Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
187 PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 1. OBJETIVO • Verificar a acentuação da preocupação ética em detri- mento da moral no pensamento de Schopenhauer e Nietzsche. 2. CONTEÚDOS • A ética da compaixão em Arthur Schopenhauer. • O problema da valoração moral em Nietzsche. 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) A fim de se ambientar com o pensamento de Arthur Schopenhauer indicamos o vídeo (dividido em par- tes) do Prof. Dr. José Thomaz Brum Observações sobre Schopenhauer: • BRUM, J. T. Observações sobre Schopenhauer – Par- te 1. Disponível em: <http://www.youtube.com/ watch?v=P4Px9zajVXE>. Acesso em: 31 ago. 2015. UNIDADE 4 188 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE • ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte 2. Disponível em: <http://www.youtube.com/wa tch?v=ufkcJ0MrnBs&feature=endscreen&NR=1>. Acesso em: 31 ago. 2015. • ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte 3. Disponível em: <http://www.youtube.com/wat ch?feature=endscreen&NR=1&v=8kvUCPtgUiw>. Acesso em: 31 ago. 2015. • ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte 4. Disponível em: <http://www.youtube.com/wat ch?feature=endscreen&NR=1&v=UCjQcIBU9Ak>. Acesso em: 31 ago. 2015. • ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte 5. Disponível em: <http://www.youtube.com/wat ch?feature=endscreen&NR=1&v=Tvd59opNEjU>. Acesso em: 31 ago. 2015. • ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte 6. Disponível em: <http://www.youtube.com/wat ch?NR=1&feature=endscreen&v=La5qBut9Mw0>. Acesso em: 31 ago. 2015. • ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte 7. Disponível em: <http://www.youtube.com/wa tch?NR=1&feature=endscreen&v=ds7Jf-LGtGk>. Acesso em: 31 ago. 2015. • ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte 8. Disponível em: <http://www.youtube.com/wat ch?v=UD6iAUXBdyc&feature=endscreen&NR=1>. Acesso em: 31 ago. 2015. 189© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE • ______. Observações sobre Schopenhauer – Parte 9. Disponível em: <http://www.youtube.com/wat ch?v=ak3rp3sp4e4&feature=endscreen>. Acesso em: 31 ago. 2015. • ______. Observações sobre Schopenhauer – Par- te 10. Disponível em: <http://www.youtube.com/ watch?v=Di-JA0gpwt8>. Acesso em: 31 ago. 2015. • ______. Observações sobre Schopenhauer – Fi- nal. Disponível em: <http://www.youtube.com/ watch?v=6VJxgpSFrdM>. Acesso em: 31 ago. 2015. 2) Sobre a Filosofia de Nietzsche, sugerimos que você assista ao episódio do Café Filosófico da TV Cultura com palestra da Profª. Viviane Mosé. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=wszgKT2zS-c>. Acesso em: 31 ago. 2015. 3) No decorrer de seus estudos, talvez você sinta a neces- sidade de conhecer mais a respeito de determinado assunto. Por isso, seria interessante que você adqui- risse o hábito de consultar dicionários específicos da filosofia. Sugerimos, a seguir, dois dos dicionários mais utilizados por aqueles que se interessam por Filosofia (talvez você os encontre em versões mais atualizadas): • ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5. ed. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fon- tes, 2007. • LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da Filoso- fia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 190 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 4. INTRODUÇÃO A modernidade preparou uma espécie de otimismo em re- lação ao desenvolvimento da ciência e, atrelado a ele, a crença de que a ciência seria responsável por uma constante melhoria da situação existencial da vida humana. De Descartes a Kant, te- mos uma valorização da razão que se pretende como a única ca- paz de levar a cabo o projeto de uma humanidade esclarecida. Tal projeto encarna-se como movimento histórico do chamado "século das luzes" com o Iluminismo. No entanto, sorrateiramen- te, a mesma modernidade vai fazendo brotar uma compreensão pessimista com relação a esse mesmo projeto futurístico, uma desconfiança de que os rumos traçados pela razão não levarão ao fim desejado. Os valores iluministas, a crença na razão, acabam levan- do a um esgotamento de suas possibilidades. A metafísica ra- cional chega ao seu ápice com o pensamento de Hegel, para o qual "todo o real é racional" e, ao mesmo tempo, esgota suas possibilidades. Schopenhauer e Nietzsche, mais do que filósofos que integram, em suas filosofias, a questão do irracional, da von- tade, do pessimismo etc., são os filósofos que deixam emergir os problemas que apareciam como questões de segunda ordem na modernidade, e vislumbram novas possibilidades de filosofar mesmo disparando duros golpes à razão. A questão ética, "o ca- ráter", começa a aparecer no primeiro plano das preocupações desses filósofos, enquanto o problema moral vai perdendo es- paço. Assim, convidamos você a acompanhar os pensamentos desses dois grandes expoentes da Filosofia. Vamos lá? 191© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 5. ARTHUR SCHOPENHAUER (1788-1860) Schopenhauer pertencia a uma família de ricos comercian- tes e estava destinado a se dedicar ao comércio. Das inúmeras viagens na companhia de seu pai, fica-lhe a certeza do caráter trágico da vida humana. Decide, então, mergulhar no estudo das obras de Kant. Inscreve-se na Universidade alemã de Göttingen para es- tudar Medicina e Ciências Exatas, porém seu interesse pela Filo- sofia é maior. Assiste, em Berlim, aos cursos de Fichte (discípulo de Kant, cujo entendimento do criticismo kantiano consiste em um idealismo imanentista, ou seja, movimento de pensamento para o qual as coisas não existem em si; todo conhecimento é representação). Retira-se para Rudolstadt (cidade alemã fundada em 776), onde medita e escreve durante cinco anos. Sua obra O mundo como vontade e como representação é publicada em Leipzig em 1818. Após tentar e não conseguir se dedicar ao ensino na Uni- versidade de Berlim, instala-se em 1831 na cidade de Frankfurt. Com a publicação, em 1851, da obra Parerga e paralipome- na, que significa trabalhos menores e que consiste em uma série de pensamentos ordenados sobre diversos assuntos, inclusive os famosos Aforismos para a sabedoria e vida, torna-se conhecido. Uma Ética da compaixão O fundamento da moral em Schopenhauer é a "compai- xão" – do latim "compassione", que significa uma compreensão do estado emocional de outrem, colocando-se no seu lugar, bus- cando minorar o seu sofrimento. O princípio ético fundamental 192 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE para Schopenhauer é: não faças mal a ninguém, mas ajudes a todos que puderes. Dentro do contexto do pensamento de Schopenhauer, a compaixão implicaria a negação do "querer viver" (nichtwollen). Vejamos o porquê no próximo tópico. Vontade e representação Para Schopenhauer, tudo no mundo é vontade e representação. Vontade Toda existência seria a manifestação de um "querer" es- sencial. O conceito de vontade tem, no pensamento do filósofo, uma extensão muito mais ampla do que aquela em que é comu- mente entendido, pois a vontade é, para Schopenhauer, o que funda toda a realidade. Conhecida de imediato, nada é mais bem compreendido por nós do que a vontade, diz o filósofo. Na segunda parte de sua obra O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer diz que a solução do enigma do mundo deve ser buscada no homem, uma vez que é a expe- riência interior que nos levará à essência do mundo. Na reflexão sobre si mesmo, o sujeito surge como "querer" e não como en- tendimento. A vontade não é como o conhecimento, comandada pelo cérebro; é uma força original que cria e mantém o corpo com suas funções conscientes e inconscientes. A vontadeé o que está na origem de todas as forças inor- gânicas da natureza. "Substância" íntima e original, é idêntica quanto à matéria em todas as mudanças e movimentos dos cor- 193© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE pos, em todas as suas variações, nos minerais, nos vegetais, nos animais e nos humanos. Faz germinar e crescer a planta, dá a forma regular ao cristal, manifesta-se na matéria mais bruta sob a forma de peso. Embora todas essas coisas se deem a nós dis- tintas umas das outras, na realidade são individuações de uma mesma vontade. O mundo em si, desde o inorgânico ao ser hu- mano, seria um "querer viver", um fluxo perpétuo e eterno de afirmação da vida, sua origem e seu fim. Continuando, o filósofo diz que o conhecimento preciso e imediato nos é fornecido pelos movimentos de nosso próprio corpo e a isso chamamos vontade. A força que age e move a na- tureza e se manifesta nos fenômenos de maneira cada vez mais perfeita eleva-se bastante alto para que o conhecimento a escla- reça por meio de uma luz direta. Em outras palavras, essa força que age e move a natureza apresenta-se de maneira cada vez mais perfeita, até se tornar passível de conhecimento. Chegada essa força ao estado de consciência de si, revela-se propriamen- te como "vontade", noção da qual temos conhecimento preciso e que, por isso mesmo, longe de ser explicada por qualquer ou- tro elemento estranho, explica-se a si mesma. A "vontade" é, pois, o que se expressa das mais variadas maneiras, em tudo o que existe no mundo; é a essência do mun- do e a substância de todos os fenômenos. Representação Por sua vez, o mundo existe apenas como "representação", ou seja, na relação com um ser que percebe. A realidade (seja ela o que for) não seria separável das formas de apreensão de um sujeito, formas como: 194 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE • a do tempo (responsável pela finitude do mundo); • a do espaço (responsável pela multiplicidade); • a da causalidade (responsável pela necessidade). A vontade, diferentemente do mundo dos fenômenos ou do mundo como "representação", não seria determinada pe- las três formas a priori citadas, pois a vontade não depende do tempo, porque é eterna; nem do espaço, porque é una; nem da causalidade, porque é livre. Enfim, a base ou fundamento cons- titutivo de toda realidade se inscreve na falta de determinação temporal, espacial e causal. Segundo o filósofo, o mundo fenomênico ou da represen- tação é o espelho da vontade de vida. A Vontade que, considerada puramente em si, destituída de conhecimento é apenas um ímpeto cego e irresistível – como a vemos entrar em cena na natureza inorgânica e na natureza vegetal, assim como na parte vegetativa da nossa própria vida – atinge, pela entrada em cena do mundo como representação desenvolvida para o seu serviço, o conhecimento de sua volição e daquilo que ela quer, a saber, nada senão este mundo, a vida, justamente como esta existe. Por isso denominamos o mundo fenomênico seu espelho, sua objetidade; // e, como o que a Vontade sempre quer é a vida, precisamente porque esta nada é senão a exposição daquele querer para a representação, é in- diferente e tão somente um pleonasmo se, em vez de simples- mente dizermos "a Vontade", dizemos "a Vontade de vida". [...] Onde existe Vontade, existirá vida, mundo. Portanto, à Vontade de vida a vida é certa, e pelo tempo em que estivermos preen- chidos de Vontade de vida, não precisamos temer por nossa exis- tência, nem pela visão da morte (SCHOPENHAUER, 2005, p. 358). O fundo de todas as formas vivas é, assim, constituído desse esforço incessante, o qual, ao alcançar o ponto alto de suas mani- festações objetivas, seu princípio verdadeiro e mais geral, revela- 195© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE -se a si mesmo como vontade encarnada em um corpo que lhe impõe suas leis, tornado este corpo a própria vontade de viver. O "querer" é a condição do surgimento do "eu" Os atos de nosso corpo ocorrem no tempo e no espaço, ligados pela lei da causalidade. Ao surgir nossa condição de sujei- tos cognoscentes, devido ao princípio de individuação (como dis- tintos uns dos outros), passamos a nos perceber imediatamente como sujeitos volitivos. O sujeito cognoscente ilumina o sujei- to volitivo, e o primeiro sinal de consciência de nossa existência surge como o "querer", pois, no momento em que queremos, temos consciência de que "o ser que conhece" é o mesmo "ser que quer". Portanto, o querer é a condição do surgimento do "eu". O "querer" não é "substância" autônoma, individual, mas é o próprio corpo e suas ações. A condição humana: todo querer tem por princípio uma neces- sidade, uma carência e, portanto, uma dor Schopenhauer descreve a existência humana como trágica e dolorosa, como um pêndulo que oscila, sem cessar, entre o so- frimento e o tédio. Seu horizonte é a morte. Já na matéria bruta, encontramos um esforço contínuo, sem fim e sem repouso, os animais e os homens apresentam uma sede insaciável de que- rer. Somos todos prisioneiros da dor pela própria natureza, pois todo querer tem por princípio uma necessidade, uma carência, portanto, uma dor. Se a vontade não é satisfeita ou o desejo não é atendido, os homens caem no tédio e suas existências tornam- -se intoleráveis. 196 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE Sendo o homem a mais perfeita das formas objetivas da vontade, é também de todos os seres o mais atormentado pelas necessidades de se manter vivo. Ele é inteiramente "vontade", colocado na Terra, incerto de tudo, salvo de sua escravidão às necessidades, necessidades estas difíceis de satisfazer e, a cada vez, renovadas. Há ainda outra necessidade trazida pela exigência de con- servação da vida e que é a perpetuação da espécie. Para a gran- de maioria dos homens, a vida é um combate perpétuo pela so- brevivência. De acordo com o filósofo, o que faz o ser humano lutar não é propriamente o amor à vida, mas a angústia e o medo da morte, sempre à espreita em qualquer lugar e em qualquer tempo. Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode dizer-se que não tem razão alguma de ser no mundo. Porque é absurdo admitir que a dor sem fim, que nasce da miséria ine- rente à vida e enche o mundo, seja apenas um puro acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça particular parece, é certo, uma exceção, mas a desgraça geral é a regra. [...] Assim como um regato corre sem ímpetos, enquanto não encon- tra obstáculos, do mesmo modo na natureza humana, como na natureza animal, a vida corre inconsciente e cuidadosa, quando coisa alguma se lhe opõe à vontade. Se a atenção desperta, é porque a vontade não era livre e se produziu algum choque. Tudo o que se ergue em frente da nossa vontade, tudo o que a contra- ria ou a resiste, isto é, tudo o que há desagradável e de doloroso, sentimo-lo ato contínuo e muito nitidamente. Não atentamos na saúde geral do nosso corpo, mas notamos o ponto ligeiro onde o sapato nos molesta; não apreciamos o conjunto próspero dos nossos negócios, e só pensamos numa ninharia insignificante que nos desgosta. – O bem-estar e a felicidade são, portanto, negativos, só a dor é positiva (SCHOPENHAUER, s/d., p. 21-22). 197© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE A experiência do desejo, a morte e a vontade de viver Em sua obra O mundo como vontade e como representa- ção, Schopenhauer diz que a experiência do desejo é a ausência de algo que falta, e a vida consiste em tentar preencher essa fal- ta. Corre-se de objeto em objeto, em uma perseguição insaciável, indo da privação (sofrimento) para a experiência do tédio, após a posse ou realização do desejo. Enfim, aos seres vivos pesam suas naturezas e suas existênciasde maneira intolerável. As angústias do medo da morte, os sofrimentos e as mágoas chegam a tal grau, que a morte se torna desejável. Esse esforço incessante que constitui o fundo de todas as formas visíveis, revestidas de vontade, chegando ao ponto mais alto de suas manifestações objetivas, encontra seu princípio ver- dadeiro e mais geral. A vontade, então, se revela a ela mesma em um corpo vivo, que lhe impõe uma lei de ferro, o de se alimentar, e esse corpo passa a ser a própria vontade de viver encarnada. Quais motivos nos levam a transformar um "querer" em "ação" O egoísmo é, segundo Schopenhauer, a potência mais determinante do agir humano. Caracteriza-se por privilegiar a realização do querer individual. É a potência moral intrínseca à vontade de viver. Faz parte da natureza da vontade dominar, se apropriar, buscar o próprio prazer e isso significa provocar dor no outro. O bem-estar de alguns, diz o filósofo, significa o mal-estar de ou- tros: o lucro desmedido de patrões custa suor e lágrimas de ou- tros; em benefício de alguns, impõe-se trabalho duro a crianças, e há ainda a escravidão do ser humano pelo próprio ser humano; 198 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE acrescenta-se a isso o fato da alimentação da espécie humana custar a morte de outros animais, e assim por diante. Outro motivo que nos leva a transformar um "querer" em "ação" é a crueldade. Enquanto, no egoísmo, agimos com vistas ao nosso próprio bem, na crueldade, agimos visando ao mal do outro, seja um ser humano ou outros seres, como o animal, por exemplo. A pior feição da natureza humana permanece sendo o deleite pela desgraça alheia, porque estreitamente aparentada à cruel- dade, se distingue propriamente desta apenas como a teoria da prática, e localizando-se precisamente onde deveria ser o lugar da compaixão, que, como seu oposto, constitui a verda- deira fonte de toda genuína justiça e amor pela humanidade (SCHOPENHAUER, 1974, p. 104). A compaixão (Mitleid) seria um terceiro motivo para agir – nesse caso, agir pelo bem do outro. No ser humano, o egoísmo e a crueldade superam em muito a compaixão. Na compaixão, negamos essa pulsão da vontade, esse nosso "querer viver", agindo pelo bem de outrem; diminuímos a distância entre nós mesmos e o outro, nos identificando com ele. Esse é, segundo Schopenhauer, o nosso único ato de liber- dade expresso no mundo da representação, pois, compreenden- do que o outro sou eu, eliminamos as ilusões do mundo da re- presentação: a infinitude e a liberdade. Liberdade e compaixão consistem, pois, para Schopenhauer, em negar esta pulsão da vontade. Liberdade e negação do livre-arbítrio A posição de Schopenhauer sobre a liberdade é essencial- mente original. Segundo ele, as ações humanas são regidas por 199© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE rigoroso determinismo, determinismo esse que se deve à ação, vimos, dos "motivos" (do egoísmo, da crueldade) sobre o caráter. Tendo em vista esse determinismo, o uso prático da razão não é decisivo na moralidade. Em outras palavras, o fundamen- to de toda moral é a vontade, um suprassensível inatingível por uma razão prática. A autêntica bondade de disposição, a virtude desinteressada e a pureza não se originam do conhecimento abstrato, embora sem dúvida se originem do conhecimento, a saber, de um co- nhecimento imediato e intuitivo que não pode ser adquirido ou eliminado via raciocínio. Ora, precisamente por não ser abstra- to, não pode ser comunicado mas tem de brotar em cada um de nós (SCHOPENHAUER, 2005, p. 470-471). A justiça e a caridade As virtudes da justiça e da caridade são as manifestações do ato de negar a pulsão da vontade, pois são movimentos que contrariam o sentido fundamental do "querer viver" que, como vimos, é essencialmente um voltar-se para si mesmo, para o pró- prio bem-estar. [...] quem reconhece e aceita voluntariamente o limite moral entre o justo e o injusto, mesmo ali onde o Estado ou outro poder não se imponha, quem, conseqüentemente [...] jamais, na afirmação da própria vontade, vai até a negação da vontade que se expõe em outro indivíduo – é JUSTO. Portanto, não infli- girá sofrimento a outrem para aumentar o próprio bem-estar, vale dizer, não cometerá crimes, respeitará o direito e a proprie- dade alheios. [...] Vimos que a justiça voluntária tem sua origem mais íntima num certo grau de visão através do principii individuationis; enquan- to o injusto, ao contrário, permanece completamente envolto neste princípio. Um tal olhar-através-de se dá não apenas no grau exigido pela justiça, mas também em graus mais elevados, 200 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE os quais impulsionam à benevolência, à beneficência positiva, à caridade: e isso é algo que pode acontecer não importa o quão vigorosa e enérgica é em si mesma a vontade que aparece em um semelhante indivíduo (SCHOPENHAUER, 2005, p. 471-473). Todos os seres vivos somos a expressão de uma única vontade de viver Todo indivíduo, sentindo a vontade de viver intensamente, tende a se considerar como o centro do mundo e, assim, há tan- tos centros do mundo quanto há indivíduos, centros esses que se afrontam mutuamente. É a luta de todos contra todos. No entanto, tal luta é uma agressão a si mesmo, uma vez que "todos" é a expressão de uma única e mesma vontade de viver. Quando o véu de Maya (o que representa, no pensamento hindu, a aparência ilusória que esconde a realidade propriamen- te dita) é levantado diante dos olhos de um ser humano, este não faz mais nenhuma distinção entre si mesmo e o outro. É, então, capaz de tomar as dores do outro como suas e sacrificar sua pessoa pelo outro. Reconhece a si mesmo em cada ser, considera as infinitas dores de todo ser vivo como sendo suas próprias dores, toman- do para si a miséria do mundo. Para tal homem, não existe mais essa alternância de bem e de mal, na qual consiste a visão da grande maioria dos homens, ainda escravos do egoísmo. Tal ho- mem passa a conhecer a essência de todas as coisas e perceber que elas consistem em um fluxo perpétuo, em um esforço esté- ril, em uma contradição íntima e em um sofrimento contínuo. Schopenhauer, então, pergunta: como, conhecendo assim o mundo, pode tal homem, por meio de incessantes atos de von- tade, afirmar a vida, ligando-se a ela cada vez mais estreitamen- 201© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE te, aliviando o seu peso? O filósofo responde que, quando isso acontece, a vontade se desliga da vida e tal homem alcança o estado de abnegação voluntária, resignando-se e vivenciando a verdadeira calma e o término do querer. Se, como exceção rara, encontramos um homem dotado de uma considerável fortuna, mas que usufruiu muito pouco dela, doando todo o resto aos necessitados, enquanto ele mesmo re- nuncia a muitos gozos, ao conforto, se, a partir disso, tentamos elucidar para nós mesmos o seus atos, notaremos que, tirante no todo os dogmas pelos quais ele mesmo quer tornar conce- bível seus atos à sua razão, em verdade, a expressão simples e geral e o caráter essencial de sua conduta é que ele ESTABELE- CE MENOS DIFERÊNÇA DO QUE A USUALMENTE ESTABELECIDA ENTRE SI MESMO E OS OUTROS. Se esta diferença mesma, aos olhos de muitos, é tão grande que o sofrimento alheio se tor- na para o malvado uma alegria imediata e para o injusto um meio bem-vindo ao próprio bem-estar; e, ainda, se o homem // justo se furta a provocar semelhante sofrimento; por fim, se em geral a maioria dos homens sabe e conhece em sua proxi- midade inumeráveis sofrimentos de outros seres sem entretan- to se decidirem a aliviá-los, visto que assim sofreriam alguma privação; se portanto, em todos esses casos, parece instituir-se em diferença poderosa entre o eu pessoal e o eu alheio– ao contrário, naquele homem nobre que temos em mente tal dife- rença é insignificante. O principii individuationis, a forma do fe- nômeno não mais o enreda tão firmemente, mas o sofrimento visto em outros o afeta quase tanto como se fosse seu; procura, então, restabelecer o equilíbrio: renuncia aos gozos, aceita pro- vações para aliviar o sofrimento alheio. O homem nobre nota que a diferença entre si e outrem, que para o mau é um grande abismo, pertence apenas a um fenômeno passageiro e ilusório; reconhece imediatamente, sem cálculos, que o Em-si do seu fe- nômeno é também o Em-si do fenômeno alheio, a saber, aquela Vontade de vida constitutiva da essência de qualquer coisa, que vive em tudo; sim, que ela se estende até mesmo aos animais e à toda a natureza, logo, ele também não causará tormento a animal algum (SCHOPENHAUER, 2005, p. 473-474). 202 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE A completa inversão da negação da vontade: o suicídio O suicídio é, para Schopenhauer, a inversão completa des- sa negação da vontade descrita anteriormente. § 69 Nada mais difere tão amplamente da negação da Vontade de vida exposta suficientemente nos limites do nosso modo de con- sideração, e que constitui o único ato de liberdade da Vontade a entrar em cena no fenômeno, [...] do que a afetiva supressão de seu fenômeno individual, na efetividade, pelo SUICÍDIO. [...] O suicida quer a vida; porém está insatisfeito com as condições sob as quais a vive. Quando destrói o fenômeno individual, ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida, mas tão-somente à vida. Ele ainda quer a vida, quer a existência e a afirmação sem obstáculos do corpo, porém, como a combinação das circunstân- cias não o permite, o resultado é um grande sofrimento. O suicí- dio, em realidade, é a obra-prima de Maia na forma do mais gri- tante índice de contradição da Vontade de vida consigo mesma. [...] O sofrimento se aproxima e, enquanto tal, abre-lhe a possi- bilidade de negação da Vontade, porém ele a rejeita ao destruir o fenômeno da Vontade, o corpo, de tal forma que a Vontade permanece inquebrantável (SCHOPENHAUER, 2005, p. 504). O único caminho de salvação é conhecer a própria essência da vontade para suprimi-la A salvação só se daria com a supressão da vontade, pois esta é a razão do sofrimento e da dor. E, para suprimi-la, é neces- sário que a vontade apareça livremente como tal. Livremente e não por violência. Isso só acontece quando a vontade alcança o conhecimento de si mesma, libertando-se do mundo dos fenô- menos e de toda motivação, verificando-se, assim, o que os cris- tãos chamam de recebimento da "Graça" e renascimento. Esse estado, em que "o desejo se detém e se cala", Schopenhauer chama de "bem absoluto" e seria o único que nos liberta. 203© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE A Vontade não pode ser suprimida por nada senão o CONHECI- MENTO. Por isso o único caminho de salvação é este: que a Von- tade apareça livremente, a fim de, neste fenômeno, CONHECER a sua essência. Só em conseqüência deste conhecimento pode suprimir a si mesma e, assim, também pôr fim ao sofrimento in- separável de seu fenômeno. Isso, entretanto, não é possível por violência, como a destruição do embrião, a morte do recém-nas- cido, o suicídio. A natureza conduz a Vontade à luz, porque só na luz a Vontade pode encontrar a sua redenção. Eis por que se deve fomentar de todas as formas os fins da natureza, desde que a Vontade de vida, o seu íntimo, tenha decidido (SCHOPENHAUER, 2005, p. 506). § 70 Pois exatamente aquilo que os místicos cristãos denominam EFEITO DA GRAÇA e RENASCIMENTO é para nós a única e ime- diata exteriorização da LIBERDADE DA VONTADE. Esta só entra em cena quando a Vontade, após alcançar o conhecimento de sua essência em si, obter dele um QUIETIVO, quando então é removido o efeito dos MOTIVOS, os quais residem em outro do- mínio de conhecimento cujos objetos são apenas fenômenos. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 515-516). Só o conhecimento da essência do mundo como vontade permite a resignação, o desprendimento e a serenidade. O ódio e a maldade partem do egoísmo e este advém da sujeição da inteligência ao princípio da individuação. O critério de uma ação verdadeiramente boa, dotada de valor moral seria a ausência de toda motivação egoísta. Em um grau superior de desenvolvimento, a justiça, a do- çura e a generosidade, no que elas têm de mais elevado, se ori- ginam na inteligência, que compreende o princípio de que, su- primindo toda diferença entre nós como indivíduos e os outros, torna-se possível a intenção perfeitamente boa. 204 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE Na medida em que se dá a compreensão desse princípio, diz Schopenhauer, nossa influência sobre a vontade cresce. O desvelamento do princípio de individuação libera o homem da distinção egoísta entre ele e o outro. Esse homem que reconhece em cada ser o que há de mais íntimo e verdadeiro em si mesmo é capaz de tomar para si a miséria do mundo inteiro. A partir de então, nenhum sofrimento lhe é alheio e desconhecido. Todas as dores dos outros, todos os sofrimentos que ele vê e que rara- mente pode sanar, todos os sofrimentos que ele sabe possíveis pesam sobre seu coração como se fossem seus. Tudo o toca de perto. Passa a perceber a essência das coisas como sendo o per- pétuo desenrolar do sofrimento contínuo de uma humanidade miserável e de um universo que desaparece se transformando. A Vontade então se desliga da vida, o homem chega "ao es- tado de abnegação voluntária, de resignação, de verdadeira cal- ma e de parada total e absoluta do 'querer'". (SCHOPENHAUER, 1956, p. 203-204). A negação e a supressão do "querer" abririam uma passagem para o nada A supressão do "querer" levaria ao nada, entendendo por nada, como observa Schopenhauer, não uma negação absoluta, mas uma negação relativa ao mundo como representação, mun- do este que é o espelho da vontade, e que é nós mesmos e tudo o que existe. Não mirando mais a vontade nesse seu espelho que é o mundo, a vontade se perde no nada. Após a nossa consideração finalmente ter chegado ao ponto em que a negação e supressão do querer apresentam-se diante de nossos olhos de um mundo cuja existência inteira se apresenta como sofrimento, daí se abriria uma passagem para o NADA vazio. // Mas, sobre isso, tenho antes de observar que o con- 205© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE ceito de NADA é essencialmente relativo e sempre se refere a algo determinado, que ele nega. [...] Porém, numa considera- ção mais acurada, não existe o nada absoluto, não existe o nihil negativum propriamente dito, nem sequer ele é pensável; mas, de qualquer nada deste gênero, considerado de um ponto de vista superior, ou subsumido em um conceito mais amplo, é sempre apenas o nihil privativum. Qualquer nada o é apenas quando pensado em relação a outro. Até mesmo uma contradi- ção lógica é um nada relativo: embora não seja um pensamento da razão, nem por isso é um nada absoluto. Trata-se ali de uma combinação de palavras, de um exemplo do não pensável, ne- cessariamente requerido na lógica para demonstrar as leis do pensamento [...].// O universalmente tomado como positivo, o qual denominamos SER, e cuja negação é expressa pelo concei- to NADA na sua significação mais geral, é exatamente o mundo como representação, que demonstrei como a objetividade, o espelho da Vontade. Esta Vontade e este mundo são justamente nós mesmos, e ele pertence a representação em geral como um de seus lados. A forma desta representação é espaço e tempo; e assim, deste ponto de vista, tudo o que existe tem de estar em algum lugar, num dado tempo. Negação, supressão, viragem da Vontade é também supressão e desaparecimento do mundo, seu espelho. Se nãomiramos mais a Vontade neste espelho, então perguntamos debalde para que direção ela se virou, e em seguida, já não há mais onde e quando, lamentamos que ela se perdeu no nada (SCHOPENHAEUR, 2005, p. 515-517). O recurso à arte e à contemplação estética Schopenhauer vê, na contemplação estética, a oportuni- dade de um desapego das coisas do mundo, do egoísmo e do desejo, uma vez que o conhecimento do belo é uma representa- ção que não está submissa ao princípio da razão. Trata-se de um saber intuitivo, não empírico, desvinculado de qualquer conhe- cimento interessado. 206 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE Em sua obra, já citada, O mundo como vontade e como re- presentação e na obra Metafísica do belo, Schopenhauer expõe sua filosofia da arte. Vimos que, para o filósofo, os objetos do mundo são re- presentações e, como tais, estão sujeitas às formas do princípio da razão suficiente, ou seja, o tempo, o espaço e a causalidade, representações que são elaboradas pelo sujeito. O próprio corpo é um objeto e os órgãos dotados de sensibilidade são os objetos imediatos. Vimos, também, que a Vontade é a coisa-em-si, cuja exis- tência não depende do sujeito e que todos os objetos são mani- festações da vontade. O acesso à natureza da coisa-em-si é feito pelo sujeito e não pelos objetos. O primeiro estágio de objetivação da vontade, em que ela se manifesta como fenômeno, é, segundo Schopenhauer, consti- tuído do que Platão denominou "ideias", ou seja, os arquétipos eternos de tudo o que existe no mundo. A arte seria a repre- sentação dessas ideias. Assim, a arquitetura representa as leis físicas, a pintura as formas dos objetos. Em alguns homens, o conhecimento pode libertar-se da escravidão da vontade, permanecendo ele mesmo, independen- temente de todo alvo voluntário, como puro e claro espelho do mundo. Esses são os homens capazes de produzir arte. A genia- lidade do artista consiste em reproduzir a ideia por trás de um objeto do mundo; assim, um retrato representa a ideia única e eterna do caráter da pessoa. A obra de arte permite que as pessoas comuns percebam essas ideias eternas, mesmo não tendo a genialidade do artista. O saber do artista procede da vontade e pertence à essência dos 207© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE graus mais elevados de seu processo de objetivação. Compara a existência da maior parte dos homens a uma espera tola, ple- na de sofrimentos inúteis, "uma marcha titubeante pelas quatro idades de vida, funcionam sem saber por que". A arte possui- ria o poder de suprimir, ainda que por um tempo limitado, essa submissão do conhecimento à vontade. Na experiência estética, absorvido em contemplação profunda, o sujeito, antes domina- do pelo querer, torna-se "sujeito puro do conhecer", isento de vontade. O princípio de individuação torna-se, então, inoperante; esquecemo-nos de nossa individualidade, de nossa vontade e subsistimos como puro sujeito, como claro espelho do objeto, como se só o objeto existisse, sem ninguém que o percebesse, sujeito e intuição confundindo-se no mesmo ser. O sujeito, na obra de arte, forma com os objetos represen- tados uma unidade da essência comum de que compartilham, a vontade. A vontade passa a ser uma só no indivíduo e no objeto contemplado. Ao elevar-se a tal contemplação, dá-se a consciên- cia de si mesmo como puro sujeito, tornando-se a vontade que se conhece a si mesma. O conhecimento, originariamente servidor da vontade, passa a ser desinteressado, pois, com a supressão da individuali- dade, a vontade renuncia a seus fins. O "belo" é, para Schopenhauer, tudo o que na arte e na na- tureza é capaz de causar um estado contemplativo que escape à ditadura do "querer". Todo objeto pode se tornar belo, caso um gênio veja nele suas ideias, fixando-as em sua obra, tornando-as acessíveis aos demais. O grande gênio da arte é um professor de resignação, um mestre a guiar a humanidade no caminho do conhecimento e da renúncia à vontade tirânica. 208 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE O gênio da arte é um contemplador das ideias eternas, li- bertando o conhecimento originariamente submisso à vontade. A essência do gênio é essa aptidão para a contemplação absorvi- da no objeto, exigindo esquecimento completo da personalidade e de suas relações, aptidão que permite manter-se na intuição pura, aí se perdendo, libertando o conhecimento originariamen- te submisso à vontade. O objeto é belo quando consegue despertar no observa- dor um estado contemplativo, de intuição pura, durante o qual se calam temores, esperanças, ânsias e preocupações. Dentre as artes, a música é, para Schopenhauer, a que melhor pode preen- cher essa função; é a linguagem universal que penetra a intimi- dade do indivíduo. Observação: existem excelentes trabalhos acessíveis na internet sobre essa relação da Ética e da estética em Schopenhauer. Dentre outros, citamos o de João Coviello, intitulado O vínculo entre Ética e estética no pensamento de Schopenhauer com um olhar especial sobre a arte contemporânea. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucpr.br/tede//tde_busca/arquivo. php?codArquivo=477>. Acesso em: 1 set. 2015. Schopenhauer, hinduísmo e budismo Três são as principais influências recebidas por Schopenhauer, e por ele reconhecidas, na elaboração de seu pensamento: os Upanishads (uma das partes do Vedanta), Platão e Kant. A filosofia de KANT, portanto, é a única cuja familiaridade ínti- ma é requerida para o que aqui será exposto. – Se, no entanto, o leitor já freqüentou a escola do divino PLATÃO, estará ainda mais preparado e receptivo para me ouvir. Mas se, além disso, iniciou-se no pensamento dos Veda (cujo acesso permitido pela Upanixad, aos meus olhos, é a grande vantagem que este século 209© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE ainda jovem tem a mostrar aos anteriores, pois penso que a in- fluência da literatura sânscrita não será menos impactante que o renascimento da literatura grega no século XV), e se recebeu e assimilou o espírito da milenar sabedoria indiana, então estará preparado da melhor maneira possível para ouvir o que tenho a dizer. Não lhe soará, como a muitos, estranho ou mesmo hostil. Gostaria até de afirmar, caso não soe muito orgulhoso, que cada aforismo isolado e disperso que constitui as Upanixad pode ser deduzido como conseqüência do pensamento comunicado por mim, embora este, inversamente, não esteja lá de modo algum contido (SCHOPENHAUER, 2005, p. 23). O pensamento de Schopenhauer se estrutura dentro da- quele contexto do pensamento oriental hindu, fundamentado na meta do encontro de uma sabedoria que se define essencial- mente como um "mergulhar" em si mesmo, em busca do princí- pio mesmo de nossos desejos, sofrimentos, prazeres (karma) e virtudes (Dharma). Uma sabedoria que "transforma", Uma sabe- doria que não pode ser atingida pelo esforço intelectual. Schopenhauer tomou contato com os Upanishads por meio da leitura da obra em latim Oupnek'hat. Pode-se dizer que Schopenhauer é o único grande filósofo ocidental a assimilar ideias do pensamento oriental em seu sistema filosófico. Diz Schopenhauer: Os leitores da minha Ética sabem que para mim o fundamento da moral repousa em última instância sobre aquela verdade que está expressa no Veda e Vedanta pela fórmula mística tat twam asi (isto és tu), que é afirmada com referência a todo ser vivo, seja homem ou animal, denominando-se então o Mahavakya, o grande verbo (SCHOPENHAUER, 1974, p. 107). "Vedas" é uma palavra sânscrita (o sânscrito é uma das línguas oficiais da Índia, usada por várias religiões) que significa "conhecimento". Os Vedas são constituídos dos livros sagrados 210 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUERE NIETZSCHE do Hinduísmo. Vedanta, por sua vez, significa o último dos Vedas e é a essência do que entendemos, hoje, por Hinduísmo. Sobre a frase tat twam asi ("isto és tu"), alguns dos maio- res especialistas no pensamento da Índia, como Zimmer, assim interpreta o seu significado: • "tat" significaria a essência eterna, ilimitada e imutável do universo; • "twam" (ou tvam) significa "tu", é o indivíduo, ser limi- tado, temporal e mutável; • "asi" (és) verbo. Trata-se da afirmação da unidade do universo. A essência do pensamento dos Vedas seria, segundo Zimmer, a busca dessa "unidade" na "multiplicidade". Zimmer (1991, p. 18) diz que: A principal motivação da filosofia védica, desde o período dos mais remotos hinos filosóficos (preservados nas partes mais re- centes do Rig-Veda) tem sido, sem alteração, a busca de uma uni- dade básica que fundamente a multiplicidade. Essa teimosa persistência em buscar uma unidade na mul- tiplicidade dos seres do universo vem de uma consciência mís- tica de que tudo e todos pertencem, em essência, a algo Uno, gerador de toda multiplicidade. Um sentir-se parte do Cosmo, uma experiência de si mesmo como presença e não simplesmen- te como presente, ou seja, a sensibilidade ao fato de, apesar das diferenças dos seres entre si, estarmos todos presentes, ao mes- mo tempo, em comunhão existencial. No indivíduo limitado, temporal e mutável, encontra-se o Ãtman (o Eu, não o ego), fundado na eterna imutabilidade que comanda o universo. O texto a seguir ilustra essa ideia da unida- de na multiplicidade no pensamento védico: 211© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE Diz o velho sábio brâmane Aruni a seu filho: [...] Traze-me um figo de lá. Aqui está, senhor. Divide-o. Está dividido. Que vês aí? Estas sementes muito pequenas. Divide uma delas, por favor. Está dividida. Que vês, aí? Absolutamente nada, senhor. Então, disse-lhe, [o pai]: Em verdade, meu querido, esta suti- líssima essência que tu não percebes, em verdade, meu queri- do, dessa sutilíssima essência é que surge esta grande figueira sagrada. Acredita-me, meu querido – disse ele – isso que é a essência mais sutil, este mundo inteiro tem isso como seu Eu. Isso é a Realidade. Isso é ãtman. Aquilo és tu. Poderias, senhor, poderias instruir-me ainda mais! Assim seja, meu querido – disse ele. Coloca este sal na água. Pela manhã vem ter comigo. Assim o fez. Então disse-lhe o pai: O sal que puseste na água ontem à noite, traga-me aqui, por favor. Então ele quis pegá-lo, mas não o encontrou porque estava completamente dissolvido. Por favor, sorve a água deste lado – disse-lhe {o pai}. Como está? Salgada. 212 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE Sorve deste lado – disse-lhe. Como está? Salgada. Deixe-a de lado. Logo, vem ter comigo. Ele assim o fez, dizendo: Ela é sempre a mesma! Então, disse-lhe {o pai}: Em verdade, na realidade, meu queri- do, tu não podes perceber o Ser aqui. Em verdade, na realida- de, meu querido, Ele está aqui. Aquilo que é a essência sutilíssima, este mundo inteiro tem. Aquilo como seu Eu. Aquilo é a Realidade. Aquilo é ãtman. Tu, Svetaketu, és Aquilo (ZIMMER, 1991, p. 239-240). Schopenhauer dá a essa máxima da unidade imutável e única uma dimensão ética e moral. Para ele, ela expressa a ideia de compaixão, já vista por nós, porque, compreendendo que a essência do universo é única, o homem passa a amar seu próxi- mo, pois ambos são um só. Conceitos do hinduísmo e do budismo surgem em toda a obra do filósofo. No segundo parágrafo de sua obra Parerga e paralipomena, diz: Eis Sansara, e tudo em seu interior o anuncia: mais do que tudo, porém, o mundo dos homens, em que moralmente do- minam a maldade e a infâmia, intelectualmente a incapacidade e a estupidez, em medidas assustadoras. Contudo nela se apre- sentam, embora esporadicamente, mas sempre de novo a nos surpreender, manifestações da franqueza, da bondade e mes- mo da generosidade, e também do entendimento abrangente, do espírito pensante, e mesmo do gênio. Estas nunca se extin- guem completamente: brilham ao nosso encontro quais pontos luminosos isolados da grande massa obscura. Devemos tomá- -las como garantia de que existe um princípio bom e redentor neste Sansara, que pode atingir o rompimento, e preencher e libertar o todo (SCHOPENHAUER, 1974, p. 106-107). 213© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE "Sansara" significa, em sânscrito, "perambulação" ou o flu- xo de renascimentos através dos mundos materiais. No Vedan- ta, é a transmigração do "Ãtman" (alma individual ou verdadei- ro "Eu", o mais elevado princípio humano, a Essência divina) na matéria. O ego ignorante e iludido, considerando-se distinto de tudo e de todos, peregrina por várias existências até compreen- der que, na verdade, ele e a Essência divina são "Um só". Ao falar da Vontade de vida, diz Schopenhauer: A Vontade de vida aparece // tanto na morte auto-imposta (Shiva), quanto no prazer da conservação pessoal (Vishinu) e na volúpia da procriação (Brahma). Essa é a significação íntima da UNIDADE DO TRIMURTI, que cada homem é por inteiro, em- bora no tempo seja destacada ora uma, ora outra de suas três cabeças (SCHOPENHAUER, 2005, p. 504). O "Trimurti" é a Trindade hindu. É constituída de: • "Brahma": primeira divindade do Trimurti. É o Deus (ener- gia) de todos os seres, tem o poder de criar por emana- ção. É a origem, a causa, a essência de todo o universo. • "Vishinu": segunda divindade do Trimurti. É o Deus (energia) redentor, preservador e mantenedor do universo. • "Shiva": terceira divindade do Trimurti. É a energia des- truidora e, ao mesmo tempo, construtora, pois a des- truição aqui é uma exigência da própria criação. A dança de Shiva, bastante conhecida, representa as cinco ativi- dades divinas: a criação, a conservação, a destruição, a encarnação e a liberação das almas. Outra influência do hinduísmo no pensamento de Schopenhauer é certamente a noção de Maya (Deusa da ilusão). Nos textos indianos mais antigos, Maya significa "arte, sabedoria, 214 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE poder extraordinário". Nos textos indianos mais recentes, adquiriu os significados de ilusão, irrealidade, magia, imagem ilusória e se torna o maior obstáculo para o desapego das seduções do mundo sensorial. Maya é a base do mundo objetivo criado pelo Absoluto (Brachman), mas dele se distingue. Vimos que Schopenhauer concebe o mundo fenomênico, da representação, como ilusório. Para o filósofo, o mundo re- presentado pode criar a ilusão de que a causa última dos fenô- menos ou a essência do mundo representado esteja na própria representação e que, consequentemente, nada mais existe além da representação. Cria-se, assim, uma realidade ilusória. Porém, como o caráter ilusório da representação dela não advém, mas sim da vontade que governa tudo o que existe (da vontade, vi- mos, advém toda objetividade, aparência, o mundo como repre- sentação), o homem poderá romper com essa ilusão e refletir sobre a Vontade. Portanto, é Maya acreditar que se possa ces- sar o desejo que atormenta e traz dor, consumando-o, ou seja, objetivando-o. § 68 Se aquele Véu de Maia, o principii individuationis, é de tal ma- neira retirado aos olhos de um homem que este não faz mais di- ferença egoística entre a sua pessoa e a de outrem, no entanto compartilha em tal intensidade dos sofrimentos alheios como se fossem os seus próprios e assim é não apenas benevolente no mais elevado grau, mas está até mesmo pronto a sacrificar o próprio indivíduo tão logo muitos outros precisem ser salvos; então, daí, segue-se automaticamente que esse homem reco- nhece em todos esses seres o próprio íntimo, o seu verdadeiro si-mesmo, e desse modo tem de considerartambém os sofri- mentos infinitos de todos os seres viventes como se fossem seus: assim toma para si mesmo as dores de todo o mundo; nenhum sofrimento lhe é estranho. 215© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE [...] o homem que vê através do principii individuationis e reconhece a essência em si das coisas, portanto o todo, não é mais suscetível a um semelhante consolo. Vê a si em todos os lugares ao mesmo tem- po, e se retira. – Sua Vontade se vira; ela não mais afirma a própria essência espelhada no fenômeno, mas a nega. O acontecimento, pelo qual isso se anuncia, é a transição da virtude à ASCESE. [...] não mais adianta amar os outros como a si mesmo, por eles fazer tanto, como se fosse por si, mas nasce uma repulsa pela essência da qual seu fenômeno é expressão, vale dizer, uma repulsa pela Vontade de vida, núcleo e essência de um mundo reconhecido como povoado de penúrias (SCHOPENHAUER, 2005, p. 481-482). Schopenhauer e Kant São vários os temas e posições que Schopenhauer herda de Kant sobre a temática da moral. Começa por elogiar Kant por ter "purificado a ética de todo eudemonismo" (eudemonismo ou eudaimonismo, do grego eudaimonia, significa felicidade – os filósofos da Antiguidade concebiam a felicidade como meta e cri- tério supremo da Ética). Diz Schopenhauer: O grande mérito de Kant na ética foi tê-la purificado de todo Eu- demonismo. A ética dos antigos era eudemonista, e a dos moder- nos, na maioria das vezes, uma doutrina da salvação. Os antigos queriam demonstrar virtude e felicidade como idênticas; estas, porém, eram como duas figuras que não se recobrem, não impor- ta o modo como as coloquemos. Os modernos querem colocá-las numa ligação, não de acordo com o princípio de identidade, mas com o de razão suficiente, fazendo, portanto da felicidade a conse- qüência da virtude. No que, entretanto, tiveram de recorrer, quer a um outro mundo que não conhecido de modo possível, quer a sofismas. Apenas Platão faz exceção entre os antigos: sua ética não é eudemonista, por isso, contudo torna-se mística. Em contrapar- tida, até mesmo a ética dos cínicos e dos estóicos é tão-somente um eudemonismo de tipo especial (SCHOPENHAUER, 1995, p. 17). 216 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE No que diz respeito à questão da Ética e da moral, Schopenhauer, à semelhança de Kant, sentiu a necessidade de manter uma instância transcendental (a instância de um princípio "a priori"). Segundo Kant, o determinismo da ciência é incompatível com a responsabilidade moral; esta só poderia ser pensada via um saber transcendental. Para Kant, sabemos, só podemos conhecer a coisa em nós, não a coisa-em-si. Esta é "independente do conhecimento que temos dela", desligada de qualquer subjetividade. Distingue o fe- nômeno (a coisa em nós, a interpretação, o mundo da represen- tação) e a coisa-em-si. Schopenhauer assimila a noção kantiana de coisa em si. A instância da coisa em si seria, em ambos, a instância transcendental. Buscaram, dessa maneira, salvaguardar a in- dependência da dimensão ética e moral de toda ingerência da Teologia e do conhecimento especulativo, pensando a realida- de do mundo e a idealidade (conhecimento especulativo) como distintas entre si, uma vez que, com o conceito de "coisa-em-si", mantém-se a existência de um real distinto da instância da ideia e, consequentemente, de todo conhecimento especulativo. Por sua vez, o conceito de "coisa-em-si" possibilitaria limitar o co- nhecimento ao fenômeno, abrindo espaço para a moralidade, isto é, para a possibilidade de postular a liberdade (Kant) ou de negá-la (Schopenhauer). Reencontramos, pois, em Schopenhauer o que já vimos em Kant: a presença de uma dimensão ética propriamente dita, uma dimensão transcendental, não passível de ser trabalhada à luz de uma razão abstrata generalizante, o que viria a corroborar, mais uma vez, a linha mestra desta obra, que é mostrar a existên- cia de uma distinção essencial entre o ethos com "e" longo que 217© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE define a instância de uma "morada interior" da realidade, de ní- vel transcendental, do ethos com "e" breve, referente à "morada exterior", dos fenômenos e fatos. Porém, Schopenhauer irá discordar de Kant em pontos fun- damentais. Assim, por exemplo, vimos que Kant procurou mos- trar que existe, no campo transcendental, uma ordem superior capaz de responder pela dimensão ética e moral do ser humano e que essa ordem é a de uma razão prática. Tal razão é autônoma e independente de qualquer capacidade cognitiva, não necessi- tando igualmente dos dados da sensibilidade. Sendo o princípio da moral puro, a priori, não se apoiando em nada empírico ou em algo objetivo do mundo exterior ou mesmo subjetivo (senti- mento, impulso ou inclinação), Kant fundamenta a lei moral na sua própria forma, que é a da legalidade, universal para todos. Embora Schopenhauer concorde com a distinção kantia- na entre fenômeno e coisa-em-si, essa concepção kantiana da dimensão transcendental como sendo a de uma razão prática, porém, significará para Schopenhauer uma recaída no dogmatis- mo. Segundo ele, o imperativo categórico, base da razão prática ou moral em Kant, não contemplaria o sentido moral da ação humana, uma vez que a razão não é fator decisivo na moralida- de, ou seja, ser dotado de razão e utilizá-la adequadamente não é ser necessariamente moral. Muitos indivíduos, observa, usam corretamente a razão e, no entanto, cometem ações não morais. Para Schopenhauer, a razão, pelo contrário, aprimora os recursos imorais, por meio dos quais os homens abusam e exploram uns aos outros. Ainda, em sua crítica à Kant, Schopenhauer observa que cabe à reflexão filosófica sobre o ético buscar o esclarecimento 218 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE do dado, isto é, daquilo que o comportamento ou a ação éticos são e não de como deveriam ser, como o faz Kant. O "próton pseudós" [primeiro passo em falso de Kant] está no seu conceito da própria ética que encontramos exposto de modo mais claro (p. 62): "numa filosofia prática não se trata de dar fundamentos daquilo que acontece, mas leis daquilo que deve acontecer, mesmo que nunca aconteça". Isto já é uma "petitio principii" [petição de princípio] decisiva. Quem nos diz que há leis às quais nossas ações devem submeter-se? Quem vos diz que deve acontecer o que nunca acontece? O que vos dá o direito de antecipá-lo e logo impor uma ética na forma legislativo-imperati- va como a única para nós possível? Digo, contrapondo-me a Kant, que em geral tanto o ético quanto o filosófico têm de contentar-se com o esclarecimento do dado, portanto com o que é, com o que acontece realmente, para chegarem ao seu entendimento, e que eles aí têm muito o que fazer, muito mais do que foi feito desde há séculos até hoje. De acordo com a acima citada "petitio princi- pii" kantiana, admite-se no Prefácio referente ao tema, antes de qualquer investigação, que existem leis morais puras; depois, tal suposição continua firme e é a mais profunda fundamentação de todo o sistema. No entanto, queremos antes investigar o concei- to de uma lei. O seu significado próprio e originário limita-se à lei civil ("lex", "nomos"), uma instituição humana que repousa sobre o arbítrio humano. O conceito de lei tem um significado segundo, tropológico (figurativo) e metafórico, quando aplicado à nature- za, cujos modos de proceder conhecidos em parte "a priori", em parte dela apreendidos "a posteriori", que se mantêm sempre constantes, nós os chamamos metaforicamente leis da natureza. É apenas uma parte bem pequena dessas leis da natureza que se dá a ver "a priori", e é isto que constitui o que Kant isolou de modo perspicaze excelente e reuniu sob o nome de Metafísica da natureza. Para a vontade humana existe também por certo uma lei, desde que o homem pertence à natureza, e mesmo uma lei estritamente demonstrável, inviolável, sem exceções, irrevo- gável, que não traz consigo nenhuma necessidade "vel quase" (de uma certa maneira) como o imperativo categórico, mas uma necessidade efetiva (SCHOPENHAUER, 1995, §4, p. 23). 219© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE É essencial à Ética como filosofia manter uma atitude con- templativa e não prática, inquirindo e não prescrevendo regras ou buscando moldar o caráter. § 53 Na minha opinião, contudo, toda a filosofia é sempre teórica, já que lhe é sempre essencial manter uma atitude puramente contemplativa [...], e sempre inquirir, em vez de prescrever re- gras. Tornar-se prática, conduzir a ação, moldar o caráter: eis aí pretensões antigas que uma intelecção mais perspicaz fará por fim a filosofia abandoná-las. Pois aqui, quando se trata do valor ou da ausência de valor da existência, da salvação ou da perdi- ção, os mortos não decidem, e sim a essência mais íntima do homem: seu demônio que o conduz e que ele mesmo escolheu (como diz Platão) em vez de ser escolhido, seu caráter inteligí- vel, como // Kant se expressa. A virtude é tão pouco ensinada quanto o gênio; sim, para ela o conceito é tão infrutífero quanto para a arte e em ambos os casos deve ser usado apenas como instrumento. Por conseguinte, seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos, nobres e santos, quanto que nossas estéticas produzissem poetas, ar- tistas plásticos e músicos (SCHOPENHAUER, 2005, p. 354). Considerações Schopenhauer foi um dos mais influentes pensadores, so- bretudo até a segunda metade do século 20. Porta-voz do irra- cionalismo (corrente filosófica que sustenta que, quanto mais supera os limites do racional, mais o homem é capaz de apreen- der a realidade), combateu o racionalismo absoluto do idealismo de Hegel (1770-1831), segundo o qual a contradição entre racio- nal e irracional não é senão aparente, pois a razão se realiza no e pelo seu contrário, o irracional. 220 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE Alguns se referem a Schopenhauer como o "filósofo sem público". De fato, o reconhecimento de sua obra demorou bas- tante a chegar. Talvez essa demora se deva ao fato de que sua obra, como muitos observam, não se enquadra em nenhuma das filosofias vigentes. Porém, sua influência foi grande: • Freud (1856-1939, médico neurologista judeu-austría- co) reconheceu que a análise da repressão (processo de fuga e condenação de impulsos do instinto no conscien- te) fora feita antes dele por Schopenhauer; • nas artes, particularmente na música, o famoso Richard Wagner (1813-1883, compositor alemão) declarou ter escrito a ópera Tristão e Isolda como reação à leitura de Schopenhauer; • na literatura, influenciou Léon Tolstoi (1828-1910, escri- tor russo), Anton Tcheckov (1860-1904, escritor russo), Émile Zola (1840-1902, escritor francês) e outros, inclu- sive o nosso Machado de Assis, no que concerne sobre- tudo ao sentimento de uma inexorabilidade do destino, como observa Eugênio Gomes (1897-1972, crítico lite- rário brasileiro). E Nietzsche, o filósofo que estudaremos a seguir, na segun- da parte desta Unidade 4, disse tornar-se filósofo devido à leitu- ra de Schopenhauer, a quem chamava de "cavaleiro solitário". 6. WILHELM FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900) Nietzsche nasceu de uma família de clérigos, sendo seu pai ministro protestante; ficou órfão de pai ainda bem jovem e foi educado por sua mãe e por sua irmã mais velha. 221© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE Aos 25 anos, após estudos brilhantes de Filologia e Teo- logia, é nomeado professor na Universidade de Basiléia (Suíça), na fronteira com a Alemanha e França, onde lecionou de 1869 a 1879. Dois acontecimentos influenciaram grandemente Nietzsche em sua maneira de pensar: a leitura, quando estudante, da obra O mundo como vontade e como representação, de Schopenhauer, e sua amizade com o grande compositor Richard Wagner. Segundo estudiosos, Schopenhauer influenciou Nietzsche de diversas maneiras – por exemplo, no sentido de: • buscar uma nova maneira de ver o mundo, diferente dos valores morais escravos de uma visão metafísica; • pensar sob o modelo da vida; • subordinar o intelecto à vontade; • considerar a vontade como cega e arbitrária e, em con- sequência, o mundo como caótico e despojado de todo e qualquer caráter divino; • considerar a arte como sendo, em sua essência, uma li- beração ou afastamento de todo processo racional. Alguns autores observam, ainda, que o fato de Schopenhauer, como os gregos antigos, estabelecer uma relação entre o gênio e a loucura levará Nietzsche a uma atitude particular com relação à sua própria condição de doente com distúrbios mentais. Possuía uma visão de toda doença como sendo apenas um exagero dos fenômenos normais da vida. Não haveria, dessa maneira, diferença de essência entre o normal e o patológico – a diferença seria apenas de grau. Chega a conceber como consequência de sua vivência de distúrbios mentais sua visão da vida como "vontade de potência". 222 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE Para Schopenhauer, vimos, a capacidade de captar o es- sencial e torná-lo objeto da arte é uma característica do gênio. Associa essa capacidade ao fato do intelecto sair do âmbito das coisas particulares e apreender o universal no que existe (O mun- do como vontade e como representação, Tomos I e II). Essa carac- terística do gênio seria contrária à própria natureza humana, na qual, segundo Schopenhauer, a razão ou intelecto está a serviço da vontade e, por essa razão, o gênio seria muito mais susceptí- vel a um desequilíbrio diante dos afetos e paixões. Nietzsche e a questão da moral Em sua obra La généalogie de la morale (1971, p. 56, tra- dução nossa), Nietzsche expressa o quanto considera importante e central a questão da moral para os filósofos e cientistas. Observação. Aproveito a ocasião que me dá esta dissertação para formular publicamente e expressar um desejo que não ex- pus até o momento presente senão eventualmente em meus diálogos com os cientistas: que uma faculdade de Filosofia ad- quire mérito ao encorajar, por meio de concursos acadêmicos, os estudos de história da moral: quem sabe este livro possa dar um rigoroso impulso nesse sentido. Em vista de tal eventua- lidade, proponho a questão seguinte, merecedora da atenção não apenas dos filósofos propriamente ditos, mas também dos filólogos e historiadores. Quais indicações a linguística e, sobretudo, a etimologia nos fornecem para a história da avaliação dos conceitos morais? Por outro lado, não é certamente menos interessante obter a participação de fisiologistas e de médicos no estudo desses pro- blemas (concernentes ao valor das avaliações que se deram até o momento presente). [...] De fato todo o repertório de valo- res, todos os "tu deves" que a história ou a etnologia conhecem teriam necessidade antes de mais nada de ser esclarecidos e interpretados pela fisiologia mais ainda do que pela psicolo- 223© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE gia; todos reclamam também a crítica das ciências médicas. A questão de saber o que vale tal ou tal lista de valores, esta ou aquela moral, demanda que sejam colocadas sob as perspecti- vas as mais diversas; principalmente, não se analisará com su- ficiente escrúpulo a questão "bom por quê?". [...] O bem-estar da maioria e o bem-estar da minoria são critérios de avaliação opostos: acreditar que o primeiro possui em si um valor supe- rior é o que deixaremos à ingenuidade dosbiologistas ingleses. Todas as ciências a partir de agora têm a preparar a tarefa do filósofo, entendendo por esta tarefa o seguinte: ao filósofo cabe resolver o problema do valor, cabe determinar a hierarquia dos valores. O "espírito histórico" escaparia aos historiadores e aos filósofos Nietzsche acusa a filosofia de até então considerar a reali- dade desprovida da dimensão histórica, do "vir a ser". Descon- siderando a dimensão histórica, tornam a realidade uma "sub specie aeterni" (uma subespécie do eterno). Toda mudança é por eles refutada, diz o filósofo, "o que é não vem a ser; o que vem a ser não é". Tomando como exemplo o conceito de "bom", Nietzsche procura mostrar que a origem do conceito moral de "bom", apre- sentada por historiadores e filósofos, contém sinais de reações pessoais ou características dos psicólogos ingleses, os quais atri- buem à "utilidade", ao "esquecimento", ao "hábito" e ao "erro" a condição de base de um valor, no caso, o valor moral "bom". Na origem, decretam eles, as ações desinteressadas foram louvadas e denominadas boas por aqueles em favor dos quais elas tinham sido realizadas, consequentemente para aqueles aos quais tinham sido úteis; mais tarde, esquecendo que ti- nham provindo do elogio, simplesmente sentiu-se como boas as ações não egoístas porque tinham sido por hábito sempre 224 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE louvadas como tais, como se elas fossem algo de bom em si (NIETZSCHE, 1971, p. 21, tradução nossa). Argumenta que tal teoria vai buscar onde não se encontra a verdadeira morada do conceito de "bom", geneticamente falando. [...] o julgamento de "bom" não vem daquilo com relação ao qual manifesta-se a "bondade". São os próprios "bons", isto é, os nobres, os poderosos, os homens de condição superior e de alma elevada, que se sentiram eles mesmos bons e considera- ram seus atos bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que é baixo, mesquinho, comum e vulgar (NIETZSCHE, 1971, p. 21, tradução nossa). A formação universitária básica de Nietzsche foi a Filologia (ciência que estuda uma língua, literatura, cultura ou civilização sob uma visão histórica). Para ele, o verdadeiro método para encontrar o surgimento dos conceitos de "bom" e "mau" é o da etimologia. Referindo-se às expressões de bom e mau em diversas línguas, diz: [...] encontrei que todas remetem à mesma transformação dos conceitos, em todas elas "distinto", "nobre", no sentido de clas- se social, é o conceito fundamental de onde nascem e se desen- volvem necessariamente as ideias de "bom" significando "alma distinta" e "nobre" no sentido de "alma superior", de "alma privilegiada". Essa evolução se faz paralelamente àquela que acaba por transformar as ideias de "comum", "popular", "vil", na de "mau" (NIETZSCHE, 1971, p. 24, tradução nossa). Diante de tais fatos que mostram a origem de julgamentos de valor destinados a estabelecer hierarquias, falar de utilidade, conclui Nietzsche, seria apresentar a sensibilidade pobre de uma inteligência calculadora. Como acabo de dizer, o pathos da nobreza e da distância, senti- mento geral tão fundamental, tão preponderante, tão vivaz em uma espécie superior e dominante em suas relações com uma espécie inferior, com algo "embaixo" – eis a origem da oposição entre "bom" e "mau" (NIETZSCHE, 1971, p. 22, tradução nossa). 225© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE Observação: pathos é uma palavra grega que significa paixão, assujeitamento. Esse conceito foi cunhado por Descartes para designar algo que acontece ou o que é passivo de um aconteci- mento. Nietzsche quer significar, com essa palavra, a distância e o domínio que acontece entre a classe nobre e a classe baixa e inferior dos seres humanos. Na origem da oposição "bom e mau", portanto, não haveria, "a priori", ligação necessária entre a palavra "bom" e as ações não egoístas, como querem os genealogistas da moral. É apenas quan- do os julgamentos de valor aristocráticos declinam que se impõe, pouco a pouco, a famosa oposição "egoísta"/"não egoísta". Não há fatos morais, todo julgamento moral é falso De sua análise etimológica de valores como a origem do "bom" e do "mau", Nietzsche conclui que não existem fatos mo- rais, porém todo julgamento moral é um "sintoma" – sintoma aqui não no sentido médico da palavra, mas no sentido de um significante (o que significa) sem nenhum significado fixo. Cabe ao filósofo situar-se além do bem e do mal, colocar-se acima da ilusão do julgamento moral. O julgamento moral e o religioso têm em comum o fato de crerem em realidades que não existem. Sabe-se o que exijo do filósofo: colocar-se além do bem e do mal – colocar abaixo a ilusão do julgamento moral. Essa exigên- cia é o resultado de um exame que realizei pela primeira vez: cheguei à conclusão de que "não há fatos morais". O juízo mo- ral tem em comum com o juízo religioso crer em realidades que não existem. A moral não é senão a interpretação de certos fe- nômenos, mas uma falsa interpretação. O juízo moral pertence, como o juízo religioso, a um grau de ignorância em que a noção de realidade, a distinção entre o geral e o imaginário nem mes- mo existem; de maneira que, em um tal grau, a "verdade" de- 226 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE signa coisas que chamamos hoje de "imaginação". Eis porque o juízo moral não deve nunca ser tomado ao pé da letra: literal- mente ele seria sempre um contrassenso. Mas como "lingua- gem" permanece inestimável: revela, pelo menos para aquele que sabe, as realidades mais preciosas sobre culturas e talentos de gênio que não "sabiam" o bastante para "compreender" a eles mesmos. A moral não é senão a linguagem dos sinais, uma sintomatologia: é preciso saber do "que" se trata para poder se beneficiar (NIETZSCHE, 1952a, §17, p. 126, tradução nossa). Não há consciência moral, toda consciência nada mais é do que um acidente Segundo Descartes, a consciência é o centro do "eu", seu núcleo substancial, e o "eu" subjetivo é o "eu" pensante. A cons- ciência, para Nietzsche, é um acidente, não é o essencial da sub- jetividade. De acordo com Nietzsche, nós nos deixamos enganar quando achamos que é o nosso "eu" que pensa e, mais, que o sujeito da frase "eu penso" seja uma substância ou algo em si. Em seu livro Além do bem e do mal, observa que um pensamen- to não vem senão quando quer e não porque é o eu quem quer: "Alguma coisa pensa, mas acreditar que esta coisa seja o 'eu' é pura suposição". Além disso, observa que o caráter "geral" do conceito não é capaz de expressar a singularidade da subjetividade e esta, por sua vez, jamais coincide com ela mesma: quando digo "eu", ex- presso o que tenho em comum com todos os outros "eu". De fato, o projeto genealógico de Nietzsche destrói a noção do "eu" como sujeito autoconsciente e uno (ver, no tópico E-refe- rências, o texto A noção da dissolução do sujeito em Nietzsche, de Ângela Zamora). 227© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE Investigando a história da humanidade, Nietzsche procura mostrar que o surgimento da autoconsciência, do pensamento e da linguagem é de natureza histórica. Para sobreviver, o ser humano teve que se reunir a outros seres humanos, formando agrupamentos. Surgiu, então, a necessidade de se comunicar com o outro e, para tanto, faz-se necessário saber quem se é, o que se quer. É dessa relação do humano com o humano que decorreriam a consciência, o pensamento e a linguagem. Consequentemente, a consciência faz parte da existência em comunidade, da existência à maneira "de rebanho" e a subje- tividade não mais se identifica com uma natureza humana imu- tável; pelo contrário, o processo de conscientização no homem está em constante mobilidade, sendo que essaconscientização é cada vez maior. O critério para a busca de valores é a "vida" e a vida é "vontade de poder" Os valores reais, para Nietzsche, não decorrem de algo, são "inventados". Há que buscá-los em seu emergir, em sua pro- veniência através da história e o critério é a "vida" e a vida é "vontade de poder". Uma vontade de poder que é orgânica e própria a todo ser vivo, uma busca constante por mais vida, por apropriar-se, dominar. Uma vontade de poder que se estrutura em uma relação de mandar e obedecer. A vida é apropriação e sujeição daquele que é o mais fraco. É opressão, dureza, exploração. Todo com- portamento humano é motivado pela busca do poder e tal poder se manifesta como independência, criatividade e originalidade no "além-do-homem", super-homem, conforme expressão cria- da pelo filósofo. 228 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE A vida é um jogo de forças, é vontade de poder, desejo perma- nente de intensificação, de ultrapassagem em direção a mais poder, seja na oposição entre duas forças, seja no interior de uma mesma força. Essa vontade de crescimento não se reduz ao instinto de conservação, pois a afirmação de sua força pode levar um ser vivo a colocar em causa sua própria conservação, o que Nietzsche interpreta como uma limitação da vontade de viver. Dentre essas forças, umas são ativas, capazes de se afirmar sem se opor a outras forças, outras são reativas, só se opõem mutilando as demais. O ideal de Nietzsche consiste em afirmar seus valores sem a preocupação de justificação. Sócra- tes, ao contrário, é o protótipo do homem reativo, pois que ao erro opõe o verdadeiro; ao mal, o bem, etc. (ROUX-LANIER, 1995, p. 473, tradução nossa). Nenhum juízo pró ou contra a vida pode ser verdadeiro. Juízos, apreciações pró ou contra a vida, não podem em últi- ma instância ser verdadeiros: não têm outro valor senão o de ser sintomas, não contam senão como sintomas – em si tais juízos são estupidez. É preciso alcançar esta "sutileza" de com- preender que "o valor da vida não pode ser apreciado". Nem por aquele dotado de vida, porque ele é parte, é mesmo objeto de litígio e não de julgamento: nem por um morto, por outra razão. Da parte de um filósofo, ver um problema no "valor" da vida consiste em uma contradição, em um ponto de interroga- ção com relação ao seu saber, uma falta de sabedoria. Como? E todos estes grandes sábios – teriam eles sido não somente "de- cadentes", mas ainda teriam eles sido verdadeiramente sábios? (NIETZSCHE, 1952a, p. 96-98, tradução nossa). Contra toda dialética Em sua obra Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche ataca a for- ma de pensamento que predominou no pensamento ocidental e que se inicia com Sócrates. Sócrates, para Nietzsche, é o inventor do homem teórico ou dialético, que se contrapõe ao aristocrata 229© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE grego cuja nobreza se impunha de si mesma, sem justificativa. O homem dialético reclama sempre a prova de tudo que se afirma. Toda deliberação argumentada é condenada pelo filósofo, porque nela se daria o desaparecimento da solidariedade tra- dicional, instintiva nos antigos helenos (gregos), responsável por sua força e saúde. A origem dessa decadência que leva ao mundo moderno estaria na vitória da dialética socrática sobre o sentido do trágico dos antigos gregos. Vitória de Sócrates que Nietzsche atribui ao triunfo das forças reativas sobre as forças ativas. É, portanto, um sintoma da decadência. Antes de Sócra- tes, observa, a sociedade grega considerava falta de boas manei- ras buscar, justificar, argumentando dialeticamente, pois o que precisa ser demonstrado não têm valor. Aquele que, em vez de comandar, usa da dialética para demonstrar suas razões seria, segundo Nietzsche, um "polichinelo", isto é, alguém que não é levado a sério. "Sócrates foi o polichinelo que se tomou a sério". Com Sócrates, a tendência do pensamento grego se altera em favor da dialética: o que é que se passa exatamente? Antes de mais nada trata-se de uma vitória sobre uma tendência nobre; com a dialética o povo alcança a posição mais alta. Antes de Só- crates, discursos dialéticos eram eliminados da boa sociedade: eram considerados como capazes de corromper a juventude. Desconfiavam também de todos aqueles que argumentassem de tal maneira. [...] O que precisa ser demonstrado, não vale grande coisa. Em todo lugar onde a autoridade ainda está de acordo com as normas sociais, em todo lugar onde não se "dis- cute", mas se comanda, aquele que exerce a dialética é uma espécie de polichinelo; é motivo de riso, não é tomado a sério – Sócrates foi o polichinelo que "conseguiu ser tomado a sério" (NIETZSCHE, 1952a, p. 96-98, tradução nossa). 230 © ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE A moral vigente corresponde ao instinto de rebanho no indivíduo Os valores tradicionais representam, para Nietzsche, uma moralidade escrava, uma moralidade criada por indivíduos fracos e ressentidos que, por interesse, estimularam comportamentos bondosos. Nietzsche distingue duas classes de seres humanos: a dos senhores e a dos escravos. A classe dos senhores compreende a dos guerreiros (aristocrática) e a sacerdotal. A classe sacerdotal deriva da classe guerreira ou aristocrática, caracterizando-se, po- rém, pela impotência: em vez de praticar as virtudes do corpo, como a classe aristocrática, inventa virtudes. Da rivalidade destas duas classes surgem dois tipos de mo- ral: a dos senhores e a dos escravos. A classe dos guerreiros é dominante, a sacerdotal é débil e enferma. A classe sacerdotal reage invertendo os valores aristocráticos, criando uma moral escrava que teve início com o povo judeu e foi herdada e assumi- da pelo cristianismo. É a moral surgida do ressentimento, segundo a qual a força que o forte, sendo livre, exterioriza, é algo ruim, pois destrói os mais fracos. Nesse processo de "transvalorização", transformam impotência em bondade; baixeza em humildade; covardia em paciência; miséria em prova bem-aventurada dos eleitos e cria- -se a noção de "justiça". A "invenção" da moral foi uma defesa contra os poderosos. Os valores tradicionais representam, assim, para Nietzsche, uma moralidade escrava, uma moralidade criada por indivíduos fracos e ressentidos que, por interesse, estimularam comporta- mentos bondosos. 231© ÉTICA II UNIDADE 4 – PRIMÓRDIOS DA PÓS-MODERNIDADE: SCHOPENHAUER E NIETZSCHE O mundo chamado pela filosofia de "verdadeiro" não passa de uma ilusão de ordem moral Estamos habituados, diz Nietzsche, a considerar como ver- dadeiro só o estável, o que permanece uno, idêntico a si mesmo. Dá como exemplo Platão, que situa a verdadeira realidade no do- mínio inteligível, o mundo das Ideias, em oposição à diversidade sensível, sempre mutante, considerando esta como aparência. Essa determinação da essência da verdade, que se apre- senta como evidente, não o é, diz Nietzsche; supõe uma sepa- ração e uma avaliação (julgamento moral) que implica uma re- jeição do sensível e do múltiplo, ou seja, da vida em toda a sua riqueza. O problema da ciência é um problema moral Em sua obra A Gaia Ciência, Nietzsche diz que, no domínio da ciência, as convicções não têm lugar. Só quando assumem a forma de hipótese experimental conseguem acessar o domínio do conhecimento. Isso significaria dizer que a convicção só ad- quire o direito de pertencer à ciência quando deixa de ser uma convicção. Acontece, observa o filósofo, que a ciência ou discipli- na do espírito começa sempre a partir de convicções. Podemos concluir que a própria ciência se baseia em uma crença, a da necessidade de postular, e a necessidade de se fazer ciência se funda em outro postulado: "nada é mais necessário do que a verdade". Mas, "o que é esta vontade absoluta
Compartilhar