exclusão dos “sábios e entendidos” (cf. Mt 11,25-26; 1Cor 1,26-29)? Toda a história da fé o atesta, e o con�rmam também os próprios grandes Doutores, como Agostinho e Tomás, ao se referirem à piedosa “velhinha” (vétula) ou à “avozinha” (anicula) cristã, que sabe mais do mistério do mundo do que o maior pensador privado de fé.3 Em verdade, uma coisa é saber vivencialmente o sentido, como se dá com a maioria dos crentes, e outra é sabê-lo teórica e articuladamente, o que não é de todos, mas dos que são chamados e têm as condições para isso. Existe efetivamente um “abismo conceitual” entre a questão do sentido e sua resposta articulada. Para vencer tal abismo, a razão não pode fazê-lo por um salto, mas como por uma ponte. E essa precisa ser construída através de um trabalho lento, bem arquitetadono seu todo e, por outras, quando se trata de ler e entender o “texto do mundo” em seu conjunto, a hermenêutica existencial espontânea toma a forma que a tradição chamou de “sabedoria”. Com efeito, esta é, por excelência, a “ciência do sentido da vida”, tomando-se cada termo dessa expressão, “ciência”, “sentido” e “vida”, em seu sentido eminente. Mas disso trataremos mais adiante, no capítulo IV. Como esse excurso deixa entrever, a questão (existencial) do sentido, que acabamos de ver, pressupõe a questão (metafísica) do ser, quando não coincide com ela. Mas isso veremos melhor no próximo capítulo. 7. Correntes psicológicas: posições contrastantes frente à questão do sentido Perguntar pelo sentido é perguntar pela saúde da vida, saúde existencial e frequentemente também psicológica. Freud estava convencido do contrário: “Quando começamos a nos questionar sobre o sentido da vida e da morte, é que estamos doentes, pois tudo isso não existe de maneira objetiva”.49 E argumentava: a vida, em si, não tem sentido algum; ela só tem o sentido que lhe damos. Essa posição é coerente com o ateísmo do pai da psicanálise, ateísmo, de resto, convencional em seu tempo. Efetivamente, se Deus não passa de uma neurose infantil, a vida é entregue à exclusiva disposição de cada um. Há, contudo, outros psicólogos, grandes também, que não pensam assim. De fato, ao contrário de Freud, C. G. Jung julga a religião como fonte de saúde.50 Ele constatou que o problema psicológico de todos os seus pacientes que tinham passado a metade de vida (35 anos) estava, sem exceção, ligado à questão da religião, de modo que nenhum deles se curou sem ter recuperado a dimensão religiosa da existência.51 O pai da tiefpsychologie confessa: “Mais ou menos um terço dos meus pacientes não estão afetados por neurose clínica de�nível, mas sofrem do fato de estarem suas vidas desprovidas de sentido e de conteúdo”.52 Era sua convicção de que “cada um adoece porque perdeu o que as religiões vivas sempre ofereceram a seus �éis: um sentido de vida”.53 As neuroses seriam simplesmente “sofrimentos de uma alma que não encontrou seu sentido de vida”.54 Para Jung, não bastaria, pois, conscientizar-se das próprias neuroses para superá-las, como pensava Freud. Precisaria ainda saber que as “potências do mundo subterrâneo”, geradores de sofrimento psíquico, só podem ser vencidas com a “ajuda espiritual que as religiões asseguram”, ou seja, “com uma verdade sobre-humana, revelada”.55 Outro discípulo de Freud, Alfred Adler (+1937), também critica a teoria do mestre, dizendo-a “destituída de objetivo e orientação”, e isso principalmente por sua posição ateia de base. Diversamente de Freud, Adler considerava a �gura de Deus na psicologia individual como “a mais esplêndida manifestação do objetivo da perfeição”. Para ele, Deus, por designar o ser perfeito, in�nito, bom e justo, é a encarnação da ideia de grandeza e perfeição, podendo, por isso, potenciar ao extremo o impulso humano para a perfeição.56 Já a terceira “escola vienense de psicoterapia”, depois das de Freud e Adler, fundada por Victor Frankl, pôs em seu centro a ideia de sentido.57 Daí seu nome “logoterapia”. Ela visa a uma “vida cheia de sentido”.58 Essa linha terapêutica parte da constatação de que a falta de sentido é hoje uma “neurose de massas”. Seria mais precisamente a “neurose noogênica”, matriz de muitas outras. As três vias de sentido propostas por Frankl são: relações de amor (homo sensiens), atividades criativas (homo faber) e reelaboração do sofrimento (homo patiens). Para ele, o sentido a que essas três vias conduzem só pode ser concreto e delimitado, como são concretas e limitadas as situações patológicas a que responde. Isso, contudo, não impede que tal sentido se abra para um sentido maior, um sentido abrangente e último, que Frankl chama de “metassentido” ou “suprassentido”, campo próprio das religiões. Assim, se o sentido particular é como o sentido da cena de um �lme, o “metassentido” seria o sentido do �lme inteiro. O freudiano J. Lacan, considerando que só a religião lida com a ideia de Deus, �gura tida até a modernidade como a chave da questão do sentido, chegara à conclusão de que a questão do sentido é uma questão essencialmente religiosa. De encontro, porém, ao seu mestre Freud, que, no Futuro de uma ilusão (1927), sustentara que a religião é uma ilusão sem futuro, porque a ciência, com suas luzes, iria desvanecê-la, Lacan julga que a religião, sem deixar de ser ilusão, tem futuro e um futuro mais consistente que a própria psicanálise e sua pretendida cienti�cidade, pois, quanto mais a ciência for mostrando a face problemática da realidade, agravando o “mal-estar na civilização” (título de outro livro de Freud, de 1930), tanto mais as pessoas iriam recorrer à ilusão religiosa para suportar tal situação.59 Digamos, de passagem, que uma teoria assim, que tem a vida como tal por contraditória, irracional e absurda, só pode levar a uma postura niilista, e disso tem consciência Lacan et consimiles. Mas a teoria que sustenta o absurdo da vida não é ela mesma absurda, por antinatural e contraditória? Se é assim, então a ideia da “projeção” volta-se aqui contra seus criadores: “projeção do desejo” (desejo de Deus e, portanto, de sentido) não seria a religião, mas, antes, a psicanálise (enquanto deseja o ateísmo e projeta o niilismo). Nesse caso, não se deveria levantar uma suspeita radical, que é a de ser o ateísmo uma postura humanamente irracional e, por conseguinte, falsa? Esclareçamos, �nalmente, que a psicologia, de qualquer tendência que seja, só pode abordar a “questão Deus” do ponto de vista puramente funcional, isto é, Deus como uma função do psiquismo, função que, dependendo da linha psicológica, pode servir ou não para �ns terapêuticos. Agora, que Deus exista realmente, devendo ser buscado e amado por si mesmo, isso é uma questão que foge efetivamente à perspectiva psicológica, ou que, pelo menos, só pode nela �car pressuposta. Tal era, de resto, a posição de Jung, e nisso ele tinha toda razão. 8. O modo feminino de pôr e resolver a questão do sentido A relação da mulher com o mundo não é certamente a mesma que a do homem. Por isso, uma coisa é perguntar pelo sentido ao modo do varão, e outra, ao modo da mulher. Ora, o modo de pôr a pergunta do sentido condiciona de antemão sua resposta, como fazia observar Wittgenstein ao dizer mais em geral: “Diga-me o que você pergunta e eu lhe direi a resposta que você espera”.60 Quanto à mulher, é inegável que ela possui uma a�nidade especial com a vida e seu valor, com a dignidade e a sacralidade das coisas, especialmente as da esfera do numinoso. A razão é que o “princípio feminino”, que nela se encarna e aí resplende, privilegia os mistérios sobre os negócios, a sapiência sobre a ciência, a inteligência intuitiva sobre a razão lógica. Ademais, o feminino representa a dimensão de esperança nos projetos, de graça nas lutas, de acolhida nas conquistas, en�m, de signi�cado nos fatos. Por estar mais conectada com a estrutura natural da vida e da existência em geral, o modo feminino de pôr e resolver a questão do sentido se mostra mais próximo ao da tradição clássica e, por isso mesmo, mais crítico à cultura moderna e ao seu racionalismo. Daí por que um feminismo, que, por ressentimento, mimetize o padrão masculino, longe de abrir o mundo para o sentido, acaba afundando-o ainda mais na violência e no niilismo. Bastem aqui essas indicações sumárias. Deixemos que um tema assim tão delicado �que para ser desenvolvido por outros sujeitos. De nossa parte, nos contentamos aqui em mostrar concretamente o “rosto feminino do sentido” quando tratarmos da “bendita entre todas as mulheres”: Maria.61 II CAPÍTULO A questão da verdade: premissa para a questão do sentido O presente capítulo, assim como parte do próximo, consistirá numa abordagem essencialmente �losó�ca da questão do sentido. Ora, desse ponto de vista, o sentido pode ser tomado em duas perspectivas. A primeira é subjetiva e entende sentido como intençãoou propósito de vida. É o sentido-para-mim. Aqui estamos no plano antropológico-existencial ou, simplesmente, humano. Nesse caso, a questão do sentido (subjetivo) pressupõe a questão metafísica. A segunda perspectiva é objetiva e toma o sentido como �nalidade ou alvo. Situamo-nos aqui no plano do ser, seja esse cosmológico (do ser físico, enquanto visa a um �m e tem, pois, um sentido), seja ontológico (do ser metafísico, enquanto contém transcendentalmente a razão de �nalidade e de sentido). É o sentido-em-si. Essa última perspectiva é radical e funda a primeira. Pois o que importa na vida não é ter um “sentido qualquer”, mas ter o “sentido certo”. Nesse caso, a questão do sentido (objetivo) não pressupõe a metafísica, como no primeiro caso, mas já tem em si mesma um caráter metafísico, além de físico-cosmológico, como veremos. Nesse capítulo tomaremos o sentido do ponto de vista subjetivo, isto é, como questão humana, e mostraremos como a questão existencial do sentido pressupõe a questão metafísica do ser. Deixaremos para o próximo capítulo (cap. III/1) abordar o sentido do ponto de vista objetivo, para então mostrar, ainda que de modo extremamente sintético, que a busca de sentido, por ser uma constante de todo ser, já é, por si mesma, uma questão metafísica. I. FUNDAMENTO DO SENTIDO: A VERDADE E O SER 1. Questão da verdade: anterior à questão do sentido Seria a questão do sentido a questão mais radical? Em relação a nós, sim, pois é a questão que mais nos angustia e por cuja resposta mais ansiamos. Mas, tomada em si mesma, não é a questão mais radical. Pois, se é certo que a questão do sentido diz respeito ao �m, que é sempre um bem ou valor, o que importa é saber se aquele �m, bem ou valor é verdadeiro. Portanto, por trás da questão do sentido, está a questão da verdade. O verum está na base do bonum. O ser humano só pode buscar o bem verdadeiro, nem que seja apenas em aparência, assim como o Espírito das trevas só pode seduzir trans�gurando-se em “anjo de luz” (2Cor 11,14). Portanto, encontrar um sentido qualquer para a vida não é tudo nem o principal. De resto, não há quem não dê um sentido qualquer à sua vida, tenha consciência disso ou não. A questão decisiva é saber se o sentido que se dá à vida é verdadeiro e, por conseguinte, se é sólido, consistente, se segura a vida em seus trancos e barrancos. Pois, que é um sentido que não con�ra luz e energia à vida? Ilusão, fumo, nada. Ensinava Spinoza a “não confundir o sentido de um discurso com a verdade das coisas”.1 Igualmente, Wittgenstein advertia sobre a distinção a se fazer entre “fazer sentido” e “ser verdadeiro”.2 Também para H. Arendt, “verdade e signi�cado não são a mesma coisa.”3 Mas foi G. Frege (+1925) quem, com base em sua célebre distinção entre sinn (sentido) e bedeutung (signi�cado ou referente), insistiu na distinção entre valor de sentido e valor de verdade.4 Essa distinção, a nosso ver, vale tanto no plano lógico- linguístico quanto no existencial. De fato, no plano lógico-linguístico, “sentido” é a adequação da linguagem com o pensamento, enquanto “verdade” é a adequação do pensamento com a realidade objetiva. Analogamente no plano existencial, “sentido” é a adequação da minha vida com meu propósito fundamental, enquanto “verdade” é a adequação do meu propósito fundamental com a realidade objetiva. Se é assim, há coisas que “fazem sentido”, mas que não são “verdadeiras”. É o que sucede frequentemente com as paixões amorosas e com os ideais políticos: ambos movem poderosamente as pessoas e dão sentido às suas vidas, mas, na medida em que o sentido que dão é ilusório, isto é, não passa pela prova da realidade, acabam falindo e decepcionando. Isso nos permite dizer, falando raso, que existem sentidos “sensatos” ou razoáveis e sentidos “insensatos” ou absurdos. A questão toda é encontrar os primeiros e neles se �xar. Poder-se-ia, da mesma forma, perguntar se não haveria também o inverso: verdades sem sentido. No extremo, sim. É quando uma verdade tornou-se tão distante de nós que perdeu toda relação com nossa vida. Fala-se então numa “verdade abstrata”, que “nada diz”. De fato, para que uma verdade se torne signi�cativa e seja vivenciada por alguém, precisa que mostre certa vinculação com a existência desse alguém. Sem isso, seria como ter o ouro e não saber transformá-lo em moedas de ouro. Portanto, se é certo que a verdade funda o sentido da vida, não é menos certo que a verdade precisa mostrar-se capaz de informar, quali�car e orientar a vida se não quer permanecer estéril. Com efeito, se a metafísica, como “ciência da verdade” (Aristóteles), não desaguar na ética e na religião, como formas do autêntico “saber viver”, é árvore que não fruti�cou.5 Se na cultura dominante de hoje grassa a “crise de sentido”, chamada comumente “crise de valores”, é porque há por trás dela uma crise mais profunda: a “crise da verdade”, tema no qual insistia o papa Ratzinger.6 Pois sentidos, valores, propósitos existem hoje aos montes. A questão é: são sentidos, valores, propósitos realmente verdadeiros? 2. Questão do ser: ainda anterior à questão da verdade do sentido Certo, a questão da verdade está no fundamento da questão do sentido. O sentido precisa ser verdadeiro se quer efetivamente orientar a vida e levá-la a bom termo. Mas como sabê-lo? Surge então uma pergunta ainda mais fundamental: a “questão do ser”; em particular, do ser real ou objetivo. Pois, que seria um sentido que não corresponde a nada de real ou objetivo? Portanto, para que algo dê um sentido verdadeiro à vida, é necessário que exista realmente. Platão a�rmava que, se há ciência, só pode ser acerca da verdade e que, se há verdade, só pode ser acerca do real.7 Aliás, a metafísica clássica já ensinava que, antes do bonum, temos o verum, mas que ainda antes do verum vem o ens. Esta mesma ordem vige em Deus mesmo, como viu o melhor da �loso�a antiga. É o que declara Santo Agostinho: “Todos os �lósofos que falaram do Deus sumo e verdadeiro reconheceram isto: que Ele é o Autor das coisas criadas, a Luz das cognoscíveis e o Bem das que se hão de praticar; e que Ele é para nós o Princípio da natureza, a Verdade da doutrina e a Felicidade da vida”.8 Também a teologia cristã põe na Trindade a seguinte ordem de origem: primeiro o Pai, como o Ser ou Aquele-que-é; depois o Filho, como a Palavra ou a Verdade; e por �m o Espírito, como o Amor ou a Bondade. Portanto, tudo o que é ou existe (Pai), é também verdadeiro, ou seja, inteligível ou luminoso (Filho), assim como bom, isto é, apetecível ou desejável (Espírito). Para tornar mais claros os pressupostos teóricos da questão do sentido, vale aqui uma comparação. Como a Samaritana do Evangelho de João (cap. 4), temos sede da água do sentido; se não bebermos dela, morreremos. O sentido: eis a primeira questão, a mais urgente. Agora vem a questão seguinte: qual é, onde está e quem tem a água do sentido, aquela que mata verdadeiramente a sede? A verdade: eis a segunda grande questão. Por �m, vem a última questão: Existe realmente essa água viva? O ansiado poço de Jacó seria miragem ou coisa real? A existência real: eis a terceira questão, aquela que é, em si mesma, a mais fundamental de todas. Como se vê, o existencial se apoia no metafísico. Em nosso caso, a questão do sentido e de sua verdade se funda �nalmente na questão do ser, ou seja, daquilo que é, quer no plano da essência, quer no da existência, sendo esta última ainda anterior à primeira.9 Portanto, a “crise de sentido” remete à “crise da verdade” e esta remete, ultimamente, à “crise do ser” ou, melhor, ao “olvido do ser”, para falar como Heidegger. A própria encíclica Fides et Ratio, ao mesmo tempo em que relembra à �loso�a seu objetivo permanente, que é a busca da verdade, também no que tange ao sentido da vida (cf. n. 1, 2, 26-27, 76, 102, passim), vê no “olvido do ser” a raiz última do niilismo (n. 90).10 Portanto, para equacionar bem a questão do sentido, é preciso abordá-la a partir de seus princípios primeiros, o que implica pôr-se no plano da �loso�aprimeira ou metafísica.11 Isso certamente não dispensa a livre decisão da vontade em ordem ao sentido, mas garante a tal decisão a verdade de seu objeto, ou seja, que o objeto escolhido seja verdadeiro. Ademais, a questão do sentido, por ser uma questão natural e universal, só se põe porque sua resposta preexiste à própria questão, e esta resposta só pode ser verdadeira, como é verdadeiro, ou seja, genuíno, tudo o que é natural. O sentido está (objetivamente) dado antes ainda de ser (subjetivamente) achado. E é no vigor de sua presença, mesmo oculta, que se levanta a pergunta sobre ele. E ainda que não poucos pensadores modernos digam que “a questão do sentido não faz sentido”, eles só podem fazê-lo dentro do insuperável horizonte do sentido. A própria opção niilista não passa, muitas vezes, de reação despeitada perante um sentido que se esperava e que desgraçadamente faltou ao encontro. Vê-se, pois, que, no fundo, o niilismo, antes de ser falta de �m, é falta de princípio. O processo de des�nalização e, portanto, de dessigni�cação, só se explica bem por uma obra mais radical: a de desfundamentação. Se o niilista diz que tudo é sem �nalidade, sem sentido e, portanto, que tudo acaba em nada, é justamente porque, para ele, nada tem fundamento, nada segura as coisas no ser. De fato, pensa ele, como teriam ainda um telos as coisas que não têm sequer uma arché? Fica assim claro que, como diz o povo, “o buraco é mais embaixo”, a saber: não no telos, mas na arché. Tinha razão Heidegger em sustentar que o niilismo axiológico de Nietzsche se enraizava em algo de mais profundo: o niilismo ontológico.12 Com efeito, só vale o que é. Vê-se, pois, que a discussão sobre o �m ou o sentido da vida nos leva à questão do princípio. A fórmula metafísica do niilismo é: “do nada para o nada”. É como diz, de modo pessimista, um epitá�o antigo: In nihil ab nihilo quam cito recidimus (do nada para o nada quão rapidamente caímos).13 Tal seria o périplo do ser, um périplo perfeitamente vão, uma aventura sem ventura. Nessa ótica, toda existência é à toa, nada vale a pena. A vida não passaria de sonho, o qual, no dizer de F. Pessoa, seria “tão verdadeiro que não tem sentido nenhum”.14 De tudo o que vimos se depreende que a sinnfrage pressupõe �nalmente a seinsfrage, assim como o �nis pressupõe o principium. Por outras: a teleo-logia tem em sua raiz uma arqueo-logia, ou seja, uma onto- logia. Por outras ainda: a escatologia se funda na protologia. Portanto, a questão do sentido, conquanto seja, para nós (subjetivamente), a questão primeira e mais urgente, não é, em si mesma (objetivamente), uma questão primária e original. É uma questão segunda, derivada: derivada da questão da verdade. Mais: é mesmo uma questão terceira, pois, antes ainda da questão da verdade, vem a questão do ser. Eis, pois, como �ca �loso�camente equacionada a questão do sentido. Outra coisa é resolvê-la vivencialmente. Mas se o encaminhamento da questão é bem-feito, a solução é mais que possível: ela vem a galope. 3. Deus: Sentido, por ser a Verdade e o Ser Vimos que a teleologia, como teoria dos �ns ou dos sentidos, requer em sua base uma arqueologia, ou seja, uma ontologia, como teoria do ser e de seus princípios. É o que a tradição �losó�ca veio a chamar de metafísica. Ora, a grande metafísica, como mostra a melhor tradição �losó�ca, e não só ocidental, culmina na ontoteologia: a teoria de Deus como sendo concretamente o Ens summum. Essa tradição evidencia que, no ápice extremo da razão, o “Ser transcendental”, ainda abstrato, alcança sua forma real e concreta no “Ser transcendente”, ou seja, no “próprio ser subsistente” (Ipsum esse subsistens). Para além disso, o lógos humano não pode ir. Pode ainda apenas pôr-se à escuta de uma eventual palavra que o Mistério pode proferir, porquanto esse pode se revelar quando, a quem e como bem lhe aprouver. A fé judeo-cristã testemunha, por sua parte, que Ele de fato se revelou na história, primeiro como YHWH, “Aquele que é” (e está com seu Povo), e depois, de modo insuperável e de�nitivo, como Uni- trindade em Jesus Cristo. Que signi�ca isso para a problemática do sentido? Que, ao se pleitear Deus como sentido do mundo, importa garantir previamente que Deus exista objetivamente e não é apenas efeito do wishfull thinking. Para Deus ser o sentido verdadeiro e absoluto, pressupõe-se que exista realmente, competindo à razão, se necessário, assegurar-se deste dado primordial. Portanto, do ponto de vista racional, a primeira questão concerne a Deus enquanto “é em si e para si”, de modo que sua de�nição conceitual é precisamente Ens a se et ad se. Só depois é que se põe a questão de Deus enquanto “é para nós”. Ele aparece, pois, primeiro, como “o Existente” por de�nição e, em seguida, como o Existente em relação a nós, podendo, pois, dar sentido à nossa existência. Certo, Deus-em-si somente pode ser entendido enquanto Ele é um Deus-para-nós. Mas esse “para nós” (phainómenon) é apenas condição transcendental para o desvelamento do “em si” (noúmenon). O olho que vê a árvore não determina o ser da árvore, mas dá apenas espaço para que a árvore possa aparecer em sua nudez essencial. A razão não é criadora e sequer formatadora da realidade, como tende a dizer a �loso�a moderna. Não; em sua acepção originária, razão é intuição (noûs), enquanto reconhecimento do mundo tal como ele é “em si mesmo”; é “consciência que vê”; é um abrir dos olhos da mente em direção ao mundo e surpreendê-lo em seu “ser sem pose”; é lógos que acolhe o ser como ser e o deixa entrar em si tal como ele é; é, en�m, “abertura ao mundo” como espaço para a livre epifania das coisas, clareira em que essas coisas podem desdobrar livremente sua essência.15 Em suma, o “para nós” do conhecimento é um “para nós receptivo”, que, como tal, é justamente condição subjetiva do “em si”, ou seja, do conhecimento objetivo. Portanto, antes de mostrar que Deus é signi�cativo para nossa vida, é preciso mostrar que o Deus de que se trata é verdadeiro e, antes disso ainda, que Ele existe. Isso de julgar que Deus existe porque, senão, o mundo seria absurdo, levantou, justamente na cultura moderna, a suspeita de Deus ser uma miragem, isto é, criação imaginária de nosso desejo. Para essa crítica, Deus ora seria apenas mero “funcionário do sentido” ou o “serviçal” de nossa felicidade;16 ora uma invenção da fantasia humana para explicar a irracionalidade do mundo (M. Weber); ora uma elaboração mitológica para confortar a alma perplexa (E. Morin); ora um calmante de nossa angústia diante da contingência e da morte (M. Onfray); ora uma “chave mágica” que abriria todas as portas (W. James); ora a solução ilusória para os problemas sem solução (F. Gullar); ora, en�m, mera fabulação da alma humana em sua desolação existencial (Freud), alienação socioeconômica (Marx) e ressentimento por sua fraqueza e insigni�cância diante dos grandes e bem-sucedidos (Nietzsche). Eis ilustrações da crítica que os modernos, principalmente desde Feuerbach, levantaram contra a religião como “projeção”. Em termos da problemática do sentido, a religião não passaria de um “refúgio dos pobres de sentido”, como declarou um deles.17 Entretanto, como chegamos a mostrar, essa crítica tem seu ponto cego. Ela não viu que o desejo de Deus é natural, e não arbitrário e, além disso, que tal desejo não é puramente subjetivo, mas possui sua objetividade, conquanto segunda. Por causa do caráter natural do desejo de Deus, é normal que o homem busque a Deus, principalmente quando acossado pelo sofrimento. Contudo – e nisso a crítica moderna ajuda –, �car nesse aspecto primário seria ceder a uma concepção funcionalista da religião, incapaz de aceder à sua essência, essência essa que consiste em nossa relação com Deus, que, como absoluto, pede fé absoluta, expressa na adoração e no amor sobre todas as coisas. Portanto, partir da ânsia de sentido para provar Deus vale, sem qualquer sombra de dúvida, do ponto de vista existencial (pedagógico, pastoral etc.); mas, do ponto de vista teórico, vale apenas parcialmente,isto é, como argumento dialético (ou probante), não, porém, do ponto de vista teórico-apodítico, o único que refuta e�cazmente a sempre renovada suspeita da “projeção”. Veremos melhor tudo isso mais adiante (cap. III/2). Efetivamente, a primeira a�rmação digna de Deus é esta: “Deus é Deus”, ponto; o resto vem depois. Pois só “Aquele que é” pode também ser, segura e efetivamente, “Aquele que está ao nosso lado”. Tais são, em verdade, os dois sentidos pelos quais o grande pensamento cristão entendeu YHWH, o nome impronunciável. Começou por entendê-lo, ao modo hebraico, como nomen misericordiae, mas deu-se logo conta de que devia ser entendido também e mais radicalmente, ao modo grego, como nomen substantiae.18 Pois, sem ser ou existir em absoluto, como poderia Deus ser efetivamente misericordioso? Tal articulação foi, de fato, processada, de modo genial, pelo pensamento da fé, de tal modo que fez do sentido metafísico-grego de YHWH o substrato racional do sentido histórico-salví�co. Por outro lado, dir-se-ia ao modo de Lutero: que importa a mim um Deus que existe e é verdadeiro se não é ou não vem a ser “meu Senhor e meu Deus”? Efetivamente, um Deus “em si”, e não “para nós”, como seria ainda digno de nosso interesse, crédito e amor? Para falar como Pascal em seu testamento, esse Deus seria o árido “Deus dos �lósofos e sábios”, não o consolador “Deus de Jesus Cristo”. Só um Deus “diante do qual se possa ajoelhar, rezar e dançar” pode ser o Deus do nosso coração, como queria o velho Heidegger. Tal é, efetivamente, a crítica que a �loso�a hoje dominante faz ao Deus da ontoteologia ou da teodiceia. Essa crítica, contudo, se mostra curta, além de mal posta. É, com efeito, coisa forçada opor a imagem do Deus da fé ao Deus da razão. Sem dúvida, o Deus �losó�co não basta ao homem e ao seu desejo. É-lhe, todavia, necessário como base natural para o Deus da religião e da fé. Pois, se é certo que só um Deus que se interessa pelos humanos pode interessar o coração desses, é também certo que só um Deus realmente existente pode satisfazer sua inteligência e assegurar a seu coração a verdade objetiva do amor que lhe pode tributar. É por isso que a Igreja magisterial nunca avalizou a contraposição entre o assim chamado “Deus da teodiceia” e o “Deus da teologia”. Ao contrário, articulou as duas �guras, fazendo da primeira o prolegômeno da segunda. Digamos, pois, que, antes de ser “o Sentido” para nós, Deus é pura e simplesmente “o Exist-ente”. Para ser-nos útil, Ele precisa antes ser precioso. Pois como poderá Ele nos valer se não é por si mesmo valioso? Disse F. Mauriac: “Um cristão não adere à fé porque é doce, mas porque é verdadeira.”19 É que “a verdade primeiro liberta, depois consola”, como escreveu G. Bernanos.20 Naturalmente, a pessoa humana costuma buscar a Deus tangida pela necessidade. Contudo, se a pessoa �car nesse primeiro impulso cai sob a suspeita de estar buscando um “Deus-tapa-buracos”. Chega sempre o momento em que ela precisa discernir, mais ou menos conscientemente, se o Deus que ela busca é realmente o Deus vivo e verdadeiro, ou se não é um simulacro. Que a “necessidade de Deus” seja nossa prioridade existencial, isso está fora de dúvida. Essa prioridade, entretanto, não pode ser confundida com a prioridade ontológica pela qual Deus aparece em sua verdade essencial e decisiva: o Absoluto. E isso vale também para a religião. Mostrar a importância desta, contentando-se em apelar para a necessidade que todo homem tem de um sentido pleno, é ceder a uma visão utilitarista da religião. É, além disso, praticar uma apologética rasa, que, nesse caso, só pode obter uma vitória de Pirro, como julgava Adorno.21 Pois, como explicava esse pensador, “se uma religião é aceita por causa de algo diverso de seu conteúdo de verdade, suas bases só podem estar minadas”.22 A necessidade de sentido e, por isso, de religião não demonstra a rigor a verdade de um e de outra. Para legitimar uma fé não bastam razões funcionais, relativas à sua e�cácia. É ainda necessário razões acerca de sua verdade intrínseca. Para apresentar uma religião como fonte de sentido, é preciso que a questão de sua verdade esteja resolvida de antemão. Só uma religião verdadeira pode oferecer um sentido verdadeiro. II. DO ALFA AO ÔMEGA E VICE-VERSA A articulação que �zemos acima entre o sentido e seu fundamento encontra sua expressão mais geral na articulação entre o alfa e o ômega, ou seja, entre princípio e �m. Explicitemos a seguir como ela se apresenta, recorrendo especialmente ao testemunho dos grandes pensadores. 1. Princípio e �m se requerem Princípio e �m sempre vão juntos, um remetendo ao outro, como sucede num círculo. Bem disse Heráclito: “Na circunferência de um círculo, o começo e o �m se confundem”.23 Como informam os dicionários de símbolos, o círculo é um dos símbolos geométricos mais difundidos. Representa tudo o que é absoluto, perfeito, completo, total e universal. Por isso, o círculo é símbolo de Deus (porque eterno), da alma (porque imortal), do céu (porque côncavo), do orbe (porque redondo), do cosmos (porque pensado esfericamente) e também do tempo perpétuo ou do eterno retorno (porque circular).24 Por isso também a circulação é tida como a caminhada perfeita, pois ela vai do início sem início ao �m sem �m. A viagem mais bela e acabada é a de volta para casa, após a dor do afastamento e a saudade dos familiares. É como disse Telêmaco, hóspede de Menelau, na Odisseia: “Meu coração é um desejo só: voltar para casa”.25 Portanto, encontrar o sentido último é voltar à origem primeira. De fato, como faz observar Santo Tomás, o desejo supremo de cada coisa é encontrar o princípio de que surgiu.26 E sentencia: “O efeito se volta sempre para seu princípio”.27 Por outras: toda criatura busca seu criador. E é somente quando uma coisa é reconduzida ou restituída a seu princípio que ela encontra sua perfeição e sua alegria.28 Como se vê, o mundo, junto com o homem, encontra seu sentido quando chega a Deus, seu ponto ômega, mas depois de ter partido do mesmo Deus, como de seu alfa. Desse modo, o cume da existência é ao mesmo tempo a fonte dela. Portanto, o curso da existência, tanto humana como cósmica, perfaz um círculo, feito de um exitus e de um reditus. Isso vale de modo exemplar para Cristo, o qual a�rmou: “Sei de onde vim e sei para onde vou” (Jo 8,14). Efetivamente, como registra João, Ele sabia que “de Deus saíra e a Deus voltava” (Jo 13,3). Somos feitos por Deus e para Deus, de modo que só chegamos ao �m voltando para Ele. A odisseia humana e cósmica é um partir para voltar. Nisso concordam místicos como Plotino e Eckhart, e �lósofos como Fichte e Hegel.29 Para Plotino, em particular, o Uno é tanto o começo como o �m da existência da alma, pois só voltando ao seu princípio a alma chega a seu �m.30 Não é muito diferente para o Estagirita, segundo o qual, se Deus é a arché que tudo move (primeiro motor), é precisamente por ser o telos “desejado” por todos os seres.31 Orígenes está tão certo de que o início e o �m da história se fundirão que funda aí seu polêmico theologoúmenon da apocatástasis, ou seja, a tese teológica da restauração �nal em Deus de toda a criação, inclusive dos demônios. Pois, argumenta, se tudo saiu bom das mãos de Deus, tudo deverá voltar bom para lá. O pecado não passaria de um acidente de percurso que não muda a rota �xada, acidente que é reparado no curso mesmo do caminho de volta.32 Nessa questão, Sto. Tomás é axiomático: “O Fim responde ao Princípio”.33 A grande lei da história, para o Angélico, se formula como exitus a Deo et reditus ad Deum. E foi segundo o símbolo dessa lei, o círculo, que o Angélico estruturou toda a sua grande Suma: “de Deus para Deus”, fórmula que Alois Dempf declarou “meta�sicamente grande”.34 Para o Aquinate, o exitus a Deo pede a reditio in Deum, para poder se fechar e, assim, se consumar.35 É como o rio que volta à fonte sob a forma da chuva, para de novo re�uir.36 Assim, escreve ele, no mundo “efetua-se certo movimento circular (regiratio seu circulatio),de sorte que todas as criaturas retornam a Deus, como a seu Fim, do qual também provieram, como de seu Princípio”.37 Ademais, para o Angélico, a Veritas prima é também o “�nis de todos os nossos desejos e ações”.38 Deus é, pois, ao mesmo tempo a origem e o destino do homem e do mundo. Assim, a circulatio de Deus para Deus é o caminho pelo qual a criação se aperfeiçoa. “O princípio e o �m do universo são uma coisa só (...). Por isso, tanto a criação (...) como a graça provêm somente de Deus (...), primeiro princípio e �m último das criaturas.”39 Mas não seria essa visão circular uma visão mítica da história, contrária à visão bíblica, que seria linear, como sustentava Oscar Cullmann e muitos outros depois dele?40 Em verdade, essa é uma contraposição esquemática que, por ser demais simplista e cômoda, foi criticada por teólogos importantes.41 Em verdade, essas duas concepções não se opõem. Com efeito, a processio não exclui certa circulatio. Só exclui a circulatio mítica do “eterno retorno do mesmo”, versão moderna do mito arcaico do Ouroboros, a serpente que devora sua própria cauda.42 A história envolve efetivamente os dois movimentos: o circular, enquanto nela se trata sempre do homem e de suas eternas paixões; e o linear, enquanto nela o espírito humano avança, e não só tecnicamente.43 De fato, o que faz a história ser o que é senão a tensão entre as singularidades, que se sucedem como �echas, e as repetições que voltam sempre como num círculo?44 Portanto, o movimento da história não é nem só linear nem só circular, mas é a síntese de ambos, como numa espiral. Toynbee compara justamente a história a um carro, cujas rodas giram sobre si mesmas, mas que, em virtude mesmo desse movimento circular, segue em frente.45 Na visão especi�camente cristã do tempo, o tempo segue em linha recurva, de modo que, enquanto dá suas voltas, avança vetorialmente em direção a um termo conclusivo. Portanto, o percurso histórico-salví�co do êxitus et réditus não é simplesmente um círculo (repetitivo), mas uma espiral (progressiva). Ademais, seu avanço é irreversível em virtude do ephápax cristológico (cf. Hb 7,27; 9,12; 10,10) que pulsa em seu centro, impedindo o processo de voltar sobre si mesmo ou, antes, impelindo-o infalivelmente, se bem que não fatalmente, em direção ao Reino escatológico. Só uma visão espiralada, e não simplesmente circular, explica por que Deus criou o mundo. Pois, que utilidade haveria para o mundo em sair de um ponto para simplesmente voltar ao mesmo ponto, fosse tal ponto Deus? Nesse caso, não valeria mais �car lá onde estava? Mas não; Deus criou o mundo para que progredisse, se aperfeiçoasse e atingisse sua plenitude. É o que evoca justamente a �gura da espiral. Sem dúvida, o mundo voltará a Deus, não, porém, como partiu, mas carregado de todas as riquezas que recolheu no caminho. É assim que efetivamente a Escritura imagina o �m dos tempos: como colheita de uma seara que amadureceu (cf. Mc 4,29; Mt 13,39; Ap 14,14-20). O ser humano, de modo todo particular, por causa de sua liberdade, agrega, sim, algo ao plano divino, não, certamente, por necessidade, mas pela livre disposição de Deus, que quis parceiros para sua obra. Deste modo, o Ômega em que deságua a criação não aparecerá apenas como o Alfa reencontrado, mas como o Alfa consumado, ou seja, como a entelécheia do mundo, entendida como sua realização plena e perfeita.46 Eis, pois, a maravilhosa espiral que desenha a aventura humana e cósmica: nascemos de Deus e de seu Amor, e somos destinados a Deus e à sua Glória.47 O Primum principium é também o Finis ultimus, e a Caritas prima (Ap 2,4) é também o Summum bonum. Tal passagem, porém, não se dá sem que intercorra entre um ponto e outro o labor produtivo da história salví�ca. Portanto, a protologia pede e espera a escatologia, como parusia do Deus semper maior. Tudo isso mostra que não estamos “precipitados” ou “jogados aí”, no meio das coisas, nem somos um “acidente” de percurso da evolução, como julgam não poucos pensadores modernos. Antes, fomos criados pelo Amor primeiro e para o Amor último. É, pois, sob o grande arco de um misterioso desígnio de amor que o homem e o mundo cumprem seu dramático e ao mesmo tempo esplêndido destino. 2. Articulação entre “arché” e “telos” Vimos que arché e telos, para perfazerem o todo, requerem-se mutuamente; não, contudo, pelas mesmas razões, mas por razões distintas. T. S. Eliot, no poema East Cock, escreveu no primeiro verso: “Em meu princípio está meu �m”; e no último verso: “Em meu �m está meu princípio”.48 Parecem formulações perfeitamente reciprocáveis, quando, em verdade, são distintas. A primeira se situa propriamente na ordem do ser, enquanto a segunda está na ordem do fazer. Comecemos, pois, desenvolvendo o primeiro sentido, isto é, que o princípio inclui o �m e pulsa em sua direção. O princípio é efetivamente a mola que leva as coisas a seu termo. Se o princípio não contivesse de algum modo o �m, este não passaria de puro “objeto de desejo”, um sonho ilusório e nada mais. Mas, se o �m dá sentido, é justamente porque se antecipa ao próprio desejo para atraí-lo como princípio primeiro de seu movimento. Por isso, Aristóteles aconselha: sempre “salvar o que importa: o princípio”.49 Pois, estando salvo o princípio, o �m e tudo o mais podem ser salvos. Ao contrário, como emenda Santo Tomás, “em tudo, a pior degeneração é a do princípio, do qual depende todo o resto”.50 Também Platão sentenciou: “O princípio é como um deus, que tudo salva”.51 De fato, se a raiz está viva, a árvore pode reverdecer. Na re�exão �losó�ca, a ideia de “princípio” tem um lugar central, se não é mesmo a ideia formalmente fundante de toda a �loso�a. Pois, que é �loso�a, no fundo, senão o pensamento que busca os princípios primeiros de tudo? Foi provavelmente Anaximandro o primeiro pensador a conferir ao termo princípio, arché, densidade epistemológica ao aplicá-lo ao ápeiron, o in�nito, que identi�cou com Deus mesmo.52 A sentença de Hipócrates “é o mesmo o princípio e o �m” parece dizer que o �m está contido no princípio, se não, o princípio não seria tal.53 Para o Doutor Angélico, o principium difere de tudo o mais pela dignidade, pelo poder e pela causalidade.54 Também para Heidegger o anfängliche, o inicial, é o que mais importa, donde poder-se tirar o truísmo: o princípio é o principal. Para aquele pensador, o princípio é virtualmente tudo, tal uma fonte perene de que �uem todos os rios, ou uma reserva de riquezas que esperam vir à luz. Diz ele: O princípio tem a “paz que guarda sua hora”.55 Ricoeur fala da arché como Ursprung, o originário sem origem, o “começo sem início”.56 Cacciari diz o mesmo, apenas invertendo o vocabulário: dá à arché o nome de “início”, o qual seria o incondicionado, condicionando tudo o mais, inclusive o que chama a “origem”.57 Como dissemos, o princípio contém tudo e mais ainda o �m e o sentido que dele provém. Criticando a ideia de progresso como “veneno” a ser extirpado, escreve S. Weil: “Nada pode ter por destinação senão aquilo que tem por princípio”.58 Isso vale especialmente quanto a Deus, como viu Pascal: “É impossível que Deus jamais seja o �m se Ele não é o princípio”.59 R. Guardini explica que Deus é princípio, sim, mas um princípio que nos acompanha até o �m; e é também �m, o �m que atua desde o princípio, de modo que toda a existência é, sim, thêsis para um telos, ou seja, posição voltada para um objetivo, mas arrancando sempre de uma arché.60 Portanto, a a�rmação de um Deus consumator, que a tudo dá sentido, só pode se sustentar sobre a base da admissão do Deus creator. Efetivamente, se se admite que o �m assenta sobre o princípio, então, se não há Criador (pessoal, providente e amoroso), também não há um Finalizador (consumador, juiz e salvador escatológico). Precisa, pois, dar por assentado que, se Deus cria, cria-para, ou seja, cria com um propósito; cria, portanto, em função de um �m. Logo, toda criatura tem um sentido. Mas, excluída a ideia de criação, como aparece o mundo? Como puro devir que se desvaneceno nada. E o homem? Mero geworfene, como diz Heidegger, ou, traduzido com as palavras de F. Pessoa, um ser “arremessado para o mundo”. Seria, pois, um ser casual, joguete talvez de uma potência cega e impessoal, tal o Destino dos antigos. Seria, em suma e �nalmente, o desgraçado “ser para a morte”, lobrigado pelo �lósofo citado. De fato, o que pode esperar um geworfene? Se os niilistas modernos negam à vida o �m último, é por lhe negarem de antemão o princípio primeiro. Ou seja, seu niilismo provém de seu ateísmo. De fato, quem nega Deus perde o norte existencial e, consequentemente, o rumo da vida. O mundo então se torna absurdo, inclusive em seu sentido etimológico: parece não só caótico, mas cacofônico. Não se pode, por outro lado, encarecer de tal modo o princípio que se venha a desvinculá-lo de toda conclusão prática. Seria cair no erro do “principismo”, fatal na vida política e mais ainda no agir moral. Em verdade, princípio é sempre “princípio de”, de sorte que “princípio só” não é princípio. Todo princípio verdadeiro pulsa na direção da aplicação, como a semente em direção à planta. Mesmo assim, o princípio não esgota seu vigor em suas aplicações efetivas, mas guarda sempre o segredo de novas aplicações, sem o quê, estas se degradam em agitação, tumulto, rotina e tédio. Essa consideração já nos encaminha para o segundo polo da dialética entre arché e telos. Efetivamente, tudo o que acabamos de ver vale no plano ontológico. Como dissemos, é nesse plano que o princípio vem primeiro e reina. Já no plano da ação, é o �m que tem a primazia. “No plano do desejo e da ação, o �m vale como princípio”, sentencia o Aquinate.61 Pois é o �m que move o agente a agir. De fato, agente algum age ou produz alguma obra simplesmente por acaso, mas sempre em vista de um �m, isto é, de um propósito. O �m nele se antecipa à execução. Portanto, na ordem prática, é a causa �nal que anima e move a causa e�ciente, como, de resto, todas as outras causas, podendo, assim, ser chamada de “causa das causas” ou “princípio dos princípios”. Retomando o célebre dito agostiniano, se foi Deus que nos fez (“�zeste-nos”), só podia nos ter feito para Ele (“para Ti”), já que somos dotados de espírito e, portanto, abertos ao in�nito. Quer dizer: se viemos de Deus é para voltarmos para Ele. Ou, numa fórmula de Pio XII, se somos ab Alio é para sermos ad Alium.62 À diferença do que sucede em nós, mortais, princípio e �m são, como num círculo, uma só coisa no seio do Eterno.63 Diz justamente o Angélico: “Em Deus esse círculo se fecha sobre si mesmo”.64 Sendo Absoluto, Deus é a arché e o telos absolutos: o princípio sem princípio e o �m sem �m. Mas, enquanto Ele é, em si mesmo, simultaneamente Alfa e Ômega, para nós, contudo, Deus aparece distinto: aparece como Criador, enquanto é princípio; e como Consumador, enquanto é �m. Assim, como Causa primeira, Deus é adorável; como Destino último, é amável. Portanto, começo e �m são coisas da história, não da eternidade ou de Deus, que não tem começo e �m, mas é começo e �m da história.65 Em Deus há começo e �m apenas como processo eterno ad intra, no seio da Trindade, processo que, em seguida, se re�ete ad extra como curso do mundo, cujo processo é, ao mesmo tempo, origem, forma e fundamento.66 Portanto, o mundo vem de Deus em função de um “para”: para voltar, enriquecido, a Deus. É, pois, como Criador que Deus é também Planejador. É porque Ele é o primeiro Agente que Ele é também o último Fim. Isso signi�ca que, quando Deus cria, cria já segundo um plano e com um propósito: trazer a criatura para junto de si, fazendo-a partilhar de sua felicidade. Essa não é uma �nalidade que aproveite a Deus (�nis cui), já que, sendo plenitude, Ele não precisa de nada. Ao contrário, trata-se de uma �nalidade absolutamente gratuita (�nis qui), que redunda em proveito exclusivo da criatura.67 Com efeito, Deus opera ad extra exclusivamente segundo um “plano de amor” (cf. Ef 1,3-11). É isso que o move à criação, redenção e consumação do homem e do mundo. Diríamos então que o “sonho de amor” que Deus tem para sua criação é efetivamente o motor de toda a história da salvação. E é desse “sonho de amor” que provém todo o sentido do mundo. III. O SENTIDO: NÃO INVENTADO, MAS DESCOBERTO E INTERIORIZADO Os antigos, com a ideia de “destino” ou “fado”, julgavam que o sentido já está dado e que a ele o mortal tem que se dobrar. Os modernos, com seu cioso antropocentrismo, acham que o sentido é algo que o homem se dá segundo seu arbítrio. A verdade, porém, está no meio: o sentido não é fatal (fatum), nem feito (factum), mas é algo dos dois. 1. A dupla face do sentido O sentido ou �m último de nossa vida é nossa realização plena. É o desabrochamento de todo o nosso ser em todas as suas potencialidades. É a a�rmação soberana de nosso ser. Numa palavra mais comum, é nossa felicidade plena. É isso justamente que todos, em todos os lugares e desde sempre, desejam ansiosamente, de modo consciente ou inconsciente. Por que é tal o nosso destino, �nalidade ou sentido da vida? Porque tal é também nossa constituição ontológica. Como dissemos: atrás da questão do sentido está a questão do ser, da identidade ou verdade de nosso ser. Portanto, o sentido �nal de nossa vida já vem inscrito em nosso DNA ontológico. Ora, nós, como seres racionais, somos abertos ao in�nito, ao eterno. É lá que está nosso sentido último. Tal sentido último, conquanto ainda formal e abstrato, vago e geral, é algo de inelutável. Ele não cai debaixo de nossa vontade ou decisão. Não é, pois, algo de disponível, de opcional. Quem, de fato, opta por se desgraçar, se perder e se aniquilar? Essa �nalidade ou sentido último é tão indisponível e inexorável que se pode chamar de destino ou, talvez melhor, destinação. E é tão pouco matéria de escolha, como o são os axiomas geométricos ou o curso dos astros. Digamos, pois, que o sentido último, entendido como nossa realização plena, é supremamente objetivo. Trata-se, porém, de uma objetividade que nada tem de impositivo, mas de grati�cante. Que bom que somos assim e que nosso destino é o desabrochamento do que somos! Agora, porém, vem a pergunta: Em que consiste concretamente esse sonho irreprimível? Melhor ainda: como alcançá-lo? Por que caminho? É aqui que entra a nossa liberdade. É nesse ponto que somos interpelados, intimados mesmo a fazer nossa opção. É como diz o Angélico: “O que age por vontade preestabelece para si o �m pelo qual age, diferentemente do agente natural, que age em vista de um �m preestabelecido por outro”.68 Nesse ponto, as opções são as mais variadas possíveis. Elas vão desde a busca das riquezas até a busca de Deus, passando pela prática do amor e da justiça. Normalmente esses modos pessoais de realizar o sentido último são chamados de “ideais”, “propósitos” ou “projetos fundamentais” de vida. Portanto, a �nalidade última do homem ou o sentido da vida tem um aspecto objetivo, que é inelutável; e tem um aspecto subjetivo, que é opcional.69 Os estoicos chamavam o �m objetivo e geral de télos, e o �m subjetivo e concreto de skópos. Ora, é nesse último plano que se põe concretamente a grande pergunta hoje: a pergunta sobre o sentido. Pois, se sou destinado à felicidade, quero saber em que consiste e como lá chegar. É como o jovem do evangelho que, ansioso, como todos, por entrar na vida eterna, pergunta: “Mestre, que devo fazer de bom para ter a vida eterna?” (Mt 19,16). E toda a questão aqui é encontrar um ideal ou propósito concreto de vida que seja verdadeiro, a saber: que seja adequado ao �m último ou, por outras, que leve efetivamente lá. Será o dinheiro, o poder, o sexo, a ciência, a política? Ou então a ética? Ou �nalmente a religião? Não vale, portanto, qualquer opção. E mesmo que eu descubra a opção verdadeira, é preciso que eu a assimile, a vivencie ou, como se diz, a subjetive. Eu preciso aderir ao sentido mais consistente, acolhê-lo, seguir por ele, como o caminheiro segue pela estrada. Se bem que a estrada já esteja traçada e conduza ao destino (é o sentido dado),o viajante necessita fazer sua caminhada, se quer chegar àquele destino (é o sentido acolhido). Se o caminhante não quiser perder o caminho e assim se perder, é mister que siga consciente e deliberadamente pela estrada feita.70 O sentido tem efetivamente dupla face: material e formal. É material quando tomado em sua grandeza autônoma e objetiva. É, por exemplo, o dinheiro para o avarento e Deus para o adorador. E é formal quando apropriado subjetivamente. É a posse do dinheiro para o avarento e é a comunhão com Deus para o adorador. Sob o primeiro aspecto, trata-se do sentido simpliciter falando; sob o segundo, do sentido visto operative.71 É a diferença entre jogo e jogada: jogo é o lado objetivo do sentido, coisa de todo o mundo; jogada é o lado subjetivo do sentido, coisa de cada um. Em suma, sentido é sempre “sentido-de”, e essa é sua face objetiva; e é ao mesmo tempo “sentido-para”, e tal é sua face subjetiva. Explicitemos como essas duas faces se articulam. De fato, o sentido é em parte predeterminado e em parte a se determinar.72 De um lado, o sentido é pré-constituído e, do outro, ele é a se constituir enquanto livremente abraçado. Ele é pré-existente e ao mesmo tempo a se efetuar. Só nos seres sem razão o sentido é �xo, ou seja, predeterminado, como o curso da �echa para seu alvo.73 É tão somente em Deus que o sentido é, ao mesmo tempo, absolutamente determinado (por sua essência) e absolutamente livre (por sua vontade libérrima). As duas faces do sentido, respectivamente objetiva e subjetiva, correspondem à dupla dimensão do ser humano, que é ser de natureza e, ao mesmo tempo, um ser de liberdade. Como ser de natureza, está dado, tem uma estrutura ontológica; como ser de liberdade, ele se faz, atuando as possibilidades inscritas em sua estrutura. Como ser de natureza, nasce e vive dentro das condições prévias à sua existência; como ser de liberdade, pode optar livremente a partir e no seio dessas condições. Como ser de natureza, ele tem um “destino”, uma sina, que é, por exemplo, ter tais genitores, ser varão e viver em tal tempo; como ser de liberdade tem uma “destinação”, uma vocação, que é o modo como elabora seu destino segundo um propósito a se dar, como, por exemplo, constituir família, assumir tal pro�ssão e morar em tal cidade.74 Ora, como ser de natureza, o homem “tem sentido”: o sentido embutido em sua estrutura espiritual; como ser de liberdade, ele “dá sentido” à sua vida, elaborando aquele sentido em função de uma opção livre. Por isso o sentido, para começar, não se inventa, mas se descobre e, depois de descoberto, se segue; não se cria, mas se reconhece e, depois de reconhecido, se vivencia. O sentido é como o tesouro escondido no campo de que falou Cristo (cf. Mt 13,44): importa descobri-lo para dele tomar posse. O sentido não se produz, mas se revela e, depois de revelado, se assume. A palavra do verdadeiro buscador do sentido soa: “Se assim é, pois que assim seja!”. Sim, as coisas “têm sentido” (sentido objetivo), mas é preciso que o homem também “dê sentido” (sentido subjetivo) às coisas, apropriando-se do sentido dado e conformando-se a ele, assim como o caminheiro se conforma às voltas do caminho para chegar ao seu destino. Digamos, pois, que o sentido faz o homem, sim, mas que também o homem faz o sentido. Poder-se-ia sinteticamente dizer: o homem “dá” à vida o sentido que ela “tem”. Se, por um lado, o sentido é preestabelecido pelo desígnio divino, inscrito na ordem da natureza e também na da graça, por outro lado ele é cumprido não só pelo homem, mas igualmente pelo mundo físico; aquele, porém, livremente, e este por necessidade. Conquanto não seja produzido, mas dado, o sentido requer sempre do ser humano um ato de liberdade. Ademais, acolher um sentido já dado exige muito mais de nosso livre-arbítrio do que produzir o próprio sentido. Pois é diante do que a supera que nossa liberdade é desa�ada ao extremo. Isso se veri�ca, por exemplo, nos grandes infortúnios da vida e especialmente diante da morte. Assim, aceitar a morte que nos é reservada é uma manifestação mais alta de liberdade do que escolher o próprio gênero de morte, seja lá o que digam os que, em defesa da eutanásia, fazem apelo à pretensa “liberdade de morrer”. Igualmente, entrar numa câmera de gás orando e abençoando os inimigos exige uma liberdade maior e mais elevada do que fazê-lo blasfemando a Deus e amaldiçoando os algozes, como mostrou Viktor Frankl.75 A chamada “liberdade de consentimento” perante o que nos transcende é efetivamente a mais alta expressão de nossa liberdade. E, entre todas as formas de consentimento, a mais alta é a que se manifesta na obediência da fé, como é maximamente evidente no �at à vontade de Deus, dado por Jesus no Getsêmani (cf. Mt 26,42; Hb 10,7-10) e, depois, no �at que sua Mãe deu à palavra de Deus na Anunciação (cf. Lc 1,38).76 De resto, a fé, assim como o sentido, de que é a forma suprema (em verdade, sobrenatural), tem esta dupla face: objetiva e subjetiva. É objetiva enquanto me é proposta em toda a sua positividade histórica e dogmática (�des quae), sendo nisso um dom de Deus; e é subjetiva enquanto a acolho e vivencio (�des qua), tanto que Lutero ousou chamá-la “criadora da divindade”, “em nós”, porém.77 Digamos, para concluir, que, embora o sentido possa ser de antemão �xado, ele precisa ser livremente aceito. Sendo o alvo da vida, o sentido está certamente já pre�xado. Ele precisa, contudo, ser atingido pelo homem, e isso não se dá sem a intervenção de sua liberdade. Depois de termos visto como as duas dimensões do sentido se entrelaçam, vejamos cada uma delas em si mesma. 2. A face objetiva do sentido Que o sentido é algo de real e objetivo, ou seja, que não é posto ou criado arbitrariamente por nós, mas está nas próprias coisas, isso �ca evidente quando se faz a análise da experiência do sentido. De fato, diante do sentido, nos pomos naturalmente numa atitude de busca, de escuta, de espera. E, quando o sentido aparece, sentimos que ele se impõe efetivamente a nós: surpreende-nos, arrebata-nos, ilumina-nos e guia-nos. E se nos opomos a ele, ele nos resiste. E se não o seguimos, continua, assim mesmo, a nos acenar e atrair. Se traduzirmos a experiência do sentido em termos de valor, vemos que a objetividade do sentido �ca ainda mais clara. A tradução do sentido em valor é possível, como vimos, em virtude do seguinte encadeamento lógico: o sentido provém do �m, o �m é o bem que se busca, e o bem é valor; portanto, o sentido é o valor. Pois bem, postos perante um valor, sentimos sua atração, sua solicitação, sua provocação. Ele nos exige e nos impele para o mais, para o mais alto. Essa objetividade, melhor ainda, essa ascendência e eventual transcendência do valor em relação à nossa consciência experiencia-se em particular no senso ético, o qual, quando é seguido, provoca fatalmente em nosso íntimo aprovação e paz de consciência e, quando é contrariado, provoca desaprovação e remorso. A experiência da objetividade do valor põe em evidência que o valor é uma qualidade transcendental que afeta as coisas em sua constituição própria. As coisas são boas “em si mesmas” (se bem que não “por si mesmas”, mas pelo Summum bonum, fonte originária de toda bondade). Elas são ontologicamente dignas e, por isso, apetecíveis, desejáveis, amáveis. Essa bondade das coisas é natural, nativa. Não é derivada, deduzida e muito menos projetada por nossa imaginação ou produzida por nosso livre-arbítrio. De resto, a grande tradição clássica, herdada pela Igreja, ensinou que a fonte primeira de valor e, por conseguinte, de sentido de uma coisa é a própria coisa em sua natureza íntima, vindo em seguida, e só em seguida, a intenção ou o sentido subjetivo, agregando-se, por �m, as circunstâncias exteriores.78 A objetividade do sentido resplandece quando se trata do sentido do mundo universo. Como a existência deste independe do homem, seu eventual sentido independe igualmente dele. Portanto, se o universo tiver um sentido, esse só pode ser transtemporal. Pois, seo sentido invocado for posto dentro do tempo, participará de sua problemática (�nitude, morte) e ele mesmo exigirá um sentido. É o que requer a boa lógica, como mostram inúmeros pensadores, e dos grandes.79 O sentido do todo não pode, em absoluto, ser criado pelo homem, mas preexiste necessariamente a ele e o supera in�nitamente. É, portanto, um sentido supremamente objetivo, por ser precisamente, segundo a expressão de F. Pessoa, “o inominável supertranscendente”.80 Sendo “transcendente a mais não poder”, esse sentido é inalcançável e indisponível ao homem, a menos que ele não se revele graciosamente e não se entregue de alguma forma. Ora, a objetividade transcendente do sentido se mostra com toda a força no mistério da encarnação do Lógos, o Sentido ou Razão de tudo. Nesse mistério o Sentido tornou-se tão objetivo que se fez “carne” (Jo 1,14), dando-se, assim, a ver, ouvir e tocar com nossas próprias mãos (1Jo 1,1- 2).81 Dessa forma tornou-se o Norte para onde aponta a agulha magnética de todos os espíritos. A esses compete apenas, mediante a fé, deixar-se atrair por esse divino magneto, sem pretender alterá-lo, como diz muito bem Charles Péguy: Há gente que quer aperfeiçoar o Cristianismo. É assim como querer aperfeiçoar o Norte, a direção do Norte. Que prêmio de inteligência não mereceria quem quisesse aperfeiçoar o Norte! Existem direções, rumos, que foram fixados uma vez por todas: o Norte no mundo físico e o Cristianismo no mundo místico. Há pontos que foram dados uma vez por todas em ambos os mundos, no mundo natural e no mundo sobrenatural, no mundo físico e no mundo místico. E todo o trabalho, todo o esforço deve ser, ao contrário, no sentido de manter esses rumos, essas orientações, em vez de melhorá-las.82 Mas, se Deus é o sentido absoluto do mundo, não o é em função de si próprio, mas do próprio mundo, que, sem Ele, seria absurdo e sequer existiria. Mas se Deus é o sentido absoluto de tudo, qual é o sentido de Deus? Ora, Deus não tem sentido; Ele é sentido, pura e simplesmente. Aprouve, contudo, a Deus dar-se um sentido extra se, como professa o Credo niceno-constantinopolitano: “e por amor de nós homens e de nossa salvação, desceu dos céus”. É o que se deu no evento-Cristo. Mas, ainda que a obra salví�ca de Deus tenha o homem por bene�ciário imediato, ela redunda, ao �m e ao cabo, ad maiorem Dei gloriam, sendo Cristo o mediador único tanto da salvação do homem como da glori�cação de Deus. Reencontramos assim a grande espiral da história da salvação: ex Deo, per Christum, in Deum. 3. A face subjetiva do sentido A experiência da exterioridade (objetiva) dos valores é, ao mesmo tempo, a experiência de nossa interioridade (subjetiva), a que apelam os mesmos valores, em vista de sua apropriação pessoal, de modo a se tornarem valores acolhidos, amados e seguidos. O valor pede a abertura do espírito (razão e vontade), como a luz pede a abertura dos olhos e a música, a dos ouvidos.83 É a ideia de “subjetivação”, que, quando autêntica, é sempre subjetivação de algo que está aí, e não autoprodução arbitrária, quando não imaginária. O momento subjetivante do sentido revela que cada um, como foi dito, é “pai de si mesmo”, ou seja, forja seu próprio destino, segundo a máxima antiga: Faber est suae quisque fortunae. Nessa linha, eu “construo” meu mundo, de modo que “o mundo é meu próprio mundo”, como escreveu Wittgenstein.84 Não construo, porém, “meu mundo” do nada, ad libitum, mas reprocessando o mundo que aí está, em sua facticidade, a partir de minhas próprias opções. Como enfatizaram os chamados existencialistas, somente o ser humano, a rigor, “ex-siste”, no sentido de emergir da imanência do mundo para a liberdade e a criação. “Ex-sistir” seria estar fora e além de si mesmo. É o que funda a chamada autotranscendência. Enquanto o “viver” é um ato passivo e, no limite, vegetativo, o “existir” é ativo e posicional, é transiente e transcendente. Existir signi�ca cumprir a própria vida, desenvolvendo as múltiplas possibilidades que ela traz. É ser executivamente, erguendo-se acima do próprio ambiente e de seus condicionamentos. Existir, en�m, é amar viver, é importar-se com viver; e não viver, assim, sem mais.85 Certo, existir é sair da imanência, mas para ir aonde? Para um existir mais e um existir melhor. Para tanto, existir comporta um decidir, e isso a partir do próprio poder-ser. É, pois, um abrir-se ao futuro de si mesmo. O ser humano é aquilo que pode ser e que decide ser. Sob esse aspecto, a existência precede a essência, como queria Sartre. A decisão, contudo, não passará de expressão da “vontade de potência” se não conta com o a priori do sentido objetivo. Notemos, porém, que existência é mais que abertura para o futuro de si. É também abertura ao real total, portanto também ao in�nito. Em síntese, o homem é um ser que “tem” existência, uma existência relativa, derivada daquele Ser que, por sua vez, “é” existência, a existência absoluta.86 Já que o sentido, em sua objetividade mesma, corresponde à abertura estrutural da subjetividade humana, ele não se impõe automaticamente ao homem nem pode ser imposto violentamente. O sentido pode ser apenas proposto. Ele só pode, pois, apelar para a liberdade do homem e interpelar sua consciência, podendo então ser aceito ou rejeitado. Nesse último caso, porém, quem sai frustrado não é o sentido, que permanece o que é, em sua soberana objetividade, mas o próprio homem, que perde em integridade e realização. Ora, quando é o sentido transcendente do mundo que interpela nossa liberdade, é então que a interpela no grau mais extremo. A transcendência, como suprema objetividade, exige a mais radical subjetivação. Essa se realiza em termos de uma aceitação e de uma entrega que são intencionalmente ilimitadas. Tais atitudes correspondem, respectivamente, à fé e à adoração, expressões de uma liberdade em sua abertura mais extrema. Assim, quanto mais o Summus se torna Intimus, mais o ser humano se realiza, ou seja, se diviniza. A liberdade, porém, habitada que é por uma estranha compulsão para o mal, necessita da libertação da graça para poder crer e adorar comme il faut. Com efeito, como o escritor convertido Julien Green (+1998) pôs em relevo em seu romance Moïra, o ser humano nasce marcado por essa misteriosa e trágica “fatalidade” de pecar, donde o nome do romance.87 Essa “fatalidade”, como efeito da Queda primordial, foi bem descrita por Paulo nos primeiros capítulos da Epístola aos Romanos, especialmente em 7,14-26. Contudo, mais que móira (fatalidade), valeria chamá-la de anánke (necessidade), como faziam os antigos, que aplicavam esse conceito não só aos determinismos exteriores e �siológicos, mas também aos interiores, como os psicológicos (compulsões) e os morais (vícios).88 Desses últimos, efetivamente, quem poderá quebrar as correntes senão, como exclama triunfante o Apóstolo, “a graça de Deus por Jesus Cristo Nosso Senhor” (Rm 7,25)? Essa foi, com efeito, sua experiência maior, como é a de todo aquele que se converte ao Senhor. IV. NIILISMO COMO POSIÇÃO INTELECTUAL E SUA REFUTAÇÃO Ao termo de toda a re�exão de talho �losofante que �zemos nesse capítulo, ensaiemos uma brevíssima apreciação crítica do niilismo, primeiro, e principalmente, como pensamento; depois, como �loso�a de vida; em seguida, como posição fundada no puro devir; e �nalmente, em suas consequências práticas. 1. Niilismo como �loso�a de rigor Que vale, pois, o niilismo como lógos ou, melhor, como �loso�a teórica, condensada na fórmula sumária “tudo é nada”? Digamos de chofre que, em rigor de �loso�a, o niilismo �losó�co nada vale, e isso a partir de suas próprias palavras. Pois dizer que tudo é nada não é, porventura, dizer que a realidade é a não realidade, que o ser é o não ser? Ora, de toda evidência, isso vai contra o princípio mais elementar de todo o pensar, para não dizer da metafísica, princípio esse formulado por Parmênides, quando disse: “O ser é o ser e o não ser é o não ser”, o que Aristóteles denominou “princípio de contradição” e os modernos de“princípio de identidade”. Portanto, o niilismo �losó�co é impossível, por ser contraditório.89 Se ele existe, pois está aí, no mercado �losó�co, só pode ser como pseudo�loso�a, uma �loso�a aparente, em suma, como uma �loso�a sofística. De fato, como viu Platão, o so�sta se compraz no não-ser, enquanto o �lósofo busca o ser.90 Efetivamente, dizendo que tudo é nada, que quer o niilista senão propor uma �loso�a do não ser, ou seja, em termos técnicos, uma “me-ontologia” (mê on = não ser)? Ora, isso é possível, sim, mas apenas como retórica. É o que já tinha feito Górgias, famoso retórico grego do século V, num escrito (o que não aceita o papel?) que intitulou precisamente “Sobre o não-ser”.91 Essa empresa �losó�ca é tão extravagante que, para escarnecer do falar empolado e vazio, os gregos cunharam até a palavra “gorgear” (talvez pudéssemos, por assonância, traduzi-la por “gorjear”). A sofística niilista hoje é tanto mais sedutora quanto mais bem falante, como é evidente no caso de Nietzsche. Mas, disse Platão, quem fala o nada, nada fala.92 2. Niilismo como �loso�a de vida e sua base: o ateísmo Se como �loso�a de rigor o niilismo é nada, já como �loso�a de vida, como postura existencial, o niilismo é um “caso sério”. Em verdade, está aí seu forte. Pois, conquanto tome as vestes do logos, o niilismo é principalmente um pathos, ou seja, o sentimento do absurdo. O niilista professa que, embora haja coisas da vida que têm sentido, a vida como um todo já não tem sentido, pois tudo terminaria na morte, portanto no nada. Algo disso a�rmam também as religiões, só que essas encarecem mais ainda a realidade da “outra vida”, coisa que falta totalmente no niilismo. Ademais, carecendo de logos em sua base, o pathos niilista, embora beirando o trágico, carece de espessura ontológica. É o que observou K. Rahner: “Quem vive sem encontrar sentido em sua existência não tem o direito de considerar muito profundo seu ceticismo. Não é preciso cavar muito fundo para concluir que nada existe por detrás do mundo visível. Essa pretensa ‘profundidade’ não se distingue da super�cialidade”.93 Observemos que, como �loso�a de vida, o niilismo não é sequer originário, pois, como dissemos muitas vezes, o niilismo deriva do ateísmo. É precisamente porque desertou de Deus que a alma moderna está deserta de Deus. Escreveu Agostinho com lapidar brevidade: Deseruit et desertus est: abandonou e �cou abandonado.94 Não admira, pois, que todo niilista seja ateu. Mas será todo ateu niilista? Não parece, se nos ativermos ao caso Nietz- sche, que se declara ateu, mas se quer ao mesmo tempo “vencedor do niilismo”. Esse pensador empreendeu efetivamente a tentativa mais poderosa de fundar o sentido sem apelar para o Transcendente, substituindo-o pelo próprio imanente, agora radicalizado na ideia de “eterno retorno do mesmo”. Sem embargo, essa solução revelou-se pior que o problema posto. Pois falar no “eterno retorno do mesmo” não é o mesmo que falar no “eterno retorno do absurdo”? Cai-se, pois, aqui, no absurdo de vencer o absurdo com mais absurdo ainda. Nunca o niilismo havia ostentado uma face mais horrorosa, se bem que sob a mais bela máscara literária, pois enquanto os outros niilismos quiseram ser a vitória do “nada inocente”, o de Nietzsche tornou-se de fato a vitória do “nada doloroso”.95 Forçoso é, pois, concluir que, se todo niilista é ateu, a recíproca também é válida: todo ateu é de fato niilista, ainda que o negue. Repitamos: querer dar um sentido à vida fazendo abstração de Deus é como querer ver furando os olhos. É sem sentido querer encontrar sentido à exclusão do sentido fontal. Tal é a contradição fatal em que caem os ateus. Trata-se, porém, de uma contradição mais existencial que lógica, como a daquele que fecha obstinadamente os olhos para o sol e depois se queixa de que vive na escuridão. Sem dúvida, a equivalência “Sentido=Deus” não é autoevidente. Antes, pressupõe duas coisas: primeiro que Deus existe e, depois, que, se existe, Ele é o sentido de tudo. Sem embargo, é possível provar (dialeticamente) e até demonstrar (apoditicamente) ambas as coisas, como efetivamente faremos mais adiante (cap. VII). 3. O “devirismo” como raiz do niilismo Mas, se o niilismo é uma �loso�a derivada do ateísmo, o próprio ateísmo é, por sua vez, uma �loso�a derivada do que podemos chamar “devirismo”, por admitir tão somente o devir, mas que corresponde ao que outros chamam imanentismo, �nitismo, relativismo, fenomenismo, secularismo, materialismo, naturalismo, �sicalismo etc. No plano existencial o pensamento do “devirismo” é vivido em termos de “opção pela �nitude” ou, mais simplesmente, como um limitar-se a “cuidar do próprio jardim”, segundo a fórmula voltairiana. A título de pensamento �losó�co, o devirismo se refuta sem di�culdade, mostrando que não há devir sem uma realidade eterna, transtemporal, em que ele se fundamenta e sustenta. Pois o ser �nito se apoia necessariamente no ser in�nito, o ser contingente no ser necessário, o ser móvel no ser imóvel e assim por diante. É o que a�rma, de modo límpido, Aristóteles: “Não poderia existir o devir (génesin) se não existisse nada de eterno (aídion)”.96 E mais adiante: “Se, além do sensível, não existisse nada, sequer haveria princípio, ordem, geração, movimento cósmico. Deve, pois, existir um princípio do princípio”.97 Agora, radicalizar o devirismo ou o �nitismo a ponto de negar que exista qualquer fundamento nas coisas, como pretende hoje o autoproclamado antifundacionalismo, é negar não só a questão do sentido, mas a própria �loso�a, e cair na so�staria. Pois a busca pelo fundamento de tudo ou pelo princípio que uni�que toda a realidade, busca que se chamou de “paixão jônica”, constituiu não só a origem histórica de toda a cultura ocidental, em boa parte hoje mundializada, mas representa, mais radicalmente ainda, sua alma secreta e perene. Ora, se as coisas desse mundo não podem existir sem um fundamentum ou principium, também não podem existir sem um �nis, um sentido para o qual foram feitas, como vimos há pouco, ao descrevermos a interpelação recíproca entre o Alfa e o Ômega. Desse modo, o niilismo como falta de um �m absoluto tem sua origem no niilismo como falta de um começo absoluto, ou seja, como ateísmo. Aparece assim, mais uma vez, como o pensamento do absurdo se impõe apenas em virtude do falso pressuposto, tácito ou confesso, de que as coisas não têm fundamento, sendo, por isso, destituídas de todo conteúdo ou substância. Seriam como cebolas: sem caroço algum, como querem nossos “desconstrucionistas”. 4. Algumas consequências práticas do niilismo Agora, quanto às suas consequências éticas, o niilismo representa uma �loso�a cômoda, enquanto favorece a autodesresponsabilização moral. Com efeito, se a morte zera tudo, que importa que se viva como canalha ou como pessoa decente? O próprio Eclesiastes confessa, desanimado, que, se o destino do sábio e do insensato é o mesmo, não há vantagem em ser sábio (cf. Ecl 2,12-16). Daí para o hedonismo é um passo. De fato, o niilismo intelectual, �loso�a de elite que é, funciona frequentemente para justi�car, quando não ocultar, um ethos hedonista, apenas aureolado daquele re�namento chique que toda intelligentsia gosta de ostentar. Digamos �nalmente que o niilismo contribui, mau grado seu, para evidenciar, por contraste, o próprio pensamento do sentido. Pois, na contraluz da fórmula niilista “Tudo vem do Nada e volta para o Nada”, resplandece a fórmula do sentido “Tudo vem do Ser e volta para o Ser”. V. SCHOLIA 1. Criar sentido: a pretensão da modernidade tardia Para a modernidade ilustrada do século XVIII, a raison racionalista ainda oferecia uma base universal para os valores ou sentidos, como mostrarão depois suas melhores conquistas: os direitos humanos, a democracia e a tecnociência. Já para o tardo-moderno (segunda metade do século XX), que reduziu a razão a seu uso tecnocientí�co, o sentido da existência se instaura a partir de um ato de liberdade, entendida como poder de fundação e de criação. Sem sombrade dúvida, é perfeitamente possível, além de legítimo, “produzir” um sentido, ou seja, investir uma coisa com uma �nalidade particular. Não é o que acontece com os produtos da criação humana? Depende efetivamente do homem tanto construir um edifício quanto dar- lhe o uso ou o sentido que quiser, como o de ser um lar, um santuário ou uma prisão. É justamente por produzir algo com um propósito consciente e livre que o homem se distingue do animal, como mostrou Marx na análise do trabalho.98 Portanto, em relação aos artefatos, o homem cria realmente sentido. Entretanto, em relação às coisas da natureza, o homem encontra um sentido já nelas inscrito e que ele é chamado a descobrir e respeitar, como ensina a Laudato si’.99 Os gregos já distinguiam a ordem da physis (natureza) e a ordem do nomos (lei). A primeira tem suas leis e �ns próprios, que o homem precisa conhecer e pôr, em seguida, a seu serviço. O nomos corresponde ao que chamamos cultura: é o que o homem estatui livremente, nunca, porém, idealmente, em contradição com a physis. Por isso mesmo, no caso em que o homem for retrabalhar e ressigni�car as coisas naturais, ele precisa partir do reconhecimento do valor ou sentido autônomo dessas coisas. Cedendo, contudo, à arrogância e à con�ança em seu poder técnico, o homem moderno fez o contrário, provocando, entre outros efeitos nefastos, a atual crise ecológica.100 Quanto à existência humana, ela me é dada de imediato pela natureza e �nalmente pelo Criador. Por uma parte, ela já vem carregada de um sentido, quer natural quer sobrenatural, sentido de que não posso dispor a meu bel-prazer. Por outra parte, ela me é oferecida, junto com seu sentido originário, para que eu a acolha, a reconheça e a reelabore em liberdade, de acordo, porém, com seu sentido originário. Não é, contudo, assim que pensa o homem da modernidade tardia. Para ele, Deus morreu, não existem mais valores objetivos, tudo é relativo ao ser humano, tudo é permitido. O tardo-moderno se entende como “sujeito ponente” ou “constituinte”, tanto que se compraz em falar na “produção de sentido”.101 Fala também em “doação de sentido” (sinngebung), em “realização de sentido (sinnverwirklichung ou sinnerfüllung) ou ainda em “criar sentido” (sensemaking). Tudo isso se reduz ao “construtivismo” pelo qual certas organizações, inclusive religiosas, “criam” identidades, pertenças e quadros interpretativos para dar sentido retrospectivo a eventos discrepantes em relação às expectativas de seus membros.102 A própria história, para os pós-modernos, deixa de ter qualquer curso objetivo; antes, ela rola, como uma esfera, em todas as direções. Assim se exprime um deles: “A história não tem sentido; tem somente o sentido que lhe imprimem os que a fazem”.103 É como o �lósofo Theodor Lessing (+1933) intitulou um livro seu: “A história como doação de sentido para o sem-sentido”.104 A história não passaria do grande horizonte dentro do qual os sentidos nascem e morrem. Pois, se tudo é �lho de Cronos, tudo também será devorado por ele. Ainda nos meados do século XIX, Marx, nas pegadas de Hegel, falava na “autoprodução do homem por seu trabalho e ação em geral”.105 Contudo, foi a partir dos anos sessenta do século XX que se passou a re�etir mais largamente sobre a questão da “invenção de si” e da construção da própria “identidade”.106 Passou-se então a lucubrar os chamados “processos de subjetivação”, entendidos como estratégias pelas quais o sujeito cria ou produz seu próprio estilo de vida a partir do que recebe ou experimenta em seu mundo vital (família, mídia, amizades, religião etc.). É assim que, para essa corrente de pensamento, cada um fabrica seu próprio sentido de vida. Nessa questão, também os partidários do “debolismo” pleiteiam a escolha livre dos sentidos a partir dos “repertórios” culturais em presença, ou mesmo a criação do sentido. Para eles, defender a objetividade dos sentidos é coarctar o exercício da liberdade e pavimentar a via para a imposição e a violência.107 Ora, que o sentido implique certa subjetivação, isso precisa ser reconhecido, como vimos logo atrás. Contudo, a subjetivação não pode ser absoluta e sequer prioritária. Pois inevitável é a pergunta: A partir de que princípios ou critérios criar ou escolher esse ou aquele sentido? Sem uma instância objetiva de julgamento, seria o mesmo matar ou morrer, amar ou odiar, blasfemar ou louvar. Ora, sem uma base de verdade, como vimos, é impossível obter um sentido verdadeiro. Contudo, quer-se hoje proceder à “produção da verdade”, contradizendo tanto o mais comezinho bom senso, quanto o grande pensamento �losó�co, para ambos os quais a verdade se busca e acolhe, não se produz, assim como não se produz o sentido que ela funda. Mas não: o tardo-moderno pretende recriar o mundo à sua imagem e semelhança, bem como reinventar sua vida e seu sentido. Mas isso é tão absurdo como uma máquina escrever seu próprio manual de uso.108 Há também quem invoque a imaginação, vista como um poder meta�sicamente criador de sentido e reencantador, como sustentou o �lósofo hispano-americano George Santayana (+1952). Repercutindo o verso de Shakespeare: The best in this kind are but shadows (em tudo isso o melhor ainda são as sombras), o referido pensador julga que, sendo o real podre, o que temos de melhor é ainda a imaginação, que nos permite idealizar o real, cercando-o de um halo de sentido.109 Nosso Rubem Alves (+ 2014) se aproxima dessa espécie de “metafísica da imaginação” ao falar da religião e da teologia como de algo que se passa essencialmente em nossa representação e é produto de seu poder fabulador. Diz que, se temos um olho para ver as coisas existentes, temos outro para ver as coisas imaginadas ou desejadas, como sucederia com o mistério do Natal.110 Aqui, entretanto, se fundem e confundem a ordem metafísica e a ordem imaginária, tornando indistinguíveis teologia e literatura, �loso�a e fantasia, e, no extremo, doxa e episteme, como se imaginação fosse o mesmo que intelecção. Como explicar o triunfo do subjetivismo tardo-moderno em relação ao sentido? É que, eliminando o Absoluto, cada um acaba se entendendo como o absoluto de si e de sua vida; em suma, como autocriador; portanto, como origem e de�nidor dos próprios valores. De fato, o efeito �nal e fatal da “morte de Deus” é isto mesmo: a perda de qualquer fundamento sobre o qual construir um sentido sólido, com a consequente exposição da vida à violência da subjetividade infrene. Tire Deus do mundo, e o que sobra? O eu e seus caprichos. Era o que asseverava o Papa Ratzinger logo no início de seu ponti�cado. E enquanto o grande lema de Jesus era: “Não o que eu quero, mas o que tu queres”, o do homem sem Deus é: “Não o que tu queres, mas o que eu quero”. Ao contrário de Maria, que disse em sua humildade: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”, o homem totalmente emancipado diz com insolência: “Faça-se em mim segundo a minha palavra”. Mostra, entretanto, a experiência mais comezinha que, na prática, a opção de uma subjetividade autolegisladora, longe de propiciar liberdade e generosidade, favorece o egoísmo, cuja expressão mais vulgar é o hedonismo. A alternativa heroica é coisa de poucos. Seriam os “Super- homens” de Nietzsche, os “ex-sistentes” e “autênticos” de Heidegger, as “personalidades” ou a “nova nobreza” de Jaspers,111 os “anarcas” de Jüngel,112 todos, espécimens que o século XX produziu às dúzias, mas por cuja arrogante “autenticidade” as massas humanas pagaram caríssimo. É um fato que as tragédias sangrentas do século XX se devem à hybris pela qual o homem se quis produtor e recriador de si e do mundo, ideal que se encarnou nas �guras lúgubres desses “engenheiros da história” que foram Stalin, Hitler, Pol Pot et caterva. Aí não sobrou rastro da naivität e a pietät do pensamento, a que se referia P. Wust para falar da essência mais íntima da razão, que a faz inclinar-se reverentemente perante a verdade, em vez de inclinar violentamente a verdade a seu arbítrio.113 Para legitimar a pretensão à autofundação, muitose sempre árduo. É o que modestamente intentamos nessa obra, sempre conscientes de nossos limites pessoais, reconhecíveis quer pelo esforço da re�exão, quer pelo labor da argumentação, quer pela fadiga da redação. III. ESTRUTURA DO VOLUME ATUAL Indiquemos os capítulos em que o presente volume se estrutura, apresentando seu conteúdo essencial. O capítulo I começa por relembrar o que dissemos no volume I sobre a semântica do sentido, mostrando que se trata de um conceito todo polarizado pela ideia de �nalidade. Retomaremos, em seguida, a descrição, agora com novas tonalidades, da experiência do niilismo hoje. Insistiremos, por �m, em dizer que a causa de fundo da atual crise de sentido está no abandono do transcendente. No capítulo II diremos que a “questão do sentido” pressupõe a “questão da verdade” e, antes ainda, a “questão do ser”. Pois, como podemos decidir do sentido da existência sem re�etir sobre o que é a existência e, antes ainda, o que é o ser? Ora, o saber do ser como tal é tarefa da “�loso�a primeira”, chamada comumente metafísica. Como se vê, do ponto de vista antropológico-existencial, a questão do sentido não é uma questão primeira, mas uma questão derivada. Pois, antes de vermos se uma coisa tem sentido para nós, precisamos examinar o que ela é em si mesma, sem o que, cai-se numa visão meramente subjetiva de sentido. Mostraremos efetivamente que o sentido não é algo arbitrariamente inventado, mas também não é um destino inelutável, sendo antes uma oferta a ser livremente acolhida e subjetivamente vivida. O capítulo III tratará do desejo de sentido e de sua consistência real. Por sua extensão material, esse capítulo constará de duas partes. A primeira (capítulo III/1) abordará o desejo de sentido como uma dimensão natural ou constitutiva do ser humano, e isso pelo fato de ser esse, em sua essência, espírito. Mostraremos, ademais, que o desejo do sentido não está inscrito apenas no ser humano, mas também nas próprias coisas, enquanto são dinâmicas, e até mesmo no coração do ser, enquanto é dotado de valor e �nalidade. Nesse caso, a questão do sentido não pressupõe, mas põe a questão metafísica. Já na segunda parte desse capítulo (III/2), confrontaremos o que foi dito do desejo natural de sentido último com a problemática moderna do desejo, enquanto essa concebe tal objeto como criação fantástica, puramente subjetiva, do próprio desejo. Mostraremos, ao contrário, que o desejo natural de sentido último tem um caráter objetivo ou, melhor, objetivante, apontando, ainda que de modo geral e indeterminado, para a ideia de um in�nito realmente existente, que seria Deus. O capítulo IV examina o acesso epistemológico correto para se encontrar o sentido da vida. Veremos que o discurso apto para elaborar a questão do sentido é o que a grande tradição chamou “sabedoria”, entendida efetivamente como o saber supremo do que é supremo. Veremos também que uma sabedoria restrita ao horizonte �losó�co-racional pode chegar a descobrir, sim, o sentido da existência, mas tal descoberta permanece extremamente precária, devendo ser completada e transcendida por uma fonte mais alta, que é o saber revelado. Vem em seguida o capítulo V, que examina a questão da felicidade, quali�cada pelo chamativo nome de “face ridente” do sentido. Mostraremos que a felicidade consiste essencialmente na união com o Transcendente. Veremos também que, vista a desproporção entre o desejo e seu objeto, a busca da felicidade nesta vida revela-se �nalmente aporética, só podendo se resolver efetiva e de�nitivamente no além e como oferta do além. O capítulo VI discutirá onde se encontra o sentido último do mundo universo, visto como morada do homem. Diremos que o mundo existe, de imediato, em função do ser humano e, �nalmente, do Criador. A revelação cristã acrescenta que o mundo foi feito por Cristo e para Cristo. Seja como for, o sentido último do todo, incluindo o homem, está e só pode estar, por exigência lógica, fora do todo. Será, pois, um suprassentido. Somente nessa perspectiva se supera tanto uma visão imanentista do cosmos (�sicalismo), como uma visão reduzida do homem (humanismo fechado) e da sociedade (historicismo). O capítulo VII discutirá a identidade desse suprassentido. Qual é seu nome? Em resposta, defenderá a tese de que o suprassentido responde pelo nome de “Deus”, como designação do �m de tudo e, antes ainda, do princípio de tudo. Buscaremos mostrar que só Deus responde de modo de�nitivo e pleno à questão do sentido. Ele seria, pois, o supremo signi�cante que ressigni�ca tudo, o metavalor que valora tudo e o único poder que vence o nada. Fica assim racionalmente posta a segunda cabeça da ponte por sobre o abismo teórico que se abre entre sentido e Deus. Para as grandes maiorias, porém, a passagem para o outro lado do abismo se dá não através da razão, mas da religião, que é, por excelência, a “instituição do sentido”. A Igreja em particular, enquanto se apresenta ao mundo como a “comunidade de salvação” em Cristo, pode-se dizer o “sacramento do sentido”. Entretanto, para serem ponte para o sentido “Deus”, as religiões precisam manter a pureza de sua identidade e a e�cácia de sua ação, sob pena de se transformarem em seu contrário, ou seja, em fautores de niilismo. O capítulo VIII e último tratará especi�camente do sentido, enquanto revelado e encarnado em Cristo. A partir de argumentos quer de teor histórico, quer teológico, buscaremos mostrar que o “homem Jesus” tornou- se, do ponto de vista histórico-salví�co, a via real para o destino de�nitivo do homem, destino esse simbolizado pela �gura evangélica do Reino. É principalmente por seu mistério pascal que Jesus se revela como o vencedor do nada, hipostasiado no pecado e na morte. Se Jesus, como homem, é o sentido-rumo de tudo, já como Deus, é o sentido-destino de tudo. Mas, enquanto Cristo se ergue como o ícone absoluto do sentido, Maria, sua mãe e colaboradora, se levanta como ícone do sentido ao modo feminino. Como se vê, a problemática deste volume é fundamentalmente teórica, especi�camente �losó�co-teológica. Nela buscaremos equacionar e resolver a quaestio magna do sentido segundo suas principais linhas de força. Parece temerário meter ombros a tão momentosa questão e apresentar-lhe uma saída. Já não cantara Heine: “As têmporas dos tristes mortais, cingidas de mitras antigas e de negros barretes, atormentam o cérebro em vão” com o intuito de resolver o “enigma da vida”?4 Mas não. Apostando na força da própria razão e confortados pela luz da fé, ousamos, sim, assumir tal empresa, sempre, porém, cum con�dentia divini auxilii, como escreve o Angélico ao abrir a “Suma”. À gravidade da questão proposta, assim como à consciência de nossa limitação no enfrentá-la, parecem assentar bem estes versos do grande �orentino: Mas quem pensar no momentoso tema e nos ombros mortais que o acometem entende que esses tremam sob a carga. Tal mar não é para pequena barca, é mar que fende apenas proa audaz e requer piloto que não se poupe.5 I CAPÍTULO Niilismo: pathos dominante da cultura moderna I. ESCLARECIMENTO SEMÂNTICO Antes de abordarmos o tema anunciado no título, precisamos fazer aqui alguns esclarecimentos de caráter semântico acerca do termo “niilismo” e, antes ainda, de “sentido”, pressuposto pelo primeiro termo. Pois, para vencer o “niilismo” e dar “sentido” à vida, importa ter ideias claras. Vida com sentido só pode ser vida clara. Ora, a clareza da vida pede a clareza do pensamento. E a clareza do pensamento começa com a clareza da linguagem. Semântica é condição básica de qualquer debate, sob pena de se cair no so�sma mais elementar: a ignoratio elenchi, ou seja, a ignorância do que está em debate. Sem essa cautela metodológica, muitos pensadores não equacionaram corretamente essa questão decisiva, a do sentido, deixando- a em suspenso. Daí a necessidade de fazermos aqui, logo na entrada, uma declaratio terminorum. 1. “Sentido”: o que é isso? Retomemos aqui sucintamente o esclarecimento dado sobre o sentido de “sentido” logopensadores modernos, desa�ando a grande tradição ética, quer �losó�ca, quer religiosa, que fundava o “bem para nós” no “bem em si”,114 sustentam, ao contrário, que o bem e o mal, o sentido e o absurdo estão em nós, em nosso juízo, e não nas coisas, em sua estrutura entitativa. Spinoza, por exemplo, a�rmava que bem é tudo o que favorece a conservação de nosso ser, e mal, tudo o que a prejudica.115 Mesmo para o severo Wittgenstein, a ética diz respeito apenas à nossa vontade e nada ao mundo.116 O cume do subjetivismo ético é atingido por Nietzsche, ao proclamar: “O homem é que pôs valores nas coisas a �m de se conservar. Foi ele que deu um sentido às coisas (...). Por isso se chama ‘homem’, isto é, um avaliador. Avaliar é criar. (...) Pela avaliação se dá valor. Sem avaliação, a noz da existência seria oca”.117 Inúmeros são os escritores de hoje que declaram que a vida por si mesma não tem sentido, dependendo de cada um conferir-lhe um qualquer. Diz, por exemplo, H. Miller: “Já que a vida não tem sentido, é preciso dar-lhe um”. Também para E. Fromm, a vida só tem o sentido que cada um lhe atribui. Um �lósofo brasileiro diz que a vida só tem o sentido que cada um lhe confere a partir do que é e do que quer ser.118 Saint- Exupéry deu forma esotérico-literária à essa opinião com uma sentença, hoje banal: “Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a fez tão importante”.119 Mas tal pensamento não equivale no plano afetivo ao não menos banal “vale quanto custa”? A verdade não estaria exatamente no inverso: “Foi a importância da tua rosa que valeu o tempo que perdeste com ela”? Efetivamente, Pascal já tinha notado: “Inúteis são os protestos da razão: esta não pode pôr o preço nas coisas”.120 Isso nada mais é que eco do dito peripatético: Existimare non est in nobis: não compete a nós dar o preço das coisas, ou seja, estabelecer seu valor. O que podemos é apenas reconhecer, registrar e declarar, tais almoxarifes morais, o valor que as coisas trazem embutido nelas mesmas. O homem é, sim, um “avaliador”, mas apenas enquanto �xa o preço (subjetivo) das coisas por seu valor (objetivo). O contrário, como querem os tardo-modernos, nos leva à axiologia do mercado selvagem, se de axiologia ainda se pode falar. Se colocamos acima a questão do sentido como derivada da questão da verdade e, antes ainda, da questão do ser, foi para dizer que a raiz do sentido é algo que lateja no coração das coisas, antes ainda que lhes façamos qualquer pergunta. Por certa intuição ou “senso do sentido”, percebemos que o próprio ser já é bom em si, tem valor, pode ser buscado como �m e pode conferir, por isso mesmo, sentido à vida. A vida aparece então como possuidora de uma solidez ontológica que a torna con�ável. Experimentam-se as coisas como “sensatas” e válidas em sua textura autônoma, podendo-se nelas apoiar, sem que nos defraudem e traiam. Ora, se o sentido está latente nas coisas como as pérolas no fundo do mar, ao homem nada mais resta senão buscar essas pérolas, recolhê-las, para com elas se enriquecer ou então se adornar. 2. O equívoco dos antigos: o destino ou a fatalidade do sentido Como antípodas dos tardo-modernos, os antigos, em geral, pensavam o sentido como algo de predeterminado. Era o destino, que os gregos chamavam ora moira (sorte inevitável de cada um), ora heimarmene (fatalidade), ora ananke (necessidade, determinismo), ora ainda tyche (acaso, fortuna).121 Os latinos falavam no fatum, visto como uma força totalmente transcendente e heterônoma, a que tudo estaria submetido, homens e deuses que fossem. A verdade é que um senso de fatalidade pesava sobre a maioria das culturas do mundo antigo e, mais ainda, sobre as do mundo arcaico.122 Na esfera dessas culturas, o sentido último de tudo já está dado e é inexorável. O homem é apenas joguete nas mãos de uma potência suprema e estranha. Sua liberdade só vale para algumas jogadas, enquanto o resultado �nal do jogo já está dado, e é implacável. Heitor, antes de partir em combate contra Aquiles, consola a esposa Andrômaca, dizendo-lhe: “Ao destino homem algum pode escapar, seja ele covarde ou corajoso, uma vez que nasceu”.123 O fatalismo de Homero é partilhado também pelos trágicos gregos. Também junto aos antigos germanos a crença no destino era central. Repristinada pelo nazismo, foi condenada por Pio XI nestes termos: “Não crê em Deus quem (...), segundo uma pretensa concepção dos antigos germanos de antes de Cristo, coloca o sombrio e impessoal Destino no lugar do Deus pessoal”.124 Ressaibos dessa concepção arcaica subsistem na ideia heideggeriana de geschick (destino), visto como a “ultrapotência” que insere o homem inelutavelmente no tempo e o faz produzir geschichte (história).125 Também Splenger julgava que as civilizações não são regidas por decisões ou leis, mas por um poder mais alto: o famoso “Destino” ou Moira.126 Para o Islã, a ideia de destino se situa entre a da providência cristã e a da fatalidade pagã. Da primeira, o Islã retém a ideia da vontade soberana de Allah e de seus decretos. Da segunda conserva a ideia da inexorabilidade desses decretos, independentemente do que façam os homens. Tal é, em particular, o signi�cado da surata 97 do Corão, intitulada Al-qadr, onde se fala justamente da “noite de al-qadr”, ou seja, a “noite do destino”.127 É crença, entre os muçulmanos, que nessa noite são de�nidos, do modo irrevogável, os decretos de Deus. A doutrina da predestinação de São Paulo, desenvolvida um tanto rigidamente por Santo Agostinho, com sua ideia de massa damnata, foi ulteriormente enrijecida por seus intérpretes, como Gottschalk, Calvino e Jansenius, levando ao que se convencionou chamar de predestinacionismo. Contudo, o Magistério da Igreja sempre rejeitou qualquer predestinação fatalista que comportasse a anulação do livre-arbítrio.128 Com efeito, o conceito de destino fatal se opõe a uma antropologia que leva a sério o homem e sua liberdade, como é a do cristianismo, que além da providência divina, sempre acreditou na liberdade humana e nos preceitos da oração e da correção fraterna. Desde cedo, a religião cristã se opusera tenazmente à sombria concepção da fatalidade, largamente difundida em todo o mundo helenístico.129 Eis as palavras atribuídas a Clemente de Alexandria: “Os que creem em Cristo, passaram do Reino da Fatalidade (heimarmene) para o Reino da Providência”.130 Para Eusébio de Cesareia, fatum é um “nome vazio”, “inventado pelo Diabo”. E para Gregório Magno, até seu uso deveria ser rejeitado.131 Note-se que o velho “destino” reaparece hoje em correntes do marxismo e do freudismo, sobretudo no estruturalismo, enquanto encarecem de tal maneira o poder das “estruturas” que acabam reduzindo a liberdade a uma ilusão. Por outro lado, para vencer o “destino das estruturas” não basta apelar para o poder criativo da subjetividade, como propõem o existencialismo e outros voluntarismos, inclusive de corte marxista.132 Só uma subjetividade que se faz medir pela verdade e se abre ao evento da graça tem condições de sobrepujar as estruturas vigentes, seja para alterá- las, seja para criar novas. Digamos en�m que se usa às vezes “destino” também para designar as determinações a que a natureza e as circunstâncias nos submetem. Seria tudo o que cabe em sorte a alguém, não no �m da vida, mas em seu curso: o tempo e o lugar do nascimento, o sexo, a idade, os pais, a educação, tal ou tal sistema econômico, político ou outro.133 Corresponde ao que os estoicos chamavam “o que não depende de nós”.134 Trata-se, contudo, aí de um uso ambíguo de “destino”, pois dá a entender que tais determinações têm, sobre a liberdade, uma força determinante, e não apenas condicionante. Efetivamente, está sempre no poder do homem livre assumir ou não tais determinações, ressigni�cá-las e eventualmente alterá- las. Isso vale especialmente para a política, enquanto processo que pode se impor à liberdade física do homem, mas não à sua liberdade espiritual, como é evidente no revolucionário e mais ainda no mártir. Portanto, só em termos muito relativostem razão Napoleão quando disse a Goethe em Erfurt: “A política é o destino!”.135 Tem mais razão Heidegger ao contrapor-lhe este outro dito: “O espírito é o destino”, argumentando que a “essência do espírito é a liberdade”.136 Isso, em verdade, vai na linha do decisionismo ao qual, no plano prático, se inclinava o �lósofo, enquanto, no plano teórico-�losó�co, como vimos, aproximava-se antes do fatalismo de corte vétero-germânico. 3. “Destino” como equivalente legítimo de �m ou sentido Pode-se, contudo, entender “destino” simplesmente como sinônimo do termo �nal da existência, da mesma forma como se fala do “destino” de uma viagem. Nessa acepção, perguntar sobre o sentido da vida é perguntar sobre o destino do homem. E sobre essa pergunta se debruçaram todas as sabedorias do mundo, como registra a encíclica Fides et Ratio (n. 1,2). Tem razão quem disse: “Chegar à morte sem ter pensado sobre o destino humano é morrer como um cão”.137 Todo homem tem seu destino, isto é, certo curso de vida e um termo determinado. Diz a Escritura: “O Senhor é quem dirige os passos do homem. Como poderá o homem compreender o próprio destino?” (Pr 20,24). Jesus, do mesmo modo, mostra-se consciente de ter um destino, como quando diz: “O Filho do Homem vai por seu caminho, como está determinado” (Lc 22,22). Aqui “determinado” nada tem de determinístico, mas se refere à vontade soberana e amorosa do Pai. Outra vez, Cristo diz que cumpre as “Escrituras” (Mc 14,49; 15,28; Lc 24,27.32; Jo 19,24.28.37) ou simplesmente “o que está escrito” (Lc 18,31; 24,46). Aqui igualmente não há nada do fatalístico maktub islâmico, mas apenas a expressão do plano amoroso do Pai, que solicita a vontade livre do Filho, como se pode notar em sua oração no Getsêmani: “Abba, não o que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 14,36). Mais em geral, “destino” coincide com noção de providência divina. Ensina o Vaticano I: “Todas as coisas que Deus criou, Ele as guarda e governa através de sua providência” (DH 3003). Nessa acepção precisa, Santo Tomás tem por aceitável o uso da palavra “destino”.138 Leibniz distingue o fatum christianum, o mais livre de todos, do fatum mahometanum, assim como do fatum stoicum, o mais coagente.139 Camões, contudo, na linha de Gregório Magno que evocamos, prefere evitar o termo “fado”, de conotações pagãs, substituindo-o pelo de “providência”, como se vê nestes versos de Os Lusíadas: “Ocultos os juízos de Deus são; / As gentes vãs, que não nos entenderam, / Chamam-lhe fado mau, fortuna escura, / Sendo só providência de Deus pura”.140 Embora o termo “providência” (prónoia) tenha sido tomado de empréstimo, pelos Padres, ao estoicismo, ele foi expurgado de todo e qualquer traço de fatalidade que porventura nele subsistisse. Para a fé cristã, a Providência inclui, não exclui, a ação livre do ser humano. O plano da Providência implica o encontro, conquanto desigual, de duas liberdades: a divina e a humana, de modo que a divina, sem destruir a humana, mas assumindo-a, acaba prevalecendo. Portanto, o destino para o cristão corresponde ao Plano de Deus, à Vontade do Pai, ao Governo divino do mundo, onde o homem é chamado a ser parceiro de Deus, conquanto menor. Assim, pôde escrever Agostinho: “Nada acontece neste mundo visível sem que, do fundo de seu palácio invisível, o sumo Imperador não tenha ordenado ou permitido”.141 Ora, se Deus é efetivamente o �m absoluto do mundo, o ponto ômega da história (cf. Ap 1,8), pode-se declarar com toda verdade: “Deus é o destino”. De fato, o mundo retornará inescapavelmente a Deus, por bem ou por mal. Como todos os rios dão no mar, assim todas as coisas desaguam em Deus. “Mesmo aqueles que o transpassaram” (Ap 1,7), mesmo os que querem fugir d’Ele, dão �nalmente de encontro a Ele, como diz Santo Agostinho: “Querendo subtrair-se à tua bondade, deram na tua justiça e caíram sob a tua severidade”.142 Ora, para a fé, como veremos no último capítulo da presente obra, o destino divino do mundo se encarnou em Jesus de Nazaré. Assim, a a�rmação de Cristo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” equivale a dizer: “Eu sou o destino”.143 De fato, Cristo, por ser Deus com o Pai (cf. Ap 1,8; 21,6), é também o Ômega da história, seja esta pessoal, social, ou cósmica (cf. Ap 22,13). Cristo é, pois, o Destino do mundo, o Sentido de tudo. Aqui a “roda” inexorável do destino antigo, que Nietzsche quis repor em movimento, é substituída em de�nitivo pela “rota” de uma destinação livre.144 Quer dizer que aqui não existe “destino” como fatalidade impessoal e cega, mas mais propriamente “destinação” como desígnio pessoal de Deus, ao qual o homem é chamado a participar.145 O fatum cristão tem nome, rosto e coração, seja do lado de Deus que o estabeleceu, seja do lado do homem, seu destinatário. É também esse caráter pessoal e livre que está por trás dos numerosos dei (era necessário) e derivados, bastante presentes no Novo Testamento (cf. Lc 9,22; 22,37; 24,26.44; Jo 3,7.14.30 etc.). Trata-se aí da chamada “necessidade hipotética”, que, por mais imperiosa que pareça, se dá sempre num contexto de uma aliança libérrima entre Deus e o homem. Assim, o sentido último está imperiosamente dado, sim, mas não sem solicitar o consentimento e a acolhida do homem. Ele é graciosamente proposto, jamais imposto. Se é infalível, não é, de modo algum, fatal. Por infalível, o sentido �nal acabará se cumprindo irresistivelmente, mesmo que o homem lhe resista até a obcecação. Só que, neste caso, o destino por Deus estabelecido não se cumpre em favor de quem lhe resistiu, resultando, antes, em sua perda e condenação.146 Ao contrário, para quem a ele aderiu se resolverá em recompensa. Daí dizer o salmista: “Meu destino está seguro em tuas mãos” (Sl 15,5), designando inclusive “destino” com outras palavras, como “parte”, “cálice”, “lote” e “herança” (v. 5-6). Tirante seu aspecto impessoal, certeiro é o célebre verso do estoico Cleantes: “O destino conduz quem nele consente e arrasta quem lhe resiste”.147 Agora, quais sejam os caminhos concretos que a Providência adota para realizar o plano de sua vontade na existência pessoal, histórica e cósmica; por outras, qual seja o sentido particular desta ou daquela peripécia do drama da vida e da história, quer nos aspectos que chamamos anódinos, quer nos que julgamos trágicos, tudo isso está oculto sob os espessos véus do mistério. O que parece casual pode se revelar no �m providencial, como intuiu a poetisa paranaense Helena Colodi, ao escrever: “Um encontro ocasional altera todo um destino”. Só a fé garante que tudo desemboca num destino de misericórdia, que tudo redime, tudo recapitula e passa tudo a limpo. Daí que, perante os grandes dramas da vida, ao cristão só resta dizer, como Nicolau de Cusa: “Ignoro, mas adoro”; ou como Paulo: “Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são impenetráveis seus juízos e inexploráveis seus caminhos” (Rm 12,33); ou mais ainda como Jesus agonizante: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). Isso, contudo, não impede o teólogo de perscrutar, sedulo, pie et sobrie, como recomenda o Vaticano I (DH 3016), os planos abissais de Deus, tal como fez o próprio Paulo na Carta aos Romanos, ao longo de três densos e tensos capítulos (9-11) a respeito do “destino” de Israel. Foi somente depois de ter encarado o mistério e sentido de sua vertigem que o Apóstolo experimentou toda a sua abissalidade. Ao contrário, contentar-se, perante o incompreensível, em fechar os olhos, baixar a cabeça e dizer logo “amém” não é digno de um ser racional e desonra Quem o fez tal. Para fechar esse item, digamos que, perante o destino, há para o homem duas posições de fundo, dependendo de como o destino é concebido: se o destino equivale à fatalidade, segue-se a resignação amarga do homem antigo ou então o desa�o despeitado, mas �nalmente impotente, de Prometeu, dos estoicos, de Nietzsche e de muitos modernos; mas, se o destino é o nome de Deus e de sua Providência amorosa, então segue-se o abandono à vontade divina, a entrega con�ante ao Pai,atitude de que deram exemplo os santos, em particular a Virgem Maria e maximamente Jesus na cruz. III CAPÍTULO PARTE 1 Desejo de sentido: perspectiva antropológico-�losó�ca Constatamos a crise e a busca de sentido. Relembremos que se trata aqui do sentido por excelência, não do sentido disso ou daquilo, mas do sentido da vida, da existência, do todo. Sim, o homem busca sentido. Mas deseja ele realmente sentido? Há hoje quem diga que o desejo de sentido é ilusão e até absurdo. É preciso, pois, examinar essa questão de base. Quanto é real e profundo o desejo de sentido? Seria tal desejo simples veleidade ou é algo de estrutural no ser humano? Como se vê, essas são questões que implicam certa concepção do homem, do homem como “ser desejante”. Nossa perspectiva é, portanto, aqui a da antropologia �losó�ca, como indica o subtítulo desse capítulo. Queremos, pois, mostrar aqui três teses essenciais para a questão do sentido, teses que estão em contraste com o pensamento moderno. Buscaremos provar, em primeiro lugar, que todo o ser humano deseja um sentido de vida e que tal desejo é natural, incoercível. Em contrapartida, para muitos pensadores modernos, o desejo de sentido é meramente opcional, quando não inútil. Em segundo lugar, mostraremos que o desejo de sentido é natural porque se funda na natureza racional do ser humano, natureza que o faz estruturalmente aberto a um sentido último absoluto. Ao contrário, o mainstream da cultura moderna diz que o desejo de sentido tem sua raiz na imaginação ou no mero arbítrio do homem, portanto em camadas super�ciais da alma humana. Em terceiro e último lugar, a�rmaremos que o sentido da vida verdadeiro e último se encontra numa realidade transcendente, enquanto a intelligentsia moderna diz que está em alguma realidade imanente, empírica ou ética que seja. Essas teses con�guram uma espécie de “antropologia do sentido” enquanto buscam estabelecer no próprio ser humano as condições de possibilidade, tanto do equacionamento da questão do sentido, como de sua resposta. I. DESEJO DE SENTIDO E DE SENTIDO ÚLTIMO: NATURAL NO SER HUMANO 1. Os termos da questão: sentido em planos distintos Para �ns de clareza semântica, tanto verbal como conceitual, digamos que, para nós, buscar o sentido da vida é o mesmo que buscar seu �m último. Como insistimos desde o volume anterior, é o �m que de�ne o sentido. Agora, buscar o �m último da vida é buscar seu bem supremo, seu sumo bem. De fato, o �m tem sempre caráter de bem, não importa, no momento, se verdadeiro ou aparente. Avancemos: buscar o sumo bem da vida é o mesmo que buscar o valor supremo, sendo “valor” o nome que os modernos preferem ao clássico “bem” dos antigos. Acrescentemos ainda que buscar o bem ou o valor supremo da vida é o mesmo que buscar a felicidade, esse valor que se quer por si mesmo e pelo qual se quer tudo o mais. Entendida não apenas como prazer, conquanto sumo, mas como a “plenitude de todos os bens”, felicidade serve de equivalente existencial para sentido.1 Portanto, buscar o sentido da vida é buscar a felicidade, sua fonte. Poderíamos sintetizar o que acabamos de dizer na seguinte equação: desejo de sentido = desejo de �m último = de sumo bem = de valor supremo = de felicidade plena. Mas, como a questão da felicidade levanta uma problemática especí�ca, trataremos dela extensamente mais adiante, no capítulo V. 2. Desejo de sentido e desejo de verdade Se quiséssemos aprofundar o esquema acima, sem, porém, subtilizá-lo, deveríamos ainda dizer que, em seu ponto mais extremo, o que deseja mesmo o ser humano é a verdade, mais precisamente, o conhecimento da verdade. Não dissemos no capítulo anterior que a questão da verdade era prévia à do sentido? “Verdade” é absolutamente a mahavákya, a grande palavra, não outra, ainda que seja o “Amor”. “Verdade” é a única palavra que mereceria ser escrita com letras garrafais. Onde está a verdade, a verdade das coisas, da vida, do mundo? Tal é a máxima questão de ser racional. Sem a verdade, o que é o sentido, assim como todos os seus correspondentes, como �m e bem, ou valor e felicidade, senão realidades suspeitas, perigosas, em suma, ambíguas? Efetivamente, verdade é a única palavra não ambígua. Ela é absolutamente positiva e fonte de positividade para todas as outras. É o quali�cador transcendental de tudo, inclusive de si mesma: a verdade só pode ser verdadeira, nunca falsa; do contrário, não será verdade, mas apenas aparência de verdade, ou seja, so�sma. A verdade quali�ca inclusive o bem; pois, sem a verdade, como distinguir entre o bem e o mal, tanto mais que o mal costuma se mascarar de bem? Mesmo o amor, que, em nossa cultura, se quer um dos poucos valores indiscutíveis, ele mesmo está sob a jurisdição da verdade. Em verdade, amor é um dos valores mais ambíguos que existem. O que não se faz em nome do amor? Mas o que é o amor se não for verdadeiro? Sim, a verdade vem antes do amor, como, de resto, no dogma trinitário, o Verbo vem antes do Espírito, de modo que este procede daquele.2 Uma cultura que, como a nossa, renunciou à ideia de verdade, segundo denúncia dos últimos papas, não sabe amar.3 Sem a verdade, o amor pode ser tudo e até seu contrário: ódio, crime, violência, destruição e morte. Só o amor verdadeiro é amor de verdade: pleonasmo atualmente necessário, tal é a confusão mental de uma cultura que dispensou o serviço da verdade. A primazia ontológica da verdade é o núcleo da posição �losó�ca de Santo Tomás, que foi por isso chamado de “intelectualista” no sentido mais elevado. É isso, de resto, que distingue o Angélico não só dos voluntaristas, mas também dos racionalistas.4 Declara ele peremptoriamente: “Não há desejo que mais eleve (o espírito) do que o desejo de conhecer a verdade”.5 Continua: é aí, “e não em outra coisa, que está nossa última felicidade”.6 Diz ainda: “O último �m de todo homem, assim como de todas as suas operações e seus desejos, é conhecer a verdade primeira”.7 Encarece: o que “o homem deseja mais que tudo”, como “coisa que lhe é própria”, é “conhecer a verdade”.8 Daí a severa advertência do Doutor: “Envergonhem-se, pois, os que buscam a felicidade em coisas ín�mas, quando ela está posta em tal altura”, isto é, no plano da verdade última.9 Logo no início da Suma contra os gentios a�rma peremptório: “A verdade é o �m supremo do universo”.10 Ninguém mais que Santo Tomás insistiu tanto nisto: nós fomos feitos para conhecer, ou seja, para ver. De fato, é na visio Dei que está o coração da felicidade.11 Efetivamente, antes de querer o �m último, o bem supremo, o valor máximo, a felicidade plena e o sentido derradeiro, o ser humano quer mesmo é a verdade: a verdade fontal. Pois que adiantaria possuir todo �m, todo bem ou valor, toda felicidade, en�m, todo sentido, se tudo isso não fosse verdadeiro, mas falso ou ilusório? Ao contrário, se temos o conhecimento da verdade primeira, com isso nos vem toda a felicidade e tudo o que ela implica: o amor, o gozo e a paz.12 Se é assim, então a equação que traçamos acima se completaria deste modo: desejo de sentido = desejo de �m último = de bem supremo = de valor máximo = de felicidade = en�m, de verdade. 3. Desejo de sentido: lei da ultimação O mais comezinho exame do cotidiano mostra que nada fazemos senão com um propósito, certo ou errado, elevado ou rasteiro, consciente ou inconsciente. É como sentenciaram os mestres medievais: “Todo aquele que age, age em vista de um �m”.13 Essa é uma constatação banal, sobre ser inegável. Há, pois, no ser humano uma busca espontânea de sentido. A ideia de “vontade de sentido” está na base da logoterapia.14 Seu fundador, Viktor Frankl, a contrapôs à “vontade de sexo” de Freud e à “vontade de autoa�rmação” de Adler. Para ele, efetivamente, a “vontade” ou “desejo”, “busca” ou “sede” e mesmo “necessidade” de sentido é algo de “fundamental”, “ontológico”, “estrutural”, “originário”, “condição de possibilidade” de tudo o que o ser humano faz. Essa vontade lhe é tão “essencial” e, por isso, tão “autenticamente humana” que se impõea todos de modo incondicional.15 Não importa a condição histórica ou social em que alguém se encontre, terá sempre fome de sentido.16 A “necessidade de sentido” seria irredutível a qualquer outra.17 Trata-se de uma forma pela qual o homem exprime sua “autotranscendência”, isto é, sua pulsão para se superar, para ser mais.18 Ora, tal pulsão, para Frankl, se abre à perspectiva de um “suprassentido”, que seria concretamente Deus, mas que, de per si, não se imporia.19 O autor procura calçar todas essas a�rmações em pesquisas empíricas e em sua própria experiência clínica. Mas, além de o homem desejar sentido para isto ou aquilo, ele deseja um sentido último, ponto de convergência de todos os seus sentidos particulares. Trata-se de um sentido culminante, que entende ser, por isso mesmo, total e pleno, enquanto busca dar à totalidade da vida unidade e perfeição. Tal sentido é o sentido por excelência, “sentido” em sua acepção simples e absoluta. Trata-se, pois, do sentido supremo e totalizante. É, de fato, para essa acepção resolutiva e pleni�cante que se aponta quando se fala no sentido “da vida”, “da existência” ou “do mundo”. Quando, pois, se fala no “desejo de sentido”, trata-se aí não do desejo de um sentido parcial, aquele que diz respeito a um setor da vida, mas do desejo de um sentido total, enquanto se refere à existência do mundo como um todo e, em particular, à vida em sua inteireza. Nesse caso, desejo de sentido corresponde ao que poderíamos chamar “desejo oceânico”.20 Mas por que o homem buscaria irresistível e impacientemente um �m último? Não poderia se contentar com �ns parciais? Não; o homem precisa de um �m último para dar convergência e, portanto, unidade à sua vida, vida que é sempre complexa e contraditória. Sem um �m último, a vida humana se reduz a uma sucessão de episódios sem nexo, como contas soltas, privadas de um �o que faça delas um colar. Ora, só o �m último dá à vida unidade e completude, tal como um laço que enfeixa as espigas antes dispersas. Aprofundando a questão, pode-se perguntar por que seria compulsiva a busca de unidade. É porque a unidade é ligada à vida e ao ser em geral: à vida, por essa ser agregação, enquanto morte é desagregação; e ao ser, que, como tal, é e quer ser uno. Há, pois, na mente humana, um imperativo estrutural, ou seja, uma exigência objetiva de “ultimação” em vista sempre da uni�cação. O homem não pode não “ultimar” seus atos, ou seja, direcioná-los, consciente ou inconscientemente, para um �m último, seja lá qual for. Essa é uma lei férrea do espírito humano, que, por ser aberto ao in�nito, busca irresistivelmente um objeto �nal uni�cante. A “ultimação” é uma fatalidade imprescritível da mente humana, um dado antropológico que não pede mais que ser reconhecido. Agora, onde cada um “ultimará” concretamente sua vida pessoal, essa já é outra questão. É uma questão na qual entra a vontade livre de cada um, não menos que seu juízo. Se “ultimar” a própria vida é, abstratamente, o destino geral de todo homem, já o destino concreto em que cada homem “ultimará” sua vida dependerá de sua liberdade. Para se referir a esse imperativo, fala-se hoje em termos de “opção fundamental de vida”.21 II. ESTRUTURA E DINÂMICA DO DESEJO NATURAL Falamos aqui em termos de “desejo de sentido”. Mas poderíamos falar, mais largamente, em “vontade de sentido”. Desejo e vontade aqui se equivalem. Deixemos, por ora, de lado tanto a forma restrita de desejo, que é o desejo emocional, sentimento do que falta, quanto a forma extensa de desejo, signi�cando apetite, pulsão, inclinação ou tendência em geral.22 Concentremo-nos, antes, no desejo voluntário, ou simplesmente na vontade. Para compreender, porém, de modo adequado a vontade de sentido, precisamos antes saber o que é mesmo a vontade em sua natureza e em sua dinâmica própria. 1. Os dois planos da vontade Pois bem, comecemos por constatar que a cultura moderna não fala tanto em vontade quanto em liberdade. Ela privilegiou a ideia de liberdade, entendendo-a como o poder de se determinar para isso ou para aquilo. Porém a liberdade não é o todo da vontade, mas apenas um atributo dela. A vontade é uma potência mais complexa e mais profunda que a liberdade. De fato, se cavamos no subsolo metafísico da vontade, o que encontramos? Encontramos que a vontade possui, como tudo, uma natureza própria, uma estrutura determinada. Ora, segundo tal estrutura ou natureza, a vontade visa sempre ao bem, como seu objeto próprio, não importa a forma que esse bem tenha. A vontade é essencialmente a “faculdade do bem”, assim como a inteligência é a “faculdade da verdade”. Portanto, já de entrada, a vontade está predeterminada para o bem, bem que é seu objeto e, ao mesmo tempo, seu objetivo ou �m. A orientação da vontade para o bem é algo de natural e necessário. A vontade não pode não querer o bem como tal, como também não pode querer o mal como tal. O mal ela só pode querê-lo sob a forma de bem. Assim, por exemplo, a droga: a vontade só pode querê-la pelo prazer que proporciona ou pelo dinheiro que se obtém por sua venda. Portanto, a vontade não é livre de visar seja lá ao que for. Antes, em seu dinamismo mais profundo, a vontade está �nalizada para o bem. Em sua estrutura originária, ela é uma pulsão humana espontânea em direção a tudo o que é valioso e digno. Seria como o “instinto do bem”. E agora vem o paradoxo: é só a partir dessa determinação estrutural para o bem que a vontade é livre: livre em relação à forma que o bem terá para ela. É então que a liberdade, chamada agora livre-arbítrio, emerge como força de autodeterminação, de decisão, de opção. Mas aqui já estamos num plano segundo da vontade, plano que deriva do primeiro e nele se apoia. A vontade, pois, só emerge como liberdade num momento ulterior e derivado em relação ao seu dinamismo intrínseco. Santo Tomás chama esses dois planos ou momentos da vontade, respectivamente, “vontade como natureza” e “vontade como livre-arbítrio”. A primeira gera movimentos necessários, porque imperativos, e a segunda, movimentos contingentes, porque opcionais.23 São João Damasceno, citado por Santo Tomás, usa duas palavras diferentes para indicar esses dois planos, momentos ou funções da vontade: thélesis, para designar a vontade que quer simplesmente, e boúlesis, para a vontade que decide ou opta.24 M. Blondel, por sua parte, distinguia entre volonté voulante e volonté voulue, que poderíamos verter por “querer querente” e “querer querido”. Poderíamos chamar essa dupla conceitual de “vontade instintiva” e “vontade livre”, e, para afastar confusões, quali�car seus atos respectivos de “volitivos” e de “voluntários”. 2. Desejo natural: principais características Como se apresenta o caráter “natural” do desejo de felicidade ou de sentido? O quali�cativo “natural” diz que o impulso para o sentido último pertence à natureza do próprio desejo, à sua estrutura essencial, à sua dinâmica intrínseca. Trata-se de uma pulsão originária do ser humano, um bem de raiz seu. É um impulso ou apetite conatural à constituição ontológica do homem, assim como à sua experiência existencial. A abertura ao sentido transcendente não é, em si mesma, sobrenatural.25 Tal abertura é, antes, natural, sendo sobrenatural apenas seu preenchimento ou realização. Trata-se, pois, de uma inclinação inata, espontânea, instintiva para o sentido �nal, anterior a toda e qualquer decisão consciente. É assim que se manifesta a vontade em sua constituição natural (voluntas ut natura), previamente a qualquer ato elícito ou expresso seu. O traço mais importante do desejo natural é seu caráter objetivante, enquanto ele visa um objeto realmente existente. Pelo fato de tal desejo ter um caráter ontológico, isto é, profundamente real, como seria ainda possível que seu objeto não seja igualmente real? Mas, como esse traço é hoje o mais contestado, deixemos para discuti-lo em profundidade mais adiante. Por ora, limitemo-nos a outros três traços essenciais do desejo natural de sentido, a saber: seu caráter inelutável, indeliberávele universal. 1) Inelutável Todo homem busca um sentido último à sua vida e à existência em geral, e isso de modo incoercível, irreprimível e, de certa forma, inexorável. É um impulso imperioso, coagente e mesmo necessitante. Sim, o sentido pertence ao mundo da ananke: do que não pode não ser. “Somos condenados ao sentido” (Merleau-Ponty). O sentido é, para o homem, a “questão fatal”, enquanto questão inescapável, incontornável. Nessa acepção, o sentido é o destino, e não só como �nalidade, mas também como fatalidade. Um sentido qualquer todo homem tem que ter, por força de ser o que é. Agora, qual seja em concreto tal sentido, isso já é outra questão, envolvendo um juízo e uma decisão, e disso trataremos mais adiante. A partir de J. Lacan, generalizou-se a distinção entre “necessidade”, que corresponderia ao apetite �siológico, o qual é imperativo e saciável; e “desejo”, que representaria o apetite psicológico, o qual é livre e insaciável. Sexo seria necessidade, e Eros, desejo.26 A realidade, entretanto, é mais complexa: desejos e necessidades se entrecruzam. Assim, pode-se falar tanto de “desejos físicos” (de comida, por ex.), como de “necessidades espirituais” (de verdade, p. ex.). Tem razão Epicuro quando distingue vários tipos de desejos, entre os quais justamente os “desejos necessários”.27 Ora, o desejo de sentido ou de felicidade cai na categoria dos desejos naturais e necessários. Ele é tão coagente (no plano racional) quanto qualquer instinto (no plano biológico). A sede de felicidade e de sentido é tão implacável como a sede de água, e até mais. Como ninguém pode desejar a sede como tal, assim também ninguém pode desejar a desgraça e o absurdo. Por isso, tanto se pode falar em “desejo” de sentido, como de “necessidade” de sentido, ou mesmo de “faro”, “senso” e “instinto” de sentido. Há, efetivamente, um “instinto de sentido”, como há um “instinto de felicidade”, que com ele se identi�ca. Diz Santo Tomás: “A vontade de ser feliz não pertence ao livre-arbítrio, mas ao instinto natural”. 28 O mesmo se pode dizer da vontade de ter um sentido na vida. Não sendo suprimível, a busca do sentido último, mais que recorrente, é permanente. Recorrentes são apenas os momentos agudos ou picos em que esse desejo se manifesta. Fora disso, ele continua latejando no fundo da consciência, como um coração pulsante, mesmo quando não se pensa nisso. Não há ser humano que não busque, e efetivamente não tenha, um sentido para sua vida. Como dissemos, trata-se sempre de um sentido �nal e global. É aquilo pelo qual o homem �nalmente vive, não importa onde sua liberdade �xe tal sentido, se, por exemplo, no sexo ou na mística. Mas, se a questão do sentido é inelutável, por que hoje se lamenta tanto o “vazio”, a “falta” ou a “crise” de sentido? É que com essas palavras não se visa propriamente a ausência de sentido em geral, mas a ausência de um sentido verdadeiro, autêntico, consistente. O problema do “homem moderno” não é que ele esteja “passando fome” de sentido, mas que esteja mal nutrido ou subnutrido. Alimenta sua alma com um pão sem substância, em vez de se alimentar com o “pão supersubstancial”.29 Há, sim, hoje uma “questão” de sentido, mas não de sentido em geral, de um sentido qualquer, mas mais precisamente de um “sentido verdadeiro”, sólido, que, como veremos, só pode ser um metassentido, um sentido absolutamente transcendente, o qual, de fato, se identi�ca com Deus mesmo. Ora, sintetizando o que acabamos de dizer sobre a “questão do sentido” hoje, digamos: a) Nessa questão, não se trata da falta total de sentido, como quer certo niilismo (absoluto), pois isso é impossível, dado que todo agente racional só vive e age movido por um sentido qualquer. b) Também não se trata da falta de um sentido último ou transcendente, global e totalizante, o que é igualmente impossível ao viver do homem. Este sempre “ultimará” o sentido da vida num valor qualquer, por mais baixo que seja, tal a droga. c) Se há hoje uma “questão do sentido” é precisamente em relação a um sentido que seja verdadeiro, consistente, satisfatório, e não à falta de todo e qualquer sentido. d) Para ser tal, o sentido só pode ser absolutamente transcendente. Em outras palavras, só pode ser um suprassentido. e) Ora, esse suprassentido é concretamente Deus, como teremos ainda de mostrar. É, pois, segundo o condensado das três primeiras teses que, a nosso ver, a “questão do sentido” precisa ser colocada, podendo assim, com as duas últimas, ser bem resolvida. 2) Indeliberável Esse traço decorre do anterior: se o desejo de sentido é natural, ele não é matéria de livre escolha. Só é objeto de livre escolha a resposta que cada um dá àquele desejo, mas não o desejo como tal. Daí sentenciar Santo Tomás: “O homem é senhor de seus atos e escolhas, mas não de seu apetite de sentido último”.30 Somos tão pouco senhores do desejo de sentido �nal como o somos de ter fome e sede, de sentir sono ou atração sexual. O sentido é objeto coagente da vontade natural, contra a qual o homem nada pode. Ele não pode não querer um sentido �nal de vida. O que ele pode, livremente, é de�nir qual é esse sentido. Aqui volta à mente a metáfora da sede: não se pode decidir não ter sede; o que se pode decidir é apenas como matar a sede. O mesmo se pode dizer desse “equivalente risonho” do sentido que é a felicidade. A felicidade não pode não ser querida e buscada pelo ser humano. É o que sublinha o Angélico: “Pelo fato de ser ordenado, por necessidade natural, para o �m último, o homem não pode não querer ser feliz”.31 Chega a dizer que o homem deseja tão naturalmente a felicidade como o lobo à ovelha.32 Segundo ele, estamos, em suma, “condenados” a buscar a felicidade. É uma tese que ele repete ad nauseam.33 E com ele concordam outros grandes pensadores.34 Ora, se o �m último é o sentido supremo do homem, é também por necessidade que o homem vai atrás de tal sentido. Já nascemos embarcados, em demanda do porto �nal, com a diferença, porém, de que cada qual ajuíza o lugar desse porto e, assim, a direção de seu navegar. Sem a busca de sentido, o homem �caria paralisado e colapsaria. De fato, a vontade de sentido supremo, independentemente da forma concreta que toma, é, para o Doutor Angélico, o “fundamento e o princípio” de todos os atos humanos. É o motor imóvel e perpétuo de toda a sua atividade.35 O que pode o homem é apenas – e é o que mais importa – decidir onde pôr sua felicidade e como buscá-la. É nessa acepção segunda que “a busca de felicidade” (the pursuit of happiness) foi registrada entre os “direitos inalienáveis” do homem, primeiro na Constituição dos EUA (1787) e depois na de vários outros países. Já a “busca da felicidade” como pulsão primeira não é objeto de direito algum, mas apenas de constatação. Como em relação à felicidade, o homem nada pode contra o desejo originário e espontâneo de sentido; só pode decidir onde pôr o sentido da vida e como buscá-lo. Nisso o Aquinate é claro: “Todos os homens concordam em desejar o �m último, porque todos desejam realizar sua perfeição. Contudo, quanto à questão de onde pôr esse �m último, já nesse ponto nem todos concordam”.36 Por conseguinte, o desejo de sentido, como todo desejo natural, não é matéria de deliberação, mas apenas de reconhecimento de sua existência. Se há deliberação, é precisamente em relação à resposta concreta que cada um dá àquele desejo incoercível. Portanto, é só por uma ilusão, nascida da arbitrariedade, que os “modernos” acreditam poder ab-rogar esse desejo radical. Um deles, por exemplo, diz que as multidões pós-modernas não têm demanda alguma de sentido, enquanto seriam neutras ou indiferentes àquela questão e viveriam, como diz, no “buraco negro do sentido”.37 Outro a�rma que “o pagão não sente necessidade de salvação” e de “vida eterna”,38 nomes religiosos para sentido. Um terceiro, usando ainda outro nome, confessa: “Não tenho desejo ou necessidade de imortalidade”.39 Mas não: o absurdo é tão contrário à natureza humana que Camus fala nessa “revolta metafísica” quefaz o homem “erguer-se contra a própria condição e contra a criação inteira” e especialmente “contra a dor de viver e de morrer”.40 Por mais que neguem a existência do desejo de sentido, esses pensadores não podem efetivamente aboli-lo. Ao contrário, o próprio fato de se insurgirem contra tal desejo denuncia seu equívoco. São obrigados a se haver com ele como com um hóspede indesejável. Mais que em equívoco, os “modernos” laboram em contradição: a de recusar o irrecusável, porquanto trata-se de uma recusa arbitrária, além de inócua, que não os impede de buscarem, malgrado seu, um sentido último, por mais baixo que o situem na escala de valores. Mas donde provém a di�culdade que sente o “moderno” de admitir este dado antropológico obstinado: a existência de uma vontade natural ou estrutural, orientada para o bem, a felicidade, o sentido? Certamente da mentalidade, tipicamente moderna, segundo a qual o ser humano é essencialmente liberdade, detentor do poder radical de de�nir sua identidade, de decidir seu bem e seu mal, de determinar seu �m e seu sentido próprios. Essa mentalidade recebeu foros �losó�cos através das ideias de “metafísica do sujeito”, “sujeito constituinte”, “vontade de potência”, “autonomia” e outras mais, que, sob um vocabulário especioso, escondem, em verdade, uma boa dose de hybris e de autoendeusamento. 3) Universal Se o desejo de sentido é natural, enquanto faz parte da estrutura da natureza humana; ademais, se, sendo natural, é impositivo e não sujeito à deliberação, então ele só pode ser universal. Não há cultura na terra que o possa ignorar, como, de resto, testemunha a universalidade do fenômeno religioso, inclusive entre os povos tidos comumente como destituídos de preocupações religiosas, como os chineses.41 Não; não há sequer um ser humano que não seja, em seu profundo, movido e mesmo atormentado por esse desejo. Há os que se declaram, como Weber e Freud, destituídos de qualquer “sensor religioso”. Pode até ser, mas não certamente de “sensor do sentido”, do qual o primeiro é apenas uma especi�cação. Efetivamente, o senso do sentido é tão próprio do homem como é o senso da verdade e do bem, do qual deriva. O bicho não pede por sentido. Seus apetites são limitados ao seu umwelt, o mundo que o circunda. O gado pasta tranquilamente no campo, sem pôr-se problema algum de sentido. Seu mundo acaba onde acaba a cerca. Só o ser racional tem problemas de sentido, e tem tais problemas justamente porque ele é o único animal que pensa para além e acima de todas as cercas. Sua felicidade não se põe no plano dos sentidos (corporais), como é para o bruto, mas no plano do sentido (espiritual). Tem razão Santo Agostinho ao dizer: “É melhor ser um homem que chora do que um verme feliz”.42 John S. Mill diz o mesmo quando escreve: “É melhor ser um homem insatisfeito do que um porco satisfeito”.43 Assim, não será sem autoengano que alguém poderá dizer: “A questão do sentido não me interessa!”. Da mesma forma, não há como cancelar em de�nitivo tal questão do horizonte da cultura, de modo que um dia se venha a perguntar, entre espantado e indiferente: “Sentido da vida: que é isso?”. Todo e qualquer sujeito humano, na medida mesma em que é humano, deseja e quer, busca e tem um sentido de vida qualquer. Para veri�car a existência geral desse desejo, podemos invocar aqui numerosos testemunhos da experiência humana na história.44 Há quem, para isso, recorra também a pesquisas empíricas, como faz Frankl. Mas o interesse maior dessas pesquisas não está em mostrar quantos têm desejo de sentido (seria chover no molhado), mas quantos têm consciência explícita desse desejo e de que forma buscam satisfazê-lo. Pois, como dissemos, onde pôr o sentido, isso é coisa da autodeterminação de cada ser humano, enquanto desejar o sentido, isso é determinismo de sua natureza espiritual. Como se vê, a diferença entre vontade originária e instintiva e vontade derivada e livre opera sempre no ser humano, não importando se a vontade originária é consciente de si ou se é apenas vivida. III. DESEJO DE INFINITO: SEU FUNDAMENTO 1. Vontade: abertura originária ao in�nito A vontade, que os antigos chamavam também de apetite racional, é animada, em sua estrutura originária, por uma dinâmica transcendental, pela qual ela tende a superar todos os limites e se abrir à totalidade do real. É pulsão para o bem universal e integral. É desejo de absoluto, de in�nito, desejo que é, ele mesmo, in�nito em sua potencialidade, por estar aberto a tudo em absoluto.45 Até deus o ser humano deseja ser, correta ou abusivamente que seja. A dinâmica ascensional do desejo humano é tão forte que não susta sequer perante o impossível.46 Essa abertura ao universal e in�nito é reconhecida também pela encíclica Fides et Ratio, quando a�rma: “O coração do homem (...) suspira pela riqueza in�nita que está além, porque intui que nela está guardada a resposta que aplaca toda questão ainda não resolvida” (n. 17). Diz ainda: “O homem procura uma explicação de�nitiva, um valor supremo, para além do qual não existam nem possam existir ulteriores perguntas ou apelos” (n. 27). O desejo geral de um sentido conclusivo é algo de primordial e de elementar. Sua determinação ou concretização vem naturalmente depois. É como a fome, que vem antes e independe do alimento que a venha satisfazer. O desejo de sentido é tal que sempre acossa o homem, quer este o saiba, quer não; quer queira, quer não. E não é por desatender ao desejo do sentido que tal desejo desaparece; antes, se aguça implacavelmente, como a sede. É um aguilhão contra o qual é inútil recalcitrar. Agora, se a vontade se volta naturalmente para o bem, é porque a inteligência lhe mostrou a verdade na forma do bem. Pois como amar o que não se conhece? Mas, antes ainda de se voltar para a verdade, a inteligência se volta para o ser, como assegura o Angélico, repetindo Avicena.47 Em suma, a alma está nativamente voltada para o ser, que apreende inicialmente, pela razão, como verdadeiro e em seguida, pela vontade, como bom. Mas, se o homem deseja o in�nito, é porque sente sua radical precariedade e quer superá-la. É, pois, aqui, no solo existencial, que o desejo humano se enraíza, antes ainda de vir à consciência e à liberdade. Ademais, não é só o homem que “geme” por libertação da “vaidade” ou mortalidade, mas toda a natureza, como a�rma o Apóstolo: “A criação está em ansiosa expectativa (...), aguardando ser libertada da escravidão da corrupção”. Por isso “geme e sofre como dores de parto” (Rm 8,19.21.22). Clamat creatura ad Creatorem. Assim, o gemido cósmico ressoa no gemido humano, clamando por redenção e achando aí seu sentido pleno. Portanto, o desejo de sentido é “natural” não só porque pertence à natureza humana, mas também porque é inerente à natureza física em seu profundo. Em verdade, para o Angélico, o desejo natural tem por objeto tudo o que convém à natureza do homem em todos os seus níveis. Os desejos naturais seriam, portanto: 1) no nível físico, subsistir ou viver e mesmo viver para sempre (imortalidade), podendo-se ainda acrescentar: crescer, se expandir, assim como, de modo mais elementar, comer, beber, dormir, fazer sexo, excretar etc.; 2) no nível emocional, sentir amor, esperança, alegria, temor e tantas outras emoções; 3) no nível espiritual, buscar a verdade, especialmente a verdade primeira; tender ao bem, em particular ao sumo bem ou à felicidade plena; e ainda unir-se ao seu princípio (por exemplo, para um �lho, honrar o pai; para a criatura, amar seu criador). Todos esses objetos são naturais ao ser humano, sendo, portanto, desejados ex necessitate, independentemente da forma concreta que venham a tomar.48 Por ser espiritual e se enraizar no mais profundo da alma, o desejo natural de sentido pleno é tão poderoso que supera qualquer outro desejo humano, tanto o físico, como a sede, quanto o emocional, como a libido. Com esses, o desejo de sentido pode ter analogias, não equivalências. Sim, a ânsia por sentido se parece com a sede de água e com a fome de sexo,mas é muito mais potente e necessitante que uma e outra. E é, ao mesmo tempo, mais decisiva, pois não compromete apenas a satisfação temporal do homem, mas seu destino eterno. Em suma, é de modo absoluto que o humano precisa do absoluto. 2. Espírito: fundamento do desejo de sentido in�nito Por sua radicalidade, a pergunta pelo sentido absoluto não pode ser esquivada. Ela faz do homem um ser interrogativo, que põe tudo em questão: a si mesmo e ao mundo. E toda resposta que o homem der fora do absoluto será engolida por aquela pergunta absoluta.49 Dissemos que o próprio fato de o desejo humano visar o universal, para além de todo o material, é uma prova da natureza essencialmente espiritual do homem, de sua transcendência em relação ao mundo empírico. Se a imaginação humana é capaz de imaginar o in�nito, é porque há nela algo de espiritual, que é precisamente a razão. Portanto, a raiz do desejo de in�nito não é a imaginação, mas a razão. É efetivamente o espírito que de�ne uma vida propriamente “humana”, como sugere Rudolf Euken, Nobel de literatura de 1908, ao se perguntar: “A vida humana deve ser compreendida como o mais alto grau da natureza, desenvolvida como tal, ou nela aparece um novo grau de realidade – o espírito?”.50 Esse �lósofo repõe a questão com outras palavras: “Será a vida humana um simples acessório da natureza ou será o ponto de partida de um mundo novo?”.51 Para aquele pensador, é certo que o homem proveio da natureza, mas, como por uma reviravolta ontológica, ele a superou, dando origem a um mundo autônomo, de que a cultura é a expressão mais evidente. Assim, a “vida humana” é, por um lado, o ponto de chegada da natureza e, por outro, o ponto de partida do espírito. Assim, conclui Euken, o homem passou do “reino da exterioridade”, próprio da natureza, para o “reino da interioridade”, típico do espírito. Isso é, de resto, con�rmado pela Gaudium et Spes, quando a�rma: “Por sua vida interior, o homem excede a universalidade das coisas” (n. 14,2). O homem é um ser que se transcende a si mesmo, que toma distância do mundo e é capaz de objetivar o mundo e julgá-lo, a �m de encontrar- lhe o sentido. É para isso que aponta a famosa sentença de Pascal: “O homem supera in�nitamente o homem”.52 Em suma, o homem é um “animal metafísico”.53 É metafísico por constituição ontológica, enquanto o homem se situa para além do físico, não importando se esse físico é o mundo exterior ou o próprio corpo e a própria psique, com suas emoções e fantasias. Os diálogos de Platão, por exemplo, não se reduzem aos 1.350 gramas de um cérebro genial, habitado por 100 bilhões de neurônios e 100 trilhões ou talvez um quadrilhão de sinapses. Assim também, um único olhar de carinho de uma mãe para seu bebê é outra coisa e muito mais que as simples informações que um milhão de axiônios, acumulados no nervo óptico, mandam para o cérebro.54 Ademais, é por ser metafísico que o homem pode justamente “fazer metafísica”, isto é, levantar questões transcendentais, como as relativas à verdade, ao bem, à beleza, ao amor, à liberdade, à morte, a Deus e, em particular, ao sentido da existência. O ser racional possui uma alma espiritual e imortal. Segundo a Bíblia, o “sopro de Deus”, infundido no homem, fez dele a imago Dei.55 É daí que provém sua abertura transcendental ao universal, ao in�nito, ao absoluto, ao último, em suma, à transcendência, seja lá a forma concreta que tenha essa transcendência. O fato é que o homem, em virtude da abertura ao universal, congênita à sua estrutura espiritual, quer ou deseja tudo. Tal desejo é tão inerente ao homem e à sua condição de ser contingente que seu aguilhão se manterá até mesmo na outra vida, quer esteja no céu ou no inferno: neste, para ser incessante e eternamente frustrado (se o condenado nada desejasse, não sofreria); no céu, para ser incessante e crescentemente cumulado. A dialética do desejo no céu é explicada por Santo Tomás assim: se, do lado de seu objeto (Deus), o desejo se sacia plenamente (por causa da in�nidade divina), do lado do sujeito o desejo pode crescer sempre, de modo ilimitado.56 Por isso, a felicidade do céu deve ser entendida dinamicamente, como algo que cresce à proporção mesmo em que seu desejo é saciado.57 Assim, a água da felicidade, ao mesmo tempo que sacia – como garante Jesus em João: “Quem beber da água que eu lhe der jamais terá sede” (Jo 4,14; cf. 6,35; Mt 5,6; Ap 7,16) –, suscita sempre mais sede, como a�rma o Eclesiástico: “Quem me bebe ainda terá sede” (Eclo 24,29). Também para Dante, se os justos no limbo não sofrem, sem serem por isso totalmente felizes, é porque continuam a desejar Deus, ainda que em vão, como o poeta os faz confessar: “Desejamos sem esperança”.58 Em sua verdade mais profunda, o desejo humano de in�nito é apenas um eco da presença viva do Espírito de Deus no espírito humano, como diz João Paulo II na encíclica Redemptoris Missio: O homem solicitado incessantemente pelo Espírito de Deus nunca poderá ser totalmente indiferente ao problema da religião, mantendo sempre o desejo de saber, mesmo se confusamente, qual o significado da sua vida, da sua atividade e da sua morte. O Espírito está, portanto, na própria origem da questão existencial e religiosa do homem, a qual surge não só de situações contingentes, mas da estrutura própria de seu ser (n. 28,2). Só um homem que depositou no In�nito real sua con�ança tem desde já seu desejo substancialmente satisfeito, embora não totalmente. Abrigado em Deus, ele goza de uma paz profunda, ainda que imperfeita. Por certo, seu coração pulsa ainda, inquieto. É a inquietação do amante que encontrou seu amado, mas que ainda teme: teme perdê-lo ou teme não ser digno dele. E é pela mesma razão e contrario que o ateísmo e, por conseguinte, o niilismo nunca outorgarão a paz profunda pela qual todo coração anseia. Não há niilismo sereno e menos ainda feliz. O niilista será sempre uma criatura mal resolvida, um coração atormentado, justamente porque não atinou com a resposta verdadeira ao seu desejo mais verdadeiro. Equivoca-se, portanto, H. Arendt ao dizer que “desejo duradouro” não existe, pois, quando satisfeito, o desejo desaparece; se, ao contrário, durasse sempre, seria frustrado sem cessar, e essa seria a imagem do inferno.59 Ela não percebeu nem a profundidade do desejo humano, enquanto se enraíza em nossa estrutura ontológica, fazendo com que, enquanto o homem é homem, é sempre um ser desejante; nem sua transcendência, pois que esse desejo pode encontrar no In�nito real sua realização, sem por isso perder seu dinamismo congênito. Digamos, para resumir e fechar o que viemos dizendo, que o ser humano, como um todo, é pulsão para sua realização, ou seja, para sua perfeição, ou ainda para sua enteléquia ou �nalização. Quando o homem realiza todas as suas potencialidades, então chegou ao seu �m, está �nalizado. Será realmente um téleios, um perfeito, ou, como se diz do Buda, será um tathagata, “aquele que adveio”, isto é, aquele que realizou a verdade de seu ser. 3. Identidade do ser humano: base do sentido da vida O que acabamos de ver con�rma o que tínhamos a�rmado no capítulo anterior, isto é, que a questão do sentido tem em sua base a questão da verdade. Efetivamente, a questão do �m de alguma coisa depende da questão da verdade ou natureza dessa coisa. Qualis natura, talis �nis. A coisa será o que é. No caso do homem, a teleologia depende da antropologia. Tal sentido, qual identidade. Portanto, só quem sabe da essência do homem saberá de seu sentido. Qualis homo, talis �nis. O destino do homem está inscrito em seu código ontológico. O seu “para onde” já está prede�nido em seu “quem sou”. Quem de�ne o ser humano como algo de tão efêmero como uma “bolha” (Varrão et alii) ou um “fungo” (C. Lévi-Strauss) só pode atribuir-lhe como destino o mais completo desvanecimento. Mas quem chega a uma escatologia tão niilista acerca da vida é porque adotou, antes ainda, uma protologia negativista. Pois, se julga que o homem vem do nada, dirá que nada também será seu destino. Assimtambém, quem acha que todas as coisas que estão sob o céu não passam de “cachorros de palha”, que pode ainda esperar do homem, posto ele também entre esses animais �ctícios?60 Pior: com conceito assim tão mísero do homem, como se pode ainda amá- lo? Ao contrário, se adotamos uma antropologia consistente, adjudicaremos também ao homem um sentido consistente. Assim, se o homem é verdadeiramente imago Dei, ele não pode deixar de buscar seu arquétipo: Deus mesmo. Se ele é “planta do céu” (Platão) ou, melhor ainda, se ele é “�lho do céu” (Dante), então o céu será seu destino. Se ele é essencialmente espírito, então seu �m será o mundo espiritual. De fato, o espírito se compara a uma chama e, como toda chama, sobe. Quando, no começo do Paraíso, Dante descreve sua admiração por estar no paraíso, Beatriz lhe explica que esse fato é natural, já que ele foi feito para aquele lugar superior, como o fogo para cima e a água para baixo. Seria, antes, de se admirar se o homem permanecesse na terra. A guia celeste diz ainda ao poeta que todas as criaturas navegam, através do “grande mar do ser”, em direção ao “porto” �nal de tudo: Deus, as coisas irracionais fazendo-o por “instinto”, e o ser racional, livremente.61 Justamente porque é livre, o homem pode contrariar sua vocação ontológica para cima, como o raio, que, apesar de sua natureza ígnea, em vez de subir, vem para baixo. Efetivamente, quando um homem se acostuma com coisas baixas, inclina-se para baixo, por força dessa segunda natureza que é o hábito. Mas isso só é possível a custo da deformação de sua natureza originária e essencial, passando então o homem a viver numa situação patológica, aborrecendo a virtude como o doente dos olhos aborrece a luz do sol. Daí a máxima peripatética: “O que cada um é, assim os valores lhe parecem”.62 Desse modo, o ambicioso põe no poder seu summum bonum, e o hedonista, no prazer. Ao contrário, quem se habituou a buscar ideais elevados, que dão à vida um sentido elevado, passa a julgar as coisas a partir da mesma elevação ética ou espiritual. Tais hábitos, viciosos ou virtuosos que sejam, nunca são meros automatismos, mas frutos do livre-arbítrio, tanto em sua atualização, quanto em seu princípio, tendo sido adquiridos mediante a prática de atos livres.63 Em relação à liberdade em de�nir nossa própria identidade e ao sentido que lhe corresponde, importa aqui acrescentar algo de mais profundo e, ao mesmo tempo, mais misterioso: é a estranha inclinação para o mal que todos experimentamos, ao mesmo tempo que nos sentimos intimamente convocados para o bem. Essa é uma experiência dramática, que foi tão bem descrita por Paulo (cf. Rm 7,14-27). A ela se refere também Pascal, ao lançar essa incisiva pergunta: “Se o homem é feito para Deus, por que é tão avesso a Ele?”.64 A�rma o mesmo em outro passo: “Os homens são ao mesmo tempo capazes de Deus e indignos dele; capazes pela sua natureza primeira, indignos pela sua corrupção”.65 Esse é um paradoxo que o próprio Pascal explica, evocando o mistério do Pecado original, ao escrever: “Nascemos tão contrários ao amor de Deus, e ele nos é, contudo, tão necessário, que devemos ter nascido culpados”.66 É dessa condição dramática que advém ao ser humano a di�culdade de encontrar, por si mesmo, o verdadeiro sentido da vida. Mas, por compensação, vem-lhe surpreendentemente ao encontro a luz poderosa da Revelação, que lhe mostra sua verdadeira identidade e, assim, seu destino derradeiro. RESUMO CONCLUSIVO EM FORMA DE TESES Ao termo do que dissemos acima, enucleemos a �loso�a antropológica do sentido nas três teses seguintes: Tese I: Todo ser humano quer necessariamente não apenas um sentido para isso ou aquilo, mas um sentido último para tudo. A busca de um sentido em tudo o que faz, inclusive e principalmente um termo último na vida é coisa inata no homem. Há nele como que um “instinto do sentido”. “Ultimar o sentido” é um imperativo incontornável, uma lei in�exível do espírito humano. Cada um se dá necessariamente um “projeto fundamental de vida” e assim um sentido global à sua existência. A autodoação de sentido é um ato espontâneo e incoercível, mesmo se, em geral, pouco explícito. Ora, dizer que todo homem se dá e tem um �m último é dizer que ele se dá e tem um absoluto qualquer, um transcendente, um sumo bem, um in�nito, um bem universal e integral, um incondicional, um tesouro máximo, um ideal de felicidade, um projeto fundamental de vida e até mesmo um “deus” qualquer. Todas essas expressões praticamente se correspondem. Portanto, isto de dizer que o homem moderno sofre de uma “crise de sentido” não é, a rigor, verdadeiro, pela boa razão de que é impossível viver sem um sentido qualquer, seja ele explícito ou implícito, certo ou errado. Daí insistirmos em dizer que a crise do homem moderno não é de sentido em geral, mas, mais precisamente, de sentido verdadeiro. Tese II: Agora, onde está concretamente o sentido último – isso depende da livre escolha de cada um com base em um juízo de valor. A lei da ultimação se torna, nas mãos de cada pessoa individual, um “poder” de ultimar. Se todos têm de ultimar seu projeto de vida, nem todos precisam ultimá-lo no mesmo patamar. É como se houvesse um grande ostensório diante do qual todos têm de se ajoelhar, mas em cujo centro cada um põe a divindade de sua escolha. A pergunta concreta a que cada um tem de responder não é ter um sentido na vida, mas precisamente onde pôr esse sentido. Colocada de maneira mais viva, a pergunta decisiva é: Onde está a felicidade, aquela que daria um sentido pleno à vida? Há quem ponha a felicidade na relação sexual e há quem a ponha na unio mystica. Um acha sua realização em queimar judeus, e outro em cuidar dos leprosos, para falar como Camus. Um se sente feliz com ser bêbado, e outro só com ser imperador do mundo, falando como Sartre. Vê-se, pois, que, se a felicidade é almejada por todos, nem todos a procuram no mesmo lugar. Portanto, o sentido é nossa bênção ou nossa maldição; tudo depende da liberdade de cada um e do conteúdo que ela confere à vida. Tese III: O sentido último do homem é Deus; ou então é um ídolo. Embora essa tese deva ainda ser provada, como faremos mais adiante (cap. VII), não é inútil pô-la antecipadamente aqui, a �m de, com ela, completar a questão do sentido do ponto de vista da antropologia metafísica. Digamos, pois, que, na escolha pessoal e livre do conteúdo concreto que se dá ao anseio de sentido e felicidade, só há estas opções: ou se escolhe uma realidade transcendente, e essa, quando verdadeira, só pode ser o Deus vivo; ou se escolhe uma realidade imanente, e essa só pode ser um ídolo mudo. Trata-se de um dilema inescapável: ou se opta pelo absoluto realmente existente, e esse se chama Deus, ou por um relativo absolutizado, e isso se chama ídolo. Esse último é o caso do “homem moderno”, que, tendo-se afastado da fé em Deus, viu-se obrigado a se agarrar às diversas ideologias, com seus deuses falazes, que só podiam dar um sentido falaz à existência. Poder-se-ia aventar uma terceira opção, média entre Deus e o ídolo. Seria a opção ética, como, por exemplo, a opção pela justiça. Mas essa opção, além de ser a de uma minoria, agnóstica ou ateia que seja, é extremamente precária, pois só em casos raríssimos se mantém ao longo do tempo, coincidindo então com a opção implícita por Deus. Na maioria dos casos, a opção ética, sem o sustento da fé religiosa, cede e decai para o lado do ídolo, seja ele grande (Justiça, Liberdade, Beleza), ou pequeno (carreira, trabalho, mulher). E assim voltamos à alternativa inescapável: ou Deus ou um substituto seu.67 IV. DESEJO DE SENTIDO: CONSTANTE DE TODO SER, QUER FÍSICO, QUER METAFÍSICO Prometemos, no início do capítulo anterior, abordar a questão �losó�ca do sentido do ponto de vista objetivo, tomando sentido como �nalidade- em-si. É o que faremos em seguida, ainda que de modo necessariamente sumário. Vimos acima que o ser humano tem uma estrutura desejante. Isso se manifesta tanto na vida de cada indivíduo como na vidacoletiva. Biogra�a ou história, toda vida humana é processo, animado por um �m resolutivo. Vimos que esse �m ou sentido já vem inscrito em �ligrana na textura natural da vontade humana, precisando, porém, se consumar através de um ato livre da vontade, enquanto decide por esse ou aquele sentido. 1. O ser físico e seu desejo de sentido Mas, perguntamos, a realidade extra-humana (inclusive do homem, enquanto natureza) não tem, ela também, uma estrutura processual? Tem, sim, não importa o nome que se lhe dê: apetite, pulsão, vontade, tendência, busca, elã, ímpeto, dinamismo, amor, desejo. Por acaso a vida como um todo não conhece evolução? E o cosmos também não tem história? Em verdade, tudo se move, como tinha percebido Heráclito. Tudo evolui, avança, sobe. Mesmo no seio do todo em evolução existem realidades particulares que mostram de modo manifesto esse dinamismo universal. Assim a luz: ela se irradia naturalmente e inde�nidamente. Também a vida: ela busca sempre mais vida. Igualmente o amor: ele quer se comunicar e multiplicar. Portanto, esse traço pulsional pertence à estrutura de todo ser. É o que reza o dito peripatético: “A natureza é amante do ser” (Natura est entis amans). Donde vem toda essa pulsão que leva as coisas para a frente? Os antigos, como Platão e os estoicos, falavam numa “alma do mundo”. O certo é que existe um desejo obscuro, animando tudo. Esta visão dinâmica e ascensional da realidade foi sustentada por muitos pensadores, sobressaindo Aristóteles. Esse �lósofo tem uma visão dinâmica do mundo e do ser em geral.68 Para ele, tudo carrega uma tendência à expansão, ao seu desabrochar (entelécheia). Os seres �nitos, em particular, trazem em sua essência um dinamismo (dynamis) aberto à sua atualização (enérgheia). Reina em tudo a teleologia. Portanto, tudo tem uma �nalidade, tudo tem um sentido. Mas, além do Estagirita, há outros grandes pensadores que sustentam uma visão dinâmica ou processual do mundo. Re�ramos alguns deles, pelo menos em algumas de suas intuições que sustentam essa visão. - Os estoicos creem que existe nos seres vivos um impulso congênito, que visa à própria conservação e incremento, e que chamaram de oikéiosis. - Santo Agostinho, inspirando-se nos estoicos, vê o mundo como grávido de “razões seminais”.69 - Santo Tomás entrevê o amor latejando em tudo: amor natural nos seres materiais, sensível nos animais e voluntário nos racionais.70 Tudo é movido pelo amor de alguma coisa.71 Em suma: o amor é o motor de tudo. - Spinoza põe no centro de sua metafísica o conatus, o esforço de cada coisa de “perseverar em seu ser”. Num ser espiritual, esse impulso torna- se consciente e quer durar inde�nidamente.72 - Leibniz dota suas mônadas de percepção e apetição, a�rmando que “o que não age sequer existe”. - Schopenhauer vê o “mundo como vontade” e vontade de vida, e isso constituiria seu noúmenon ou sua essência. - Nietzsche amplia a ideia schopenhaueriana e põe no coração das coisas a “vontade de potência”, pela qual elas sem cessar buscam inde�nidamente se expandir, conquistar, transbordar. - G. Simmel e outros vitalistas, como Dilthey, Bergson, Spengler, Whitehead e Jonas, sustentam que a vida quer sempre mais vida, num processo permanente de autossuperação. - M. Blondel, em sua célebre tese L’action (1893), diz que a vontade (volonté voulante) está sempre à frente de sua obra (volonté voulue), só se aplacando no in�nito. - Sartre e os existencialistas sublinham a ideia de existência como emergência, transcendência de si e autocriação. Como se nota, para esses pensadores, tudo é movido por um estranho desejo. As coisas mesmas parecem abrigar um cor inquietum. Mas por que anseia esse cor inquietum universal? Se a realidade física se move, avança e sobe, vai �nalmente para onde? Eis posta a inescapável pergunta acerca do sentido. Tal pergunta é imposta pela realidade objetiva, e não apenas pelo homem e sua razão interrogativa. Não; o homem só faz é tomar consciência dessa pergunta, formulá-la e dar-lhe uma resposta pessoal. Como dissemos acima, o desejo humano de sentido não passa de eco do desejo de sentido, presente nas próprias coisas. Pois bem, para que alvo aponta o mundo físico em seu desejo natural? Para onde vai a�nal o �uxo do cosmos? Surgem aqui três alternativas: 1) ou esse �uxo se expande inde�nidamente, como acontece com a luz; 2) ou vai em direção à sua plena realização imanente, para, em seguida, se extinguir, como uma �or; 3) ou volta ao estado anterior, num perpétuo “retorno do mesmo”, como as estações do ano; 4) ou se destina �ne �naliter a um objetivo determinado e de�nitivo, como uma seta a seu alvo. As três primeiras alternativas – digamo-lo de modo sumário – são irracionais. A primeira é irracional por impossível, pois nada pode se mover em direção ao inde�nido, isto é, sem um alvo determinado, como assevera Santo Tomás: “A natureza nunca inclina para o movimento pelo próprio mover-se, mas por algo de determinado...”.73 A segunda alternativa é mais irracional ainda, pois pressupõe um movimento que vai �nalmente para o nada. De fato, por que �orir se é para murchar e morrer? Para que lançar a �echa, sem um alvo a ser atingido? A terceira alternativa é irracional por ser absurda. Mostramos, contra Nietzsche, que o “eterno retorno” não passa de uma resposta sofística, que, longe de dar uma saída para o absurdo, faz pior: consagra-o. Sobra a quarta alternativa, a única que aposta num sentido conclusivo e pleno, e que, assim, além de satisfazer o coração, satisfaz plenamente a razão (e tal é o escopo de todo nosso estudo). Naturalmente, essa alternativa pressupõe a intervenção de uma potência transcendente ao processo natural do mundo, intervenção que em nada viola tal processo por ser seu fundamento, mas antes o eleva e consuma. Ademais, essa alternativa tem a virtude de integrar, a partir do Transcendente, o grão de verdade que há nas três outras. Da primeira, mantém a ideia de expansão potencialmente in�nita, agora, porém, no interior do próprio In�nito real. Da segunda, resgata a ideia da realização imanente, que, conquanto passe pelo nada, triunfa sobre ele em virtude do poder próprio do Ser subsistente e imortal; da terceira, recupera a ideia do “eterno retorno”, enquanto concebe o curso recorrente do mundo na forma de uma espiral que, sustentado pelo que é o Eterno substancial, recapitula tudo e leva tudo a termo. Como se depreende, a questão do sentido, antes ainda de ser uma questão do homem, é uma questão da realidade física como um todo. Não é, pois, só o homem que deseja o sentido, mas o próprio mundo. Se toda realidade é animada por uma pulsão básica para um objetivo determinado, ela deve, por conseguinte, estar dotada de sentido. Tal é a cosmovisão chamada teleologia ou �nalismo. Se é assim, o sentido, antes de ser um propósito do ser humano ou uma projeção de seu desejo, é uma postulação da própria realidade em seu todo natural. 2. O ser metafísico: seu desejo de ser e ser mais Demos um passo a mais, agora para o fundo. Deixando o plano físico pelo metafísico, veremos que a questão do sentido aparece não mais apenas como uma questão cosmológica, mas também, e mais radicalmente ainda, como uma questão ontológica ou metafísica. Com efeito, antes ainda de ser uma questão do ser humano ou cósmico, a questão do sentido é uma questão do ser como tal. Para não nos perdermos em ronronadas especulativas, em vez do ser, falemos do existir; em vez do ente, falemos do existente, de qualquer existente. Pois bem, existir e, mais ainda, viver é bom. É emergir da esfera do nada e se estabelecer na esfera da existência. É maravilhoso que existam coisas em vez de nada. Esse é o assombro primordial de todo o pensar.74 Existir é, portanto, positividade que triunfa sobre a negatividade. É, pois, se a�rmar como qualquer coisa, como algo ou como alguém. Ademais, todo existente quer existir, insiste em existir, tanto que resiste a toda tentativa de destruição. O existente não só persiste na existência, mas quer ser mais, buscacrescer e triunfar. Portanto, o existente não é só sujeito do desejo de existir, mas também objeto. O existente ama existir, e existir cada vez mais. Existir, além de admirável, é desejável. É, pois, objeto do desejo transcendental. Ora, a título de objeto, o existir é e dá sentido. Que quer dizer isso senão que existir, o simples existir, “faz todo sentido”? Eis aí o que é sentido, em seu nível mais elementar e primordial, sentido que é base e fonte de todos os outros sentidos. Certo, existir é melhor que não existir. Mas quando o existir é tão atormentado que ofusca toda esperança? Então, o não existir aparece como uma opção melhor que o existir. É verdade; isso, porém, não é regra, mas exceção. Por outras, não é per se que o existir se tornou odioso, mas per accidens. Foi, como se diz, um acidente de percurso; quanto à viagem, era, em si mesma, boa. Sem embargo, não podemos aqui cair na ingenuidade. Não há porventura mil expressões da sabedoria humana que falam da vida como trabalho, luta, provação? Para os budistas, por exemplo, “a vida é dor”. Para os gregos, e não só para eles, não ter nascido é para o homem a coisa melhor.75 O Eclesiastes declara que tudo é vaidade, azáfama e a�ição do espírito. Jó a�rma: “A vida do homem é provação”, de�nição que Santo Agostinho se compraz em repetir. Os próprios cristãos falam deste mundo como um “vale de lágrimas”, um “exílio”. Por �m, Jesus mesmo não fala do “fardo de cada dia”? Quem não sente, especialmente em certos dias, a verdade da expressão “a fadiga de ser homem”? Então, não têm razão os modernos quando falam do “mal de viver” ou do “absurdo da vida”? Para um discernimento, digamos, para começar, que nessas a�rmações não se fala do mero existir, mas do existir especi�camente humano. Ou seja, passou-se do plano da existência indistinta ao da vida propriamente humana. Ora, quanto a essa, é verdade que, considerada apenas em seu percurso biológico que vai do nascimento à morte, a vida, com suas dores e lágrimas, realmente não compensa. Pode compensar para os happy few, mas não para a maioria. Seja como for, a vida na terra não tem um sentido �nal exitoso, pois para todos �nda com a morte. Vista, porém, na perspectiva da imortalidade e, portanto, da recompensa eterna, quer se chame Reino do céu ou Nirvana, a vida humana ganha sentido e vale a pena: a pena de suas dores e lágrimas, como mostramos no volume anterior.76 Se, portanto, se pode justi�car um otimismo ontológico, trata-se sempre de um otimismo dramático, conquanto não trágico. Agora, por que o existir propriamente humano não é alegria pura, mas vem acompanhado de provação? Por outras, por que a vida tem um caráter dramático? Isso não se deve simplesmente à contingência ou �nitude humana, como querem alguns, por não admitirem justamente uma visão transcendente da vida. Não; a �nitude, de per si, não implica nada de negativo, mas apenas dependência de um ser necessário e in�nito. Ora, tal dependência pode ser perfeitamente vivida de modo grato e jubiloso, como vimos.77 Se a vida humana tem um caráter dramático, isso se deve, numa primeira abordagem, à sua natureza evolutiva, pela qual a vida, toda vida, avança em geral a preço de outras vidas, como mostra a teoria da evolução. Contudo, no caso da vida humana, esse preço não é vivido como normal, mas como misterioso, além de excessivo. Como explicar esse paradoxo? A Revelação cristã o explica por uma queda primordial que afetou toda a experiência humana, inclusive a mais exaltante, inoculando nela um estranho travo de amargor. E, assim como o big bang primordial deixou no universo um eco na “radiação cósmica de fundo”, também a queda original deixou na existência humana uma “radiação espiritual de fundo”, que explica essa dolência sutil que lateja no fundo secreto de todo viver. Agostinho o notou, ao dizer: “Faz prova de um senso re�nado quem se sente golpeado mesmo quando tudo vai bem”.78 Contudo, a “dor de viver” não é a substância do viver, mas tão somente um acompanhante adventício. Em seu fundo mais fundo, viver é alegria e, portanto, sentido. Traduzindo isso na linguagem seca da metafísica clássica, que recolhe, contudo, um longo e árduo itinerário não só de pensamento, mas também de experiência, dizemos o seguinte. Todo ser é bom e é, por isso, valioso, precioso, digno. Por isso mesmo, todo ser é também desejável. E, sendo desejável, todo ser é �m: objeto/objetivo da vontade. Ora, todo �m é e dá sentido. Formalizando, diríamos: ser = bom = desejável = �m = sentido. Logo, em extrema síntese: SER = SENTIDO. Bastam esses breves acenos para nos fazer vislumbrar o que é uma “metafísica do sentido”. V. SCHOLIA 1. Testemunhos do desejo de sentido na experiência histórica e na literatura O desejo de sentido é amplamente atestado, seja na experiência humana concreta, seja na literatura que lhe dá voz. Quanto à primeira, por menos que uma pessoa se debruce sobre sua própria experiência de vida, não poderá deixar de notar o desejo fundamental de sentido, e de sentido absoluto. Disso há muitos sinais. O mais simples e claro é o da experiência do amor. Que apaixonado não deseja que seu amor seja eterno, in�nito, absoluto? O mesmo vale para o amor de mãe, a amizade profunda e para todo “grande amor”. Tomemos agora a questão do sentido último em sua “face ridente”, a felicidade. Basta um pouco de introspecção para constatar em nós o apelo à felicidade, e a uma felicidade perfeita, a saber: plena e estável, pois só com esses dois quali�cativos a felicidade se mostra à medida de nosso desejo. Essa pulsão interior, essa espécie de instinto ou faro em direção à felicidade, ao sentido último da vida, anima também nossos ideais e ambições, nossos sonhos e esperanças, essas que, na expressão de Aristóteles, nada mais são que “sonhos de olhos abertos”. Essa mesma experiência se faz também, agora em negativo, quando sentimos uma insatisfação difusa em relação à vida, por mais bem-sucedida que seja. Em tudo, recitava Pasolini, “sempre falta alguma coisa”.79 Con�dencia uma esposa que, mesmo no seio da relação amorosa mais plena, sentia que “precisava ainda de outra coisa, de algo todo diferente”.80 O mesmo senso de insatisfação se faz presente na vida de um par de recém-casados, após dois ou três meses de convivência: ela olha para ele e diz suspirando: “E eu que pensava que existia algo a mais”.81 O sentimento enigmático de inde�nido mal-estar perante a própria existência foi �namente expresso por um poeta nosso, Guilherme de Almeida (+ 1969): Uma fina saudade vai varando A quietude cansada do meu tédio. Mas, saudade do quê? de quem?... (...) Tudo, em torno de mim, é luminoso, alto e macio, deslizante e lindo; tudo é apenas um lúcido presente: é a negação perfeita da saudade... E, no entanto – por quê? por quem?... – eu vejo e ouço passar na terra a minha vida cantando uma cantiga vagarosa de água que leva flores na descida...82 Esse senso difuso de vazio e frustração bate especialmente na meia- idade, no que se chamou a “crise dos quarenta”.83 Mas essa experiência reponta também no curso do cotidiano, quando, não se sabe como, emerge de repente, do fundo escuro do inconsciente, o sentimento de que na vida “falta alguma coisa”, que não se sabe bem o que é. Tal insatisfação às vezes se reduplica com a ilusão de que, “os outros, sim, é que são felizes”, ilusão que o povo condensou no provérbio: “A grama do vizinho é sempre mais verde.” É o que constata também Horácio: “Por que ninguém está contente com a própria sorte e louva a dos outros?”.84 Esse sentido do vazio é às vezes tão voraz que se tem a impressão de que nem céus nem terra poderiam satisfazê-lo. Kant o notou: “Dê a um homem tudo o que deseja, e (...) sentirá que esse tudo ainda não é tudo”.85 Assim também Leopardi: “Considerar a amplidão inestimável do espaço, o número e a massa maravilhosa dos mundos e achar que tudo é pouco e pequeno para a capacidade da própria alma”.86 Dizem o mesmo nossos poetas: “Mundo mundo, vasto mundo, / mais vasto é meu coração” (C. Drummond);87no primeiro capítulo do volume I de nossa trilogia.1 Como pudemos lá constatar, e disso demos algumas ilustrações, há uma enorme confusão no debate atual acerca do que se entende por “sentido”.2 Para nós, a ideia de “sentido” comporta as seguintes noções: direção, �m, valor e signi�cado, que comporiam assim um “quadrilátero semântico”. Expliquemos essas noções. Primeiro, direção. “Sentido da vida” é como “sentido” de uma rua, do curso de um rio, da trajetória de uma �echa, das pegadas de um animal. Vale como direção. Sentido da vida é, pois, a direção, orientação ou rumo que se imprime à vida. Mas, como direção é sempre direção “para” um objeto ou para um objetivo qualquer, surge então a ideia de �m (�nalidade, propósito, intenção, escopo etc.). Fim é o alvo para a seta, o porto para o navio ou o destino para o viajante. Porque de�ne ou confere a direção, �m é o conceito mais determinante na questão do sentido. Fim é, pois, o princípio, o fundamento, a fonte do sentido. Só tem sentido uma coisa que tem um �m. Sem um �m qualquer, uma coisa ou ação é sem sentido, ou seja, é absurda. É tão decisivo o �m para a questão do sentido que é comum se tomar metonimicamente o �m pelo sentido, como quando se diz que isso ou aquilo “é” o sentido da vida, em vez de “dá” sentido à vida. Temos aí um “é” causativo. De resto, a linguagem ordinária, via de regra, identi�ca sentido com �m, como faremos nós também no curso desse trabalho. A identi�cação da pragmática linguística sentido = �m é tanto maior quanto mais angustiante e premente é a sinnfrage em nosso tempo. De fato, perguntar: “Qual é o sentido da vida?” é mais que perguntar simplesmente: “Qual é a direção da vida?”; é perguntar “Para que viver?”, ou ainda: “Qual é a �nalidade da vida?”. Podemos, assim, dizer que sentido denota sempre �nalidade, seja essa buscada ou alcançada. Um bom sinônimo de “sentido”, na dupla acepção de �nalidade e direção, é “propósito”. Destacando o segundo elemento do termo, “pro- pósito” signi�ca uma �nalidade “aí posta”, ou seja, posta por um sujeito, por uma consciência. É, portanto, algo de intencional. Focando agora o primeiro elemento do termo em questão, “pro-pósito” evoca a ideia de movimento para a frente, de direção, como se vê também nas ideias de pro-gresso e pro-jeto. Vida com sentido é, em suma, “vida com propósito”.3 Como ainda veremos, há um gradiente de �ns, de tal modo que o �m de uma ação se torna meio para outra. Há, pois, �ns-meios e há �ns-�ns. Os �ns-meios ou �ns intermediários são às vezes chamados de “metas”. Acrescentemos que o �m de uma ação nem sempre está totalmente fora ou à frente da mesma, mas pode estar dentro dela, na forma de auto�m. Esse seria um “�m intrínseco”.4 Na categoria de �m intrínseco entram, em absoluto, Deus e a felicidade, mas também, relativamente, a virtude, a arte, o jogo e o prazer em geral. Todas essas realidades são, cada uma à sua medida, auto�ns e, a esse título, são também autovalores e autossentidos, absolutos ou relativos que sejam. Para evitar ambiguidades, notemos que, à diferença da tradição clássica, há pensadores modernos que distinguem entre sentido e �m, entendendo �m apenas como �m extrínseco. Mas trata-se aí de uma noção reduzida de �m.5 Vamos agora à terceira ideia de sentido: valor. É a palavra moderna para o conceito clássico de “bem”, com a diferença de que a ideia de valor destaca o aspecto “atração” subjacente à ideia de “bem”. Como equivalente de bem, “valor” é um conceito transcendental, sendo, pois, predicável de todo o ser. Perguntar efetivamente sobre o “valor da vida” é perguntar sobre a “bondade” da vida, ou seja, se ela é boa, se “vale a pena” ser vivida. Se, como lemos no início da Ética a Nicômaco, “o bem é o que todas as coisas buscam”, então o bem tem razão de �m. Ele é o objeto e, ao mesmo tempo, o objetivo de qualquer apetite. Ora, se valor equivale a bem, e bem tem razão de �m, então valor coincide com �m. Desse modo, dizer que a vida tem valor é o mesmo que dizer que a vida tem um �m (bom). Aqui também, como no caso do �m, o valor pode ser intrínseco à coisa ou ação (valor-em-si ou autovalor) ou então extrínseco (valor-para). Essa distinção equivale àquela que os clássicos punham entre, respectivamente, bonum honestum e bonum utile. Se hoje, porém, se prefere falar em “valor”, em vez de “bem” ou “�m”, é porque, na moderna deriva semântica, valor conota algo de importante, de atraente e, além disso, de presente, o que nem sempre acontece com a ideia de “bem” e de “�m”. Vejamos, �nalmente, a quarta acepção de sentido: sentido como signi�cado ou ainda como explicação, razão de ser, entendimento, em suma, como inteligibilidade. É o que os gregos chamavam de noûs ou lógos e os latinos de ratio, mens e mesmo sensus. Se, do ponto de vista puramente semântico, inteligibilidade é a acepção primeira de “sentido”, já do ponto de vista lógico é a última, pois é resultado das acepções anteriores. Efetivamente, quando a vida tem um �m que lhe dá sentido, ela se torna inteligível, clara, como que explicada. Ela ganha sua razão de ser: tornou- se compreensível, seu signi�cado é entendido. Então a vida brilha, tem sua lógica, “faz sentido”. A vida aí aparece como uma “frase”, contendo um sentido que pode ser decodi�cado. Como se pode deduzir, o “porquê” lógico da vida resulta de seu “para quê” existencial e concreto. Explicitemos um pouco mais o sentido entendido como razão ou lógos, coisa que não �zemos no primeiro volume. O sentido é o que efetivamente dá razões para viver (no plano da inteligência), dando, assim também, motivações para lutar (no plano da vontade). O sentido, como razão, faz com que a vida se mostre inteligível, compreensível, legível, interpretável; racional, sensata, ordenada, coerente; luminosa, clara, lógica. Assim, dizer que “algo faz sentido” é dizer que “algo tem lógica”. Portanto, o sentido- razão tem uma função manifestativa. É con-sciência, re-�exão. A existência aparece então como um texto, um relato, um livro a ser lido, decifrado e compreendido.6 Isso não signi�ca que o sentido, como razão de ser, seja sempre claro aos olhos da mente. Ao contrário, o sentido é muitas vezes oculto e misterioso, oferecendo-se como objeto de fé e de esperança. A dor e a morte, em particular, não mostram em geral, de imediato, um sentido, uma razão. Mas podem muito bem ter um sentido, caso as considerarmos a distância, principalmente se as situarmos num horizonte maior, como, por exemplo, dentro do plano divino. Já falar em “vida sem sentido” ou “vida absurda” é falar em vida irracional, incompreensível, portanto vida desordenada, confusa. Seria, em suma, uma algaravia, um caos. Se perguntarmos, agora, como se articulam as referidas noções de “sentido” dentro do pacote semântico que as constituem, diremos que elas se desdobram logicamente nestes três momentos, que podem ser assim sumarizados: 1) O “�m” é o “bem” que se busca, é o “valor” que importa e atrai. Pode ser designado por outros nomes, tais como: causa, ideal, paixão, objetivo, propósito, intenção, projeto. 2) O “�m” dá “sentido”, direção, rumo, orientação às coisas. Por outras, dá �nalização, ordenação, destinação, movimento, foco, centro de convergência. Tal é o efeito objetivo, direto e principal de �m. 3) O “�m” dá também, e colateralmente, tudo o mais: razão ou inteligibilidade (é como luz ou sol), motivação e esperança (é como mola ou motor), sabor ou gosto de viver (é como sal), animação e vida (é como alma), alegria, plenitude ou satisfação do coração (é como sorriso), encanto ou fascínio (é como vinho), uni�cação e harmonia da vida (é como mandala), segurança e tranquilidade (é como âncora ou rocha). Essas últimas conotações constituem efeitos colaterais do �m, todas elas maravilhosas. Eles se dão na alma, sendo, pois, subjetivos, mas a partir de uma base objetiva. Com isso não se diz que sentido é, sempre e de imediato, luz e encanto, mas que, em perspectiva, dá luz e encanto também ao que aparece como negativo e absurdo, tais as inevitáveis cruzes da vida.“Para o desejo do meu coração, o mar é uma gota” (Adélia Prado).88 Mesmo conhecendo, hoje, mais e melhor a imensidão do universo, o ser humano se sente apertado dentro dele. De resto, não seria essa vontade do sem-limite, esse impulso para o in�nito a força oculta que leva a ciência moderna à exploração espacial? Quando é que o homem dirá: “É isso! Cheguei! Basta!”? Poderá dizê-lo num momento e por um momento, mas logo sobrevém, mais uma vez, o demônio da insatisfação, a segredar: “Ainda não!”. Bem que o homem gostaria de paralisar para sempre instantes de plenitude, como quis Pedro no Tabor: “Como é bom, Senhor, estarmos aqui. Se quiseres, farei três tendas...” (Mt 17,4). Mas em vão! Tudo é fugidio! Todo êxtase desvanece. Volta ao coração a inquietude indômita e tormentosa, tão bem expressa nesta sentença ascética da Índia: “A ti louvo, ventre, porque te satisfazes com alguns legumes. Mas não a ti, coração maldito, que não te contentas nem com centenas de desejos”.89 A própria Bíblia testemunha essa inquietação sem �m do coração humano: “Os olhos não se fartam de ver” (Ecl 1,8). É a insaciável “concupiscência dos olhos” (1Jo 2,16), que aqui vale metonimicamente por desejo. Efetivamente, esse desejo não conhece limites, sequer os do interdito divino. Já em suas primeiras páginas, a Escritura mostra nossos protoparentes às voltas com a tentação de ser “como deuses” (Gn 3,15). Prossegue contando outras tentativas do mesmo sonho impossível: é Nabucodonosor que quer ser “como o Altíssimo” (Is 14,14) e diante de cuja estátua todos têm que “se prosternar e adorar” (Dn 3); é o rei de Tiro, que proclama com arrogância: “Eu sou um deus: sentei-me no trono de Deus” (Ez 28,2); é Antíoco Epífanes, que se põe insolentemente “acima de todos os deuses” e investe “contra o Deus dos deuses” (Dn 11,36). Mas quantos monarcas antigos, tais os faraós egípcios, os imperadores assírios, os grandes reis persas, assim como os célebres conquistadores Alexandre e César não reivindicaram o status divino? Do primeiro diz Sêneca: “Houve neste mundo um homem que, depois de ter tudo, ainda desejou mais: foi Alexandre”.90 Pascoli imagina o grande conquistador, depois de ter conquistado a Índia, contemplando, na última praia do mundo, a lua que se levanta, inacessível, sobre o mar. Põe-se a lacrimejar, impotente: “E assim, depois de tudo, chora: chora com seu olho negro como a morte; chora com seu olho azul como o céu”.91 Já nosso Machado de Assis vai pela ironia: “O mundo era estreito para Alexandre; um desvão de telhado é o in�nito para as andorinhas”.92 E o segundo, Júlio César, então? Mais que sob os golpes dos conjurados, caiu vítima de sua insaciável “vontade de potência”. Não lhe bastaram cinco “triunfos”. Foi pouca a “apoteose” que o Senado lhe tributou, conferindo-lhe o título de “deus”, com direito a estátuas, sacerdotes e culto. Continuou sonhando: quer dominar os partas e os citas, estendendo assim o império do Atlântico ao mar Cáspio. Pois só então se sentirá maior que o grande Alexandre. E apesar de ter, como dictator, todos os poderes na mão, quer ainda restaurar a monarquia e ser coroado rei (rex, basileus), título que ele ambiciona mais que tudo, inclusive o de deus. E foi justamente quando, nos idos de março, entrando no Senado para propor e receber o título supremo, vinte e três punhais puseram à terra seus desejos desmedidos.93 Sobre a campa desses heróis poderia constar o epitá�o do irrequieto Marechal Trivulzio, o Grande (+1518): “Aqui descansa aquele que nunca descansou”.94 Mesmo entre os escritores da Idade moderna, há muitos, principalmente os românticos, que exaltaram a ânsia do in�nito que atormenta o coração do homem. Shelley fala do “desejo da mariposa pela estrela”.95 Aliás, a palavra latina de-sider-ium não tem sider (estrela) no meio? Antero de Quental des�a sonetos e mais sonetos para descrever a inquietude eterna do coração humano. Hölderlin, no Hyperions Jugend (1795) descanta, maravilhado, o anelo humano por crescer sempre mais e mais. A luta é interminável e a redenção é sempre e para sempre adiada. Nächstens mehr! (na próxima vez, mais!): é a última palavra do jovem Hypérion. Para o poeta, “é a glória do homem nunca estar satisfeito”. Sua satisfação está em não se satisfazer com nada jamais. É viver, sem descanso, de aventura em aventura. Hölderlin, contudo, não é o primeiro dos que, por não vislumbrarem qualquer saída para a inquietude humana, decidem que a não saída é a própria saída. Antes dele, Hobbes (+1679) tinha posto o objeto do desejo num “contínuo progresso”: “Só no prosseguimento pode haver contentamento”.96 Segundo o �lósofo, o desejo é um contínuo passar “de um objeto a outro”, sem qualquer �nis ultimus ou summum bonum, que ele julga inexistentes.97 Igualmente Lessing (+1781), em Uma réplica, preferia a busca errante da verdade à sua posse: “Se Deus segurasse na sua mão direita toda a verdade e na sua esquerda só a busca da verdade, embora com a condição de eu errar sempre, e me dissesse: ‘Escolhe’, eu agarraria humildemente a sua esquerda e diria: ‘Pai, dai-ma; a verdade pura é só para vós’”. 98 Para o Goethe do Fausto, a aposta do protagonista com o Diabo é uma existência feita de aventuras contínuas, de tal modo que Me�sto terá a alma de Fausto no dia em que este, deslumbrado por certo portento, quiser, para gozá-lo, parar o tempo e disser: “Pare, pois! Tu és tão belo!”.99 O próprio Agostinho já tinha entrado em diálogo com um jovem pensador, Licêncio, que arvorava como lema seu a procura sem �m da verdade,100 �gura precursora dos modernos céticos, agnósticos e relativistas. Vimos que uma progressio ad in�nitum não se sustenta mais que uma regressio ad in�nitum, pois, sem um termo atrativo, não há ação ou desejo que se ponham em movimento. Por sua parte, os existencialistas exploraram a angústia sem fundo e a ambição sem limites da vida humana. Sartre de�ne o homem como “paixão inútil”, pois, aspirando ao status supremo de ens a se, acaba inevitavelmente no mais rotundo fracasso. Não se exprime de modo diverso Camus, quando, em seu Calígula, plagiando Pascoli, faz o imperador pedir nada menos que... a lua, a inalcançável lua.101 O que isso signi�ca, explica-o o autor em outro escrito: “O mundo assim como está não é suportável. Preciso da lua, da felicidade, mesmo da imortalidade, de qualquer coisa que seja loucura talvez, mas que não pertença a este mundo”.102 Re�ramos, por �m, nossos psicanalistas, que falam do desejo como de uma pulsão jamais colmatável, tal uma ferida que sangra sempre, sem nunca cicatrizar. E então? – pergunta-se. “Então é a castração”: tal é a receita desses sábios.103 Essa, em verdade, não passa da con�ssão de impotência em dar sentido à vida, depois que se eliminou sua fonte transcendente. A vontade, genuinamente humana, de um sentido pleno pode-se resumir na expressão agostiniana cor inquietum, experiência essa que o prêmio Nobel de literatura (1975), Saint-John Perse, traduz assim: “Escuta, ó noite, (...) o grande passo soberano da alma sem cova, como fera circulando sobre lajes de bronze”.104 De olhos abertos ou fechados, ninguém pode proibir ninguém de sonhar com esta fonte misteriosa de que jorram paz, doçura e amor em abundância, como canta nosso Paulinho da Viola no samba Dança da solidão: Quando vem a madrugada meu pensamento vagueia, Corro os dedos na viola contemplando a lua cheia. Apesar de tudo, existe uma fonte de água pura, Quem beber daquela água não terá mais amargura. Como não pensar aqui no Cristo, que se revelou à Samaritana como a verdadeira “água viva” que dessedenta para sempre e que se torna no coração de quem a toma uma “fonte de água que jorra até a vida eterna” (Jo 4,10-14)? 2. O “cor inquietum” de Santo Agostinho Ninguém como Agostinho expôs com tanta �neza a dinâmica do desejo humano.105 É conhecidíssima sua a�rmação no início das Con�ssões e que vale como seu leitmotif: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração enquanto não se aquietar em ti”.106 O grande Doutor vê nessa inquietaçãoa marca da grandeza humana, ao declarar mais adiante: Através dessa mesma miserável inquietação (...) mostras o bastante quão grande fizeste a criatura racional, à qual não basta de modo algum, para seu descanso bem-aventurado, tudo o que é inferior a Ti. Sequer a si mesma se basta.107 Para ele, o desejo, por sua própria natureza, é abertura ao in�nito. Por isso, desejo é, no �m, desejo de Deus. É “dilatação” (extensio) da alma rumo a Deus. Como dilatação, desejo é caminho-para (Deus) e é, ao mesmo tempo, recipiente-de (Deus). Mas o desejo pode se desgarrar de seu �m natural: é a “dispersão” (distensio). É quando cai na enfermidade (languor).108 Fechou-se em si e passou a amar a criatura por si mesma. Esse é um amor desordenado, e se chama “cobiça” (cupiditas). Ao contrário, quando o desejo se abre e ama Deus e a criatura por Deus, torna-se um amor ordenado, e se chama propriamente “caridade” (caritas).109 Portanto, o desejo bom é o que tem um objeto bom; o desejo mau é o contrário: o que tem um objeto mau. O primeiro eleva e o segundo rebaixa. Amando o mal ou amando mal, a alma gira no vazio e é condenada ao ciclo das necessidades.110 Gira em círculo, buscando a satisfação entre as coisas relativas, mas em vão. De fato, “quando se afasta d’Aquele que só basta, o homem não basta mais a si mesmo nem lhe basta mais bem algum”.111 Mas na caritas, ao contrário, a alma se ergue até Deus: “Assim cheguei, num ímpeto de trépida visão, ao próprio ser”.112 Essa é uma teoria que Agostinho experimentou em sua própria carne. A inquietude do homem sem Deus, ele a sentiu quando, adolescente, foi viver em Cartago, conhecida então como a “cidade dos prazeres”. Descreve com que ânsia se atirou então sobre os amores passionais a �m de encher seu coração com a felicidade que podiam dar. Mas reconhece que maiores ainda foram os “trabalhosos laços de servidão” desses amores e os “golpes ardentes” que deles recebeu, com seus “ciúmes, suspeitas, temores, iras e altercações”.113 Daí o contínuo tormento de seu coração: “Não encontrava lugar de descanso nas coisas exteriores, nem elas me acolhiam, de modo que pudesse dizer: ‘Basta! Está bem!’”.114 Mas por que essa insatisfação? Porque – responde ele – a coisas eram inferiores a mim e só Tu eras superior e, por isso, só Tu podias ser para mim o gaudium verum.115 Confessa em um passo de extrema emoção: Oh! Caminhos tortuosos! Desgraçada ousadia de minha alma, que, afastando-se de ti, esperava encontrar algo de melhor! Ela se vira e se revira: e de costas, e de lado, e de bruços; e tudo acha duro; e só tu és descanso! Mas eis que chegas e nos libertas dos enganos miseráveis, e nos pões no teu caminho, e nos consolas. E nos dizes: Correi! Eu mesmo vos levarei e vos conduzirei lá aonde quero vos levar.116 É que o desejo está sempre e para sempre aberto ao in�nito, ao sentido absoluto, à felicidade plena.117 Esse é o objeto intransponível do desejo, porque desejado por si mesmo e pelo qual a alma deseja tudo o mais. Mas que nome tem essa felicidade? Para Agostinho, chama-se Deus.118 Diz, efetivamente, “esta é a felicidade: gozar por Ti, de Ti e por causa de Ti; fora dessa felicidade não há outra”.119 E vice-versa: Deus é a felicidade: “Procurando-te a Ti, procuro a felicidade de minha vida”.120 O homem pode ter tudo, mas sem Deus não se sentirá feliz, como diz num sermão: Se Deus vos dissesse: “Tu não verás jamais meu rosto, mas terás toda a felicidade terrestre, todos esses bens que abundarão para ti. Eis-te cumulado de todos os favores temporais, que não poderás perder nem abandonar. Que queres mais?”. E o casto temor põe-se a chorar, a gemer e a gritar: “Ah! Não. Que me tirem tudo, mas não a felicidade de te ver!”. 121 É verdade, Santo Agostinho convida à introspecção da própria alma, para aí encontrar Deus: “Não vás para fora, antes, volta-te para ti mesmo”. Sua dialética, porém, acrescenta um segundo termo: sair de si, como quando diz: “Transcende-te também a ti mesmo”.122 Em Agostinho, o movimento psicoantropológico de des-cendência é completado pelo movimento ontológico de trans-cendência. Se o primeiro apreende Deus como o “mais íntimo que meu íntimo”, o segundo O experimenta como “superior ao meu cimo”.123 Em Agostinho, a veritas intima se desdobra em veritas summa. A via antropológica se completa com a via cosmológica. O clamor da natureza consagra a voz da consciência, a intencionalidade objetiva consuma e, ao mesmo tempo, con�rma a intuição subjetiva. O caminho que o grande Doutor propõe pode ser sintetizado nesta fórmula: do exterior para o interior e do interior para o superior.124 Como se vê, a subjetividade agostiniana é uma subjetividade transcendida. Nisso ela se distingue da moderna, que permanece prisioneira de si mesma. A dialética agostiniana triunfa sobre o psicologismo, o narcisismo, o idealismo e outras formas de subjetivismo, moderno ou pós-moderno que seja. 3. Céu como metáfora da transcendência Em todas as culturas e religiões, o céu, assim como seus elementos urânicos, como o sol, a lua, as estrelas e as nuvens, sempre foi tido pelo símbolo da transcendência. Isso porque o céu é uma realidade vasta, alta e inacessível, e é, além disso, origem de fenômenos estranhos e poderosos.125 O céu representa o inatingível, aquilo que supera a capacidade humana, “o além de nós mesmos”.126 “O objetivo do homem deve estar além do seu alcance – senão, para que o céu?”, disse o grande poeta Robert Browning.127 Apesar de todas as incursões da astronomia, que no início da modernidade abalaram a imagem tradicional do céu, esse recuperou seu antigo e eterno encantamento e continua a evocar outros céus. De fato, a potência evocativa do céu físico é tão indestrutível como o próprio céu. E isso está ligado à estrutura do nosso pensamento, que só pode pensar o supranatural, que é sem espaço e sem tempo, ao modo do natural, que é constitutivamente espaçotemporal. Por isso atribuímos a Deus e aos bem- aventurados um lugar que chamamos precisamente “céu”. Céu é também o “lugar do sentido”, o “para onde” vamos. Por outras, é o “lar” de nossa identidade plena, o “destino �nal” de nossa aventura neste mundo, a “casa do Pai”. “Reino dos céus” não é por acaso a metáfora que Jesus preferiu (aparece mais de cem vezes nos evangelhos) para falar da plenitude humana e divina? O céu das nuvens foi e será sempre símbolo dos céus inteligíveis e místicos. É assim que temos o céu das ideias puras, que Platão chamava de Hiperurânio. A tradição judaica distingue, para além do “primeiro céu”, o das estrelas, o “segundo céu”, onde vivem os santos, e ainda o “terceiro céu”, morada do Altíssimo (cf. 2Cor 12,2). Visto como termo do destino humano, o céu é o lugar metafórico do sentido. Paulo VI falava “daquele céu que, ele (o homem), ávido de verdade e vida, deseja desesperadamente e, de modo vago, tem a intuição de que deve ser seu próprio destino”.128 É a pátria do ser humano totalmente cumprido, como recita o Catecismo da Igreja Católica: “Os eleitos (...) lá conservam ou, melhor, lá encontram sua verdadeira identidade, seu próprio nome (cf. Ap 2,17)” (n. 1025). A contemplação do céu, especialmente nas noites estreladas, sempre suscitou admiração no coração humano. “Narram os céus a glória do Senhor” – canta o Salmista (Sl 18). “Ora, direis, ouvir estrelas” – exclama nosso Olavo Bilac. “O silêncio dos espaços in�nitos me apavora” – confessa Pascal. Junto com “consciência dentro de si”, Kant se declara fascinado pelo “céu acima de si”. As especulações astrológicas do mundo antigo estavam ligadas à ideia do sentido da vida e da história, pois cria-se que nos astros estaria inscrito o destino dos humanos e das nações. Foi assim que os magos, investigando a linguagem dos céus, chegaram a intuir a chegada do rei dos judeus e do mundo inteiro (cf. Mt 2,1-12). Segundo testemunho de Aristóteles, Anaxágoras, perguntado sobre qual seria o escopo ou o sentido da vida humana, respondeu: “Os deuses nos geraram para contemplar o céu”. Signi�cava com isso, como explicou Cícero,que a vocação do ser humano é a busca gratuita do conhecimento, e não a busca do lucro ou da fama.129 Verdadeiro, além de belo, é o verso de Ovídio: “Deus deu ao homem um rosto sublime e mandou-o olhar para o céu e levantar o rosto para as estrelas”.130 O céu sempre foi para os antigos objeto de um olhar contemplativo e religioso. Para consolar a mãe exilada, Sêneca dizia-lhe que os homens podem nos tirar todos os bens exteriores, mas não o que é propriamente nosso: a alma e... o céu. Este, em verdade, se eleva sobre qualquer lugar, inclusive na terra do exílio. Sua beleza inalterável é sempre oferecida à nossa admiração. Ora, continua Sêneca, isso nem sempre acontece na pátria, pois aí quanto mais as construções crescem, mais escondem o céu.131 Já para o homem medieval, o céu tinha ainda mais importância. Obsedado que era pela escatologia, o medieval vivia suspirando pelo céu. A terra, para ele, não passava de um campo de luta para conquistar o céu.132 Totalmente outra é a perspectiva dos modernos secularizados. Esses olham para a terra com o objetivo de dominá-la e fazer dela o paraíso. Quanto ao céu físico, tornou-se apenas um espaço a conquistar, empresa em que foram precedidos pelos titãs e pelos habitantes de Babel com sua torre (cf. Gn 11,1-9). Trata-se de uma �loso�a terrenista, que desafortunadamente contaminou vastas áreas da própria Igreja, levando-a ao enfraquecimento da indispensável tensão escatológica que deveria animar a ação cristã na história. Mas o céu simbólico é tão insuperável como o astronômico. Conquanto desprezado, ele continua a evocar a transcendência, como escreve G. Papini, ao fazer um moderno falar, entre sincero e despeitado: Odeio o céu. E com o pior tipo de ódio: o ódio impotente. (...) O céu é uma injúria perpétua e insuportável. (...) O desafio do céu estrelado é desproporcional, prepotente, vergonhoso. (...) O céu é somente o velário sinistro em que leio, toda noite, a sentença de minha irremediável nulidade.133 Nietzsche radicalizou o desprezo pelo céu, denunciando a crença nos “além-mundos”. O “outro mundo” seria um “nada celeste”.134 Eis a pregação de Zaratustra: “Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer �éis à terra e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres”.135 Os homens não devem mais “procurar atrás das estrelas uma razão para morrer e oferecer-se em sacrifício”, mas “sacri�car-se pela terra para que a terra pertença um dia ao Super-homem”.136 Ora, o Super- homem é o “sentido da terra”.137 Mas, se o céu não evoca mais o mundo platônico dos valores e menos ainda a sede do Criador, e se, contudo, permanece onde sempre esteve, que pode ainda lembrar? Para o �lósofo de Röcken, a “abóbada cerúlea” doravante não passa de uma caixa de dados a fazer seus lances caleidoscópicos no bem-aventurado Reino do Acaso. Agora, sob a imensa vastidão do céu, cada coisa, liberta da “servidão do �m”,138 viveria uma existência divina, absolutamente gratuita e auto�nalizada. Entretanto, a prometida era de liberdade e criação que se seguiria à morte de Deus não parece ter realizado a profecia de Zaratustra. A terra, crendo-se curada de seu feitiço pelo céu, conseguiu inicialmente encantar o homem moderno. Mas já agora perdeu seu charme. O homem moderno, tendo feito a volta da terra através de suas navegações e outras viagens de exploração, inclusive espaciais, viu seus limites e acabou enfadando-se dela. O último grande sobressalto de amor pela terra foi e é, para muitos, a ecologia. Mas a inquietude humana permaneceu, bem como a saudade de outro mundo possível. “O homem está perdido porque não olha mais para o céu”, teria dito E. Ionesco. Felizmente, no tempo pós-moderno, aumentam os que voltam novamente seus olhos para o céu. Talvez tenham ouvido a advertência do Salmista: “Não levanteis tão alto vossa fronte. Não faleis assim com a nuca insolente” (Sl 74,6); e sua lição: o sentido “não vem nem do oriente, nem do ocidente”, mas vem do alto, de onde só poderia vir (cf. Sl 74,7-8). O sentido vem como a luz que caiu, perpendicular, do alto quando do Natal de Cristo (cf. Lc 2,9), o “sol que nasceu do alto” (Lc 1,78). De fato, o céu foi sempre o cenário privilegiado da epifania do sentido. Quando a Escritura diz que “os céus se abriram”, como no batismo de Jesus (Mt 3,16), no martírio de Estêvão (At 7,56) e ainda no Apocalipse (11,19; 15,5), não está falando da revelação do sentido? O céu, portanto, permanece, em sua verticalidade, o símbolo da transcendência absoluta do destino humano, ao contrário do horizonte, que é o símbolo da transcendência meramente relativa, tal como a professa o progressismo. Ora, a alma não se contenta com um “mais”; ela quer um “outro”. O céu é a resposta ao seu desejo absoluto de absoluto. O céu é, no dizer das Escrituras, nossa “pátria” verdadeira (Hb 11,16), o lugar de nossa “cidadania” (políteuma: Fl 3,20), a “cidade do Deus vivo” (Hb 12,22) “cujo arquiteto e construtor é Deus mesmo (Hb 11,10), o “Reino inabalável” e de�nitivo (Hb 12,28; cf. Dn 7,18), a “Jerusalém do alto” (Gl 4,26), a “Jerusalém celeste” (Ap 21,2.10-27). Ao contrário do que crê o homem secular, o céu não está vazio, mas cheio. Mais: o céu é a plenitude por excelência, plenitude de ser, que é Deus. O céu é essencialmente Deus e sua presença irradiante, isto é, sua glória. Que seria o céu se fosse apenas um estado de beatitude e paz, tal o Nirvana? Não, o céu, assim como o sentido que ele simboliza, não é em essência uma coisa, mas uma pessoa. E a pessoa, pelo fato de pensar e amar, é absolutamente a maior dignidade, a mais alta expressão do ser. Qualquer estado impessoal, por mais beatí�co que seja, é inferior à pessoa. O sentido, portanto, é uma pessoa e, por isso também, é pensamento e amor. Os cristãos dizem tudo isso, e ainda mais, quando dizem Trindade. É por isso que a abóbada do céu, que se arqueia sobre o mundo, evoca, para quem crê e espera, a plenitude de Deus e de seu amor e, tal uma caixa de ressonância mágica, faz a vida ressoar com melodias divinas. Mas, quando o céu da poesia e da mística desaparece, então a melodia da vida se perde naquilo que o céu se tornou: espaço in�nito e morto, que nada mais ecoa. Para Camus, a vida seria absurda porque a contradição entre o desejo in�nito e a realidade �nita é insolúvel. Mas isso só é verdade se não existe céu. Ao contrário, se o céu existe, ele é precisamente o lugar onde essa contradição se resolve, pois aí o desejo in�nito encontra �nalmente sua resposta in�nita: Deus. Pois, se Deus existe, o céu também existe. É seu mundo e seu reino. E, se o céu existe, então existe o ansiado “país da felicidade”. E, por sorte, existe também a “escada” que lhe dá acesso (cf. Jo 1,51). 4. Desejo de eternidade: vivemos “como se” fôssemos eternos Nosso coração pede sempre por sentido, esteja nisso enganado ou não. É o que testemunha Saint-Exupéry: “Nós todos agimos como se qualquer coisa superasse em valor a vida humana, mas o quê?”. Também o grande biólogo Jean Rostand: depois de constatar que a “febril atividade local do homem não tem sentido nem �nalidade, perdido que está num cosmos inerte e desmedido”, conclui: “Por isso, ciosamente recurvado sobre si mesmo, o homem se consagrará humilde e terrestremente à realização de seus planos estreitos, levando-os tão a sério como se visasse �ns eternos”.139 Esse “como se” denuncia a presença, no íntimo do ser humano, de uma pulsão misteriosa e irrecusável em direção à mais genuína verdade. Da mesma forma e de um modo particularmente eloquente, P. Teilhard de Chardin considera uma “verdade psicológica”’ e uma “lei fundamental da ação” a convicção de que só agimos em função da eternidade. Eis suas palavras: Homem nenhum levantaria o mindinho para a menor tarefa se ele não fosse movido pela convicção, mais ou menos obscura, de que trabalha infinitesimalmente (...) para a edificação de qualquer coisa de Definitivo. (...) É necessário nada menos que a atração do que se chama o Absoluto (...) para deslanchar a nossa frágil liberdade. Assim, tudo o quediminui minha fé explícita no valor celeste dos resultados de meu esforço degrada, sem remédio, minha capacidade de agir.140 Fichte já tinha proclamado: “Não podemos amar coisa alguma se não a consideramos como eterna”.141 Só amamos de fato o terrestre se vier aureolado de céu. Apegamo-nos para valer ao temporal apenas quando ungido de eternidade. É essa identi�cação misteriosa que a religião promove e que a propaganda comercial explora. O in�nito é a apoteose do �nito. Mesmo o mal só atrai se nimbado de in�nito. O viciado se lança sobre o objeto de seu prazer como sobre a própria felicidade, ainda que essa se encontre aí numa forma pervertida. Amamos isto ou aquilo em particular só porque isto ou aquilo representa outra coisa, in�nitamente maior. Nisto Platão tinha razão: as coisas visíveis são apenas sombras das realidades invisíveis. Goethe, por sua vez, declara no �m do Fausto: “O efêmero é símbolo do eterno”. Os Upanixades dizem com propriedade: “É só por amor de Brahman que o homem tem amor à mulher”.142 Sim, porque o amor passional é adoração: no objeto imediato do desejo, o apaixonado adora �nal e inconscientemente a Deus.143 5. “O sentido do mundo deve estar fora do mundo” É o que escreveu, com todas as letras, Wittgenstein no Tractatus.144 Mais adiante, lança uma sentença análoga: “A solução do enigma da vida no espaço e no tempo acha-se fora (sic) do espaço e do tempo”.145 Se bem que devamos mais adiante, no capítulo VI, discutir de modo sistemático se o sentido do mundo está dentro ou fora do mundo, antecipemos aqui o que diz a esse respeito Wittgenstein, por causa da analogia que essa questão (lógica) oferece com a questão (antropológica) do desejo de sentido, como diremos no �m desse scholion. Notemos, para começar, que a sentença capital citada tem caráter não ontológico, mas puramente lógico, como, de resto, são todas as sentenças daquele tratado, chamado justamente logico-philosophicus. Trata-se, mais especi�camente, de uma sentença lógico-hipotética, que pode ser transcrita assim: “Se o mundo tem um sentido, esse sentido só pode estar fora dele”. Isso é claro; pois, se o sentido estivesse no mundo, seria parte do problema, e não seria mais sentido, mas ele mesmo teria de receber de fora um sentido. Aquela sentença não mostra que existe um sentido para o mundo, mas apenas que a necessidade de haver um sentido para o mundo é somente uma necessidade hipotética, ou seja, só vale no caso em que o mundo realmente tenha sentido. Disso se depreende que a questão real e primeira é se o sentido postulado realmente existe (para ser positiva e efetivamente o sentido do mundo). Essa é a questão principal que precisa de resolução. Como vimos, o sentido do mundo supõe demonstrada (por fora do desejo) a existência de Deus, que, como Transcendente, está efetivamente “fora do mundo” e pode, a esse título, dar sentido ao mundo. Mas, se não existe um “fora do mundo”, como pensam os materialistas, então também não existe Deus e, não existindo Deus, também não existe um sentido do mundo. O mundo, portanto, seria sem sentido. Como se vê, o materialista é ateu por implicação e niilista por conclusão. Pode-se argumentar de modo análogo em relação ao mortalismo. Efetivamente, se o sentido da vida só pode estar no post mortem, e se não existe um post mortem, então, não existe um sentido da vida, senão como invenção arbitrária. Portanto, a vida se revela absurda. Diga-se de passagem que esse niilismo não impede que os ateus, chamem-se eles materialistas ou mortalistas, encontrem, se não “o” sentido da vida, pelo menos “algum” sentido na vida. De todos os modos, �ca claro que, se o sentido do mundo pressupõe a admissão do Transcendente real, o niilismo pressupõe sua negação. Portanto, a sentença de Wittgenstein não demonstra efetivamente a existência do sentido do mundo, mas apenas a transcendência desse sentido, na hipóstese data non concessa, de que tal sentido exista, chame-se ou não Deus. É um postulado que expressa apenas uma exigência do pensamento e que pode ser assim formulado: o sentido do mundo (provado que exista) “deve estar” (não se diz “está”) “fora do mundo”, ou seja, deve ser transcendente ao mundo. Teria de ser de fato um suprassentido. Mas, se a sentença de Wittgenstein não serve como argumento demonstrativo ou apodítico para a existência de um suprassentido, pode, sim, servir de argumento probante ou dialético para aquela existência. Se não pode demonstrá-la, pode, sim, mostrá-la – e já é muito. A existência de um sentido transcendente ao mundo aparece como altamente provável não só pelo fato de não estar em contradição com a existência do mundo, mas sobretudo porque se harmoniza com ela e lhe convém à perfeição. Seria, de fato, muito estranho se o postulado lógico de um sentido transcendente fosse tão somente lógico e não re�etisse em nada a estrutura ontológica do mundo. Pois, como pode ser que a razão peça uma coisa e a realidade lha negue? É, com efeito, um pressuposto universal, mesmo se irre�exo, de que existe uma misteriosa “harmonia pré-estabelecida” entre a razão e a realidade, harmonia que Einstein encareceu sob a designação de “religiosidade cósmica” e que constitui o dogma que sustenta toda a empresa cientí�ca. Justi�ca-se, portanto, a leitura teologizante da sentença wittgensteiniana, enquanto a toma como uma razão probante da existência de Deus. Essa leitura é, de todos os modos, logicamente mais consistente que a leitura niilista. De resto, o argumento da exigência lógica do sentido transcendente para o mundo é tão postulatório quanto o argumento do desejo existencial de sentido transcendente para a vida. Ademais, ambos se reduzem a variações do celebérrimo “argumento ontológico” de Santo Anselmo. Imputa-se tradicionalmente a esse argumento o uso indevido da metábase, isto é, a passagem injusti�cada do plano da lógica para o plano da realidade. Mas nessa objeção não se leva na devida conta a natureza única da questão em foco: o fato de se tratar da questão suprema. Ora, para tal questão o uso da metábase é perfeitamente legítimo, se não da lógica demonstrativa, ao menos da lógica dialética. Assim, se partindo da ideia de Deus não se pode demonstrar rigorosamente sua existência, pode-se pelo menos mostrar sua grandíssima probabilidade. Como variações do argumento ontológico, tanto o argumento da exigência lógica de sentido como o de sua busca existencial, conquanto não sejam lógico- demonstrativos, possuem claras virtudes dialético-morais. Se as razões demonstrativas ou apodíticas se dão “por fora da mente” e exibem a solidez da objetividade do mundo, as probantes ou dialéticas se dão “por dentro da mente” e mostram a força de convencimento que só a dinâmica da subjetividade da pessoa humana é capaz de conferir. Esclareçamos, como nota �nal, que, em toda a nossa argumentação, usamos a distinção feita por Aristóteles entre razões (ou argumentos, ou ainda provas) apodíticas (ou demonstrativas ou ainda “cientí�cas”), que o �lósofo estabelece nos Analíticos, e razões dialéticas (ou probantes), que ele examina nos Tópicos. Essa distinção é decisiva também para discernir o valor de verdade que pretende veicular o chamado “desejo natural de sentido”, problemática que trataremos no próximo capítulo.146 III CAPÍTULO PARTE 2 Desejo de sentido no contexto da modernidade Nessa segunda parte do capítulo III, trataremos do desejo natural confrontando-o com a problemática moderna, na medida em que essa atribui ao desejo uma particular capacidade de criação imaginária, sobretudo no que tange ao sentido religioso da vida. Queremos mostrar, em primeiro lugar, que o desejo de sentido, enquanto é natural, não projeta ilusoriamente seus conteúdos, inclusive os transcendentes, mas simplesmente os postula devido à correspondência do desejo natural com a realidade objetiva. Sem embargo, e essa é a nossa segunda tese, veremos que o desejo de sentido, aponta, sim, para Deus, mas de modo ainda vago e geral, permitindo muitos equívocos. Por �m, mostraremos as várias alternativasque se apresentam, do ponto de vista antropológico, para o sentido da vida, mostrando que o Transcendente real é a única que se mostra à medida mesma do ser humano. I. DESEJO DE SENTIDO: OB-JETIVO, NÃO PRO-JETIVO 1. A explicação dos “modernos”: desejo projetivo Desde o Iluminismo, muitos e importantes pensadores sublinharam a dimensão de projeto ou tarefa que habita em todo ser humano. Alguns deles chamaram tal dimensão de “abertura”, “transcendência” e mesmo “autotranscendência”. Entre os fautores dessa ideia, podemos citar Nietz- sche, Freud, Heidegger, Jaspers, Scheler, Bloch, Marcuse, Adorno, Sartre, D. Heinrich, Wahl e Frankl, mas também cristãos como Blondel, Tillich, Rahner, Metz, Boros, Schillebeeckx, Zubiri, Lonergan, Alfaro e De Finance. Para todos eles, o homem busca sempre se superar, seja para a frente (transcendência horizontal), seja para cima (transcendência vertical). Esse traço se mostra em todas as faculdades do homem: no sentimento, na imaginação, na inteligência, na vontade, assim como em seu agir. O homem seria, sobretudo, desejo, no sentido largo de pulsão, tendência, dinamismo.1 Mas a que coisa visaria a autotranscendência? Qual seria o termo do desejo humano? A maioria dos pensadores modernos nega que seja Deus. Para eles, Deus não é o objeto real do desejo, mas seu produto imaginário. Deus, portanto, não seria um ser objetivo, mas projetivo, enquanto projetado pelo desejo na tela da imaginação. Assim, um sentido último, que transcenda este mundo, não passaria de efeito fantástico do desejo. Entraria na categoria do wishfull thinking: pensamento ou crença derivada do desejo. Seria, pois, essencialmente “ilusão”, tal como Freud a de�niu.2 Para tais autores, Deus ou qualquer outro absoluto seria uma miragem. E explicam: de tanto querer Deus, a mente o toma por real. Não diz uma parêmia muito difundida que somos propensos a acreditar facilmente no que desejamos? Deus seria, pois, uma alucinação, algo de doentio. O �lósofo A. Comte-Sponville declara expressamente que Deus corresponde demais a nosso desejo para não ser um logro. É, como diz um provérbio, “bonito demais para ser verdadeiro”. Para esse pensador, a fé seria uma ilusão entendida como “desejo crédulo”. Na fé funcionaria, de modo exemplar, o mecanismo do autoengano: objetivar desejos intensos. Para o mesmo �lósofo, o “desejo de Deus”, em vez de justi�car a crença em Deus, serve, antes, para justi�car a descrença nele.3 Como é sabido, Feuerbach foi o primeiro �lósofo que explicou sistematicamente a religião como criação imaginária da mente humana.4 Desde então, essa explicação foi aceita pelas grandes mentes que marcaram o último século: Marx, Nietzsche e Freud, ainda que cada um a modulasse a seu modo. Tornou-se, até recentemente, a teoria dominante da intelectualidade laicista. Freud, em particular, de�niu a religião como neurose infantil. Diz de modo taxativo e um tanto ponti�cal: “Quanto às necessidades religiosas, considero irrefutável sua derivação do desamparo infantil e da nostalgia do pai, que o primeiro suscita. Tal sentimento não se mantém apenas desde a infância, mas é reanimado sem cessar pela angústia ante a onipotência do destino”.5 Para o pai da psicanálise, até que o homem não renuncie à ilusão religiosa, será sempre uma criança, sem poder aceder à maturidade. De fato, o ideal da modernidade foi o homem prometeico, totalmente emancipado, principalmente de Deus. Esse foi, de resto, um ideal de grandeza que exerceu enorme poder de sedução sobre gerações, especialmente entre jovens e entre intelectuais. Houve mesmo teólogos, e dos grandes, que, seduzidos pelo ideal moderno de emancipação, chegaram a a�rmar, como fez, por exemplo, D. Bonhöffer, que “arranjar-se na vida sem Deus” é condição para se viver hoje como homens adultos, livres, honestos e responsáveis.6 A teoria de Deus como projeção é tão convincente junto aos modernos em geral que acabou se tornando para eles como um lastro teórico e moral ao qual apelar com segurança para negar peremptoriamente qualquer objetividade e valor à religião. Não dissera Marx, sem pestanejar sequer, que, depois da crítica de Feuerbach, a questão religiosa estava em princípio “arquivada” para sempre?7 Apesar de dominante, essa é apenas uma interpretação, a negativa, do desejo de in�nito. Pois existe também uma interpretação positiva: aquela dos que entendem o desejo de in�nito não só como constitutivo inarredável do homem, mas ainda como dinamismo que levaria o homem a crescer e a criar sempre mais, superando continuamente seus limites e produzindo o novo na história. Poderíamos chamá-los de pensadores in�nitistas ou transcendentalistas, entre os quais podemos contar com escritores como Goethe, Hölderlin e os românticos em geral, assim como Rilke; e ainda com �lósofos como Lessing, Nietzsche, Jaspers, Manheim, E. Bloch, Cacciari, Adorno, A. Adler e outros. Para esses inefáveis encomiastas do “in�nito sem �m”, anda-se simplesmente por andar, sem outra intenção, e nisso estaria a realização humana. Mas que é isso, senão dar o próprio problema por solução? Esse é, em verdade, um achado pouco mais que literário, além de nada ter de original. De fato, a ideia de uma “busca eterna” não passa de mais uma versão da tese absurda do “eterno retorno”, corolário de uma visão da vida como puro devir. Para refutar esses “amantes da roda” ou do girar sem destino, bastaria o sarcasmo ao estilo de Bernanos: “Isso de correr sem saber para onde é coisa de imbecis”.8 Guardando, porém, a gravidade que o assunto requer, invoquemos o taciturno Tomás de Aquino, o qual já tinha denunciado a impossibilidade humana de um “processo ao in�nito”, mostrando que tal processo paralisaria tanto o desejo como a ação. Desejo e ação, com efeito, só se movem na perspectiva de um termo �nal conclusivo.9 Ou seja, falando clara e diretamente: sem esperança de alcançar o termo �nal, não é possível nenhum movimento, como nenhuma vida. Só o in�nito de�nido sustenta e realiza o desejo, enquanto o in�nito inde�nido o mata.10 Como se vê, os intelectuais que sustentam a ideia de que Deus é uma criação ilusória do homem fazem-no a partir e em força de um partis pris de caráter positivista e ateísta. Não é, pois, a descoberta, pretensamente cientí�ca, de que Deus é uma ilusão que os levou ao ateísmo, mas, ao contrário, é sua pro�ssão de ateísmo que os levou a defender o caráter ilusório de Deus. Em verdade, a cultura acadêmica dos dois últimos séculos parecia efetivamente ter batido o martelo sobre a questão da religião com um “não se discute mais nisso!”. Contudo, a afetada segurança dessa posição foi abalada nos últimos anos pela irrupção, na ribalta cultural, do fator religioso, ostentando as formas mais diversas, que vão desde a escolha mais subjetiva da própria espiritualidade até a imposição terrorista de um credo monolítico. Entre os modernos há ainda os que concordam que o desejo de Deus ou de um in�nito qualquer está tão enraizado no fundo mais fundo do ser humano que se mostra efetivamente indestrutível. Esses mantêm, assim mesmo, a ideia de que tal desejo é ilusório. Que fazer, então, com ele? O que esses pensadores propõem, em perfeita lógica, é reconhecer francamente esse desejo, sem ceder às suas miragens. É conviver realisticamente com ele, desenganando-se conscientemente de suas criações imaginárias. É, en�m, assumi-lo corajosamente, renunciando às suas inevitáveis ilusões com toda a determinação e lucidez possíveis. Só assim se dariam provas de liberdade, independência e maturidade humana. Mas quem não vê que tudo isso, embora teoricamente lógico, é existencialmente algo de arti�cial e forçado? Seja como for, esta é a pars destruens que propõem os “projetistas” do desejo. Sua pars construens consistiria em reorientar a energia desse desejo, sempre renascente, em direção a objetos “reais”, ou seja, a ideais efetivamente terrestres, como foram os ideais sociais dos últimos duzentos anos e que vigoraram até recentemente. Já para o homem pós-moderno, que se desenganou tambémdesses ideais, tratar-se-ia agora dos ideais individuais, como o próprio sucesso afetivo, pro�ssional ou outro, com base na chamada “opção pela �nitude”. 2. Há desejo e desejo: desejo necessário e desejo arbitrário Mas o objeto in�nito do desejo seria, de fato, puramente imaginário, como apregoa o mainstream cultural? O desejo de felicidade seria meramente projetivo, fantástico, destituído, portanto, de toda objetividade? Por outras, existe ou não existe realmente a felicidade, o in�nito, o sentido que o desejo intenciona? O alvo supremo da seta do desejo é posto pelo próprio desejo ou a ele preexiste? Vimos que, para os “modernos”, a ideia de felicidade plena, seja lá que forma tenha, inclusive a religiosa, é imaginária no duplo sentido: de ser mero produto da imaginação e de ter natureza imaginária. Mas aí há um so�sma, na base do qual reina uma confusão conceitual. Efetivamente, o fato de desejar alguma coisa não garante, por si só, sua não existência. Tal coisa pode existir como pode não existir. Pode existir como nos casos do recém-nascido que busca o seio da mãe, ou do adolescente que “deseja mulher”, casos em que, com toda evidência, os objetos do desejo, mãe e mulher, existem. Mas pode também não existir, como no caso do “príncipe encantado” com quem a mocinha sonha em se casar, ou no do “paraíso terrestre” que o revolucionário almeja criar. Há, porém, que considerar que, nos referidos exemplos, os desejos respectivos não são da mesma ordem. Os primeiros citados (da criança e do adolescente) são desejos naturais ou inatos, enquanto os segundos (da mocinha e do revolucionário) são desejos voluntários e livres. Os primeiros são compulsórios; os segundos, opcionais. Aqueles são indestrutíveis; esses, não. Por �m, os desejos naturais são universais, enquanto os livres são puramente particulares.11 Ora, entre os desejos naturais não existem apenas os físicos, mas também os emocionais e ainda os espirituais. Entre estes últimos temos principalmente o desejo do bem em geral e, mais ainda, do sumo bem, que é a felicidade e o sentido da vida. Não há, efetivamente, quem queira o mal como tal, e menos ainda quem busque a desgraça por si mesma. O mau só faz o mal para tirar daí algum bem pessoal; o suicida só se priva da vida para se libertar de um tormento pior que a própria morte; o masoquista só ama a dor pelo prazer que daí aufere; por �m, o niilista só defende o absurdo em vista de uma positividade qualquer, como o ressentimento contra os desenganos da vida ou mesmo a vaidosa vontade de impressionar. E embora haja casos em que os objetos reais dos desejos naturais apareçam sob formas ilusórias, como no caso clássico da “miragem” para as caravanas sedentas, trata-se sempre de casos acidentais. Nessas circunstâncias excepcionais, os objetos do desejo natural são por si mesmos (per se) objetivos, e tal é o caso da água, embora possam ser ilusórios por acaso (per accidens), e esse é o caso da miragem. 3. Desejos naturais: objetivos, não imaginários Há, portanto, desejo e desejo. Os desejos naturais visam aos objetos que têm toda a chance de ser reais; os livres, não. Enquanto esses últimos não têm garantia de ser reais, sendo de fato muitas vezes meramente projetivos, os primeiros são por si mesmos objetivos ou, melhor, objetivantes. Nas pegadas de Aristóteles, Santo Tomás repete o axioma: “O desejo natural não pode ser vão”.12 Alhures diz mais diretamente: “O apetite natural sempre tende para um bem que existe na realidade”.13 A razão básica desta verdade é que os desejos naturais estão tão ligados à natureza mesma do homem que o levam espontaneamente a ansiar pela própria perfeição ou autorrealização, o que é outra maneira de falar da vontade de felicidade e, portanto, de sentido pleno. Se tais desejos são tão necessitantes é porque constituem mecanismos que garantem a vida, a saúde e a felicidade geral de todo ser humano. Assim são a fome e a sede: elas provêm à busca do necessário para a sobrevivência do indivíduo, enquanto o desejo sexual tem a mesma função em relação à sobrevivência da espécie. E isso vale mais ainda para o desejo natural de felicidade ou de sentido: esse desejo provê à realização última do ser humano em seu plano espiritual. Por que seu objeto ou seu objetivo seria puramente imaginário? Quem o a�rma não o faz a partir de uma análise objetiva do desejo, que, como vimos, não permite tal ilação, mas apenas a partir de uma �loso�a materialista, preconcebida e mais ou menos inconsciente. De resto, por seu caráter natural e, por isso, necessitante, a sede de sentido, de sumo bem, de felicidade é análoga à sede de água.14 Ora, a água não deixa de existir só porque foi desejada. Antes, o desejo natural dela é prova de que ela deve existir. Do mesmo modo, se nós, seres aeróbios, necessitamos do oxigênio do ar para viver, é sinal de que existe oxigênio na atmosfera. Ora, o desejo de sentido pleno e felicidade perfeita não é, em sua ordem, menos coagente e objetivante do que qualquer desejo natural de tipo físico, como o desejo de comer, de dormir, de respirar, de excretar. Quanto à pulsão sexual, o vulgar “desejo de mulher”, é menos natural que o de sentido e, por isso, menos imperioso, pois, se o primeiro pode ser submetido à abstinência, o último, de modo nenhum. Mais: por ser um desejo espiritual, portanto, sui generis, o desejo de sentido é mais objetivante do que qualquer outro desejo natural, físico ou emocional que seja. Seu clamor por realidade é mais alto, ardoroso e dramático. Por isso também sua frustração é mais desesperadora, muito mais que a falta de água ou de sexo. É literalmente infernal: irremediável. O coração humano deseja tão intensa e decisivamente o sentido que, se ele chegasse a ver o absurdo face a face, não aguentaria e colapsaria. Mas, se os homens e as mulheres continuam vivendo e sobrevivendo, não é justamente porque intuem, para aquém de todas as razões teóricas, que há um sentido na vida? Não bastaria essa prova viva para mostrar que vale a pena viver? Além disso, o caráter universal do desejo de sentido, que vimos acima, também depõe vigorosamente a favor de sua objetividade. De fato, um homem pode, às vezes, se enganar ansiando por coisas que não existem, mas não todos os homens e sempre. Já entre os gregos se encontra a ideia, a�m à dos modernos, de que a esperança é um anestésico feito para suportar o absurdo da vida. É o que se lê no Prometeu acorrentado, quando Ésquilo faz o referido herói proclamar: “Impedi os mortais de ver sua sorte mortal. Como? Com o remédio das cegas esperanças. Eis um grande dom que dei aos mortais” (v. 248-250). Talvez fosse esse também o sentido do mito da “caixa de Pandora”, que, uma vez aberta, deixou todos os males se espalharem pela terra, �cando aí retida apenas a esperança. Esta não passaria de um logro. Seria, pois, ela também um mal, ainda que um “belo mal”, como Hesíodo diz da mulher na Teogonia (v. 585).15 Mas não. Esse é o discurso ardiloso da raposa que, como conta uma fábula de Esopo, vendo uma gralha faminta, esperando, no alto de uma �gueira, que os frutos amadurecessem, quis dissuadi-la dizendo: “Minha amiga, não adianta alimentar esperanças. Elas só nos enchem de ilusões”.16 A contrapé dessa ideia sofística, Platão, no Fédon, conseguiu apresentar os títulos de racionalidade que sustentam e�cazmente a esperança na imortalidade. E é em virtude de tal esperança que, para o grande �lósofo, a vida presente, com todas as suas agruras, encontra sua justi�cação existencial, além de racional. Pode-se, pois, sustentar que, embora o desejo de sentido ou de felicidade não baste para demonstrar rigorosamente a existência de um e de outra, permanece, contudo, uma prova extremamente plausível dos mesmos. E, dado que esse desejo tem caráter in�nito, a realidade a que ele visa só poderá ser igualmente in�nita, como é concretamente Deus. Sendo a sede de felicidade e de sentido uma pulsão natural e universal análoga à sede de água, seria muito estranho e extremamente improvável se a água da felicidadeplena e do sentido último não existisse na realidade, mas apenas na imaginação sob a forma de ilusão. Como é, pois, possível que a realidade empírica seja tão contrária ao desejo humano? Seja como for, uma coisa é certa: quem a�rma a inexistência do objeto in�nito do desejo de in�nito envereda inevitavelmente pelo caminho do pessimismo. Só pode ter uma visão assombrada do mundo aquele para o qual as forças do caos e do mal sobrepujam as da ordem e do bem. Como então não se infelicitar com a frustração contínua e sem esperança do irreprimível desejo de plenitude? 4. Provas suplementares em prol da verdade do desejo de sentido A hipótese da existência do sentido não só é muito mais lógica do que a absurdista, mas é também muito mais satisfatória do ponto de vista existencial. À objeção dos modernos de que a felicidade, que aquela hipótese promete, repousa sobre um engodo, pode-se replicar e�cazmente apelando, em primeiro lugar, para a prova dos frutos. Efetivamente, quem diz ter encontrado o sentido da vida (e a maioria o encontra no plano religioso, e com toda razão, como veremos) sente-se muito mais realizado do que quem nega esse sentido. Tal senso de realização se expressa não só em sentir-se mais feliz, mas em querer ser mais humano, solidário e aberto em relação aos outros. De fato, mais que qualquer outra instituição, a religião contribuiu para produzir na história �guras do mais alto nível humano: santos, místicos, homens e mulheres de caridade, assim como intelectuais, artistas, governantes e guerreiros da mais elevada estatura moral, fenômeno impossível de explicar apenas apelando para o argumento da ilusão. Eis, pois, aí uma prova suplementar, essa a posteriori, que con�rma a objetividade do desejo de in�nito. Tal prova nos parece tão forte que, se, por impossível, Deus fosse uma ilusão e a realidade um absurdo, essa ilusão e esse absurdo seriam preferíveis à verdade e ao sentido, justamente pelo efeito de beatitudo subjetiva e de humanitas objetiva que aquela ilusão e aquele absurdo produzem e produziram na história. Mas existe ainda outra prova suplementar que reforça a tese da verdade do desejo de Deus: é que esse desejo é tão pouco subjetivo que é ele mesmo questionado por seu próprio objeto: Deus. Os projetistas argumentam que Deus corresponde demais ao nosso desejo e que justamente por isso ele seria suspeito. Mas isso não é sempre verdade. Pois, para responder ao nosso desejo, Deus pode exigir a conversão do desejo subjetivo, e costuma fazê-lo. É o que se pode comprovar pelo exemplo das grandes testemunhas da fé, como Abraão, Maria de Nazaré e Paulo de Tarso. De todos eles Deus pediu uma entrega radical que implicava a superação dos conteúdos imediatos do seu desejo pessoal. Isso vale mais ainda para Jesus, como aparece claramente no episódio do Horto das Oliveiras (“não o que eu quero, senão o que tu queres”: Mc 14,36) e, de modo supremo, em sua cruci�cação (“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”: Mc 15,34). Efetivamente, nesses episódios, o desejo subjetivo de Cristo foi submetido a uma quenose e aniquilação insuperáveis (cf. Fl 2,6-8). Assim, perante um Deus que contrasta dessa maneira o desejo, a tentação seria antes desejar que Ele não existisse do que o contrário. Sim, o desejo de Deus, para amadurecer e chegar a seu termo transcendente, precisa absolutamente sofrer uma puri�cação, uma conversão, uma cruci�cação. Para acolher a Deus, o homem tem que morrer à forma imediata do desejo. Deus não se coloca, em geral, na linha direta do desejo. Desse, a cruz quebra o percurso retilíneo. Por quê? Porque o desejo é e será sempre transcendido por aquele que é o próprio Transcendente. “Deus é maior que nosso coração” diz João (1Jo 3,20); e Paulo: “O que não subiu ao coração do homem, é isso que Deus preparou para os que o amam” (1Cor 2,9). A Liturgia igualmente fala das “promessas que superam todo o desejo”.17 Ora, se Deus é “mais eu do que eu mesmo”, Ele é igualmente e sempre o totaliter alter. Ele realiza, sim, efetiva e plenamente a lógica do desejo, mas não sem interrompê-la em seu curso espontâneo, a �m de puri�cá-la e abri-la a seu objeto soberano e misterioso. Portanto, pelo fato de que Deus questiona e ultrapassa meu desejo imediato, dou-me conta de que não é o meu desejo que cria Deus; é, antes, Deus que põe à prova os conteúdos de meu desejo. Pois, se dependesse só de meu desejo, por que eu renunciaria a talhar um Deus à medida de meu desejo? Mas, se é Deus e seu desejo que medem o meu, então �ca claro, para mim, que é Ele que determina meu desejo, e não o contrário. Invoquemos �nalmente uma última prova indireta sobre a verdade do desejo de sentido e mesmo do desejo de Deus. É a que dão seus próprios adversários. Com efeito, esse desejo é tão incoercível que eles mesmos o experimentam, obrigando-se a reprimi-lo, talvez mais por orgulho do que por convicção. Mas, denegando-o, eles contribuem inconscientemente para con�rmá-lo, mostrando, sem querer, de que lado está a verdade. Poucos como Nietzsche sentiram com tanta intensidade a força do “instinto religioso” e tentaram sufocá-lo de modo mais implacável e até mesmo blasfemo: “Maldizei todos esses demônios covardes que há em vós e quereriam gemer, juntar as mãos e adorar”.18 Freud mesmo se sente tocado pela sedução que exerce a religião, ao confessar, não sem ironia: “Seria até muito belo se existissem um Deus, criador do Universo e Providência benigna, uma ordem moral universal e uma vida ultraterrena.”19 Mas foi o �lósofo católico J. Guitton (+1999) que, traduzindo uma con�ssão do escritor incrédulo P. Valéry (+1945), deu uma das expressões mais notáveis do desejo de Deus que pulsa mesmo no coração dos que julgam negá-lo, ao estender este poema: Se Deus existisse, eu seria perpetuamente feliz. Eu não poderia pensar em outra coisa senão n’Ele. Eu me sentiria envolvido em ternura e proteção. E a vida nada mais seria para mim Que a espera do grande encontro com Ele. Se Ele existisse, nada seria sem sentido para mim. E eu seria bom para com todos, Como um milionário que lança seu ouro, Simplesmente pelo prazer de dar prazer. Mas Ele não existe, e eu não sou feliz.20 Fica, assim, estabelecida a força de convencimento da prova dialética do desejo de sentido. Sim, se apenas uma realidade chamada Deus pode responder plenamente à nossa sede de sentido pleno, então tal realidade deve mesmo existir. Não fosse assim, como explicar a perpétua inquietude do nosso coração? Seríamos assim tão mal feitos? Certo, a imaginação explica muitos de nossos desejos e seu caráter frequentemente ilusório. Mas como explicar um desejo como este, tão arraigado, compulsivo, insistente e, por isso, universal, além de sadio e elevado, senão admitindo a existência dessa realidade que se costuma chamar de Deus e que deve, sim, saciar plenamente o coração humano? 5. O lado certo da teoria da projeção Devemos, sem embargo, reconhecer e honrar a parte de verdade que contém a tese “moderna” do caráter imaginário do desejo de in�nito, concretamente, de Deus. Pode-se, com efeito, conceder a essa teoria que existe efetiva e inevitavelmente certa atividade projetiva ou fantástica no desejo de in�nito. E não podia ser diferente, pela boa e simples razão de que o in�nito divino, por seu caráter transcendente, não pode ser humanamente apreendido e visado senão mediante uma representação sensível, elaborada pela imaginação. Já sentenciava Aristóteles: “Sem imagem (phantasma) a alma não pode de modo algum entender”.21 Em suas pegadas, Santo Tomás elaborou a teoria da conversio ad phantásmata, segundo a qual todo pensamento, por mais abstrato que seja, como o referente ao ser, à existência, ao espírito e a Deus, nunca se desprende totalmente da imagem de que proveio; antes, precisa, vez por vez, voltar-se para ela se quer manter seu poder cognitivo, de sorte que todo conceito vem sempre acompanhado por uma representação imaginária, como o cão por sua sombra.22 Isso, contudo, não quer dizer em absoluto que a imaginação cria o objeto “Deus”,mas apenas que ela exerce, em relação a ele, uma função mediadora. Portanto, a intenção do desejo não se detém na mediação, mas a usa como que de um trampolim para lançar-se em direção à realidade que a supera, não sem antes puri�car tal mediação, aperfeiçoá-la e �nalmente removê-la.23 Pode-se ir mais longe e admitir a gênese psicológica da ideia de Deus Pai tal como foi descrita por Freud, sem, por outro lado, se alinhar com ele quando a�rma que tal gênese invalida a crença na existência objetiva de Deus.24 Aqui a tese freudiana peca por reducionismo psicológico. A questão da existência de Deus é uma questão de outra ordem que meramente psicológica: é uma questão ontológica ou metafísica. Há certamente uma relação entre as duas questões. De fato, a ideia espiritual de Deus não pode não se apoiar em processos psicológicos, sendo o homem o que é: um “espírito encarnado no mundo”, portanto feito também de fantasias e emoções.25 Com efeito, como chegar à ideia de Deus Pai senão pela experiência concreta de um pai? Isso, contudo, não signi�ca que o Pai celeste seja mera projeção do pai terrestre ou mesmo sua simples sublimação. Não; o que ocorre antes é que o homem, por ser espírito, consegue superar dialeticamente o pai sensível ou emocional em direção ao pai espiritual ou transcendente. Deve-se também reconhecer uma ponta de verdade na a�rmação dos modernos sobre o caráter insaciável do desejo humano, tal uma ferida sem remédio, uma chaga sempre hiante. Em O futuro de uma ilusão, Freud deu uma expressão radical dessa insatisfação irremediável, dizendo que o ser humano busca a felicidade, mas não está programado para ela. O homem estaria, de nascença, fadado ao fracasso. A verdade que existe aí é que o desejo de sentido não pode, de fato, se preencher neste mundo, e a razão disso é simples: a desproporção insanável entre o in�nito do desejo e o �nito deste mundo.26 Tal raciocínio, porém, para cedo demais. Contra o preceito platônico, ele não “leva o argumento até o �m” e não se pergunta se não existe efetivamente um mundo, que a tradição religiosa chama de “céu”, onde o desejo humano possa ser plenamente saciado. E aqui chegamos ao ponto nevrálgico da teoria de Deus como projeção do desejo: seu fundamento materialista, mais especi�camente, cienti�cista. 6. Refutação da teoria da projeção: seu pressuposto cienti�cista De fato, para os “modernos”, se o desejo de felicidade nunca vem a termo, é simplesmente porque este termo, ao ver deles, não existe na realidade. Admitem que o homem deseja, sim, outro mundo, mas julgam que esse mundo não existe. Como se vê, por trás da ideia da insaciabilidade do desejo de in�nito está uma visão materialista e ateia da vida, que, para esses intelectuais, toma em geral a forma de cienti�cismo. Com efeito, a teoria da projeção pressupõe uma �loso�a in�cionada de cienti�cismo, enquanto só admite como real o que a ciência mostra e prova. Isso é particularmente claro em Freud, cujo positivismo cientí�co só admitia fatos positivos.27 Mas, se o que valem são os fatos positivos, por que Freud não levou em conta o seguinte fato maciço, fartamente exibido pela história: o das grandes �guras humanas que a religião produziu e que foram tanto mais sadias, maduras e independentes quanto mais piedosas?28 Ele só não viu isso por estar imbuído do ateísmo, coriáceo a priori dogmático de seu tempo, que ele herdou ainda antes de empreender suas pesquisas cientí�cas, como foi demonstrado.29 Certo, se o in�nito não existe como In�nito real, o desejo de in�nito só pode ser vão e absurdo. Mas, defender o absurdo do desejo de in�nito implica defender o absurdo da própria existência, enquanto essa estaria fadada a buscar uma coisa impossível, por inexistente. Mas não é isso mesmo o “cúmulo do absurdo”? Aqui se acrescenta absurdo ao absurdo, pois, além do absurdo do desejo, declara-se o absurdo da existência. Em vez disso, não é mais lógico e mais sensato sustentar o contrário, isto é: que o desejo de sentido pleno postula, por seu movimento objetivo, a existência de uma plenitude igualmente objetiva? Pois, se o dinamismo do desejo de in�nito é tão real quanto natural, o in�nito que lhe corresponde e o suscita não deve ser menos real e objetivo. Falando teologicamente, deve-se dizer que não é o desejo de in�nito que cria o In�nito, mas é o In�nito que cria o desejo de in�nito. Nesse caso vale o axioma metafísico de que o efeito não pode ter mais verdade que a causa, assim como a chama não pode ter mais calor que a brasa que a produz.30 Evidentemente, o desejo de sentido é subjetivo, mas trata-se aqui de uma “subjetividade objetiva”, enquanto tal desejo se impõe à consciência e à experiência de todo indivíduo. Um dos sinais mais claros da objetividade desse desejo é sua universalidade. Não há, efetivamente, coração humano que não queira o sentido pleno. E esse é o bem supremo que todo ser humano, sem exceção, busca incansavelmente e que a maioria chama de felicidade. O homem está voltado para isso como a planta para o sol. Estranho seria se não fosse assim. Seria efetivamente inexplicável o fato de existir na natureza uma pulsão real sem seu correspondente real. E, assim como não há heliotropismo sem helios, assim não poderia haver “teleotropismo” se não existisse realmente um telos, um sentido qualquer. Em verdade, o desejo natural de felicidade nada mais é que a participação, pelo homem, do desejo de sentido que permeia e anima todo o cosmos. Com efeito, tudo no mundo é pulsão para o mais. Tudo é evolução, expansão, desenvolvimento em direção a um misterioso pléroma. No fundo de cada ser pulsa uma misteriosa vontade: vontade de ser, de se a�rmar, de viver, de poder, de desabrochar. Com vimos, essa vontade não é só um princípio cosmológico, mas metafísico.31 Em todo ser há tendência, pulsão, dinamismo. Isso se dá até no Ser divino, não, porém, por falta, como nas criaturas, mas tão somente por superabundância de amor.32 De resto, a mitologia e a poesia, antes ainda da �loso�a e da ciência, intuíram a existência de um Eros universal que anima o curso do mundo. Pois bem, esse Eros ou amor cósmico se traduz, no coração humano, em desejo natural próprio do homem, ou seja, desejo racional e volitivo. Como se vê, a aceitação da existência de um sentido pleno e pleni�cante não só se mostra racionalmente mais satisfatória que a hipótese contrária, mas é a única hipótese que satisfaz a razão, por mais que a primeira se pretenda cientí�ca e realista. Ademais, a prova do caráter objetivante que o desejo de in�nito tem sobre o coração humano tem mais força que qualquer prova cientí�ca e mesmo matemática, pelo fato de corresponder ao que, no homem, há de mais genuíno, profundo e inelutável: o apelo à felicidade, na qual se acha sua plena realização. Esta prova tem, pois, a força de um �o duplo, feito da união da lógica com a moral, da razão com a existência. 7. A sensatez profunda da realidade O acordo radical entre desejo intra animam e realidade extra animam mostra que a realidade total, na qual o ser humano está inserido, é um conjunto harmônico, um sistema lógico, inteligível, racional. Se os modernos destacam nela contradições, principalmente em relação aos seus desejos humanos, é porque se �xam apenas na face visível da realidade, o phainómenon, sem ir até seu coração metafísico, o noúmenon. Mas já Heráclito, o obscuro, sentenciava: “A harmonia invisível é preferível à harmonia visível”.33 Os modernos têm, efetivamente, di�culdade em perceber a “harmonia invisível” ressoando no mais profundo da realidade. Mostram-se pouco capazes de ouvir o potente cantus �rmus que absorve todas as dissonâncias do mundo, fazendo-as concorrer para a beleza geral do todo. Escandalizados com os inegáveis ruídos que a melodia do mundo contém, tendem a declarar o mundo absurdo. Absurdum era, efetivamente, o nome que os latinos davam a um som desagradável ao ouvido. A �xação moderna nas contradições visíveis do mundo se deve, em grande parte, ao primado que se concedeu à ciência na construção de uma imagemda realidade, a chamada “visão cientí�ca do mundo”. Mas esta visão, por se basear no aspecto empírico do mundo, só pode apreender sua superfície, que, em boa parte, se mostra efetivamente fragmentária e caótica, deixando seu fundo substancial na obscuridade. Ora, para perceber a harmonia profunda do mundo, é preciso descer até sua dimensão metafísica e espiritual e então, e só então, reintegrar sua dimensão física ou natural, harmonizando suas dissonâncias. Para iluminar esse confronto, vale evocar esta outra sentença de Heráclito: “É do que está em luta que nasce a mais bela harmonia”.34 A fé na racionalidade fundamental do mundo era uma convicção �rme e comum de toda cultura antiga, como testemunham tais axiomas: natura nihil facit frustra (a natureza nada produz em vão); natura non de�cit in necessariis (a natureza não falha no que é necessário). Mas não é essa a fé originária e atemática de todo ser humano quando se põe a pensar sobre o mundo e com ele interagir? Também a Bíblia, e de modo todo particular, oferece uma visão sensata do mundo, enquanto ordenado e bom, como aparece com toda a clareza no relato da criação. Para a visão bíblica, o mundo, porque criado por um Deus sábio e bondoso, é verdadeiro e bom, sendo, portanto, inteligível e amável. Sem embargo, a Bíblia é bastante realista para reconhecer o lado obscuro do mundo e o faz falando do pecado e de suas consequências. Mas, para ela, o pecado é algo de adventício, que, por mais grave que seja, não chega a destruir a ordem básica do mundo. Ele pode inclusive ser redimido e, assim, reintegrado na harmonia �nal do todo, podendo até mesmo contribuir para seu esplendor. Do mesmo modo, a aposta na racionalidade fundamental do mundo, como dissemos, foi a fonte de onde nasceu a ciência moderna e é o aguilhão que sustenta ainda hoje seu progresso. Pois, sem crer na ordem racional do mundo, como ainda tentar descobrir tal ordem e traduzi-la em equações? Já a metafísica clássica sustentava que o ser, todo ser, inclusive o físico, é verum, ou seja, tem uma relação intrínseca com a inteligência. Ele é inteligível e tem, por isso, razão de ser, o que é o mesmo que dizer: ele tem sentido. Visto, pois, em profundidade, o mundo é dotado de sentido. Ele é sensato. O que é insensato é tresler o texto do mundo, �cando na super�cialidade de sua letra e recusando-se a penetrar na profundidade de seu sentido. Mas é o que fazem os cientistas ateus, que, nesse ponto, não se mostram menos “literalistas” ou “fundamentalistas” do que os religiosos de que costumam zombar. Desse modo, �ca mais uma vez con�rmado o fato de que o desejo de sentido nada mais é que uma expressão particular, privilegiada, da “harmonia pré-estabelecida” que existe entre a estrutura de nosso desejo inato e a estrutura objetiva do mundo. Ora, se a fé nessa conexão estrutural vale para a ciência, como não valeria, e com maior razão, para o sentido da vida? II. DESEJO DE SENTIDO ÚLTIMO: DESEJO CONFUSO DE DEUS 1. Desejo de felicidade: desejo de Deus? Contra a tese da projeção ilusória do desejo de in�nito (de felicidade, de sentido), provamos que esse desejo visa �nalmente a um in�nito real. Ora, o in�nito real só pode ser Deus, que é o In�nito por de�nição. Isso precisou ser provado, porque isso não é evidente por si mesmo, como pode parecer para os piedosos, não sem razões. Pois, se não pudéssemos provar a realidade objetiva de Deus como o in�nito desejado, o “projetista” poderia nos objetar dizendo, entre cético e irônico: “Sim, só Deus enche o coração de sentido. Agora, só uma coisa: Deus existe?”. Antero de Quental (+1891) traduziu essa aporia num soneto que termina assim: “Virou-se para Deus minha alma triste! / E achei a paz na inércia e esquecimento... / Só me falta saber se Deus existe!”.35 Acerca do valor de verdade da “prova do desejo”, devemos reconhecer que é só de modo vago e geral que o senso do in�nito remete a Deus. Santo Tomás diz efetivamente que o desejo de felicidade não fornece uma notícia clara e segura de Deus, mas apenas uma ideia confusa (sub quadam confusione). E dá um exemplo: é como alguém que espera Pedro e, vendo vir um vulto parecido com Pedro, presume que seja ele. Isso quer dizer que o instinto de felicidade faz presumir ou suspeitar seriamente de Deus, sem chegar, porém, a garantir que seja mesmo Ele. Não é, pois, de modo nenhum demonstrável e menos ainda autoevidente que a ideia inata de felicidade ou de sentido seja a ideia mesma de Deus.36 Do ponto de vista epistemológico, não se pode tirar, pura e simplesmente, a equação: Felicidade = Deus. Pode-se apenas dizer que a felicidade é algo parecido com Deus. É justamente por causa de sua aparência ou, como diz o Angélico, similitudo com Deus que a felicidade pode ser identi�cada com Ele, mas não forçosamente.37 De fato, como faz observar Santo Tomás em seu sólido realismo, não são poucos os que, ao pensar na felicidade plena, não pensam logo em Deus, mas em outras coisas, como nos prazeres, nas riquezas e na fama.38 Isso porque entre felicidade e Deus não há, de imediato, uma relação de identidade, mas apenas de semelhança, como dissemos. Daí também o engano em que cai, por exemplo, o avarento quando, tomando o semelhante pelo igual, confunde o dinheiro com Deus, dando-lhe até um nome religioso: Mamon (cf. Mt 6,24). E assim como não conhecemos a Deus imediatamente, mas só por intermédio de suas semelhanças impressas nas criaturas, do mesmo modo também não desejamos naturalmente a Deus de modo direto, mas apenas enquanto desejamos a felicidade, que é algo de semelhante a seu amor.39 Deus é tão pouco o “primeiro objeto do desejo” quanto é o “primeiro objeto do pensamento”, ao contrário do que pensavam os ontologistas, como Malebranche, Gioberti, Ubaghs e Rosmini.40 E como Deus só vem ao pensamento no horizonte da ideia de ser, assim também Ele só vem à vontade no horizonte do desejo de in�nito, de modo que a ideia de ser e o desejo de in�nito são, para nós, anteriores à ideia de Deus e ao desejo de Deus. E como a ideia de Deus como tal não é inata, não o é tampouco o desejo de Deus como tal, sendo ambos acessíveis a nós só partir das criaturas. Assim, o desejo de transcendente é tão vago e geral como o é o desejo de felicidade, que, como dissemos, é seu “nome ridente”. Sendo, pois, a felicidade uma ideia brumosa, ela só pode valer para Deus de um modo igualmente brumoso. Ora, o simples desejo de felicidade ainda não diz em que consiste efetivamente a felicidade, assim como o desejo de comer nada diz ainda do modo como saciar a fome. Também a expectativa do Messias ardia no coração dos contemporâneos de Cristo (cf. Lc 3,15), mas a maioria estava longe de achar que o Messias esperado era Jesus mesmo. 2. Prova eudemonológica de Deus: dialética, não apodítica Se o desejo de felicidade não demonstra por si só a existência de Deus, ele pode servir de base ou ponto de partida argumentativo para chegar lá. Se esse desejo não aponta sem mais a Deus, aponta-o certamente em pontilhado, de modo que a razão pode aduzir argumentos que, sobre aquele pontilhado, tracem uma linha contínua que vá dar em Deus mesmo. Pode-se, pois, mostrar que efetivamente a felicidade a que aponta nosso desejo é Deus mesmo. Esta seria a que se chamou a “prova eudemonológica” da existência de Deus, prova que, no horizonte da problemática do sentido, se traduz em termos de “prova noológica”. Há quem a�rme que essa prova tem um caráter demonstrativo. Seria, pois, uma prova coagente, irrefutável, e não uma prova meramente dialética, provável, convincente.41 Contudo, isso equivaleria a exagerar seu rigor epistemológico. Pois o in�nito que intenciona a vontade desejante só parece ser Deus, mas sem garantia. É por isso que o desejo de in�nito frequentemente se equivoca, �xando o in�nito na �gura de uma realidade �nita, que, para tanto, se mascara de in�nito, como a riqueza, o poder, a fama e o prazer. Então, o desejo de in�nito, em vez de ser a mão que se abre para o in�nito verdadeiro, torna-se mão que se fecha sobre umin�nito ilusório. Como vimos há pouco, a conexão entre desejo natural de in�nito e Deus como seu correlato objetivo não é necessitante, não sendo, por isso, demonstrativa. Diz o Angélico que o fato de um “desejo natural” permanecer inane ou frustrado não é propriamente algo de irracional (ele teria podido dizer contra rationem), mas é certamente algo de “não razoável” (diz praeter rationem).42 Seria, pois, para ele, algo de sem sentido (meaningless), mas não de absurdo (nonsense). Portanto, para o Aquinate, a ideia da inanidade do desejo natural, que os modernos sustentam, não é, em si, impensável ou contraditória. É apenas uma ideia praticamente improvável. Mas, se, acerca da existência de Deus, a prova eudemonológica não tem força demonstrativa, tem, sim, força dialética ou probante. Há quem pretenda negar-lhe todo caráter probatório alegando que ela incidiria no erro análogo ao da famosa “prova ontológica”: a metábase ou passagem indébita de gênero. Pois, enquanto no caso do argumento ontológico se passava ilegitimamente do plano lógico para o ontológico, aqui se passa do plano psicológico para o ontológico. Pode-se, contudo, replicar que o desejo natural de sentido último, se não mostra que Deus “tem” necessariamente de existir, mostra, contudo, que Deus “deve” muito provavelmente existir. Se não, como explicar um desejo assim tão natural, inerradicável e universal? Um desejo assim seria tão estranho quanto o é a sede, caso negássemos a existência da água. Mas, como, a partir da sede, posso inferir a existência provável da água, assim também a partir do desejo de in�nito posso provar, se não a existência do in�nito, pelo menos a alta probabilidade de sua existência. O argumento eudemonológico não comete, pois, o equívoco da metábase, mas produz uma inferência legítima de um desejo natural para seu correspondente real.43 Portanto, se o desejo de felicidade não fornece uma prova apodítica da existência de Deus, fornece, sim, uma prova dialética. Esta prova, relativa ao desejo, pode ser formulada nos termos usados por Santo Tomás em relação à inteligência: Nossa inteligência, em seu ato de entender, se estende ao infinito. (...) Esta ordenação da inteligência para o infinito seria vã caso não existisse alguma realidade inteligível infinita. É necessário, pois, que exista alguma realidade inteligível infinita, que deve ser a realidade máxima. Ora, tal realidade dizemos que é Deus. Deus, portanto, é infinito.44 Nietzsche ridicularizava o raciocínio: “Se não houvesse Deus, a vida seria intolerável; portanto, é necessário que haja um Deus”.45 Essa seria uma prova pueril e por isso desprezível. É como se Deus devesse existir em função de nossos desejos. Argumenta-se que um Deus assim nem Deus seria, pois não seria o absoluto, aquele que existe por si só. Seria antes um Deus ex machina, um Deus meramente funcional, uma espécie de “funcionário do sentido”.46 Nesse caso, a fé se degradaria num credo quia consolans.47 Seria apenas um truque psicológico. Por isso, há quem, por honestidade intelectual, pre�ra a verdade do absurdo à mentira de um sentido. Sem embargo, embora o argumento “Deus precisa existir para...” seja formulado de uma forma tão subjetivista e funcionalista que se presta efetivamente à contestação e à irrisão, esse argumento, em sua formulação sumária, refere-se, em verdade e no fundo, à existência de Deus, não, porém, como resposta a um desejo arbitrário de sentido (voluntas ut ratio), mas justamente a um desejo necessário (voluntas ut natura), que, como vimos, requer a existência de seu objeto. Repetimos: esse é um argumento propriamente probatório da existência de Deus, todavia seu argumento rigorosamente demonstrativo da mesma vem de outra instância: da realidade do mundo, cuja existência contingente exige a de um ser necessário. Daí também por que Santo Tomás exclui formalmente a prova eudemonológica de suas célebres vias demonstrativas da existência de Deus.48 Na ordem epistemológica, o argumento noológico vale como meia demonstração, espécie de meia-sola racional. Na ordem existencial, porém, esse argumento, dito dialético, supera de longe qualquer prova demonstrativa. Se ele não é tão bom para se pensar Deus, é, contudo, excelente para se encontrar a Deus, como diremos logo mais. Fechando essa seção e resumindo tudo, a�rmemos que, se, por um lado, o desejo natural de sentido depõe fortemente a favor de Deus, por outro, não o impõe necessariamente. Como se deduz, esta posição situa-se a meio caminho entre a tese dos incrédulos modernos, que pecam por excesso de suspeita em relação ao desejo de felicidade e à sua virtude probante, e a posição dos eudemonologistas, que pecam por excesso de con�ança neste mesmo desejo, julgando-o apodítico. 3. A demonstração da existência de Deus: força racional e limitação moral A demonstração rigorosa da existência de Deus, como se vê na grande tradição antiga e medieval, passa por fora do mundo subjetivo, onde se situa o mundo do desejo. Ela se faz, antes, a partir do mundo objetivo e, no que concerne ao sentido, se resume assim: se o mundo exige um sentido, por ser um todo bem ordenado, isto é, um “cosmos”, é porque existe um Ordenador.49 Em suma, o mundo foi criado por uma Inteligência suprema com uma intenção, com um �m e, portanto, com um sentido. Tal é, em síntese, a “quinta via” que propõe Santo Tomás para demonstrar a existência de Deus. Essa prova, tirada ex gubernatione rerum, tem caráter apodítico. O mundo aí é visto como uma �echa que, em pleno voo, denuncia inexoravelmente um �echeiro: sicut sagita a sagitante, segundo a concisa metáfora tomasiana.50 Todavia, as provas objetivas ou cosmológicas da existência de Deus, conquanto apodíticas, não chegam a arrebatar a adesão da maioria. Por quê? Porque, ainda que sejam coagentes e irretorquíveis do ponto de vista racional, não o são do ponto de vista existencial. De fato, elas se dirigem mais à razão que ao coração, com seus sentimentos e sua liberdade. Elas questionam o pensamento mais que à própria existência humana. Ora, o pensar autêntico não é, a rigor, um fato da razão, mas do homem por inteiro, operando, isto sim, através da razão.51 As provas apodíticas valem apenas nos círculos restritos dos �lósofos, e visam o saber das coisas, enquanto as dialéticas ou morais valem para todos e visam o saber da vida e o modo de vivê-la. Por isso mesmo, são as provas mais usadas por todos os que lidam com gente: pais, educadores, pastores e terapeutas, principalmente quando tratam das questões existenciais de seus assistidos. É o que Pascal tinha percebido com agudez ao escrever: As provas metafísicas de Deus acham-se tão afastadas do raciocínio dos homens e são tão complicadas que causam pouca impressão. E, ainda que servissem para alguns, só serviriam durante o instante em que veem a demonstração; uma hora mais tarde, receiam ter-se enganado.52 Por isso, para abrir aos incrédulos o acesso à fé, Pascal optou pelas provas de tipo moral ou existencial, que aqui chamamos de dialéticas. Essas falam mais ao “coração” (sentimento) que ao “espírito” (razão). Pois é no coração que se se encontram os maiores obstáculos à fé, que são as paixões, especialmente a soberba e a sensualidade. As razões morais visam persuadir a alma a se converter a Deus e a fazer sua vontade, e não apenas “fazer ver” as verdades da fé, como ocorre com as razões “metafísicas” ou “geométricas”. Essas, para Pascal, são inúteis e estéreis para o que mais importa: a salvação.53 Em síntese, diríamos: sobre Deus e o sentido, a certeza racional (apodítica) nos é dada pelo mundo, mas a segurança existencial (dialética) nos vem do desejo. Agora, para quem tem fé e está nela consolidado, todas as provas de Deus se mostram superadas, embora não canceladas. Pois esse então já não “pensa Deus”, mas “vê Deus”... “com os olhos do coração” (Ef 1,18). Prova então a Deus como prova um pudim: provando-o. Ora, quem provou Deus está de posse de uma apoditicidade toda sobrenatural, em virtude da qual dispensa toda e qualquerCerto, dor é sempre dor (e tal é o ponto de vista material), mas dor com sentido e dor sem sentido são coisas abissalmente diversas (e tal é o ponto de vista formal). Respondamos, por �m, à objeção radical segundo a qual a questão do sentido é uma falsa questão ou, pior, seria uma não questão. Para Nietzsche, por exemplo, ter uma �nalidade seria uma “escravidão” de que é preciso “se libertar”.7 Para ele, os “homens superiores” devem “esquecer o ‘por’”: “Nada façais ‘por’, nem ‘devido a’, nem ‘porque’. Precisais cerrar os ouvidos a essas palavras falsas”.8 A vida valeria por si mesma, como o jogo e a dança. Nessa ótica, as coisas não têm sentido, simplesmente porque não precisam ter. Elas são o que são. Seu sentido são elas mesmas. As coisas seriam, portanto, tautegóricas ou autorreferenciais. Discurso bonito, mas falso, insensato, um anóetos lógos, como diria o Filósofo e talvez também o Apóstolo (cf. Tm 1,14; Tt 3,3). Pois tudo ou quase tudo tem um �m ou um sentido. Só Deus, e somente Ele, não “tem”, em absoluto, um �m ou um sentido, justamente porque “é” o �m ou o sentido de tudo. Dizer que cada coisa é o que é, sem estar ordenada a nada, seria atribuir indebitamente a uma coisa relativa o que compete exclusivamente ao Absoluto: a asseidade ou absolutez. Em verdade, esse auto�nalismo é a pseudometafísica silenciosa dos hedonistas, que anseiam por gozar de cada coisa, alheios a qualquer consideração relativa às suas consequências e menos ainda a seu �m. É a canonização de um modo de vida totalmente antagônico à sabedoria milenar dos povos, que ensina a ter sempre os olhos no �m: In omnibus respice �nem. “De tudo é preciso ver o �m”, como a�rmava o sábio Sólon ao presunçoso rei Creso.9 Também a Escritura recomenda: “Lembra-te de teu �m e jamais pecarás”.10 2. “Niilismo”: semântica do termo através de seu uso Tomamos aqui “niilismo” na acepção geral e simples de “crise de sentido”, sem levantar questões sobre a propriedade conceitual daquele termo. Entendemos, outrossim, “crise de sentido” não como privação de todo sentido, como parece sugerir o termo “niilismo”, derivado justamente de nihil (nada), mas, antes, como inconsistência de sentido. Se aqui há nihil, não é nem pode ser como vazio de sentido, mas apenas como perspectiva segundo a qual o �m de tudo é o nada. Ora, se uma coisa vai dar em nada, é como se já não valesse nada mesmo. Mas por que então não usar, em vez de “niilismo”, palavras mais comuns, como “pessimismo” e “decadência”? É justamente porque “niilismo” evoca uma problemática eminentemente �losó�ca, enquanto diz respeito à natureza ou essência destas realidades fundamentais que são o ser, a existência, a vida, a razão, a liberdade, o mundo, o todo. Já “pessimismo” remete a uma questão de fundo psicológico, enquanto designa a tendência psicoemocional de destacar o lado negativo da vida. Por seu lado, “decadência” indica um fenômeno principalmente sociocultural: o de uma sociedade ou cultura que perde vitalidade e declina. Sem embargo, esses diferentes conceitos encontram-se, em geral, misturados, porque os distintos processos que eles evocam estão, na realidade, entrelaçados. Seja como for, dos três conceitos, o mais amplo e profundo é o “niilismo” (�losó�co). Ele inclui e, ao mesmo tempo, supera tanto o “pessimismo” (psicológico) quanto a “decadência” (cultural), ainda que tanto um como outra possam se dar foros de �loso�as, na medida em que tentam racionalizar de modo radical e sistemático suas respectivas posições. Devido ao alcance teórico de “niilismo”, preferimos usar aqui esse termo, embora, como advertimos acima, o usemos na acepção �losó�ca geral de “falta de sentido” ou, melhor ainda, de “crise de sentido”. Como evocado há pouco, niilismo, na acepção de hemorragia do sentido, mais do que um estado, é um processo, regido pela perspectiva �nal do nada de�nitivo, da morte irreversível. Nessa concepção, efetivamente, o nada, antes de ser o ato �nal de tudo, atravessa todo o ser, como a mortalidade perpassa a vida humana, antes ainda de se efetuar na morte. Esbocemos, agora, os vários momentos do processo niilista, momentos nem sempre lineares, mas acavalados ou mesmo rami�cados, parecendo antes formas de niilismo, em vez momentos. Tais momentos ou formas podem ser assim descritos. 1) Tudo começa com o imanentismo, termo �losó�co para a “paixão pelo mundo”, especialmente pelo “mundo do homem”: de seu poder, de sua razão e de sua liberdade. É a conversio ad criaturas agostiniana. 2) Depois, como postulado do valor exclusivo do mundo e principalmente do homem, surge o ateísmo, pelo qual Deus aparece como rival ou inimigo tanto do mundo e seu valor, como do homem e sua grandeza. É a aversio a Deo. 3) Aparece então o mortalismo, como consequência do ateísmo. Pois, se não há um Transcendente, também não haveria eternidade, mas apenas talvez o “eterno retorno”, que não passa, em verdade, de um mito religioso e um so�sma �losó�co. 4) Mas, se “amanhã morreremos”, então “comamos e bebamos”: eis, pois, o hedonismo, inclusive epicurista, como resultado mais imediato e ordinário de uma vida vista como efêmera, mortal. 5) Então, se tudo passa, é porque tudo é precário, �nito, relativo. Levanta-se então o relativismo ou, numa palavra mais pernóstica, o �nitismo, que diz: não há nada de in�nito, absoluto e eterno; tudo é �nito, relativo e temporal. 6) Segue-se daí a banalização das coisas, inclusive da vida e do ser humano, banalização que anuncia o “advento da era da frivolidade”, em que toda ação e relação se tornam levianas, fúteis, ocas, sem conteúdo, literalmente: nonadas. Finalmente, atinge-se o ato extremo que sela o curso niilizante, como a morte sela a mortalidade: o �m ou cessação de tudo, a aniquilação, o nihil triumphans. Portanto, segundo o pensamento niilista, por trás e no �m de tudo estaria “a medonha verdade do absurdo”.11 A existência teria o rosto da Górgona: petri�cante de horrendo. Esse é também um dos sentidos que se pode tirar do poema de Schiller: A imagem velada de Saís (1795).12 Fala-se aí de um jovem que, sedento da “verdade” (diríamos do sentido de tudo), que Ísis ocultaria sob seu véu numinoso, vai a Saís, cidade da deusa, entra à noite no seu templo e, com mão sacrílega, arranca-lhe o véu, mas cai como morto aos pés da imagem. Interrogado sobre o que viu, só consegue emitir balbucios incompreensíveis. Mas, se tudo acaba no nada, tudo vale ainda qualquer coisa? Se tudo, no fundo, é nada, tudo, no �m, é nada. É só uma questão de mais ou menos tempo. Se no �m o que espera a todos é a morte, que diferença faz viver mil anos, ou cem, ou dez? O destino �nal iguala a todos. Santo Agostinho estava convencido: “Não é longo o que tem �m”.13 Assim, se Adão tivesse vivido até hoje e “hoje morresse, teria vivido poucos dias, pois os terminou a todos”.14 Pascal é mais trágico: “Por mais belo que tenha sido o drama, o último ato é sempre sangrento: cobre-se a cabeça de terra e tudo se acabou”.15 Portanto, se o ato �nal é “niilismo” (atual), todo o processo anterior, em todos os seus momentos, será também “niilismo” (virtual), pois é do �m que o processo ganha sentido e, neste caso, um sentido negativo. Tal nos parece a lógica essencial do niilismo, e isso sem ainda discutirmos sua consistência �losó�ca, que, como veremos, é racionalmente insustentável, quer em seu princípio (ateísmo), quer em seu meio (�nitismo), quer em sua conclusão (mortalismo).16 II. ATUAL PATHOS NIILISTA E SUA INCIDÊNCIA SOCIAL No volume anterior (cap. IV), de�nimos a atmosfera de niilismo reinante na cultura moderna com a palavra “desesperança”. Dissemos que esta se manifesta, de modo particular, no tédio, na angústia e na depressão. Acrescentamos lá que o clima de niilismo se mostra em meia dúzia de sintomas que dão na vista: a própria depressão como doença, os suicídios em alta, a difusão das drogas, a desnatalidade deliberada, a banalização do sexo, assim como da violência, e ainda por outros sintomas, tais como a corrupção, o sincretismo e a frivolidade. Vamos agoraoutra prova, podendo assim ser chamada de “metapoditicidade”.54 Assim foi com Paulo, ofuscado pela luz do Ressuscitado e ganho de vez para Cristo, mas também com os Apóstolos depois da experiência da vinda do Espírito, ao a�rmarem, impávidos perante as ameaças de castigo: “Não podemos deixar de falar do que vimos e ouvimos” (At 4,20). E é assim, em geral, para todo o crente. Seguro da verdade de sua experiência interior, ele desa�ará todos os mundos, visíveis e invisíveis, com todos os seus elementos, e dirá com o Apóstolo: “Quem nos separará do amor de Cristo?”, e concluirá com inteira con�ança: “Absolutamente nada nos poderá separar do amor de Deus em Cristo” (Rm 8,31.39). Sem embargo, a convicção interior que tem o homem de fé, por maior que seja, não basta para imunizá-lo das ilusões que sempre o espreitam na esfera da subjetividade. Isso o obriga a se confrontar continuamente, seja com as razões objetivas que a fé, em sua positividade, dele requer, seja com a prova exterior dos frutos que toda fé coerente reclama (cf. Mt 7,15-20). Torna-se, assim, claro que o desejo de sentido tem sólidos títulos de racionalidade, fornecendo à busca pessoal de sentido um fundamento objetivo enquanto assentado na natureza mesma do humano. Assim também é posta em xeque a irracionalidade do niilismo, por mais que seus fautores pretendam sobrepujá-lo com as bravatas infantis do amor-ódio de um Nietzsche, de um Camus (“Não há destino que o desprezo não vença”) e, antes deles, de um Farinata (“Como se tivesse imenso despeito pelo inferno”).55 4. Superioridade do argumento noológico: seu caráter existencial Sem dúvida, o argumento do desejo de in�nito, por ser dialético, não tem o rigor formal do argumento apodítico. Mas isso não signi�ca que lhe seja em tudo inferior. Com efeito, o que mais importa na vida de um ser humano? Não é a liberdade, a justiça, o amor e a fé? Ora, tudo isso não cai sob a jurisdição da lógica demonstrativa e de seu rigor, mas da lógica dialética. Enquanto a primeira funciona bem no “reino da necessidade” e de seus determinismos, a segunda é a lógica adequada ao “reino da liberdade” e de suas determinações. O primeiro reino é o da natureza” (física), enquanto o segundo é o da existência (humana). Quem não vê que cada reino exige um tipo de argumentação própria, sendo o segundo, onde se põem as chamadas questões “existenciais”, muito mais importante que o primeiro, que é o das questões ditas “cientí�cas”? Ora, se a lógica do “reino da liberdade” vale para o mundo humano, vale in�nitamente mais para o mundo divino e sobrenatural, que é onde vigora a máxima liberdade e até mesmo a “Própria Existência Subsistente” (Ipsum Esse Subsistens). A lógica que aí vigora é a “lógica da fé”, cujas verdades são, falando em geral, mais vinculantes que as da razão. E não é por serem inferiores à razão que tais verdades não se podem demonstrar, mas é justamente ao contrário: é por serem superiores ou “metapodíticas”. Trata-se efetivamente aí de verdades “sobrenaturais”, que são, como tais, suprarracionais, não infrarracionais e menos ainda irracionais, sem deixar, contudo, de ser sumamente razoáveis. Demonstrá-las seria rebaixá-las, como ensina, com a clareza habitual, Santo Tomás: Quero, em primeiro lugar, te advertir de que, nas discussões contra os incrédulos acerca dos artigos da fé, não deves te esforçar por provar a fé através de razões necessárias. Isso derrogaria a sublimidade da fé, cuja verdade supera toda mente criada, não só humana, mas também angélica, sendo, antes, aceita por nós como revelada por Deus mesmo. (...) Portanto, a intenção do polemista cristão não é provar a fé, mas defendê-la.56 Até mesmo as famosas “cinco vias” desse Doutor, embora constituam provas demonstrativas da existência de Deus, por partirem do mundo objetivo e de seus determinismos, têm escassa e�cácia moral sobre o coração do homem. Por quê? Porque, embora sejam teoricamente coagentes, não o são na prática. Fazem mais apelo à razão que ao coração. São, antes, expressões da “verdade lógica” – a verdade ao modo grego: “adequação do intelecto com a realidade” – do que da “verdade existencial” – verdade ao modo bíblico: “adequação da vida com a verdade”. O próprio autor das “cinco vias” tem consciência de seus limites no plano humano ou existencial. Pois, embora a�rme claramente a possibilidade da via racional para Deus, reconhece realisticamente que ela é particularmente trabalhosa, acessível a poucos, além de alcançar resultados muito precários. É o que mostra precisamente no primeiro artigo da Suma teológica.57 Para ele, o acesso a Deus se dá muito mais pela via religiosa que pela via puramente racional. Nisso, o Angélico nada mais fez que exprimir o ponto de vista da Igreja, não por acaso dogmatizado segundo a formulação do mesmo Doutor.58 A Igreja sabe, por sua longa experiência pastoral, que não é na razão, mas no coração do homem que Deus encontra seu eco mais forte. É apenas a elite intelectual, não o povo em geral, que precisa passar pelo caminho da razão para acreditar em Deus. Isso, contudo, não a dispensa de adentrar, ela também, o caminho do coração, que é onde o ser humano se concentra, se assume por inteiro e decide seu destino. Se é assim, para atinar com a questão existencial por antonomásia, que é a do sentido, a via real é a via dialética, enquanto arranca do desejo de plenitude que lateja no fundo de todo o ser humano. Mais que provar racionalmente Deus, as provas dialéticas ajudam a prová-lo experimentalmente. Se Deus é “inteligível à mente”, é ainda mais “sensível ao coração”. E é justamente no coração do homem que o clamor por Deus ressoa com mais força. É aí, mais que no mundo, que o Criador deixou sua assinatura mais clara. Pois é aí que está efetivamente impressa a imago Dei. O desejo de in�nito aparece, pois, como a voz mais eloquente em favor da grandeza humana e de seu destino, como já tinha constatado Santo Agostinho.59 Baudelaire expressou a mesma ideia nestes versos: Sem dúvida, Senhor, jamais o homem vos dera Testemunho melhor de sua dignidade Do que esse atroz soluço que erra de era em era E vem morrer aos pés de vossa eternidade.60 Ora, se isso é verdade em relação à condição humana em geral, é-o mais ainda hoje, no atual momento histórico, quando testemunhamos uma nova sede de Deus como sentido efetivo do homem e do mundo. De fato, na cultura atual, vai-se delineando a alternativa supremamente determinante entre Fé e Absurdo, Religiosidade e Niilismo, Deus e Nada.61 E tudo indica que é o primeiro polo dessa alternativa que está tomando atualmente a dianteira. O “homem moderno” volta à razão, enquanto reconhece que pretender dar, sem Deus, sentido à vida é como querer inventar... a roda quadrada. 5. O desejo de in�nito visto à luz da fé Se o argumento eudemonológico ou noológico não serve para demonstrar a existência de Deus, serve para presumi-la como muito provável. É o que vimos e mostramos. Mas, uma vez admitida a existência de Deus, seja por razão, seja por fé, o argumento tirado do desejo de in�nito reforça, a posteriori, a convicção da existência divina. Tudo se passa como se Deus se tornasse evidente – não só intelectual, mas também existencialmente – apenas depois de acolhido na fé. À luz da fé, e somente a essa luz, �ca claro que, como diz S. Roberto Belarmino, o mundo inteiro não seria capaz de preencher o coração humano, justamente porque, sendo capax Dei, só poderá ser pleni�cado por Deus mesmo.62 Assim, a sede incontida de in�nito que arde no coração de cada ser humano aparece como a assinatura do Criador em seu coração: res mea. Em outra comparação, é o selo que Deus apôs na alma do homem, destinando-a a si mesmo: ad Deum. Se Deus infundiu em nosso coração o eros por Ele, foi para que fosse por nós buscado e Ele então pudesse se entregar a nós a �m de nos cumular com sua graça. Um dos grandes espirituais do grand siècle, o Cardeal Bérulle (+1629) dava graças a Deus por ter imprimido em nossa natureza o “movimento para Ele”, e isso desde que fomoscriados. E continuava: “É um movimento tão profundo e tão poderoso que a vontade não pode alcançá- lo para combatê-lo, o pecado cometido não pode freá-lo e o inferno não poderá destruí-lo”. Para aquele autor, o inferno consistiria justamente no con�ito intérmino entre esse movimento natural para Deus e o movimento da vontade livre contra Deus.63 O tormento do inferno torna-se assim uma prova a posteriori de quanto é objetivo nosso desejo de in�nito. O mesmo se pode dizer, agora em positivo, da felicidade eterna do céu. Para todo o ser humano que, rompendo o círculo estreito da razão, se abre às questões existenciais, a prova noológica, embora racionalmente limitada, tem um grandíssimo poder de esclarecimento e de convencimento morais. Mais que arrebatar a adesão da razão, ela cativa o coração. Efetivamente, Deus é, para o ser humano, importante demais para ser aceito apenas pela coerção lógica da razão. Se assim fosse, seria apenas um Deus adequado ao mundo e aos seus mecanismos anônimos. Seria, no dizer de Pascal, apenas “o Deus dos �lósofos e dos sábios”. Já o Deus dos homens e do seu coração só pode ser aquele que solicita e, ao mesmo tempo, respeita o livre-arbítrio. Esse é o Deus das religiões, como quer que se chame: Allah, Brahman ou mesmo Nirvana. Esse é, mais que tudo, o “Deus de Abraão, de Isaac e Jacó, o Deus de Jesus Cristo”, na expressão pascaliana. É, portanto, não apenas um Deus para se conhecer, como no deísmo, mas sobretudo um Deus para se amar, adorar e servir. 6. Fazendo o ponto do desejo de in�nito e de seu valor de verdade Após o laborioso percurso acerca do valor de verdade ou a força argumentativa do desejo de in�nito, podemos resumir os resultados a que chegamos nas três teses seguintes: 1. Contra os “projetistas” modernos, devemos sustentar que o desejo de sentido ou o “sentimento oceânico” se refere �nalmente ao Transcendente real. A razão mostra que o pontilhado daquele desejo leva a Deus. Deus é a �gura que encarna da maneira mais convincente o ideal do sentido absoluto. É, pois, por sua dinâmica intrínseca que o desejo de sentido insinua fortemente que Deus existe e que só Ele pode responder plenamente àquele desejo. Seria, de resto, estranho que houvesse um “sentimento oceânico” sem oceano real algum. Em suma, mesmo sem ser apodítico, o argumento do desejo de in�nito fornece, sim, uma prova, prova de tipo dialético, acerca da existência de Deus. Agora, para quem admite Deus, por fé ou por razão, o pontilhado do desejo de in�nito desdobra-se em convicção moral e, mais ainda, em certeza espiritual absoluta. 2. Agora, contra os eudemonologistas apressados, devemos sustentar que o desejo ou senso de felicidade ou de sentido designa Deus apenas de modo vago e geral. Ou seja, a partir desse desejo ou senso não podemos rigorosamente demonstrar a existência de Deus, mas apenas prová-la dialeticamente. Isso já é muito, pois, dado que a questão do sentido é uma questão mais moral que racional, as provas dialéticas se prestam melhor para esse tipo de questão. A questões existenciais há que responder de modo existencial. 3. É só a partir da realidade do mundo que se pode demonstrar a rigor a realidade de Deus. Mas, uma vez admitida a existência de Deus, quer por argumentação racional (dialética e mesmo apodítica), quer por aceitação de fé, �ca também claro que somente Deus, e mais ninguém, pode responder ao desejo de sentido absoluto, por outras, ao “sentimento oceânico”. Pois só Ele é efetivamente, no dizer de S. João Damasceno, o “oceano sem praias da substância”.64 Só o Absoluto responde ao absoluto. III. SISTEMA DE RESPOSTAS PARA A QUESTÃO DO SENTIDO 1. Cinco respostas �nitas à busca de sentido in�nito: os “cinco er” Vimos que o desejo do sentido pleno é natural; que, por ser natural, esse desejo é objetivo, não projetivo; e que todo homem busca ex necessitate um �m último para sua vida, �m que lhe confere “o” sentido da vida. Há, pois, no homem como que uma injunção estrutural, que é a de “ultimar” o sentido de sua vida. Agora vem a pergunta: Onde o homem “ultimará” seu bem último, o sentido último de sua vida, en�m, sua felicidade? Essa é a verdadeira, grande e decisiva questão. Em que consiste, pois, concretamente o sentido último e pleno da existência? Que nome tem? Como se vê, para responder à questão do sentido, passamos agora do plano formal e abstrato, além de coagente, para o plano material e concreto, além de livre. Como respostas à questão do sentido ou da felicidade, encontramos, em primeiro lugar, aquelas que são radicalmente imanentes ou �nitas. Essas respostas põem o sentido ou a felicidade em valores sensíveis. Elas poderiam se enfeixar sob o título de hedonismo, tenha ele a forma mais vulgar do “comamos e bebamos”, própria dos homens-massa, ou a forma mais so�sticada do “desfrutar o melhor da vida”, típica das classes “educadas”. Seguindo uma longa tradição �losó�ca, são fundamentalmente cinco as respostas imanentes que se dão à questão do sentido ou da felicidade. De vez que, em português, todas elas terminam em “er”, chamemo-las didaticamente os “cinco er”, que seriam: prazer, poder, ter, parecer e saber. Descrevamo-las de forma breve, antes de discernir in totum sua capacidade de colmatar o desejo de sentido. 1. Prazer. Essa é certamente a face mais clara e comum, para não dizer vulgar, com que aparece o ideal de felicidade. Na cultura atual, esse ideal tem sua expressão privilegiada no sexo e, em conexão mais ou menos aleatória com ele, na paixão amorosa.65 Tomado como ideal, o prazer erotico-sexual nos leva a um nível infra-humano. 2. Poder. Depois do prazer, o poder se apresenta como o rosto mais atraente da felicidade. Se o ideal do prazer é mais popular, o do poder é mais elitista. E, ao contrário do prazer, o poder como ideal eleva o homem acima de seus limites, na busca de “ser como Deus”, produzindo, assim, os mais graves efeitos. 3. Ter. Possuir bens materiais é o ideal do avarento e do ganancioso. Divinizado como Mamon, o dinheiro se oferece como a materialização da felicidade ou, melhor, como o grande meio para lá chegar. O ideal de acumular riquezas é potentemente favorecido por um sistema capitalista não social e juridicamente enquadrado.66 4. Aparecer. Incluímos sob esse termo a busca da fama, da honra e da glória. É o ideal das modelos, artistas e atletas. Mas a preocupação por aparecer é geral na cultura atual, com seu “culto do corpo” e a difusão da autoimagem pelas novas mídias. 5. Saber. Tomamos aqui essa palavra em sua acepção hoje dominante: o conhecimento técnico-cientí�co, voltado utilitariamente para a dominação das coisas e das pessoas. Contudo, esse ideal de vida, por requerer altos custos �nanceiros e intelectuais, é apanágio de pouca gente, se bem que permaneça como objeto geral de admiração e louvor. 2. Nada de �nito pode satisfazer o desejo de in�nito Diante dessas �guras de ideais de vida, a pergunta é: Poderiam elas dar uma resposta adequada à busca de felicidade e, portanto, ao desejo de sentido para a vida? Por pouco que se re�ita, a resposta é não. E isso pela simples razão de que se trata aí de valores �nitos, absolutamente insu�cientes para preencher um desejo in�nito. São respostas limitadas para uma pergunta ilimitada. Entre pergunta e resposta subsiste, pois, uma desproporção insanável. A resposta aqui é claramente imanente e secular, enquanto a pergunta é inegavelmente transcendente e espiritual. Daí porque todas as saídas enumeradas são fatalmente decepcionantes, frustrantes. Os incrédulos de hoje o sabem e, por não verem outra saída, se conformam. Essa resignação lúcida é, para eles, a única atitude realista, corajosa e adulta num mundo que creem desencantado, deserto de Deus. Mas existem também muitos crentes que, em sua vida prática, optam por aquelas respostas limitadas. Assim o denuncia Paulo: “Muitos dentre vós se comportam como inimigos da cruz de Cristo. Seu deus é o ventre e seu �m é a morte. Só buscam o que é terrestre” (Fl 3,18-20). Tais cristãos admitem na teoria a lei doReino do céu, mas vivem na prática sob o regime do Reino da terra. Apostam no espírito, mas “militam segundo a carne”, na expressão do mesmo apóstolo (2Cor 10,3). Essa incoerência é chamada pela consciência cristã de “pecado”, e “pecado mortal” quando rompe com a fonte de todo o ser, que é também o sentido último de tudo: Deus. Mesmo nesse caso, a fé nunca é vã. Ela guarda ainda e sempre um sentido: o de ser um princípio latente de mudança e redenção, como ensinou o Concílio de Trento: Se alguém disser que, perdida a graça pelo pecado, juntamente se perde sempre também a fé; ou que a fé que resta não é verdadeira fé, por não ser viva; ou que aquele que tem a fé mas não a caridade não é cristão: seja anátema.67 Tal é a vantagem, coeteris paribus, do crente, embora pecador, sobre o incrédulo. É a vantagem de quem perdeu o caminho, mas sabe ainda para onde vai; diferentemente do incrédulo, que perdeu não só o caminho, mas até o destino de seus passos. 3. O logro da idolatria secular: tomar o in�nito potencial pelo in�nito real Mas, por que o ser humano se engana ao colocar nos valores �nitos a resposta ao seu desejo in�nito de sentido e felicidade? Por que ele “ultima” o sentido num bem �nito em vez do in�nito? É por causa da semelhança que existe entre o �nito e o in�nito, entre a criatura e o Criador – em suma, entre o êidolon e o êidos. A razão, seduzida pelas projeções da imaginação, toma uma coisa pela outra. Em virtude desse mecanismo de assemelhação, acontece frequentemente que os poderosos se tenham por deuses, os ricos se achem onipotentes, as beldades se façam chamar de divas, os intelectuais se tomem por oniscientes e os libertinos julguem o sexo o paraíso das delícias. Como explica o Angélico, de per si, o desejo de objetos limitados é limitado e se satisfaz com tais objetos, como aparece claramente nos animais, que, quando satisfeitos em seu apetite de alimento ou de sexo, não pedem mais. Isso não acontece nos seres humanos, precisamente pelo fato de que nesses a razão interfere na pulsão instintiva, esperando desta a satisfação plena por que a razão naturalmente anseia. Nisso, com toda a evidência, eles se enganam, por tomarem aí o �nito do prazer sensível (no caso, os da cama e mesa) pelo in�nito de Deus.68 Esse engano se veri�ca também no caso da paixão amorosa (caso individual), assim como no da luta revolucionária (caso social). Uma e outra dessas experiências são concebidas e vividas como a solução do problema humano e social, respectivamente. Tanto o apaixonado como o revolucionário sonham com o paraíso: o primeiro costuma chamá-lo de “felicidade”, e o segundo, de “utopia”. Devido ao estado de exaltação em que se encontram, os apaixonados e os revolucionários assomam como os devotos mais ardentes e �éis para com seus respectivos ídolos. O mesmo logro atinge os ideólogos do “progresso”. Identi�cando-o com o mero “crescimento” material (técnico, econômico e militar), consideram- no como su�ciente para fazer uma sociedade de homens felizes. Ignoram que o verdadeiro progresso para uma sociedade de humanos consiste no “desenvolvimento” que corresponde à natureza ética e espiritual dos próprios humanos, como advertiu o papa Paulo VI.69 Eis, nessa linha, uma página inédita de L.-J. Lebret, assessor de vários papas para as questões sociais e redator da encíclica Pacem in Terris: Os homens se jactaram com o termo progresso. Puseram-no em todos os molhos. (...) Mas ninguém tinha realmente, ou inteligentemente, o cuidado do progresso humano. A humanidade capitulou diante da tarefa mais essencial: o progresso equilibrado, o progresso total, que leva em conta, a cada momento, os homens concretos, seu tamanho, os ritmos fundamentais de sua vida, suas necessidades de família e de amizades, sua necessidade de evasão e de grandeza, sua necessidade de sinceridade e de aventura, sua necessidade carnal e espiritual, sua necessidade das coisas e sua aspiração por Aquele que é o princípio das coisas.70 Mas por que a assemelhação com o divino, em vez de operar em favor do Deus vivo e verdadeiro, o que seria mais razoável, opera, ao contrário, em favor de um ídolo? Por outras, por que a semelhança que a ideia de sentido tem com a de Deus leva a mente humana em direção à ilusão e não à verdade? Por que o mortal se engana numa matéria assim tão determinante para seu destino de�nitivo? En�m, por que o ser racional busca o sentido e a felicidade fora de Deus, quando sua razão e mesmo sua intuição julgam que só n’Ele se encontram essas coisas? Árdua é a resposta, não sendo este o lugar para aprofundá-la. Digamos apenas que o engano aqui se deve à força da paixão que assedia o homem e lhe obscurece a razão. Tal força se agrava numa cultura infensa à dimensão espiritual da vida, como é a nossa. Se, para os medievais, o céu ou a vida eterna era, sem contestação, o sentido último da vida, para os “modernos” é a terra e o que nela se passa. Ademais, lateja no fundo de todo homem o dilema, em virtude do qual o sentido espiritual, por certo, nos atrai, mas o sentido carnal nos seduz. Esse drama foi bem descrito por Paulo (cf. Rm 7,14-24; Gl 5,16-25). Se perguntamos agora por que o homem se encontra assim tão profunda e intimamente dividido, a fé responde falando na queda primordial.71 Tal é, mesmo do ponto de vista racional, a hipótese mais convincente para explicar a condição dramática em que vive o ser humano e que a tradição chamou de “estímulo para o pecado” (fomes peccati) ou simplesmente “concupiscência”. Seja como for, podemos a�rmar que o in�nito do desejo sensível, não importa a forma que revista entre os “cinco er”, é um “mau in�nito” (Hegel). É um in�nito meramente potencial, porque limitado à matéria. De fato, a uma quantidade determinada sempre se pode acrescentar mais um, e assim inde�nidamente, num processo ad in�nitum. Mas esse é, em verdade, um in�nito frustrante, desesperador, infernal. Ao contrário, o “bom in�nito”, que realiza o desejo do coração humano, é o in�nito real, atual, pleno. In�nito é justamente o nome �losó�co que muitos �lósofos deram como próprio de Deus, desde Anaxágoras com seu ápeiron, até Descartes, passando por Duns Scotus.72 Por sua parte, o Angélico explica que Deus é “in�nito” no sentido negativo de “sem limite” (sendo Ele o In�nito ontológico ou qualitativo, portanto, o “bom in�nito”), não, porém, no sentido privativo de “sem forma” (caso em que seria o in�nito matemático ou quantitativo, portanto, o “mau in�nito”). Assim, pelo fato de que Deus é a forma puríssima, sem matéria alguma, ou seja, a “forma subsistente por si mesma”, e porque “a forma é o princípio de conhecimento”, Ele é o ser “maximamente cognoscível por si mesmo”, não, porém, “para nós”. Com efeito, Ele é tão luminoso que, diante d’Ele �camos ofuscados como a coruja diante do sol.73 Agora, quando o �nito é tomado e tratado pelo que é, ele pode dar um sentido, igualmente �nito, à vida. É o que sucede com a dupla “família e trabalho”, lote da maioria dos mortais. Mas para que o �nito seja tratado como tal, ou seja, para que seja visto em sua verdade �nita, importa admitir o In�nito real como sua medida reguladora. Trata-se, porém, aqui de um In�nito considerado não apenas como ideia, a “ideia reguladora” do idealismo kantiano, mas como a Realidade mais sólida, tal como a postula todo sadio realismo. De tudo isso emerge a grande alternativa a que todo homem é implacavelmente confrontado: ou o In�nito verdadeiro ou o in�nito falso; ou a Realidade transcendente ou seu ersatz; em suma, ou Deus ou o ídolo. Não há como fugir. Quem foge já decidiu, e decidiu mal. 4. O dever moral, o “sexto er”, como resposta à questão do sentido Examinamos até agora as saídas deste mundo para o sentido e a felicidade, que chamamos os “cinco er” e que se condensam no hedonismo, vulgar ou chique que seja. Precisamos agora nos debruçar sobre a ética. Pode a ética dar sentido à vida, sentido que seja satisfatório? No plano social, hoje privilegiado, há quem veja o sentido da vida no compromisso com a justiça,a paz e a ecologia, com a luta pelos Direitos Humanos; em suma, com o amor ao próximo, especialmente aos pobres e sofredores. Já no plano individual, aparece a integridade ética como um ideal de vida, louvado e admirado hoje como ontem. Foi em torno desse ideal que se construíram as grandes sabedorias de vida, como o budismo e o jainismo, o confucionismo e o taoísmo, além de sólidos sistemas éticos, como o estoicismo, o farisaísmo, sem excluir o kantismo. O próprio Paulo não hesitou a considerar a “sindérese”, isto é, a consciência moral, um digno substituto da lei divina para os “pagãos” (cf. Rm 2,14-15). Chegou mesmo a compendiar toda a lei divina no preceito ético: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Rm 13,9; Gl 5,14). Até Jesus parece ter resumido “a lei e os profetas” num preceito moral único: “Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles” (Mt 7,12), além de ter feito da misericórdia em favor dos necessitados o critério de salvação (cf. Mt 25,31-46; Lc 10,25-37). Situando-nos do ponto de vista da subjetividade, digamos logo que a resposta especi�camente ética à questão do sentido e da felicidade não é, por certo, falsa, mas é claramente insu�ciente. Ela também é uma resposta �nita, enquanto circunscrita aos horizontes do mundo. Ela dá certamente sentido à vida, mas apenas até certo ponto. Efetivamente, o comportamento moral, quer no âmbito individual, quer social, está longe de trazer a felicidade por que anseia o coração humano. Antes, provoca, não poucas vezes, incompreensão, perseguição e mesmo morte. É verdade: o agir ético confere algo de inestimável: a paz da consciência, pelo que Cícero considerava a virtude como “recompensa de si mesma”.74 Não obstante, o ideal puramente ético, conquanto bem-sucedido na terra, acaba no �m vencido pela morte, “matada ou morrida” que seja. Esse é seu limite fatal. Daí que, privado de uma dimensão transcendente, o ideal ético só pode conferir um sentido imanente à existência humana. Desta forma, a ética não tem como aplacar o desejo do homem, o qual busca incansavelmente um sentido in�nito e realmente transcendente. O ideal ético da vida, em que pese sua superioridade qualitativa sobre o hedonista, na medida em que é falto do transcendente, permanece, ele também, preso ao cárcere da imanência. Isso nos obriga a acrescentar à lista dos cinco “er” imanentes mais um “er”: o “dever”, apesar de sua especi�cidade. Pelo que passaríamos agora a ter a fórmula “5+1 er”, expressão que, se por um lado põe o dever na lista das respostas imanentes à questão do sentido, por outro, permite dar-lhe o destaque que merece em relação aos outros “er”. Mesmo assim, é preciso observar que, como acontece com qualquer outro “er”, o dever, entendido a título de ética puramente intramundana, corre também o perigo de se degradar em ersatz do absoluto, seja no âmbito do cotidiano, seja no social. No âmbito do cotidiano, essa perversão acontece quando o senso do dever, perdendo toda �exibilidade, subverte a hierarquia dos valores, como ocorreu com o legalismo farisaico, veementemente censurado por Jesus: “Ai de vós escribas e fariseus hipócritas! Pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e desprezais os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a �delidade” (Mt 23,23). Já no âmbito social, a deformação da ética, como resultado de sua absolutização, é mais grave e é por isso também mais evidente. É o caso das grandes ideologias que seduziram os espíritos nos dois últimos séculos e cujos ideais foram de tal modo majorados que se transformaram em ídolos, e ídolos sangrentos. Assim, o ideal radicalizado da liberdade fez surgir o liberalismo, o amor imoderado da justiça pariu o comunismo; a paixão pela própria nação, o fascismo e outros nacionalismos; e o fervor místico pela própria raça, o nazismo. Tais são os resultados funestos em que redundaram os valores éticos quando dissociados de Deus e de sua lei. Até aqui intentamos refutar a tese de que a ética constituiria a substância do sentido ou da felicidade. Fizemo-lo usando o método indutivo, isto é, a partir dos efeitos de sentido da via ética, efeitos esses que vimos serem limitados e até mesmo perigosos. Sem embargo, pode-se também refutar a mesma tese de modo dedutivo, isto é, partindo da essência da ética, como fez Santo Tomás. Ele mostrou efetivamente que a ética não pode constituir o sentido ou a felicidade da vida, argumentando que a ética não existe para si, mas para outra coisa. De fato, ela estaria, em primeiro lugar, a serviço da paz individual e social. Em segundo lugar, por ser essencialmente ação e esforço interior, a ética se ordenaria não a si mesma, nas ao descanso e à contemplação fruitiva. Em terceiro lugar, ela teria por meta suprema a paz com Deus na comunhão de amor com Ele.75 Para Tomás, tudo isso mostra, com toda a evidência, que, em relação ao sentido, a ética é tão somente funcional. Por outras, ela mesma não constitui a essência do sentido ou da felicidade, mas é apenas um meio para isso. De fato, para o Angélico, as chamadas “boas obras” não são a substância da felicidade, ou seja, do sentido transcendente, mas seu caminho.76 De resto, a II parte da Suma teológica, que trata da moral, arranca da ideia de felicidade como sendo a �nalidade última do homem, a qual por sua vez se encontra apenas na comunhão com Deus (I-II, q. 3- 4). Mostra em seguida que, para chegar lá, o homem precisa se mover através das virtudes morais e, mais ainda, das teologais (I-II, q. 5, a. 7). Com isso torna-se claro que a ética não é da ordem dos �ns, mas dos meios para um �m superior. Ela não é o sentido-�m, mas apenas o sentido- direção. Sem dúvida, é particularmente no agir ético que o ser humano vive “como se” o sentido, a felicidade e Deus mesmo existissem. Efetivamente, no agir ético o homem experimenta um senso misterioso do in�nito e do eterno, sem cuja virtude ele não se disporia sequer a levantar o mindinho, como se exprimiu Teilhard de Chardin. Cícero, por sua parte, estava convencido de que, se o homem chega a ponto de dar a vida para construir a cidade temporal na justiça, é porque ele se sente movido pela convicção obscura de estar construindo a cidade eterna.77 Se é assim, seria, por acaso, correto a�rmar que, do ponto de vista objetivo, a ética oculta, em seu fundo, um ideal religioso, podendo assim dar um sentido transcendente, ainda que implícito ou atemático, à vida? De fato, não é a consciência o “primeiro vigário de Cristo”, como a�rmou Newman?78 Não ensina a Igreja que um ateu que segue sua consciência não o faz sem a graça, estando, pois, no caminho da salvação (cf. LG 16)? Não a�rmou Cristo que as “obras de misericórdia” em favor de seus “irmãos menores” são feitas em realidade a Ele mesmo e dão assim acesso ao Reino da glória (cf. Mt 15,31-46)? Em relação a essa laboriosa questão, basta aqui dizer que as proposições que apenas vimos e que põem um nexo estreito entre ética e salvação têm caráter apenas assertivo, não conclusivo. Pois, para a Escritura – mas isso vale também para a simples razão –, a ética, conquanto necessária, de modo nenhum é su�ciente para a realização plena do homem. Como sempre ensinou a Igreja e como explicou o Angélico logo no primeiro artigo da Suma, o ser humano, para chegar ao seu destino transcendente, precisa ainda da religião e mesmo da revelação.79 5. Só o In�nito real pode satisfazer o desejo natural de in�nito Vimos que, seja lá o que digam os optantes da �nitude ou do devir, o desejo de in�nito não deixará nunca de aguilhoar o coração humano, não importa se manifesto ou latente, se sabido ou ignorado, se assumido ou reprimido, se alimentado com o pão da terra ou com o maná do céu. Dissemos também que nenhuma realidade imanente pode responder ao desejo natural de um sentido transcendente, a não ser de modo ilusório e mesmo pervertido, que é quando o imanente se disfarça de transcendente. Em suma, a meta última do desejo só pode ser o metassentido ou, melhor, o suprassentido. Resta, porém, saber se o suprassentidoé Deus mesmo. E a resposta aqui é positiva e só pode sê-lo, como, de resto, já mostramos. De fato, só um ser transcendente real, atual e pleno pode satisfazer real, atual e plenamente a sede natural de sentido. Ora, tal transcendente real é e só pode ser Deus mesmo. Portanto, à exclusão de todas as hipóteses imanentistas, resta que só a “hipótese Deus” pode responder satisfatoriamente à busca de um sentido transcendente. Portanto, o suprassentido, postulado pelo desejo de transcendente, só pode ser o próprio Transcendente: Deus. Podemos assim tirar a equação: sentido = Deus. Antecipando o que deveremos tratar de modo amplo no capítulo VII, digamos sinteticamente que a equação acima representa a conclusão tanto de uma prova dialética quanto de uma apodítica: de uma prova dialética, enquanto o próprio desejo natural de sentido in�nito faz suspeitar seriamente da existência real desse in�nito; e de uma prova apodítica, enquanto pressupondo ser demonstrado, a partir do mundo objetivo, que Deus existe, �ca igualmente demonstrado que só Ele pode saciar plenamente o coração humano, como faz, de resto, Santo Tomás ao discutir a questão da felicidade.80 Efetivamente, se Deus realmente existe, o sentido último só pode ser Ele mesmo. Desse argumento segue o corolário: somente quem admite Deus, por razão ou por fé, pode dar um sentido cabal à sua vida. Vimos há pouco que o poeta Paul Valéry, partindo da premissa “se Deus existisse, eu seria feliz”, concluiu, melancólico: “Mas Deus não existe e eu não sou feliz”, enquanto o crente chega, exultante, à conclusão oposta: “Deus existe, e eu sou feliz”. Ao termo deste percurso, no qual examinamos as alternativas dadas à questão da felicidade e do sentido, e em que concluímos que Deus e só Ele é a resposta satisfatória àquela questão, devemos acrescentar mais um “er” aos outros seis, que seria o “crer”. Teríamos, assim, a fórmula mnemotécnica �nal das 7 (sete) respostas possíveis à referida questão, e que seria: “5+1+1=7 er”, onde: 5 (cinco) seriam as respostas clara e totalmente imanentes e que, por serem tais, só podem constituir respostas inadequadas, se não ilusórias, a uma questão transcendente; 1 (uma), a resposta ética, que, embora transcendente tanto em sua raiz quanto em sua intenção objetiva última, é imanente em sua realização e, por isso, incompleta; e �nalmente 1 (uma), a resposta religiosa ou da fé, a única objetivamente consistente e subjetivamente satisfatória, porque dá efetivamente uma resposta transcendente a uma questão transcendente. Acrescentemos que essas sete opções de sentido podem-se reduzir às três grandes respostas clássicas que foram dadas na história do Ocidente à questão da felicidade ou do sentido, respectivamente a do epicurismo, a do estoicismo e a do cristianismo. A resposta do epicurismo, privilegiando o “prazer”, recolhe as cinco primeiras opções; a resposta do estoicismo, centrada no “dever”, designa a opção ética; e a resposta do cristianismo, expressa no “crer”, representa a opção religiosa ou espiritual. 6. Sete teses para resumir o capítulo III em suas duas partes Ao termo da longa e laboriosa re�exão que ocupou todo o capítulo III, em suas duas partes, retomemos tudo e sintetizemos em poucas teses o resultado �nal a que chegamos. Relembremos, antes disso, os termos da questão, tais como os propusemos. Dissemos, pois, que existe uma correspondência logicamente progressiva entre as ideias de: �m último => sumo bem ou valor supremo => felicidade => sentido. Condensando: �m último => sentido. Retomada essa clari�cação semântica prévia, venhamos às teses. Tese 1: Existe indubitavelmente em todo o ser humano o desejo de sentido, como se prova pela análise �losó�co-antropológica da vontade, con�rmada pelos testemunhos da experiência humana, quer individual, quer social, especialmente aquela registrada pela grande literatura. Tese 2: O desejo de sentido, por ser natural, não é meramente projetivo ou fruto da ilusão, como pensam muitos modernos. Antes, o desejo de sentido tem tudo para ser objetivo, mostrando que o sentido a que aponta deve existir realmente. Tese 3: Nada de �nito, seja de natureza física, emocional ou mesmo ética, pode satisfazer o desejo de sentido e de felicidade. Pois todas essas realidades, sendo �nitas, não se podem comensurar com o desejo in�nito que lateja no coração de todo o ser humano. Tese 4: Só o Deus vivo e verdadeiro, por ser o In�nito real, pode realmente preencher o vazio hiante que todo homem sente em seu peito. E é justamente da intensidade dramática desse sentimento que irrompe, inelutável, a fortíssima presunção de sua verdade objetiva. Tese 5: Para o ser humano, o desejo de sentido pleno não é sem mais o desejo de Deus, como parecem dizer os fautores da “abertura transcendental ao transcendente”. É, sim, desejo de Deus, mas de modo confuso, podendo por isso mesmo ser confundido com outra coisa, como o dinheiro, o sexo ou a fama. Daí a necessidade de um juízo e uma opção pessoais que não sejam só éticos, mas também de fé. Tese 6: O desejo da plenitude de sentido, se não demonstra a rigor a existência de Deus, como sustentam os eudemonologistas ou noologistas, fornece, contudo, uma prova dialética daquela mesma existência. A demonstração rigorosa da existência de Deus só se dá por fora do desejo, no extra animam, ou seja, indutivamente, partindo da realidade do mundo. Mas, uma vez demonstrado Deus, pode-se também demonstrar que Ele é o sentido pleno da existência. Tese 7: Contra os “projetistas” modernos, é possível, sim, provar dialeticamente que o desejo de sentido desenha em pontilhado Deus mesmo. Por ser instintivo e universal, esse desejo não é puramente imaginário, mas visa certa objetividade. Depõe, assim, em favor da realidade de Deus como termo último a que aponta e aporta o desejo humano. Este é um argumento probatório, de tipo dialético, que tem, entretanto, mais força moral sobre o ser humano a respeito de Deus que qualquer outro argumento apodítico, porque fala mais ao coração que à cabeça. Apontando decididamente para Deus, constitui a resposta mais adequada à questão existencial mais alta: a do destino humano. IV. SCHOLIA 1. Versão tardo-moderna das respostas imanentes à questão do sentido Vejamos como se apresentam especi�camente em nossos dias as respostas imanentes à questão da felicidade ou do sentido. Deixando de lado o chamado povo-massa, entidade nunca ausente no curso da história e para a qual a felicidade consiste no hedonismo vulgar do “comamos e bebamos”, assim como aquela parte do pós-moderno que se mostra aberta à dimensão espiritual da vida, concentremo-nos na elite tardo-moderna ou pós-moderna, como se queira chamá-la, aquela que produz e divulga os ideais dominantes da cultura. Para essa elite, dita culta, o desejo de sentido absoluto, se bem que insaciável, seria um desejo de per si absurdo e frustrante. Para ela, isso que a cultura popular desde sempre chama de céu e considera como símbolo da plenitude bem-aventurada e sempre sonhada pelo coração humano, isso não existe na realidade. Segundo ela, depois da ruptura decisiva e sem precedentes que foi a “morte de Deus”, o céu se acabou. Só sobrou este mundo, o único mundo real, o qual, infelizmente, não está feito à medida do desejo humano. Por isso mesmo, a vida humana é absurda, aporética, falimentar, trágica. É assim que se expressa o �lósofo niilista. Uma visão tão pessimista só pode gerar uma atitude de conformismo e resignação diante da vida. É o ethos do “�nitismo” dos modernos. E isso em nome da “realidade” e em desa�o a todas as “ilusões” da metafísica e da religião. O “moderno” é um asceta de tipo estoico, enquanto renunciou, de caso pensado, a todo desejo expresso de felicidade. Desesperou conscientemente de qualquer satisfação transcendente, chame-se felicidade, imortalidade, salvação ou, simplesmente, céu. Tal é a conclusão lógica de sua visão fundamentalmente materialista ou mortalista da vida. Reconheçamos que se trata de uma visão amarga da vida, sob a qual se esconde,em verdade, algo da reação despeitada da raposa de Esopo, a qual, não podendo alcançar as uvas cobiçadas, declara-as verdes. A conclusão prática a que aporta essa visão não pode ser outra: “Vamos cuidar da vida e aproveitar o que ela tem de bom”. Pelo que se vê, o moderno pós-ideológico é um renunciante, mas não em função da libertação espiritual, como é o caso do sannyasi, mas em função de um hedonismo chique: o presentismo elegante e re�nado. O presentista esnobe busca a eternidade no instante, enquanto considera as coisas boas e agradáveis da vida – como costuma dizer – “eternas enquanto duram”. A única transcendência em que acredita é a transcendência horizontal, emergente e em ascensão contínua. Tendo efetivamente deixado para trás a ideia de revolução, decidiu pelo melhorismo permanente. Nisso concordam pensadores modernos tão diferentes como Th. Adorno e L. Ferry. E, ainda que admitam saltos dialéticos e passagens de patamar, a transcendência deles é deste mundo e dá-se sempre neste mundo. Existe, porém, hoje uma raça particularmente radical de niilistas. Enquanto os niilistas modernos podem ser chamados de “ascetas do absurdo”, já os tardo-modernos são os “místicos do absurdo”. Se os primeiros se apresentam graves e taciturnos, estes se querem joviais, quase dançantes. Vattimo, por exemplo, tece o “elogio do niilismo”, propondo-o como o novo evangelho que abriria ao pós-moderno as portas de uma vida criativa e intensa. Kundera vai ainda mais longe: dá “vivas à insigni�cância”, declarando-a “a essência da existência” e prescrevendo como receita à vida insigni�cante a arte de amá-la assim mesmo. Que lógica: resolver um absurdo com outro! Ouçamo-lo: A insignificância é (...) a essência da existência. (...) Isso exige muitas vezes coragem para reconhecê-la (...) e para chamá-la pelo nome. Mas não se trata apenas de reconhecê-la, é preciso amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la.81 Como se vê, todos eles são epígonos de Nietzsche e, como tais, nada mais fazem que reciclar, como já �zera seu mestre, o velho amor fati dos estoicos. Como dissemos, tal proposta não passa de masoquismo metafísico, que mal esconde um desespero surdo e resignado. Contra o absurdo, de nada adianta apelar para o heroísmo, como persistem em fazer os pensadores niilistas.82 Esse seria sempre um heroísmo sem causa e estúpido, resultando mais absurdo que o absurdo contra o qual se levanta. O que ainda impede a �loso�a niilista de, em sua lógica, arrastar seus fautores à autodestruição é o “desejo natural” de felicidade que pulsa secretamente no seu mais profundo. Trata-se de um instinto obscuro, de uma intuição misteriosa, en�m, de um “senso do sentido”, que é efetivamente muito mais forte que todas as razões sofísticas que se podem levantar contra ele. Houve, no passado, pensadores cujas �loso�as se aproximam deste ideal �nito da vida. Contudo, os antigos guardavam ainda uma atitude comedida, conquanto triste, perante a vida. Não ostentavam, por isso, a pose trágica e despeitada dos tardo-modernos. O Eclesiastes, por exemplo, recomenda gozar das coisas boas da vida, mas não deixa no �m de lembrar o dia do juízo (Ecl 12,13-14). Exceto por sua perspectiva escatológica, o Eclesiastes se aproxima do antigo texto egípcio (do II milênio a.C.) intitulado “Diálogo do desesperado com sua alma”, para o qual, já que não se sabe nada do outro mundo, o melhor é aproveitar o bem que este mundo oferece. Do mesmo modo, na Grécia, o poeta Simônides ensinava que o “homem deve se ocupar do que é humano, e o mortal do que é mortal”, aconselhando deixar as coisas divinas e imortais para os deuses imortais. Nisso o seguem �guras como Ésquilo, Eurípides e Píndaro. Mesmo se, opondo-se a Simônides, Aristóteles tenha proposto a imitação de Deus através da atividade meditante, seu ideal de vida revela-se ainda muito limitado, como observa seu admirador, Tomás de Aquino, para quem a felicidade não está, como queria o �lósofo, em “contemplar como Deus” o quanto possível, mas, sim, em “contemplar a Deus mesmo”, o que só é possível na outra vida, coisa que passou longe da mente do Estagirita,83 levando seus estudiosos, como Aubenque e Boulnois, a falarem do aspecto trágico da ideia aristotélica de felicidade. Na Roma imperial, Horácio prega a renúncia a toda ambição, fosse ela mundana ou espiritual, por um ideal que chamou de aurea mediocritas. Cícero não �ca atrás, ao a�rmar que o homem deve �car “contente dentro dos limites da natureza”. Lucrécio não é de outra opinião.84 Saltando para o século do Iluminismo, sabemos da fórmula com que Voltaire resumia a sabedoria da vida: “cuidar do próprio jardim”. Mais perto de nós, Carducci, perante o irresoluto “enigma do universo”, manda “cuidar da vida”, consigna moral que apenas se distingue da hedonística “goze da vida”.85 Já o tardo-moderno típico, radicalizando essa posição, desistiu de se elevar em direção ao céu, para se instalar de�nitivamente nos estreitos horizontes da terra. Ignorante de sua natureza de ave dos grandes espaços, conformou-se com ser animal de terreiro. E em vez das asas, desenvolveu as patas. 2. Confusão entre in�nito inde�nido e in�nito de�nido Como vimos, o desejo de sentido é uma versão particular do conhecido desejo de in�nito. Que in�nito é esse: eis a grande questão, questão trabalhosa, para a qual só podemos aqui �ncar algumas balizas. Relembremos, para começar: não é racionalmente garantido que o in�nito do desejo seja sem mais o In�nito “Deus”. É Deus, sim, mas apenas de modo confuso. Para prová-lo, trazemos aqui dois fatos maciços: um tirado da �loso�a moderna, e outro da realidade mesma da vida. Quanto ao primeiro fato, é inegável a existência de grandes �lósofos modernos que, para poderem dar conta do mundo e dar-lhe um sentido, puseram a necessidade lógica de um princípio incondicionado, existindo por si (aseitas), incausado, totalmente independente, absoluto, en�m, in�nito. Contudo, não chegaram a identi�car esse in�nito com Deus. Para o in�nito, usam, é verdade, grandes conceitos como: “transcendente”, “incondicional”, “absoluto” e até mesmo “Deus” (como �zeram Spinoza e Hegel), mas entendem todos esses conceitos no horizonte de um imanentismo radical. O “in�nito” desses �lósofos modernos será a “Substância” para Spinoza, o “Eu absoluto” para Fichte, a “Natureza” para Schelling, o “Espírito absoluto” para Hegel, a “Vontade de vida” para Schopenhauer, a “Vontade de potência” para Nietzsche, a “Matéria” para os materialistas, o “Todo” para os panteístas, o “Acaso” para Monod e cia., o “Abismo quântico” para certos cientistas atuais e assim por diante.86 Mas todos esses “absolutos”, “transcendentes” ou “in�nitos” estão longe de coincidir com o absoluto, o transcendente e o in�nito que a philosophia perennis (sem falar da fé) identi�cou com o Deus vivo e verdadeiro. Neles, antes, se identi�ca com qualquer outra realidade, que se parece com Deus, mas que não é Deus mesmo. Esse fato cultural expressivo mostra que o desejo de in�nito, assim como a ideia que está em sua base, é um desejo realmente confuso: ele aponta, sim, para Deus, mas não de modo evidente. Para darmos disso um exemplo concreto, tomemos a ideia de “in�nito” de G. Leopardi, como aparece no célebre soneto homônimo. Não se trata aí certamente do In�nito divino, mas do Todo, ao modo dos panteístas. São, como diz o poeta, esses “espaços sem �m” e “sobre-humanos silêncios”. É, em síntese, esse “mar” em que o poeta deseja “docemente naufragar”.87 Essa metáfora nos lembra o famoso “sentimento oceânico” a que se referia R. Rolland e que, segundo Freud, não remete a realidade in�nita alguma.88 Como se vê, o in�nito por que anseia o coração humano não é, racionalmente falando, de entrada e sem mais o Deus vivo e verdadeiro, que o melhor da razão e da religião chamou simplesmente de Deus. O in�nito do desejo aponta, sim, para Deus, mas apenas como um vulto, não, porém, como �gura bem delineada. Passamos agora para o segundo fato maciço: o da vida ordinária do homem comum. Essa mostraclaramente que, embora todos sintam o desejo de in�nito, nem todos o identi�cam com Deus. Ao contrário, uns o põem na riqueza, outros no prazer, os terceiros no poder, outros ainda na fama ou em qualquer outra realidade �nita, tomada ilusoriamente por in�nita. Para que esse desejo natural se traduza em desejo de Deus mesmo e não no desejo de qualquer outra realidade assemelhada, é preciso que intervenha, da parte do homem, um juízo pessoal e uma opção livre. Só assim o inde�nido do in�nito se de�ne, e se de�ne nessa ou naquela forma, ou seja, numa �gura verdadeira ou então numa enganosa. Portanto, acerca da questão do desejo de transcendência, de in�nito, de felicidade, en�m, de sentido absoluto, é preciso distinguir cuidadosamente entre o plano formal ou abstrato dessa questão e seu plano material ou concreto. Com efeito, uma coisa é a mera abertura à transcendência, e outra a abertura concreta a Deus. Assim também, o desejo geral e instintivo de transcendência é uma coisa, e outra é o desejo concreto e deliberado do Transcendente real. O in�nito do desejo espontâneo é apenas um in�nito vago e genérico, enquanto o in�nito do desejo voluntário é um in�nito real e concreto. Observemos, ademais, que nem sempre o in�nito real e concreto é o in�nito verdadeiro, como é efetivamente Deus, mas pode ser também o in�nito falso ou ilusório, como são todos os ídolos, dependendo do discernimento intelectual e da escolha livre de cada indivíduo. Nesse ponto precisamente, importa notar que não é por igual que, racionalmente, o in�nito do desejo natural pode ser Deus ou então outra coisa. Não; segundo as razões que já demos, o in�nito do desejo “só pode ser” (é a prova apodítica a partir do mundo) ou pelo menos “deve ser” (é a prova dialética a partir do desejo de in�nito) Deus mesmo. Agora, se a razão moderna nesse ponto discorda é, no fundo, porque vem, desde o início, condicionada pelo cogito cartesiano, seu pecado original. E se, nessa mesma questão, o vulgo igualmente se engana e toma um valor mundano, em particular o prazer, pelo in�nito concreto, é porque ele também vem condicionado pelo pecado original (agora sem metáfora), que o faz inclinar-se ao sensível mais que ao espiritual. Por outro lado, é também um fato inegável que o coração piedoso identi�ca espontaneamente a transcendência, a felicidade, o sentido com Deus, como se vê no conhecido fecisti nos ad te de Agostinho. De modo semelhante, é comum as mentes religiosas declararem que “o ser humano é naturalmente religioso”. A espontaneidade com que elas identi�cam a felicidade ou o sentido com Deus provém do hábito que têm de tratar com Deus e que se tornou nelas uma segunda natureza. Ora, o hábito leva a familiarizar-se com as coisas e, assim, a naturalizá-las. É em virtude do hábito também, como Santo Tomás fez observar, que os simples acham, e com certa razão, a existência de Deus evidente por si mesma, quando, do ponto de vista racional, ela necessita em verdade de demonstração.89 Mas isso, que é compreensível do ponto de vista da fé vivida, especialmente a dos humildes, já não o é mais em relação a uma teologia de rigor, em particular a uma “teologia fundamental” que quer falar à inteligência do “homem crítico”. De fato, muitas vezes os teólogos, cedendo à força do costume que adquiriram no trato assíduo com a ideia de Deus, passam, com todo desembaraço, da ideia de in�nito abstrato e potencial para a do in�nito concreto e real, identi�cado com Deus. O mesmo se passa em relação a outros conceitos elevados, como “transcendente”, “absoluto”, “supremo”, “último”. Pula-se aí por cima das necessárias mediações teóricas e se declara, sem mais, que tais conceitos remetem à ideia do Deus vivo e verdadeiro. Ora, dizer de chofre: “o transcendente é Deus”, “o sentido é Deus”, é um salto que o coração piedoso pode dar, sem outras justi�cativas, mas não a razão crítica, que procede sempre passo a passo, como “por rodeios” (Hegel). Tangido talvez por certa pressa apologética, o teólogo pula de pés juntos o já referido “abismo conceitual” que se abre entre sentido e Deus, e acaba identi�cando e, assim, confundindo o sentido com o Sentido, o transcendente com o Transcendente, en�m, o in�nito com o In�nito divino. Esse parece ser o caso de K. Rahner ou pelo menos do que se tornou a vulgata de sua teologia que chamamos de “rahnerismo”. Pois bem, seus fautores, constatando que o homem, por ser espírito, vem, desde o nascimento, dotado de uma “abertura transcendental ao transcendente”, que quali�cam como “existencial sobrenatural”, pensam logo em Deus, desde que, para eles, essa abertura esteja preenchida de conteúdo ético.90 Ocorre o mesmo com P. Tillich, com sua ideia de “incondicional”, a qual vem igualmente identi�cada, sem maior discernimento, com Deus mesmo. Passa-se então à ideia equívoca de que todo ser humano, sabendo ou não, querendo ou não, é religioso e até mesmo cristão, bastando para isso que conduza uma vida moralmente autêntica. Nessa perspectiva, a fé acaba sendo vista apenas como uma tomada de consciência acerca do conteúdo sobrenatural que se passa alhures, ou seja, na instância ética. Mas quem não vê a fatal capitis diminutio que sofre aí a ideia cristã de fé? O fundamento dessa estranha versão do cristianismo é a tese de que em tudo o que o homem conhece e ama, conhece e ama “implicitamente” a Deus, como teria dito Santo Tomás.91 Contudo, nesse Doutor, aquela tese tem um caráter ontológico, e não existencial. Ela diz respeito a todo ser, e não somente ao ser humano em seu agir. Trata-se, pois, do amor a Deus “implícito” no nível do ser, e não ainda do sentir ou do agir. O que a�rma o Angélico é que o conhecimento e o amor de qualquer ser, desde o da pedra até o do Diabo, passando pelo do homem (ut natura), só pode provir de uma fonte primeira, chamada Deus. Outra coisa é o amor instintivo ou desejo natural de in�nito, de felicidade ou de sentido que está presente e operante no ser racional e só nele, justamente por causa de seu caráter espiritual. Por certo, nesse desejo humano incoercível também está “implícito” Deus, porém de modo vago e geral, sub quadam confusione, no dizer do próprio Doutor.92 Na prática, o objeto do desejo in�nito revela-se ambíguo, podendo ser verdadeiro, e então é Deus; ou então aparente ou falso, e então é um ídolo, tal a riqueza, o prazer ou o renome, dependendo da opção livre de cada pessoa. Portanto, a “explicitação” desse desejo instintivo equivale à de�nição que cada um dará desse amor vago e confuso, transformando-o, no melhor dos casos, em amor consciente e voluntário de Deus. Como se vê, a “explicitação” do amor de Deus, “implícito” no amor instintivo de sentido, é, para o Angélico, algo de ativo, envolvendo a razão e a vontade humanas. Está longe de ser simplesmente um reconhecer ou tematizar.93 O caráter constitutivo da “explicitação” do amor instintivo de Deus funda toda a estrutura confessante e sacramental da Igreja e sua necessidade humano- moral e divino-positiva. Portanto, para amar a Deus não basta a ética, como pretextam os que veem no amor ao próximo a presença “implícita” do amor de Deus, mas precisa ainda, em regra, de uma fé confessa. Como se pode inferir, emergem dessa problemática três “implícitos”: o ontológico (do ser), o existencial (do sentir) e o ético (do agir). Portanto, o conceito de “implícito” não é unívoco e não é, por conseguinte, unívoca sua “explicitação”. Ora, reduzir a “explicitação” à chamada “tematização”, espontânea ou elaborada que seja, é esvaziar a fé de sua substância sobrenatural e reduzir o cristianismo a uma gnose, se não a uma ideologia. Pelo que dissemos até agora, tudo leva a crer que o in�nito (inde�nido) do desejo se fecha efetivamente na alternativa: ou Deus (in�nito verdadeiro) ou um ídolo (in�nito ilusório). Poder-se-ia, contudo, aventar uma terceira opção e pensar no in�nito do Bem, tenha ele a forma da justiça, da paz, da vida ou de um outro valor ético qualquer.94 É justamente nessa determinação moral do in�nito que se baseiam as �loso�asque veem na ética o sentido último da vida e as teologias que a têm como via da salvação. Contra essa espécie de “terceira via”, respondamos sinteticamente que, além de ser a posição de uma minoria secularista, se bem que in�uente, mostra-se tão precária que se inclina na prática para um dos lados da alternativa: o do Deus/ídolo, como mostra a mais comezinha experiência, tanto pessoal como social. E assim voltam a se fechar as duas lâminas cortantes da tesoura fatal: ou Deus ou o ídolo. Fiquemos nessas breves indicações, porquanto se trata de uma problemática assaz complexa e, por isso, trabalhosa. Em que pese a louvável preocupação e mesmo a pressa que as correntes aqui visadas manifestam em evangelizar o “homem secular”, o que está em questão aqui é por demais grave para um teólogo se permitir articulações descuidadas, atropelando as necessárias distinções na abordagem de uma problemática tão delicada como essa. Heráclito advertia: “Não conjeturemos levianamente sobre as coisas grandes”.95 Por outro lado, o que busca no fundo o tão invocado “homem moderno”? Não será, porventura, o Deus vivo e verdadeiro, mais que qualquer outra coisa, por mais ética que seja? Decididamente, não será com ética que se vai encher o coração de um buscador de sentido, como, aliás, de qualquer homem. Ética – o mundo pode dar, mas não a fé. Agora, para o cristianismo, dar ética apenas é dar “mais do mesmo”. Pior: dissolver a fé na ética é produzir ideologia, e disso nosso tempo está farto. O que dissemos da identi�cação do desejo de sentido transcendente com Deus vale também em relação ao propalado desiderium naturale videndi Deum (desejo natural de ver a Deus), aforismo corrente nos atuais meios teológicos.96 Pois bem, aí também se dá a confusão entre o plano formal, abstrato e genérico da questão e seu plano material, concreto e especí�co. De fato, o que todo homem naturalmente “deseja ver” ou conhecer não é bem Deus, mas, antes, a verdade das coisas, a essência do todo. Mas quem não quer isso? Quero saber tudo: tal é o desejo, falado ou calado, de todo o ser pensante. Agora, isso de dizer, sem a menor cerimônia, que todo o mundo quer conhecer ou ver naturalmente a Deus desa�a o realismo mais comezinho. Para sustentar essa tese, invoca-se, aqui também, a autoridade de Santo Tomás, quando este, grave e rigoroso como era, nunca em seus escritos usou aquele descuidado aforismo.97 Por certo, o homem deseja Deus, mas não assim tão direta e claramente quanto faz pensar o dito aforismo, mas apenas obscura e confusamente. É como disse São Paulo no Areópago: o homem procura Deus “às apalpadelas” (At 17,27). Dizer assim, sem mais, que todo o ser humano busca a Deus não é verdade, nem de razão nem de fato. Não é uma verdade de razão porque, como mostramos antes, aquele in�nito não é clara e seguramente Deus, mas o é apenas de modo nebuloso. Não é também uma verdade de fato, porque o in�nito desejado por todos é, na prática de muitos, outra coisa que Deus, mas algo que toma seu lugar, como o dinheiro, o sexo, a droga e quantos mais ídolos que se oferecem à opção de cada um. Entende-se que, por força do hábito, nas culturas pré-modernas, todas fundamentalmente religiosas, se passasse sem maiores problemas do in�nito do desejo para o in�nito real. Aí, a distinção lógica entre os planos formal (ou abstrato) e material (ou concreto) em relação ao desejo de sentido era culturalmente pouco relevante. Mas, numa cultura (ainda) hegemonicamente secular, como a nossa, é exatamente na direção contrária que joga a força do hábito. Sua tendência é dissociar de Deus o in�nito desejado, desviando seu dinamismo em direção a um in�nito mundano qualquer. Daí a necessidade hoje de a teologia insistir na distinção decisiva entre o in�nito de Deus e qualquer outro in�nito. Só assim a fé será apresentada em sua novidade absoluta e a cultura crítica receberá a resposta de sentido a que tem direito. 3. Religiões de substituição: sinais do desejo irreprimível do transcendente Uma prova e contrario de que a busca do sentido último visa forçosamente o transcendente, mesmo quando tal sentido é efetivamente posto no imanente, é o fenômeno tipicamente moderno da chamada ersatzreligion ou religião de substituição. Pensadores do porte de R. Aron, K. Jaspers e E. Voegelin mostraram de modo convincente que, na fase mais ateia da modernidade, a do século XX (e, não por nada, a mais violenta), houve ideologias políticas que se tornaram verdadeiras “religiões de substituição”, como o comunismo, o nazismo e o nacionalismo.98 Essas sobressaíram às outras ideologias, menos duras, mas que também buscaram ocupar o trono de Deus, como a Justiça de Proudhon, a Humanidade de Comte, a Vontade de potência de Nietzsche, sem excluir o Dever de Kant.99 Prolongando o pensamento dos citados Aron, Jaspers, Voegelin e outros mais, como Proudhon, D. Cortés e K. Löwith, o �lósofo político Carl Schmitt defende a tese de que, em seu núcleo, toda política é inescapavelmente teológica, enquanto tende sempre a absolutizar seus ideais. Seria, em verdade, uma pseudorreligião que se ignora. Para aquele jurista, todo poder é, no fundo, ex gratia Dei e toda guerra é essencialmente “guerra de religião”, mesmo quando aquele e esta se dão sob a invocação de entidades seculares, como povo, justiça, revolução e tradição, as quais, assim mesmo e para todos os efeitos, acabam quase sempre absolutizadas.100 Entre os escritores, talvez nenhum como Dostoiévski tenha enfatizado tanto e de modo tão penetrante o desejo compulsivo do divino presente em todo o homem. Em Os possessos, escreve: “Há no homem a necessidade de saber e de crer que existe algures (...) uma felicidade perfeita e calma”. E ainda: “Se acabassem por privar os humanos desse in�nitamente grande, eles não mais desejariam viver, e morreriam de desespero. O incomensurável e o in�nito são tão necessários ao homem como o pequeno planeta em que se move”. Faz um mujique dizer: “O homem não pode viver sem se ajoelhar. Se nega a Deus, ajoelhar-se-á perante qualquer ídolo”.101 Em Os irmãos Karamazov, falando da terceira tentação de Cristo, diz o escritor: “Inclinar-se ao in�nitamente grande: eis toda a lei da existência humana”.102 Ouçamos, por �m: “O coração humano tem um vazio que só Deus pode preencher”.103 Pascal dissera o mesmo: “O abismo in�nito só pode ser preenchido por um objeto in�nito: Deus!”.104 À crítica de Bonhöffer do Deus tapa-buraco, replicou o �lósofo Antisseri: Se o “buraco a tapar” é o sentido da vida, Deus é um legítimo “tapa-buraco”.105 Porque criado e, portanto, contingente, o homem é um adorador nato. Se não adora o Deus verdadeiro, adorará um deus falso: um ídolo. Como mostram os profetas, os ídolos são criações do próprio homem, quando toma algo de relativo e o absolutiza (cf. Is 40,19- 20; 41,6-7; 44,12-17; Jr 10,3-4.9; Br 6; Hab 2,18-19). Podem ser o dinheiro, a tecnologia, a fama ou qualquer outra coisa. No “Documento de Puebla”, os bispos escrevem: “O homem, já desde o início (...), em vez de adorar ao Deus verdadeiro, adorou os ídolos...” (n. 185). E põem, entre os ídolos de hoje, a riqueza (cf. n. 493-494). Santo Tomás a�rma claramente: “Nada de �nito pode aquietar o desejo do intelecto; pois, a qualquer �nito que se lhe dê, o intelecto aventa sempre algo além”.106 Por isso só Deus pode saciar a alma em sua sede de in�nito. São Bernardo diz muito bem: “O homem, porque capaz de Deus, não poderá se satisfazer com algo menos que Deus. A alma racional pode se encher de todas as outras coisas, mas não pode ser preenchida por nenhuma”.107 Para o �lósofo hebreu A. Heschel, o homem busca muito mais que a si mesmo: ele anseia por Deus. Só o permanente, o duradouro, o eterno pode aquietar seu coração, sedento de in�nito. Para aquele pensador, o ser humano vive, certamente, no tempo, mas é mais que o tempo. A prova é que tem consciência do tempo e pode medi-lo. Ademais, no tempo ele identi�ca o permanente, que é como as borlas do vestido da eternidade.108 Vindo ao pós-moderno, encontramos laicistas que,decepcionados com as pseudo-religiões políticas de ontem e seus trágicos efeitos, não querem mais saber de religião, sequer em hipótese. Pretendem ultrapassar o dilema “ou Deus ou ídolo”, optando pelo devir, pela �nitude. Querem, a qualquer custo, dar adeus a todo e qualquer deus. Querem simplesmente a terra, sem qualquer céu. Seriam, segundo Feuerbach, os “ateus consumados”, na acepção de que, não só não creem em Deus, mas sequer em seus atributos: onipotência, sabedoria, amor etc. São, pois, não só ateus do sujeito Deus, mas ateus também dos predicados de Deus. Mas seria, porventura, possível viver sem religião alguma, verdadeira ou falsa que seja? Pode-se, por acaso, evitar a alternativa entre Religião autêntica e Religião de substituição? Teria o “partido da �nitude” conseguido se estabelecer e vencer a necessidade de in�nito, que até agora se impôs a toda a humanidade, inclusive aos próprios modernos, embora à socapa? Não; na prática, os próprios fautores da �nitude, sem exceção, tomam necessariamente o imanente pelo transcendente, o penúltimo pelo último, o �nito pelo in�nito. Como todo mundo, eles também trazem um altarzinho no coração para aí instalarem devotamente seus próprios deuses, por discretos que sejam. Um porá sua carreira, outro seu �lho, o terceiro uma mulher, o quarto seu partido, o quinto a ciência e assim por diante. É também o que constatava Pascal: “O espírito crê e a vontade ama tão naturalmente que, na ausência de objetos verdadeiros, têm de voltar-se para os falsos”.109 E isso vale de modo todo particular para Deus. Lutero escreveu: “Aquilo, pois, a que prendes o coração e te con�as, isso, digo, é propriamente o teu deus”, verdadeiro ou falso que seja.110 Goethe não pensa diferente: “O que cada um acha de melhor, a isso chama de deus, seu deus”.111 Como se vê, os espíritos mais penetrantes viram que é impossível ao ser humano viver sem algum absoluto, isto é, sem um deus qualquer. Em verdade, a rejeição de toda transcendência que certos pós-modernos exibem não passa de biombo para esconder os ídolos caseiros que trazem no coração e que veneram às escondidas, como fazia a Raquel bíblica com seus teraphim (cf. Gn 31,19.32-35). Vai sem dizer que, enquanto os ídolos da modernidade clássica eram naturalmente mais fáceis de identi�car, graças aos grandes templos que lhe foram dedicados, o mesmo não ocorre com os deusinhos pós-modernos, cultuados que são em capelas discretas e oratórios ocultos. Em resumo: a pretensa “opção pelo �nito” não passa, em realidade, de uma opção arbitrária e veleidosa em favor de algum ídolo inconfessado. Seja como for, entre Deus e o ídolo, tertium non datur. O próprio ateísmo, por paradoxal que pareça, se reduz também a uma religião sucedânea, embora sub contrario. Negando Deus, ele não deixa de pôr em seu lugar qualquer outro sucedâneo dele, como a matéria, a natureza, o ocaso, a ciência, a justiça, a humanidade ou mesmo o eu, realidades que, para isso, foram devidamente idolatradas. Para Santo Agostinho, o ateísmo, como negação total de qualquer deus, só existe como ilusão. Diz: “Forçosamente, querendo ou não, o homem é servo das coisas nas quais põe sua felicidade”. Portanto, ele inevitavelmente adora algo que tem por superior. O ateísmo, para Agostinho, não passa de “outro gênero de idolatria”. É um “culto pior e inferior” aos demais.112 É do mesmo parecer o escritor F. Werfel: “O ateísmo materialista é também apenas uma religião, a pior de todas”.113 Não é à toa que muitas vezes o ateísmo se opõe agressivamente à religião. É porque ele funciona precisamente como uma religião. Notou-o Kafka: “O bolchevismo levanta-se contra a religião porque ele próprio é uma religião”.114 Mesmo o laicismo pode se tornar uma religião sucedânea, e inclusive das mais fundamentalistas. Mas a forma mais sutil de religião de substituição é a própria religião, quando se faz substituta de si mesma. Aí uma forma falsa de religião tomou o lugar da forma verdadeira. Isso acontece, em primeiro lugar, quando a religião perde sua essencial transcendência e se mundaniza, tomando, por exemplo, uma forma fundamentalmente política, como nos casos de certa “cristandade” ontem e da sharia hoje. Um segundo caso em que uma forma falsa de religião substitui a verdadeira acontece quando a religião decai ainda mais baixo que o mundanismo, assumindo as formas pervertidas do satanismo, do fanatismo e do terrorismo. Se no primeiro caso o Mistério sacrossanto foi substituído pelo mundo, aqui o foi pelo submundo da irracionalidade. Assim falsi�cada, a religião torna-se uma potência niilista, na medida em que, desacreditada, favorece o secularismo. Entretanto, para falar como Pascal, a verdadeira religião zomba da falsa. A razão de fundo da impossibilidade de despedir de�nitivamente Deus, sem substituí-lo por um ou vários ídolos, é que o homem é razão ou espírito e este está estruturalmente aberto ao universal, ao todo, ao in�nito, ao transcendente, ao meta-físico, ao sobrenatural. O homem tende efetivamente a pensar e a querer tudo. Essa é sua constituição natural. A facilidade com que se deixa seduzir pelo parcial e �nito se explica justamente por sua sede ardente de totalidade e in�nito. E essa não há como não desalterar: se não é com água pura, será com água malsã. É como disse o profeta: “Abandonaram a mim, fonte de água viva, para cavar para si cisternas rachadas, que não retêm água” (Jr 2,13). A compulsão pelo sentido último foi vista claramente por Santo Tomás. Diz que, sem um �m último qualquer, mesmo �nito e relativo, baixo e falso, o homem não moveria um dedo. Explica que toda busca humana pressupõe um termo �nal que sustenta seu dinamismo. Sem esse termo, não há como mover toda a série dos �ns intermediários.115 É como na “copa do mundo”: é a Taça Jules Rimet que anima toda a parafernália que a copa comporta. E, se a sabedoria se de�ne pela busca dos valores últimos, para Santo Tomás não deixa de ser sabedoria também “tomar um valor terreno pela causa mais elevada e pelo �m último”.116 Diz, contudo, que essa é uma sabedoria equivocada, uma “sabedoria má”, que Paulo chama “sabedoria do mundo” (1Cor 3,19).117 Trata-se, em verdade, de um sub- rogado da sabedoria autêntica. Portanto, se o sentido último não é Deus, será necessariamente qualquer outra coisa. É como a�rma expressamente o Angélico: “Quem se afasta do �m devido é obrigado a estabelecer para si algum �m indevido”.118 E isso por força do que chamamos a “lei da ultimação”. Por exemplo, o hedonista é tal porque, deixando de �xar no transcendente verdadeiro sua felicidade mais elevada, �xa-a no nível da cama e mesa. E é nesse nível baixíssimo que está sua religião real. Calvino diz que o espírito humano é uma máquina de produzir ídolos.119 Mas a fé no Deus vivo e verdadeiro, e só ela, pode sustar tal produção. A mais elementar antropologia, tanto a cultural quanto a �losó�ca, mostra que o homem é um animal religiosum, um adorador, um sacri�cador (de si ou de outro), quer se assuma ou não como tal. Devido à sua natureza espiritual e à sua abertura transcendental ao transcendente, o homem não tem como driblar a alternativa: ou o Transcendente verdadeiro (Deus) ou o transcendente falso (idolátrico, sub- rogatório). Mesmo os que optam por um grande valor ético como a justiça – posta no acme da escala axiológica, à exclusão de todo Legislador transcendente – acabam transformando esse valor num novo ídolo, embora menos sinistro que o da raça ou da nação, mas não menos mortífero, como sucedeu com o comunismo. Justiça também fora o grande ideal de Proudhon, como mostrou em seu tratado do mesmo nome. Mas, por mais que o �lósofo entenda aí a justiça como ideia puramente transcendental e não como realidade objetiva, recusando-lhe expressamente a adoração, exalta, contudo, de tal modo esse valor que acaba idolatrando-o.120 Efetivamente, a ética não é por sua natureza transcendente. É-o apenas em seu fundamento e em seu �m, que é Deus. Desse modo, desconectada dele, a ética, como toda realidade humana, por mais nobreque seja, se degrada em ídolo e se volta contra si mesma, autorizando a injustiça em nome da justiça. Que a justiça, uma vez idolatrada, seja também tirânica e sangrenta, provam-no claramente os horrendos crimes perpetrados, no século XX, pelos regimes marxistas, que, em nome desse ídolo, massacraram milhões de cidadãos, e não só ricos. Dão sinal de ingenuidade os teólogos que imaginam que quem opta pela justiça opta sem mais por Deus. Como dissemos, confundem aí a abertura abstrata ao transcendente e seu preenchimento concreto, que apressadamente interpretam como sendo univocamente Deus. Além de bater de frente contra a natureza da fé, esse equívoco se choca contra a consciência dos sujeitos morais. Como vimos, a efetuação concreta da busca de sentido último é uma obra da liberdade, dependendo, portanto do sujeito e de sua consciência, tanto em seu discernimento quanto em sua opção. E não existe magia hermenêutica que tenha o condão de transformar, como que pelas costas do sujeito, uma opção que se quer explicitamente ateia (em verdade, idolátrica) em opção implicitamente religiosa e de fé. A verdade é que, quando o transcendente se degrada em imanente, instala-se a violência. Tal foi a experiência histórica de ontem no Ocidente (com a “cristandade”, enquanto não hesitou em usar a violência inquisitorial, missionária e das cruzadas em benefício e sob a invocação da fé) e de hoje no Oriente Médio (com o fundamentalismo islâmico). Mas o mesmo sucede no caso inverso, isto é, quando o imanente se alça a transcendente, como ocorre com os totalitarismos. De fato, ao não se dar espaço à transcendência, é a imanência que invade sub-repticiamente seu lugar. Surge então o imanentismo, que é sempre idolátrico e, por isso, sedento de sangue. Por isso também, somente reconhecerá César como César aquele que reconhece Deus como Deus (cf. Mc 12,17). Só sabe o que é relativo quem sabe o que é o absoluto. Só conhece realmente o mundo como mundo quem conhece a Deus como Deus. Como se vê, só a transcendência guarda com segurança a imanência e a gere bem. Em suma, só a opção por Deus em sua divindade mantém o mundo em sua mundanidade. 4. Fuga diante da inevitável questão do transcendente Vimos que o desejo de in�nito é implacável. Ele não pode ser destruído nem pela violência, como tentaram os países comunistas, nem pela sufocação cultural, como pretendeu a modernidade laicista. Constata-o o Vaticano II: “A própria civilização moderna, não por si mesma, mas porque demasiadamente comprometida com as realidades terrestres, pode muitas vezes di�cultar o acesso a Deus” (GS 19, 2, in �ne). No fundo, não existem “homens do �nito” e “homens do in�nito”, como pretendeu Lynch.121 Todo homem é voltado para o in�nito. Vimos também que o homem pode responder mal a esse desejo: tomar o inde�nido pelo in�nito, em suma, pôr o ídolo em lugar de Deus. É quando o desiderium Dei deu lugar à cupiditas terrenarum. Isso é tanto mais verdade quando se sabe que o amor à mentira espreita sempre o homem. O Salmo 4 conhece a existência de homens “de corações fechados”, que têm o “gosto do nada” e que “correm atrás da mentira” (v. 3). Diz também que estes buscam a felicidade na “abundância de seu trigo e de seu vinho novo” (v. 8), e não na “luz que se levanta da face de Deus” (v. 7). Por corresponder à natureza espiritual do ser humano, a questão do sentido é inescapável. Mesmo assim, há sempre quem tente fugir dela através das mais variadas formas do divertissement pascaliano.122 As formas mais comuns hoje são o álcool, a droga, o sexo fácil, a mídia, en�m o barulho. Seria à toa que, segundo um mito, o deus do vinho, Baco, foi criado por Sileno, o sátiro guardião da “sabedoria do absurdo”? Busca-se justi�car a fuga perante a questão do sentido apelando para a indiferença ou neutralidade, às vezes sob as vestes �losó�cas do ceticismo ou do agnosticismo.123 Mas essa opção pela não opção equivale de fato a uma opção: a opção por um sentido curto. Conquanto curto, esse não deixará de ser, no caso, o sentido último. Com efeito, não se importar com a questão do transcendente é como não se importar com respirar, comer, beber e dormir. Se alguém não se importa com Deus, se importará com qualquer outro sucedâneo: a família, o trabalho, o próprio ego. Como seria possível uma “indiferença transcendental” em relação ao transcendente? Aqui só é possível a “indiferença categorial”: não se importar com essa ou aquela categoria de transcendente, mas não com transcendente nenhum; assim como é possível não se importar com essa ou aquela categoria de água, mas não com água nenhuma. A história nos mostra várias propostas de vida que pretendem fazer abstração de todo sentido transcendente. Essas oferecem uma sabedoria adequada apenas para esta vida. Conhecemos várias dessas propostas. Vem, em primeiro lugar, o epicurismo, que apresenta um estilo de vida, digamos, nobremente prazeroso, sem preocupações com os deuses e com outra vida. Essa �loso�a foi atualmente reeditada por alguns pensadores, que lhe agregaram ecleticamente elementos provindos de outras tradições. Também o Rubayat, famoso poema de Omar Khayyam, descarta de caso pensado qualquer interesse pela transcendência, para limitar-se a gozar do “vinho” da vida. “Os professores e os sábios silenciosos morreram sem se entenderem no tocante ao ser e ao não-ser. Meus irmãos! Ignorantes, continuemos a saborear o suco dos bons cachos e deixemos que os grandes homens se regalem com as passas.”124 O Qohélet igualmente, dando-se conta de que tudo é vaidade, se resigna a uma vida honesta nos quadros desta existência passageira, conquanto não negue certa dimensão escatológica da vida. Citemos �nalmente a �loso�a chinesa, tal como foi exposta por Lin Yutang e sobre a qual nos deteremos um momento.125 Ela propõe um terrenismo positivo e tranquilo, feito de harmonia e benevolência, destituído de preocupações propriamente religiosas, como, de resto, se pode constatar no próprio confucionismo. É, em suma, a mensagem de um amor sereno pelo existente. Protótipo dessa atitude, T’ao Yüanming (+427 d.C.), um dos maiores poetas chineses, viveu de bem com a vida, sem ter- se minimamente inquietado com questões transcendentais, como as relativas à alma, à redenção, ao céu e a Deus, tendo, no �m, morrido com toda a serenidade.126 Contudo, de acordo com o mesmo Yutang, também os chineses fazem a experiência da “evaporação da vida”. Também para eles a vida é uma festa que chega ao �m, como tudo o mais. Ao término de uma reunião feliz, há quem constate resignado: “Até a feira mais gloriosa deve chegar ao seu �m”. Também os poetas de lá cantam a precariedade da vida. Um deles, Li Po, escreve: “Nossa vida �utuante é como um sonho”; e outro, Wang Hsichin: “Sejam longas ou curtas nossas vidas, todos caminhamos para o nada”. Evocam igualmente a saudade da amada, a tristeza do entardecer, a fragilidade da �or da cerejeira, o desaparecer do céu primaveril e o minguar da lua. Toda a poesia chinesa é carregada de um toque de tristeza, não menos que sua pintura, envolta em geral na úmida névoa do mistério. Disse A. Keith: Quanto menos os chineses esperam por outra vida e “creem que este mundo é um céu, tanto mais procuram fazer dele um céu de fato”.127 Portanto, como qualquer ser humano, tanto o chinês como o epicurista fazem a experiência da contingência, do taedium vitae, do mal-de-vivre, da angústia sem objeto, assim como do anelo de felicidade e do sonho do paraíso. Mais: nenhum deles pode se esquivar das “crises existenciais”, tais como a ruptura de uma relação amorosa, a perda de um ente querido, um fracasso pro�ssional, afetivo, escolar ou mesmo militar, bem como o sentimento de culpa. Apertando mais a questão, não há quem possa driblar os grandes e irreparáveis males antropológico-existenciais de que Buddha fez a experiência, ou seja: a doença, a velhice e a morte. Essas experiências assinalam a “impermanência” inelutável de toda existência, com suas inescapáveis “perturbações básicas”.128 Com efeito, quem de nósredescrever nosso zeitgeist niilista, não mais destacando, como no volume I, os sintomas empíricos do niilismo, mas agora os sentimentos com que o chamado “homem moderno” vive o niilismo. 1. Descrição da experiência atual de niilismo Relembremos que a questão do sentido não é uma questão exclusiva do chamado “homem moderno”. É, antes, uma questão radicalmente humana, sendo, por isso, universal e perene. O próprio fenômeno das religiões, como “comunidades de sentido”, dá testemunho do caráter universal e perene dessa questão. Assim, todo e qualquer ser humano pode dizer, como Bernanos: “O demônio de meu coração se chama ‘para quê?’”.17 De fato, é a própria vida que confronta o homem com a pergunta acerca do sentido, sobretudo nas chamadas situações-limite. Não só: a vida como tal já é em si mesma problemática. Ela se apresenta como um “mistério natural”, conquanto só possa ser resolvido pelo Mistério sobrenatural. Pois a vida, em si mesma, é uma coisa de que o homem não pode livremente dispor. Ela vem de mais longe e vai para mais longe que ele. A Evangelium Vitae diz com razão que a vida, com todos os seus desa�os, é uma “realidade sagrada”, digna de “veneração”, um “dom esplêndido” (EV 22). Sem embargo, a questão do sentido é posta e vivida por cada tempo ao modo desse tempo. Ora, como dissemos, o nosso é um “tempo de transição”. Como era vivido o niilismo até ontem? Como pode, pois, ser descrita, de imediato, a experiência do niilismo? Podemos designá-la através de várias expressões, como senso do “absurdo”, como sensação de uma “vida insípida” e, especialmente, como sentimento de um “mundo desencantado”. Eis, pois, três expressões particularmente signi�cativas do atual zeitgeist niilista. Comentemo-las. Comecemos com o “desencantamento do mundo”, expressão cunhada por Schiller, mas retomada e difundida por Max Weber. Foi a metáfora mais usada, especialmente na academia, para descrever a “situação espiritual” do moderno mundo secularizado. Com essa expressão quer-se dizer que, ao contrário do mundo antigo, o moderno, despojado que foi da presença de forças tidas por ultraterrenas, deixou de ter magia. Pior: o mundo está destituído de qualquer sentido ultramundano.18 No mundo pré-moderno, ao contrário, o mundo era habitado por realidades encantadas e as coisas tinham sentido. Quando o absurdo irrompia, ameaçador, era vencido �nalmente pela fé num sentido último: Deus e sua providência. Vivia-se na convicção de que “no �m, tudo dá certo”. Ora, com a modernidade racionalizante, que busca explicar tudo a partir de causas intramundanas, o edifício daquele mundo, saturado de sentido, ruiu. O encanto das coisas desvaneceu. O “canto do sentido” deixou de ressoar. Soa apenas a fala objetiva da ciência, traduzindo a voz seca das coisas. Fora dessa linguagem, as coisas silenciam. Além de “desencantamento”, há outra metáfora que descreve bem o pathos do niilismo atual: “vida insípida”. Essa designação é mais simples e popular que “desencantamento”. Parece mesmo que hoje a vida não tem mais sabor, que perdeu seu sal. O próprio “moderno” não tem mais “apetite existencial”. Perdeu o gosto de viver. Em outras palavras, a vida tornou-se sem graça, enfadonha, desinteressante. Tal é o “sentimento da vida” na atual cultura hegemônica. Venhamos à terceira expressão para descrever o pathos niilista de hoje: “vida absurda”. Seria uma vida sem porquê e, por isso mesmo, sem inteligibilidade. Se ainda canta, é desa�nando. Mas “desa�nado” não é justamente o sentido literal da palavra “absurdo”? Nessa acepção, a vida ostenta um per�l confuso e caótico, destituída que foi de toda lógica ou racionalidade que não seja a puramente técnica ou instrumental. Outras metáforas para o atual niilismo são tiradas, vez por vez, dos vários âmbitos vitais da existência humana. Se pensarmos em poesia, diremos que a vida é sentida hoje como “prosaica”, isto é, trivial, ordinária, rotineira. Se usarmos o código da cor, a vida parecerá “desbotada”, ou apresentará um quadro monocolor. Se utilizarmos a linguagem da luz, a existência se apresentará “apagada”, sombria, envolta em neblina, quando não em trevas. Recorrendo à metáfora oriente, ligada à da luz, falaremos de uma sociedade desorientada.19 Em termos de paixão, dir-se-á que a vida carece de intensidade, que falta entusiasmo de viver, fervor para ir adiante, motivação para lutar. Se evocarmos, por �m, a ideia de alma, falar-se-á numa existência “des-animada”, isto é, sem vitalidade, ânimo, vibração: em suma, numa vida sem vida: pálida, exangue, moribunda. 2. Incidência social do niilismo, diferenciada por classe Como mostramos no volume I, o niilismo não atinge por igual todas as classes sociais. Isso vale não só em seus sintomas empíricos, mas também no pathos com que é subjetivamente vivido.20 De fato, o niilismo é, antes de tudo, uma disposição espiritual própria das minorias cultas, mas que é projetada por elas sobre a sociedade por inteiro, fazendo com que a disposição niilista venha a constituir o clima dominante, conquanto não geral. De fato, como bem disse Goethe, o espírito do tempo não passa do espírito dos senhores do tempo.21 Tais senhores seriam efetivamente, para falar com o Apóstolo, como os “espíritos do ar” (cf. Ef 2,2) que “fazem o sol e a chuva” de uma época, enquanto de�nem o “clima” ou “espírito” do tempo. São, de fato, espíritos que obscurecem, com a fumaceira de seu niilismo, o sol do sentido, embora com efeitos diferenciados, na medida em que vitimam maiormente as classes médias, e não tanto o povo, que pode ainda levantar, por defesa, o escudo de sua sabedoria milenar. Dissemos, em outro capítulo do volume anterior, que o chamado pós- moderno signi�ca, no fundo, pós-niilismo, pois tudo indica que estamos entrando, efetivamente, numa fase pós-niilista da cultura.22 Se a expressão “mudança de época” deve ser preferida à expressão “época de mudança”, é precisamente porque a parábola da idade moderna está declinando, ao mesmo tempo em que ascende a parábola de uma nova idade, cujos contornos positivos estão apenas se delineando. Como se pode deduzir, a situação espiritual de hoje, longe de ser simples, é extremamente complexa e contraditória, como sucede, de resto, nos períodos de passagem em geral. Para esclarecer, de forma breve, essa situação, operemos com dois recortes: um diacrônico (o histórico), em que examinamos como era o niilismo até ontem, isto é, na modernidade; e, a seguir, como ele se apresenta hoje, nos tempos ditos pós-modernos; e outro sincrônico (o social), em que faremos uma análise de classe de como, em cada um dos referidos momentos, a elite e a massa respectivamente se posicionaram. Acerca do pathos niilista vigente até ontem, isto é, no seio da modernidade declinante, já falamos o bastante, de modo que não precisamos aqui nos delongar. Digamos apenas, em termos de classe, que a elite intelectual moderna, depois de ter gerado e difundido uma visão secularista da vida, a �m de obviar a função da religião que fora excluída, elaborou toda sorte de ideologias, elucubrando, como consumação de sua ambição, o aberrante projeto de um “mundo sem Deus”. Quanto às bases populares, a religião manteve, também na Idade Moderna, sua vigência, embora reprimida e deslegitimada pelo bem arquitetado “blefe intelectual” de seu declínio irreversível.23 Vindo agora ao pathos niilista hoje, ou seja, em tempos de pós- modernidade ascendente, pode-se constatar a reemergência signi�cativa, no plano das classes cultas, da “questão do sentido”, sinalizada justamente pela preposição “pós”. Pós-moderno não seria apenas pós-ideológico e pós- secular, mas também, e por isso mesmo, pós-niilista. Contudo, a intelligentsia pós-moderna não responde à decisiva questão do mesmo modo. Dá-se antes, em seu seio, uma polarização: boa parte dela se abre ao religioso e se reaproxima das bases religiosas; outra parte, menor, continua a resistir à nova sensibilidade, colocando-se na defensiva e resignando-se a um ateísmo frouxo, que �ca a um passo do niilismo, enquantoestá imunizado de experiências análogas da que fez o jovem Agostinho, ao perder um amigo queridíssimo, tendo, por isso, que se confrontar sem escape com a questão do sentido da vida?129 Vimos que, há quatro mil anos, Gilgamesh, como narra a epopeia que traz o mesmo nome, viveu uma experiência parecida: o herói, inconformado com a morte do amigo Enkidu, decide ir em busca, custe o que custar, da árvore da imortalidade, mostrando assim que o ser humano não se contenta com o que essa vida pode dar. Por �m, a vontade de in�nito e de eterno emerge também na própria experiência do amor, cujas juras falam sempre de �delidade eterna, ignorando o convencional “até que a morte os separe”. “O amor é mais forte do que a morte” (Ct 8,6). Dido, sobre o corpo de Siqueu, jura não desposar mais ninguém. Segundo a conhecida frase de G. Marcel, “amar é dizer: Tu não morrerás jamais”. Os apaixonados querem deter o curso do tempo no momento de enlace. Já o êxtase místico requer, com mais força ainda, a suspensão do mundo espaçotemporal, como quando Pedro, na trans�guração do Tabor, exclama: “Senhor, como é bom estarmos aqui! Façamos aqui três tendas” (Mt 9,5). Por ine�cazes que sejam essas experiências, não deixam de testemunhar, de modo inequívoco, a “vontade de eternidade” que habita o coração do ser humano. Mas, se todas essas experiências são naturais e universais, surge então a pergunta: Não apontam elas para uma realidade objetiva, que as transcenda e lhes dê satisfação? Na “�loso�a chinesa”, tal como foi visto acima, não haveria lugar para o transcendente. Essa visão, contudo, não representa a totalidade da �loso�a daquela grande e antiquíssima cultura. Pensemos em duas importantes correntes do pensamento chinês, o taoísmo e o budismo chan, as quais não só admitem a existência do transcendente, que chamam de Tao e de Nirvana respectivamente, mas a têm como a realidade por excelência, se não única. E mesmo na visão geral que têm os chineses do mundo, especialmente entre os confucianos, nunca falta o conceito-chave Tian, geralmente traduzido como “céu”. Não se trata, com essas observações críticas, de justi�car a adoção do método pastoral, que Bonhöffer achava desonesto, que é o de explorar os momentos de dúvida e fraqueza do homem para introduzir sub- repticiamente a questão de Deus.130 Trata-se, antes, de apelar para a verdade humana mais profunda onde ressoa, invencível, a exigência do in�nito, exigência essa que o teólogo citado ousou questionar. Pois, ao julgar que o homem moderno tinha-se �nalmente libertado do “a priori religioso”, da necessidade de Deus, tornando-se, assim, radicalmente secular, Bonhöffer cometeu um equívoco imenso.131 Não percebeu que a religião, em sua essência, não é uma questão da história e de suas vicissitudes, mas uma questão do homem e de sua natureza mais profunda. 5. Os modernos perante o desejo de in�nito: diferentes posições Entre os intérpretes modernos do desejo de in�nito, comecemos por referir os pensadores de linha cienti�cista. Para grande parte desses, o desejo de in�nito, especi�camente o desejo religioso, não faz parte da condição humana, podendo ser desconstruído. Esse desejo nasceria da ilusão e seria feito de ilusão. Eles creem que o progresso cientí�co, na medida em que desvela cada vez mais a realidade, desvanecerá essa ilusão e o homem viverá então de acordo com a “realidade”. Para eles, o homem maduro, libertado da ilusão religiosa, se contentaria com desejar objetos “reais”, como o amor humano (Feuerbach), a ciência (Comte), a história e sua luta de classes (Marx), e por aí vai. A maioria dos marxistas, em particular, dá uma interpretação puramente sociológica do desejo de in�nito. Consideram-no como um problema de pequeno-burgueses ou “coisa de românticos e existencialistas”.132 Digamos logo: essa é uma visão tão super�cial e contradiz tão claramente a experiência humana comum, feita de mal e culpa, de sofrimento e morte, que mal merece uma refutação. Para mostrar que problemas existenciais não são apanágio dos ricos e cultos, bastaria lembrar um dos clássicos da música sertaneja brasileira: “Tristeza do Jeca”. Contudo, à diferença dos marxistas, a grande maioria dos pensadores de hoje reconhece que o homem é, realmente, habitado pelo tormento do absoluto ou, se quisermos, pelo daimon da transcendência. Ilusório não seria então o desejo de in�nito, mas seu objeto. Enquanto o desejo é real e persistente, seu objeto seria ilusório, devendo ser abandonado. O que varia nesses pensadores é apenas o juízo que dão desse desejo. Entre eles há os resignados, que julgam tal desejo enganoso e, ao mesmo tempo, insuperável. Conformando-se com esse paradoxo, receitam a “opção pelo �nito”. Mas há também os exaltados, que se mostram otimistas em relação ao desejo de in�nito, que entendem não como busca de um inexistente in�nito divino, mas do in�nito desenvolvimento humano. Descrevamos essas duas categorias. 1) Os resignados ou pessimistas Esses julgam que a sede humana de sentido é implacável e aplacável ao mesmo tempo, enquanto essa sede, não podendo ser erradicada, pode, pelo menos, ser controlada. Para eles, o homem precisa renunciar a todo e qualquer absoluto, seja ele Deus ou seus sucedâneos, e resignar-se à �nitude radical e insuperável de sua condição. Assim Lacan e outros pensadores atuais, como U. Galimberti, S. Natoli e A. Comte-Sponville. Temos também M. de Unamuno, que deseja ardentemente Deus e a imortalidade, mas não crê que essas coisas existam. Heidegger anseia pelo Sein, mas o vê como inacessível. Sartre diz que o homem tem paixão por ser Deus, mas que, no �m, fracassa. Para Camus, o homem quer um sentido absoluto, mas só tem por sorte o relativo. Malraux fala da incontida esperança humana, mas se trata de uma “esperança sem terra prometida”. Beckett, em Esperando Godot, descreve, de forma dramática, o homem como um ser à espera, mas trata-se aí de uma espera vã. Por seu lado, K. Jaspers a�rma peremptoriamente: “Sem transcendência, não há existência”. Sua transcendência, de�nida por ele como a capacidade de o homem ir além de sua circunstância, revela-se em particular nas chamadas “situações-limite”: luta e dor, culpabilidade e morte. Essas são as constantes de toda a existência humana, mudando apenas fenomenicamente, não substancialmente. São invariantes irredutíveis e insuperáveis em si mesmas, de tal modo que não podem ser mudadas, mas tão somente clari�cadas. Todavia, se, para aquele �lósofo, as situações-limites, são um muro intransponível, esse muro pode ser, pelo menos, pintado pelos humanos, por exemplo, através da arte e mesmo da religião.133 Eis, pois, a que se reduz o papel do homem e de sua liberdade: maquilar a realidade através da arte, como já teriam feito os gregos, segundo o Nietzsche do Nascimento da Tragédia. Seja como for, Jaspers reconhece, melancólico: “no �m, o que há é o naufrágio”. A “fatalidade do naufrágio universal”: tal é o veredicto categórico que, segundo aquele pensador, a razão apõe a toda existência.134 Acrescenta, em compensação: Se o homem não pode salvar do naufrágio o navio da existência, pode, contudo, escolher onde e quando naufragar. Mas, que consolação! Magra, em verdade! 2) Os exaltados ou otimistas Esses, mais numerosos que os anteriores, podem se chamar também in�nitistas ou transcendentalistas. Para eles, o desejo de in�nito é o chão em que se enraíza o impulso humano para o crescimento “sem �m”, na dupla acepção: sem uma �nalidade e sem um �nalizar. O ser humano seria – como lobrigou Dostoievski numa novela – um “engenheiro” que nunca cessa de construir, sendo seu objetivo na terra o próprio processo de criar.135 O desejo seria a alma da “dinâmica da transcendência”, pela qual o homem pode avançar e subir sempre mais. Haveria, pois, aqui, uma transcendência (potencial) sem transcendente (real). É como um vértice que vai se preenchendo à medida que se vai abrindo ao longo da história. A �gura mais expressiva da visão de um dinamismo sem �m é a do super-homem nietzschiano. Seria oalguns poucos intelectuais se enrijecem num ateísmo fora de moda, irônico, dogmático, além de polêmico. Já nas bases populares da pós-modernidade, devido ao relaxamento da hegemonia laicista, dá-se uma soltura da pulsão religiosa. Esta �oresce em três direções, duas extremas e uma média: as extremas são, por um lado, a explosão das novas formas de religiosidade e, por outro, o enrijecimento fundamentalista, enquanto a tendência média, a mais promissora, vai na direção da renovação das grandes tradições religiosas. Seja como for, é inegável que há, nesse tempo de transição, uma sobreposição relativa de duas parábolas em curso. A da pós-modernidade ascende, acavalando-se à da modernidade, que declina, enquanto os respectivos vetores se embaralham, tornando difícil seu discernimento. Tomando, porém, o processo como um todo e buscando captar sua principal linha de força, podemos discernir o início da “passagem epocal” da modernidade secularista e niilista para a pós-modernidade aberta ao mistério e à sua sabedoria. Mais dados sobre o espírito do nosso tempo, no que concerne à questão do sentido, serão dados nos scholia que seguem. III. SCHOLIA 1. Dramatismo inédito com que é posta hoje a questão do sentido Como dissemos e repetimos, a questão do sentido acossou a humanidade desde sempre e universalmente. Disso podemos aqui dar algumas ilustrações, todas arcaicas. A primeira é o escrito egípcio de mais de quatro mil anos atrás: Diálogo do desesperado com sua alma.24 Aí se nos mostra um “cansado de viver”, perguntando-se, no meio das a�ições que sofre, se não seria melhor libertar-se da vida em de�nitivo. A solução �nal que aí se dá aparenta-se à do Eclesiastes: contentar-se com o que a vida tem de bom. O Diálogo do harpista, contemporâneo do Diálogo do desesperado, transmite a mesma �loso�a: é inútil se lamentar e desesperar a respeito das adversidades da vida. Essas seriam leis da natureza, às quais o homem deve se resignar, procurando tirar da vida o que ela tem de bom. Outra ilustração, posterior às duas anteriores de um par de séculos, é a mais antiga epopeia que conhecemos: Gilgamesh.25 Registro do desejo humano de imortalidade, como sentido desta vida mortal, conta esse texto que Gilgamesh, o rei de Uruk, inconformado com a morte de seu caríssimo amigo Enkidu, enfrenta mil perigos para se apossar da “árvore da vida”, cujo fruto outorgaria a almejada imortalidade. Mas, quando o herói, já de posse de uma muda daquela árvore, está para chegar à sua cidade, eis que aparece uma serpente que lhe arrebata o ramo miraculoso. Desespera-se o rei, mas tem que �nalmente se conformar com o destino inelutável de todo o mortal: a “terra sem retorno”. Dos documentos antigos relacionados ao sentido, conhecemos também o mito grego de Sileno, os livros bíblicos do Eclesiastes e de Jó e outros mais que recordamos no primeiro volume de nossa trilogia.26 Mas que são esses textos antigos, bastante raros, em confronto com a torrente da literatura moderna falando do “absurdo da vida”, do “vazio existencial” ou da “crise de valores”? Os antigos tinham certamente o “problema do mal”, mas não do “mal de viver”, como têm os modernos. E mesmo quando os antigos sentem o “mal de viver”, como no caso do budismo, eles, ao contrário dos modernos, conhecem a saída, que é, no caso referido, precisamente o Nirvana. A sociedade moderna é a primeira e a única, na história do mundo, que problematiza a vida como tal, de sorte que se pode falar aqui de um “inédito cultural”. Talvez não haja nenhum sintoma mais claro do ineditismo cultural que o pathos niilista hoje representa do que o próprio termo “sentido”, de uso tão frequente hoje. Com efeito, no mundo antigo, essa palavra mal existia. Os gregos tinham noûs e lógos, mas são termos que signi�cam muitas outras coisas além de “sentido”. Entre os latinos, as palavras mens, ratio e até sensus não têm a carga existencial de nosso “sentido”. Para dizer o que entendemos por “sentido”, os antigos falavam, de modo genérico e difuso, em termos de �m último, bem supremo, vida digna, imortalidade, felicidade e outros. Os hebreus dispõem de um rico e alto vocabulário para nosso “sentido”, como Fim, Esperança, Salvação e principalmente Palavra (Dabar = Lógos). Contudo, entre eles também não encontramos um equivalente linguístico unívoco ao nosso termo “sentido”. Que signi�ca esse estranho e contrastante fato linguístico? Signi�ca que, se os antigos não tinham um termo próprio para isso que chamamos “sentido”, era porque para eles essa questão não era problemática: eles viviam sua vida com sentido. Se nós, ao contrário, falamos tanto em sentido, é porque nossa vida está com dé�cit de sentido. Digamos, falando em geral, que eles tinham a resposta sem a pergunta (formalizada), enquanto nós temos a pergunta sem a resposta (formalizada), o que deixa a noção de sentido, apesar de muito evocada, semanticamente imprecisa. Para sermos claros, digamos que o que faz a diferença entre modernos e pré-modernos não é a questão do sentido como tal, mas a extensão e a intensidade com que essa questão é posta. Quanto à extensão, o niilismo atinge, embora não de modo homogêneo, a dinâmica inteira da cultura moderna. Quanto à intensidade, nenhuma cultura levantou a questão do sentido de modo mais insistente, obsessivo, angustiado e quase desesperado do que a moderna. É que nunca como hoje houve tanta falta de sentido, em sua acepção antonomástica. De fato, se reduzíssemos a três ou quatro as coisas que mais fazem falta no mundo atual: comida, liberdade, paz e sentido, esta última é a maior e a mais grave. E não é o sentido como o oxigênio espiritual de uma cultura? Daí clamar-se hoje monotonamente por “sentido, sentido, sentido”. Ademais, o dramatismo da atual crise de sentido é tanto maior quanto mais determinante é a atual “transição de época”, por envolver precisamente a questão supremamente determinante: a da Realidade omnideterminante. Tal dramatismo faz com que a grande linha de demarcação na cultura moderna não corra entre capitalismo e socialismo nem mesmo entre democracia e autoritarismo, inclusive totalitário, mas antes entre secularismo e religiosidade. Esse confronto, em verdade, traduz para nosso tempo a gigantomaquia que, desde o início da história, se trava entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas, em suma, entre Deus e o Nada, e que as Escrituras representam como luta entre o Criador e Leviatã ou Tiamat (cf. Jó 3,8; 7,12), encarnações das potências do Mal. Relembremos, todavia, que o niilismo, com seu tônus dramático, não vale sem mais para a cultura geral, mas, sim, para a cultura dominante. A angústia do absurdo é a sorte ou, melhor, a opção das “classes cultas”, estendendo-se a partir e através delas pelo conjunto da sociedade. Trata-se de uma angústia tanto mais profunda quanto maior se mostra a tragédia que a provocou: a “morte de Deus”. Essa tragédia, realmente suprema, não suscitou o heroísmo supremo que o evangelista do Super-homem augurava. Ao contrário, produziu nas almas um niilismo avassalador. Pois, quando se apaga o sol, como impedir que as trevas cubram a terra (cf. Mt 27,45)? Retirando-se a “pedra angular” do mundo, como sua cúpula não ruiria, esmagando tudo (cf. Mt 21,42.44)? 2. Causa do dramatismo atual acerca da questão do sentido: a “morte de Deus” Como chegamos a essa situação espiritual inédita representada pelo niilismo? É que os “modernos” provocaram um evento igualmente inédito: a “morte de Deus”. Essa foi a revolução mais trágica da história religiosa do mundo, revolução que subverteu todo o seu edifício valorial e dividiu o curso histórico em, por assim dizer, “antes de Deus” e “depois de Deus”. De fato, o aspecto central e decisivo da revolução moderna não foi o “cientí�co” (Galileu), nem o “�losó�co” (Descartes), nem o “religioso” (Lutero), mas foi exatamente a opção pelo homem no lugar de Deus. Essa foi a verdadeira “revolução copernicana”, no dizer de Kant. Do antropocentrismo a modernidade passou para o secularismo e en�m para o a-teísmo, preâmbulosdo atual niilismo. Se antes o ateísmo era um crime, fato de minorias, agora surgia como um direito e até como um ideal universal, proposto na fórmula “um mundo sem Deus”. Eis a tragédia absoluta do homem: a morte do Absoluto.27 E é desse evento aberrante e fatal que se eleva a fumaça negra do desencanto, da insipidez e do absurdo, que envolveu o mundo moderno e penetrou em sua alma. Foi assim que o mundo foi destituído dos “três m’s”: mistério, maravilha e milagre. Mas, sem esses “três m’s”, o que sobra do mundo? A mesmice existencial; por outras: o “eterno retorno do mesmo”, pelo qual o oceano da realidade será sempre o mesmo, a saber: o que as ciências revelam dele. Mudam apenas suas ondas, ou seja, os produtos tecnológicos e culturais. Sucede então o que de mais terrível o espírito poderia imaginar: a clausura de�nitiva da existência no samsara (ciclo dos renascimentos), à exclusão de qualquer moksa (libertação). Ora, não havendo mais qualquer transcendência vertical nem qualquer ordem sobrenatural, não haverá também mais nada de verdadeiramente extraordinário. Toda mudança, por mais “maravilhosa” que seja, seja ela cientí�ca, técnica, artística ou política, não passará de alteração super�cial no imenso mar do mesmo, fazendo com que a toda a história não passe de “mais do mesmo”. Mas lá onde o “mesmo” começa seu reinado, começa também o reinado do tédio. Quando se dá adeus ao Mistério, dá-se também adeus às maravilhas da graça: a conversão, a recriação interior, o perdão dos pecados, a redenção da alma. Adeus também aos milagres, especialmente o milagre da misericórdia oferecida aos perdidos e o da caridade, que liberta os abandonados de toda sorte. Lá domina o mundo fenomênico, prosseguindo inexoravelmente seu caminho circular e esmagando, como o carro de Juggernaut, todo sonho humano de verdadeira transcendência: libertação do espírito e ressurreição da carne. Faltará pouco para que o mundo sem graça do tédio não se converta no mundo desgraçado do desespero, verdadeira antessala do inferno. Como mostramos à farta em nosso volume anterior, os responsáveis desse clima, até ontem dominante, foram, em nível social, os intelectuais laicistas e, em nível mundial, a Europa laica, que bem por isso mereceria o nome de “Niilândia”.28 Foram eles que geraram este mostro: o chamado “mundo sem Deus”. Foi sonho para os “modernos”, mas pesadelo para as massas. Esse sonho, nunca antes sonhado, deu origem a uma experiência histórica que foi vivida por seus fautores como uma epopeia exaltante, mas que constituiu, em verdade, um projeto-processo aberrante, o qual, se, por impossível, tivesse tido êxito, teria perpetrado a tragédia por excelência, a catástrofe suprema, que deixaria pálido o mais horroroso ragnarök.29 O fato é que, após a primeira fase de sobre-excitação ideológica, o projeto secularista acabou lançando sobre o mundo os quatro sinistros cavalos do niilismo: o tédio, a angústia, a depressão e a libido mortis com seu séquito fúnebre: suicídio, droga, esterilidade e banalização do sexo e da violência. Ademais, as crenças coletivas da modernidade, como razão, liberdade e progresso, entraram irreversivelmente em crise. Ora, sem crenças não há sociedade que sobreviva. A esse propósito escrevia Goethe há quase dois séculos: Todas as épocas em que predomina a crença, sob qualquer forma, são esplêndidas, corajosas, frutuosas para os contemporâneos e para os pósteros. Pelo contrário, todas as épocas em que a descrença, sob qualquer forma, prevalece, embora brilhem por um momento de esplendor postiço, desaparecem dos olhos da posteridade.30 3. O sentido madruga Se perguntássemos, ao modo do profeta, “a quantas anda a noite do niilismo”, receberíamos talvez a resposta que a sentinela deu: “Amanhece” (cf. Is 20,11-12). Efetivamente, Deus volta a jogar no proscênio do mundo. Busca-se hoje o sentido em seu solo nativo: no elemento da transcendência religiosa. Existe efetivamente hoje uma aristocracia de pensadores que voltam a buscar no mundo da espiritualidade um sentido consistente à existência. São como os �lósofos que São Paulo encontrou em Atenas: buscando um sentido maior, estão em verdade “buscando a Deus... como que às apalpadelas” (At 17,27). Esses seriam os únicos incrédulos que Pascal julgava “razoáveis”: os que não creem em Deus, mas o procuram.31 Abrem-se, pois, de novo tempos de fé.32 Subsistem, contudo, da velha elite cultural os que selaram o túmulo de Deus, pretendendo tornar sua morte irreversível, como outrora tentara o Sinédrio em relação ao Cruci�cado, conquanto em vão. Resignam-se à escuridão do sem sentido, simulando indiferença. Pensam como escrevia Villiers de l’Isle-Adam: “Viver? Os criados pensarão nisso por nós”.33 E repetem: “Não faz sentido pensar na questão do sentido”. A saída? Viver, sem perder tempo com questões de sentido. Era a fórmula de Voltaire: “Trabalhar sem pensar: só assim a vida se torna suportável”. Não era diferente a de G. Carducci: “Agir, sem re�etir sobre o mistério do mundo”. Exibem um niilismo resignado, que, se não é sereno, também não se quer trágico. Assim vivem ou, melhor talvez, “tentam viver” (P. Valéry). E, enquanto vão “bocejando sua vida” (Chateaubriand), alguns se fazem de mestres, administrando aos jovens a “hóstia envenenada da crítica e da negação”.34 Sem embargo, essa elite decadentista está na contramão da história e também do gênio das massas populares. Com efeito, essas, que sempre foram religiosas, são hoje atravessadas por grande efervescência espiritual, que, apesar de se polarizar nos extremos do fundamentalismo e de formas religiosas desbordantes, renova-se e cresce de modo positivo no seio das grandes religiões. Ademais, surge um novo fator que pode favorecer a ascensão e a difusão do sentimento religioso e fazer recuar o secularismo e, por consequência, o niilismo: as novas mídias: a internet e o celular. Entre as variadíssimas opiniões que aí se caldeiam, estão as religiosas, protegidas agora da repressão ostensiva e do desprezo público que a modernidade hegemônica votava ao divino. É possível que as surpresas que as redes sociais produziram na área política possam se reproduzir, e quem sabe maiores, na área religiosa. Seja como for, é um fato que o secularismo, porque obra arti�cial e forçada do projeto da modernidade, cede e recua tão logo o “natural profundo” do homem, especialmente o instinto religioso, pode livremente se manifestar. Disso são provas, no passado, a falência completa do ateísmo de Estado e, no presente, o descrédito crescente do laicismo acadêmico- midiático. Saberão, contudo, as grandes instituições religiosas “redimir” esse kairós (Ef 5,16)? Se quisermos resumir os passos segundo os quais o pathos niilista evoluiu nos dois últimos séculos, cotejando-os com a parábola do �lho pródigo, já usada por nós na mesma linha,35 traçaríamos o seguinte quadro: 1) Modernidade madura (séculos XIX e XX): tempo da mais aguda “paixão pelo mundo” e da “morte de Deus”. O lugar de Deus é tomado ou, melhor, usurpado pelas realidades mundanas através de um trabalho de ideologização. É o �lho pródigo que se liberta do pai e ganha o mundo. 2) Modernidade tardia (século XX, segunda metade): tempo de uma vida desencantada, insossa, caótica. Os ídolos perdem seu halo e desmoronam por força de uma segunda secularização. Da paixão pelo mundo, passou-se à indiferença e �nalmente ao ódio. Surge o senso de um niilismo absoluto: nada tem sentido, tudo é nada. É o �lho pródigo reduzido à miséria e obrigado, para sobreviver, a “cuidar de porcos”. 3) Pós-modernidade (a partir do �nal do século XX): tempos pós-niilistas. A experiência desesperante do niilismo agudo levou ao dilema: crer ou perecer. Deus reemerge então como única saída positiva. Madrugada: a noite do absurdo vai adiantada e o dia do sentido se aproxima (cf. Rm 3,12). O �lho pródigo põe-se a caminho de casa. 4) Modernidade superada (a partir do século XXI): Nova era do sentido. Deus volta a ocupar o lugar que lhe compete: no coração do homem e do mundo. O �lhopródigo reencontra o pai, que o acolhe misericordiosamente em casa. Eis aí um esquema, em verdade conjetural, que pode ajudar a entender a história do declínio, morte e ressurreição do sentido. 4. Tentativas atuais de sair do niilismo Ainda que o sentimento do inconsistente e do vazio assalte por vezes todo ser humano, tal sentimento acossa com particular acuidade o homem moderno, devido justamente ao atual clima de ausência de Deus. Cresce então a angústia existencial, descambando facilmente no tédio e na depressão. Agudiza-se então, como por reação, a ânsia por uma “vida �amejante de sentido”.36 Procura-se um sentido que encha o coração até a saciedade e torne a vida deslumbrante, ardente, transbordante, em suma, apaixonante. Fantasias infantis! Pois, dentro do horizonte deste mundo, o que é que pode encher e pleni�car verdadeiramente a vida? A resposta mais imediata é: o prazer sensível. É a via mais batida e também a mais vulgar: o hedonismo, seja lá que outro nome tome. Essa �loso�a de vida se desdobra hoje em consumismo, de que o marketing é o grande promotor. Aí o sentido são os sentidos: ver, transar, em suma, curtir. Mas quem ignora que a satisfação dada pelo prazer sensível tem um caráter sempre pontual e momentâneo? E então volta o sentimento do vazio, que tem que ser novamente preenchido, e assim sucessivamente. É a maldição das Danaides: encher um tonel desfundado. Esse ciclo repetitivo leva �nalmente ao desespero, como se vê claramente no caso da drogadição, mas também e mais em geral em relação ao sexo, ao poder, à fama e ao dinheiro. A realidade é que na terra vige a inelutável condição humana, que Agostinho de�ne como egestas (necessidade).37 Buda deu-lhe o nome de “dor” (dukkha) e seus seguidores de sunyata (vacuidade), enquanto os gnósticos antigos falam de kénoma. Ora, o ansiado pléroma só pode ser uma categoria escatológico-transcendente. O pleno, assim como o perfeito, se existem, só podem se dar no que as Escrituras chamam “Reino dos céus”. Aí, sim, exclama o referido Doutor, “minha vida será verdadeiramente viva porque estará toda cheia de Vós”.38 Em confronto com essa plenitude, os prazeres terrestres não passam, no melhor dos casos, de suas pálidas imagens. Tomá-los, porém, pela realidade plena é iludir-se, alienar-se e frustrar-se. Para além da via hedonista, foi a luta social que, até anteontem, nos tempos modernos, se apresentou como alternativa apta a “encher a vida de sentido”. É um fato que milhões de jovens, nas décadas de 60 e 70 do século XX, queriam-se “revolucionários” e punham o sentido da vida na criação de uma “nova sociedade”. Mas, desde ontem, isto é, desde os anos 90, os projetos históricos perderam sua força de propulsão sociopolítica. Eles não mobilizam mais a massa dos jovens, a não ser de modo esporádico e pontual. A juventude de hoje, em sua maioria, não sonha mais com uma utopia social. Seu horizonte de esperança é curto: o futuro próximo. Navega à vista: visa a esse ou àquele trabalho, esse ou aquele parceiro sexual e afetivo, e pouco mais. Se nem o hedonismo nem a política enchem a vida de sentido, o que sobra no cenário de hoje? A olhos vistos, a religião. É a terceira saída. Efetivamente, a religião, por natureza e vocação, abre o ser humano à perspectiva do transcendente, única realidade à medida do cor inquietum. Todavia, a própria religião corre hoje vários riscos, o primeiro dos quais é se enviscar na lógica do consumismo, tornando-se mera agência de consolo emocional imediato, quando não se degrada na mais grosseira simonia, em detrimento de sua perspectiva espiritual e de sua tensão escatológica. Outro risco que corre atualmente a religião é contentar-se em repristinar suas “verdades eternas” e trocar apenas suas formas externas, poupando-se o necessário esforço de renovação. Ora, uma religião se renova reapropriando-se, em cada época, do núcleo permanente de sua mensagem fundadora. Só assim poderá atualizá-lo em função de cada contexto histórico, conferindo-lhe uma nova linguagem e novas estruturas. Pois, sem um trabalho de assimilação espiritual, qualquer renovação não passará de uma obra exterior, arti�cial, passageira.39 5. Sofrimento: lugar principal da irrecusável questão do sentido A vida dos mortais é feita de altos e baixos, regida que é pela “lei da ondulação”. Ao lado dos “momentos culminantes”, a vida comporta “momentos abissais”. É quando dominam sofrimento e morte. É então que a vida mostra-se absurda, no sentido literal de “dissonante”. Aí a contingência é vivida, não como graça, mas como desgraça, perda, decadência. É então que se levanta impreterivelmente a pergunta: “Onde está o sentido da vida?” E mesmo que se responda “Deus”, levanta-se nova pergunta: “Onde está Deus?” Assim foi com Jó e, mais que tudo e todos, com Cristo moribundo. E assim é também com todo crente nas horas de crise profunda. De fato, é quando a vida se torna problemática que a questão do sentido se põe. Quando, em 1555, Lisboa foi arrasada por um terremoto, Voltaire se perguntou sobre o porquê daquela desgraça. Antes, porém, nem ele nem ninguém tinha se perguntado por que Lisboa existia ou tinha de existir, pois o fato de existir é por si mesmo algo de bom e sensato. É, em suma, coisa autoevidente.40 Ensinava Goethe que se passa com a alma o que se passa com o corpo: ela só tem consciência de si quando as coisas vão mal. É quando há uma pedra no sapato que sentimos o sapato; é quando o dente dói que nos lembramos dos dentes. Ocorre o mesmo em relação ao sentido: este só é “sentido” pela alma quando “faz falta”. Quando está presente, é como a luz ou o ar: não se notam. Portanto, sentido é o normal e saudável; o não- sentido é o anormal e patológico. Em célebre poema, escreveu nosso Drummond: “No meio do caminho tinha uma pedra”, acrescentando: “Nunca me esquecerei desse acontecimento (...) que no meio do caminho tinha uma pedra”.41 Por que o poeta insiste num fato aparentemente tão banal, quanto uma pedra no caminho, a ponto de tratá-lo como algo de inesquecível? Precisamente porque não é efetivamente normal que haja uma pedra no meio do caminho: a pedra aí está fora de lugar. Assim também é estranho e antinatural que a pedra do absurdo se anteponha a nossos passos. É, pois, quando fazemos experiência do não-sentido, quando o absurdo dói, que nos damos conta da necessidade de um sentido consistente para a vida. O sentido é a saúde do espírito. Quando falta sentido, o espírito adoece. E é então que notamos a importância do sentido, da mesma forma que nos damos conta da importância da saúde quando estamos doentes. Mais propriamente que um “animal doente” (Hegel), o homem é um animal suscetível de doença; em nosso caso, a doença do absurdo. E é para isso mesmo que existem as religiões. Essas “instituições de sentido” são verdadeiras instituições hospitalares. Dentre todas as religiões, o budismo e o gnosticismo antigo são as que mais sublinharam a experiência do mundo como alienação, estranhamento. O primeiro fala da vida como sofrimento (dukkha) e o segundo da sensação de “ser lançado aí”, disposição essa que a geworfenheit heideggeriana iria mais tarde ecoar.42 Ambas as religiões, mas isso vale para todas elas, entendem curar e libertar o ser humano dessa sua alienação existencial. Também para o judeo-cristianismo a “experiência do mundo” que o homem faz depois que deixou o paraíso é feita, em boa parte, de dores de parto para a mulher, penas do trabalho para o varão, a dominação permeando as relações entre ambos e, �nalmente, a morte como volta ao pó (cf. Gn 3,16-19). Contudo, para a Bíblia, mesmo depois do pecado, o mundo não perdeu sua bondade criacional e continua reservado à plenitude escatológica, que as Escrituras chamam de “novos céus e nova terra” (Is 65,17; 66,22; 2Pd 3,13; Ap 21,1). Ademais, para a fé bíblica, existe uma alienação mais profunda que a existencial, sendo dessa a origem: o pecado como alienatio a vita Dei (Ef 4,18). Por isso também, sua promessa de sentido último é mais que a simples superação da conditionhumaine: é a comunhão eterna com Deus no amor. Seja como for, para todo ser humano, a pergunta pelo sentido é inelutável como é inelutável sua resposta. Já que é a vida que põe a pergunta, é a vida também que responde. É, pois, executivamente, ou seja, por um “ato axiomático” (R. Euken) que o ser humano dá sua reposta à inescapável questão do sentido. Estamos tão “condenados ao sentido”, na expressão de Merleau-Ponty, como estamos “embarcados”, segundo Pascal, na viagem da vida em direção a seu destino. Todo homem tem ou então põe inevitavelmente um sentido de vida, certo ou errado que seja, quer pense nisso ou não. O sentido é a alma da vida. É o que dá à vida movimento e impulso. Pois o �m é a força que atrai, puxa, move e motiva a vida. Viver é sempre viver por algo ou por alguém. Viver sem sentido é vegetar, o que, para o homem, só é possível como estado clínico. Para o ser humano, não existe o absurdo radical, o vazio total do sentido, o niilismo absoluto. Mesmo a experiência extrema, além de equívoca, do suicídio é uma a�rmação paradoxal do sentido: a libertação de uma pena sentida como insuportável. 6. O mistério das coisas e seu sentido como mais-valia Amor, homem, vida, morte: tudo é mistério.43 O mundo está impregnado e, ao mesmo tempo, aureolado de transcendência. Há nele algo que grita por mais que si mesmo. No mistério do mundo transparece um mistério maior, que as religiões chamam Deus. É uma presença secreta, que brilha e rebrilha no coração das coisas. Embora sofra certo ofuscamento por causa da hybris do homem, essa luz não se apagou de todo, mas continua a coar por mil frestas. Tal é o milagre da criaturalidade, maravilha que arranca de um coração sensível os mais belos hinos de louvor, como o hino ao esplendor da criação que é o Salmo 103, o cântico das criaturas dos três jovens na fornalha (Dn 3,52-90); o poema da criação de Ben Sirac (Ecl 42,15-43,37); o “grande alarido” das criaturas “foi ele quem nos fez” (Sl 99,3) que ouviu Agostinho quando lhes perguntou quem era Deus (Conf. X, 6, 9-10); e �nalmente o comovente “Cântico do irmão sol” do Poverello. Certamente, Deus, que, como �m último, dá o sentido último ao mundo, é, em relação a ele, totaliter alter. Ele lhe é absolutamente transcendente e é, além disso, invisível e inefável por natureza. Entretanto, Ele não é estranho ao mundo, pois Ele mesmo o fez e nele deixou as marcas de “seu poder sempiterno e de sua santidade” (Rm 1,20). Se bem que invisível em si mesmo, Deus se faz de certa forma visível, transparecendo nas e pelas criaturas, como declara Paulo: “As perfeições invisíveis de Deus (...) se tornam visíveis à inteligência através de suas obras” (Rm 1,20). Só espíritos estreitos acham que o céu e a terra podem caber inteirinhos dentro de sua cacholinha. Mas quem não percebe o mistério do mundo, como irá perceber o mistério maior de Deus? “Voltaire, como todos os preguiçosos, odiava o mistério”, dizia Baudelaire.44 Para o poeta, o mistério não deixa de assediar o homem, como diz nestes versos: “Servo de Jesus, cortesão de Vênus, / (...) / Em tudo o homem sofre o terror do mistério, / E só olha para o alto com um olho tremente”.45 Até os acasos concorrem para a beleza do conjunto como se fossem dissonâncias propositadas no seio da sinfonia cósmica. Uma existência puramente material e empírica, reduzida a dados e destituída de todo signi�cado, como a que a ciência projeta, seria o “horror nu”.46 Mas a ótica cientí�ca não capta a totalidade do real. E nem pode fazê-lo, simplesmente porque ela assim o decidiu por princípio, isto é, de entrada, enquanto procura abstrair do aspecto qualitativo e signi�cativo das coisas. Nisso ela é estruturalmente reducionista. De fato, em relação ao ser total, ela opera um recorte arbitrário, que resulta, por exemplo, em matemática, em física, em química ou em qualquer outra ciência. Podemos assim dizer que a ciência, por opção metodológica, é tão niilista quanto ateia. Mas naturalmente, para além do que a ciência vê e experimenta, subsiste o “mais” das coisas: é seu sentido. E sentido não é um fato, é antes a alma do fato. O fato é suscetível de análise cientí�ca, não o sentido. Esse só se deixa compreender por um ato da inteligência. Não é também mera emoção, que a psicologia poderia estudar; é antes o princípio da emoção. Esse “mais” é uma dimensão metafísica ou transcendente das coisas, dimensão essa que só a intuição do espírito pode captar. Contudo, é somente aos olhos de uma visão rasa das coisas, como é a empirista, tenha ela forma cientí�ca ou espontânea, que o valor intrínseco delas aparece como um valor agregado. Não, o sentido como “mais-valia” ou como valor excedente não é algo que se acrescenta às coisas de fora, mas faz parte de sua constituição ontológica. É tal valor ou sentido que faz, por exemplo, com que uma pessoa seja mais que um espécimen do gênero “homem”, que pai seja mais que genitor, que �lho seja mais que cria, que amor seja mais que sexo, que mulher seja mais que fêmea, que casa seja mais que abrigo, que refeição seja mais que nutrição, que lua seja mais que satélite, que o céu seja mais que espaço estelar, em suma, que a vida seja mais que biologia.47 Com efeito, todo ser tem valor justamente pelo que é, enquanto é �m transcendental de uma vontade. Ora, �m, como dissemos, é a fonte de todo sentido. Isso �ca claro quando se observa uma cadeia de �ns, tal como a que se evidencia na seguinte ilustração: o sentido (ou a �nalidade) dos sons é a música, o sentido da música é emoção estética e o sentido da emoção estética é ela mesma (�m ou sentido imanente) ou então outra coisa, por exemplo, a oração (�m ou sentido transiente). Esse encaixe de sentidos nada tem de estranho e arti�cial. Ele representa antes a espessura constitutiva do tecido de nosso cotidiano. Como se vê, o sentido como mais-valia das coisas corresponde aqui a signi�cado ou princípio de inteligibilidade, o quarto aspecto de nosso “quadrilátero semântico”. Lembremos, porém, que o sentido- inteligibilidade depende do sentido-�nalidade, que é o aspecto primeiro e fontal de sentido. De fato, se, por exemplo, lar é a mais-valia da casa, ou seja, se casa é mais que abrigo, mas lar, é porque lar é a �nalidade da casa. Essa maravilhosa e ao mesmo tempo simples “epifania das coisas” que chamamos de sentido é por nós percebida em nosso cotidiano de modo espontâneo e natural. O sentido (extraordinário) das coisas (ordinárias) é por nós decodi�cado o mais das vezes de modo irre�exo como por certa “hermenêutica existencial”. Tal hermenêutica faz parte do nosso modo humano de viver as coisas. Com efeito, o homem, por sua essência racional ou, melhor, espiritual, não vê simplesmente o mundo como um bicho vê; antes, lê o mundo, vendo em tudo a irradiação de um sentido. Para nós, é impossível existir sem “viver” as coisas e lhes desvelar o sentido. É só mais tarde que pode ocorrer a tematização discursiva do sentido descoberto. O ser humano revela-se assim um hermeneuta nato, um ser interpretante, em suma, um “ser de sentido”. Ele é tal precisamente por ser portador do lógos, pelo qual lhe compete não conferir sentido às coisas, mas, antes, “recolher” (leghein) o sentido que delas se irradia e que as cerca como um halo.48 E é justamente esse modo humano e ordinário de “viver mundo”, enquanto capacidade de desvelar em tudo um sentido, que dá origem ao precioso fenômeno que é a cultura, esse imenso sistema de sentidos, expressos e encarnados no que chamamos os símbolos. E o que é a antropologia cultural senão o estudo desses símbolos e de sua interpretação? De modo semelhante, a ciência da história é o esforço de ler um sentido, especi�camente uma intenção, que, como alma, anima e ilumina o corpo dos fatos. As outras ciências humanas são essencialmente (e às vezes até se chamam) hermenêuticas exatamente por tratarem do homem, ser “racional”, que vê ou mesmo põe uma intenção, uma ratio, em suma, um sentido em tudo o que lhe diz respeito. Quando, entretanto, se trata de decifrar o “código da existência”