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ALASDAIR MACINTYRE E A ÉTICA NIETZSCHIANA: APONTAMENTOS PARA
UMA REFLEXÃO CRÍTICA
Article  in  Revista Dissertatio de Filosofia · January 2010
DOI: 10.15210/dissertatio.v32i0.8755
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1 author:
Helder Buenos Aires de Carvalho
Universidade Federal do Piauí
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ALASDAIR MACINTYRE E A ÉTICA NIETZSCHIANA: 
APONTAMENTOS PARA UMA REFLEXÃO CRÍTICA 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
Universidade Federal do Piauí 
Abstract: This paper aims to criticize MacIntyre’s reading of Nietzsche’s Moral Philosophy in 
his books After Virtue and Whose Justice? Which rationality? in order to show 
misunderstandings of nietzschean perspective, as well as to figure out how MacIntyre 
incorporates significantly in his own philosophical approach conceptual contents of 
Nietzsche’s genealogical approach. 
Keywords: Nietzsche, MacIntyre, moral. 
 
Resumo: O artigo busca problematizar a leitura que MacIntyre faz da filosofia moral 
nietzschiana em suas obras After Virtue e Justiça de Quem? Qual Racionalidade?, de modo 
a evidenciar possíveis incompreensões da perspectiva nietzschiana, bem como mostrar que 
MacIntyre se apropria de elementos conceituais de Nietzsche de forma significativa. 
Palavras-Chave: Nietzsche, MacIntyre, moral. 
 
 
Introdução 
Nietzsche é um daqueles filósofos que se parece mais com um 
torpedo, tanto no senso comum como no meio acadêmico. Sua leitura gera 
controvérsias, não deixa o seu leitor passivo, provoca-o, ao mesmo tempo não 
se deixa dominar. Interpretá-lo é sempre um desafio, uma necessária tensão 
sempre se instala entre o intérprete e sua escritura. Sua obra é repleta de 
afirmações que se contradizem, sua reflexão não é estática, mas dinâmica, um 
pensamento inquieto, que se recusa à leitura fácil. Como toda grande 
filosofia, seu pensamento foi vulgarizado e trivializado, gerando as mais 
díspares interpretações. Assim, ler Nietzsche é penetrar num universo 
© Dissertatio [32] 277 – 318 verão 2010 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
278 
labiríntico, em que a prudência é mais que essencial para não chegar a 
conclusões apressadas acerca do sentido de suas asserções fundamentais, para 
separar o joio do trigo, o estilo do conteúdo, a sedução da filosofia. O caráter 
polêmico é inerente à sua obra, tanto no método e no estilo, quanto nos 
temas e nas conclusões. E o próprio Nietzsche, enquanto pessoa humana 
particular, também encarnou essa polemicidade, sua vida movimentada 
acabou contribuindo para alimentar esse aspecto labiríntico de sua reflexão. 
A reação à obra de Nietzsche tem um caráter pendular: “Ora ele é 
considerado um canalha, precursor do nazismo, um monstro. Ora ele é 
considerado um iconoclasta, um liberador, um benefício para a 
humanidade”.1 Do Nietzsche gideano, defensor dos impulsos secretos e da 
pureza pessoal; passando pelo Nietzsche nazista, detrator da moral cristã e da 
democracia, elogioso das “bestas loiras”; e pelo Nietzsche desnazificado, não 
anti-semita, até o Nietzsche campeão da liberdade individual, da 
autorealização, um mestre da suspeita, crítico radical da civilização e da 
cultura.2 
Essa dificuldade de compreender a filosofia de Nietzsche é reforçada 
pela forma de sua obra, “aparentemente de acesso mais fácil, que atrai pelo 
brilho do seu estilo, pela forma aforística, que seduz pela temeridade de suas 
formulações, que enfeitiça pela beleza dos seus textos, que atordoa pela magia 
das suas posições extremas”.3 Diante disso tudo, porém, não estamos 
imbuídos do espírito daqueles que afirmam que “Nietzsche fundou o 
terrorismo do pensamento”4 ou que pretendem promover uma demolição do 
seu pensamento através dos instrumentos conceituais por ele mesmo 
forjados,5 mas sim que “está na hora de enfrentarmos, sem intermediações, a 
provocação da fala de Nietzsche: corrosiva, mas também construtiva”.6 
Nosso trabalho não atinge a totalidade da obra de Nietzsche, 
referindo-se essencialmente às obras Genealogia da Moral, Verdade e Mentira 
no sentido Extra-Moral e O Nascimento da Tragédia. E vamos tomar como 
objeto de análise a leitura de Nietzsche feita pelo neoaristotélico Alasdair 
 
1 Coelho, 1994. 
2 Sobre essas diferentes recepções da obra de Nietzsche, ver Marton (2010) e Tanner (2000). 
3 Fink, 1983, p.9. 
4 Coelho, 1994. 
5 Ferry et alii, 1994. 
6 Marton, 1994. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
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MacIntyre, em suas obras After Virtue (1985) e Justiça de Quem? Qual 
racionalidade? (1991), em relação à problemática moral, buscando contrapô-
la ao texto nietzschiano, apoiando-nos em parte na interpretação de Eugen 
Fink (1983), a fim de levantar as insuficiências ali presentes.7 Ou seja, nosso 
objetivo é encontrar elementos na obra de Nietzsche que possam levantar 
suspeitas contra a validade da leitura macintyreana ou, pelo menos, 
complexificá-la. Contudo, não pretendemos também esgotar a posição de 
MacIntyre,8 pois esta estará tomada pontualmente, sem uma inserção mais 
completa no conjunto de sua obra, ou seja, os motivos que o levou a realizar 
essa leitura de Nietzsche, as forças vitais e conceituais que o movem não 
serão totalmente abordados. Portanto, nosso trabalho vai ser pontual em 
ambos os termos da problemática, tanto em Nietzsche, quanto em MacIntyre, 
não totalizante, assumindo plenamente o caráter de ensaio provisório, como 
apontamentos reflexivos. 
 Na leitura de MacIntyre, Nietzsche é caracterizado como um 
emotivista moral, ápice do individualismo liberal, postulador de um 
perspectivismo irracional e oposto à teorização aristotélica. Iremos discutir 
somente as três primeiras asserções, já que a última implicaria uma discussãoAires de Carvalho 
 
310 
“Espírito Livre”. A ciência do espírito livre é uma ciência 
alegre, la gaya scienza.98 
O que subjaz a esse momento da obra nietzschiana é o 
desmascaramento da perda do homem, desse seu afastar-se de si mesmo, já o 
vimos na sua crítica à moral do escravo e ao ideal ascético do sacerdote, na 
medida em que se submeteu ao sobre-humano; e a religião, a metafísica e a 
moral são as formas dessa servidão. A moral do escravo, o ideal ascético, a 
mentira da ciência e sua vontade de verdade, a cultura apolínea enquanto 
negadora do dionisíaco, são reveladas por ideais forjados pelo próprio 
homem, como máscaras para sua “alienação” de si mesmo, negadoras da sua 
condição de criador de valores, como rupturas com a visão trágica da 
existência, de afastamento do homem de sua unidade com o devir 
primordial, com a torrente vital dionisíaca, o fundamento de tudo. Com a 
crítica proporcionada pela gaia ciência, o homem aprende que viver significa 
ousar, que a vida torna-se possível como experiência, experiência criadora, 
arte da vida; pois, como descreve Fink, 
o homem já não procura no exterior os seus objetivos, mas no 
interior de si próprio, a vida já não tem significado 
antecipadamente dado, já não está presa, já não é conduzida 
pela vontade de Deus, já não é conduzida em andaduras pelas 
prescrições da moral, já não está presa, já não está 
condicionada por um ultra-mundo metafísico que fica além 
do mundo dos fenômenos, já não é entravada por nenhuma 
força sobre-humana – tornou-se livre.99 
Esse estado de espírito de liberdade, como resultante do cultivo de 
uma ciência “alegre” – a gaia ciência –, Nietzsche o descreve como sendo 
senão 
as saturnais de um espírito que resistiu pacientemente uma 
terrível e grande pressão (…) e que agora, de repente, se vê 
cheio de esperança, a esperança da cura, a “embriaguez” da 
cura. (…) E que este livro, todo ele, não é mais que festa 
 
98 Fink, 1983, p.56. 
99 Idem, p.56. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
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depois das privações e das debilidades; é o júbilo das forças 
que renascem; a nova fé na manhã e na manhã passada, o 
sentimento súbito e o pressentimento do porvir, das aventuras 
próximas e dos mares abertos, dos fins novamente lícitos e 
nos quais se pode acreditar de novo.100 
Para ele, aquele que se regenerou, que saiu da enfermidade, aprendeu 
com os gregos, aqueles que sabiam viver, que operavam na sabedoria de que 
para viver é necessário saber permanecer bravamente na 
superfície, na epiderme, adorar a aparência, crer na forma, 
nos sons, nas palavras, em todo o Olimpo da aparência! (…) 
Não somos nós precisamente nisto gregos, adoradores das 
formas, dos sons, das palavras; e, por isto, artistas?101 
Aqui podemos ver, então, que a ótica da vida para Nietzsche está 
repousada, em última instância, na ótica da arte, na sua visão estético-
cosmológica da existência. 
III. Cotejando as perspectivas macintyreana e nietzschiana 
Após esse percurso, podemos agora nos posicionarmos, mesmo que 
provisoriamente, acerca das teses macintyreanas sobre Nietzsche e de suas 
relações com este fundamental pensador da modernidade. Acreditamos que 
suas teses repousam numa leitura parcial de Nietzsche, o que o conduz a 
algumas caracterizações insustentáveis frente ao texto nietzschiano. Essa 
parcialidade é decorrente da necessidade de MacIntyre em afastar qualquer 
alternativa à retomada da posição aristotélica frente ao fracasso do 
Iluminismo em fundamentar racionalmente a moral. Para isso, subsume 
Nietzsche no clima emotivista da cultura pós-iluminista, forjada na 
modernidade, e no seu fracasso no âmbito da reflexão moral. E o faz 
desconsiderando que a meta-ética nietzschiana está calcada numa perspectiva 
estético-cosmológica da existência, na visão trágica do devir primordial 
subjacente a todo finito. A crítica da cultura iluminista e de toda tradição 
 
100 Nietzsche, 1959, p.39-40. 
101 Idem, p.45-6. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
312 
filosófica ocidental feita por Nietzsche, a crítica da religião, da ciência e da 
metafísica como máscaras para a origem humana de todas as transcendências, 
são feitas a partir da ótica da vida. A conceituação de vida, do vital em 
Nietzsche, não se confunde com o emocional e o psicológico, é um 
fundamento cosmológico, um conceito do mundo: o dionisíaco como fundo 
primordial de todo existente. 
A crítica genealógica que faz à moralidade iluminista, a busca de sua 
gênese, visa identificar a valoração que lhes é subjacente, através do critério 
da vida. Ao derrubar a transcendência ou suas fontes transcendentais, 
Nietzsche identifica as origens humanas, demasiado humanas, da moral, mas 
sem desembocar no subjetivismo, nem no relativismo morais; pois aponta 
uma clara opção pela moral aristocrática, na medida em que esta recolhe a 
fonte primordial de avaliação de todas as normas: a torrente vital dionisíaca 
que está por trás de todo impulso apolíneo, de toda forma que é finita. A 
moral dos senhores, ou aristocrata, é a moral que se reconhece no fundo 
primordial vital, que assume plenamente o caráter artístico como justificador 
de qualquer existência. 
MacIntyre não considera o elemento estético-cosmológico que está 
presente no filosofar nietzschiano, dessa âncora da “metafísica do artista” que 
sustenta sua afirmação de toda e qualquer manifestação da vida primordial, 
na forma da aceitação trágica de todo finito como aparência, obra estética, 
apolínea, do devir primordial dionisíaco. Ao olhar para o mundo, Nietzsche 
opera uma “axiologização” do existente, e de todas as suas formas, ao avaliá-
los pelo prisma da ótica vital, de expressão ou não do reconhecimento do 
uno-primordial – que ele chama de Dionísio, a embriaguez que envolve o 
movimento do todo, onde as individuações se desfazem no eterno 
movimento de construção e destruição. 
A figura do Übermensch, o super-homem nietzschiano,102 acusado 
por MacIntyre de ser a expressão do solipsismo moral de Nietzsche, de sua 
defesa do individualismo liberal, não pode ser compreendida isoladamente 
da perspectiva estético-cosmológica que lhe dá compreensibilidade. Ao 
criticar e refutar toda pretensão de fundamentação racional da moral 
iluminista, Nietzsche não depositou nas mãos do indivíduo, pura e 
 
102 Sobre as diferentes e sempre discutidas traduções de Übermensch, ver Marton (2010) e as notas 
sobre isso em Sousa (2010), dentre outros. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
313 
simplesmente, da vontade de poder, a possibilidade constantemente aberta de 
criar valores. Para ele, toda e qualquer moral só pode ser justificada, 
fundamentada esteticamente, ou seja, enquanto se vincula ao devir 
primordial dionisíaco do mundo, a visão trágica da existência. Daí porque 
recusar toda a moral de rebanho, a moral do escravo, que se caracteriza pela 
negação da vida, pela não compreensão do eterno movimento de criação e 
destruição de todo finito, se vinculando a um transcendente, a um além que 
não existe. A vontade de potência, o indivíduo, só é justificada em Nietzsche 
pela sua vinculação à atividade estético-criadora que está presente na torrente 
vital do uno-primordial, à visão dos poderes vitais da realidade do mundo 
trágico. 
O isolamento do Übermensch, de sua não-sociabilidade com os outros 
homens, se justifica por ele não estar vivendo ainda no âmbito de uma 
cultura dionisíaca, mas numa cultura onde a moral de rebanho é ainda o 
predomínio, onde o niilismo negador da vida atinge o seu ápice. Nesse 
contexto ele não tem como deixar de parecer aos outros homens como 
arrogante, mentiroso e individualista. Ele não vive mais sob os desígnios de 
Deus, nem de uma ordem verdadeira última, metafísica; suas ações se fazem 
sob o signo de outros valores, humanos, demasiado humanos, em que sua 
condiçãode animal de rapina não é negada ou destruída. Assume a condição 
do artista criador, de integrado no mundo das aparências apolíneas, mas que 
não vive na “mentira” da ciência. A crítica de Nietzsche ao liberalismo é 
decorrente de ele não prover as condições para esse novo homem ou até 
mesmo destruí-las.103 
O Übermensch assume plenamente a moral do nobre, do aristocrata 
guerreiro, da manifestação da vida, da gaia ciência. É um espírito livre, 
humano, autônomo, que se reconhece como forma finita do fundo 
primordial dionisíaco, que aceita a tragicidade inerente à existência sem se 
refugiar nas abstrações do mundo científico, desprovidas de vida, que recusa 
o ascetismo e toda a inversão de valores dele oriunda – é o homem que 
 
103 “As instituições liberais deixam de ser liberais tão logo são alcançadas: mais tarde, não há piores e 
mais radicais danificadores da liberdade, do que instituições liberais. Sabe-se, até, o que essas 
instituições conseguem: minam a vontade de potência, começam a trabalhar nivelando montanhas e 
vales, e chamam isso de moral, tornam as coisas pequenas, covardes e agradáveis – elas representam 
o triunfo contínuo dos animais de rebanho. Liberalismo: animalização em rebanho, em outras 
palavras...”. (Nietzsche, 2005, p.216) 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
314 
transvalorou, que assumiu na plenitude o olhar dionisíaco que Nietzsche 
lança sobre o mundo e suas formas culturais, que vive de uma maneira 
marcadamente estética, para além do bem e do mal, em que ele mesmo e o 
princípio de individuação se dissolvem no fundo primordial dionisíaco. Não 
há, assim, a afirmação de um individualismo essencial na filosofia 
nietzschiana, como o fazem os teóricos liberais. 
Quanto ao perspectivismo nietzschiano, MacIntyre o acusa de ser um 
abandono da racionalidade – essa talvez seja sua tese mais contundente e 
mais complexa para criticar. Contudo, em Nietzsche não temos uma negação 
pura e simples da racionalidade, repousada numa visão simplesmente cética 
ou então volitiva acerca da verdade das coisas. Ao criticar a ciência, 
problematizando-a pela perspectiva estético-cosmológica do devir primordial, 
Nietzsche aponta para os seus limites, para sua “mentira” ao se pretender ser 
a única verdade. A visão trágica do mundo exige que se reconheça até mesmo 
a finitude do conhecimento. Nietzsche não pesa as verdades da ciência do 
ponto de vista epistemológico puro, ele desloca a questão para a ética da vida, 
para avaliar se as “verdades” favorecem ou não o fluir da torrente vital 
dionisíaca e do seu reconhecimento. 
Nietzsche não afirma um puro irracionalismo, mas aponta os limites 
do racionalismo, o fundamento sobre o qual ele se assenta. Recusa um 
racionalismo que imobiliza o devir, que nega a condição trágica do mundo, 
do eterno retorno a ele subjacente. Ousaria dizer, mesmo apressadamente, 
que seu perspectivismo é mais metódico que de conteúdo, pois quando 
analisa criticamente a moralidade e sua gênese, não desemboca na afirmação 
de que toda e qualquer moral vale, uma moral constituída ao bel prazer dos 
indivíduos; mas afirma um ideal moral fundado na compreensão 
fundamental da existência humana integrada ao devir cosmológico, ao nascer 
e morrer, ao movimento vital e constante do eterno retorno, criação e 
destruição como caráter de todo existente, portanto, também de toda moral. 
A ideia do “espírito livre” é justamente daquele que não tem mais as amarras 
ontológicas, religiosas ou científico-racionais a conduzir a avaliação de sua 
existência; sua referência passa a ser a perspectiva estético-cosmológica da 
existência, o dionisíaco como uno-primordial do qual não passamos de 
alguns momentos transitórios, frutos de sua necessidade de expressar-se em 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
315 
formas artísticas – como não poderia deixar de ser, em um dizer sim ao 
mundo, tal como ele é na sua finitude.104 
Dessa forma, parece que as teses macintyrianas se revelam 
problemáticas frente os elementos fornecidos pelo próprio Nietzsche. Elas 
claramente sofrem de uma leitura parcial de pontos importantes de sua 
filosofia, não permitindo uma crítica mais cortante destes, ao não levar em 
conta todos os seus elementos constitutivos. Contudo, elas apontam para um 
ponto importante da filosofia nietzschiana: o elemento intuitivo nela 
presente. O papel da intuição no filosofar nietzschiano é um dado que ele 
mesmo indicou na sua preferência pelo homem intuitivo em relação ao 
homem racional, bem como pelo mito e, especialmente, a arte, em relação à 
ciência. A intuição como elemento organizador do mundo, diríamos, não é 
um elemento muito convincente como um princípio diretor, referencial ou 
método organizatório da vida moral e social. Como tal, a intuição pode 
representar uma fuga do confronto sério entre as diferentes perspectivas, tão 
prezadas por Nietzsche, envolvidas no trabalho de tornar inteligível a ação 
humana. Intuições diferentes por indivíduos, grupos ou comunidades 
diferentes apelariam a que para a resolução de suas disputas no espaço 
político comum, uma vez que todas seriam intuições genuínas?105 Nietzsche 
não nos oferece propriamente uma resposta para isso. 
 Além disso, o referencial da vida, assumido por Nietzsche como 
critério último de valoração das morais, será ele próprio objeto de disputa 
por intuições diferenciadas. Qual vida? Vida de quem?106 MacIntyre está nos 
levando, com suas teses, e a despeito de seus elementos problemáticos acima 
apontados, a nos perguntar também pelo valor da valoração de Nietzsche. 
 
104 “Não se trata de um tipo biológico superior ou de uma nova espécie engendrada pela seleção natural, 
mas de quem organiza o caos de suas paixões e integra numa totalidade cada traço do seu caráter, de 
quem percebe que seu próprio ser está envolvido no cosmos, de sorte que afirmá-lo é afirmar tudo o que 
é, foi e será”. (Marton, 2010, p.59) 
105 Esse é um ponto que merece ser refletido com maior profundidade e mais paciência, de forma que se 
possa verificar se, por essa via, o filosofar de Nietzsche desemboca ou não em uma negação total da 
razão ou se, pelo contrário, reside nele uma vontade de afirmar uma outra forma de racionalidade, que 
valoriza a vida plenamente no sentido dionisíaco, que ele próprio não chegou a teorizar 
sistematicamente, mas que talvez tenha postulado, ao ridicularizar e levar a extremos as formas 
racionalistas do seu tempo 
106 Nesse sentido, Nietzsche não foi, de fato, muito propositivo no aspecto de elaborar uma filosofia 
social e política que pudesse oferecer respostas mais claras. O lado descontrutivo de suas críticas 
prevaleceu nos seus escritos. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
316 
Curiosamente, MacIntyre aplica em Nietzsche o próprio método genealógico 
nietzschiano, ao inseri-lo na história da moralidade do Ocidente em After 
Virtue; ao buscar as raízes da atual crise moral, cava a superfície da cultura 
moderna em busca das camadas que ficaram escondidas e que estão na base 
de nossos problemas, e das quais Nietzsche faz parte. 
Entretanto, a nosso ver, MacIntyre parece mais nietzschiano do que 
avalia ser. Ao assumir o diagnóstico nietzschiano da moralidade moderna, 
acabou assumindo deste ferramentas de compreensibilidade da vida moral. 
MacIntyre compartilha com Nietzsche a visão do conflito como expressão da 
dinâmica do mundo moral, essa física do movimento que se instalou 
visceralmente após a emergência do mundo moderno, mas que já estava 
presente na visão trágica contida no teatro grego de Sófocles: a possibilidade 
de que na vida moral nem sempre temos escolhas simples, mas pode haver 
situações em que haja a impossibilidade de uma única escolha certa, pelo fato 
de as alternativas serem igualmente válidas. Dai porque MacIntyre buscar 
formular uma racionalidade do confronto das tradições, mas assumida sem 
qualquer princípiouniversal a priori a regulá-lo, como saída para as querelas 
morais contemporâneas. Compartilha com Nietzsche o gosto pela 
historicidade da vida moral, daí ter assumido metodicamente a genealogia 
nietzschiana para realizar sua genealogia da moralidade moderna em After 
Virtue, mas ao mesmo tempo voltando essas ferramentas contra o próprio 
Nietzsche. 
Enfim, parece haver por parte de MacIntyre uma troca dialética com 
Nietzsche em termos filosóficos, enriquecedora de sua própria perspectiva 
teórica, mas não uma mera recusa de um autor avaliado como tendo caído 
no erro.107 Se torna Nietzsche alvo de suas críticas, ao mesmo tempo 
reconhece nele uma contribuição filosófica fundamental no debate moral, 
assumindo ferramentas conceituais destes para sua própria reflexão sobre a 
crise moral contemporânea e suas raízes culturais. 
 
107 Uma familiaridade que gera, por exemplo, a hipótese de haver uma certa convergência entre 
MacIntyre e Nietzsche, não uma exclusão mútua. Sobre isso, ver o trabalho de Sousa (2010). 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
317 
Referências 
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Universidade Federal do Piauí, Mestrado em Ética e Epistemologia, 2010. 
(Dissertação). Acessado em 28 de agosto de 2010 no endereço: 
 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
318 
TANNER, M. Nietzsche – A very short introduction. Oxford: Oxford University 
Press, 2000. 
VOLPI, F. O niilismo. São Paulo: Loyola, 1999. 
Email: buenos36@hotmail.com 
Recebido em: Setembro/2010 
Aprovado em: Novembro/2010
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https://www.researchgate.net/publication/324787539mais extensa e profunda, que não comportaria em um único artigo. Nossa 
posição, a ser aqui desenvolvida, é de que a tentativa de MacIntyre em 
localizá-lo numa tradição determinada de pensamento – conceituada de um 
modo geral, a tradição liberal do individualismo – acaba por reduzi-lo a 
posições que o próprio Nietzsche criticaria em absoluto, caracterizando-se 
como uma leitura seletiva que desconsidera elementos importantes e que 
sugere possíveis insuficiências frente ao texto nietzschiano. 
I. MacIntyre leitor de Nietzsche 
Nietzsche é lido por MacIntyre na esteira da tese de fundo que 
desenvolve sistematicamente no seu livro After Virtue (1985), em relação à 
crise moral gerada a partir da emergência da modernidade, segundo a qual o 
fracasso na tentativa iluminista de fundar a moral racionalmente “não é 
outra coisa que a consequência histórica da rejeição da tradição aristotélica”.9 
 
7 Sobre como Nietzsche aparece em Three rival versions of moral enquiry (1990), ver Sousa (2010). 
8 Para uma visão mais completa da filosofia de MacIntyre, ver Carvalho (1999). 
9 MacIntyre, 1985, p.117. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
280 
Para ele, melhor do que qualquer outro pensador, foi Nietzsche quem 
percebeu o caráter de disponibilidade a qualquer tipo de uso da linguagem 
moral na modernidade, daí sua filosofia moral ser “uma das alternativas 
teóricas genuínas a que se enfrenta qualquer um que pretenda analisar a 
condição moral de nossa cultura”.10 A façanha histórica de Nietzsche foi 
entender, mais claramente que qualquer outro filósofo, que aquilo que 
parecia ser apelo à objetividade – apelo característico do projeto filosófico do 
Iluminismo – era, de fato, expressões de vontade subjetiva, como também a 
natureza dos problemas que isto colocava para a filosofia moral. O erro de 
Nietzsche, para MacIntyre, foi que “ilegitimamente generalizou da condição 
do juízo moral em seu próprio tempo para a natureza da moral enquanto tal. 
(...) Mas é igualmente digno de nota que (...) isto é um insight genuíno”.11 
MacIntyre cita o §335 de A Gaia Ciência12 – em que Nietzsche zomba 
da noção de moralidade fundada nos sentimentos morais interiores, na 
consciência, de um lado, ou no imperativo categórico kantiano, de outro – 
como referência para fundar sua interpretação da estrutura básica do 
argumento nietzschiano. 
Se não há nada de moralidade, mas expressões de vontade, 
minha moralidade pode ser somente aquela que minha 
vontade criará. Não pode haver lugar para tais ficções como 
direitos naturais, utilidade, a maior felicidade para a maioria. 
Eu mesmo devo trazer a esta existência ‘novas tábuas do que é 
o bem’.13 
O sujeito moral autônomo racional e racionalmente justificado do 
Iluminismo é uma ficção, uma ilusão. Assim, para MacIntyre, Nietzsche 
resolve deixar a vontade substituir a razão e vamos nós mesmos nos 
transformarmos em sujeitos morais autônomos por um ato de vontade 
gigantesco e heróico. O problema, então, de como construir de um modo 
original, de como inventar uma nova tábua de valores, é um problema que 
emerge para cada indivíduo. 
 
10 Idem, p.110. 
11 Ibidem, p.113. 
12 Nietzsche, 1959, p.113. 
13 MacIntyre, 1985, p.114. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
281 
Este problema constituiria o núcleo de uma filosofia moral 
nietzschiana. Pois é na sua implacavelmente séria perseguição 
do problema que reside a grandeza de Nietzsche, grandeza 
que faz dele o filósofo moral se as únicas alternativas à 
filosofia moral de Nietzsche mostrarem-se ser aquelas 
formuladas pelos filósofos do Iluminismo e seus sucessores.14 
Para MacIntyre, uma vez que o projeto iluminista da moralidade 
fundada racionalmente falhou, porque as posições desenvolvidas pelos seus 
protagonistas intelectuais mais poderosos, mais especialmente Kant, não 
puderam ser sustentadas em face de uma crítica racional, é que Nietzsche e 
todos os seus sucessores existencialistas e emotivistas foram capazes de 
produzir uma crítica aparentemente bem sucedida de toda a moralidade 
anterior. A associação de Nietzsche ao emotivismo,15 feita por MacIntyre, é 
explicitada claramente, aqui, quando ele afirma que todo o poder da posição 
de Nietzsche depende da validade de uma única tese central: “que toda 
justificação da moralidade manifestamente falha e que, portanto, a crença 
nos princípios da moralidade necessita ser explicada em termos de um 
conjunto de racionalizações que oculta o fenômeno fundamentalmente não-
racional da vontade”.16 
E avança essa caracterização quando lembra a arguição de R. Dworkin 
de que a doutrina central do moderno liberalismo é a tese de que questões 
como a vida boa para o homem ou os fins da vida humana – isto é, os 
valores orientadores da ação histórica do homem –devem ser vistos como, do 
ponto de vista público, como sistematicamente abertos, ou seja, “sobre isso os 
indivíduos são livres para concordarem ou discordarem”.17 Nesse sentido, 
segundo a cultura emotivista, as normas morais, os valores éticos não são 
objetos de discussão racional, portanto, não há critérios universais válidos 
 
14 Idem, p.114. 
15 “Emotivismo é a doutrina de que todos os julgamentos valorativos e mais especificamente que todos 
os juízos morais não são nada mais que expressões de preferência, de atitudes ou sentimentos, na 
medida em que eles são de caráter moral ou valorativo. (...) juízos morais, sendo expressões de atitudes 
ou sentimentos, não são verdadeiros nem falsos; e acordos entre julgamentos morais não vão ser 
assegurados por nenhum método racional, pois não existe nenhum”. (MacIntyre, 1985, p.12) 
16 Ibidem, p.117. 
17 Idem, p.119. Rawls, em seu A theory of justice (1971), também compartilha desse horizonte liberal que 
desloca as concepções de bem para o âmbito do privado. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
282 
para sua escolha e fundação, colocando-os então na esfera das emoções, do 
pré-racional, das decisões livres dos indivíduos. 
Em relação ao individualismo liberal nietzschiano, MacIntyre o 
caracteriza a partir da figura do Übermensch, o super-homem nietzschiano. 
Este homem, o homem que transcende, não encontra seu bem em lugar 
algum do mundo social datado, “mas somente no que nele próprio dita sua 
própria nova lei e sua própria nova tábua de virtudes”.18 Esse super-homem 
não encontra nenhum bem objetivo com autoridade sobre ele no mundo 
social datado porque ele é vazio no tocante às relações pessoais e atividades 
sociais. O Übermensch, a filosofia moral nietzschiana, está calcado num 
solipsismo moral, pois elabora uma visão do super-homem (great man), em 
sua obra A vontade de potência (1951), isolado da sociabilidade, solitário. 
MacIntyre chega a transcrever parte de uma das notas (962): 
Um super-homem (great man) – um homem cuja natureza 
construiu e inventou em grande estilo – o que ele é? (...) Se ele 
não pode conduzir, ele vai sozinho; então pode acontecer que 
rosnará a alguma coisa que encontra no caminho (...) ele não 
quer corações ‘compreensivos’, mas servos, ferramentas; no 
seu intercurso com os homens, ele é sempre solícito em criar 
casos com eles. Ele sabe que ele é incomunicável: ele os acha 
insípidos para poderem ser-lhes familiar; e quando alguém 
pensa que ele é, ele geralmente não é. Quando não falando 
para si mesmo, ele veste uma máscara. Ele antes mente do que 
fala a verdade: ele requer mais espírito e vontade. Há uma 
solidão dentro dele que é inacessível ao elogio ou ao medo, 
sua própria justiça está além do apelo.19 
Essa solidão do super-homem (great man) faz com que ele só possa 
fundar a moral em si mesmo, na sua própria vontade, de ser a sua própria 
autoridade moral auto-suficiente, recusando qualquer heteronomia, num 
processo de auto-absorção. Esta caracterização do super-homem, segundo 
MacIntyre, é central para a argumentaçãonietzschiana de que “a moralidade 
da sociedade européia, desde a antiguidade na Grécia, não tem sido mais que 
 
18 MacIntyre, 1985, p.257. 
19 Apud MacIntyre, 1985, p.257. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
283 
um conjunto de máscaras para a vontade de poder e que a pretensão à 
objetividade de tais moralidades não pode ser racionalmente sustentada”.20 
Pois o super-homem (great man) quando fala com os outros homens, é 
máscara pura, não se comunica, mente, exige vigor e vontade, nunca espírito 
racional. Daí que o conceito de super-homem (great man) ser, na visão de 
MacIntyre, um pseudo-conceito, por se colocar fora da sociabilidade e da 
racionalidade, representando a tentativa final do individualismo de escapar às 
suas próprias conseqüências. Ao querer ser uma alternativa viável à 
modernidade individualista liberal, de escapar à confusão instalada na 
linguagem da moralidade moderna – carregada de pseudo-conceitos como os 
de utilidade e direitos naturais – a posição nietzschiana é, ao contrário, o 
momento mais representativo do seu desenvolvimento interno. “A posição 
nietzschiana é somente mais uma faceta daquela mesma cultura moral da 
qual Nietzsche se assumiu como um crítico implacável”.21 
Por fim, em sua obra Justiça de Quem? Qual Racionalidade? (1991), 
MacIntyre, ao caracterizar o perspectivismo moral, no confronto com o seu 
conceito de pesquisa racional constituída pela tradição e dela constitutiva, 
refere-se à Nietzsche, ao lado de Durkheim, como seus antecessores. Segundo 
ele, o perspectivismo está comprometido em manter que nenhuma 
reivindicação de verdade, feita em nome de qualquer uma das tradições 
culturais em competição na arena da sociedade, poderia preterir as 
reivindicações feitas em nome de seus oponentes, afirmando ser-lhes superior. 
Com isso, o perspectivismo supõe que “alguém poderia temporariamente 
adotar o ponto de vista de uma tradição, e, aí, trocá-lo por outro, como se 
troca de roupa, ou como se alguém pudesse ter um papel numa peça e, 
depois, um outro completamente diferente, numa peça também diferente”.22 
Contudo, para MacIntyre, o perspectivismo é uma doutrina que só é 
possível para aqueles que encarnam uma série sucessiva de papéis 
temporários. “De seu ponto de vista, todas as concepções da verdade, exceto a 
mais ínfima, parecem ter sido desacreditadas. (...) Portanto, a sua não é tanto 
um conclusão sobre a verdade, quanto uma exclusão dela e, dessa forma, do 
debate racional”.23 E Nietzsche compreendeu isso muito bem, pois não se 
 
20 Idem, p.258. 
21 Ibidem, p.258. 
22 MacIntyre, 1991, p.394. 
23 Idem, p.395. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
284 
empenhou numa argumentação dialética com Sócrates, o que implicaria 
numa sujeição à tirania da razão. 
Não se deve discutir com Sócrates, devemos ridicularizá-lo 
por sua feiúra e maus modos. Tal ridicularização, como 
resposta à dialética, é imposta nos parágrafos aforísticos de 
Götzen-Dammerung. (...) Um aforismo não é um argumento. 
Gilles Deleuze o chama de ‘jogo de forças’ (...), algo através do 
qual energia é transmitida, e não através do qual conclusões 
são alcançadas.24 
Ou seja, o perspectivismo nietzschiano conduz à irracionalidade no 
âmbito da moralidade, reduzindo tudo a um jogo de forças e de máscaras 
que escondem estas forças. 
Podemos, então, até aqui, resumir em três proposições básicas a leitura 
macintyreana de Nietzsche: 
 
1. Nietzsche é um emotivista moral; 
2. Nietzsche é o ápice do individualismo liberal; 
3. Nietzsche é um perspectivista irracional. 
 
Agora voltaremos nossa análise para o próprio Nietzsche, através de 
algumas de suas obras, e checar essas posições que lhe foram atribuídas por 
MacIntyre, com o concurso da interpretação de Eugen Fink. Mas convém 
antes ressaltar que MacIntyre não é um crítico puramente externo a 
Nietzsche, pois incorpora elementos teóricos deste em sua própria filosofia 
moral. Suas leituras de Nietzsche são marcadas, simultaneamente, pela 
admiração do seu diagnóstico crítico da moralidade moderna e pela recusa 
das alternativas propostas por ele como solução para o problema – Nietzsche 
é visto por ele como um moralista, não como mero negador de toda 
moralidade. O diagnóstico nietzschiano do fracasso da moralidade moderna 
é assumido quase na totalidade por MacIntyre, ou seja, ele não passa 
incólume pela leitura da obra de Nietzsche. 
 
24 Ibidem, p.395. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
285 
II. A metaética nietzschiana: o fundamento estético-cosmológico 
A leitura de algumas das obras de Nietzsche seguirá o roteiro de 
explicitação de uma linha mestra, a nosso ver, de sua filosofia moral: uma 
concepção estético-cosmológica do mundo. Concepção essa que perpassa toda 
a sua obra, proporcionando-lhe o pano de fundo conceitual possibilitador da 
compreensão dos movimentos e contradições aparentes presentes nos seus 
escritos, como também de suas tematizações. Entretanto, vamos nos limitar 
àqueles elementos que irão proporcionar uma checagem das teses 
macintyreanas, que possa explicitar fundamentos para a crítica destas, 
problematizando-as. 
Uma cosmologia estética ou “metafísica do artista” 
Segundo Fink (1993), a rejeição por Nietzsche da metafísica e da 
filosofia tradicional não é fruto de uma perspectiva ontológica, por estas não 
colocarem o problema do ser de maneira verdadeira, mas moral, ou seja, 
Nietzsche vê a metafísica como uma corrente de vida em que se confirmam 
avaliações, um movimento que contém valores que atrofiam, oprimem e 
enfraquecem a vida. Ele coloca a metafísica na ética da vida: 
Nietzsche não prova nem pesa as representações ontológicas 
da tradição metafísica por elas próprias, considera-as 
simplesmente como sintomas que indicam tendências da vida. 
Por outras palavras, ele não põe a questão do ser, pelo menos 
não da maneira como durante longos séculos a discutiram; o 
problema do Ser é recoberto pelo problema do valor.25 
Daí porque só ser possível entender as categorias filosóficas 
nietzschianas a partir dessa sua convicção fundamental: a sua interpretação 
do ser como valor. 
Em O nascimento da tragédia (1992), Nietzsche formula uma 
“metafísica do artista”, onde o tema estético adquire a condição de um 
princípio ontológico fundamental, na ideia de que a existência do mundo só 
 
25 Fink, 1983, p.15. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
286 
se justifica como fenômeno estético, onde já se explicita “um espírito que um 
dia (...) se porá contra a interpretação e a significação morais da existência”26 
– essa moral que Nietzsche se refere é o cristianismo como “desde sempre a 
hostilidade à vida, a rancorosa, vingativa aversão contra a própria vida”.27 Ao 
se perguntar pela natureza do trágico entre os gregos, Nietzsche, na verdade, 
formula uma visão fundamental do ser. No fenômeno trágico percebe a 
verdadeira natureza da realidade. A arte, a poesia trágica, torna-se para ele a 
chave que dá acesso à vida primordial do mundo. 
O fenômeno da arte é colocado no centro: é nele e a partir 
dele que deciframos o mundo. (...) Só com os olhos da arte 
consegue o pensador mergulhar o seu olhar no coração do 
mundo. Mas é essencialmente a arte trágica, a tragédia antiga, 
que possui este olhar penetrante.28 
A arte trágica apreende a vida trágica do mundo, “o mundo, a cada 
instante a alcançada redenção de Deus, o mundo como a eternamente 
cambiante, eternamente nova visão do ser mais sofredor, mais antitético, 
mais contraditório, que só na aparência sabe redimir-se”.29 No mundo 
trágico, a redenção não é entendida no sentido cristão do termo, mas na 
aceitação de que “há apenas a lei inexorável do declínio de tudo aquilo que 
surgiu do fundo do ser na existência individualizada, daquilo que se separou 
da corrente davida universal”,30 onde se encontram confundidas vida e 
morte, ascensão e decadência de tudo o que é finito. O sentido trágico da 
existência é 
um sentido de artista e um retro-sentido de artista por trás de 
todo acontecer – um “Deus”, se assim se deseja, mas decerto 
só um deus-artista completamente inconsiderado e amoral, 
que no construir como no destruir, no bom como no ruim, 
quer aperceber-se de seu idêntico prazer e autocracia, que, 
criando mundos, se desembaraça da necessidade da 
 
26 Nietzsche, 1992, p.19. 
27 Idem, p.25. 
28 Fink, 1983, p.18. 
29 Nietzsche, 1992, p.18. 
30 Fink, 1983, p.18. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
287 
abundância e superabundância do sofrimento das 
contradições nele apinhadas.31 
A aceitação trágica do declínio da própria existência, a aceitação do 
horrível e do medonho que há nela, é fruto do conhecimento de que todas as 
formas finitas são apenas ondas temporárias na grande maré da vida, pois o 
declínio do finito não é destruição pura e simples, mas regresso ao fundo 
primordial da vida de onde surgiram todas as coisas individualizadas, ou seja, 
tudo é uno. Na tragédia grega Nietzsche descobre 
a oposição da forma e da maré amorfa da vida, de peras e 
apeíron; do existente finito, o qual, votado à destruição, 
reverte para o mundo infinito, e deste próprio fundo que 
constantemente faz surgir de si formas – a esta oposição dá ele 
mesmo o nome de oposição entre o apolíneo e o dionisíaco.32 
O trágico é, então, compreendido como princípio cósmico, ou seja, 
uma compreensão do mundo, uma cosmologia.33 
Para Nietzsche, o desenvolvimento da arte está ligado à “duplicidade 
do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende 
da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas 
reconciliações”.34 São dois impulsos, os universos artísticos do sonho e da 
embriaguez. Apolo simboliza o grande plasmador de formas, o instinto 
plástico, o deus dos poderes configuratórios, a divindade da luz, “aquela 
limitação mensurada, aquela liberdade em face das emoções mais selvagens, 
aquela sapiente tranquilidade do deus plasmador”.35 
Apolo é o principium individuationis, que em meio a um mundo de 
tormentos dá o sentido de individualidade às coisas, “a partir de cujos gestos 
e olhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da ‘aparência’, 
juntamente com a sua beleza”.36 Quem nunca já exclamou alguma vez nos 
seus sonhos: “É um sonho! Quero continuar a sonhá-lo!”? – a necessidade da 
 
31 Nietzsche, 1992, p.18. 
32 Fink, 1993, p.18-9. 
33 Sobre a cosmologia em Nietzsche e sua conexão com os valores, ver Marton (2010b). 
34 Nietzsche, 1992, p.27. 
35 Idem, p.29. 
36 Ibidem, p.30. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
288 
experiência onírica que torna a vida possível e digna de ser vivida. Dionísio é 
o deus do caótico, do desmedido, 
o terror que se apodera do ser humano quando, de repente, é 
transviado pelas formas cognitivas da aparência fenomenal, 
na medida em que o princípio da razão, em algumas de suas 
configurações, parece sofrer uma exceção. Se a esse terror 
acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do 
principium individuationis ascende do fundo mais último do 
homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à 
essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais de perto 
possível, pela analogia da embriaguez.37 
Apolo e Dionísio são como poderes artísticos que, sem a mediação do 
artista, irrompem da própria natureza, e nos quais os impulsos artísticos 
desta se satisfazem imediatamente e por via direta: 
por um lado, como o mundo figural do sonho, cuja perfeição 
independe de qualquer conexão com a altitude intelectual ou 
educação artística do indivíduo, por outro, como realidade 
inebriante que novamente não leva em conta o indivíduo, 
mas procura inclusive destruí-lo e libertá-lo por meio de um 
sentimento místico de unidade.38 
Apolo é o poder do ser, o sonho produtor de formas e imagens, 
criador da aparição. A individuação, a separação, é uma enganadora imagem 
apolínea, pois “toda a vida repousa sobre a aparência, a arte, a ilusão, a 
óptica, a necessidade do perspectivístico e do erro”.39 Dionísio, a embriaguez, 
é a torrente cósmica, o devir primordial que despedaça e reabsorve todas as 
formas, que suprime tudo que é finito e individual. 
Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço 
de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, 
inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de 
 
37 Idem, p.30. 
38 Ibidem, p.32. 
39 Idem, p.19. 
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289 
reconciliação com seu filho perdido, o homem. (...) Agora, 
graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente 
não só unificado, conciliado, fundido com o seu próximo, 
mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, 
reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso uno-
primordial.40 
Daí ser O nascimento da tragédia uma cosmologia estética ou uma 
“metafísica do artista”, “uma interpretação do todo universal que segue o fio 
condutor da arte; na arte manifesta-se igualmente as duas forças 
fundamentais do ser que combatem entre si”.41 
Contudo, Nietzsche não as vê como realidades independentes, o 
apolíneo contraria o dionisíaco e vice-versa, combatem-se, mas um não pode 
existir sem o outro. 
O servidor ditirâmbico de Dionísio só é, portanto, entendido 
por seus iguais! Com um assombro devia mirá-lo o grego 
apolíneo! Como um assombro que era tanto maior quanto 
em seu íntimo se lhe misturava o temor de que, afinal, aquilo 
tudo não lhe era na realidade tão estranho, que sua 
consciência apolínea apenas lhe cobria como um véu esse 
mundo dionisíaco.42 
Para isso, basta demolirmos o artístico edifício da cultura apolínea, a 
fim de vislumbrarmos os fundamentos nos quais se assenta: o dionisíaco. 
O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir; 
para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de 
colocar ali, entre ele e a vida, a resplendente criação onírica 
dos deuses olímpicos. (...) O mesmo impulso que chama a 
arte à vida, como a complementação e o perfeito remate da 
existência que seduz a continuar vivendo, permite também 
 
40 Ibidem, p.31. 
41 Fink, 1983, p.25. 
42 Nietzsche, 1992, p.35. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
290 
que se constitua o mundo olímpico, no qual a ‘vontade’ 
helênica colocou diante de si um espelho transfigurador.43 
Por detrás das formas apolíneas, da cultura científica, do indivíduo e 
da medida – Apolo é a divindade ética, exige dos seus a medida, o 
autoconhecimento – há o desmesurado, a auto-exaltação, a era dos Titãs e do 
mundo extra-apolíneo, ou seja, o mundo dos bárbaros. Para o grego apolíneo, 
“titânico” e “bárbaro” são efeitos do dionisíaco. “Sem isso, contudo, poder 
dissimular a si mesmo que ele próprio apesar de tudo, era ao mesmo tempo 
aparentado interiormente àqueles titãs e heróis abatidos”.44 Daí, para 
Nietzsche, que a aparência, efeito apolíneo, não ser mais que a contraparte 
necessária do fundo primordial dionisíaco: 
Com efeito, quanto mais percebo na natureza aqueles 
onipotentes impulsos artísticos e neles um poderoso anelo 
pela aparência, pela redenção através da aparência, tanto mais 
me sinto impelido à suposição metafísica de que o 
verdadeiramente-existente e uno-primordial, enquanto o 
eterno-padecente e pleno de contradição necessita, para sua 
constante redenção, também da visão extasiante, da aparência 
prazerosa – aparência esta que nós, inteiramente envolvidos 
nela e dela consistentes, somos obrigados a sentir como o 
verdadeiramente não-existente, isto é, como um ininterrupto 
vir-a-ser no tempo, espaço e causalidade, em outros termos, 
como realidade empírica.45 
A própria atividade artísticahumana, na perspectiva trágica de 
Nietzsche, expressa essa unidade entre o apolíneo e o dionisíaco. O 
verdadeiro sujeito da arte não é o homem que julga exercê-la, mas o próprio 
fundamento do mundo que age através do homem, que faz dele o 
receptáculo de sua tendência. 
O próprio fundamento do mundo procuraria a 'redenção' da 
irrequietação vertiginosa, da avidez, do sofrimento da 
 
43 Idem, p.37. 
44 Ibidem, p.41. 
45 Idem, p.39. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
291 
'vontade' irrequieta, justamente na ilusão da aparência bela, 
na aparente eternidade da plástica, na estabilidade da forma, 
na harmonia exata das coisas.46 
Pois na medida em que o sujeito é um artista, o gênio artístico, ele já 
está liberto de sua vontade individual e torna-se um medium através do qual 
o verdadeiramente existente celebra sua redenção na aparência apolínea. 
Acima de tudo, para a nossa degradação e exaltação, uma 
coisa nos deve ficar clara, a de que toda a comédia da arte não 
é absolutamente representada por nossa causa, para a nossa 
melhoria e educação, tampouco que somos os efetivos 
criadores desse mundo da arte: mas devemos sim, por nós 
mesmos, aceitar que já somos, para o verdadeiro criador desse 
mundo, imagens e projeções artísticas, e que nossa suprema 
dignidade temo-la no nosso significado de obras de arte – pois 
só como fenômeno estético podem a existência e o mundo 
justificar-se eternamente.47 
Com isso, a própria atividade artística do homem é interpretada como 
um acontecimento cósmico. Na arte trágica grega se encontram expressas a 
suprema união e interpenetração do dionisíaco e do apolíneo, onde o fundo 
original dionisíaco projeta-se continuamente na aparência e encontra na arte 
a transfiguração da aparição no acontecer. Só a arte tem o poder de 
“transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da 
existência em representações com as quais é possível viver: são elas o sublime, 
enquanto domesticação artística do horrível e o cômico, enquanto descarga 
artística da náusea do absurdo”.48 O próprio Nietzsche resume, então, os 
ensinamentos da tragédia grega que, na verdade, são os elementos básicos de 
sua cosmologia estética ou “metafísica do artista”: “o conhecimento básico da 
unidade de tudo o que existe, a consideração da individuação como causa 
primeira do mal, a arte como a esperança jubilosa de que possa ser rompido 
o feitiço da individuação, como prosseguimento de uma unidade 
 
46 Fink, 1983, p.26. 
47 Nietzsche, 1992, p.47. 
48 Idem, p.56. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
292 
restabelecida”.49 Nesse sentido, Nietzsche nos oferece uma interpretação do 
mundo, propõe-nos uma estrutura fundamental do existente em geral, a 
partir do conceito do fundo dionisíaco primordial e da arte trágica como 
instância que nos acessa à ele. 
A difícil relação entre o apolíneo e o dionisíaco na tragédia 
poderia ser realmente simbolizada através de uma aliança 
fraterna entre as duas divindades: Dionísio fala a linguagem 
de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dionísio: 
com o que fica alcançada a nota suprema da tragédia e da arte 
em geral.50 
Em Verdade e mentira no sentido extra-moral, Nietzsche não avalia a 
verdade e a mentira da perspectiva moral, mas da totalidade do mundo. 
Trata-se do papel do intelecto na apreensão da realidade verdadeira, de avaliá-
la a partir de sua visão estética da realidade primordial do devir, do uno-
primordial dionisíaco. A capacidade humana de conhecer, para ele, é fugaz e 
fantasmagórica, sem finalidade e gratuita, quando observada dentro da 
natureza: 
Em algum remoto rincão do universo cintilante que se 
derrama em um sem número de sistemas solares, havia uma 
vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o 
conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso 
da 'história universal': mas também foi somente um minuto. 
Passados poucos fôlegos da natureza, congelou-se o astro, e os 
animais inteligentes tiveram de morrer.51 
A pequenez do conhecimento é tão grande que houve eternidades em 
que ele não estava e quando ele tiver passado nada terá acontecido, que não 
há para o intelecto humano nenhuma missão que vá além da vida humana. 
A função do conhecimento humano é apenas a de um meio auxiliar aos mais 
infelizes, delicados e perecíveis dos seres: os homens. A força do intelecto, sua 
natureza mais própria é o disfarce: 
 
49 Ibidem, p.70. 
50 Idem, p.130. 
51 Nietzsche, 1983, p.45. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
293 
é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, 
se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta 
pela existência com chifres ou presas aguçadas. No engenho, o 
lisonjear, o mentir e ludibriar, o falar-por-trás-das-costas, o 
representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a 
convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e 
diante de si mesmo, em suma, o constante bater de asas em 
torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra 
e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pode 
aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à 
verdade.52 
Se o efeito mais geral do conhecimento é o engano, de onde viria, 
então, esse impulso à verdade? Para Nietzsche, o instinto de verdade nasceu 
do instinto de fingimento, da própria natureza de disfarce que é o 
conhecimento humano. 
A linguagem nasce da necessidade do homem pôr fim à guerra natural 
de todos contra todos, quando o homem faz um acordo de paz, fixando 
aquilo que deve ser “verdade”, isto é, “é descoberta uma designação 
uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá 
também as primeiras leis da verdade: pois surge pela primeira vez o contraste 
entre verdade e mentira” (Ibidem, p.46). A linguagem é, portanto, um 
conjunto de convenções, de denominações que passam a ser válidas. As 
designações e as coisas não se recobrem, a linguagem não é a expressão 
adequada de todas as realidades. 
Somente por esquecimento pode o homem alguma vez chegar 
a supor que possui uma “verdade” (…). Se ele não quiser 
contentar-se com a verdade na forma de tautologia, isto é, 
com estojos vazios, comprará certamente ilusões por 
verdade.53 
Ou seja, não há um vínculo lógico entre as coisas, a realidade, e a 
linguagem, suas designações. Para Nietzsche, 
 
52 Idem, p.45. 
53 Ibidem, p.47. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
294 
Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de 
árvores, cores, neves e flores, e no entanto não possuimos 
nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo 
correspondem às entidades de origem. (…) Em todo caso, 
portanto, não é logicamente que ocorre a gênese da 
linguagem, e o material inteiro, no qual e com o qual mais 
tarde o homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, trabalha 
e constrói, provém, se não da Cucolândia das Nuvens, em 
todo caso não da essência das coisas.54 
A verdade é, então, na já clássica caracterização nietzschiana, nada 
mais que 
um batalhão móvel de metáforas, metonímias, 
antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, 
que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, 
enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, 
canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se 
esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem 
força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só 
entram em consideração como metal, não mais como 
moedas.55 
Ou seja, a mentira da linguagem, a mentira dos conceitos, mentira 
tomada no sentido extra-moral do termo, reside nesse seu esquecimento de 
serem ilusões. Nietzsche completa, então, o raciocínio: 
Ora, o homem esquece sem dúvida que é assim que se passa 
com ele: mente, pois, de maneira designada, 
inconscientementee segundo hábitos seculares – e justamente 
por essa inconsciência, justamente por esse esquecimento, 
chega ao sentimento da verdade.56 
As verdades são ilusões que o homem esqueceu que eram ilusões, daí 
que a inconsciência no uso das palavras e conceitos, o esquecimento do 
 
54 Idem, p.47-8. 
55 Ibidem, p.48. 
56 Idem, p.49. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
295 
caráter problemático de sua formação, é a condição de uma vontade honesta 
e científica de verdade. Sua “mentira” no sentimento de verdade, segundo 
Nietzsche, 
coloca agora seu agir como ser “racional” sob a regência das 
abstrações, não suporta mais ser arrastado pelas impressões 
súbitas, pelas intuições, universaliza antes todas essas 
impressões em conceitos mais descoloridos, mais frios, para 
atrelar a eles o carro de seu viver e agir.57 
Na concepção de Nietzsche, a vontade de verdade é um resíduo do 
confronto, originalmente estético, do homem com o mundo cintilante, uma 
expressão do elemento apolíneo que não quer se reconhecer no fundamento 
dionisíaco do mundo; uma confrontação que se verificou na imagem física, 
nas metáforas intuitivas individuais. Quando uma verdade é trazida à luz, ela 
é de valor limitado, isto é, de natureza antropomórfica e não contém nada 
que seja verdadeiro em si, efetivo e universalmente válido, sem levar em conta 
o homem. 
O pesquisador destas verdades procura, no fundo, apenas a 
metamorfose do mundo em homem, luta por um 
entendimento do mundo como uma coisa à semelhança do 
homem e conquista, no melhor dos casos, o sentimento de 
uma assimilação. (…) Seu procedimento consiste em tomar o 
homem por medida de todas as coisas no que, porém, parte 
do erro de acreditar que temos essas coisas imediatamente, 
como objetos puros diante de si. Esquece, pois, as metáforas 
intuitivas de origem, como metáforas, e as toma pelas coisas 
mesmas.58 
Para Nietzsche, o mundo da ciência, dos conceitos abstratos, só é 
possível mediante o esquecimento do mundo primevo das metáforas, pela 
petrificação da torrente primordial da massa de imagens oriundas da 
capacidade originária da fantasia humana, de sua dimensão apolínea 
forjadora de formas, ou seja, a “mentira” da ciência reside justamente no fato 
 
57 Ibidem, p.49. 
58 Idem, p.50. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
296 
de que o homem esquece de si mesmo como sujeito, como sujeito 
artisticamente criador. Para ele, a percepção correta, ou seja, a expressão 
adequada de um objeto no sujeito, parece um absurdo cheio de contradições, 
posto que entre duas esferas absolutamente distintas, como o 
são o sujeito e o objeto, não há nenhuma causalidade, 
nenhuma exatidão, nenhuma expressão, mas, no máximo, 
uma relação estética, quer dizer: um extrapolar alusivo, um 
traduzir balbuciante a uma linguagem completamente 
estranha – para o que, em todo caso, se necessita de uma 
esfera intermediária e uma força mediadora livremente 
inventivas.59 
Na sua essência, a atividade científica é o esquecimento de si enquanto 
atividade artística humana, é a mentira que não se percebe como mentira – 
no sentido extra-moral –, a cultura apolínea exacerbada e esquecida do seu 
fundo dionisíaco primordial. 
Esse impulso para a construção de metáforas é fundamental para o 
homem, sem ele o homem mesmo não seria levado em conta, perde sua 
condição de homem. Contudo, o edifício da ciência não consegue dominar 
esse impulso, “quando se constrói para ele, a partir de suas criaturas 
liquefeitas, os conceitos, um novo mundo regular e rígido como uma praça 
forte, nem por isso, na verdade, ele é subjugado e mal é refreado”.60 Segundo 
Nietzsche, ele procura atuar em outros espaços, se expressa em outros marcos 
para além da ciência: o mito e, em geral, a arte. 
Constantemente ele embaralha as rubricas e compartimentos 
dos conceitos, propondo novas transposições, metáforas, 
metonímias, constantemente ele mostra o desejo de dar ao 
mundo de que dispõe o homem acordado uma forma tão 
cromaticamente irregular, inconsequentemente incoerente, 
estimulante e eternamente nova como a do mundo do 
sonho.61 
 
59 Nietzsche, 2006, p.119. 
60 Nietzsche, 1983, p.50. 
61 Idem, p.50. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
297 
É como se o fundo primordial dionisíaco, o devir eterno do mundo, 
se recusasse a ser dominado nas formas apolíneas exacerbadas do mundo da 
ciência, e buscasse o mito e a arte, especialmente a arte trágica, como a 
expressão de seu movimento, a fim de que a própria existência humana não 
se perca no absurdo e se justifique esteticamente. 
Nietzsche contrapõe ao homem científico, que já não detecta 
a mentira dos conceitos, o homem intuitivo, artístico; um 
refugiou-se na cápsula, considera os conceitos como a própria 
essência das coisas, ao passo que o outro conhece o engano de 
todas as determinações, incluindo o das metáforas, embora se 
mova livremente perante a realidade, criativamente, formando 
imagens.62 
Daí, para Nietzsche, o artista, o homem intuitivo, ser um tipo 
superior em relação ao homem lógico, o cientista. Ele é um intelecto que se 
tornou livre, que desmantela, entrecruza e recompõe ironicamente o 
arcabouço da ciência, ele não é guiado por conceitos, mas por intuições. 
Dessas intuições nenhum caminho regular leva à terra dos 
esquemas fantasmagóricos, das abstrações: para elas não foi 
feita a palavra, o homem emudece quando as vê, ou fala 
puramente em metáforas proibidas e em arranjos inéditos de 
conceitos, para pelo menos através da demolição e 
escarnecimento dos antigos limites conceituais corresponder 
criativamente à impressão da poderosa intuição presente.63 
É no homem intuitivo que se expressa uma vida justificada 
esteticamente, onde o dionisíaco não é negado pela exasperação apolínea da 
razão, onde a mentira da ciência se desvanece pela vida da arte. Em 
Nietzsche, “a arte surge-lhe como o verdadeiro organon da filosofia porque o 
próprio fundo primordial do ser desempenha, ao criar o mundo, o papel do 
'artista primordial'”.64 Daí a preferência nietzschiana por esse homem 
intuitivo: 
 
62 Fink, 1983, p.39. 
63 Nietzsche, 1983, p.51. 
64 Fink, 1983, p.35. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
298 
onde alguma vez o homem intuitivo, digamos como na 
Grécia antiga, conduz suas armas mais poderosamente e mais 
vitoriosamente do que seu reverso, pode configurar-se, em 
caso favorável, uma civilização e fundar-se o domínio da arte 
sobre a vida: aquele disfarce, aquela recusa da indigência, 
aquele esplendor das intuições metafóricas e em geral aquela 
imediatez da ilusão acompanham todas as manifestações de 
tal vida.65 
É no homem intuitivo que o apolíneo e o dionisíaco falam a mesma 
linguagem, não se instalando a “mentira” da ciência. 
O procedimento genealógico: o valor dos valores 
Para Nietzsche, todos os problemas da filosofia são problemas de 
valor. Uma preocupação central que atravessa sua obra é a dos valores 
morais. E isso ele próprio nos revela: 
Dada minha peculiar inclinação em insistir sobre certos 
problemas, inclinação que eu confesso a desgosto – pois se 
refere à moral, a tudo o que até agora se enalteceu na terra 
como moral – (…) que quase teria direito a chamar-lhe meu a 
priori, – tanto minha curiosidade como minhas suspeitas 
tiveram que deter-se prematuramente na pergunta sobre que 
origem tem propriamente nosso bem e nosso mal. (…) Algo 
da escolaridade histórica e filológica, (…) transmudou logo 
meu problema neste outro: sob que condições inventou-se o 
homem aqueles juízos de valor, bom e mal? E que valor têm 
eles mesmos?.66 
Sua reflexão em torno dos valores morais se faz permeada pela 
perspectiva da transvaloração dos valores. Seu projeto genealógico busca 
operar uma subversão crítica: pôr a questão do valor dos valores e esta,ao ser 
colocada, levanta a pergunta pela criação dos valores. 
 
65 Nietzsche, 1983, p.52. 
66 Nietzsche, 1990, p.19-20. 
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299 
Se até agora não se pôs em causa o valor dos valores “bem” e 
“mal”, é porque se supôs que existiram desde sempre, 
instituídos num além, encontravam legitimidade num mundo 
supra-sensível. No entanto, uma vez questionados, revelam-se 
apenas “humanos, demasiado humanos”; em algum momento 
e em algum lugar, simplesmente foram criados.67 
Esta é a tarefa crítica que Nietzsche se propõe: 
Necessitamos uma crítica dos valores morais, devemos alguma 
vez pôr em questão o valor mesmo desses valores – e para isto 
se necessita ter conhecimento das condições e circunstâncias 
nas quais surgiram, em que se desenvolveram e se 
modificaram (a moral como consequencia, como sintoma, 
máscara, tartufaria, medicina, estímulo, empecilho ou 
veneno), um conhecimento que até agora não existiu nem 
tampouco sequer se o desejou.68 
No tratado primeiro da Genealogia da Moral (1990), Nietzsche faz 
uso do procedimento genealógico para trazer à luz a origem da inversão dos 
valores produzida pelo cristianismo, com isso estabelece uma nítida distinção 
entre a moral do escravo e a moral do nobre ou senhor. Critica os psicólogos 
ingleses por atribuírem a origem dos conceitos de bem e mal ao 
esquecimento e ao hábito. Falta-lhes o espírito histórico para ir até a gênese 
profunda dos valores morais. Ele observa que o juízo “bom” não procede 
daqueles que a quem se dispensa “bondade”, mas sim foram os próprios 
“bons”, ou seja, os nobres, os poderosos, os homens de posição superior e de 
elevados sentimentos que se sentiram e se valoraram a si mesmos e à suas 
ações como boas, ou seja, como algo de nível superior, em contraposição a 
tudo o que é baixo, abjeto, vulgar e plebeu. 
Partindo deste pathos da distância é que se arrogaram o 
direito de criar valores, de cunhar nomes de valores. (…) O 
pathos da nobreza e da distância, como dissemos, o 
duradouro e dominante sentimento global e radical de uma 
 
67 Marton, 1993, p.50. 
68 Nietzsche, 1990, p.23. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
300 
espécie superior dominadora em sua relação com uma espécie 
inferior, com um “embaixo” – esta é a origem da antítese 
“bom” e “mal”.69 
Para sua tese, ele encontra reforço na observação de que em todas as 
línguas designações de “bom” remetem a idênticas metamorfoses conceituais: 
que, em todas as partes, “nobre”, “aristocrático” no sentido 
estamental, é o conceito básico a partir do qual se desenvolve. 
Logo, por necessidade, “bom” no sentido de “psiquicamente 
nobre”, de “aristocrático”, de “psiquicamente de índole 
elevada”, “psiquicamente privilegiado”; um desenvolvimento 
que marcha sempre paralelo àquele outro que faz com que 
“vulgar”, “plebeu”, “baixo”, acabem por passar ao conceito 
“mau”.70 
Por exemplo, a palavra “mau” (schlecht), significou originariamente o 
“simples”, o homem vulgar e baixo; inversamente, o conceito “bom” (gut) se 
referia ao homem de nível superior, ao nobre, ao poderoso, ao senhor. Daí 
que, para Nietzsche, comprovar-se que nas palavras e raízes que designam 
“bom” aparece, de muitas formas, o matiz básico em razão dos quais os 
nobres se sentiam precisamente homens de nível superior. As valorações 
brotavam, portanto, de uma forma de ser, de uma forma de encontrar-se na 
vida e na sociedade. 
Nietzsche, então, distingue claramente a moral do nobre ou senhor da 
moral do escravo, a partir da figura do sacerdote, figura-mor desta última. A 
casta sacerdotal é a degeneração e, mais tarde, a antítese da casta cavalheiresca 
e aristocrática. 
Desde o começo há algo não sadio em tais aristocracias 
sacerdotais e nos hábitos neles dominantes, hábitos separados 
da atividade, hábitos em parte dedicados a incubar ideias e em 
parte explosivos em seus sentimentos, e que tem como sequela 
 
69 Idem, p.31-2. 
70 Ibidem, p.33. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
301 
aquela debilidade e aquela neurastenia intestinais que atacam 
quase de modo inevitável aos sacerdotes de todas as épocas.71 
Mas o remédio que inventaram para curar sua doença foi mais 
perigoso que a própria doença: os sacerdotes inventaram a religião, 
inventaram a metafísica hostil aos sentidos, inventaram o “outro mundo”, o 
além. A partir de sua forma de valorar a alma humana adquiriu alguma 
profundidade e se tornou interessante, entretanto também se tornou ruim 
(böse). Eles se tornaram, segundo Nietzsche, a antítese da casta nobre quando 
foram por ela destronados, e passaram a mobilizar contra ela todos os fracos, 
os falhos e sofredores, invertendo todos os valores aristocráticos. 
Os juízos de valor cavalheiros-aristocráticos têm como 
pressuposto uma constituição física poderosa, uma saúde 
florescente, rica, inclusive transbordante, junto com o que 
condiciona a manutenção da mesma, ou seja, a guerra, as 
aventuras, a caça, a dança, as lutas e, em geral, tudo o que a 
atividade forte, livre, alegre leva consigo.72 
A maneira sacerdotal de valorar, ao contrário, tem outros 
pressupostos, pois as coisas vão mal para eles quando há a guerra. 
Os sacerdotes são, como é sabido, os inimigos mais ruins – 
porquê? Porque são os mais impotentes. Por causa dessa 
impotência o ódio cresce neles até converter-se em algo 
monstruoso e sinistro, no mais espiritual e mais venenoso. 
(….) Comparado com o espírito de vingança sacerdotal, não 
conta nenhum outro espírito.73 
Nietzsche vê nos judeus o representante histórico típico dessa moral 
sacerdotal, a encarnação da sede de vingança que produziu a inversão dos 
valores nobres, o seu ressentimento como a fonte da nova valoração. “Os 
judeus, esse povo sacerdotal, que, por não saberem tomar a satisfação de seus 
inimigos e dominadores, o fizeram com uma radical transvaloração dos 
 
71 Idem, p.37. 
72 Ibidem, p.38. 
73 Idem, p.39. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
302 
valores próprios destes, ou seja, por um ato de vingança mais espiritual” 
(Idem, p.39). Daí porque eles terem levado a termo a inversão da 
identificação aristocrática dos valores (bom = nobre = poderoso = belo = feliz 
= amado de deus) e a mantiveram com o ódio mais profundo, o da 
impotência, ou seja, 
os miseráveis são os bons; os pobres, os impotentes, os baixos 
são os únicos bons; os que sofrem, os indigentes, os enfermos, 
os disformes são também os únicos piedosos, os únicos 
benditos de deu, unicamente para eles existe a bem-
aventurança – ao contrário, vós, vós os nobres e os violentos, 
vós sois por toda a eternidade, os maus, os cruéis, os lascivos, 
os insaciáveis, os ateus, e vós sereis também eternamente os 
desventurados, os malditos e condenados!74 
Assim, com os judeus começou a rebelião dos escravos na moral, 
quando o ressentimento se tornou ele próprio causador e gerador de valores; 
o ressentimento daqueles seres que estão vedados à autêntica reação, a reação 
da ação, e que só se livram dela com uma vingança imaginária. “Enquanto 
toda moral nobre nasce de um triunfante sim dito a si mesmo, a moral dos 
escravos diz não, já de antemão, a um 'fora', a um 'outro', a um 'não-eu'; e 
esse não é o que constitui sua ação criadora”.75 O escravo, o ressentido, o 
fraco, concebe primeiro a ideia de “mau”, com que designa os nobres, os 
corajosos, os mais fortes que ele; a partir daí é que chega, antiteticamente, à 
concepção de “bom” que atribui a si mesmo. Do ponto de vista do forte, 
“ruim” é apenas uma criação secundária, enquanto para o fraco “mau” é a 
criação primeira, o ato fundador da sua moral. 
O fraco só consegue afirmar-se negando aquele a quem não se 
pode igualar. Negação e oposição: essa é a lógica da moral do 
ressentimento. Aqui a força e a maldade se confundem.Radicalmente diferente, a moral dos nobres surge da 
afirmação e, mais, da autoafirmação.76 
 
74 Ibidem, p.39-40. 
75 Idem, p.43. 
76 Marton, 1993, p.53. 
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303 
Dessa forma, a inversão dos valores consiste em que agora se chama 
mau ao que antes era o bom, agora se chama mau ao poderoso, ao violento, 
ao cheio de vida. Inversamente, se chama bom o que era ruim, isto é, o 
homem baixo, simples e indigente, o enfermo. 
O cristianismo é o herdeiro dessa transvaloração moral realizada pelo 
povo judeu, é o herdeiro da rebelião dos escravos na moral, pois não é a 
religião do amor, mas do ódio mais profundo contra os bons – isto é, os 
nobres, os poderosos, os verazes.77 Transformou o homem superior – um 
animal de rapina, a magnífica “besta loira”, que vagabundeia cobiçosa de 
botins e de vitórias, e que habita no fundo de todas as raças nobres – em um 
animal manso, civilizado, um animal domesticado. O cristianismo redimiu o 
gênero humano dos senhores, do medo ao homem, a fazer com que o 
homem manso, domesticado, “o incuravelmente medíocre e desagradável 
tenha a sentir a si mesmo como a meta e o cume, como sentido da história, 
como 'homem superior'”.78 Com isso, segundo Nietzsche, 
hoje não vemos nada que aspire a ser maior, uma vez que 
descemos cada vez mais baixo, mais baixo, para algo mais 
débil, mais manso, mais pungente, mais plácido, mais 
medíocre, mais indiferente, mais cristão – o homem, não há 
dúvida, se tornou cada vez “melhor” … Justo nisso reside a 
fatalidade da Europa – ao perder o medo do homem 
perdemos também o amor a ele, o respeito a ele, a esperança 
nele, mais ainda, a vontade dele.79 
O cristianismo é, então, esse niilismo,80 esse estar cansado do homem, 
seu apequenamento e nivelamento por baixo. O cristianismo, na sua maneira 
de valorar ressentida, julga os homens pelos seus atos, como se lhes fosse 
possível escolher agir de um modo ou de outro. Mas para o forte não há 
 
77 Aqui é salutar lembrar o alerta de Marton (2010) de que Nietzsche “estabelece a diferença entre a 
figura histórica de Jesus e a institucionalização do cristianismo. Criação do apóstolo Paulo, a religião 
cristã veio impor o reino dos fracos e dos oprimidos. (…) Não está a bradar o seu grito de vitória contra 
uma doutrina que julga falsa. Bem ao contrário, procura alertar para um problema que se faz premente: 
o dos valores que há dois mil anos norteiam a conduta dos seres humanos, valores que desprezam o 
corpo, a vida, a Terra” (p.64-65). 
78 Nietzsche, 1990, p.49. 
79 Idem, p. 50. 
80 Sobre o niilismo, ver Volpi (1999). 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
304 
escolha, ele tem de extravasar a sua força: “Exigir da fortaleza que não seja 
um querer-dominar, um querer-subjugar, um querer assenhorear-se, uma sede 
de inimigos e de resistência e de triunfos, é tão absurdo como exigir que a 
debilidade se exteriorize como fortaleza”.81 A força simplesmente efetiva-se, é 
um efetivar-se, ela não pode deixar de exercer-se. A maneira nobre de avaliar 
ressalta o sentimento da plenitude e excesso da própria força. O nobre não 
necessita, enquanto forte, de aprovação e dispensa qualquer termo de 
comparação, sabe-se criador de valores. O ressentimento do cristianismo 
opera uma inversão tal que, incapaz de admirar o forte, acusa-o de ser forte, 
de cometer o erro de ser forte. E esse modo de valorar do ressentido, do 
plebeu, do fraco, foi historicamente o vencedor, pelo menos até aquele 
momento, para Nietzsche. 
No tratado segundo da Genealogia da Moral, Nietzsche mostra como 
esse processo de inversão dos valores pelos fracos tem uma de suas fontes na 
constituição da consciência moral ou interiorização da alma humana. A 
“interioridade” é uma perversão dos instintos: 
todos os instintos que não se desafogam para fora se voltam 
para dentro – isto é o que se chamou a interiorização do 
homem: unicamente com isto se desenvolve nele o que mais 
tarde se denomina “alma”. Todo o mundo interior, 
originariamente delgado, como que encerrado entre duas 
peles, foi separando-se e crescendo, foi adquirindo 
profundidade, largura, altura, na medida em que o desafogo 
do homem para fora foi ficando inibido.82 
Com isso, se desenvolve, na ótica nietzschiana, a má-consciência, já 
que os instintos de liberdade do homem foram podados, impedidos de se 
manifestar. “A inimizade, a crueldade, o prazer na perseguição – tudo isto 
voltou-se contra o portador de tais instintos: essa é a origem da 'má-
consciência'”.83 A má-consciência como fruto da vingança dos ressentidos, de 
sua vitória sobre a vida, sobre o vigor dos nobres e de seu modo de valorar. 
Para Nietzsche, a consciência moral nada mais é do que a tentativa de negar 
 
81 Nietzsche, 1990, p.51. 
82 Idem, p.96. 
83 Ibidem, p.96. 
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305 
o instinto de crueldade que está presente na natureza do homem, como o 
subsolo camuflado da civilização humana. A crueldade 
parece-lhe fazer parte integrante da natureza humana, afigura-
se-lhe ser um instinto fundamental, um prazer em contemplar 
o mal e de o provocar. E este prazer seria um ingrediente da 
alegria dos povos mais fortes e mais antigos. Para Nietzsche, o 
instinto de crueldade esconde-se ainda na prática primitiva 
dos povos civilizados.84 
Portanto, a consciência moral não é mais do que o instinto de 
crueldade impedido de exteriorizar-se e que, por isso, se interioriza. 
O homem que, na falta de inimigos e resistências exteriores, 
preso na opressora estreiteza e regularidade dos costumes, se 
dilacera, se perseguia, se mordia e roía, se sobressaltava, 
maltratava impacientemente a si mesmo, este animal a que se 
quer “domesticar” e que se golpeia furioso contra as barras de 
sua jaula, este ser a que lhe falta algo, devorado pela nostalgia 
do deserto, que teve que criar em si próprio um campo de 
aventuras, uma câmara de suplícios, uma selva insegura e 
perigosa – este louco, este prisioneiro desejante e desesperado 
foi o inventor da “má-consciência”.85 
Noutra palavras, o homem é um animal feroz, quer para seu interior, 
quer para o seu exterior; condição essa negada pela maneira de valorar dos 
ressentidos, da cultura do cristianismo.86 
 
84 Fink, 1983, p.143. 
85 Nietzsche, 1990, p.97. 
86 Scarlett Marton (2010) nos alerta para a correta leitura do texto nietzschiano: “É pensando na 
aristocracia guerreira dos tempos homéricos que, na Genealogia da Moral, ele concebe o tipo de homem 
forte. Querendo prevalecer na relação com os demais, o forte desafia todos os seus pares. Mas não 
identifica a precedência com supremacia nem confunde o combate com extermínio. Entender a 
existência como um duelo leal é uma condição que lhe é inerente; não se pode guerrear quando se 
despreza e não há porque fazê-lo quando se domina. Para que ocorra a luta, é preciso que existam 
antagonistas; e, como ela é inevitável e sem trégua ou termo, não pode implicar na destruição dos 
beligerantes. Mais próxima de um jogo que da guerra total, a luta é sempre pela precedência, nunca pelo 
aniquilamento do adversário” (p.55-6). 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
306 
No terceiro tratado da Genealogia da Moral, Nietzsche traça um perfil 
mais demorado do sacerdote e de seu ideal ascético. Se pergunta pelo sentido 
do ideal ascético, de como valoram os sacerdotes a vida, a realidade. Para ele, 
os sacerdotes valoram a vida de uma maneira negativa, só admitem a vida se 
esta nega a si mesma. Essa auto-contradição é a chave do valorar sacerdotal, 
na medida em que inverte todos os valores: 
esta vida (junto com tudo o que a ela pertence, “natureza”, 
“mundo”, a esfera inteira do devir e da caducidade) é posta 
por eles em relação com uma existência completamente 
distinta, da qual é antitéticae excludente, a menos que se 
volte contra si mesma, que se negue a si mesma: neste caso, o 
caso de uma vida ascética, a vida é considerada como uma 
ponte para aquela outra existência”.87 
Isso significa que os sacerdotes chamam de “verdadeiro” um mundo 
inexistente, fingido por eles, inventado por eles, e em troca negam a verdade 
e a realidade deste mundo, o único existente. O ascetismo dos sacerdotes 
trata a vida como um caminho errado, que se deve refutar através de sua 
valorização da existência. Para Nietzsche, esta maneira de valorar não está 
inscrita na história dos homens como se fosse um caso de exceção e de 
raridade: é um dos fatos mais extensos e duradouros que existem na história 
humana. Daí que, para ele, “tem que ser uma necessidade de primeiro nível a 
que faz crescer e prosperar esta espécie hostil à vida, – tem que ser, sem 
dúvida, um interesse da vida mesma que tal tipo de autocontradição não se 
extinga”.88 
Tal é o paradoxo em grau supremo: uma cisão que se quer cindida, 
que goza a si mesma nesse sofrimento de cindir-se, “que se torna inclusive 
sempre mais segura de si e mais triunfante à medida que diminui seu próprio 
pressuposto, a vitalidade fisiológica”.89 Ou seja, o ideal ascético é uma 
estratégia da vida fraca e doente para a conservação de sua vida. A vida fraca 
tem de renunciar à explosão das paixões, das emoções; ela deve sustar suas 
paixões, seus instintos vitais para poder sobreviver. O que isto expressa, no 
 
87 Nietzsche,1990, p.136 
88 Idem, p.137. 
89 Ibidem, p.137. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
307 
fundo, é a condição enferma do homem, do tipo de homem que houve até 
agora, pelo menos do homem domesticado, civilizado, oriundo da inversão 
dos valores perpetrada pela moral dos escravos. 
Para Nietzsche, o sacerdote asceta é “o 'falso médico' e 'salvador', que 
mantém no seu sofrimento a vida que sofre, a vida miserável e medíocre. Ele 
'cura' a ferida de uma tal vida sofredora e envenena-a ao mesmo tempo, pelo 
que a ferida precisa constantemente de ser tratada”.90 O sacerdote 
traz consigo unguentos e bálsamos, não há dúvida; mas (…) 
enquanto acalma a dor produzida pela ferida, envenena ao 
mesmo tempo esta – pois disto, sobretudo, entende este 
encantador e domador de animais de rapina, em cujo redor 
todo são se torna necessariamente manso.91 
Para isso, o sacerdote modifica a direção do ressentimento: ele 
persuade o doente de que está enfermo por sua culpa, consolando-o com o 
seu ideal ascético, negador da própria vida. E ele o faz, segundo Nietzsche, 
instrumentalizando a culpa: 
O principal ardil que o sacerdote ascético se permitiu para 
fazer ressoar na alma humana toda sorte de música 
arrebatadora e extática consistiu (…) no aproveitar-se do 
sentimento de culpa. (…) O “pecado” – pois assim fala a 
reinterpretação sacerdotal da “má-consciência” animal (da 
crueldade voltada para trás) – foi até agora a estratégia mais 
perigosa e nefasta da interpretação religiosa.92 
Ou seja, a causa do sofrimento do fraco, de sua dor, ele deve buscá-la 
dentro de si, em uma culpa, uma parte do passado; ele deve entender seu 
sofrimento como um estado de pena. Ele, portanto, dá um sentido à dor da 
existência, estabelecendo um ideal para ela. Uma outra existência, uma 
verdade que rebaixa a corporalidade, triunfa sobre os sentidos, sobre a 
aparência visual, “uma violentação e uma crueldade contra a razão: 
semelhante voluptuosidade chega ao seu cume quando o auto-desprezo 
 
90 Fink, 1983, p.144. 
91 Nietzsche, 1990, p.147. 
92 Idem, p.163. 
Helder Buenos Aires de Carvalho 
 
308 
ascético, o auto-escárnio ascético da razão, decreta o seguinte: 'existe um reino 
da verdade e do ser, mas justo a razão está excluída dele!”.93 
Contudo, Nietzsche observa que mesmo o ideal ascético, com tudo 
aquilo de ruim que representa, não deixou de ser fruto de uma vontade, de 
uma força vital. O ideal ascético foi uma resposta dada à questão do sentido 
do homem. “Pois justamente isto é o que significa o ideal ascético: que algo 
faltava, que um vazio imenso rodeava o homem, – este não sabia justificar-se, 
explicar-se, afirmar-se a si mesmo, sofria do problema do seu sentido”.94 
Quando o homem se eleva à condição superior por sobre os instintos, 
quando ele é vontade, ele quer um ideal, um objetivo. E o objetivo que se lhe 
ofereceu foi o ideal ascético, predominantemente. Como algum sentido é 
melhor que nenhum sentido, o ideal ascético foi o mal menor até o 
momento. Mas qual era o objetivo da vontade ao se entregar aos ideais 
ascéticos? Na ótica nietzschiana, a vontade que subjaze ao ideal ascético é 
uma vontade do nada, uma tendência niilista da vida, pois o homem prefere 
querer o nada a não querer. 
Não podemos ocultar, no final das contas, o que é que 
expressa propriamente todo aquele querer que recebeu sua 
orientação do ideal ascético: esse ódio contra o humano, mais 
ainda, contra o animal, mais ainda, contra o material, essa 
repugnância ante os sentidos, ante a razão mesma, o medo à 
felicidade e à beleza, esse desejo de separar-se de toda 
aparência, mudança, devir, morte, desejo, ânsia mesmo – tudo 
isso significa, atrevamo-nos a compreendê-lo, uma vontade do 
nada, uma aversão contra a vida, uma recusa dos pressupostos 
mais fundamentais da vida, mas é, e não deixa de ser uma 
vontade!95 
Todo esse percurso feito por Nietzsche, no sentido de desvendar a 
gênese dos valores morais e de seu valorar, especialmente dos valores morais 
relativos à cultura cristianizada, numa perspectiva muito crítica e ácida até, 
 
93 Ibidem, p.138. 
94 Idem, p.158. 
95 Ibidem, p.186. 
Dissertatio, UFPel [32, 2010] 277 - 318 
 
309 
ele o faz sob a ótica de um critério que não pode ser avaliado: a vida. A vida 
é o grande dado conceitual da genealogia nietzschiana da moral: 
fazer qualquer apreciação passar pelo crivo da vida equivale a 
perguntar se ela contribui para favorecê-la ou obstruí-la; 
submeter ideias ou atitudes ao exame genealógico é o mesmo 
que inquirir se são signos de plenitude de vida ou da sua 
regeneração, avaliar uma avaliação moral, enfim, significa 
questionar se é sintoma de vida ascendente ou declinante.96 
Esse é o elemento primordial da sua crítica moral, que se nos permite 
articulá-la à sua concepção estético-cosmológica do mundo: a vida não é mais 
que a manifestação do fundo primordial, do devir permanente, que está 
subjacente à todas as formas, à todas as aparências transitórias da existência, 
enfim, à finitude. O olhar nietzschiano sobre os valores morais busca, então, 
reconhecer neles ou não, essa vinculação à vida primordial, à unidade do 
todo. Uma moral que não reconheça essa sua raiz estético-cosmológica do 
devir da finitude, das coisas e do homem, é fatalmente objeto de seus 
escárnios. Daí decorre, fundamentalmente, suas objeções à moral do escravo, 
ao modo de valorar do cristianismo e ao ascetismo, pois são todas fontes de 
negação da vida, da auto-afirmação, da perspectiva artístico-criadora que está 
presente na moral aristocrata, no modo de valorar dos nobres, no 
reconhecimento da crueldade inerente ao homem, de sua condição de animal 
de rapina. A vida é o critério-mor para afirmação ou não da presença do 
dionisíaco, do devir primordial na compreensão do mundo que é inerente às 
diferentes formas de valorar e seus respectivos valores morais. 
Essa ótica da vida, assumida por Nietzsche para perscrutar a valoração 
moral, em seu livro A Gaia Ciência,97 aparece disfarçada num certo 
“positivismo”, na medida em que 
utiliza métodos que considera “científicos” para destruir a 
religião, a metafísica e a moral. Ele joga com o pathos da 
ciência e corporiza este pathos justamente na figura do 
 
96 Marton, 1993, p.62. 
97 Nietzsche, 1959. 
Helder Buenos

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