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Filosofia do Direito – 2016.2 Prof. Marcello Ciotola I. O que é filosofia? 1) Introdução A própria definição de filosofia já apresenta seu caráter problemá�co. Ao contrário da �sica ou da química, se perguntarmos a 10 filósofos o que é a filosofia, certamente haverá 10 respostas diferentes. Um exemplo que retrata isso é o caso de um aluno que perguntou ao Professor Jules Lachelier o que é a filosofia, ao que o professor disse não saber a resposta. A filosofia, ao contrário de todas as disciplinas cien�ficas, não é matéria de conhecimento. Filosofia não é ciência . Todas as ciências têm um objeto de estudo muito bem definido; já na filosofia não acontece isso, porque ela é uma forma de reflexão, que pode incidir sobre todo e qualquer problema de caráter universal . Para o estudo da filosofia, é claro que há portas de entrada, como, por exemplo, a história da filosofia, cujo estudo não é filosofar (muito embora, para filosofar, seja necessário conhecer as ideias que já existem). A filosofia é uma a�vidade, uma crí�ca reflexiva sobre problemas de caráter universal. “Não há filosofia que se possa aprender, só se pode aprender a filosofar” – Kant. Alguns filósofos comparam por vezes o ato de filosofar com a curiosidade de uma criança. A filosofia nasce de uma estupefação, no momento em que alguns indivíduos começaram a buscar respostas racionais para alguns problemas, a fim de romper com as explicações mitológicas. A pergunta dos primeiros filósofos na Grécia An�ga (século VI a.C.) era “qual foi o primeiro elemento?”, dando origem, assim à Teoria dos Elementos. Hoje, essa não é mais uma pergunta filosófica, porque já há uma resposta comprovada cien�ficamente desde o século XIX. Mas há questões que con�nuam filosóficas, como, por exemplo, a questão filosófica por excelência “existe Deus?”. Richard Dawkins, por exemplo, diz que, “muito provavelmente, Deus não existe”; ele não cai na armadilha de dizer que não existe, já que não seria capaz de comprovar tal afirmação. A filosofia, em um primeiro momento, nasce ligada a fenômenos astrológicos. Sócrates é o iniciador da filosofia é�ca. Platão também apresenta questões sobre preocupações humanas. Aristóteles apresenta preocupações tanto do mundo �sico, assim como os pré-socrá�cos, quanto do mundo humano. Nenhum sistema filosófico angaria a concordância unânime de todos os envolvidos; isso é impossível em filosofia, já que a primeira caracterís�ca da filosofia é a falta de consenso (ao contrário da ciência, em que há consenso sobre as verdades cien�ficas; a ciência gera consenso). Exemplos sobre a falta de consenso na filosofia: (i) Pergunta filosófica: “O que legi�ma o Direito?” - Resposta de Santo Tomás de Aquino: o direito posi�vo, que ele chama de “lei humana”, deve estar de acordo com a lei natural (que acaba sendo equiparado ao direito natural pelos não tomistas), que está de acordo com a lei eterna (a razão de Deus que governa todo o universo). - Resposta de Karl Marx: nada faz o direito ser legí�mo, vez que é um instrumento de opressão de classes. Não há direito legí�mo. O direito é uma superestrutura, um mero reflexo da base de distribuição e produção de riqueza; ele está fadado a desparecer no comunismo. Via de regra, os marxistas não estão presentes no debate acerca da legi�midade do direito. - Resposta dos contratualistas: o que legi�ma o direito é o pacto social. 🡪 Observa-se que todas as respostas entram em choque. Segundo Miguel Reale, “a filosofia não exis�ria se todos os filósofos culminassem em conclusões idên�cas”. (ii) Pergunta filosófica: “O que é uma sociedade justa?”, levando em consideração a seguinte situação: a média salarial de um professor de ensino médio nos EUA é de $ 43.000,00 por ano (x); a do presidente da Suprema Corte é de $ 217.000,00 por ano (5x); a de David Le�erman é de $ 31.000.000,00 por ano (720x). O que faz uma sociedade justa diante dessa situação? - Resposta de John Rawls ( Theory of Jus�ce , de 1971): depende de saber se essas diferenças salariais são parte de um sistema de tributação e redistribuição de renda que beneficie os menos favorecidos; se as diferenças se reverterem em prol dos mais desfavorecidos, elas serão moralmente válidas. Trata-se de uma posição em defesa do Estado de Bem-Estar Social (polí�cas de distribuição; liberalismo igualitário). - Resposta de Robert Nozick (Anarquia, Estado e Utopia): nenhuma redistribuição tem legi�midade; defesa do Estado Mínimo. Jus�fica com a lógica do mercado, que é o que determina a distribuição. Representa os libertários. Reconhece a importância das teses de Rawls, embora as rechace. Ele dá o exemplo de um jogador de basquete, Chamberlain: quando o �me dele era o mandante, de cada ingresso de 10 dólares, 5 dólares eram dele. Para Nozick, o Estado não pode tributar o que ele arrecadava, porque tributar é um roubo, uma violação de direitos individuais. São feitas trocas livres no mercado e ninguém é obrigado a ir ao jogo de basquete. Não há padrão justo anterior ao mercado, como defende Rawls. O que caracteriza a jus�ça é esse rol de trocas livres do mercado e isso nós não podemos saber como vai ocorrer. Nozick começa o livro ques�onando se deveria haver Estado ou se seria melhor anarquia. Sua conclusão é a de que deve haver Estado para cuidar de assunto como segurança pública, pavimentação, iluminação das ruas, mas deve ser um Estado Mínimo, sem polí�ca de redistribuição (solidariedade forçada). As pessoas podem ajudar umas às outras, mas não deve ser frito da coerção estatal. 🡪 Rawls e Nozick eram contemporâneos, professores da mesma universidade (Harvard), mas há um abismo entre suas opiniões. Esse é o dissenso que caracteriza a filosofia, em que tudo é ques�onável. 🡪 O que Nozick propõe é muito menos perverso do que o Estado patrimonial, como o que temos no Brasil, em que os pobres financiam os ricos e que mistura o público e o privado. O Estado Mínimo de Nozick não promete nada a ninguém e ninguém espera nada dele. No Brasil, 50% da arrecadação provêm de impostos indiretos, que são iguais para todos. Além disso, há vários outros fatores, como a não tributação de lucros e dividendos, a má u�lização da Lei Rouanet, a possibilidade prevista em lei de receber como pessoa jurídica para ser tributado em apenas 15% e não em 27,5%; os auxílios são para o que menos precisam de auxílio. (iii) Pergunta filosófica: “Qual é a natureza humana? Existe uma essência humana?” - Resposta de Hobbes: a natureza humana é perversa (“o homem é o lobo do homem”). O homem age por seus próprios interesses; tem uma vida sórdida e embrutecida no estado de natureza (guerra de todos contra todos, que é evitada por um acordo entre os indivíduos, que transferem tudo a um soberano, que só deve proteger nosso direito à vida); - Resposta de Rousseau: o homem é bom por natureza (visão idílica do estado de natureza, em que os homens são livres e iguais), ou seja, a natureza humana é boa, mas o homem é desvirtuado pelaconsequências (não se trata de filosofia u�litarista). Kant põe sua própria teoria à prova ao dar o exemplo do assassino ao rechaçar um “suposto direito de men�r por amor à humanidade”. Se alguém es�ver escondendo um indivíduo que está sendo procurado por um assassino e esse alguém encontrar o assassino, que lhe pergunta onde está o indivíduo, deve-se dizer a verdade, mesmo para o assassino. Kant leva o seu pensamento às úl�mas consequências e polemiza com Benjamin Constant, que levanta essa hipótese do assassino. É claro que há crí�cas quanto a isso. A filósofa britânica Elizabeth Ascombe diz que o assassino deveria ser uma exceção, que é justamente o que Kant não quer. (iii) Universais: os princípios morais vigoram para todos os homens, em todos os tempos. As é�cas da contemporaneidade universalistas têm matriz kan�ana. Kant defende princípios universalmente válidos para todos os seres racionais, independentemente de seus desejos, que são con�ngentes. A moral não pode se alicerçar a algo con�ngente. A moral está baseada na razão, que não é con�ngente. Como seres racionais, nós somos capazes de compreender a moral ditada pela razão prá�ca universal. Além das posições universalistas, há posições rela�vistas culturais (geralmente defendida por sociólogos e antropólogos) ou subje�vistas (Nietzsche, Sartre, Kelsen). Mas como fundamentar uma moral subje�vista? Sartre, por exemplo, nunca publicou o prome�do tratado sobre a moral. Se o universalismo pode ter crí�cas, as outras posições também podem ser alvos de crí�cas. Para o rela�vismo cultural, por exemplo, tudo será atribuído à cultura. Quando se fala em universalismo é�co, geralmente, reduz-se o campo da moral, sem a pretensão de uniformizar a vida humana. Até em Santo Tomás existe essa percepção, já que ele diz que apenas os princípios nucleares são imutáveis, havendo a possibilidade de variação quanto aos princípios secundários. O universalismo não é etnocêntrico, ele é dialógico. Os princípios morais serão mínimos. Hoje, quando se fala em universalismo moral, há abertura para a diversidade cultural; o que ele rechaça é o imperialismo da cultura. O impera�vo categórico é o princípio fundamental das normas gerais. Trata-se de teste para ver se nossas ações são passíveis de universalização e, portanto, morais. Deve-se agir unicamente segundo a máxima (a máxima é o princípio subje�vo da ação e está na consciência do indivíduo) que pode ser alçada à categoria de lei universal (que é o princípio obje�vo da ação). A ideia é derivar princípios morais substan�vos a par�r do teste do impera�vo categórico. Exemplo: a máxima subje�va da ação é “quando me for conveniente, prometerei algo que não cumprirei”. Se todos atuassem conforme essa máxima, o ins�tuto da “promessa” seria ex�nto, não podendo essa máxima ser alçada à categoria de lei universal, porque seria uma contradição. Isso não significa dizer que Kant é u�litarista por pensar na consequência. Se se mente, instrumentaliza-se o outro, ao invés de reconhecer a sua dignidade intrínseca. Essa máxima não pode ser um verdadeiro princípio moral e a conduta nela pautada carece de moralidade. Existem os impera�vos hipoté�cos e os impera�vos categóricos. O impera�vo hipoté�co é necessariamente condicional e segue a fórmula “se for B, deve ser A”: tem-se uma hipótese e um enunciado (ou uma consequência). Exemplo: se quiser conservar a honra, deve falar a verdade. O impera�vo hipoté�co caracteriza as normas técnicas e as normas de prudência, como nesse exemplo de se falar a verdade para se conservar a honra. Exemplo de norma técnica: se quiser ser violonista concer�sta, deve estudar quatro horas por dia. Essas normas não são obrigatórias; só se deve agir de tal maneira de se quiser a�ngir determinado resultado. As normas de Direito, que não têm validade intrínseca, são, em tese, impera�vos hipoté�cos. As normas jurídicas atendem a finalidades exteriores e não são intrinsecamente valiosas. Já a moral está vinculada ao impera�vo categórico, que é o princípio supremo da moralidade e incondicional, devendo ser observado por todos em qualquer situação. Ele traduz ação que é intrinsecamente valiosa; quem revela isso é a razão. O impera�vo categórico só tem o enunciado: “deve ser A” (exemplos: deve-se falar a verdade; deve-se pra�car a caridade; deve-se ser grato ao benfeitor); deve ser isso porque é o certo e ponto. Quem diz o que é o certo é a razão. A norma moral exige adequação ín�ma, ao contrário da norma jurídica. Conceito kan�ano de “boa vontade”. A boa vontade, para Kant, é a única coisa incondicionalmente boa. É a vontade de obedecer à lei moral independentemente do seu proveito ou desvantagem para o indivíduo. A virtude nos faz dignos da felicidade, mas não é que devamos ser virtuosos para sermos felizes (não é pensamento u�litarista). Primeiramente, deve haver conformidade absoluta à lei moral; a é�ca de Kant não é uma é�ca das virtudes (como no modelo aristotélico-tomista), ela é uma é�ca do dever. A virtude é adequar suas intenções à lei moral. Em seguida, deve-se agir não só conforme o dever, mas também pelo dever. O mais importante é que se atue por dever; não basta agir conforme o dever. O dever é determinado única e exclusivamente pela razão. A vontade moralmente boa é a que cumpre com o seu dever não por ter simpá�ca com quem necessita de ajuda nem por interesse, mas, sim, por ser aquele o seu dever. Se se cumpre o dever por dever, só assim o ato será verdadeiramente moral. Essa verdade é acessível ao homem comum; trata-se de moralidade que sempre exis�u e é conhecida por todos. O homem comum sabe a diferença entre agir conforme o dever e agir pelo dever. Exemplo: uma criança de sete ano compra bala e o comerciante dá o troco errado; não se discute que seu ato foi imoral. Se o comerciante dá o troco por interesse (por medo de ser descoberto e de perder a freguesia), ele age conforme o dever, mas isso não basta. É necessário agir por dever; o ato só será moral se ele der o troco certo por reconhecer a validade intrínseca do dever. Exemplo da Kant: comerciante que não aumenta o preço das mercadorias por medo de perder a freguesia x comerciante que não aumenta o preço das mercadorias por reconhecer que esse é o seu dever moral. Outro exemplo de Kant: filantropo que pra�ca ação benevolente por sen�r o prazer de agir assim x filantropo insensível que pra�ca ação benevolente por saber que esse é o seu dever moral. Nos dois exemplos, a segunda opção é a que tem mais valor. Tudo isso está no livro “Da fundamentação da meta�sica dos costumes”, publicado em 1785 e cujo alvo é o pensamento u�litarista. Mas o livro de Bentham, “Dos princípios, da moral e das leis”, foi publicado só em 1789 e é o marco do pensamento u�litarista. Pode ser que esse livro tenha circulado antes de sua publicação ou não, mas fato é que Kant conhecia o pensamento u�litarista, que é o seu alvo.Para Kant, as consequências são irrelevantes (o que vale é a valia intrínseca das ações) e até mesmo imprevisíveis. A moral em Kant é afastada do mundo empírico, enquanto, para os u�litaristas, depende de constatação empírica. Em Aristóteles, o bom era a felicidade. No hedonismo de Epicuro, o bom é o prazer. No u�litarismo, o bom é o ú�l. Em Kant, o bom é a boa vontade. A única coisa que é moralmente boa, sem restrições, é a boa vontade. A ação moralmente boa é aquela que se realiza não somente de acordo com o dever, mas também pelo dever. Se se age pelo dever, age-se necessariamente de acordo com o dever. É necessário que a mo�vação seja o próprio dever. O resto não é bom por si só, porque pode acarretar ações moralmente piores. Exemplo: a inteligência; o crime de um assassino inteligente é pior do que o de um assassino mais limitado. Para Kant, é inconcebível pensar em qualquer coisa que seja incondicionalmente boa, com exceção da boa vontade. Na crí�ca à razão prá�ca, Kant apresenta postulados a priori da razão prá�ca: - a liberdade: o homem é livre para cumprir o dever moral. Não estamos biologicamente programados para tal; se assim fosse, nossos atos não teriam nenhum valor moral; - a existência de Deus; e - a imortalidade da alma Em Kant, embora o dever deva ser feito em função do dever, ele entende que seria intolerável se os homens virtuosos não fossem recompensados com a felicidade; seria algo trágico. Como é fato que, neste mundo, nem sempre a virtude se vê coroada pela felicidade, a moralidade pressupõe a existência de Deus e a imortalidade da alma. Se não for recompensado neste mundo, será recompensado no outro. Há necessidade de Deus no âmbito prá�co; Kant sabe que a razão não é capaz de provar a existência de Deus. VI. O liberalismo polí�co de John Rawls 1) Constru�vismo polí�co Primeiro livro: “Uma teoria da jus�ça” (1971). Segundo livro: “O liberalismo polí�co” (1993; coletânea de conferências). Terceiro livro: “O direito dos povos” (1999). A teoria de Rawls é apenas polí�ca e não pretende abordar todos os aspectos da vida humana. Rawls tem um método constru�vista, mas é um constru�vismo polí�co e não moral, como há em Kant. Esse constru�vismo se opõe ao intuicionismo. Em Santo Tomás de Aquino, há método intuicionista, porque o homem ascende racionalmente aos princípios morais, que pairam sobre a sua cabeça (exemplo: deve-se fazer o bem e evitar o mal): intuicionismo racional. Em Rawls, as partes constroem os princípios de jus�ça. Diferença entre Rawls e Kant: em Kant, os princípios morais dão respostas a todos os aspectos da vida, enquanto, em Rawls, os princípios se aplicam apenas à polis , às principais ins�tuições polí�cas, econômicas e sociais. A moralidade pública é o que importa em Rawls. Método de Rawls: tem-se uma concepção de pessoa, vinculada ao processo de construção dos princípios, para se chegar aos princípios de jus�ça. Entre a concepção de pessoa e os princípios de jus�ça, há mediação da posição original. - Concepção de pessoa: as pessoas são livres e iguais, razoáveis e racionais. Para construir princípios de jus�ça, é necessário que as partes, na posição original, sejam livres e iguais (conceitos comuns na filosofia polí�ca, a exemplo de Rousseau); um escravo e seu senhor não poderiam fazer isso juntos. Razoáveis: as pessoas são capazes de ter um senso de jus�ça e de se adequar a princípios de jus�ça. Racionais: as pessoas têm um concepção do bem própria, têm o seu plano de vida racional, mas, na posição original, essa concepção própria é desconhecida pelas partes. - Posição original: é o elemento mediante entre a concepção de pessoa e os princípios de jus�ça. A posição original não tem existência concreta; ela é contrafá�ca, não existe na realidade (em Hobbes e em Rousseau, por exemplo, o estado de natureza é uma metáfora e não tem existência concreta). A posição original é um ponto de vista distanciado a par�r do qual se pode fazer acordo justo entre as partes iguais, garan�ndo a imparcialidade (que é necessária). Essa posição original é situação meramente hipoté�ca, que nos conduz a determinada concepção de jus�ça, estando as partes cobertas sob um véu da ignorância, que nos �ra a visão. Isso porque, do contrário, as partes escolheriam princípios de jus�ça que beneficiariam a si próprias. As partes não sabem o lugar que ocupam na sociedade, desconhecendo sua sorte na distribuição de talentos e sua concepção do bem. As concepções do bem podem variar muito em uma sociedade liberal, mas as partes contratantes não sabem qual é a sua própria concepção na posição original. As partes também não sabem suas próprias caracterís�cas psicológicas, se são o�mistas ou pessimistas, se têm ou não aversão ao risco. Se elas soubessem tudo isso na posição original, mudaria tudo. Também não sabem a sua geração, porque o problema da jus�ça também é entre gerações. Elas também não conhecem a situação par�cular de sua própria sociedade. Nessas condições, as partes são capazes de construir princípios de jus�ça imparciais, sem se preocuparem com o que vem pela frente. Como o acordo é justo e imparcial, Rawls entende que os princípios daí decorrente serão obrigatoriamente justos, já que há jus�ça procedimental pura na posição original. - Princípios de jus�ça: as partes na posição original, situadas ao abrigo do véu da ignorância, escolhem os seguintes princípios: princípio da liberdade, princípio da igualdade equita�va de oportunidades e princípio da diferença. Moralmente falando, desigualdades sociais e econômicas são jus�ficáveis se sa�sfizerem duas condições: (i) se ligadas a funções e posições abertas a todos em condições de justas igualdades de oportunidades e (ii) se proporcionarem bene�cios para os membros mais desfavorecidos da sociedade. Se as diferenças de rendas reverterem para os mais desfavorecidos a par�r de um sistema de tributação e redistribuição, elas são justas. Princípio da liberdade: “ cada pessoa tem direito igual a um sistema plenamente adequado de liberdades e direito básicos iguais para todos, compa�veis com um mesmo sistema para todos ”. Rawls é um pensador liberal e prioriza a liberdade, que deve ser realizada em primeiro lugar. Exige-se a aplicação imparcial das liberdades fundamentais (liberdade polí�ca, de reunião, de consciência, de pensamento, de expressão, liberdades da pessoa, proteção contra a prisão arbitrária, proteção da propriedade dos bens pessoais) a todos os indivíduos. Quanto à proteção da propriedade dos bens pessoais, deve-se considerar que a teoria da jus�ça como equidade também se aplica ao socialismo democrá�co e, por isso, Rawls não pode falar em propriedade privada dos bens de produção como liberdade fundamental. Caso haja propriedade privada dos bens de produção, isso não será uma liberdade fundamental. As liberdades básicas podem ser regulamentadas, mas não podem ser restringidas. A restrição só é plausível para salvar a própria liberdade (exemplo:par�do nazista é proibido porque, se chegar ao poder, sua primeira medida será fechar o parlamento). “ As desigualdades sociais e econômicas devem preencher duas condições: em primeiro lugar, devem estar ligadas a funções e a posições abertas a todos em condições de justa igualdade de oportunidades; e, em segundo lugar, devem proporcionar a maior vantagem para os membros mais desfavorecidos da sociedade. ” Princípio da igualdade equita�va de oportunidades: não se confunde com uma simples meritocracia (carreiras e talentos). Exemplo (que não é de Rawls): existe uma igualdade de oportunidades vinculada às carreiras abertas aos talentos; todos frequentam escolas no mesmo padrão (há igualdade de oportunidades, sendo a educação um bem humano fundamental), bem como escolinhas de futebol; um é o Messi e o outro joga na terceira divisão do Campeonato Brasileiro. As carreiras estão abertas aos talentos e houve igualdade de oportunidades. Para Rawls, isso não está bom; ele não defende uma sociedade meramente meritocrá�ca, em que as carreiras estão abertas aos talentos e as diferenças são válidas desde que haja igualdade de oportunidades. Para Rawls, se os indivíduos se distanciarem muito, só será moralmente legí�mo se essa diferença for rever�da aos menos favorecidos, de acordo com o princípio da diferença. Não é um princípio marxista (igualdade de resultado); é princípio liberal (igualdade de oportunidades; liberalismo igualitário). Princípio da diferença: se não se respeitar o princípio da diferença, as diferenças sociais e econômicas não serão moralmente válidas. O segundo princípio deve ser interpretado em conjunto com o terceiro princípio. Os talentos, para Rawls, são comuns e devem reverter para a comunidade. Ninguém tem mérito moral pelos seus talentos. O talento precisa ser cul�vado, mas é uma loteria. Por isso, são um bem cole�vo e devem reverter aos menos favorecidos. Há mérito no indivíduo que vive em uma sociedade que valoriza determinada habilidade? A sociedade atual valoriza os jogadores de futebol, os apresentadores de TV, mas há mérito nisso? Thomas Nagel se pergunta que caráter aleatória está por trás do fato de alguém nascer na família real britânica e outra nascer na Namíbia. Isso é fato da natureza e não pode ser modificado; o que pode ser modificado é como a sociedade justa enfrenta isso. É aí que entra a discussão da jus�ça; a jus�ça entra em um segundo momento. Rawls não é marxista. Entre o padrão de distribuição A (4, 4, 4, 4) e o padrão de distribuição B (5, 6, 7, 8), o segundo é a sociedade mais justa, porque a parte, na sociedade B, que está na pior situação está em uma situação melhor do que quem está em uma situação de absoluta igualdade. Rawls não dá nenhum exemplo, mas se pode pensar na Alemanha Oriental e na Alemanha Ocidental durante a Guerra Fria. Ao maximizar a porção mínima, é melhor do que a igualdade absoluta. A sociedade B é mais rica do que a sociedade A. Para Rawls, a economia não é um jogo de soma zero. Os indivíduos com melhor situação acabam carregando os mais desfavorecidos. Mas Rawls não nega que uma sociedade com socialismo democrá�co possa se adequar aos princípios de jus�ça. Mas ele claramente defende uma sociedade de bem-estar social. 2) A retomada da razão prá�ca Existem divisões da é�ca: ciência da moral ou é�ca descri�va, é�ca norma�va, é�ca analí�ca ou metaé�ca, é�ca aplicada. Em 1975, em seu ar�go “The Independence of moral theory”, Rawls manda abandonar a metaé�ca e restringir-se à é�ca norma�va. A é�ca norma�va indaga o que é certo, havendo várias correntes que determinam qual a ação correta. Todos nós formulamos juízos de valor, falando que coisas são boas ou justas. Há a é�ca das virtudes (aristotélica), a é�ca do dever (kan�ana), a é�ca u�litarista, a é�ca do mandamento divino. A é�ca norma�va é o núcleo mais importante da é�ca; é a é�ca substancial, mas não é o único ramo da é�ca. O obje�vo da é�ca norma�va é determinar princípios básicos de jus�ça e de moralidade. Já a metaé�ca, ou é�ca analí�ca, é uma aplicação à é�ca da filosofia analí�ca, que reduziu a filosofia ao estudo da linguagem da ciência. A metaé�ca estuda apenas a linguagem da moral, o significado dos termos morais e o caráter dos juízos de valor (cogni�vo, descri�vo, falso, verdadeiro, expressão da emoção de quem fala), se eles são verificáveis empiricamente ou não; analisam-se os termos “bom”, “correto” “justo”. O termo “metaé�ca” foi alcunhado por Alfred Ayer. A metaé�ca não estabelece princípios de moralidade e de jus�ça, não constrói juízos de valor. Para Rawls, é preciso se fixar na é�ca norma�va e abandonar a metaé�ca. O seu livro “Uma teoria da jus�ça”, de 1971, é um tratado muito bem construído, atrelado a fatores históricos, como a luta pelos direitos civis nos EUA, o Estado de Bem-Estar Social. Seu livro fez muito sucesso, por apresentar conclusões muito concretas. Para os liberais, a jus�ça deve ser independente de qualquer concepção acerca de excelência humana; o ideal de vida boa é formulado pelos indivíduos e não pela sociedade. A jus�ça traça um quadro dentro do qual cada um pode realizar seu próprio ideal de vida boa. Mas há diferenças entre os liberais, havendo entendimentos diferentes acerca da igualdade e da liberdade. Nozick, que é uma liberal clássico (ou libertário), dá primazia total à liberdade, enquanto Rawl (liberal igualitário) quer conciliar a liberdade e a igualdade. Dworkin, que também é liberal igualitário, vê na igualdade o cerne do liberalismo. “Uma teoria da jus�ça” trouxe muitas inovações e tenta realizar duas faces da teoria polí�ca tradicional: os estudos do desejável e do exequível. Essas duas faces haviam se separado, porque a economia e a ciência polí�ca, no século XX, restringem-se aos fatos e não pensam no que é desejável, enquanto a filosofia se distanciou do que é exequível, das análises empíricas. Rawls está preocupado com o que é desejável (definindo os princípios de jus�ça), mas pretende que seus princípios sejam exequíveis, para a estabilidade das ins�tuições. Mas a retomada da razão prá�ca – a fundamentação racional da é�ca estava em baixa – é mais importante ainda do que reunir o desejável e o exequível. Sócrates, Kant, Rawls, Habermas acreditam na razão prá�ca para estabelecer os princípios morais. Já os filósofos do século XX estavam presos à metaé�ca – que afasta, em regra, a possibilidade de razão prá�ca – por três mo�vos, segundo Adela Cor�na: (i) intuito de esclarecer a linguagem moral (achava-se que as discussões muitas vezes se davam no campo da é�ca por haver confusão quanto aos termos morais, que careciam de esclarecimento – o que é uma ilusão); (ii) século marcado por uma obsessão pela obje�vidade e neutralidade, seguindo-se a lógica weberiana de que a ciência só está preocupada com juízos de fato, que podem ser comprovados empiricamente (os cien�stas não podem proferir juízos de valor; éo caso, por exemplo, de Kelsen); e (iii) o complexo de grilo falante (os filósofos não queriam ser confundidos com moralistas, abrindo mão da tarefa de prescrever). Nem todos os grandes pensadores da metaé�ca abriram mão totalmente da é�ca norma�va, embora tenham dado primazia à metaé�ca. Moore, por exemplo, defende o u�litarismo é�co; Stevenson reconhece que o mais importante é a é�ca norma�va, embora seu livro seja de metaé�ca; Hare defende o u�litarismo. Mas, para o britânico Alfred Ayer, a é�ca é sinônimo de metaé�ca, apresentando um pensamento mais radical. Para Ayer, a é�ca norma�va não é é�ca. Ele introduz o posi�vismo lógico na Inglaterra, depois de ter contato com o Círculo de Viena. Cri�ca a é�ca, a esté�ca e a teologia, mostrando repulsa à meta�sica e a discussões como “o que é o homem?”, “Deus existe?” etc. Os autên�cos problemas filosóficos, para Ayer, podem ser resolvidos por meio de uma análise lógica. As grandes inspirações de Ayer são David Hume (que, no século XVIII, atacou a meta�sica – o ataque à meta�sica feito por Ayer não é inovação; o que é inovação sua é esse ataque por meio da filosofia da linguagem), Russell e Wi�genstein (segundo o qual do que não se pode falar, deve-se calar; para ele, a é�ca é indizível e não pode ser pensada racionalmente, por pertencer ao campo das emoções, adotando claramente o emo�vismo é�co). Para Ayer, só há duas proposições significa�vas: (i) as proposições analí�ca (o predicado nada acrescenta ao sujeito; são as tautologias, com significado a priori ) e (ii) as proposições empíricas/fá�cas (o predicado acrescenta algo ao sujeito, com significado a posteriori ). As proposições é�cas não são nem analí�cas nem empíricas e, por isso, não têm significado congnoci�vo. Só definições de termos é�cos são filosofia moral; o resto é sociologia, psicologia etc. Há profundo emo�vismo é�co em Ayer, já que, para ele, qualquer juízo é�co é expressão de uma emoção. Outros emo�vistas são Alf Ross (“argumentar com a jus�ça é dar um murro na mesa”), Nietzsche, Kelsen. Houve uma retomada das é�cas norma�vas, com base em estudos u�litaristas, da é�ca das virtudes ou autores neokan�anos. Rawls desafia a metaé�ca e enfrenta o pensamento u�litarista dominante no cenário algo-americano (Hume, Adam Smith, John Stuar Mill, que exerciam enorme influência). Rawls propõe o abandono do u�litarismo e joga duas par�das de xadrez ao mesmo tempo. Ele enfrenta o ce�cismo sobre a possibilidade de se fundamentar racionalmente a moral, preconizado pelo rela�vismo e pelo emo�vismo. Para Karl-O�o Apel, nunca havia sido tão di�cil e tão importante construir uma é�ca universal, diante das questões atuais de tecnologia, desenvolvimento sustentável. Para ele, havia duas filosofias dominantes: a filosofia analí�ca (que dominava na Grã-Bretanha e que rechaçava a meta�sica) e o existencialismo de Sartre (predominante no mundo con�nental europeu); embora sejam filosofias completamente diferentes, elas têm em comum o ce�cismo é�co. Rawls propõe princípios de jus�ça que devem reger a sociedade. Ao invés de falar em é�ca norma�va, fala em “teoria moral”; ao invés de falar em metaé�ca, fala em “teoria do significado”. Ele apresenta um esforço de fundamentar racionalmente princípios de jus�ça. Obs.: Rawls não fala em Ayer, embora se oponha a ele.sociedade. Rousseau diz que há um falso contrato social, que inaugura a desigualdade, sendo necessário um novo contrato social para restaurar a liberdade e a igualdade originárias. Esse novo contrato seria a República. - Resposta de Sartre: não há que se falar em natureza humana (filosofia ateia). “O existencialismo é um humanismo”, ou seja, uma liberdade. A existência precede a essência/natureza. Portanto, não existe uma essência humana; não há Deus para criar a natureza humana. O homem se constrói o tempo inteiro, é um projeto que se vive subje�vamente (não daria nem para falar “Fulano é corajoso” ou “Beltrano é covarde”). Em “O ser e o nada”, que é uma obra de ontologia, ele não aborda o problema da é�ca, que é um estudo do dever-ser. No campo da é�ca, Sartre é enquadrado na corrente do subje�vismo é�co, segundo a qual cada um escolhe sua própria pauta de valores; a única coisa que Sartre exigia era que cada indivíduo �vesse responsabilidade quanto às suas escolhas. Ele defende uma ideia de liberdade absoluta: até o escravo é livre, porque ele pode fugir, se rebelar... O homem é radicalmente livre; o importante é o que cada um faz com o que a sociedade faz com ele. O homem que dá escusas está agindo de má-fé e abrindo mão de sua total liberdade. Há uma grande diversidade de sistemas filosóficos. Até Hegel, os filósofos tentavam construir uma filosofia sobre tudo (é�ca, esté�ca, filosofia do direito, teoria do conhecimento, meta�sica, filosofia da polí�ca...). A par�r de Hegel, abandonou-se essa pretensão de fazer grandes sistemas filosóficos. Esses grandes sistemas estão sempre em conflito; não há verdade. Mas esse dissenso não deve levar ao ce�cismo; deve ser visto como um convite para par�cipar do debate filosófico. Segundo Jaspers, a essência da filosofia é a busca pelo saber (e não a posse do saber). E�mologicamente, filósofo é o amigo do saber. A filosofia não poder nunca ser um conhecimento dogmá�co; se fosse dogmá�ca, ela se trairia a si mesma. Nem a ciência deveria ser dogmá�ca (diz-se que o direito é uma ciência dogmá�ca através de um estudo norma�vista kelseniano, segundo o qual o direito estuda a norma posta e a norma posta é um dogma). As respostas são menos importantes do que as perguntas. Isso remete ao método socrá�co (maiêu�ca socrá�ca). Sócrates muitas vezes não dava respostas; seus diálogos terminavam inconclusos. A conclusão não é importante, o que importa é a reflexão provocada. Exemplo: “Qual é a finalidade do direito?”. Resposta mais tradicional: “A finalidade do direito é a jus�ça”. Surge uma nova pergunta: “O que é a jus�ça?”. Nova resposta: “Jus�ça é dar a cada um o que é seu” (resposta de Upiano, jurisconsulto de Roma). Nova pergunta: “O que é dar a cada um o que é seu?”. Resposta aristotélica: “dar a cada um de acordo com o mérito.” Nova pergunta: “O que é o mérito?” e assim sucessivamente. O filósofo autên�co é um peregrino da verdade, mas nunca se acha o dono da verdade. A consciência filosófica é inquieta, talhada para a realidade. A filosofia é uma reflexão sobre um conhecimento prévio, é um conhecimento sobre o conhecimento. É uma meditação nutrida de informações previamente conhecidas e muito precisas; não é uma meditação vazia. Ela só trata de coisas que têm sen�do de universalidade (exemplos: direito, história, religião, arte...). É uma reflexão crí�ca em relação ao saber. No âmbito da natureza, as ciências se empenham em explicar fenômenos naturais interligando-os através de leis inteligíveis, expressas em fórmulas matemá�cas. Eles partem do pressuposto de que o mundo existe, dado este que não é ques�onado. Mas a filosofia pode ques�onar a existência do mundo. O filósofo alemão Leibniz, do século XVII, fez inclusive a seguinte pergunta: “Por que existe algo e não apenas o nada?”. As ciências da natureza não dão resposta para isso. A cultura grega não se perguntava sobre o nada; para eles, antes era o caos e, depois, vem o cosmos, que é a ordem. Pela tradição abraâmica, Deus criou o mundo a par�r de água e terra. Com o tempo, as tradições cristã, islâmica e judaica passaram a entender que Deus criou o mundo a par�r do nada (mas o nada não estava no mesmo patamar de Deus). Leibniz responde à própria pergunta afirmando que o mundo existe graças à bondade de Deus e que Deus é um ser necessário. Outros filósofos ao longo do tempo deram diferentes respostas. Hume disse que qualquer resposta não é ú�l. Kant diz que os nossos conceitos não nos permitem conhecer essas questões meta�sicas. Bergson afirma que o nada é uma pseudo-ideia e essa pergunta é uma pseudo-pergunta. Heidegger diz que essa é a mais profunda das questões filosóficas. Ayer, em um debate com o Padre Copleston, diz que perguntar isso é um disparate sem lógica, enquanto Copleston afirma que essa pergunta é o caminho para a existência de Deus. Russell diz: “devo dizer que o universo está aí e isso é tudo”. Há questões que a ciência do direito não consegue responder, como “a pena pode ser justa em uma sociedade injusta?” (Marat), “por que a lei obriga?”, “quais os limites da obrigatoriedade das leis?”. Esses são problemas da filosofia e não da ciência do direito. A filosofia é um saber pelo saber, não é um saber u�litário, pragmá�co; é desinteressada. 2) Pantonomia e Autonomia Conceitos desenvolvidos pelo espanhol Ortega y Gasset. Pantonomia implica em não dividir o objeto de estudo. A filosofia é pantônoma, por ter uma preocupação pelo todo. Já a ciência divide o objeto à exaustão 🡪 exemplos: medicina (o organismo humano é dividido), direito (direito público x direito privado; direito civil x direito comercial... divisões e subdivisões). Nenhuma ciência consegue responder à pergunta “o que é o homem?”, que é um problema meta�sico, de antropologia filosófica; é um problema que requer uma reflexão pantônoma, de caráter universal. Outra questão que requer uma análise pantônoma é: “o que é o direito?”. Essa é uma tarefa filosófica, por abordar o objeto universalmente. O estudo do direito civil, por exemplo, abordará apenas o direito civil brasileiro contemporâneo e não será capaz de definir o objeto em sua dimensão universal. Autonomia implica em ques�onar os pressupostos, todos os pressupostos. A filosofia é autônoma, por não par�r de nenhum pressuposto. Já a ciência se constrói com base nos pressupostos (exemplo: é comum um autor começar um curso par�ndo do pressuposto de que o direito pode ser dividido em público e privado). A filosofia, por sua vez, pode ques�onar esse pressuposto. Kelsen, por exemplo, diz que todos os ramos do direito são de direito público; ao afirmar isso, ele está fazendo filosofia. O filósofo não está preso a nada que anteceda o seu pensamento, ele não dá nada por sabido (radicalidade do pensamento filosófico). Essas duas caracterís�cas diferem a filosofia da ciência, mas é claro que ambas têm pontos em comum (são saberes sistemá�cos, metódicos). 3) Importância da filosofiapara o homem contemporâneo Análise de José Vilanova, em Elementos da Filosofia do Direito . A princípio, poder-se-ia dizer que a filosofia não tem mais nenhum espaço em meio à vida conturbada do homem contemporâneo. José Vilanova diz que a importância da filosofia está exatamente nesse contexto, apresentando quatro pontos de análise. A. Cosmovisão É a visão do mundo ou do universo. Querendo ou não, nós representamos o mundo para viver. A filosofia pode fornecer uma cosmovisão fundamentada, racional, não dogmá�ca. Cada homem deve fazer as próprias escolhas, a própria vida (conexão com pensamento existencialista, que defende a liberdade para escolher). Para fazermos nossas escolhas, é preciso ter percepção moral, ideológica do mundo. A representação do mundo não é algo individual. Uma cosmovisão pode ser predominante. Foi o que aconteceu na Idade Média, em que reinava uma cosmovisão teológica e teocrá�ca – o que evidencia que a cosmovisão tem um aspecto cole�vo muito forte. Mas mesmo uma cosmovisão sólida pode ser ques�onada devido a não só ideias, mas também fatos (no caso da superação da cosmovisão medieval, alguns fatos que contribuíram para tanto foram os descobrimentos e o desenvolvimento do comércio, com o consequente surgimento da burguesia). O racionalismo da ilustração tentou se sobrepor, mas não conseguiu se tornar a cosmovisão dominante, visto que a Revolução Francesa – que pretendia ser a concre�zação histórica do movimento racionalista – acabou em banho de sangue. Depois, vieram as correntes historicistas (historicismo jurídico, historicismo polí�co...), que se contrapuseram aos ideais racionalistas, mas não eram uma cosmovisão dominante. Hoje, não há uma cosmovisão vigente (no mundo ocidental) que valha para todos; o que há é o pluralismo. O homem, portanto, vive certo desconforto, porque é cômodo ter uma cosmovisão dominante e fazer suas escolhas com base em uma cosmovisão inques�onável. Essa falta de cosmovisão vigente pode gerar certa angús�a e é assim que a filosofia ajuda. É anacrônico ter saudade de uma cosmovisão dominante; afinal, por que o homem contemporâneo deveria querer uma menoridade intelectual? Diante da maioridade intelectual, faria sen�do regredir? A razão cri�ca a própria razão e foi isso que aconteceu. Hoje, cada um escolhe racionalmente a resposta que o situe no mundo. A filosofia é a única que nos fornece uma cosmovisão não-dogmá�ca, porque, para isso, é necessário pantonomia e autonomia – o que as ciências não dão. B. Generalidades e pressupostos das ciências O interesse cien�fico tem duas direções, uma teórica e outra prá�ca (tecnologia e ciências aplicadas, que podem não ter nenhuma relação com a filosofia). Na direção puramente teórica, a ciência se encontra com a filosofia, já que há um conjunto de pressupostos/princípios/axiomas nas bases dessa ciência. Quando esses pressupostos são colocados em questão (crise dos pressupostos/fundamentos), as fronteiras entre filosofia e ciência se diluem, permi�ndo diálogo entre os que estão sempre preocupados com pressupostos (os filósofos) e os que geralmente não estão preocupados (os cien�stas). Por isso, muitos homens da ciência acabam enveredando pela filosofia, como, por exemplo, Einstein, Darwin, Savigny, Kelsen, embora essa não seja a sua intenção. C. Ciências do homem Economia, Sociologia, Direito, História, Antropologia, Psicologia... todas essas ciências estudam o homem por ângulos específicos e diferentes e, por isso, não têm pantonomia, não possuindo condições de fornecer conceitos universais sobre o homem. A pergunta meta�sica/antropológico-filosófica “O que é o homem?” é importante para cada uma dessas ciências. No Direito Penal, por exemplo, é importante saber se o homem tem livre-arbítrio (há, inclusive, autores adeptos das teorias abolicionistas que alegam que o homem não tem livre-arbítrio). A filosofia, para essas ciências, acaba sendo ainda mais importante. Para Kant, inclusive, a pergunta principal é “O que é o homem?”, de que decorrem três perguntas: (i) “o que podemos conhecer?”, (ii) “o que devemos fazer?” e (iii) “o que nos é permi�do esperar?”. A Filosofia, portanto, é importante para o homem contemporâneo. Exemplo no âmbito do direito: à pergunta “por que determinada norma é assim?”, muitos juristas respondem “porque está na Cons�tuição”, mas a Cons�tuição é um fundamento jurídico. O que fundamenta a Cons�tuição é filosófico, a pergunta “por que está na Cons�tuição?” será de cunho filosófico. 4) O posi�vismo filosófico de Augusto Comte e a redução da filosofia a uma enciclopédia das ciências Karl Jaspers: “A filosofia é universal. Nada existe que a ela não diga respeito. Quem se dedica à filosofia, interessa-se por tudo. Porém não há homem que tudo possa saber. O que dis�ngue a vã pretensão de tudo saber do propósito filosófica de apreender o todo?”. O propósito filosófico de apreender o todo é justamente a pantonomia. A vã pretensão de tudo saber é caracterizada pelo enciclopedismo. Filosofia não é enciclopedismo; ela é pantônoma, no termo de Ortega y Gasset. Augusto Comte (filósofo francês do século XIX e pai da sociologia) fez da filosofia uma enciclopédia, mas essa perspec�va é errada, embora esteja muito presente no senso comum. O pensamento comteano teve muitos adeptos do mundo do direito, mas é errado dizer que o posi�vismo jurídico decorreu do posi�vismo de Comte, já que a primeira manifestação sistema�zada do posi�vismo jurídico surgiu com a Escola da Exegese Francesa, com o Código de Napoleão, de 1804. Os discípulos de Comte no mundo do direito integram o sociologismo jurídico (Clóvis Beviláqua e Pontes de Miranda). Miguel Reale parte de uma noção errada, mas muito presente no senso comum, para desconstruí-la. Comte �nha mentalidade cien�fica (contexto: século XIX), com fé inabalável no progresso das ciências. Ele elabora a lei dos três estados ou dos três estágios, que explica o desenvolvimento do indivíduo, da humanidade e das ciências. Os três estados são: (i) teológico (baseado em mitos; explicações sobrenaturais), (ii) meta�sico (baseado em forças ocultas, abstratas) e (iii) posi�vo (baseado nas ciências). Para ele, as ciências da natureza já se encontram em um estágio posi�vo e seria necessário levar esse estágio ao estudo da sociedade: criação da �sica social (explicações posi�vas, cien�ficas para os comportamentos da sociedade). Com a �sica social, o estudo cien�fico estaria completo, junto com a Matemá�ca, a Astronomia, a Física, a Química e a Biologia. A �sica social era o estudo dos fenômenos sociais, tendo caráter enciclopédico (única ciência que congrega todos os estudos humanos). Diante dessas ciências, Comte pensa em reunir tudo isso e essa seria a tarefa da filosofia, que seria uma enciclopédia das ciências posi�vas (visão orgânica da natureza e da sociedade). A filosofia só tem valor quando não se difere das ciências posi�vas. Ele só aceita o conhecimento a posteriori , que vem depois da experiência; ele temhorror à meta�sica, rechaçando o conhecimento a priori . Por isso, desenvolve a ideia de que a filosofia depende do conhecimento empírico das ciências. Não haveria, pois, diferença na essência; seria apenas uma diferença de grau, de generalidade. Cada cien�sta trabalha no seu campo específico, ignorando os outros campos. Cada um aprecia um aspecto muito delimitado da realidade. A ciência é um saber parcialmente unificado, referente a um aspecto abstraído de outros aspectos possíveis como condição de reflexão e análise, devido à nossa incapacidade de apreender toda essa realidade na sua complexidade. Mas a realidade é una. Se cada um trabalha isoladamente, seria benéfico que alguém reunisse todos esses conhecimentos; essa seria a tarefa do filósofo: criar uma enciclopédia das ciências (tenta�va de abranger todos os conhecimentos). Terminada a tarefa de cada cien�sta, viria o filósofo para realizar uma síntese de todos os resultados (composição unitária). A filosofia seria, desse modo, o saber unificado. Para Reale, a filosofia de Comte se torna escrava das ciências, o que, ironicamente, representa um retrocesso à Idade Média, em que a filosofia era escrava da teologia, já que a filosofia não podia ir contra a teologia. Na visão comteana, a filosofia não tem uma função criadora, tornando-se o filósofo um conhecedor de generalidades. Não seria um saber autônomo nem pantônomo; seria uma vã pretensão enciclopédica, de tudo saber. II. Conceito e tarefas da filosofia do direito 1) Filosofia e ciência do direito Filosofia do direito não é disciplina jurídica; é filosofia, disciplina filosófica aplicada ao direito. A filosofia, segundo Del Vecchio, é o estudo dos primeiros princípios, que têm caráter de universalidade. Esses primeiros princípios podem dizer respeito ao ser , ao conhecer , ou então ao agir . A par�r disso, divide-se a filosofia em (i) filosofia teórica (que engloba a ontologia ou meta�sica, a gnoseologia ou teoria do conhecimento, a lógica, a psicologia e a esté�ca) e (ii) filosofia prá�ca (que engloba a filosofia moral – ou é�ca – e a filosofia do direito). A filosofia nasce na Grécia como basicamente estudo do ser , como ontologia. Com Kant e Descartes, a filosofia passa a se centrar na teoria do conhecimento, ou seja, ao estudo do conhecer . Sistema�zação de Manuel Garcia Morente: a filosofia abrange a ontologia, a gnoseologia, havendo disciplinas que vão se distanciando da filosofia (é�ca, esté�ca, filosofia da religião, sociologia e psicologia). Para muitos, a filosofia é um tronco residual de conhecimento; é o que restou depois de muitos desdobramentos. Sistema�zação de Miguel Huerta: é�ca (agir), lógica (pensamento correto), psicologia, gnoseologia, ontologia, antropologia filosófica, teologia natural (absoluto), esté�ca (beleza e arte), filosofia da natureza. O objeto da filosofia do direito é o estudo do direito quando se adotar um ponto de vista universal. Quando se adota um ponto de vista par�cular, o estudo é feito pela ciência do direito. A ciência do direito sequer recai sobre um ordenamento jurídico inteiro, já que ela efetua recortes constantes de seu objeto de estudo. Ela, portanto, não tem visão do todo, ao contrário da filosofia. 2) As três inves�gações da filosófica do direito e a sua definição 1ª) Inves�gação lógica: segundo Kant, enquanto os jurisconsultos respondem com tranquilidade à pergunta “o que é de direito?” (já que conhecem o ordenamento jurídico), têm dificuldade em responder “o que é o direito?”, eis que essa é uma questão filosófica, cuja resposta deve ser universal, ou seja, aplicável a todos os sistemas de todos os tempos. Não se pode definir o direito a par�r das variadas facetas do termo direito (que pode significar faculdade, direito subje�vo, jus�ça, ciência do direito, ordenamento jurídico), abarcando todas as realidades. Deve-se definir a par�r dos elementos essenciais, deixando de lado todos os elementos con�ngenciais (exemplo: “o direito é um conjunto de normas que regula muitas relações, como, por exemplo, o contrato de franquia” 🡪 isso não é universal). Exemplo de definição universal: “direito é uma ordenação coercível, heterônoma e bilateral-atribu�va da conduta humana” 🡪 é uma definição universal (que parte das diferenças entre o direito e a moral), visto que vale para todos os ligares, em todas as épocas. Fornecer um conceito universal de direito é a primeira tarefa do filósofo do direito; trata-se de uma inves�gação do direito na sua lógica inteireza, apresentando os elementos necessários, excluindo-se os con�ngentes. Esses elementos essenciais variam entre os filósofos. Kelsen, por exemplo, diz que é uma ordenação coerci�va dotada de uma mínimo de eficácia (essa também é uma definição universal). 2ª) Inves�gação fenomenológica: há progresso na vida do direito? Para Del Vecchio, sim. Hoje, há um direito que tende a ser melhor do que o direito do passado. Houve, sim, uma evolução e incorporação de direitos, o que representa tal progresso. Mas há também involuções, como, por exemplo, o direito nazista, ao longo da história. Discu�r o progresso é uma discussão filosófica. Filósofos an�gos e medievais �nham uma visão de retrocesso. Pensadores modernos, como Kant, Hegel, Comte e Marx, veem progresso na história. Há pensadores pós-modernos que rechaçam o progresso, como Lyotard (para ele, não há história universal 🡪 essa é uma visão eurocêntrica vendida como história universal; o que há são micro-histórias). Essa não é uma inves�gação dos historiadores do direito, que fazem um trabalho descri�vo. Trata-se de uma pesquisa fenomênica, que vê o direito como um fenômeno social universalmente necessário, e meta-histórica, porque vai além do estudo da história. Todos os povos vivenciaram o direito, o que facilita a inves�gação. Além disso, há muitos pontos em comum entre os ordenamentos jurídicos. Diante desse quadro traçado desde a origem do direito, pode-se perguntar se há progresso nessa evolução. Para Del Vecchio, é possível enxergar progresso, mesmo que tenha havido involuções. Mas há quem não veja progresso, como os pós-modernos, para quem há verdades, jus�ças, histórias e não jus�ça, verdade, história (pensamento fragmentário, que tem sido muito influente no direito brasileiro, em que se defendem grupos ao invés de se defender o todo 🡪 exemplos: leis especiais prote�vas aos idosos, às mulheres, direitos dos gays, dos negros etc, não bastando a legislação geral aplicável a todos). 3ª) Inves�gação deontológica: é a inves�gação por excelência da filosofia do direito. Deontologia é a ciência do dever-ser; é a apreciação crí�ca dos ins�tutos jurídicos com base no ideal de jus�ça. É uma inves�gação que parte da noção de que temos um sen�mento de jus�ça, que é algo ordinário. Vivencia-se a jus�ça e a injus�ça nas menores coisas, no dia a dia. Por isso, nós nos sen�mos aptos a valorar as leis e os ins�tutos jurídicos. A ciência do direito não valora o seu objeto; o seu papel é descrever o direitoe não o valorar. Essa é uma tarefa da filosofia do direito; é uma tarefa tão importante quanto a descrição do sistema jurídico. A filosofia do direito contrapõe uma verdade ideal a uma realidade empírica, perguntando-se como deve ser o direito para que ele seja justo. É uma inves�gação formulada em dois momentos: parte-se de um ideal de jus�ça para, posteriormente, valorar leis e ins�tutos jurídicos (pode-se valorar com base em outros ideais, como liberdade, igualdade, paz, segurança...). De onde provém o ideal de jus�ça? Para Del Vecchio, que é um autor neo-kan�ano, o ideal de jus�ça é traçado pela razão pura. Para Kant, que defende o universalismo é�co, a moral – e, consequentemente, a jus�ça, que é espécie da moral – é fruto da razão pura, sem nenhum elemento empírico (se dependesse da empiria, como um escravo poderia cri�car a escravidão?). Sendo assim, a jus�ça é universal e não varia de sociedade para sociedade (como defende a maioria dos antropólogos e sociólogos 🡪 rela�vismo cultural), nem de indivíduo para indivíduo (que seria a resposta de Sartre 🡪 subje�vismo é�co, segundo o qual a moral é uma pauta individual de valores). Conceito de Del Vecchio para a filosofia do direito: “É a disciplina que define o direito na sua universalidade lógica, inves�ga os fundamentos e as caracterís�cas gerais de seu desenvolvimento histórico e o valora segundo o ideal de jus�ça traçado pela razão pura”. 3) Nexo entre as inves�gações e função prá�ca da filosofia do direito As três inves�gações se comunicam. A primeira é pressuposto para as outras duas, que dependem de uma definição de direito . Se se analisarem as duas úl�mas, há também um nexo: observando-se o desenvolvimento histórico do direito, vê-se uma aproximação progressiva ao ideal de jus�ça. O direito tende a se aproximar ao ideal de jus�ça, que, por sua vez, também vai se modificando. Isso não é estranho, porque o mesmo homem que cria o direito posi�vo é o que cria racionalmente o ideal de jus�ça. A filosofia não tem função u�litária, mas tem, sim, uma função prá�ca, que é a crí�ca. Segundo Del Vecchio, “a filosofia do direito é ministra do progresso jurídico, reinvidicadora do ideal”. A função da filosofia do direito é ensinar e preparar o reconhecimento posi�vo do ideal jurídico. Ela prepara o ideal jurídico para que ele seja posteriormente incorporado pelo direito posi�vo. Em um primeiro momento, formula-se filosoficamente o ideal jurídico e, em um segundo momento, incorpora-se tal ideal ao direito posi�vo. Isso não se confunde com a inves�gação deontológica, que analisa, de acordo com o ideal de jus�ça ob�do através da razão pura, os ins�tutos que já estão posi�vados. As grandes mudanças do direito foram precedidas por inves�gações filosóficas, que formularam um ideal de jus�ça, que, em um momento futuro, foi incorporado ao direito posi�vo. Exemplos: - Hugo Grócio e o progresso do Direito Internacional (1625): “Do Direito, da Guerra e da Paz” traz inúmeras mudanças quanto ao direito das gentes. Ele torna o direito natural um direito laico (para ele, exis�ria um direito natural, mesmo que Deus não exis�sse ou, exis�ndo, não es�vesse preocupada com as preocupações humanas). O direito natural, fruto da razão humana, para Grócio, é a base do direito das gentes. Muitas de suas teses foram posteriormente incorporadas ao direito internacional. - Beccaria e o progresso do direito penal (século XVIII): “Dos Delitos e das Penas” enfrenta a questão da punição sob ponto de vista u�litarista, condenando a pena de morte, as penas cruéis, a tortura (que era método ordinário de prova; para Beccaria, a tortura não é ú�l, porque um criminoso forte pode resis�r à tortura e não confessar o crime que cometeu e um réu inocente pode confessar o que não cometeu). - Rousseau e a Revolução Francesa (século XVIII): Rousseau era crí�co do An�go Regime, que influenciou os revolucionários (embora também tenha influenciado os contrarrevolucionários na época do Terror). Os homens eram livres e iguais e foram acorrentados por um falso contrato social, segundo Rousseau, que defende um novo contrato social. A Revolução Francesa ocorreu dez anos após a sua morte. - Gandhi e a luta contra o colonialismo (século XX): filosofia da não violência, da desobediência civil, que influencia a luta contra o colonialismo na Índia. - Luther King e o movimento dos direitos civis (século XX): os ideais de Luther King levaram ao fim da segregação racial, em um segundo momento. A segregação racial era legal e ra�ficada pelos tribunais (“iguais, porém separados”). - Peter Singer e o bem-estar animal (1975): “Animal Libera�on” denuncia o tratamento violento a que os animais era subme�das nas granjas para a indústria de alimentos, bem como na indústria farmacêu�ca e de cosmé�cos. Del Vecchio diz que a tradição filosófico-jurídica nos ensina (i) a superioridade do direito natural em relação ao direito posi�vo, (ii) os princípios imortais como o da liberdade e da igualdade e (iii) o direito dos povos de se insurgir contra o próprio governo. A filosofia do direito não é uma a�vidade ociosa; ela nasce de uma consciência crí�ca e faz-nos perceber que há uma an�tese entre o justo natural e o justo legal. III. A doutrina do direito natural 1) Introdução Bobbio, em “Estado, Governo e Sociedade”, diz que, no limiar do direito, os estudantes se encontram com duas grandes dicotomias: direito público x direito privado e direito natural x direito posi�vo. Essa segunda dicotomia remete a duas grandes correntes do pensamento filosófico-jurídico, quais sejam, o jusposi�vismo e o jusnaturalismo, que não são as únicas correntes (outros exemplos são o historicismo jurídico, o sociologismo jurídico, o pós-posi�vismo etc.) O jusnaturalismo é a mais an�ga dessas correntes. Sustenta a existência do direito natural superior ao direito posi�vo – ideia essa presente desde os primórdios da civilização grega. “An�gona”, de Sófocles, sobre o direito natural de enterrar os mortos. An�gona era filha de Édipo e Jocasta e irmã de Polinice, que morre, mas o rei Creonte dá ordem proibindo Polinice de ser enterrado. Mesmo assim, An�gona enterra o seu irmão e é chamada junto ao rei, que lhe pergunta se ela conhecia a sua ordem. Ela responde que sim e invoca as leis divinas, que são irrevogáveis, afirmando que pode violar as leis dos reis desde que não desrespeite as leis divinas. Essa é uma das primeiras manifestações do direito natural. 2) Jusnaturalismo an�go e medieval Grécia: Aristóteles Entre os pré-socrá�cos, já se encontra a dis�nção entre a lei natural e a lei posi�va, mesmo que eles não falassem muito de moral. Foi Sócrates quem introduziu de fato o debate acerca da moral. A dis�nção entre lei natural e lei posi�va também está muito presente no tratado de é�ca de Aristótoles, “É�ca a Nicômaco”: justo por natureza x justo por lei ou convenção. O justo por natureza, para Aristóteles, tem por toda parte a mesma força e é uma expressão racional da natureza humana,não dependendo de opiniões ou decretos humanos. Já o justo por lei varia de lugar para lugar; o direito não é como o fogo, que arde da mesma forma na Grécia e na Pérsia. A dimensão espácio-temporal do direito está relacionada ao direito posi�vo. Em Aristóteles, há a afirmação do caráter bilateral da jus�ça. Para o filósofo, não tem cabimento alguém dizer que foi justo consigo próprio, porque só é possível ser justo ou injusto em relação a outrem. Aristóteles também conceitua equidade : jus�ça do caso concreto (o CPC/73 dispunha que o juiz só resolveria o caso com base na equidade se autorizado por lei, o que desvirtua o conceito aristotélico). Segundo o conceito aristotélico de equidade , o juiz adapta as generalidades da lei às par�cularidades do caso concreto, que devem ser levadas em conta quando da aplicação da lei, sob pena de não se fazer jus�ça. Isso deve estar sempre presente, para corrigir os problemas da lei, que não é capaz de abarcar todas as par�cularidades devido ao seu caráter genérico; não deve ser apenas quando a lei autoriza. A lei não pode ser casuís�ca e ela nunca será capaz de prever todas as exceções. Aristóteles comparava a equidade à régua de Lesbos, que se moldava às estátuas de chumbo. Aristóteles também apresenta �pologia da jus�ça (Teoria da Jus�ça Aristotélica): . Jus�ça: (i) Geral (ii) Par�cular: - distribu�va - equiparadora/corre�va: - comuta�va - judicial Há discussão acerca do número de espécies de jus�ça delineadas por Aristóteles, porque Aristóteles, segundo divisão feita por Luis Recasens Siches, é de uma tradição hermé�ca da filosofia (ao contrário de Platão, cujas ideias eram claras). Esse quadro acerca da jus�ça é esforço dos intérpretes, nomeadamente Giorgio Del Vecchio, para quem há quatro espécies de jus�ça: - jus�ça geral: conceito conhecido por todos, qual seja, saber estabelecer o justo meio, equidistante em relação ao pouco e ao demasiado. Esse conceito se aplica a toda e qualquer virtude, inclusive à virtude da jus�ça. Exemplo: na ditadura, não temos direito de votar; hoje, temos o dever de votar; o justo meio seria ter o direito de votar. Exemplos de Aristóteles: bravura é o justo meio dos extremos covardia e temeridade (o homem bravo é virtuoso; covardia e temeridade são vícios); generosidade é a virtude, entre os extremos avareza e prodigalidade. A jus�ça geral consiste em saber estabelecer o justo meio entre dois extremos, isto é, o ponto equidistante. - jus�ça distribu�va: “regula a relação entre as comunidades e os seus membros; consiste na repar�ção das honras, dos bens, dos cargos, das recompensas entre os indivíduos de acordo com o mérito de cada um e respeitado o princípio da proporcionalidade”. O Estado vai repar�r entre os indivíduos cargos, bens, recompensas com base no critério de mérito (igualdade proporcional, geométrica ou rela�va: tratar igualmente iguais e desigualmente os desiguais, respeitada a proporcionalidade). Michael Walzer diz que todas as disputas humanas esbarram na jus�ça distribu�va (exemplo: quando o professor atribui notas, está aplicando jus�ça distribu�va; se ele desse 10 para todos, ele não estaria sendo justo com aquele que foi a todas as aulas e estudou; outro exemplo são os concursos). - jus�ça comuta�va: Aristóteles não conhece a dicotomia direito público e direito privado, que remota ao direito romano. Nós poderíamos, porém, que a jus�ça comuta�va é a que rege o direito privado, na qual predomina uma igualdade aritmé�ca (e não geométrica). A jus�ça comuta�va se aplica às relações de troca entre os par�culares, em que deve haver igualdade entre os quinhões das partes. É o que hoje chamaríamos de direito privado. Em um contrato de compra e venda, haverá jus�ça se o comprador pagar o preço que equivale ao valor do objeto. Para um filósofo do direito como Nozick, que nega a jus�ça distribu�va, há aceitação da jus�ça comuta�va, aplicada às trocas espontâneas do mercado (que, para ele, podem ser justas ou não, com base em um conceito aristotélico). - jus�ça judicial: jus�ça aplicada pelo magistrado para restabelecer a igualdade (aritmé�ca) de uma pessoa lesada. Ela serve para corrigir a violação aos deveres, devendo haver paridade entre o dano e a reparação, entre o delito e a pena. Roma: Cícero Em Roma, repete-se a dis�nção entre direito posi�vo (justo por convenção ou lei) e direito natural (justo por natureza). O direito natural grego e o direito natural romano nunca cons�tuíram uma duplicata inú�l do direito posi�vo, como ocorreu no Renascimento, em que se pensava em fazer “códigos” de direito natural, casuís�co e específico, indo aos detalhes, como com o direito posi�vo. Os gregos e os romanos, diferentemente do que posteriormente pensariam os renascen�stas, consideravam o direito natural como um conjunto de princípios morais primordiais da ação humana, e não como um quadro casuís�co de ações humanas, com detalhes. Por isso, as concepções grega e romana de direito natural estão muito mais próximas de nós do que a concepção renascen�sta. Nunca passou pela cabeça dos gregos e dos romanos a ideia de um direito natural casuís�co. Um nome emblemá�co em Roma é o de Cícero, que divulga a filosofia histórica do direito natural. Na Grécia, o grande marco da história da filosofia é Sócrates, havendo inclusive o termo “pré-socrá�cos”. Na fase de decadência da polis , surgem duas correntes filosóficas: o epicurismo, de Epicuro (que é a matriz do u�litarismo), e o estoicismo (que influencia bastante o cris�anismo, levando, posteriormente, à filosofia kan�ana). Cícero é um filósofo estoico e propõe a tricotomia jus naturale (é o direito natural, que, em Cícero, é racional), jus gen�um (regula a relação entre os Estados) e jus civile (direito estabelecido por cada Estado e observado por seus cidadãos; é o direito interno). Tanto o jus gen�um quanto o jus civile devem estar de acordo o direito natural. Para Cícero, o direito natural é ditado pela razão. Já Ulpiano tem concepção naturalista do direito natural, que, para ele, é definido como o direito que a natureza ensina aos homens e animais (mas essa concepção não vingou; ela desvirtua a concepção ciceriana, que é racionalista e afirma que o direito natural é um direito comum apenas aos homens). Idade Média: Santo Tomás de Aquino Na Idade Média, o grande nome é Santo Tomás de Aquino (século XIII), que é o principal intérprete da cosmovisão medieval (sendo assim, ele parte de pressupostos como a existência de Deus, que é o Criador de todo o universo). Os conceitos de “lei” e “ordem” estão interligados, já que a lei é uma ordenação da razão no sen�do do bem comum, promulgada por quem rege a comunidade. Esse é um conceito que se aplica a qualquer ordem, inclusive o cosmos, que é regido por Deus. Tricotomia desenvolvida por Tomás de Aquino: - lei eterna: é a própria razão de Deus, governadora de todo o Universo. Não é conhecida inteiramente por nenhum de nós, visto quenão nos é possível conhecer a mente e os mo�vos do Criador. Conhecemos apenas parcelas através de suas manifestações. - lei natural: é uma manifestação da lei eterna, que, na metáfora u�lizada pelo próprio santo, é como se fosse o Sol e a lei natural é como se fosse uma irradiação solar. Nós não podemos sequer olhar para o Sol, mas nós percebemos as irradiações solares. A lei natural, nós conhecemos por intermédio da razão. É uma versão da lei eterna, embora parcial e imperfeita. A lei natural permite que as criaturas dotadas de razão par�cipem da lei eterna. Ela estabelece o que o homem deve fazer ou deixar de fazer. A máxima de Tomás de Aquino é que todos nós devemos fazer o bem e evitar o mal – e nós somos capazes de avaliar isso através da razão. A lei natural determina princípios morais que todos devem seguir. O método para conhecer a lei natural é o intuicionismo moral; nós temos uma intuição racional dos princípios morais, que pairam sobre as nossas cabeças (a moralidade tomista é heterônoma) e, através da razão, nós ascendemos a esses princípios morais, que são genéricos. - lei humana: é o que nós chamaríamos de direito posi�vo. Para Tomás de Aquino, há diferença entre direito natural e lei natural, diferença essa ignorada pelos não tomistas. A lei natural diz respeito a todo agir humano, enquanto o direito natural é sobre o agir humano relacionado à jus�ça. O direito natural é universal? Os princípios fundamentais, sim, mas os secundários podem variar no tempo e no espaço. A lei humana se fundamenta no direito natural e é invenção do homem. Ou deriva dedu�vamente da lei natural ou pode representar uma especificação da lei natural nos casos concretos. O legislador posi�vo elege, em função de conveniência, uma das muitas possibilidades oferecidas pelo direito natural, que não engessa a lei humana. O legislador posi�vo pode legislar de várias maneiras válidas. Dedução: a lei natural diz “deve-se fazer o bem e evitar o mal” e a lei humana estabelece “não mates”; nesse caso, trata-se de derivação por dedução. Especificação de normais gerais: a lei humana vai determinar aquilo que se encontra indeterminado na lei natural; exemplo: a lei natural diz “os delinquentes devem ser cas�gados” e a lei humana vai determinar as penas para punir os delitos. Em úl�ma instância, a fundamentação é a lei eterna, que é a razão de Deus que governa todo o Universo (fundamentação teológica). Há também uma quarta espécie, que é a lei divina ou revelada. É um direito posto por Deus para conhecimento dos homens, encontrado nas Sagradas Escrituras, como os 10 mandamentos, que não se confundem com a lei eterna ou com a lei natural; é a lei divina ou revelada; ela é casuís�ca. Os homens são incapazes de determinar por si mesmos todos os princípios da vida prá�ca e, por isso, Deus torna explícito esse direito. Essa é uma espécie à parte. A Teoria da Jus�ça de Tomás de Aquino parte de Aristóteles, segundo o qual, às vezes, há igualdade entre iguais e, por outras, há igualdade entre desiguais. A jus�ça comuta�va regula as trocas. Já nas relações humanas, há uma outra jus�ça, em que se devem tratar os indivíduos desigualmente na medida em que se desigualam. Existem desigualdades naturais (santo x criminoso), bem como graduação no mérito e no demérito. A jus�ça distribu�va vai regular isso, a relação entre a comunidade e os indivíduos. Em termos lógicos, está faltando algo na teoria da jus�ça aristotélica: a relação dos indivíduos com o Estado (o que a parte deve ao todo). É o que Tomás de Aquino chama de jus�ça legal ou social, que determina os deveres dos indivíduos em relação ao Estado e à sociedade de modo a realizar o bem comum. Sendo assim, completa-se a trilogia do justo: Onde estariam os ramos do direito? O direito civil seria jus�ça comuta�va; concurso público seria jus�ça distribu�va; pagar tributos seria jus�ça legal. E onde se encaixaria a moderna jus�ça social? Para uns, seria sinônimo da jus�ça legal; para outros, seria a jus�ça distribu�va; outros dizem que é uma conjugação entre a jus�ça legal e a jus�ça distribu�va; há também quem diga que é uma jus�ça que parte do Estado para regular relações desiguais entre os indivíduos. É�ca das virtudes em Santo Tomás de Aquino: ele enumera as virtudes platônicas ou cardeais, que estão relacionadas às relações entre os homes (jus�ça, prudência, fortaleza e temperança). Há também as virtudes teologais – fé, esperança e caridade –, que regulam a relação entre Deus e os homens. Algo é correto porque Deus o ordena ou Deus ordena algo porque é correto? A primeira parte reflete a Teoria do Mandamento Divino: algo é correto pelo simples fato de ter sido ordenado por Deus, seja o que for (exemplo: guerra santa). Isso pode ser problemá�co, por gerar arbitrariedade. Se for a segunda parte, significa que a re�dão é prévia a deus, o que também é incômodo para os crentes. Se assim fosse, para exis�ria Deus? Tomás de Aquino não se alinha a nenhuma das duas. Para ele, a correção está na razão de Deus; o correto é a própria visão de Deus, não é prévio a Ele. Pelo contrário, é algo inerente a Ele. No diálogo de Platão, Eu�fron defende a Teoria do Mandamento Divino e Sócrates defende a segunda opção. Mas essas duas opções causam incômodo para Tomás de Aquino. 3) Jusnaturalismo moderno Guido Fassò defende a ideia de que, entre os jusnaturalismos de Cícero, Tomás de Aquino e Grócio, há uma linearidade (harmonia e con�nuidade, já que o elemento racional está sempre presente). Cícero leva para Roma a doutrina estoica; nele, há elemento racional na lei natural. Em Tomas de Aquino, há componente raciona, assim como em Grócio. Por isso, para Guido Fassò, não há ruptura. Mas os tomistas rechaçam essa ideia, por considerarem que o jusnaturalismo moderno desvirtua o jusnaturalismo an�go e medieval. Há até mesmo quem diga que o jusnaturalismo moderno é mais errado do que o posi�vo jurídico. Segundo Bobbio, o fundador da escola do direito natural (jusracionalismo) é Hobbes. Mas Hobbes diz que o justo e o injusto são determinados pelo soberano, ao mesmo tempo em que defende um direito natural (Hobbes seria um protoposi�vista). Hugo Grócio seria o fundador da escola do direito natural. Ele funda o direito das gentes. Acredita em Deus, mas afirma que o direito natural exis�ria mesmo que Deus não exis�sse ou que, exis�ndo, não es�vesse preocupado com as questões humanas. Trata-se de direito natural laico, diferentemente de Tomás de Aquino, cuja base era teológica. Seu livro foi parar no index da Igreja Católica. Grócio vê o direito natural como fruto da razão humana, independendo, pois, de Deus. Essa ideia é fundamental para se defender uma moral desvinculada de Deus. Obs: Tomás de Aquino, no século XIII, defende um direito natural com base racionalista. No século XIV, Occam defendeu um voluntarismo teológico. Para Sócrates, existem conceitos universais, o que é negado pelos nominalistas,como Occam, que enxergam apenas os indivíduos, não reconhecendo um gênero homem. Vê-se apenas a individualidade do objeto, que só pode ser pensado separadamente e não como pertencente a um gênero. Occam não defende um direito natural, que é absolutamente genérico. Ele defende que existe uma lei moral que procede da vontade de Deus, percebida nas Sagradas Escrituras – que legi�mam as normas polí�cas. Em Aquino, em úl�ma instância, há a razão de Deus (e não a vontade de Deus), mas seu pensamento é ques�onado pelos nominalistas, inclusive Guilherme de Occam. Com a Reforma de 1517, os tomistas se opõem a Calvino, que se baseou em parte em Occam. Grócio se insurge contra o voluntarismo teológico, mas ele não é tomista. Os tomistas defendem a racionalidade de Deus; Grócio defende a racionalidade dos homens. Para Michel Villey, há ruptura em Grócio e o jusnataturalismo moderno, que é baseado na razão humana e convive com um mundo agnós�co. Além disso, há ideia de construção de um código de direito natural, o que desvirtuaria a matriz pura aristotélica-tomista. Tanto no jusnaturalismo an�go quanto no medieval, a primazia está no direito obje�vo, no aspecto obje�vo do direito natural. Primeiramente, vem a lei natural e, depois, nós nos adequamos a ela. Já no jusnaturalismo moderno, valoriza-se o aspecto subje�vo, os direitos naturais inatos e subje�vos, inerentes aos homens. Tais direitos devem ser respeitados pelo Estado. Nos jusnaturalismos an�go e medieval, não havia essa ideia de direitos subje�vos. No caso do jusnaturalismo moderno, a lei deve se adequar a esses direitos. 4) O crepúsculo do direito natural No século XIX e na primeira metade do século XX, as visões filosóficas que predominaram não dão margem para se pensar em direito natural. A burguesia revolucionária é jusnaturalista; no poder, ela é jusposi�vista. Em Comte, por exemplo, há um pensamento empirista e an�meta�sico, rechaçando-se o raciocínio dedu�vo; não há direito natural. A Escola de Exegese Francesa era composta por civilistas tratadistas cujo pensamento é estatalista (ou seja, o direito é criado pelo Estado ou, no máximo, é permi�do pelo Estado), empirista (o direito empírico está nas leis) e an�meta�sico (não havendo espaço para o direito natural, que é meta�sico); eles defendem o dogma�smo legal (autossuficiência dos códigos, que resolveriam todos os problemas da sociedade), a subordinação à vontade do legislador, o Estado como único autor do direito (negam-se até mesmo os costumes jurídicos) e a ideia de que o direito é igual à lei; ou seja, não há margem para o direito natural. O norma�vismo kelseniano representa a derrocada do mundo burguês; trata-se de doutrina que permite a convivência de visões de mundo radicalmente diferentes, já que o conteúdo do direito pode ser tudo, rompendo-se com a dicotomia entre direito posi�vo e direito natural; para Kelsen, não existe direito natural, só existe direito posi�vo. A Escola Histórica do Direito, que é a escola dos juristas alemães, como Savigny, vê o direito como produção da história. O direito é guiado pelo espírito do povo, a Volksgeist . O direito é fruto da alma nacional (direito costumeiro). Não há espaço para se falar em direito natural. Por 150 anos, não se falou em direito natural. 5) O renascimento do direito natural Em função do transpersonalismo totalitário, há discussão de que o direito deve obedecer a parâmetros superiores, determinados pelo direito natural. O renascimento do direito natural está vinculado ao arbítrio pra�cado com base na lei do Estado nacional-socialista. Os juristas alemães culpam o posi�vismo. IV. O norma�vismo kelseniano Kelsen é cé�co em termos morais; para ele, a moral está relacionada a um emo�vismo, não aceitando nem uma obje�vidade moral. O jusnaturalista nazista Hans Helmut Dietze diz que Hitler, seu sucessor e Goebbels eram jusnaturalistas. Segundo ele, direito é o que os arianos definem como tal. O Führer não precisa estar vinculado a nenhuma lei. Para ele, tudo que beneficia ao povo é direito (mas Gustav Radbruch atribui essa tese ao posi�vismo). Na realidade, os nazistas repudiavam a teoria pura do direito de Kelsen. Eles diziam que essa teoria era fruto de uma mente judia e devastadora. Há outro jurista, Karl Larenz, que era nazista e dizia que direito e moral estavam vinculados. É um erro conceitual atribuir a Kelsen qualquer relação com o Estado nacional-socialista. Posi�vismo ideológico: se determinada regra cons�tui uma regra de um sistema jurídico, ela possui força moral obrigatória, independentemente de seu conteúdo. Para Carlos San�ago Nino, não se podem enquadrar os principais posi�vistas (Bentham, Aus�n, Kelsen, Bobbio, Hart, Ross) no posi�vismo ideológico. Quanto a Kelsen, poderia haver dúvida, mas não há, em Kelsen, a asser�va de que existe obrigação moral de se obedecer a uma regra. Posi�vismo conceitual ou metodológico: o conceito do direito deve levar em conta somente propriedades descri�vas e não valora�vas. Todos esses autores (Bentham, Aus�n, Kelsen, Bobbio, Hart, Ross) comungam dessa tese; esse é o ponto em comum entre todos eles. Mas, se se pensar em outros aspectos, há pontos em relação aos quais esses autores divergem. Exemplo: Kelsen e Ross são não cogni�vistas é�cos (as questões morais ou de jus�ça são altamente subje�vistas; para eles, não há critério racional na moral); já Bentham e Aus�n defendem um princípio de u�lidade com valor universal, que deve ser observado por todos. Não é o ce�cismo é�co que une os principais posi�vistas, já que Bentham e Aus�n, por exemplo, não são cé�cos em matéria é�ca. Os jusnaturalistas defendem duas teses: a primeira é de conteúdo é�co (há princípios morais dotados de caráter universal); além disso, para eles, uma norma não pode ser qualificada de jurídica se ofender princípios de moralidade e de jus�ça. Os posi�vistas conceituais refutam obrigatoriamente a segunda tese jusnaturalista, que é de natureza conceitual. Mas os posi�vistas conceituais não refutam obrigatoriamente a primeira tese. Se uma norma jurídica injusta não é norma, o que ela é? Ela con�nua sendo norma jurídica, mas é uma norma injusta. É possível ter posição crí�ca ao reconhecer normas válidas, porém injustas. O posi�vismo conceitual oferece um método que nos permite dizer o que é um direito, não impedindo que se faça análise crí�ca quanto à jus�ça da norma, ao contrário do posi�vismo ideológico, que estabelece sobreposição da validade em relação à jus�ça (ele iden�fica validade como valor). A posição �pica do posi�vismo jurídico é a do posi�vismo conceitual, que divide a validade da norma (que é uma tarefa da Ciência do Direito) do valor da norma (que é uma tarefa da Filosofia do Direito). O que Kelsen fez foi resolver essa confusão, o que não exclui a discussão quanto ao valor da norma (obje�vismo x subje�vismo). A teoria pura do direito é a teoria de Kelsen (nome do livro de 1934 e reeditado em 1960).Segundo García Amado, a teoria de Kelsen é alvo de três afirmações falsas: - atribuir a Kelsen ideias que são da Escola de Exegese Francesa e Escola Alemã do século XIX quanto à hermenêu�ca, como a redução da a�vidade do juiz a uma subsunção, a um silogismo simples (isso é próprio da Escola da Exegese). Para Kelsen, o juiz decide de forma valora�va e voluntariosa, respeitando uma moldura norma�va. Kelsen não nega que o juiz valora; não há teoria da subsunção, que é hermenêu�ca da Exegese. - dizer que a teoria de Kelsen está impregnada de autoritarismo esta�sta. Mas Kelsen não tem noção meta�sica do Estado. É o posi�vismo alemão do século XIX que vê o Estado como um ente fá�co capaz de criar direito. Para Kelsen, o Estado é ele próprio uma ordem jurídica, rompendo com a dicotomia entre Estado e direito, já que ele reduz o Estado ao próprio direito. - dizer que Kelsen defenderia a obrigação de se obedecer a um direito justo, como se ele não fizesse divisão entre o dever jurídico e o dever moral de obedecer ao direito. Kelsen fala apenas do dever jurídico, ele não entra na questão da jus�ça. Kelsen não confunde obrigação jurídica com obrigação moral. Para ele, cabe a cada um tomar sua própria decisão, que será subje�va e solitária (há, inclusive, uma aproximação com o pensamento de Sartre nesse sen�do). Para Kelsen, o problema da obrigação moral ultrapassa os limites da Ciência do Direito. V. A é�ca de Kant Kant faz três perguntas: - "O que posso saber?": Essa é a pergunta central da teoria do conhecimento. Kant quer saber quais são os limites do conhecimento. A filosofia entre os an�gos e medievais é principalmente meta�sica/ontológica, ou seja, uma preocupação com o ser. A filosofia moderna passa a se preocupar com a teoria do conhecimento. Wolf (dogma�smo) era a base da teoria do conhecimento nas universidades alemãs na época de Kant e Wolf defendia a posição de que não há limite para o conhecimento. Hume (ce�cismo) dizia que não era possível afirmar que existe uma regra genérica de causa e efeito. Hume foi o autor que chamou a atenção de Kant. Kant não aderiu às teses de Hume, mas abandonou o dogma�smo de Wolf. Kant propõe a perspec�va do cri�cismo: podemos conhecer, mas há limites para o conhecimento. Kant faz uma enorme revolução na teoria do conhecimento, porque centra a teoria do conhecimento no sujeito, tanto no campo da é�ca como no campo da teoria do conhecimento. Kant centraliza o sujeito. Até Kant, a filosofia estava muito preocupada com o objeto e, a par�r de Kant, a filosofia se centra no sujeito. Kant afirma que não conhecemos "a coisa em si"/a essência úl�ma das coisas pois só conhecemos uma representação das coisas, ou seja, percebemos as coisas em função dos nossos sen�dos e das nossas limitações cogni�vas. - "Como devo agir?" - "O que posso esperar?" As duas úl�mas perguntas compõem a teoria é�ca. As teorias deontológicas (exemplo Kant) dão primazia ao dever pois o dever é prioritário em relação ao bem. Já as teorias teleológicas (exemplo u�litarismo, que é o alvo de Kant) dão primazia ao bem pois o bem é prioritário em relação ao dever. Essa é uma grande clivagem no âmbito da teoria moral. Nem toda teoria teleológica é u�litarista, como, por exemplo, a teoria é�ca de Santo Tomás de Aquino, que é teleológica, mas não é u�litarista. O u�litarismo quer maximizar o bem estar geral. Uma ação, polí�ca pública, lei é certa e boa para os u�litaristas quando maximiza o bem estar geral. Para os u�litaristas, o dever pode até ser sacrificado para maximizar o bem estar geral. Exemplo (James Rachels): um negro estuprou uma mulher branca (fato) e os distúrbios raciais se espalham na cidade. X presenciou o crime e é fato que um homem negro estuprou uma mulher branca, mas o homem negro sendo preso não é o estuprador. X vai conversar com o xerife da cidade e o xerife pergunta se o homem negro que está sendo preso é o estuprador. Se X disser que o homem negro é o estuprador, os distúrbios raciais vão cessar pois irão prender o "culpado", mas o homem negro é inocente. A princípio, um u�litarista diria que ele é o culpado pois se sacrifica um inocente para maximizar o bem estar geral (os distúrbios irão acabar) mesmo que isso implique na violação do dever de dizer a verdade. A crí�ca de Rawls ao u�litarismo é que é permi�do que direitos individuais sejam sacrificados em prol do bem estar social. Para uma teoria deontológica, a correção moral de um ato depende de sua valia intrínseca. Então, para Kant, nós nunca poderíamos men�r e não importa a consequência. As pessoas têm o dever de falar a verdade, porque falar a verdade é inerentemente correto. O dever tem primazia e é prioritário sobre o bem. O alvo principal de Kant é o pensamento u�litarista. Kant diz que duas coisas enchem a alma de admiração e respeito: o céu estrelado sobre mim e a lei moral que habita em mim. Kant faz referência para as duas maravilhas da vida: (i) o céu estrelado sobre nós; (ii) a lei moral. Há uma crença na racionalidade/razão humana no sen�do de que o homem tem uma racionalidade que é única, mas que poderia ser dida�camente dividida em razão teórica e razão prá�ca. A razão teórica nos permite conhecer o universo/mundo �sico e a razão prá�ca nos permite conhecer a lei moral. O âmbito teórico faz referência ao que ocorre de fato no universo e o âmbito prá�co (âmbito da moral) é o âmbito que corresponde ao que se pode conhecer por ação livre dos seres humanos; o que pode ocorrer em função da nossa liberdade. Ninguém ques�ona a razão teórica, mas todos ques�onam a razão prá�ca. Kant atribui uma enorme importância para a racionalidade da pessoa humana e essa razão que nós temos é teórica e prá�ca. A razão não pode conhecer como surgiu o mundo, se Deus existe ou se ele é imortal. O que a razão – que é universal – nos permite conhecer é o mundo �sico e o mundo moral. Caracterís�cas dos princípios morais: os princípios morais são (i) autônomos, (ii) categóricos ou absolutos e (iii) universais. (i) Autônomos: em Tomás de Aquino, os princípios morais são heterônomos, ou seja, exteriores ao homem, que ascende aos princípios morais, que pairam sobre suas cabeças. A heteronomia diz respeito à sujeição ao querer alheio, enquanto a autonomia é o próprio querer, desvinculado de autoridades humanas ou divina e com abstração de nossos desejos e impulsos. Os princípios morais são eminentemente racionais. Se eles fossem ditados por uma autoridade ou por nossos desejos e impulsos, eles seriam heterônomos. Eles são autônomos por serem princípios que o sujeito moral se dá a si mesmo. Isso não tem nada a ver com subje�vismo é�co, porque Kant defende o universalismo é�co (a razão, em Kant, é universal). (ii) Categóricos ou absolutos: os princípios morais não admitem exceções. Exemplo: o dever de dizer a verdade deve ser respeitado em toda e qualquer circunstância, não importando as