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Prévia do material em texto

série Educador em Construção é voltada para a for-
mação de professores. Os volumes que a compõem têm
autonomia uns em relação aos outros, podendo ser adotados se-
paradamente. Todos eles oferecem aos futuros professores mate-
rial de qualidade, acessível ao público do ensino médio, consi-
derando sempre a complexa realidade social de nosso país.
Escritos por professores atuantes no Magistério, os volumes
apresentam contribuições recentes nos diversos campos da edu-
cação, tornando-se, assim, um valioso instrumento de trabalho e
m Psicologia e trabalho pedagógico, as autoras —
militantes na prática e na teoria —, a partir da exposição de
um quadro das principais correntes da psicologia da educação,
apresentam temas centrais do desenvolvimento e da aprendiza-
gem da criança, enfocando especialmente a brincadeira, o dese-
nho e a escrita. Privilegiando as concepções de Piaget e Vygotsky,
e confrontando-as, o livro aborda tanto fundamentos teóricos
como situações concretas e cotidianas do trabalho com crianças
na sua fase inicial da vida escolar.
m Roseli A. C. Fontana
Maria Nazaré da Cruz
Copyright desta edição:
SARAIVA S.A. Livreiros Editores, São Paulo, 2007.
Av. Marquês de São Vicente, 1697 — Barra Funda
01139-904 — São Paulo — SP
Fone: (Oxxll) 3613-3000
Fax: (Oxxll) 3611-3308 —Fax vendas: (Oxxl l) 3611-3268
www.editorasaraiva.com.br
Todos os direitos reservados.
Catalogação na fonte do
Departamento Nacional do Livro
F679p
Fontana, Roseli
Psicologia e trabalho pedagógico / Roseli Fontana, Maria Nazaré
da Cruz. — São Paulo : Atual, 1997.
240p.
	
cm. — (Formação do educador).
ISBN 978-85-7056-902-8
Suplementado por manual do professor.
Inclui bibliografia.
1. Psicologia educacional. 2. Psicologia da aprendizagem. I. Cruz,
Maria Nazaré da. Il. Título. III. Série.
CDD-370.15
Psicologia e Trabalho Pedagógico
Desenvolvimento de produto
Gerente: Wilson Roberto Cambeta
Editora: Vitória Rodrigues e Silva
Assessora editorial: Oscarina Camillo
Editor de texto: Noé G. Ribeiro
Preparação de texto: Célia Tavares
Editora de arte: Thaís de Bruyn Ferraz
Pesquisa iconográfica: Cristina Akisino
Projeto gráfico: Irineu Sanches
Projeto de capa: Glair Alonso Arruda
Imagem de capa: Criança brincando, 1876, Thomas Eakins
Produção editorial
Gerente: Cláudio Espósito Godoy
Coordenador: Milton M. Ishino
Assistente: Márcia Regina Novaes
Revisão: Maria Luiza Xavier Souto (coord.)
Vera Lúcia P. Della Rosa
Editor de arte: Celson Scotton
Chefe de arte: Irineu Sanches
Diagramação: Renata Susana Rechberger
Editoração e/etrônica: Silvia Regina E. Almeida (coord.)/Grace Alves
Digitação: Rosangela de Oliveira Vargas/Wagner I. Pin
Produção gráfica
Gerente: Antonio Cabello Q. Filho
Coordenador: José Rogerio L. de Simone
Filmes (D.T P.): Binhos
Visite nosso site: www.atualeditora.com.br
Central de atendimento ao professor: (Oxx 11) 3613-3030
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Yanotai Gráfica a Editora Ltda.
Apresentação
Todos os momentos do dia de todos os dias da vida eram para aprender e en-
sinar e de novo ensinar e aprendei; vivendo e brincando, trabalhando e sendo...
(Carlos Rodrigues Brandão, Lutar com a palavra.)
ntendemos assim a educação: algo sempre presente em nossas vidas,
mesmo quando não a percebemos no amontoado de fazeres e saberes
corriqueiros do cotidiano.
Ela está na voz da mãe que acalanta e na mão do avô que ajuda a criança a
segurar a colher e levá-la à boca. Está na birra e na palmada, no traço marcado na
areia ou no papel, no cabo de vassoura que se transforma em cavalinho.
Não é coisa só da escola... Ela se faz também na escola.
Está na amarelinha riscada no pátio, na letra escrita na lousa, na dobradura, no
problema de matemática, no livro de histórias, nas conversas do recreio.
E assim é porque a prática do fazer-se homem dá-se pelo gesto, pelo jogo, pela
palavra, pela mediação de outros homens, entre risos e choros, silêncios, cumplicida-
des, desigualdades. A educação é expressão do humano.
Como vida que vem sendo tecida e transformada de geração em geração, a edu-
cação é o lugar da psicologia — prática humana de teorização sobre o que somos.
Somos nós a matéria sobre a qual a educação e a psicologia se debruçam. A primeira
no esforço do fazer, do "lavrar e plantar no campo do nosso próprio corpo", como diz
Carlos Rodrigues Brandão. A segunda, na busca do entender e do explicar esse fazer-
se humano.
Orientadas por essas concepções, encaramos o desafio de escrever este livro.
Um livro carregado do desejo de manter vivos e próximos os sons e o movimento das
atividades e das relações entre as pessoas, para que, assim sendo, pudesse nos ajudar,
como professores em atuação e em formação, a estudar a criança, descobrindo a
beleza dos seus modos de dizer e de compreender o mundo.
Um livro em que as teorias não ficassem desgarradas dos fazeres e saberes coti-
dianos e em que os psicólogos e seu trabalho não se convertessem num amontoado
maçante de nomes e idéias que a gente não sabe bem por que teve de aprender.
Para isso, procuramos partir sempre das práticas educativas, tal qual se desen-
volvem na escola, e de sua problematização: Como se processam? Que concepções
acerca do homem e de seu desenvolvimento as sustentam?
Delineadas as questões, voltamo-nos para as explicações e análises desenvolvi-
das pelos estudos em psicologia, buscando aí elementos para discutir e refletir so-
bre elas.
Procuramos também entretecer as análises e discussões com episódios escolares
e não escolares, envolvendo as relações entre adultos e crianças e entre crianças,
trazendo, através deles, seus dizeres e sua produção gráfica.
Assim, cada uma das unidades deste livro começa na escola, dialoga em seguida
com os psicólogos, olha para as práticas educativas não escolares constitutivas do
desenvolvimento da criança e volta à escola numa tentativa de releitura do trabalho
pedagógico em seus limites e possibilidades.
Na primeira unidade, a relação entre as práticas pedagógicas e as teorias da
psicologia é tematizada a partir das quatro vertentes teórico-metodológicas que mar-
cam as discussões sobre a especificidade do humano no nosso século: o inatismo-
maturacionismo, o comportamentalismo, o construtivismo piagetiano e a abordagem
histórico-cultural.
Nas três unidades seguintes, privilegiamos como foco de discussão e de análise
o desenvolvimento da atividade da criança, tal qual acontece na escola e fora dela.
Nessas unidades, nossos interlocutores no campo da psicologia são Piaget e
Vygotsky, em cujas explicações nos baseamos para examinar as relações da criança
com a palavra, com o jogo, com o desenho e com a escrita.
Ao final de cada capítulo, você encontrará sugestões de atividades e de leituras
variadas, que poderão auxiliá-lo a retomar o estudo do texto e a realizar pequenos
trabalhos de iniciação à pesquisa, constituídos por observações, levantamento de
dados e análise das práticas educativas e da produção cultural relativa ao desenvolvi-
mento infantil.
Se conseguimos estar próximos de vencer o desafio a que nos propusemos,
você, leitor, é quem nos dirá...
Roseli e Nazaré.
Sumário
Unidade 1 — Desenvolvimento e aprendizagem: as abordagens da psicologia
Introdução	 2
Capítulo 1— A psicologia na escola 	 3
Escola é lugar de aprender. E de ensinar	 3
A psicologia e a educação escolar	 :	 4
O que é ensinar? Como a criança aprende?	 5
O estudo científico da criança: um pouco de história 	 6
Sugestão de atividades 	 9
Sugestão de leituras	 10
Capítulo 2 —A abordagem inatista-maturacionista 	 11
A questão das diferenças individuais e a hereditariedade da
inteligência: "filho de peixe, peixinho é?" 	 12
Padrões de desenvolvimento: o que é próprio de cada idade? 	 14
Pesquisando a criança: a construção dos testes de inteligência 	 16
Pesquisando a criança: a elaboração das escalas de desenvolvimento 	 17
A questão dos comportamentos típicos	 18
As relações entre desenvolvimento e aprendizagem e as influências do
inatismo-maturacionismo na escola	 20
Sugestão de atividades 	 22
Sugestãoa sua tese de
que a maioria das reações emocionais das pessoas é aprendida a partir da
influência do ambiente. Procurava também explicar "como as pessoas
aprendem", explicitando os princípios do condicionamento clássico.
Modelagem do comportamento: as pesquisas de Skinner
Skinner, por sua vez, interessou-se fundamentalmente pela apren-
dizagem por condicionamento operante, realizando pesquisas inicial-
mente com ratos, depois com pombos e, por último, com pessoas.
Para estudar o problema da programação do reforço no condiciona-
mento operante, Skinner utilizava em suas pesquisas com ratos uma
caixa em cujo interior havia
um dispositivo (uma pequena
barra de metal) que, quando
acionado, liberava água ou
comida. Essas caixas, com
isolamento contra ruídos e
controle rigoroso de tempera-
tura e iluminação (para evitar
que sons, a luz ou o calor in-
terferissem em seus experi-
mentos), ficaram conhecidas
como "caixas de Skinner".
ar ,
Caixa de Skinne,:
29
30
Os experimentos consistiam em programar de modos diferentes a
liberação de reforçadores e estudar como cada programação afetava o
comportamento do animal (qual era mais eficiente para levar à aprendi-
zagem de um comportamento novo; qual era mais adequado para man-
ter esse comportamento por mais tempo; qual representava a melhor
forma de extinguir um dado comportamento, etc.).
Uma das formas utilizadas, para obter a aprendizagem de um novo
comportamento (no caso, pressionar a barra de metal), era colocar o
rato na caixa de Skinner após ter sido privado de água por certo tempo.
Supunha-se que a privação faria da água um excelente reforçador, já
que obtê-la resultaria para o rato na satisfação de uma necessidade.
Adotava-se, então, o seguinte procedimento: inicialmente, toda
vez que o rato se aproximava da barra de metal, o pesquisador liberava-
lhe, por meio de um dispositivo, um pouco de água. Após determinado
tempo, estando o rato próximo à barra, a água só era liberada se ele a
tocasse com o focinho ou a pata. Em seguida, reforçava-se (pela libera-
ção da água) apenas o comportamento de tocar a barra com a pata e,
depois, o de pressioná-la para baixo. Após várias sessões, verificava-se
que o rato tinha aprendido a pressionar a barra de metal para obter água.
Esse procedimento é conhecido como modelagem do comporta-
mento. A modelagem é obtida proporcionando-se reforçadores após
respostas que gradativamente se aproximam da resposta que se deseja
obter do animal (no caso, a pressão na barra).
Tal método envolve os princípios do condicionamento operante (o
comportamento emitido pelo animal, se reforçado, tende a se repetir) e
tem sido utilizado pelos comportamentalistas em uma série de situa-
ções, tanto na prática terapêutica clínica quanto no campo do ensino.
O que há em comum nos experimentos de Watson e Skinner é a
tentativa de controlar o comportamento pela manipulação de elementos
do ambiente que precedem (os estímulos) ou sucedem (os reforçadores)
ao comportamento. Além disso, os experimentos de um e de outro vi-
sam conhecer os princípios pelos quais o comportamento humano é
aprendido durante a vida.
Assim, os princípios descobertos ou sistematizados mediante si-
tuações experimentalmente controladas são os mesmos que explicam
os comportamentos aprendidos em situações cotidianas. Conforme a
perspectiva comportamentalista, pode-se dizer que pais e educadores,
por exemplo, modelam o comportamento da criança por meio de proce-
dimentos que-correspondem ao condicionamento operante.
Fonte: Nossas crianças. Abril Cultural. 1970. v. 5.
Desenvolvimento, aprendizagem e educação:
a influência do comportamentalismo na escola
A ênfase dada pelos comportamentalistas à questão da aprendiza-
gem é resultado do pressuposto de que o ambiente e a experiência são
determinantes do comportamento. Os processos e fatores internos ao
indivíduo não são levados em conta, e o próprio desenvolvimento é
explicado como decorrente da aprendizagem.
Melhor dizendo, para os comportamentalistas, desenvolvimento e
aprendizagem são processos coincidentes. Aquilo que chamamos de
desenvolvimento nada mais é do que o resultado das aprendizagens
acumuladas no decorrer da vida do indivíduo. Por isso, os dois proces-
sos não se distinguem.
A' idéia de que os comportamentos humanos são aprendidos em
decorrência de contingências ambientais e a noção de modelagem do
comportamento têm influenciado as práticas educativas. De acordo
com Skinner, ensinar é planejar/organizar essas contingências de modo
a tornar mais eficiente a aprendizagem de determinados conteúdos e
habilidades. A utilização de reforçadores e a organização da aprendiza-
gem por pequenos passos são princípios decorrentes dessa abordagem.
Uma das marcas deixadas pelo comportamentalismo na educação
escolar foi a valorização do planejamento do ensino, tendo chamado a
atenção para a necessidade de se definirem com clareza e operacional-
mente os objetivos que se pretende atingir, para a organização das se-
qüências de atividades e para a definição dos reforçadores a serem utili-
zados (elogios, notas, pontos positivos, prêmios, etc.).
O próprio Skinner interessou-se pelo processo de ensino-aprendi-
zagem (reveja o boxe `Quem foi Skinner?'). Nas suas "máquinas de
ensinar", o aluno é colocado diante de um painel onde aparece uma
questão relativa a algo que ele já conhece e, ao mesmo tempo, uma nova
informação concernente ao mesmo tema. O aluno deve responder à
questão apresentada e, se acertar, a máquina passará automaticamente
para a questão seguinte, que será referente à informação dada imediata-
mente antes. Se não acertar, não poderá prosseguir, devendo retornar a
algum passo anterior.
Por meio desse procedimento, organiza-se a aprendizagem dá
criança "passo a passo", em ordem crescente de dificuldade, seguindo
os princípios da modelagem do comportamento, e cada resposta certa
da criança constitui um reforço para a aprendizagem.
	
1
A chamada "instrução programada" derivou das máquinas de
Skinner. As questões apresentadas às crianças são impressas e as res-
postas corretas aparecem em outra página, em um gabarito. As questões
são intercaladas por pequenos textos informativos sobre os quais a.
criança deverá responder no passo seguinte. De acordo com o compor-
tamentalismo, esse procedimento permite que o ensino tenha uma pro-
gressão gradual, que respeita o ritmo de cada aluno e torna o processo
de ensino-aprendizagem mais eficiente. 31
32
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Segundo o texto, defina:
• estímulo;
• resposta;
• condicionamento clássico;
• condicionamento operante.
2. Elabore um texto sucinto sobre as diferenças e semelhanças existen-
tes entre as abordagens inatista-maturacionista e comportamentalis-
ta. Depois, troque seu texto com um colega e, juntos, discutam sobre
essas abordagens.
Exercitando a análise
1. A classe, orientada pela professora, deverá fazer um levantamento de
materiais de ensino organizados segundo os princípios da instrução
programada. Há vários projetos desenvolvidos nessa linha, tanto
para a instrução das crianças nas séries iniciais quanto para a instru-
ção de professores em formação. Sugerimos alguns títulos.
JOULUÉ, V., MAFRA, W. Didática de Ciências através de módulos
instrucionais. 2! ed. Petrópolis: Vozes, 1980.
POPHAM, W. J., BAKER, E. L. Como estabelecer metas de ensino. Porto
Alegre: Globo.
. Sistematização do ensino. Porto Alegre: Globo, 1976.
. Como ampliar as dimensões dos objetivos de ensino. Por-
to Alegre: Globo, 1976.
. Como planejar a seqüência de ensino. Porto Alegre: Glo-
bo, 1976.
. Táticas de ensino em sala de aula. Porto Alegre: Globo.
. Como avaliar o ensino. Porto Alegre: Globo.
O material conseguido deve ser distribuído à classe para um trabalho
de análise, feito em grupos. Cada grupo deve realizar as propostas de
auto-instrução apresentadas. Observem atentamente as instruções, os
objetivos, os fluxogramas das atividades, os textos e os exercícios
propostos.
Em seguida, analisem o material,procurando identificar os pressu-
postos e princípios do comportamentalismo nele presentes. Após
comparação e discussão das análises feitas pela classe, cada aluno
deverá escrever um pequeno texto sobre a instrução programada
como alternativa metodológica, destacando, de maneira fundamenta-
da, seus aspectos positivos e negativos.
2. A seguir você tem reproduzido o `Módulo instrucional 1' de um pro-
jeto de ensino de Didática de Ciências para o curso de formação de
professores desenvolvido na década de 70 pelas professoras Wanda
Mafra e Vera Joullié, no Instituto de Educação do Rio de Janeiro.
Leia o módulo e resolva os exercícios. Observe atentamente as ins-
truções, os objetivos, os fluxogramas das atividades, os textos e exer-
cícios propostos.
Em seguida, analise-o, procurando identificar os pressupostos e prin-
cípios do comportamentalismo nele presentes.
Compare e discuta a sua análise com a análise feita pelos colegas e
escreva um pequeno texto sobre a instrução programada como alter-
nativa metodológica, destacando, de maneira fundamentada, aspec-
tos positivos e negativos desse procedimento.
Módulo Instrucional 1
A criança, a ciência, a tecnologia
Introdução
Este é o módulo instrucional 1, de Didática de Ciências, isto é, um
esquema de trabalho que lhe proporcionará o domínio de vários conhe-
cimentos com relação ao assunto aqui tratado.
Este módulo apresenta o conteúdo "A Criança, a Ciência e a
Tecnologia", em sua parte fundamental. Ele lhe oferecerá oportunida-
des de aprendizagem dos seguintes aspectos:
a) curiosidade científica natural da criança;
b) base de experiências que precede o conhecimento científico;
c) ciência e tecnologia.
Os referidos aspectos são importantes em sua formação profissio-
nal porque se constituem em embasamento para a compreensão das rea-
ções e interesses infantis em relação ao estudo de Ciências nas séries
iniciais do 1° Grau.
Sem conhecê-los, você não poderá planejar conscientemente suas
atividades didáticas. Este é o objetivo final deste módulo e, ao concluí-
lo, você terá que demonstrar sua competência. Para que o objetivo
final seja alcançado você terá que atingir os objetivos intermediários.
Todos eles são importantes para que você trabalhe gradativamente e
com segurança.
33
A "Visão geral", que vem a seguir, lhe dará uma idéia objetiva do
trabalho a ser realizado.
Visão geral do módulo instrucional 1
Objetivos
intermediários
Atividades Avaliação
1. Conceituar Ciência e
Tecnologia,
	
estabe-
Tecendo sua interli-
gação.
1. Procure o significado
de Ciência
	
e Tecno-
logia em BUARQUE
DE HOLLANDA FER-
REIRA, Aurélio, No-
vo Dicionário
	
Auré-
lio,
	
Editora
	
Nova
Fronteira, RI, 1975.
2. Estude o texto n° 1:
Resolva o exercício
n° 1, do Módulo 1.
"Ciência e
	
Tecnolo-
gia" ou discuta com
um colega sobre Ciên-
cia e Tecnologia: con-
ceitos, diferenças, in-
terligação.
2. Distinguir a curiosi-
dade científica das
crianças de sua cu-
riosidade geral.
1. Estude o texto n° 2:
"Curiosidade
	
infan-
til" ou analise a ficha
de consulta n? 1.
Resolva o exercício
n° 2, do Módulo 1.
3. Constatar a existên-
cia de uma base de
experiências cientí-
ficas e tecnológicas
que precede o estu-
do de Ciências.
1. Estude o texto n° 3:
"Base
	
de
	
experiên-
,
	
cias científicas e tec-
nológicas" ou entre-
viste
	
seu
	
professor:
fenômenos
	
científi-
cos e aspectos tecno-
lógicos que cercam a
criança: a influência
da Tecnologia na vida
atual.
Resolva o exercício
n° 3, do Módulo 1.
Objetivo 1, Módulo 1
Atenção: Se você tiver acertado a questão 1 da pré-avaliação, está
dispensado deste objetivo. Siga para o objetivo 2, na página 37. Caso
contrário, siga o fluxograma abaixo.
Fluxograma das atividades
Entrada
Leia o objetivo intermediário n° 1,
ao final da página.
Procure o significado de Ciência e Tecnologia em
BUARQUE DE HOLLANDA FERREIRA, Aurélio.
Novo Dicionário Aurélio. Editora Nova Fronteira, Rio
de Janeiro, 1975.
1
Discuta com uma colega
sobre Ciência e Tecnologia:
conceitos, diferenças,
interligações.
Objetivo intermediário n..°l: "Conceituar Ciência
e Tecnologia, estabelecendo sua interligação".
Estude o texto n? 1:
Ciência e Tecnologia.
Texto n° 1, Módulo 1
Ciência e Tecnologia
Já não se pode viver sem Ciência. Dia a dia, ela progride e se expande,
ampliando produções, criando medicamentos, processando dados,
palmilhando o espaço, aperfeiçoando a comunicação, estudando o cére-
bro humano, extraindo e beneficiando os recursos naturais, planejan-
do... prevendo... pesquisando...
Cada vez mais a sociedade necessita de cientistas, e o homem, de
conhecimentos científicos para progredir e manter-se vivo.
A ciência estuda os mais diferentes fenômenos, sejam de natureza
física, sejam de natureza química, sejam de natureza biológica. Ela busca .
o conhecimento puro, através de pesquisas, experiências, observações.
Por outro lado, a Tecnologia aplica os fenômenos científicos, colo-
ca-os em prática, para uso humano. Ela é essencialmente utilitária,
como o provam o ferro a carvão evoluindo para o ferro elétrico, a ilumi-
nação de velas evoluindo para a iluminação elétrica, a comunicação à
base de sinais evoluindo para os satélites retransmissores, a cura pelo
uso de ervas evoluindo para os mais sofisticados produtos farmacêuti-
cos, o transporte animal evoluindo para as naves espaciais. Assim sen-
do, a Tecnologia progride paralelamente às novas descobertas da Ciên-
cia, oferecendo mesmo, aos estudiosos, recursos para aperfeiçoar e am-
pliar as verdades científicas.
Estamos em plena era tecnológica. Atualmente toda a vida social
depende de uma tecnologia que nasce da Ciência.
As oportunidades do futuro estão reservadas às pessoas que desen-
volverem uma atitude científica. Prepare-se.
2. Tecnologia cuida
(a) da aplicabilidade dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.
(b) dos estudos dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.
(c) da evolução do homem através dos tempos.
(d) dos principais fenômenos físicos.
3. A Tecnologia é essencialmente utilitária porque
(a) depende do resultado das pesquisas científicas.
(b) estimula a pesquisa dos fenômenos científicos.
(c) completa o estudo dos fenômenos científicos.
(d) aplica os resultados das pesquisas científicas.
Objetivo 2, Módulo 1
Atenção: Se você tiver acertado a questão II da pré-avaliação, está dis-
pensado deste objetivo. Siga para o objetivo 3, na página 40. Caso con-
trário, siga o fluxograma abaixo.
Fluxograma das atividades
Leia o objetivo intermediário n? 2, ao final da página.
2.
1.
Texto elaborado por
Edith Costa
Marília Lessa
Vera Joullié
Wanda Mafra
Estude o texto n? 2:
Curiosidade infantil.
3.
Resolva o exercício n? 2, do Módulo 2.
Analise a ficha
de consulta n? 1.OU
4.
,36
Exercício n° 1, Módulo 1
Isto é uma avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto
e, a seguir, verificar suas respostas no gabarito, ao final deste
módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.
Boa sorte!
Marque o que melhor completa cada afirmação:
1. Ciência cuida
(a) da aplicabilidade dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.
(b) do estudo dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.
(c) da evolução do homem através dos tempos.
(d) dos principais fenômenos físicos.
Consulte seu professor.
Saída
Objetivo intermediário n.°2: "Distinguir a curiosidade
científica das crianças de sua curiosidade geral".
NÃO
SIM
37
3'8
Texto n? 2, Módulo 1
Curiosidade infantil
A criança, desde cedo, manifesta intensa curiosidade por tudo que vê,
ouve, sente e pensa. E a fase geralmente conhecida como "idade do
POR QUE?". As inúmeras perguntas que as crianças fazem incessante-
mente refletem uma grande necessidade de explorar, conhecer, entender
a si própria e ao mundo que a cerca. E o caso de perguntas como:
— Por que a gente tem que dizer "obrigado" quando ganha alguma
coisa?
— Por que eu não posso ir à escola sem uniforme?
— Por que o papai vai trabalhar todos os dias?
Grande parte das perguntas das crianças, no entanto,é de natureza
científica. Através delas, nota-se que os interesses são muitos e diversi-
ficados. Elas demonstram isto quando perguntam:
— O que é que segura a lua para ela não cair do céu?
— Por que é que eu tenho que tomar vacina?
— Por que é que a mamãe rega as plantas todo dia?
— De onde vem a água da chuva?
Podemos assim constatar que Ciências constitui uma disciplina
automotivada. O próprio conteúdo do estudo responde às indagações
infantis.
E imprescindível que o professor aproveite esta vontade de saber.
As perguntas, porém, devem ser selecionadas: umas respondidas de
imediato — aquelas que apresentam sentido limitado; outras — aquelas
que oportunizam um estudo mais profundo, seja por se incluírem na
programação do professor, seja por se ligarem à realidade de vida dos
alunos — deverão ser respondidas através do desenvolvimento de ativi-
dades variadas.
Ficha de consulta n? 1, Módulo 1
Curiosidade infantil
CARACTERÍSTICAS DA
CRIANÇA DE 6 A 12 ANOS
CONSEQÜÊNCIA
• Necessidade de conhecer a si mesma.
• Necessidade de explorar, conhecer
e entender o mundo que a cerca.
• Curiosidade intensa e extensa.
• Grande incidência de perguntas.
• Fase do "por quê".
CURIOSIDADE GERAL CURIOSIDADE CIENTÍFICA
• Por que tenho que agradecer quan-
do ganho um presente?
• Por que o papai trabalha todo dia?
• Por que eu tenho que tomar vacina?
• Por que não posso ir à escola sem
uniforme?
• O que é que segura a lua no céu pra
ela não cair?
• Por que a mamãe rega as plantas
todo dia?
PERGUNTAS RESPOSTAS EXEMPLOS
De sentido limitado Imediata • Quando foi que o ho-
mem chegou à lua?
• Por que o homem não
voa?
De sentido amplo Através do desenvolvi-
mento de uma série de
atividades.
• Como é que o peixe
não se afoga?
• Por que existem fo-
lhas vermelhas?
Exercício n° 2, Módulo 1
Isto é uma avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto
e, a seguir, verificar suas respostas no gabarito, ao final deste
módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.
Boa sorte!
1. Marque apenas as afirmações corretas:
(a) A curiosidade da criança se manifesta a partir de seu ingresso na
escola.
(b) As perguntas infantis demonstram interesse da criança por si pró-
pria e pelo mundo que a cerca.
(c) Dentre as inúmeras perguntas infantis, grande parte reflete curio-
sidade eminentemente científica.
(d) A curiosidade científica infantil se limita aos fenômenos da natureza.
2. Marque o que melhor completa a afirmação:
Ciências é uma disciplina automotivada porque:
(a) desperta a curiosidade infantil.
(b) aumenta a curiosidade infantil.
(c) opõe-se à curiosidade infantil.
(d) responde à curiosidade infantil.
3. Coloque C ou G conforme as perguntas reflitam curiosidade científi-
ca ou geral da criança.
( ) Por que você está de vestido novo?
( ) Por que a água do mar é salgada?
( ) Afinal, de onde vêm os bebês?
( ) Para que as pessoas pintam o cabelo?
( ) Por que eu tenho que lavar as mãos tantas vezes?
( ) Quando é que começam as férias?
4. Faça a correspondência:
(a) perguntas de resposta imediata
(b) perguntas que favorecem estudos mais profundos
( ) quantas patas tem a mosca?
( ) o que é esturjão?
( ) por que as folhas são verdes?
() é verdade que a baleia é mamífero?
39
40
Objetivo n° 3, Módulo 1
Atenção: Se você tiver acertado as questões III e IV da pré-avalia-
ção, está dispensado deste objetivo. Consulte seu professor. Caso con-
trário, siga o fluxograma abaixo.
Fluxograma das atividades
Leia o objetivo intermediário n? 3, ao final da página.
2.
	
4/
Entreviste seu professor:
fenômenos científicos e aspectos
OU
	
tecnológicos que cercam
a criança; a influência
da tecnologia na vida atual.
3.
Resolva o exercício 3, do Módulo 1.
4.
Consulte seu professor.
Objetivo intermediário n.°3: "Constatar a existência de
uma base de experiências científicas e tecnológicas que
precede o estudo de Ciências".
Texto n° 3, Módulo 1
Base de experiências científicas e tecnológicas
É importante reconhecer que, pelas coisas que dizem, as crianças
demonstram muito do que percebem, antes mesmo de estudar Ciências.
Basta lembrar que elas "vivem" Ciências vinte e quatro horas por dia,
não apenas nos hábitos higiênicos, na preservação da saúde, na ali-
mentação, mas também através de todas as aplicações tecnológicas que
envolvem a vida atual: luz elétrica, elevador, transportes, materiais uti-
lizados em casa e na escola, brinquedos os mais diversos, medicamen-
tos, geladeira, liqüidificador...
Disto resulta uma soma de madurezas que se constitui em rica base
de experiências precedendo o conhecimento científico que as explica e
que somente o estudo trará.
Isto se caracteriza quando a criança diz:
—Trago o meu suco na garrafa térmica porque ele fica bem geladinho.
—Mamãe, só vou naquele dentista que tem motor a jato, porque não dói.
— Bota uma lâmpada de 100 velas no meu quarto pra ele ficar mais
claro.
— Meu carrinho não anda mais porque a pilha gastou.
Tecnologia e Ciência, nas séries iniciais do 1° Grau, se forjam no
ambiente em que a criança vive, em suas condições de percepção, em
seu interesse próximo e imediato.
A escola deve aproveitar esta curiosidade, bem como aquela soma
anterior de vivências, a prontidão para o estudo e a compreensão da
Ciência e da Tecnologia em seus estágios iniciais.
Exercício n° 3, Módulo 1
Isto é uma avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto
e, a seguir, verificar suas respostas no: gabarito, ao final deste
módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.
Boa sorte!
1. Marque o que melhor completa a afirmação:
A criança, ao entrar na escola, já apresenta uma base de experiên-
cias científicas e tecnológicas. Isto acontece porque:
(a) as crianças possuem curiosidade científica.
(b) os interesses infantis são muitos e diversificados.
(c) desde que nasce, a criança está em contato com Ciências e Tecno-
logia.
(d) toda a vida social depende, atualmente, da Ciência e da Tecnologia.
2. Marque as afirmações que refletem a base de experiências científicas
e tecnológicas que precede o estudo de Ciências:
(a) Bota a roupa no sol que ela seca depressa.
(b) Estou cansado de tanto correr!
(c) Mamãe, bate as claras na batedeira que é mais rápido e você não
se cansa.
(d) Vou abrir a gaiola pro passarinho ficar livre.
(e) Papai, me compra uma bicicleta de corrida?
(f) Não preciso dar corda no meu relógio porque ele é automático.
Estude o texto n? 3:
Base de experiências
científicas e tecnológicas.
NÃO
SIM
Gabarito dos exercícios, Módulo 1
42
Exercício n.°1
1—b
2—a
3—d
Exercício n.°2
1—b,e
2—d
3 — (G), (C), (C), (G), (C), (G)
4 — (b), (a), (b), (b)
Exercício n.°3
1—C
2— a, c, f.
(Joullié, V. & Mafra, W. Didática de Ciências através de módulos
insirucionais. 2'. ed. Petrópolis: Vozes, 1980.)
Trabalho de campo
1. Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas
após o estudo do capítulo anterior. Destaque, agora, nas respostas
fornecidas por pais e professores, os aspectos que as associam a uma
visão comportamentalista do processo de desenvolvimento e apren-
dizagem da criança.
Sugestão de leituras
NERI, A. L. O modelo comportamental aplicado ao ensino. In: PENTEA-
DO, N. M. A. (org.). Psicologia e ensino. São Paulo: Papelivros,
1980.
SKINNER, B. E Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1982.
Capítulo 4
A abordagem piagetiana
"Papai, portava; corte este pinheiro — ele faz o vento. Depois que
você cortar ele, o tempo vai ficar bom e a mamãe me leva para um passeio."
"Mamãe, quem nasceu primeiro, você ou eu?"
(Helen Bee, A criança em desenvolvimento.)
Ouvir crianças pequenas dizerem coisas como essas do trecho trans-
crito acima normalmente nos desconcerta, ao mesmo tempo que nos en-
canta e diverte. Nossa atenção se volta então para o modo peculiar que a
criança tem de pensar sobre as coisas e de estabelecer relações entre elas.
As peculiaridades do pensamento e da lógica das crianças desper-
taram o interesse de Jean Piaget, que se preocupou principalmente com
a questão de comoo ser humano elabora seus conhecimentos sobre a
realidade, chegando a construir, no decorrer de sua história, sistemas
científicos complexos e com alto nível de abstração. Ele acreditava que
muito da resposta a essa indagação poderia ser encontrado no estudo do
desenvolvimento do pensamento da criança.
Quem foi Piaget?
Jean Piaget nasceu em 1896, em Neuchâtel, na Suíça, e fale-
ceu em 1980, aos 84 anos de idade.
Desde menino Piaget interessou-se por questões científicas,
estudando moluscos, pássaros, conchas marinhas e mecânica.
Aos 10 anos, publicou as observações que fez sobre um pardal
parcialmente albino e, aos 11 anos, começou a trabalhar como
assistente do diretor do Museu de História Natural de sua cidade.
Concluiu seus estudos em Ciências Naturais em 1915 e, em
1918, doutorou-se nessa mesma área.
Interessado também por filosofia, encontrou na leitura da
obra de Bergson, A evolução criadora, elementos que o ajudaram
a formular a questão à qual se dedicaria por toda a vida: explicar 43
a forma pela qual o homem atinge o conhecimento lógico-abstrato
que o distingue das outras espécies animais.
Embora se tratasse de uma questão tipicamente filosófica, a
Piaget interessava abordá-la cientificamente. Ao longo de seu traba-
lho, assumiu, então, o desafio de construir uma teoria do conheci-
mento baseada na biologia e em que as especulações filosóficas esti-
vessem ancoradas na pesquisa empírica. O elo que Piaget encontrou
entre a filosofia e a biologia foi a psicologia do desenvolvimento.
A elaboração da teoria explicativa da gêne-
se do conhecimento no homem levou Piaget a
formular propostas teóricas e metodológicas
inovadoras quanto à natureza dos processos de
desenvolvimento da criança e que contrariavam
as teses do inatismo-maturacionismo e do com-
portamentalismo.
O fundamento básico de sua concepção do
funcionamento intelectual e do desenvolvimento
cognitivo é o de que as relações entre o organismo
e o meio são relações de troca, pelas quais o orga-
nismo adapta-se ao meio e, ao mesmo tempo, o
assimila, de acordo com suas estruturas, num pro-
cesso de equilibrações sucessivas. Determinar as
contribuições das atividades do indivíduo e das
restrições do ambiente na aquisição do conheci-
mento foi o foco do seu trabalho experimental.
No período de 1921 a 1925, Piaget concentrou-se na coleta
de dados que permitissem esboçar os princípios e os fundamen-
tos de sua teoria do conhecimento. Abordou temas gerais, como
a relação entre pensamento e linguagem (1923), o desenvolvi-
mento, na criança, do julgamento e do raciocínio (1924), da re-
presentação do mundo (1926), da causalidade física (1927) e do
julgamento moral (1927). Esses estudos foram retomados, revis-
tos e aprofundados ao longo das décadas seguintes.
No período de 1925 a 1931, com o nascimento de seus três
filhos, Piaget dedicou-se à observação meticulosa do desenvolvi-
mento dos bebês, elaborando análises sobre a construção do real
e o desenvolvimento da inteligência.
Na década de 30, ajudado por seus colaboradores, concentrou
a pesquisa na gênese das noções de quantidade, número, tempo,
espaço, velocidade, movimento, mensuração, lógica e probabili-
dade. Na década de 40, abordou o desenvolvimento da percepção.
A partir dos anos 50, Piaget voltou-se para a sistematização
teórica da epistemologia genética, deixando a seus colaboradores
os estudos em psicologia. Em 1955 fundou o Centro Internacional
de Epistemologia Genética, onde reuniu cientistas de diferentes
áreas (matemáticos, biólogos, psicólogos, lógicos) interessados
em pesquisar problemas epistemológicos.
Na década de 70, já trabalhando exclusivamente nas pesqui-
sas do Centro de Epistemologia, Piaget dedicou-se à investigação
dos mecanismos de transição que impulsionam e explicam a evo-
lução do desenvolvimento cognitivo.
Sua vasta produção é um marco de enorme importância para
a psicologia e para os estudos do homem no século XX.
Procurando compreender como o homem elabora o conhecimento,
Piaget desenvolveu o que chamou de psicologia genética. A palavra gené-
tica, que ele próprio aplicou à sua psicologia, refere-se à busca das origens
e dos processos de formação do pensamento e do conhecimento.
A infância é considerada como um período particular do processo
de formação do pensamento, que só se completa na idade adulta. E im-
portante, então, não confundir as contribuições dadas por Piaget à com-
preensão do desenvolvimento cognitivo da criança com uma "psicolo-
gia da criança". Ele não se dedicou a estudar o pensamento infantil
motivado por um interesse pela infância em si e também não elaborou
sua psicologia genética movido pelo interesse por questões propria-
mente psicológicas. O centro de seu trabalho e de todos os seus estudos
é o desenvolvimento do conhecimento.
A formação de Piaget em Ciências Naturais levou-o a buscar com-
preender o conhecimento com base na biologia. Em sua concepção,
conhecer é organizar, estruturar e explicar a realidade a partir daquilo
que se vivencia nas experiências com os objetos do conhecimento.
No entanto, experiência não é a mesma coisa que conhecimento. Este
pressupõe a organização da experiência num sistema de relações. Por
exemplo, "a humanidade atravessou alguns milênios sem perceber a rela-
ção entre vida e calor do sol; conhecer algo a respeito do calor solar seria
inserir o calor sentido na pele num sistema de relações que permite
compreendê-lo como condição de existência da vida" (Chiarottino, 1988).
Conhecimento e adaptação: os processos de
assimilação e acomodação
Mas como se dá a inserção de um objeto de conhecimento num
sistema de relações? Segundo Piaget, isso ocorre fundamentalmente
por meio da ação do indivíduo sobre o objeto. Ao agir sobre o meio, o
indivíduo incorpora a si elementos que pertencem ao meio. Através des-
se processo de incorporação, chamado por Piaget de assimilação, as
coisas e os fatos do meio são inseridos em um sistema de relações e
adquirem significação para o indivíduo.
Ao ler estas páginas, por exemplo, você está assimilando o que está
escrito (objeto de conhecimento), conforme vai estabelecendo relações
com as idéias e os conhecimentos que já possui. As idéias e os conceitos
do texto são organizados e estruturados a partir do que você já conhece.
Só assim o texto tem algum sentido para você. 45
Segundo Piaget,
os reflexos, como
o de preensão,
possibilitam ao
bebê lidar com
elementos do
ambiente,
assimilando-os.
46
Mas, ao mesmo tempo que as idéias e os conceitos do texto são
incorporados ao sistema de idéias e conceitos que você possui, essas
idéias e conceitos já existentes são modificados por aquilo que você leu
(assimilou). Esse processo de modificação que se opera nas estruturas
de pensamento do indivíduo é chamado por Piaget de acomodação.
Tal modo de conceber o funcionamento cognitivo é decorrente do
modelo biológico em que Piaget se baseou. Segundo esse modelo, a
inteligência é um caso particular de adaptação biológica. Um organis-
mo adaptado ao meio é aquele que mantém um equilíbrio em suas tro-
cas com o meio. Ou seja, é aquele que interage com o ambiente manten-
do um equilíbrio entre suas necessidades de sobrevivência e as dificul-
dades e restrições impostas pelo meio. Essa adaptação torna-se possível
graças aos processos de assimilação e de acomodação (que, juntos,
constituem o mecanismo adaptativo), comum a todos os seres vivos.
Assim, a inteligência é assimilação por permitir ao indivíduo incor-
porar os dados da experiência. E também acomodação, pois os novos
dados incorporados acabam por produzir modificações no funciona-
mento cognitivo da pessoa. Logo, "a adaptação intelectual, como qual-
quer adaptação, é exatamente o equilíbrio progressivo entre o mecanis-
mo assimilador e a acomodação complementar" (Azenha, 1994: 26).
Ao mesmo tempo que, por meio do processo de assimilação/acomoda-
ção, o indivíduo adapta-se ao meio (elaborando seu conhecimento sobre
ele), o seu próprio funcionamento cognitivo vai se estruturando, se organi-
zando. Uma das primeirasformas de organização cognitiva é o esquema.
A noção de ésquema
A criança, ao nascer, é dotada de reflexos que são
reações automáticas desencadeadas por certos estímu-
los. Esses reflexos (como o de sucção e o de preensão)
possibilitam ao bebê lidar com o ambiente. E através
deles que elementos do meio ambiente (como a chupeta,
o seio materno, a mamadeira, o patinho de borracha,
etc.) vão sendo assimilados pela criança. A assimilação,
como vimos, provoca uma transformação dos reflexos,
que gradativàmente vão se diferenciando e se tornando
mais complexos e flexíveis, deixando de ser simples res-
postas estereotipadas a estímulos determinados. Esse
processo dá origem a esquemas de ação, tais como pe-
gar, puxar, sugar, empurrar, etc.
Para entender o que é um esquema de ação, pense-
mos no esquema de preensão. Um bebê pode pegar,
por exemplo, um pequeno cubo de madeira, uma bola,
a mamadeira ou o dedo de alguém. Relativamente a
cada um desses objetos, a ação de pegar apresenta pe-
quenas diferenças quanto aos movimentos que a criança realiza. No en-
tanto, em todas essas situações a ação da criança apresenta determina-
das características que permitem chamá-la de pegar e que a diferenciam
de outras ações, como puxar, balançar ou empurrar. O esquema de ação
é, justamente, o que é generalizável em uma ação, o que permite
reconhecê-la e diferenciá-la de outras ações, independentemente do
objeto a que se aplica.
E por meio dos es-
quemas de ação que a
criança começa a co-
nhecer a realidade, assi-
milando-a e atribuindo-
lhe significações. Quan-
do pega a mamadeira,
ela a relaciona a seu es-
quema "pegar" e atribui-
lhe o sentido de um obje-
to "que se pega". Mas a
criança também aplica à
mamadeira o esquema
"sugar". Essas assimila-
ções provocam transfor-
mações nos esquemas
"pegar" e "sugar", à medida que eles são acomodados ao objeto mamadei-
ra. Os esquemas "pegar" e "sugar" acabam então por se coordenar.
Vê-se que, mediante sucessivas assimilações e acomodações, o
bebê vai conhecendo os objetos de seu mundo imediato. Eles são orga-
nizados em objetos "para olhar", "para pegar", "para sugar", "para em-
. purrar", "para morder", "para olhar e pegar", "para pegar e sugar",
"para pegar e morder", e assim por diante.
A organização do real por meio da ação marca o início do desenvolvi-
mento cognitivo da criança. De acordo com Piaget, os esquemas de ação
ampliam-se, coordenam-se entre si, diferenciam-se e acabam por se
interiorizar, transformando-se em esquemas mentais e dando origem ao
pensamento. Esse desenvolvimento contínuo dos esquemas se dá no sen-
tido de uma adaptação cada vez mais complexa e diferenciada à realidade.
A noção de equilibração
O processo de desenvolvimento depende, na perspectiva piage-
tiana, de fatores internos ligados à maturação, da experiência adquirida
pela criança em seu contato com o ambiente e, principalmente, de um
processo de auto-regulação que ele denomina equilibração.
Para Piaget, a equilibração é uma propriedade intrínseca e consti-
tutiva da vida mental. Por meio dela é que se mantém um estado de
equilíbrio ou de adaptação em relação ao meio. Toda vez que, em nossa
relação com o meio, surgem conflitos, contradições ou outros tipos de
dificuldade, nossa capacidade de auto-regulação ou equilibração entra
A organização do
real, por meio da
ação, marca o
início do
desenvolvimento
cognitivo da
criança.
Iwmtau=uusmsm
48
em ação, no sentido de superá-los. Quando, por exemplo, um bebê tenta
pegar um objeto pendurado sobre o berço, o objeto pode oferecer algu-
ma resistência a seu esquema de pegar, que, em desequilíbrio, obriga-o
a modificá-lo ou a coordená-lo com outro esquema, como o de puxar.
Essa atividade da criança — a acomodação ou coordenação de seus
esquemas de ação — é desencadeada graças à sua capacidade de auto-
regulação, com o objetivo de compensar a resistência oferecida pelo
objeto e alcançar um novo estado de equilíbrio.
Quando falamos em alcançar um novo estado de equilíbrio, quere-
mos destacar que o processo de equilibração não consiste numa volta ao
estado anterior, mas leva a um estado superior em relação ao inicial. No
caso de nosso exemplo, o fato de a criança não conseguir pegar o objeto
já indica que seus esquemas precisam ser aperfeiçoados. A reequilibra-
ção, por meio da acomodação ou da coordenação de seus esquemas,
implica uma ultrapassagem da situação anterior, uma abertura para no-
vas possibilidades de ação.
A concepção sobre estágios de desenvolvimento
Poderíamos dizer, então, que o desenvolvimento, na concepção
piagetiana, é fundamentalmente um processo de equilibrações sucessi-
vas que conduzem a maneiras de agir e de pensar cada vez mais comple-
xas e elaboradas. Esse processo apresenta períodos ou estágios definidos,
caracterizados pelo surgimento de novas formas de organização mental.
Os estágios se sucedem numa ordem fixa de desenvolvimento, sendo
um estágio sempre integrado ao seguinte. Além disso, cada estágio se ca-
racteriza por uma maneira típica de agir e de pensar e constitui uma forma
particular de equilíbrio em relação ao meio. A passagem de um estágio a
outro se dá através de uma equilibração cada vez mais completa. Ou seja,
a criança passa de um estágio a outro de seu desenvolvimento cognitivo
quando seus modos de agir e pensar mostram-se insuficientes ou inade-
quados para enfrentar os novos problemas que surgem em sua relação
com o meio. Essa insuficiência é compensada pela atividade da criança,
que acaba por engendrar modos mais elaborados de ação e pensamento.
O modelo de desenvolvimento cognitivo de Piaget destaca quatro
períodos principais: o sensório-motor (do nascimento até aproximada-
mente os 2 anos de idade), o pré-operatório (dos 2 aos 7 anos), o operatório
concreto (dos 7 aos 11 anos) e o operatório formal (dos 11 aos 15 anos).
Os estágios do desenvolvimento cognitivo
O período sensório-motor
O desenvolvimento cognitivo se inicia a partir dos reflexos que gra-
dualmente se transformam em esquemas de ação. Do nascimento até os 2
anos de idade, aproximadamente, a criança passa do nível neonatal, mar-
cado pelo funcionamento dos reflexos inatos, para outro em que ela já é
capaz de uma organização perceptiva e motora dos fenômenos do meio.
De início, reflexos inatos respondem aos estímulos do meio. Luz,
sons, contrações faciais. A cabeça volta-se para a direção de onde vêm
os sons. Calor, frio, fome, cheiros, choros... O corpo reflete o mundo e
ainda não se diferencia dele.
A criança age sobre o mundo. Ela repetidamente chupa o dedo,
suga a pontinha da manga da roupa: movimentos não intencionais, cen-
tralizados no seu próprio corpo, se repetem sempre. O reflexo inato de
sugar assimila, incorpora novos elementos do meio (o dedo, a roupa) e
ao mesmo tempo vai sendo transformado por eles (acomodação), pois
sugar o seio é diferente de chupar o dedo, que também é diferente de
sugar a própria roupa.
"Para conhecer os objetos, o sujeito tem que agir sobre eles e, por
conseguinte, transformá-los: tem que deslocá-los, agrupá-los, com-
biná-los, separá-los e juntá-los", afirma Piaget (1983: 14). A consciên-
cia da criança sobre o meio ex-
terno se expande lentamente,
conforme suas ações se deslo-
cam de seu próprio corpo para
os objetos. A mão agarra, ache-
ga o objeto ao corpo, à boca que
experimenta, empurra-o para
longe de si. As pernas agitam-se
em esperneios. Puxar, empur-
rar, contrair, distender, apanhar,
largar, juntar, espalhar, apertar,
afrouxar, são ações que também
se repetem. Os olhos acompa-
nham os movimentos.
O centro não é mais o corpo da criança, já que por intermédio des-
sas ações a criança manipula os elementos do meio. As ações agora são
repetidas devido aos efeitos interessantes que produzem, analisa Piaget.
Aos poucos, meios e fins vão sendo diferenciados e as ações começam
a ganhar intencionalidade. A descoberta casual de que a argola agarrada
produz movimentos e sons num brinquedo suspenso acima do berço
leva a criança a repetir o movimento. Ela age para atingir um propósito.Os movimentos ficam mais complexos, mais amplos, como engatinhar,
pôr-se de pé, andar.
Nesse percurso o eu e o mundo tornam-se progressivamente dis-
tintos. O indivíduo e os objetos diferenciam-se e organizam-se no pla-
no das ações exteriores, e a permanência dos objetos vai sendo
construída. O brinquedo, que ao ser retirado da criança deixava de
existir para ela, passa a ser procurado. A criança começa a perceber
que os objetos, as pessoas, continuam existindo mesmo quando estão
fora do seu campo de visão.
A criança repete
seus atos, devido
a seus efeitos
interessantes,
que ganham
intencionalidade.
49.
'50
Formam-se as primeiras imagens mentais dos objetos ausentes do
meio imediato. São elas que possibilitam o desenvolvimento da função
simbólica, mecanismo comum aos diferentes sistemas de representação
(jogo, imitação, imagens interiores, simbolização). Com o desenvolvi-
mento da função simbólica, a partir do segundo ano de vida, o eu e o
mundo reorganizam-se num novo plano: o plano representativo.
A criança reproduz, ou imita, utilizando gestos ou onomatopéias, o
comportamento e os sons de um modelo ausente, representando-o de
alguma forma simbólica no jogo do faz-de-conta. Por meio de uma ima-
gem mental, um símbolo, começa a imaginar fatos, objetos, pessoas,
acontecimentos que ocorreram em outras ocasiões, procurando re-
lembrá-los. O espaço e o tempo se ampliam, à medida que o desenvol-
vimento da função simbólica a libera de agir somente em situações do
meio imediato. Ela torna-se capaz de imaginar ações ou fatos sem
praticá-los efetivamente.
O período pré-operatório
Representando mentalmente o mundo externo e suas próprias
ações, a criança os interioriza. E nesse período que ela se torna capaz de
tratar os objetos como símbolos de outras coisas. O desenvolvimento da
representação cria as condições para a aquisição da linguagem, pois a
capacidade de construir símbolos possibilita a aquisição dos significa-
dos sociais (das palavras) existentes no contexto em que ela vive.
Nesse momento, a criança deverá reconstruir no plano da repre-
sentação aquilo que já havia conquistado no plano da ação prática.
Assim, a diferenciação entre o eu e o mundo, que já tinha se completa-
do no plano da ação, deverá ser elaborada no plano da representação.
Centrada no seu próprio ponto de vista, a criança ainda não é capaz de
se colocar no lugar do outro nem de avaliar seu próprio pensamento.
Ela não considera mais de um aspecto de um problema ao mesmo tem-
po, fixando-se sempre em apenas um deles.
Ao repartir o refrigerante com o irmão, a criança só considera a
partilha justa se o líquido ficar em altura igual nos dois copos, mesmo
que um deles seja visivelmente mais estreito. Ela considera apenas uma
dimensão do problema (a altura do líquido no copo), a mais evidente em
termos perceptivos. Não é ainda capaz de raciocinar levando em conta
as relações entre as várias dimensões envolvidas (a largura e o formato
do copo), e o tipo de percepção que tem dos objetos determina o tipo de
raciocínio que faz sobre eles.
Nas explicações que dá, o seu ponto de vista prevalece sobre as
relações lógicas. Ela diz coisas como "Ficou de noite porque o sol foi
dormir", "Quem fez aquele rio foram os homens que moravam ali".
Ações humanas explicam os fenômenos naturais, elementos da nature-
za praticam ações humanas, são dotados de intencionalidade e quali-
dades humanas.
Como a noção de permanência dos objetos, que leva muito tempo
para ser elaborada no nível sensório-motor, os processos de raciocínio
lógico e os conceitos demoram também um longo tempo para se desen-
volver, a partir desses primeiros raciocínios (pré-lógicos) de que a
criança se torna capaz com a representação.
O período das operações concretas
É apenas ao final do período pré-operatório, após equilibrações
sucessivas, que o pensamento da criança assume a forma de operações
intelectuais. As operações são ações mentais voltadas para a cons-
tatação e a explicação. A classificação e a seriação, por exemplo, são
ações mentais. Essas ações
são sempre reversíveis, ou
seja, têm a propriedade de
voltar ao ponto de partida.
A criança torna-se capaz
de compreender o ponto de
vista de outra pessoa e de
conceitualizar algumas rela-
ções. Portanto, é nessa fase
que são estabelecidas as bases
para o pensamento lógico,
próprio do período final do de-
senvolvimento cognitivo.
Fonte: Nossas crianças. Abril Cultural, 1970. v. 4.
A reversibilidade do pensamento possibilita à criança construir
noções de conservação de massa, volume, etc. O pensamento reversível
pode ser definido como a capacidade de levar em consideração uma
série de operações que, revertidas, conduzem ao estado inicial. E o que
ocorre, por exemplo, com a noção de conservação de líquidos: uma
criança, num nível operatório, é capaz de compreender que a quantida-
de de refrigerante contida em um copo permanece a mesma quando
despejada em outro mais alto e mais estreito, embora o nível do líquido
se torne mais elevado. Essa capacidade está relacionada à possibilidade
Ao final do
período pré-
operatório, o
pensamento da
criança começa
a assumir a
forma de
operações
intelectuais.
51
Somente na
adolescência nos
tornamos
capazes de
pensa r sobre o
nosso próprio
pensamento.
52
de ela representar mentalmente a operação inversa — o líquido
retornando ao copo original — e, desse modo, compreender que a quan-
tidade se mantém invariável, a despeito das alterações perceptíveis. As-
sim, se for repartir o refrigerante com o irmão, despejando-o em dois
copos de formatos diferentes, essa criança terá condições (diferente-
mente de uma criança menor) de considerar as múltiplas dimensões en-
volvidas no problema, estabelecendo relações entre altura e largura do
copo e quantidade de líquido.
Assim, por meio das operações — inicialmente só aplicáveis a ob-
jetos concretos e presentes no ambiente — os conhecimentos cons-
truídos anteriormente pela criança vão se transformando em conceitos.
O período das operações formais
Apenas na adolescência é que o indivíduo se torna capaz de pensar
abstratamente, refletindo sobre situações hipotéticas de maneira lógica.
As operações mentais que aplicava só a objetos podem ser aplicadas,
agora, também a hipóteses formuladas em palavras.
O pensamento sobre possibilidades, sobre acontecimentos futuros,
sobre conceitos abstratos apresenta-se cada vez mais articulado. O adoles-
cente não tem mais necessidade de estar diante dos objetos concretos ou de
operar sobre eles para relacioná-los. Ele transforma os dados da experiên-
cia em formulações organizadas e desenvolve conexões lógicas entre elas.
O adolescente torna-se, enfim, capaz de pensar sobre o seu próprio
pensamento, ficando cada vez mais consciente das operações mentais
que realiza ou que pode ou deve realizar diante dos mais variados pro-
blemas. Essa consciência a propósito do próprio pensamento "pode ser
presumida pelo seguinte tipo, muito citado, de perguntas de adolescen-
tes: `Eu me surpreendi pensando acerca do meu futuro e então comecei
a pensar por que estava pensando no futuro, e aí comecei a pensar por
que eu estava pensando sobre por que eu estava pensando no meu futu-
ro"' (Evans, 1980: 116).
Pesquisando a criança: o método clínico
Em 1919, trabalhando com Simon na padronização dos testes de
inteligência, Piaget voltou sua atenção para as respostas tidas como er-
radas dadas pelas crianças que participavam dos testes. Começou a se
preocupar com quais seriam as razões das falhas das crianças em com-
preender determinadas coisas, com qual seria o tipo de raciocínio implí-
cito em suas respostas.
Indagando-se sobre os processos de pensamento que estariam por
trás das respostas erradas, Piaget desenvolveu um "método de obser-
vação que consiste em deixar a criança falar, anotando-se a maneira
pela qual ela desenvolve o seu pensamento. A novidade consiste em
deixar a criança falar, seguindo suas respostas: guiada por elas, a crian-
ça é encorajada a falar cada vez mais livremente. Dessa forma, épos-
sível obter em cada domínio da inteligência um procedimento clínico
de exame que é análogo ao que os psiquiatras adotaram como meio
para a elaboração do diagnóstico. E a resposta da criança que deter-
mina parcialmente o próximo passo do experimentador" (Azenha,
1994: 105).
Piaget chamou esse tipo de procedimento de método clínico. Em
algumas investigações, a criança era incentivada a agir sobre objetos e
depois a falar sobre o que havia feito.
Uma das situações mais famosas utilizadas por Piaget começava
com duas bolas iguais feitas com massa de modelar. Pedia-se à criança
que as segurasse e perguntava-se se havia ou não a mesma quantidade
de massa nas duas bolas.
Quando a criança respondia afirmativamente, mudava-se a forma
de uma das bolas, passando-a para a forma de uma salsicha, por
exemplo, e novamente se perguntava à criança se havia na salsicha a
mesma quantidade de massa que na bola. Algumas crianças diziam
que sim, explicando que havia a mesma quantidade porque se se fi-
zesse de novo uma bola, esta seria igual à primeira. Outras, mais
novas, davam explicações como "esta tem mais porque é mais com-
prida", referindo-se à salsicha.
Por meio de situações desse tipo, Piaget procurava compreender a
maneira de pensar da criança em diferentes idades. Para ele, não inte-
ressava se a criança acertava ou errava ao responder, mas sim a maneira
como pensava no problema proposto. Seu objetivo era apreender o tipo
de operação mental que a criança realizava (no caso desse exemplo, ele
investigava as noções de conservação e a reversibilidade do pensamen-
to da criança).
Assim, com base nas pesquisas realizadas através do método clíni-
co e também na observação direta de seus próprios filhos, especialmen-
te nos dezoito primeiros meses de vida, Piaget, auxiliado por inúmeros
colaboradores, foi gradativamente elaborando sua teoria sobre o desen-
volvimento cognitivo da criança. 53
54
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a
influência da abordagem piagetiana na escola
Vimos que, na concepção piagetiana, o desenvolvimento da crian-
ça é um processo que depende essencialmente da equilibração, que é a
capacidade natural de auto-regulação do indivíduo. As estruturas cog-
nitivas da criança são elaboradas e reelaboradas continuamente a partir
da sua ação (física ou mental) sobre o meio.
De acordo com esse quadro teórico, a aprendizagem praticamente
não interfere no curso do desenvolvimento. A ênfase nos processos
internos e na atividade construtiva da própria criança resulta em uma
concepção que considera a aprendizagem como dependente do pro-
cesso de desenvolvimento. Ou seja, aquilo que a criança pode ou não
aprender é determinado pelo nível de desenvolvimento de suas estru-
turas cognitivas.
Segundo Piaget, tudo o que é transmitido à criança sem que seja
compatível com seu estágio de desenvolvimento cognitivo não é de
fato incorporado por ela. A criança pode imitar mecânica e externa-
mente o adulto, mas não compreende (e, portanto, não conhece) o que
está fazendo.
As formulações de Piaget têm tido grande influência sobre a práti-
ca pedagógica, inclusive no Brasil. Ao destacarem o papel ativo da
criança no processo de elaboração do conhecimento, têm sido responsá-
veis por idéias como: o papel fundamental da escola é dar à criança
oportunidades de agir sobre os objetos de conhecimento; o professor
não deve ser aquele que transmite conhecimentos à criança, mas sim
um agente facilitador e desafiador de seus processos de elaboração; a
criança é quem constrói o seu próprio conhecimento.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Abaixo estão relacionados os principais conceitos da teoria pia-
getiana. Dê o significado de cada um deles.
• adaptação;
• assimilação;
• acomodação;
• equilibração;
• esquema;
• estágio de desenvolvimento.
2. Sintetize as principais idéias de Piaget acerca do processo de desen-
volvimento.
3. Faça uma comparação, apontando as semelhanças e diferenças, entre
as maneiras como o desenvolvimento é visto pelas abordagens pia-
getiana, inatista-maturacionista e comportamentalista. Compare sua
resposta com as de seus colegas, num debate que envolva a classe toda.
Refletindo sobre as informações do texto
Comente uma das afirmações abaixo:
▪ "Pelo próprio fato de todo conhecimento ser, ao mesmo tempo,
acomodação ao objeto e assimilação do sujeito, o progresso da
inteligência (desenvolvimento psicológico) opera no duplo senti-
do da exteriorização e da interiorização, e seus dois pólos serão o
domínio da experiência física e a conscientização do próprio fun-
cionamento intelectual" (Piaget, A construção do real na criança).
• "Para conhecer os objetos, o sujeito tem que agir sobre eles e, por con-
seguinte, transformá-los: tem que deslocá-los, agrupá-los, combiná-
los, separá-los e juntá-los. Nesse sentido, o conhecimento não é nem
uma cópia interior dos objetos ou acontecimentos do real, nem o mero
reflexo desses objetos e acontecimentos que se imporiam ao sujeito.
Ele é uma compreensão do real, construída a partir de modos de ação
do sujeito sobre o meio, dependendo dos dois — sujeito e objeto — ao
mesmo tempo" (Piaget, A epistemologia genética).
• "Cinqüenta anos de experiência ensinaram-nos que não existem
conhecimentos resultantes de um simples registro de observações,
sem uma estruturação devida às atividades do indivíduo. Mas,
tampouco, existem estruturas cognitivas a priori ou inatas: só o 55
funcionamento da inteligência é hereditário, e só gera estruturas
mediante uma organização de ações sucessivas, exercidas sobre os
objetos" (Piaget. Apud: Piatelli-Palmarini, Teorias da linguagem,
teorias da aprendizagem).
Capítulo 5
56
Pesquisa de campo
Você já deve ter ouvido falar em construtivismo. Essa palavra, que
vem ganhando destaque entre os educadores brasileiros desde a década
de 70, origina-se na teoria piagetiana:
"Uma concepção construtivista da inteligência, como acentua
Piaget, incluiria a descrição e a explicação de como se constroem as
operações intelectuais e as estruturas da inteligência, que, mesmo
não determinadas por ocasião do nascimento, são gradativamente
elaboradas pela própria necessidade lógica" (Azenha, M. G.
Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro).
Converse com alguns professores da 18 à 4! série e da pré-escola.
Pergunte-lhes como definem o construtivismo e o que pensam de sua
relação com a educação. Anote suas respostas.
Confronte as respostas dos professores com a definição acima. Ela-
bore, a partir desse confronto, três conclusões a respeito da relação en-
tre as teorias psicológicas e a prática dos professores.
Exercitando a análise
Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas
ao final do estudo do segundo capítulo. Destaque agora nas respostas
dadas por pais e professores aspectos que as associam a uma visão pia-
getiana de desenvolvimento.
Sugestão de leituras
AZENHA, M. G. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro. São Paulo:
Atica, 1994.
CASTRO, A. D. Piaget e a pré-escola. São Paulo: Pioneira, 1986.
EVANS, R. I. Jean Piaget: o homem e suas idéias. Rio de Janeiro: Fo-
rense-Universitária, 1980.
PIAGET, J., INHELDER, B. Psicologia da criança. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1989.
RAMOZZI-CHIAROTTINO, Z. A teoria de Jean Piaget e a educação. In: PEN-
TEADO, W. A. P. Psicologia e ensino. São Paulo: Papelivros, 1986.
Filme recomendado
Os transformadores, documentário apresentado pela TV Cultura (epi-
sódio Piaget).
A abordagem
histórico-cultural
O interesse em explicar como se formaram, ao longo da história do
homem, as características tipicamente humanas de seu comportamento
como elas se desenvolvem em cada indivíduo constitui a base da abor-
dagem histórico-cultural em psicologia, desenvolvida por um grupo de
psicólogos soviéticos liderado por L. S. Vygotsky.
O princípio orientador da abordagem de Vygotsky
é a dimensão sócio-histórica do psiquismo. Segundo
esse princípio, tudo o que é especificamente huma-
no e distingue o homem de outras espécies origi-na-se de sua vida em sociedade. Seus modos de
perceber, de representar, de explicar e de atuar
sobre o meio, seus sentimentos em relação ao
mundo, ao outro e a si mesmo, enfim, seu fun-
cionamento psicológico, vão se constituindo
nas suas relações sociais.
A criança, analisam Vygotsky e seus cola-
boradores, não nasce em um mundo "natural".
Ela nasce em um mundo humano. Começa sua
vida em meio a objetos e fenômenos criados pe-
las gerações que a precederam e vai se aproprian-
do deles conforme se relaciona socialmente e parti-
cipa das atividades e práticas culturais.
Desde o nascimento, a criança está em constante
interação com os adultos, que compartilham com ela seus
modos de viver, de fazer as coisas, de dizer e de pensar, integrando-a
aos significados que foram sendo produzidos e acumulados historica-
mente. As atividades que ela realiza, interpretadas pelos adultos, ad-
quirem significado no sistema de comportamento social do grupo a
que pertence.
Nesse processo interativo, as reações naturais — herdadas biologi-
camente — de resposta aos estímulos do meio (tais como a percepção, a
memória, as ações reflexas, as reações automáticas e as associações
L S. Vrgo1skt:
57
simples) entrelaçam-se aos processos cultu-
ralmente organizados e vão se transforman-
do em modos de ação, de relação e de repre-
sentação caracteristicamente humanos.
"Podemos dizer que cada indivíduo
aprende a ser homem", escreveu Leontiev,
um dos psicólogos que integravam o grupo
de Vygotsky.
Assim, de acordo com a perspectiva his-
tórico-cultural, a relação entre o homem e o
meio físico e social não é natural, total e dire-
tamente determinada pela estimulação am-
biental. E também não é uma relação de
adaptação do organismo ao meio.
Questionando as teorias psicológicas
de seu tempo, entre as quais aquelas que se
apoiavam em modelos biológicos para expli-
car o desenvolvimento humano (como as
que já estudamos até aqui), Vygotsky desta-
cava que, diferentemente das outras espé-
cies, o homem, pelo trabalho, transforma o
meio produzindo cultura.
Para Vygotsky, a
criança nasce em
um mundo
humano.
58
A transformação do biológico em histórico-cultural
O uso de instrumentos
Quando sente fome, um animal procura comida na natureza, e seu
comportamento, nesse caso, é orientado exclusivamente pelas suas pos-
sibilidades e características biológicas (um predador age diferentemen-
te de um herbívoro) e pelas resistências ou facilidades que o ambiente
lhe impõe (abundância ou escassez de alimento, por exemplo).
Já o homem cria instrumentos. Pode-se considerar instrumento
tudo aquilo que se interpõe entre o homem e o ambiente, ampliando e
modificando suas formas de ação. São instrumentos, por exemplo, a
enxada, a serra, o arado, as máquinas, usados no trabalho. Criados pelo
homem para lhe facilitarem a ação sobre a natureza (o arado, para arar a
terra; a serra, para cortar as árvores e transformá-las em madeira, etc.),
os instrumentos acabam transformando o próprio comportamento hu-
mano, que deixa de ser uma ação direta sobre o meio, controlada apenas
pela relação entre as necessidades de sobrevivência e o ambiente. O
instrumento amplia os modos de ação naturais do homem e seu alcance.
Assim, da mesma forma que atua sobre a natureza, transformando-a, o
homem atua sobre si próprio, transformando suas formas de agir.
Segundo a abordagem histórico-cultural, a relação entre homem e
meio é sempre mediada por produtos culturais humanos, como o instru-
mento e o signo, e pelo "outro".
Quem foi Vygotsky?
Lev Semenovich Vygotsky nasceu em 1896 em Orsha, Bielo-
Rússia, e faleceu prematuramente, aos 38 anos, em 1934, vítima
de tuberculose. Concluiu seus estudos em Direito e Filologia na
Universidade de Moscou, em 1917. Posteriormente estudou Me-
dicina. Lecionou literatura e psicologia em Gomei, de 1917 a
1924, quando se mudou novamente para Moscou, trabalhando,
de início, no Instituto de Psicologia e, mais tarde, no Instituto de
Defectologia, por ele fundado. Dirigiu, ainda, um Departamen-
to de Educação para deficientes físicos e retardados mentais. De
1925 a 1934, Vygotsky lecionou psicologia e pedagogia em Mos-
cou e Leningrado. Nessa ocasião, iniciou estudo sobre a crise
da psicologia, buscando uma alternativa dentro do mate-
rialismo dialético para o conflito entre as concepções idealista e
mecanicista. Tal estudo levou Vygotsky e seu grupo — entre eles
A. R. Luria e A. N. Leontiev — a propostas teóricas inovadoras
sobre temas como: relação entre pensamento e linguagem, natu-
reza do processo de desenvolvimento da criança e o papel da
instrução no desenvolvimento.
Vygotsky foi ignorado no Ocidente e teve a publicação de
suas obras suspensa na União Soviética de 1936 a 1956. Hoje, no
entanto, a partir da divulgação feita, seu trabalho vem sendo pro-
fundamente estudado e valorizado.
A morte prematura de Vygotsky interrompeu uma carreira
brilhante, da qual podemos resgatar hoje importantes contribui-
ções. A atualidade dos temas tratados por ele é o sinal mais evi-
dente de que estamos diante de uma obra da maior significação.
O fundamento básico de suas hipóteses de que os processos
psicológicos superiores humanos são mediados pela linguagem e
estruturados não em localizações anatômicas fixas no cérebro,
mas em sistemas funcionais, dinâmica e historicamente mutáveis,
levou-o, juntamente com Luria, por volta de 1930, a se interessar
pelo fenômeno da instalação, perda e recuperação de funções ao
nível do sistema nervoso central. Estes estudos foram continuados
por Luria, após sua morte.
(Extraído de Vygotsky. Luria. Leontiev. Linguagem, desenvol-
vimento e aprendizagem. São Paulo: iconc/Edusp, 1988.)
O uso de signos
O signo é comparado por Vygotsky ao instrumento e denominado
por ele "instrumento psicológico". Tudo o que é utilizado pelo homem
para representar, evocar ou tornar presente o que está ausente constitui
um signo: a palavra, o desenho, os símbolos (como a bandeira ou o
emblema de um time de futebol), etc.
Enquanto o instrumento está orientado externamente, ou seja, para
a modificação do ambiente, o signo é internamente orientado, modifi-
cando o funcionamento psicológico do homem.
.59
É através dos
signos que
realizamos
muitas de nossas
ações.
Utilizamos os signos para desempe-
nhar diversas atividades. Anotar um
compromisso na agenda, fazer uma lista
de convidados, colocar rótulos em obje-
tos, usar palitos para fazer contas, contar
uma história, seguir uma partitura musi-
cal, fazer a planta de uma construção,
são formas de utilização de signos que
ampliam nossas possibilidades de me-
mória, raciocínio, planejamento, imagi-
nação, etc.
De acordo com a concepção históri-
co-cultural, é importante considerar que
a utilização dos instrumentos e dos sig-
nos não se limita à experiência pessoal
de um indivíduo.
Quando utilizamos um martelo, por
exemplo, estamos incorporando a nossas
ações as experiências das gerações pre-
cedentes, uma vez que o próprio martelo,
o modo de manipulá-lo e a finalidade de
seu uso nos são transmitidos nas nossas
relações com o outro.
O acesso à escrita, às notações musicais, às convenções gráficas e à
palavra, por sua vez, também se faz na interação com outras pessoas,
sendo uma incorporação de experiências anteriores de determinado
grupo cultural. No caso da linguagem, que é o sistema de signos mais
importante para o homem, os significados das palavras são produto das
relações históricas entre os homens.
Aos poucos a criança aprende a falar e passa a utilizar a própria lin-
guagem para regular suas ações, conferir sentido às coisas. Ela pode, ao
mexer no botão da televisão, por exemplo, dizer "Não pode!". Ou, quan-
do tropeça, falar "Caiu!". Ou, quando vê um prato de sopa, falar "Papá!".
E na sua relação com o outro que a criança vai se apropriando das
significações socialmente construídas. Desse modo, é o grupo social
que, por meio da linguagem e das significações, possibilita o acesso a
formas culturais de perceber e estruturar a realidade.
A partir de suas relaçõescom o outro, a criança recons-
trói internamente as formas
culturais de ação e pensamen-
to, assim como as significações
e os usos da palavra que foram
com ela compartilhados. A esse
processo interno de reconstru-
ção de uma operação externa,
Vygotsky dá o nome de inter-
nalização.
Na internalização, a ativi-
dade interpessoal transforma-
se para constituir o funciona-
mento interno (intrapessoal)
(Góes, 1991).
Desse modo, a abordagem histórico-cultural considera que toda
função psicológica se desenvolve em dois planos: primeiro, no da rela-
ção entre indivíduos e, depois, no próprio indivíduo. O processo de de-
senvolvimento vai do social para o individual, ou seja, as nossas manei-
ras de pensar e agir são resultado da apropriação de formas culturais de
ação e de pensamento.
Logo, para Vygotsky as origens e as explicações do funcionamento
psicológico do homem devem ser buscadas nas interações sociais. E
aí que o indivíduo tem acesso aos instrumentos e aos sistemas de signos
que possibilitam o desenvolvimento de formas culturais de atividade e
permitem estruturar a realidade e o próprio pensamento.
Pesquisando a criança: o papel do signo no
desenvolvimento
Ao estudar o desenvolvimento da criança, as patologias e a defi-
ciência mental, Vygotsky baseou-se em observações e experimentação
em situações variadas. Ele defendia a idéia de que o trabalho experi-
mental não devia limitar-se a modelos de laboratório divorciados das
situações naturais da vida, podendo ser realizado em situações de brin-
cadeira, de aprendizado, nas conversações informais, na escola, na fa-
mília ou em um ambiente clínico.
O papel do outro e a internalização
A apropriação dos instrumentos e dos signos pelo indivíduo ocorre
sempre na interação com o outro.
"O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa atra-
vés de uma outra pessoa", escreveu Vygotsky. "Essa estrutura humana
complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profunda-
mente enraizado nas ligações entre história individual e história social"
(1984: 37).
Desde o nascimento, a criança tem com o mundo uma relação
mediada pelo outro e pela linguagem. O adulto ensina a criança a utili-
zar os objetos — ele agita o chocalho diante dela, ajuda-a a pegá-lo,
ensina-a a chutar a bola, a comer com talheres, a tomar banho, a vestir-
se, a falar ao telefone. O adulto aponta, nomeia, destaca, indica os obje-
tos do mundo para a criança, ao mesmo tempo que atribui significações
aos seus comportamentos. Quem já viu um adulto lidando com um
bebê, sabe que o adulto fala o tempo todo, dando nomes para os objetos,
dirigindo a atenção da criança e interpretando tudo o que ela faz.60
A criança
conhece o mundo
por meio de suas
relações com os
outros.
61
62
Nas situações experimentais por ele criadas, seu objetivo fundamen-
tal era o de estudar o processo de constituição da atividade mediada. Ou
seja, para Vygotsky interessava investigar os modos como a criança utili-
zava os signos para executar tarefas envolvendo, por exemplo, a atenção,
a memória, a percepção; os modos de participação do outro na resolução
dessas tarefas; e os modos como a própria situação estimuladora ia sendo
ativamente modificada no processo de resposta a ela.
Nessas condições, os dados fundamentais do experimento não
eram as respostas dadas pelas crianças, e sim os modos pelos quais elas
chegavam às respostas e as condições em que elas as elaboravam. As-
sim, as questões centrais a que o experimentador voltava sua atenção
eram: O que a criança está fazendo? Como ela tenta satisfazer às exi-
gências da tarefa que lhe foi proposta? De que recursos lança mão? Que
tipo de ajuda solicita, e a quem? O que é um obstáculo, uma dificuldade
para ela na situação? Como ela utiliza as pistas e as ajudas que lhe são
oferecidas durante a realização da atividade experimental?
Nos estudos desenvolvidos por Vygotsky e seu grupo, o observa-
dor desempenhava um papel diferente do exercido nos outros estudos
que vimos até aqui. Como mediador da elaboração da criança, o experi-
mentador era mais que um mero observador. Sua participação consti-
tuía um dos dados da pesquisa. Ele interagia com a criança, falando
com ela, acolhendo suas dúvidas e comentários, propondo a ela cami-
nhos alternativos para a solução da situação-problema, oferecendo-lhe,
inclusive, materiais que pudessem ser utilizados de modos diversos
para o cumprimento da tarefa. Ele também conversava com a criança
sobre as soluções encontradas, procurando ouvir dela própria a explica-
ção de como tinha chegado à solução das tarefas.
Um experimento desenvolvido por Leontiev para estudar o papel
desempenhado pelos signos mediadores no desenvolvimento da aten-
ção voluntária pode ilustrar a forma como trabalhava o grupo de pesqui-
sa de Vygotsky.
A atenção, assim como a percepção e a memória, é uma atividade
psicológica com a qual nascemos. Como o de outras espécies, nosso
organismo é dotado de mecanismos neurológicos inatos que permitem
selecionar estímulos do ambiente apropriados à sobrevivência. Nasce-
mos com mecanismos de atenção involuntária, que nos permitem per-
ceber e responder automaticamente a ruídos fortes, objetos em movi-
mento e mudanças bruscas do ambiente.
No entanto, ao longo de nosso desenvolvimento, tornamo-nos ca-
pazes de dirigir a atenção não só para os estímulos ligados a nossa so-
brevivência, mas também para situações ou elementos que nos interes-
sam. Por exemplo, ao lermos determinado livro, dizemos que ele "pren-
de nossa atenção", quando somos capazes de ignorar, durante a leitura,
os ruídos do ambiente ou o movimento das pessoas em torno de nós. E,
na escola, uma criança pode permanecer alheia a tudo o que a professo-
ra está explicando ou escrevendo na lousa, a despeito da sua movimen-
tação pela classe, do som da sua voz ou do fato de ser diretamente soli-
citada a prestar atenção.
Ao dirigirmos deliberadamente nossa atenção para estímulos do
meio que consideramos relevantes, transformamos aquele mecanismo
biológico de atenção involuntária em um mecanismo de atenção volun-
tária, em uma atividade psicológica controlada por nós mesmos. Essa
transformação, segundo Vygotsky, está relacionada ao significado dos
estímulos, o qual vai sendo produzido em nossas relações sociais e nas
práticas culturais dos grupos a que pertencemos.
Assim, para estudar como um elemento auxiliar externo pode con-
trolar e direcionar a atenção da criança, Leontiev utilizou um jogo in-
fantil tradicional na Europa, o das palavras proibidas, equivalente ao
nosso jogo do "sim, não e porquê".
O pesquisador participava do jogo fazendo perguntas às crianças,
que deveriam responder sem utilizar determinadas palavras, como, por
exemplo, azul e vermelho.
Num primeiro momento, o pesquisador formulava perguntas como
"Qual a cor de sua blusa?", "Qual a cor do céu?", "Qual a cor da
maçã?", e as crianças respondiam a elas. Num segundo momento, ele
fazia as mesmas perguntas mas entregava às crianças cartões coloridos
que elas poderiam utilizar, se quisessem e como quisessem.
Com a introdução dos cartões (como recurso auxiliar para a execu-
ção da tarefa), procurava-se verificar se as crianças os utilizavam ou
não como suportes para sua atenção e memória e de que modos o fa-
ziam. Algumas crianças não utilizavam os cartões, outras separavam os
que apresentavam as cores proibidas e os consultavam antes de respon-
der à pergunta, cometendo assim um número menor de erros.
Esse resultado foi interpretado como um indicador de que elemen-
tos mediadores externos, os cartões, incorporados à atividade da crian-
ça, ampliavam sua capacidade de atenção e memória, possibilitando a
ela ter maior controle voluntário de sua própria atividade.
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a
influência da abordagem histórico-cultural na escola
Como vimos, o desenvolvimento é entendido por Vygotsky como '
um processo de internalização de modos culturais de pensar e agir. Esse
processo de internalização inicia-se nas relações sociais, nas quais os
adultosou as crianças mais velhas, por meio da linguagem, do jogo, do
"fazer junto" ou do "fazer para", compartilham com a criança seus sis-
temas de pensamento e ação.
Embora aponte diferenças entre aprendizado e desenvolvimento,
Vygotsky considera que esses dois processos caminham juntos desde o
primeiro dia da vida da criança e que o primeiro — o aprendizado —
suscita e impulsiona o segundo — o desenvolvimento. Ou seja, tudo
aquilo que a criança aprende com o adulto ou com outra criança mais
velha vai sendo elaborado por ela, vai se incorporando a ela, transfor-
mando seus modos de agir e pensar.
63
64
Assim, segundo Vygotsky, o conhecimento do mundo passa pelo
outro, sendo a educação "o traço distintivo fundamental da história do
pequeno ser humano. A educação pode ser definida como sendo o de-
senvolvimento artificial da criança. Ela é o controle artificial dos pro-
cessos de desenvolvimento natural. A educação faz mais do que exercer
influência sobre um certo número de processos evolutivos: ela rees-
trutura de modo fundamental todas as funções do comportamento"
(1985: 45).
Os processos de aprendizado transformam-se em processos de de-
senvolvimento, modificando os mecanismos biológicos da espécie.
Sendo um processo constituído culturalmente, o desenvolvimento psi-
cológico depende das condições sociais em que é produzido, dos modos
como as relações sociais cotidianas são organizadas e vividas e do aces-
so às práticas culturais.
Em razão de privilegiar o aprendizado e as suas condições sociais
de produção no processo de desenvolvimento, Vygotsky colocou em
discussão os indicadores de desenvolvimento utilizados pela psicologia
da época.
Para avaliar o desenvolvimento de uma criança, os psicólogos con-
sideravam apenas as tarefas e as atividades que ela era capaz de realizar
sozinha, sem a ajuda de outras pessoas. Procedendo assim, os psicólo-
gos, segundo Vygotsky, apreendiam apenas seu nível de desenvolvi-
mento real, isto é, "o nível de desenvolvimento das funções mentais da
criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desen-
volvimento já completados" (Vygotsky, 1984).
Ao considerarem apenas o desenvolvimento real, problematizava
Vygotsky, os psicólogos voltavam-se para o passado da criança. Ou
seja, apreendiam processos de desenvolvimento já concluídos.
No entanto, destacava ele, nas situações de vida diária e mesmo na
escola, era possível perceber que as atividades que a criança realizava
sozinha, por exemplo, comer com a colher, amarrar os sapatos, montar
uma torre com peças de tamanhos diversos, escrever, foram antes com-
partilhadas com outras pessoas.
Sua proposta, então, era a de que se trabalhasse também com os
indicadores de desenvolvimento proximal, que revelariam os modos de
agir e de pensar ainda em elaboração e que requerem a ajuda do outro
para serem realizados. Os indicadores do desenvolvimento proximal
seriam as soluções que a criança consegue atingir com ã orientação e a
colaboração-de-unladulto ou de outra criança..--
	
`-
i' Segundo sua análise, o aprendizado (a atividade interpessoal) pre-
.-éede e impulsiona o desenvolvimento, criando zonas de desenvolvi-
; mento proximal, ou seja, processos de elaboração compartilhada.---
\,_ Observar a atividade compartilhada da criança possibilita olhar
para o seu futuro, pois "o que é o desenvolvimento proximal hoje será o
nível de desenvolvimento real amanhã — ou seja, aquilo que a criança é
capaz de fazer com assistência hoje ela será capaz de fazer sozinha ama-
nhã" (Vygotsky, 1985).
Além disso, o desenvolvimento proximal como desenvolvimento
em elaboração possibilita a participação do adulto no processo de
aprendizagem da criança. Para consolidar e dominar autonomamente as
atividades e operações culturais, a criança necessita da mediação do
outro. O mero contato da criança com os objetos de conhecimento ou
mesmo sua imersão em ambientes informadores e estimuladores não
garahte a aprendizagem nem promove necessariamente o desenvolvi-
mento, uma vez que ela não tem, como indivíduo, instrumental para
organizar ou recriar sozinha o processo cultural (Oliveira, 1995).
Portanto, é no campo do desenvolvimento em elaboração que a
participação do adulto, como pai, professor, parceiro social, se faz ne-
cessária. Conforme alertava Vygotsky, "o bom aprendizado é somente
aquele que se adianta ao desenvolvimento" (1984: 101).
O papel da escolarização
O modo como Vygotsky concebia e analisava o desenvolvimento
humano levou-o a discutir explicitamente o papel da escolarização. Di-
ferentemente de outros psicólogos, Vygotsky considerou as espe-
cificidades das relações de conhecimento produzidas na escola, distin-
guindo-as das relações de conhecimento cotidianas.
Em nossas sociedades, a escola é uma instituição encarregada de
possibilitar o contato sistemático e intenso das crianças com o sistema
de leitura e de escrita, com os sistemas de contagem e de mensuração,
com os conhecimentos acumulados e organizados pelas diversas disci-
plinas científicas, com os modos como esse tipo de conhecimento é
elaborado e com alguns dos variados instrumentos de que essas ciências
se utilizam (mapas, dicionários, réguas, transferidores, máquinas de
calcular, etc.).
As relações de
conhecimento
travadas na
escola têm unta
natureza distinta
das demais.
65
Embora chegue à escola já dominando inúmeros conhecimentos e
modos de funcionamento intelectual necessários à elaboração dos co-
nhecimentos científicos sistematizados, durante o processo de educa-
ção escolar a criança realiza a reelaboração desses conhecimentos me-
diante o estabelecimento de uma nova relação cognitiva com o mundo e
com o seu próprio pensamento.
O estudo da aritmética, por exemplo, não começa do zero. Ao che-
gar à escola a criança já passou por experiências anteriores relativas a
quantidades, determinação de tamanho, operações de divisão, adição,
etc. O mesmo acontece quanto à escrita e às operações mentais utiliza-
das em situações do cotidiano. Nas brincadeiras, nas tarefas da casa, nas
compras que faz para a mãe, a criança, imitando os mais velhos, "escre-
ve", classifica, compara, seria, estabelece relações entre os elementos
de uma situação, etc. Nessas situações, sem que ela própria e seus par-
ceiros sociais percebam, os conhecimentos vão sendo elaborados ao rit-
mo da própria vida, entrelaçados às emoções, às necessidades e interes-
ses imediatos da atividade em que está envolvida.
Na escola, as condições se modificam. Ali as relações de conheci-
mento são intencionais e planejadas. A criança sabe que está ali para
apropriar-se de determinado tipo de conhecimentos e de modos de pen-
sar e de explicar o mundo, organizados segundo uma lógica que ela
deverá apreender.
A professora acompanha a criança: orienta sua atenção, destacan-
do elementos das situações em estudo considerados relevantes à com-
preensão dos conhecimentos nelas implicados; analisa as situações
para e com a criança e leva-a a comparar, classificar, estabelecer rela-
ções lógicas; demonstra como usar determinados procedimentos da
matemática e da escrita; ensina a utilizar o mapa, os equipamentos de
laboratório, etc.
A criança, por sua vez, raciocina com a professora. Segue suas ex-
plicações e instruções, reproduz as operações lógicas realizadas por ela,
mesmo sem entendê-las completamente. Nessas situações compartilha-
das com a professora, a criança aprende significados, modos de agir e
de pensar, e começa a elaborá-los. Ela também re-significa e reestrutura
significados, modos de agir e de pensar, e começa a se dar conta das
atividades mentais que realiza e do conhecimento que está elaborando.
Nesse sentido, destaca Vygotsky, a educação escolarizada e o pro-
fessor têm um papel singular no desenvolvimento dos indivíduos.
Fazendo junto, demonstrando, fornecendo pistas, instruindo, dan-
do assistência, o professor interfere no desenvolvimento proximal de
seus alunos, contribuindo para a emergência de processos de elabora-
ção e de desenvolvimento que não ocorreriam espontaneamente.de leituras 	 23
Capítulo 3 —A abordagem comportamentalista	 24
Mas o que é comportamento?	 25
Comportamento e aprendizagem	 26
Pesquisando a criança: condicionamento e modelagem do comportamento 	 28
A aprendizagem de comportamentos emocionais: uma pesquisa de Watson 	 28
Modelagem do comportamento: as pesquisas de Skinner 	 29
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência do
comportamentalismo na escola	 31
Sugestão de atividades 	 32
Sugestão de leituras	 42
Capítulo 4—A abordagem piagetiana 	 43
Conhecimento e adaptação: os processos de assimilação e acomodação 	 45
A noção de esquema	 46
A noção de equilibração 	 47
A concepção sobre estágios de desenvolvimento 	 48
Os estágios do desenvolvimento cognitivo 	 48
O período sensório-motor	 :	 48
O período pré-operatório 	 50
O período das operações concretas 	 51
O período das operações formais 	 52
Pesquisando a criança: o método clínico 	 53 Sugestão de atividades	 104
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência da abordagem Sugestão de leituras 	 106
plagettana na escola	 54
Sugestão de atividades 55.............................................................................................. Capítulo 9 — O papel da escola	 107
Sugestão de leituras	 56
Filme recomendado	 56 Escola é lugar de aprender a aprender, lugar de aprender pensando	 109
Escola é lugar de compartilhar conhecimentos 	 110
Capítulo 5 —A abordagem histórico-cultural	 57 Sugestão de atividades 	 116
A transformação do biológico em histórico-cultural 	 58
O uso de instrumentos 	 58 Unidade 3 — A brincadeira e o desenho da criança
O uso de signos	 59
O papel do outro e a internalização ..................................................................... 60
Pesquisando a criança: o papel do signo no desenvolvimento 	 61 Introdução	 118
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência da Capítulo 10 — O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança	 119
abordagem histórico-cultural na escola 	 63 Por que as crianças brincam?	 120
O papel da escolarização	 65 A assimilação do real ao eu: a concepção de Piaget 	 120
Sugestão de atividades	 67 As relações sociais como mundo adulto: a concepção de Vygotsky 	 121
Sugestão de leituras	 68 Brincando de estação de trem 	 123
Filmes recomendados	 68 Aprendendo a olhar a brincadeira	 124
Brincadeira é coisa séria 	 125
Capítulo 6 — As abordagens sobre desenvolvimento e aprendizagem Objetos e significados na brincadeira	 126
e a prática pedagógica 	 69 O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança 	 127
Os diferentes modos de olhar	 70 A brincadeira e a função simbólica	 127
Cada uma das abordagens explica um pouco?	 71 A criação de zonas de desenvolvimento proximal 	 128
A atividade da criança como foco de análise 	 72 Sugestão de atividades 	 130
Sugestão de atividades 	 73 Sugestão de leituras 	 131
Sugestão de leitura	 74
Filme recomendado	 74 Capítulo 11 —A brincadeira na vida e na escola	 132
A perspectiva de Piaget sobre o desenvolvimento da brincadeira 	 132
A perspectiva de Vygotsky sobre o desenvolvimento da brincadeira 	 134
Unidade 2 — A elaboração conceituai Brincando, aprendendo e sendo	 136
Brincando na escola	 137
Introdução	 76 O lugar da brincadeira na escola	 139
Capítulo 7 —A relação entre pensamento e linguagem	 77 Aprender e ensinar a brincar	 141
O que a psicologia nos diz	 80 Sugestão de atividades 	 :	 143
A linguagem como comportamento	 80 Sugestão de leitura	 143
A linguagem como função da inteligência 	 81
A linguagem como atividade simbólica constitutiva 	 83 Capítulo 12 — O desenho infantil	 144
Sugestão de atividades 	 87 Quando o traço no papel recebe um nome 	 145
Sugestão de leituras 	 88 A criança desenha o que sabe e não o que vê 	 147
O realismo do desenho infantil: a perspectiva de Luquet	 148
Capítulo 8 — A criança e a palavra 	 89 A criança é realista na intenção: a perspectiva de Piaget	 150
Piaget e o papel da linguagem no desenvolvimento do pensamento O realismo visual é aprendido: a perspectiva de Vygotsky	 151
lógico: do símbolo individual aos conceitos	 89 Sugestão de atividades	 :	 153
O desenvolvimento da função simbólica	 90 Sugestão de leituras	 154
Os primeiros esquemas verbais 	 90
O desenvolvimento da elaboração conceituai das palavras	
Vygotsky e a elaboração conceituai — o desenvolvimento do significado da
94 Capítulo 13 — Desenhando na escola 	
Analisando o processo de elaboração do desenho 	
155
157
palavra na criança	 95 E a criatividade, onde fica?	 158
As primeiras palavras	 96 Desenhando e aprendendo	 :	 159
A elaboração das funções analítica e generalizadora da palavra	 97 A escola e o desenho 	 161
O pensamento por complexos e os conceitos potenciais 99..................................... "O lápis é o melhor dos olhos..."	 :	 162
O papel do outro no desenvolvimento da elaboração conceituai 	 101
Sugestão de atividades	 165
Sugestão de leituras 	 166
Unidade 4 — O desenvolvimento da escrita na criança
Introdução	 168
Capítulo 14 —A escrita e a alfabetização 	 169
Escrita e poder	 170
Alfabetização e desenvolvimento da escrita	 171
Sugestão de atividades 	 174
Sugestão de leituras 	 175
Filme recomendado	 175
Capítulo 15 —As relações da criança com a escrita 	 176
A criança constrói a escrita :	 :	177
A criança integra-se às práticas sociais de escrita	 180
Sugestão de atividades 	 185
Sugestão de leituras 	 187
Filme recomendado	 :	 187
Capítulo 16 — O estudo experimental da construção da escrita pela criança 	 188
A metodologia da pesquisa 	 189
As fases do processo de construção da escrita pela criança 	 190
A construção das primeiras formas de diferenciação: o período pré-silábico 	 190
A fonetização da escrita: do período silábico ao período alfabético 	 193
Sugestão de atividades 	 195
Sugestão de leituras 	 195
Capítulo 17 — Da atividade simbólica à simbolização na escrita	 196
O estudo experimental do simbolismo na escrita 	 197
O procedimento metodológico	 197
A elaboração pré-instrumental da escrita: dos rabiscos mecânicos
às marcas topográficas	 198
A elaboração da função instrumental da escrita: o processo de
diferenciação das marcas utilizadas 	 199
O processo de alfabetização — a relação entre a escrita primitiva
da criança e a escrita convencional 	 205
Sugestão de atividades	 206
Sugestão de leituras 	 207
Capítulo 18 — Escrevendo e lendo na escola	 208
Por que o fracasso da escola em ensinar a escrita e a leitura? 	 208
Como o convencional tem sido ensinado? 	 210
E as crianças?	 211
Pra quem, o que e por que escrevo? 	 212
O que é o erro? Os erros são todos iguais?	 215
Mas como corrigir?	 219
Sugestão de atividades 	 221
Sugestão de leituras 	 225
Bibliografia	 226
Introdução
	
Capítulo 1
T anta coisa acontece na escola. Professores e crianças
aprendem e ensinam, participando de uma rede de re-
lações: históricas, sociais, econômicas, pedagógicas,
afetivas, intelectuais... São múltiplos os olhares possíveis na tentativa
de apreender a complexidade dessa instituição.
A psicologia é apenas um deles. Tematizando os processos de de-
senvolvimento e de aprendizagem, analisando a atividade da criança,
ela vem produzindo conhecimentos que nos possibilitam ler e interpre-
tar certos aspectos do ensinar e aprender.
Mas a psicologia não é única. E múltipla. No decorrer deste século,
importantes vertentes teóricas foram construídas e deixaram suas mar-
cas na educação. São elas que abordaremos, nesta primeira unidade,
tematizando, ainda, a relação entre as teorias e a prática pedagógica.
No capítulo 1, apresentaremos um modo de conceber as relações
entre psicologia e educação, trazendo também um pouco da história
social da criança e do estudo científico existente sobre ela.
No capítulo 2, trataremos da abordagem inatista-maturacionista.
No capítulo 3, da abordagem comportamentalista.
No capítulo 4, da abordagem piagetiana.
No capítulo 5, da abordagem histórico-cultural.
Nesses quatro capítulos, enfocaremos os conceitos fundamentais
relacionados a cada uma dessas abordagens,A escola, possibilitando o contato sistemático e intenso dos indi-
víduos com os sistemas organizados de conhecimento e fornecendo a
eles instrumentos para elaborá-los, mediatiza seu processo de desen-
volvimento.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Faça um resumo do que você compreendeu sobre o papel do signo e
das interações sociais na formação do funcionamento psicológico
humano.
2. Conceitue mediação e internalização.
3. Compare a abordagem histórico-cultural do desenvolvimento hu-
mano com as abordagens apresentadas pelo inatismo-matura-
cionismo, pelo comportamentalismo e pela teoria piagetiana. Enu-
mere as semelhanças e diferenças entre essas abordagens e confron-
te-as com as relacionadas por seus colegas, numa discussão envol-
vendo a classe.
Pesquisa de campo
Converse com alguns professores da 1! à 4! série e da pré-escola.
Pergunte-lhes como vêem o papel da escola e seu papel de professores
no desenvolvimento da criança. Anote suas respostas.
Confronte o que pensam os professores com as reflexões de Vygotsky
acerca da relação entre escolarização e desenvolvimento.
A seguir, apresente três conclusões a respeito da influência das teo-
rias psicológicas do desenvolvimento na prática dos professores.
Exercitando a análise
1. Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas ao
final do segundo capítulo. Destaque agora nas respostas dadas pelos
dois grupos aspectos que as associam a urna visão histórico-cultural
de desenvolvimento.
2. Leia o texto `O renascimento de Josela', de Silvia Adoue, publicado
na revista Ande, n° 7, 1984.
Em pequenos grupos, discutam o papel da professora no processo
vivido por Josela.
Num debate da classe, apresentem a análise elaborada pelo grupo.
67
Sugestão de leituras
GóES, Maria C. R. de. A natureza social do desenvolvimento psicológi-
co. Cadernos Cedes, n° 24. Campinas: Papirus, 1991.
LEITE, Luci B. As dimensões interacionista e construtivista em Vygotsky
e Piaget. Cadernos Cedes, n? 24. Campinas: Papirus, 1991.
OLIVEIRA, M. K. Vygotsky — Aprendizado e desenvolvimento: um pro-
cesso sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1993.
. O pensamento de Vygotsky como fonte de reflexão sobre a
educação. Cadernos Cedes, n? 35. Campinas: Papirus, 1995.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fon-
tes, 1984.
Filmes recomendados
O enigma de Kaspar Hauser, dirigido por Werner Herzog.
`As borboletas de Zagorsky', episódio do documentário Os transforma-
dores, apresentado pela TV Cultura de São Paulo.
Capítulo 6
As abordagens sobre
desenvolvimento e aprendiza-
gem e a prática pedagógica
Quando estudamos as principais abordagens teóricas acerca do de-
senvolvimento e da aprendizagem, logo emerge a questão da relação
entre a psicologia e a prática pedagógica. Afinal, para que servem as
teorias psicológicas, nos perguntamos.
E muito comum ouvir dizer que certo professor é construtivista,
outro é vygotskyano, outro behaviorista. Mas o que isso significa? O
que é adotar determinada perspectiva teórica?
Essas questões fazem pensar na necessidade de compreender e
explicitar a relação entre a teoria e a prática. O,que é uma teoria? Para
que ela serve?
Nos capítulos anteriores, mostramos que a abordagem inatista, por
exemplo, foi construída a partir do interesse pelo problema das diferen-
ças individuais. E que Piaget elaborou sua psicologia genética a partir de
suas preocupações com a gênese e o desenvolvimento do conhecimento.
Considerando esses dois exemplos, podemos dizer que as teorias
foram elaboradas para descrever, explicar, interpretar, compreender
certos aspectos da realidade (nesses casos, as diferenças individuais e o
conhecimento). E, ainda, que as teorias constituem um corpo de conhe-
cimentos sistematizados sobre a realidade, uma espécie de lentes atra-
vés das quais se olha o mundo.
E a prática, o que é? E a aplicação de uma teoria? Caso fosse, pode-
ríamos dizer, por exemplo, que um pai, quando elogia o filho para
incentivá-lo a se comportar da forma que ele considera adequada, está
aplicando a teoria comportamentalista. No entanto, a maioria dos pais
que têm esse tipo de conduta nunca ouviram falar em compor-
tamentalismo. Como poderiam, então, estar aplicando essa teoria?
Mesmo no meio escolar, onde provavelmente as teorias são mais
conhecidas, não nos parece correto afirmar que a prática seja aplicação
da teoria. Começamos este livro falando da complexidade das relações
6'
70
que ocorrem na escola, da diversidade de fatores presentes no seu coti-
diano. Crianças que brigam, choram, inventam, aprendem, perdem o
lápis, faltam à aula; professores que perdem a paciência, riem, expli-
cam, passam tarefas, contam história, recebem ou não recebem salários.
Todas essas ações são formas de atividade humana, são práticas cultu-
rais cotidianas, e não aplicações de alguma teoria. São parte da realida-
de e, assim, tão complexas e multifacetadas quanto a própria realidade.
Vivemos as práticas cotidianas em geral irrefletidamente, só paran-
do para pensar sobre elas quando algum problema ou algum descom-
passo se manifesta. Os problemas e descompassos suscitam questões
que requerem explicações.
Quando nos debruçamos sobre a realidade tentando compreendê-la
e explicá-la, estabelecemos um novo modo de relação com nossas prá-
ticas cotidianas. Olhamos para o que fazemos e somos, analisamos e
refletimos sobre o vivido, procurando organizá-lo.
Nesse processo de busca de compreensão, vivemos outra prática
cultural, a "prática da teorização", e produzimos um conhecimento de
natureza distinta do conhecimento baseado na vivência cotidiana. No
esforço para explicar as questões e problemas surgidos no cotidiano,
nos obrigamos a "parar para pensar", a olhar de longe as situações vivi-
das, tentando apreender seus aspectos essenciais, suas contradições, o
modo como seus elementos se articulam, as transformações por que
passam. Procuramos organizar as nossas vivências e nosso próprio pro-
cesso de reflexão sobre elas em um sistema explicativo coerente.
Por tudo isso, não dá para considerar a prática como aplicação da
teoria, nem a teoria como algo que se aplica à prática. A prática é a base
da teoria (que também é uma prática humana de produção de conhecimen-
to). E a teoria elaborada é uma reflexão organizada e sistematizada sobre
aspectos da prática que nos ajudam a analisá-la, problematizá-la e
redefini-la. Nesse sentido, teoria e prática articulam-se dinamicamente.
Considerando desse modo a relação entre teoria e prática, podemos
dizer que as teorias psicológicas são lentes através das quais olhamos a
prática pedagógica e que nos ajudam a compreendê-la.
Certamente o modo como o professor lida com a complexidade da
prática é determinado pela compreensão que ele tem sobre ela, podendo
essa compreensão ser instrumentalizada e mediada pela teoria. Nesse sen-
tido, dizemos que o professor não aplica teorias, mas articula teoria e prá-
tica, à medida que seus conhecimentos teóricos o ajudam a compreender
o que ocorre em sala de aula, marcando suas decisões e seus modos de agir.
Os diferentes modos de olhar
Das quatro principais abordagens existentes na psicologia sobre o
desenvolvimento e a aprendizagem, três delas, como vimos, se apóiam
de alguma forma em modelos biológicos: a inatista-maturacionista, a
comportamentalista e a piagetiana. A outra, a abordagem histórico-cul-
tural, questiona os modelos biológicos, considerando-os inadequados
para explicar o pensamento humano, que teria sua origem nas relações
sociais mediadas pela linguagem.
As abordagens maturacionista e piagetiana priorizam o processo de
desenvolvimento como objeto de estudo e enfatizam o papel de fatores
internos, como a maturação ou a equilibração, na determinação desse pro-
cesso. Já os comportamentalistas, considerando que comportamentos,
habilidades e pensamentos são aprendidos, destacam a preponderância de
fatores externos, como os estímulos e os reforçadores, no processo de
aprendizagem. Para Vygotsky, tantoo desenvolvimento quanto a aprendi-
zagem decorrem das condições sociais em que o indivíduo está imerso.
Cada uma dessas perspectivas prioriza, em suas investigações e
reflexões, aspectos distintos da vida psíquica e apresenta explicações
bastante diferentes sobre os processos de desenvolvimento e de apren-
dizagem.
Qual delas seria, então, a "certa" ou a "melhor"? Você talvez até já
tenha simpatizado mais com uma delas, em razão de seu próprio modo
de pensar sobre o homem e a criança. Ou, o que é muito provável, estará
supondo que cada uma explica certo aspecto do desenvolvimento e da
aprendizagem.
Com base em sua experiência, você pode achar que algumas crian-
ças são mesmo mais inteligentes que outras ("Pode ser hereditário!");
que, de fato, as crianças da mesma idade são muito parecidas ("E a
maturação"); ou, ainda, que às vezes "esse negócio de reforço funcio-
na"; e, também, que as interações sociais são fundamentais.
Cada uma das abordagens explica um pouco?
De fato, podemos dizer que cada abordagem apresenta contribui-
ções diferentes e importantes em relação aos aspectos da vida mental.
No entanto, adotar o ponto de vista de que cada uma explica um pouco
do processo de aprendizagem e desenvolvimento não é algo tão simples
como pode parecer.
Pensemos, por exemplo, no problema do erro na escola. Todos nós
sabemos que as crianças cometem erros em relação à escrita, aos con-
ceitos, etc. Como interpretá-los?
Na perspectiva comportamentalista, o erro é tomado como um
comportamento inadequado, portanto a ser eliminado. Logo, o profes-
sor deve se empenhar para não reforçá-lo positivamente, evitando, as-
sim, que o erro, ou o comportamento inadequado, se fixe.
Já na perspectiva piagetiana, o erro é considerado como parte do
processo de construção do conhecimento. O erro que a criança comete
(como no caso da conservação, de que falamos no capítulo 4) pode ser
resultado de sua própria atividade assimilativa, da aplicação dos seus
esquemas mentais (ou de ação) a determinado objeto ou conteúdo.
Quando a atividade assimilativa resulta em erro, e principalmente se de
forma repetida, ocorre uma desequilibração das estruturas cognitivas da
criança. Isso faz com que ela, por meio de sua atividade cognitiva, mo- 71
72
difique (acomode) seus esquemas, o que resulta em uma reequilibração
e, portanto, no aperfeiçoamento de sua maneira de agir e de pensar e em
um nível mais complexo de conhecimento sobre o objeto. Logo, o erro
deve ser respeitado como um momento do processo de elaboração do
conhecimento.
As "dificuldades de aprendizagem" apontadas pelos professores
também têm diferentes interpretações. Na abordagem maturacionista,
"as dificuldades de aprendizagem" são consideradas a partir da relação
de dependência do aprendizado ao desenvolvimento. Assim, se uma
criança encontra dificuldade em aprender o que é ensinado na escola,
isso talvez se deva à falta de "maturidade" da criança ou a algum atraso
em seu desenvolvimento.
A abordagem histórico-cultural, por sua vez, considerando que a
aprendizagem produz desenvolvimento, vê as "dificuldades de aprendi-
zagem" como relativas às condições em que a relação de ensino é pro-
duzida. Uma vez que tanto o desenvolvimento quanto a aprendizagem
são processos que ocorrem no plano das interações sociais, as "dificul-
dades de aprendizagem" são enfocadas não como algo inerente à crian-
ça, mas às suas condições de produção no contexto interativo em que
ela se insere.
A atividade da criança como foco de análise
Os exemplos considerados acima indicam que as abordagens teóri-
cas da psicologia são, muitas vezes, opostas ou contraditórias. Proble-
mas como o erro e as dificuldades de aprendizagem são interpretados de
modos bastante diferentes, dependendo da perspectiva teórica que se
adote. Isso porque cada uma delas apresenta princípios explicativos de
natureza distinta, como a maturação e a hereditariedade, o condiciona-
mento, a equilibração e a mediação por signos, decorrentes, por sua vez,
de diferentes concepções a propósito do ser humano e da criança.
Desse modo, a análise da atividade da criança a partir de diferentes
abordagens teóricas nos parece ser o caminho mais adequado para apu-
rar nossa compreensão sobre suas especificidades.
Por isso, na segunda parte deste livro, você será convidado a olhar
para a atividade da criança — seus processos de elaboração conceitual,
suas brincadeiras, desenhos e escrita — na situação de produção na es-
cola e em outros contextos, a partir das contribuições de Piáget e de
Vygotsky. Guiados pelas indicações de ambos, vamos nos aproximar do
desenvolvimento da atividade da criança, prestando atenção ao que ela
faz e diz e às relações que estabelece com outras crianças e com os
adultos.
Sugestão de atividades
Papel dos fatores
internos e externos
no desenvolvimento
Relação entre
desenvolvimento e
aprendizagem
Principais
representantes
Refletindo sobre o texto
Neste capítulo, fizemos algumas considerações sobre como as teo-
rias psicológicas se relacionam com a prática pedagógica. Agora, em
pequenos grupos, sintetizem o que foi visto até o momento, orientando-
se pelos itens do quadro acima.
Exercitando a análise
1. Reveja as situações que você observou na escola (atividade do capí-
tulo 1) e destaque uma que, do seu ponto de vista, pode ser explicada
sob a perspectiva de uma das abordagens teóricas estudadas até ago-
ra. Esboce a interpretação da situação com base na perspectiva teóri-
ca escolhida e justifique-a.
2. Reveja as perguntas que você enumerou (também como atividade do
capítulo 1) e tente responder a elas com base nas quatro abordagens
estudadas.
Seminários e debates
Apresentamos a seguir uma relação de textos que abordam, sob
diferentes perspectivas, questões relativas ao desenvolvimento e à
aprendizagem, tais como a inteligência da criança, as dificuldades
de aprendizagem e os atrasos no desenvolvimento.
Organizando as informações do texto
Reproduza o quadro a seguir em seu caderno e preencha-o:
Contribuições para
a prática pedagógica
Abordagem
inatista-maturacionista
Abordagem
comportamentalista
Abordagem
piagetiana
1
Abordagem
histórico-cultural
73
CARRAHER, T. N. et alii. Cultura, escola, ideologia e cognição — Conti-
nuando um debate. Cadernos de Pesquisa, n? 57, maio/86. São Pau-
lo: Fundação Carlos Chagas.
FREITAG, B. Piagetianos brasileiros em desacordo? Contribuições para
um debate. Cadernos de Pesquisa, n? 53, maio/85. São Paulo: Fun-
dação Carlos Chagas.
MORO, M. L. A construção da inteligência e a aprendizagem escolar de
crianças de baixa renda — Uma contribuição para o debate. Cader-
nos de Pesquisa, n? 56, fev./86. São Paulo: Fundação Carlos Chagas.
PATrO, M. H. S. Criança da escola pública: deficiente, diferente ou mal
trabalhada?. Revendo a proposta de alfabetização. Projeto Ipê. São
Paulo: SE/CENP, 1985.
A criança marginalizada para os piagetianos brasileiros; de-
ficiente ou não?. Cadernos de Pesquisa, n? 51, nov./84. São Paulo:
Fundação Carlos Chagas.
SMOLKA, A. L. B. O trabalho pedagógico na diversidade (adversidade)
da sala de aula. Cadernos Cedes, n? 23. São Paulo: Cortez, .1989.
et alii. A questão dos indicadores de desenvolvimento:
apontamentos para discussão. Caderno de Desenvolvimento Infan-
til, n? 1, 1994. Curitiba: Centro Regional de Desenvolvimento In-
fantil da Pastoral da Criança/CNBB.
Com a classe organizada em grupos, cada um deles deve ficar res-
ponsável pela leitura, estudo e apresentação de um dos textos.
Procure destacar os pontos mais importantes do texto e identificar,
com base nesta primeira parte do livro, a abordagem teórica adotada ou
criticada pelos diversos autores.
Depois da apresentação de cada grupo (que pode ser feita em mais
de uma aula), faça com os colegas um debate sobre as questões tratadas
nos textos e sobre os diferentes modos de ver a criança e o trabalho
pedagógico presentes na psicologia.
Sugestão de leitura
SMOLKA, A. L. B., LAPLANE, A. F. O trabalho em sala de aula: teorias para
quê? Cadernos ESE, n? 1,nov./93. Rio de Janeiro: Faculdade de
Educação da Universidade Federal Fluminense.
Filme recomendado
Crescer e aprender — Um guia para pais, documentário realizado pelo
Unicef e apresentado pela TV Cultura de São Paulo.
Unidade 2
74
Introdução
A palavra integra nossas relações com a criança já a
partir de seu nascimento. Falamos com a criança
muito antes que ela comece a falar ou, mesmo, a nos
entender. Como pais, tios, avós, irmãos, sabemos que em certo momen-
to ela vai começar a falar e encaramos esse fato como algo natural e
próprio do ser humano.
Em nossas relações cotidianas, vamos compartilhando com a
criança em crescimento as palavras que conhecemos e por meio das
quais nomeamos, organizamos e participamos do mundo em que vive-
mos. Esse compartilhamento também nos parece corriqueiro e natural,
e muitas vezes divertido, pois acabamos nos surpreendendo com algu-
mas das coisas que as crianças nos dizem.
Quando a criança chega à escola, nós, educadores, continuamos
ensinando-lhe novas palavras, como adição, subtração, fração, substan-
tivo, verbo, silaba, ponto final, pátria, cultura, monarquia, república,
escravidão, sistema circulatório, célula, oxigênio, atmosfera, energia,
clima, relevo, etc. Essas palavras expressam relações complexas que os
homens, ao longo de sua história, foram estabelecendo entre os elemen-
tos do mundo, no seu esforço para conhecê-los e explicá-los. Por tudo
isso, consideramos necessário que a criança as conheça e saiba utilizá-
las adequadamente. Esforçamo-nos, então, para que ela as aprenda. E
esse aprendizado também nos parece natural.
Assim, como adultos, ou membros mais velhos dos grupos sociais
de que a criança faz parte, não temos o hábito de nos interrogar acerca
dos modos pelos quais ela, criança, se relaciona com as palavras. O que
é a palavra para a criança? Como é que ela se apropria das palavras e
como elabora seus significados? Que papel, afinal, nós, adultos, desem-
penhamos nesse processo?
Entretanto essas questões têm, há muito tempo, preocupado filóso-
fos, lingüistas, psicólogos, educadores, que têm se voltado, cada um em
seu campo de estudo, para a busca de explicações e respostas a elas.
Nesta segunda unidade, vamos tematizá-las a partir das perspecti-
vas de Piaget e de Vygotsky.
No capítulo 7, vamos problematizar as funções da palavra e nos
aproximar dos modos como esses dois autores analisam e explicam
suas relações com o pensamento.
No capítulo 8, focalizaremos como cada um deles descreve e expli-
ca o processo de elaboração da palavra pela/na criança.
No capítulo 9, vamos discutir o papel da escola na elaboração da pala-
vra pela criança, tendo em vista essas duas importantes contribuições.
Capítulo 7
A relação entre pensamento
e linguagem
Campinas, agosto de 1987.
Numa sala de aula da 3? série de uma escola pública da periferia, a
diretora entra e comunica à professora e aos alunos que, na semana se-
guinte, a escola toda deverá comemorar a Semana da Pátria.
— "Todas as manhãs vamos hastear a bandeira, cantar o
Hino e um dos professores falará sobre a data."
Voltando-se para a professora:
— "Prepare as crianças."
A saída da diretora, têm início os comentários.
Juliana (para Fabiana) — "A tia vai dar desenho pra gente
pintar, né?!"
Eli (para o colega ao lado) — "Que negócio que ela falou da
bandeira?"
Eli (para a professora) — "A gente vai enfeitar a classe com
bandeirinha verde e amarela? Foi isso que ela falou?"
Cláudio (comentando com Sérgio) — "A gente vai ter que
cantar o hino..."
Sérgio — "Mas é lá fora. Dá pra ficar de olho nas meninas da
4fsérie, meu!"
Elaine (para a professora) — "É' sete de setembro, né, tia?!"
João (para Sérgio) — "E feriado..."
A professora, diante dos comentários suscitados pelo comuni-
cado, e procurando identificar de que modo atender à solicitada
"preparação das crianças" para o evento, escreve na lousa —
SEMANA DA PÁTRIA — e pergunta para a classe:
— "O que significa Semana da Pátria?"
Sérgio — "Semana é semana. Segunda, terça, quarta..."
Proff— "E isso mesmo. E Pátria? O que é Pátria?"
As respostas disparam rapidamente, com firmeza.
Fabiana — "Pátria é coisa de soldado."
Para as crianças,
o 7 de Setembro
tem diversos
significados.
78
Ronaldo — "É isso que eu ia falar. É coisa de polícia, de bom-
beiro. Eles desfilam lá na cidade. Passa na TV também."
Juliana — "A gente sempre pinta o desenho do soldadinho
com a bandeirinha e escreve em cima — Semana da Pátria."
Proff — "Então Pátria é coisa de soldado? Quem aqui tem
Pátria?"
Sérgio — "Povão não tem Pátria, dona."
Prof!'— "Por quê?"
Sérgio — "A gente não tem casa, não tem dinheiro, o pai vira
e mexe tá desempregado... A gente não tem nada. Não tem Pátria
também."
(Episódio extraído do Projeto de Pesquisa sobre os Processos de
Elaboração Conceitua) na Escola, elaborado e desenvolvido por
Roseli A. C. Fontana de 1987 a 1991.)
Sobre o que fala a dire-
tora? Para quê? A quem se
dirige?
Ela comunica um even-
to às crianças, determina a
presença delas e da profes-
sora nesse evento, revela ex-
pectativas com relação a ta-
refas a serem assumidas pela
professora (preparação) e
pelas crianças (afinal, são
elas as pessoas que devem
ser preparadas para o even-
to). E nesse contexto e na si-
tuação de autoridade escolar
que ela diz a palavra pátria.
Sobre o que falam as crianças? A quem se dirigem? Para que dizem
o que dizem?
Elas compartilham entre si e com a professora os modos como se
relacionam com as palavras da diretora. Algumas procuram obter mais
esclarecimentos, levantando suposições e pedindo confirmações acerca
do que pode vir a acontecer na escola: "A tia vai dar desenho pra gente
pintar, né!?"; "A gente vai enfeitar a classe com bandeirinha verde e
amarela?". Outras procuram confirmar com a professora as informa-
ções que relacionam com aquilo que foi dito pela diretora: "É sete de
setembro, né, tia?!". Outras, ainda, procuram esclarecer aspectos do
comunicado que não conseguiram entender: "Que negócio que ela fa-
lou da bandeira?".
Os dizeres das crianças se cruzam e trazem para a interlocução ou-
tros elementos e outras possibilidades de significação do comunicado
da diretora. Por exemplo, João, ouvindo de Elaine a referência ao 7 de
Setembro, fala do feriado, desencadeando para seus colegas outras pos-
sibilidades de leitura da fala da diretora. Cláudio, ao ouvir a referência
ao Hino, enfatiza "o cantar lá fora", que é "lido" por Sérgio como a
possibilidade de paquerar.
No processo de elaboração das palavras pelas crianças, o evento
comunicado pela diretora vai se revestindo de nuances e sentidos diver-
sos daqueles destacados por ela. Desenhos, bandeirinhas, feriado,
paquera... tudo isso é Semana da Pátria também.
Ao perguntar "o que é pátria?", a professora apresenta às crianças
outro modo de relação com a palavra. Ela desloca as crianças da relação
de uso da palavra para uma relação de reflexão sobre a palavra.
Para responderem à professora, as crianças precisam refletir sobre
o que pensam que a palavra pátria significa. Precisam explicitar o seu
modo de pensar.
O dizer da professora imprime uma direção à atividade intelectiva
das crianças. Pela palavra ela age sobre suas elaborações. Ela destaca a
palavra pátria, transformando-a no foco da atividade das crianças. Ela
pergunta sobre seu significado, questiona o significado apresentado pe-
las crianças pedindo que justifiquem as relações que estabelecem entre
a palavra pátria e outras palavras, como soldado e povão.
E em resposta a ela que as crianças selecionam e articulam os frag-
mentos de suas experiências, orientadas pela palavra pátria. Na respos-
ta a ela, organizam a compreensão da palavra a partir do lugar social
que ocupam: alunos na escola, espectadores nos desfiles, marginaliza-
dos no processo de produção e circulação dos bens culturais na socieda-
de em que vivem.
Ao prestarmos atenção à linguagem em funcionamento nas
interlocuções, vamos nos dando conta da complexidade da palavra.
Ela é múltipla e diversa, conforme diz o poeta:Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
(Carlos Drummond de Andrade)
Pela palavra nomeamos o mundo e somos nomeados. Objetos, co-
res e formas, modos de ser, de dizer e de fazer, o que existe e o que
poderá existir, tudo tem nome, tudo pode ser nomeado. Pátria também é
Situações como essa acontecem nas salas de aula. E, ao acontece-
rem, surpreendem, porque levantam questões acerca de nossas relações
com a palavra...
O que dizemos, o que queremos dizer ao enunciar a palavra pátria?
O que o outro quer dizer quando enuncia pátria?
Na situação que inicia o capítulo, podemos perceber que a palavra
pátria não tem um sentido só. Na fala da diretora, na fala da professora,
na fala das crianças, ela assume nuances distintas, que são marcadas
pela situação em que foi enunciada.
.79
80
nome. Nome de quê? "Pátria é coisa de soldado", dizem as crianças
("... mil faces secretas... ").
Nomeados nos tornamosAna, João, Marina, Mariana, Beto ou Rafael,
pai, filho, irmão, a professora, a "tia", a criança impossível, o herói.
Mas a mesma palavra que serve para nomear, instituir, também ser-
ve para negar: "Você não é mais a minha mãe!", resmunga ou grita a
criança contrariada. "Povão não tem pátria", diz Sérgio.
As palavras nos permitem compartilhar experiências, pensamen-
tos, sentimentos, e também ocultá-los, pois é pela palavra que menti-
mos, que "desconversamos" ("Trouxeste a chave?").
Por elas e com elas agimos com o outro e sobre o outro: apontamos,
dirigimos a atenção, pedimos, prometemos, damos ordens, negocia-
mos, discutimos, polemizamos, trapaceamos.
"... mil faces secretas sob a face neutra..."
Por elas e com elas nos aproximamos do outro. Acolhemos sua
palavra, ouvimos e reconhecemos nos seus modos de dizer os fragmen-
tos da realidade a que dirige sua atenção, os modos como apreende a
realidade e como a organiza. Aprendemos.
Por elas e com elas nos opomos ao outro. Recusamos sua palavra.
Lutamos com elas e contra elas. E também aprendemos.
Por entre elas nos perdemos do outro e o buscamos por entre os
caminhos nos quais procura ocultar-se.
Por entre elas e com elas vamos nos apropriando da história ou
sendo colocados à sua margem; vamos nos apossando das crenças, dos
gostos, dos valores, enfim, dos modos de viver, de pensar e de conhecer
do nosso tempo.
No jogo das palavras, construímos a nossa própria identidade, di-
zemos o mundo e nos dizemos no mundo. "Povão não tem pátria,
dona!" Mas também é pela palavra que interrogamos essa mesma iden-
tidade e suspeitamos dela: "Eu, quem eu era? De que lado eu era?"
(João Guimarães Rosa).
Afirmação e negação, encontro e desencontro, verdade e trapaça,
centro e margem. Como as palavras chegam a ser palavras? Como seus
significados e sentidos se produzem e circulam nas interlocuções?
Como elas se tomam parte de nós?
Essas questões são intrigantes e tão grandes quanto o homem. Des-
de os gregos elas vêm sendo formuladas e discutidas, e rediscutidas, e
novamente formuladas.
Na psicologia, como em outras áreas do conhecimento, essas ques-
tões têm sido respondidas de modos diversos.
O que a psicologia nos diz
A linguagem como comportamento
Watson e Skinner consideram a linguagem como comportamento:
o comportamento verbal.
Como todo comportamento, as palavras são respostas aprendidas
por associação e reforçamento. A palavra e seu significado se unem a
partir de relações externas. O elo entre a palavra e seu significado se
forma pela reiterada percepção simultânea de determinado som e de
determinado objeto. Assim, a palavra tem significado conforme remete
ao objeto a que foi associada.
A conexão entre palavra e significado pode fortalecer-se, enfraque-
cer, ser extinta ou ampliada em razão das contingências reforçadoras
que acompanham as respostas dadas pelo indivíduo. Por exemplo, a
uma criança que já relaciona a palavra fruta ao elemento laranja, pode-
mos ensinar o emprego generalizado dessa palavra, associando-a a ou-
tros elementos, como maçã, pêra, mamão, banana, por meio da modela-
gem de suas respostas. Do mesmo modo, também podemos extinguir
conexões entre palavra e significado consideradas inadequadas pelo
processo de controle das respostas por contingências externas.
Nesse quadro de referências, as palavras sofrem mudanças pura-
mente externas e quantitativas. Elas são associadas a outros elementos e
eventos do meio ou têm parte de suas conexões extinta.
Como as conexões entre palavra e significado são externas (são
objetivas, no dizer dos comportamentalistas), podemos aferir o grau de
correção, de adequação com que a criança utiliza a palavra.
A linguagem como função da inteligência
Segundo Piaget, "a linguagem só é acessível à criança em função
dos progressos de seu pensamento" (1975: 345).
Até os 2 anos de idade, aproximadamente, a linguagem tem um
papel insignificante no desenvolvimento da criança, porque suas for-
mas de agir sobre o mundo e de compreendê-lo são individuais e
construídas no plano da ação imediata. A criança se relaciona com o
mundo e o elabora por meio dos seus sentidos e de seus movimentos
(período sensório-motor).
Da inteligência sensório-motora deriva a função simbólica, que
permite à criança desprender-se do seu contexto imediato. A função
simbólica, vista como possibilidade de representação, é analisada por
Piaget como um processo individual que cria condições para a aquisi-
ção e o desenvolvimento da linguagem.
"A função simbólica", afirma Piaget, "é um mecanismo individual
cuja existência prévia é necessária para tornar possível [...] a constitui-
ção ou aquisição das significações coletivas" (1975: 14).
Nessa afirmação de Piaget, fica evidenciada sua concepção de lin-
guagem. A linguagem integra-se à função simbólica. Ela não é sua cau-
sa e sim seu resultado. Ela também é apenas um caso particular das
formas de simbolização.
"A linguagem é certamente um caso particular, especialmente im-
portante, não o nego, mas um caso limitado no conjunto das manifesta-
ções da função simbólica" (Piatelli-Palmarini, 1979: 248). Ela diz res-
peito aos sistemas de signos coletivos que transmitem ao indivíduo uma 81
82
série de conceitos, um sistema pronto de classificações e de relações,
que vão sendo apreendidos e elaborados por ele de acordo com seus
esquemas de ação e de pensamento.
Assim, no processo de aquisição da linguagem, os significados das
palavras não são diretamente incorporados pela criança. As palavras
não se imprimem nela como se se tratasse de uma placa fotográfica. Ela
elabora ativamente as palavras com base em seus esquemas de assimi-
lação, construindo significados que nem sempre correspondem aos sig-
nificados utilizados por nós, adultos.
Se atentarmos, por exemplo, nas definições que as crianças deram
de pátria, na situação descrita no início deste capítulo, vamos perceber
que elas diferem da definição que um adulto em geral lhe dá (pátria =
país onde nascemos), ou da que aparece num dicionário, em que é
enfatizado o sentido genérico de terra natal, país onde nascemos, lugar
de origem, nação, além do sentido afetivo de comunidade moral e histó-
rica. Na fala das crianças, o sentido da palavra pátria está relacionado a
suas experiências anteriores, na escola e fora dela (desenhos para colo-
rir, classe enfeitada, os desfiles, os soldados), a suas condições imedia-
tas de vida (falta de moradia, falta de dinheiro, desemprego) e até mes-
mo a interesses pessoais projetados na comemoração escolar (a pa-
quera, o feriado).
Essas diferentes formas de entendimento entre crianças e professo-
ra, segundo Piaget, resultam das diferenças qualitativas entre o pensa-
mento infantil e o pensamento adulto.
Somente o desenvolvimento do pensamento operatório (tratado no
capítulo 4) é que vai possibilitar ao sujeito apreender as relações lógi-
cas, de abstração (atividade mental por meio da qual identificamos e
separamos os elementos que compõemum todo) e de generalização
(processo mental inverso e complementar da abstração que nos possibi-
lita agrupar vários objetos singulares de acordo com os caracteres co-
muns que neles reconhecemos), contidas nas palavras.
Como no pensamento operatório o conhecimento não se constrói
mais a partir de operações sobre o objeto imediato, e, sim, sobre proposi-
ções e hipóteses enunciadas verbalmente, a palavra toma-se uma condi-
ção necessária, embora não suficiente, do conhecimento lógico-abstrato.
Para termos uma idéia mais clara das relações entre o conhecimen-
to lógico-abstrato e as palavras, tal como vistas por Piaget, vamos pen-
sar no processo de elaboração de conhecimento que, ao longo da leitura
deste texto, você está vivendo.
Todas as explicações e suposições elaboradas por Piaget estão sen-
do apresentadas a você através de conceitos (assimilação, acomodação,
pensamento operatório, etc.). Mesmo quando procuramos exemplificar
com algumas situações o que estamos expondo, é por meio das palavras
que o fazemos. Durante a leitura você não está observando crianças,
nem está em interação direta com elas. Você está elaborando as infor-
mações que damos num plano inteiramente abstrato. Como destaca o
próprio Piaget, é difícil imaginar como se desenvolveriam relações de
conhecimento dessa natureza sem o emprego da palavra. No entanto, a
formalização dessas idéias não se limita à palavra. Para apreender e
elaborar de maneira lógica os conceitos que estamos utilizando, seu
psiquismo está trabalhando intensamente. Você está realizando várias
operações de pensamento. São essas operações que lhe possibilitam
apreender a lógica do que estamos informando. Ou seja, a lógica depen-
de do modo de pensar construído e não da palavra em si, embora esta
seja uma condição necessária à elaboração desse tipo de conhecimento.
"O progresso da linguagem não traz em si um correspondente
progresso em operações, ao passo que o inverso é uma realidade",
afirma Piaget.
No processo de desenvolvimento psicológico dos indivíduos a pa-
lavra passa, então, da condição de um mero apêndice das estruturas de
pensamento para a condição de parte integrante do pensamento abstrato
(Freitag, 1986).
Uma vez que a linguagem segue o desenvolvimento do pensamen-
to até tomar-se parte dele, as formas como as palavras são usadas e os
significados atribuídos a elas refletem os níveis de desenvolvimento
cognitivo, permitindo-nos considerá-la como um mapa do pensamento.
A linguagem como atividade simbólica constitutiva
Na abordagem histórico-cultural, a palavra não é analisada como
uma das nossas funções simbólicas, mas como nosso sistema simbólico
básico, produzido a partir da necessidade de intercâmbio entre os indiví-
duos durante o trabalho, atividade especificamente humana. Para agir co-
letivamente o homem teve que criar um sistema de signos que permitisse
a troca de informações específicas e a ação conjunta sobre o mundo, com
base em significados compartilhados pelos indivíduos (Kohl: 1993).
Vista dessa perspectiva, a linguagem é um produto histórico e
significante da atividade mental dos homens, mobilizada a serviço da
comunicação, do conhecimento e da resolução de problemas.
Não se trata de algo que se acrescenta às representações, ações e
desenvolvimento individuais, como considera Piaget. Ela é constitutiva
(é a base) da atividade mental humana, sendo, ao mesmo tempo, um
processo pessoal e social: tem origem e se realiza nas relações entre
indivíduos organizados socialmente, é meio de comunicação entre eles,
mas também constitui a reflexão, a compreensão e a elaboração das
próprias experiências e da consciência de si mesmo.
Como produção cultural humana, a palavra não se desenvolve em
nós naturalmente. E nas nossas relações com o outro, nas nossas
interações, que ela vai sendo incorporada a nossas funções biológicas, a
nossos modos de perceber e de organizar (conhecer) o mundo.
Nascida num mundo humano repleto de símbolos e de signos, a
criança, desde seus primeiros momentos de vida, está mergulhada em
um sistema de significações sociais. Os adultos procuram ativamente
fazer com que a criança incorpore os significados, objetos e modos de
agir criados pelas gerações precedentes. 83
A criança ainda
não entende, mas
a mãe fala
com ela,
apresentando-lhe
o Inundo.
84
Mesmo sabendo que a criança ain-
da não a entende, a mãe fala com ela,
"envolvendo-a em um colo de pala-
vras ternas e quentes", observa poeti-
camente Giani Rodari, jornalista e
educador italiano. A mãe fala à criança
dando significado a seus movimentos,
choros e risos.
Pela palavra da mãe, o choro trans-
forma-se em chamado, e o movimento
frustrado de agarrar, inscrito no ar pe-
las mãos de um bebê voltadas para um
objeto qualquer, transforma-se em ges-
to de apontar.
A mãe, observando as tentativas da criança para agarrar o objeto,
entrega-o a ela, interpretando seu movimento: "Ela quer esta bola".
Nesse momento um significado é atribuído pela mãe ao movimento do
bebê, transformando-o em gesto. A transformação do movimento em
gesto produzida pelas pessoas que cercam a criança vai sendo incorpo-
rada por ela ao longo de experiências semelhantes. Nesse processo, a
criança passa a utilizar o movimento de pegar não mais como uma ten-
tativa de agarrar o objeto, mas como um gesto dirigido às pessoas que a
cercam. O movimento de agarrar suaviza-se e tem agora outro signifi-
cado, "Quero aquela bola", e outro destinatário, o adulto.
E pela interpretação e nomeação feitas pelo ou-
tro que os movimentos do corpo convertem-se em
gestos, apuram-se e tornam-se mais complexos. Os
movimentos transformados em gestos são meios de
comunicação, modos de manifestar e apreender de-
sejos, intenções, emoções, informações, formas de
direcionar e controlar (reciprocamente) os compor-
tamentos dos sujeitos envolvidos na interação. Pela
imitação, pela repetição, no ritual das relações so-
ciais cotidianas, a criança aprende a dizer o que quer
e a entender o outro pelo gesto.
O mesmo acontece com o balbucio, que se
transforma em esboço de fala. E a mãe ou alguém
mais velho do que a criança e em interação com ela
que atribui inicialmente significados a eles.
O universo da linguagem chega à criança me-
diado pelos outros membros de seu grupo social. A
mãe fala à criança nomeando o mundo. Ela nomeia,
aponta, compartilha significados com a criança.
Nessas relações, o mundo vai-se povoando de obje-
tos, de cores e de formas, de gente diversa, com no-
mes e modos de ser, de dizer e de fazer também diversos. O mundo
povoa-se de palavras, pois tudo o que se percebe, tudo o que se sente,
tudo o que se faz, tudo o que se é e também o que não se é, tudo o que se
deseja e imagina, tem nome, pode ter nome, é dito, pode ser dito...
Nesse sentido, a linguagem não é algo estranho à criança que ain-
da não fala. Seu desenvolvimento não depende apenas de fatores in-
trínsecos à criança ou de seus modos de ação sobre o objeto. Depende
das possibilidades que essa criança tem (ou não), nas suas relações
sociais, de se aproximar, de compartilhar e de elaborar os conteúdos e
as formas de organização do conhecimento histórica e culturalmente
desenvolvidos e materializados nas palavras.
A elaboração do mundo tem como intermediário o outro. Por sua
mediação, revestida de gestos, atos e palavras, vamos nos integrando à
cultura, vamos aprendendo a ser humanos. Pela palavra do outro, por
sua presença, pelo seu reconhecimento e encorajamento a cada pequeno
evento que indica nossa progressiva humanização, nos reconhecemos.
Somos nomeados e nomeamos...
A palavra, portanto, não é apenas adquirida por nós no curso do
desenvolvimento. Ela nos constitui e nos transforma. Com suas fun-
ções designativa e conceitual, a palavra é mediadora de todo nosso
processo de elaboração do mundo e de nós mesmos. Ela objetiva esse
processo, integra-o e direciona a atividade mental por nós desenvolvi-
da. "O desenvolvimento intelectual da criança", diz Vygotsky, expres-
sando um ponto de vista contrário ao defendido porPiaget, "depende
do seu domínio dos meios sociais de pensamento, ou seja, da lingua-
gem" (1979: 73).
Nesse processo, palavra e pensamento fundem-se. Uma palavra
sem significado é um som vazio, afirma Vygotsky, da mesma forma que
um pensamento que não se materializa em palavras se perde. A palavra
não é apenas expressão ou comunicação do pensamento. , Ela é um ato
de pensamento. E por meio das palavras que o pensamento passa a exis-
tir. Nas palavras ele encontra sua realidade e sua forma. "Esqueci a pa-
lavra que pretendia dizer, e meu pensamento, privado de sua substância,
volta ao reino das sombras", reflete Vygotsky, citando o poeta russo
Mandelshtam.
Não se trata, portanto, de vestir as palavras com o pensamento,
considera Vygotsky, nem de vestir o pensamento com palavras. Pen-
samento e palavra se articulam dinamicamente na prática social da
linguagem.
Nesse sentido, as palavras não são formas isoladas e imutáveis.
Elas são produzidas na dinâmica social, seus significados não são es-
táticos. Uma palavra que nasce para designar um conceito vai sofren-
do modificações, vai sendo reelaborada no jogo das práticas e das
forças sociais.
Por exemplo, a palavra cultura (do latim colere, "cultivar") inicial-
mente estava ligada às práticas agrícolas, significando o cuidado com
plantas e animais. Pensadores romanos ampliaram esse significado,
passando a palavra a designar também o cultivo pessoal, o refinamento
dos costumes, a educação elaborada de uma pessoa. Na Idade Moderna,
A criança aprende a dizer o que quer e a
entender o outro pelo gesto.
85
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com novas experiências incorporadas ao seu significado, a palavra cul-
tura passou a designar tanto uma classificação geral das artes, da reli-
gião, dos valores de uma sociedade como a idéia de civilização ou, ain-
da, a totalidade da vida social dos povos, englobando suas práticas ma-
teriais e simbólicas.
De modo similar ao que acontece na história social, o significado
das palavras e das relações e generalizações nelas contidas também se
transforma no processo de desenvolvimento das crianças.
"Quando uma palavra nova é aprendida por uma criança, o seu de-
senvolvimento mal começou...", destaca Vygotsky (1987: 71). Acom-
panhar esse desenvolvimento foi uma tarefa fascinante a que Vygotsky,
tal como Piaget, também se propôs.
Enquanto Piaget procurou mapear o desenvolvimento do pensa-
mento por meio da linguagem, descrevendo minuciosamente o papel
desempenhado pela palavra em cada um dos estágios da formação do
pensamento lógico, Vygotsky procurou retratar o movimento de articu-
lação entre palavra e pensamento nas situações e tarefas com que as
crianças defrontam nas suas relações sociais.
A relação entre o pensamento e a palavra, analisa Vygotsky, "não é
uma coisa mas um processo, um movimento contínuo de vaivém do
pensamento para a palavra, e vice-versa. Nesse processo, a relação en-
tre o pensamento e a palavra passa por transformações..." (1987: 104).
Nd capítulo seguinte, vamos tratar das relações entre pensamento
e linguagem ao longo do desenvolvimento da criança.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
Releia o texto considerando as relações entre pensamento e lingua-
gem vistas por Piaget e por Vygotsky.
Reflita sobre as seguintes questões:
• Como a linguagem é concebida por eles?
• Que funções da palavra são enfatizadas em seus trabalhos?
• De que modo cada um deles explica o desenvolvimento da palavra
nos indivíduos?
Refletindo sobre as informações do texto
Segundo Piaget, a linguagem reflete o pensamento. A partir da con-
cepção de Vygotsky, essa relação é verdadeira ou não? Justifique sua
resposta com base nos dados do texto.
Exercitando a análise
Você conhece o livro Palavras, palavrinhas e palavrões, de Ana
Maria Machado (Editora Codecri)? Nele, essa escritora brasileira, auto-
ra de fascinantes obras de literatura infantil, conta, com muita sensibili-
dade e humor, a história de uma menina que gostava muito de palavras
e estava sempre querendo aprender palavras novas...
Leia o livro e escreva um comentário sobre ele, tendo em vista as
seguintes questões:
• Como as crianças se relacionam com as palavras?
• Como os adultos participam dessas relações?
Trabalho de campo
Após a leitura do livro de Ana Maria Machado, comece a escutar
com atenção falas de crianças, observando seus modos de dizer. Nos
seus estágios, nas suas relações familiares, em contato com a vizinhan-
ça, aproxime-se das crianças, ouça-as e converse com elas. Registre
esses momentos, anotando a situação em que a interlocução (a relação
verbal) aconteceu, quais as pessoas envolvidas e as falas de cada uma
delas. Não se esqueça de registrar as idades das crianças e as datas das
observações. 87
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Sugestão de leituras
Vamos apurar nossa sensibilidade e nossa relação com a palavra.
Só assim poderemos entrar em sintonia com a palavra da criança, com
seu aparente nonsense. Para isso vamos ler, ler muito... Poesias (Drum-
mond, Cecília Meireles, Mário Quintana, Fernando Pessoa, etc.), con-
tos, romances, novelas, crônicas (Clarice Lispector, Drummond, Mário
de Andrade, Machado de Assis, Graciliano Ramos, etc.), literatura in-
fantil (Ana Maria Machado, Sylvia Orthof, Lygia Bojunga Nunes, Bar-
tolomeu de Queiroz, etc.).
O humor nos mostra especialmente a ambigüidade da palavra. Fi-
que atento aos quadrinhos e charges dos jornais. Leia, entre outras, pro-
duções como as de Quino (Toda Mafalda. Lisboa, Edições D. Quixote,
1978), Ziraldo (As anedotinhas do bichinho da maçã, Ed. Melhoramen-
tos), Eva Furnari, a criadora da Bruxinha.
Para ajustar a sensibilidade aos modos de ser e de dizer da criança e
à sua fantasia, leia A gramática da fantasia, de Giani Rodari (Editorial
Summus), e a maravilhosa História sem fim, de Michael Ende (Editora
Martins Fontes), que também foi filmada e existe disponível em vídeo
(o filme tem o mesmo título do livro).
Capítulo 8
A criança e a palavra
Como a criança elabora a palavra ao longo de seu desenvolvi-
mento?
Tanto Piaget quanto Vygotsky consideram que os modos de elabo-
ração da palavra não permanecem imutáveis ao longo do desenvolvi-
mento infantil.
Sendo a linguagem para Piaget uma função do pensamento, seu
trabalho trata das formas que ela assume e do papel que ela desempenha
em cada um dos estágios do desenvolvimento do pensamento lógico. A
fala da criança é, assim, enfocada a partir do processo do pensamento.
Para Vygotsky, a palavra e o pensamento articulam-se na atividade
de compreensão e comunicação envolvida nas relações sociais. O foco
da análise é, então, colocado no processo como um todo, interessando
apreender as atividades intelectuais envolvidas, os modos como a pala-
vra dirige essas atividades e as condições de interação em que elas vão
sendo produzidas.
Piaget e o papel da linguagem no desenvolvimento do
pensamento lógico: do símbolo individual aos conceitos
Até os 2 anos aproximadamente, a criança passa por uma série de
transformações que a dotam dos pré-requisitos para a aquisição e elabo-
ração da linguagem.
Nesse período, o desenvolvimento da criança passa do nível
neonatal, marcado pelo funcionamento dos reflexos, para o de uma or-
ganização perceptiva e motora dos fenômenos do meio. A consciência
que a criança tem do meio externo se expande lentamente, tornando-se
o eu e o mundo progressivamente diferenciados.
E no curso dessas relações que a permanência dos objetos vai sen-
do construída pela criança. O brinquedo, que ao ser retirado da criança
deixava de existir para ela, passa a ser procurado. A criança começa a
89
90
perceber que os objetos, as pessoas, continuam existindo mesmo quan-
do estão fora do seu campo de visão. Formam-se as primeiras imagens
mentais dos objetos ausentes do meio imediato, as quais possibilitam o
desenvolvimento da função simbólica, mecanismo comum aos diferen-
tes sistemas de representação (jogo, imitação, imagens interiores, sim-
bolização, linguagem verbal).
O desenvolvimento da função simbólica
Com o desenvolvimento dafunção simbólica, a partir do segundo
ano de vida, o eu e o mundo da criança reorganizam-se num novo pla-
no: o plano representativo.
A criança reproduz, imita por meio de gestos ou de sons
(onomatopéias) o comportamento de um modelo ausente. Ela represen-
ta simbolicamente um objeto por outro no jogo do faz-de-conta.
Empregando uma imagem mental, um símbolo, a criança relembra
fatos, objetos, pessoas, acontecimentos que ocorreram em outras oca-
siões. O espaço e o tempo dilatam-se. O desenvolvimento da função sim-
bólica exime-a de agir somente em situações do meio imediato. Ela passa
a se relacionar com ações ou fatos sem praticá-los efetivamente. Pela re-
presentação mental do mundo externo e de suas próprias ações, a criança
os interioriza. Ela começa a distinguir significantes (imagens que repre-
sentam fatos, pessoas ou objetos) e significados (fatos, objetos ou pes-
soas ausentes à percepção imediata, aos quais as imagens se referem).
O desenvolvimento da representação cria as condições para a aqui-
sição da linguagem. A capacidade de construir símbolos, desenvolvida
na representação, possibilita a aquisição das significações coletivas (a
linguagem social). As palavras da linguagem social, que vão sendo ad-
quiridas pela criança, passam a acompanhar as imagens mentais e os
símbolos que ela utiliza inicialmente.
As relações da criança com as palavras se processam gradual-
mente, da mesma forma que a passagem da ação motora para a ação
interiorizada.
A criança não consegue de imediato utilizar as palavras em toda a
sua complexidade lógica. Ela utiliza a linguagem de forma imitativa,
simbólica e pré-conceitual.
Vejamos como isso acontece.
Os primeiros esquemas verbais
As primeiras palavras usadas pela criança reúnem sob uma mesma
denominação vários objetos e situações que a interessam ou que fazem
parte de sua experiência. Ela pode, por exemplo, usar uma onomatopéia
clássica, como bruuuuu, para designar o carro que passa pela rua, qual-
quer meio de transporte que apareça em sua frente, pessoas ou animais
que se movimentam na rua, brinquedos que se movimentam, assim
como para manifestar o desejo de andar de carro, etc. O mesmo pode
acontecer com a palavra mamã, utilizada para designar a própria mãe,
as roupas da mãe no armário, qualquer mulher acompanhada de uma
criança, ou mesmo para externar o desejo que sente de algo.
Essas primeiras palavras, que Piaget chama de primeiros esquemas
verbais, têm um forte caráter imitativo (elas são onomatopéias ou imita-
ção de palavras usadas na linguagem adulta) e não têm um significado
fixo (seu significado oscila, conforme as situações com que a criança
defronta).
Tais características, segundo Piaget, são indicadores do tipo de
pensamento dominante na criança nesse período, o pensamento sin-
crético. Ela agrupa vários acontecimentos e objetos numa mesma de-
signação, independentemente das relações lógicas existentes entre eles.
Para formar esses agrupamentos, ela leva em consideração apenas seu
próprio ponto de vista, suas experiências.
Assim, a criança pode reunir na expressão bó
tanto a bola quanto um cubo com o qual ela brinca
ou o tapete da sala onde ela brinca com a bola,
sendo o elo entre os significantes apenas sua ex-
periência pessoal em relação a eles.
A criança, nessa fase, também não considera
simultaneamente as múltiplas dimensões de um
objeto ou de um acontecimento. Aspectos particu-
lares são tomados pelo todo, enquanto dimensões
relevantes são esquecidas ou negligenciadas, do
mesmo modo que cada aspecto ou dimensão es-
pecífica dos objetos ou dos fatos é enfocada sepa-
radamente. Por exemplo, a criança pode utilizar a
mesma designação para um cachorrinho de pelú-
cia com olhos de vidro verdes e para o botão re-
dondo e verde de uma roupa.
De posse desses primeiros esquemas verbais,
ela aprende rapidamente a falar palavras-frases,
como Papá (Quero comer, Vou comer), frases de
duas palavras, como Nenê dá (para pedir algo), e
frases completas, que, inicialmente, são ordens ou expressões de dese-
jo, enunciando uma ação possível, ligada ao ato imediato e presente.
Dessas frases, a criança passa para a construção de representa-
ções verbais, evocando e reconstituindo acontecimentos não mais li-
gados ao ato imediato. Por exemplo, ela enumera, para si mesma ou
para uma outra pessoa, coisas que viu ou utilizou para brincar, os
alimentos que consumiu numa das refeições, algum tempo depois de
ter vivido tais situações. Ela conta fatos vividos ou presenciados por
ela, como um gafanhoto pulando no jardim (Fanhoto, fanhoto sal-
tar...) ou a saída da tia (Ti Madena no automove, parti no automove),
como exemplifica Piaget.
A construção das primeiras representações verbais se dá por meio
da narrativa. Na narrativa, a linguagem deixa de acompanhar simples-
Os primeiros
esquemas verbais
não têm uni
significado fixo,
oscilando
conforme a
situação vivida.
91
A narrativa
torna-se um
recurso de
comunicação
para a criança.
92
Da narrativa, a criança
passa para a descrição, que é,
nas palavras de Piaget, "uma
narrativa que se prolonga até
atualizar-se". Na descrição, a
palavra acompanha a ação em
curso, mas não faz parte dela,
como na linguagem inicial. A
palavra descreve, reapresenta o
que foi percebido na situação;
não mais enuncia ações possí-
veis, mas denomina os elemen-
tos envolvidos na situação. A
criança nomeia, para si mesma
ou para outras pessoas, objetos
ou pessoas que a cercam (boneco, pedra, gato, papai, mamãe, vovó),
partes desses objetos ou dessas pessoas (nariz, boca, etc.), ações, etc.
Piaget destaca como indicador relevante das transformações da
relação da criança com a palavra o aparecimento da pergunta O que
é?, que se relaciona ao mesmo tempo com o nome de objetos ou pes-
soas particulares e com o conceito ou a classe do objeto designado
(isto é, o conjunto composto por todos os elementos referidos pela
palavra).
A nomeação, nessa fase, oscila entre a generalidade (conceito) e a
individualidade. Piaget relata um episódio envolvendo sua filha mais
velha, Jacqueline, quando tinha 3 anos e 2 meses.
Ao cruzar com um homem na rua, a criança pergunta ao pai:
— "Este senhor é um papai?"
— "Que é que é uni papai?"
Jacqueline responde:
— "E um senhor. Ele tem muitas Luciennes (nome de sua irmã
mais nova) e muitas Jacquelines."
— "Que é que são Luciennes?"
— "São meninas pequenas e as Jacquelines são meninas
grandes."
(Episódio extraído do livro A fomo{no do símbolo na criança.
p. 289.)
Ao nomear o senhor como "um papai", a criança o inclui em uma
classe genérica — a classe dos pais, composta por homens que têm fi-
lhos. No entanto, ao explicitar o conceito de pai, define-o a partir da sua
experiência particular: "um senhor que tem Luciennes e Jacquelines".
A classe, analisa Piaget, é uma espécie de indivíduo-tipo que se repete
em vários exemplares.
Do mesmo modo, o indivíduo particular, convertido em indivíduo-
tipo, tem menos individualidade. Isso se evidencia na maneira como
Jacqueline define "o que são Luciennes". Ela não enfatiza a singulari-
dade da própria irmã, nem a relação particular de parentesco que as liga.
Ela refere-se à irmã como um exemplo típico de uma categoria genérica
— a das meninas pequenas.
O mesmo acontece no episódio a seguir.
Rafael, 3 anos, ao ganhar do pai a camiseta da Seleção Brasi-
leira de Futebol, exclama: "Oba, pai! O Ronário! ".
E, ao encontrar na escola várias crianças com a camiseta da
seleção, comenta com a mãe: "Viu quanto Romário?".
(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)
A criança pensa por imagens, e são as imagens que marcam a signi-
ficação que ela atribui às palavras. O nome do indivíduo-tipo — um jo-
gador específico — é utilizado por ela para denominar um grupo de
jogadores e as camisetas utilizadas por eles.
Como a criança generaliza com base na percepção imediata de se-
melhanças e não a partir de considerações lógicas ou relacionais, suas
categorias oscilam entre a generalização e a individualização.
Os ensaios de generalização e individualizaçãotambém aparecem
em relação às estruturas da língua.
Beto, aos 5 anos, utiliza a expressão "tavo" por estava, em
frases como "Eu tavo com fome", "Eu tavo com sono ", em que ele
próprio é o sujeito. Corrigido pela mãe, ele resiste: "Não, mãe. Eu
sou menino. Menina é que fala tava".
Regina, 7 anos, ao aprender na escola a classificação das pa-
lavras segundo o gênero, pergunta à mãe ao fazer um exercício
escolar: "Mamãe, eu sou feminina porque sou menina, e mamãe...
é femulher?"
(Episódios extraídos da experiência familiar de uma das autoras.)
A criança também considera expressões relacionais, como mais
escuro ou maior, como atributos absolutos e não comparativos. Assim,
para ela mais escuro significa "muito escuro", do mesmo modo que
maior significa "muito grande".
O caráter imitativo e sincrético das primeiras palavras da criança, a
não-generalização e a não-individualidade das primeiras representa-
ções verbais estão mais próximos dos símbolos individuais do que dos
conceitos utilizados na linguagem adulta. Daí Piaget considerar os mo-
dos de elaboração da palavra pela criança como pré-conceitos.
mente o ato para reconstituir uma ação passada. A palavra deixa de ser
parte do ato para tornar-se um signo, uma evocação do ato, passando a
ter a função de representação (no sentido de nova apresentação) e tam-
bém de comunicação — a criança dirige essas narrativas a si mesma ou
a outra pessoa.
93
94 .
O desenvolvimento da elaboração conceitua) das palavras
Nós, adultos, utilizamos a linguagem conceitualmente. Os concei-
tos supõem uma definição fixa, que depende de uma convenção social
estável. Ou seja, nossas palavras não se restringem a designar determi-
nado objeto ou acontecimento. Aplicando-se a um conjunto de elemen-
tos da realidade, elas generalizam a informação sobre o objeto, incluin-
do-o em uma categoria.
Como essa generalização se baseia numa correspondência lógica,
ela não muda ao sabor das situações. Os traços comuns definidores de
uma categoria de objetos tornam-se estáveis. O caráter generalizante e
estável da palavra nos possibilita transmitir o pensamento a outra pes-
soa e sermos por ela compreendidos, bem como considerar o ponto de
vista do outro e sua experiência.
Por exemplo, ao dizer a palavra relógio, não temos em mente ape-
nas determinado relógio, e sim um tipo, uma categoria de objetos a que
essa palavra se aplica. Do mesmo modo, aqueles que nos escutam não
têm em mente um relógio específico, e sim esse tipo de objeto, que é o
que lhes permite compreender o sentido generalizante dessa palavra.
Entre os significados das palavras que utilizamos, há graus de
generalização distintos, que nos permitem estabelecer relações lógicas
entre os objetos e eventos do meio, incluindo uma categoria em outra.
Podemos nos referir, por exemplo, ao cachorro que temos em casa
como bassê, animal doméstico, ser vivo. Ao utilizarmos tais palavras,
estamos incluindo o objeto dado — o cachorro — em um sistema de
categorias, hierarquicamente organizadas, de contraposições abstra-
tas: um cão bassê não é um buldogue, nem um cachorro vira-lata; um
cachorro, como alguns outros animais, é um animal doméstico, em
oposição a outros animais que são selvagens; como animal, o cachor-
ro é um ser vivo e não um ser inanimado, etc. As expressões bassê,
animal doméstico e ser vivo mantêm entre si relações lógico-verbais
que independem das características particulares de cada objeto ou
evento em si.
vivo	 inanimado
	
1
	
1I
animal
	
vegetal
	
1	
1
animal
	
animal
	
doméstico
	
selvagem
A ausência de critérios lógicos na elaboração conceituai na criança
está exemplificada na situação de sala de aula que descrevemos e anali-
samos no capítulo 7. Naquela situação, observamos como as crianças
construíam o significado da palavra pátria: a partir das suas experiên-
cias e das imagens delas resultantes, sem considerar elementos logica-
mente pertinentes ao conceito estabelecido. Vimos também como esses
elementos flutuavam ao sabor da experiência pessoal imediata a que
eram relacionados. Por exemplo, o soldado é o elemento que define a
palavra pátria em razão de sua presença nos desfiles de 7 de Setembro
ou dos desenhos feitos na escola.
O desenvolvimento da capacidade de apreender conceitualmente a
linguagem social depende do desenvolvimento das operações de pensa-
mento, considera Piaget. As operações são ações interiorizadas que vi-
sam à explicação e à constatação. Nelas, as ações são coordenadas e
reversíveis (conforme vimos no capítulo 4).
Inicialmente, as operações desenvolvem-se em relação a situações
imediatas. A criança ainda necessita do suporte perceptivo para apreen-
der as relações lógicas, para considerar as relações de inclusão entre
parte e todo (classificação), para apreender outros pontos de vista além
da própria experiência individual (descentração). Ela elabora generali-
zações a partir de exemplos concretos.
As características dos modos de pensar da criança nesse período
não derivam das categorias lógicas da linguagem. A linguagem facilita,
segundo Piaget, a generalização do pensamento, mas não é sua fonte.
Piaget relata que diversos- estudos possibilitaram perceber que as
crianças resolvem vários problemas, embora tenham dificuldade para
explicar verbalmente o raciocínio que lhes permite chegar à solução, ou
seja, elas não conseguem transpor em palavras toda a atividade mental
que já sabem colocar em atos.
Somente na adolescência, o indivíduo torna-se dotado do raciocí-
nio dedutivo-hipotético, que lhe permite fazer considerações e racio-
cinar apenas no plano representativo, atingindo plenamente o pensa-
mento operatório. Nesse estágio, no qual as operações não se cons-
troem mais sobre os objetos, sobre as situações imediatas, mas sobre
proposições, a linguagem torna-se urna condição necessária do pensa-
mento, passando a fazer parte dele. E nessa fase que os indivíduos tor-
nam-se capazes de apreender conceitualmente a linguagem social.
Vygotsky e a elaboração conceitua) —
o desenvolvimento do significado da palavra na criança
Diferentemente de Piaget, Vygotsky considera que a elaboração
conceituai pela palavra, desenvolvida culturalmente pelos indivíduos
como forma de refletirem cognitivamente suas experiências, não ocorre
naturalmente na criança. Ela começa nas fases mais precoces da infân-
cia, por meio do emprego da função mais simples da palavra — a no-
cavalo cachorro gato
bassê
I1
"Roy"
	
"Chiquinho"
ovelheiro
95
A palavra
desenvolve-se
gradualmente na
criança, desde os
seus primeiros
meses de vida.
96
meação —, e seu desenvolvimento depende das possibilidades que cada
indivíduo tem (ou não) de compartilhar e elaborar em suas interações os
conteúdos e as formas de organização dos conceitos.
As primeiras palavras
Segundo pesquisas conduzidas por vários psi-
cólogos e apresentadas por Luria no livro Pensa-
mento e linguagem (1987: capítulo 3), a função
denotativa (função de nomeação) da palavra de-
senvolve-se gradualmente na criança desde seus
primeiros meses de vida, entrelaçada com fatores
não-verbais.
Pouco a pouco, a criança responde ao que os
adultos dizem a ela voltando o olhar para os obje-
tos nomeados ou tentando alcançá-los. Inicialmen-
te o significado da palavra depende da situação em
que a criança se encontra ao ouvi-la, da pessoa que
a pronuncia, da entonação de voz utilizada, do em-
prego (ou não) de gestos, etc. Gradualmente, cada
um desses fatores situacionais enumerados vai dei-
xando de ter influência decisiva na compreensão
da palavra. Por volta dos 3 anos de idade, ela reage
de modo seletivo ao objeto nomeado, independen-
temente da situação.
O mesmo processo acontece quanto à utilização da palavra. Dife-
rentemente dos primeiros sons que a criança emite, que são manifesta-
ções de seu estado emocional, suas primeiras palavras são tentativas de
reprodução dos sons assimilados da fala do adulto. Essas primeiras pa-
lavras estão fortemente vinculadas à atividade em que a criança está
envolvida. Seu significado é difuso,uma vez que seu referente (o objeto
ou a pessoa que a palavra nomeia) muda conforme a situação em que
elas são pronunciadas.
Rafael, aos 8 meses, utilizava a expressão bá, para nomear o
irmão (Beto), a mãe e o pai sempre que estes se aproximavam dele,
e também para chamá-los quando estavam distantes, mas dentro de
seu campo visual. A expressão bá, acompanhada do gesto de apon-
tar, era utilizada também com a finalidade de indicar; para qualquer
pessoa, algum objeto que ele desejava que alcançassem para ele.
Gradativamente, Rafael passou a utilizar a expressão bá ape-
nas para referir-se ao irmão. Bá se diferenciou de mã e pá, que ele
começou a empregar para designar o pai e a mãe (e há que se des-
tacar; nesse caso, a persistência do irmão em ensinar Rafael a dizer
as palavras mamãe e papai). Depois, novas palavras passaram a
indicar aquilo que ele desejava, até que, quando Rafael chegou aos
3 anos, o próprio irmão deixou de ser bá, passando a ser Beto.
(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)
A função designativa da palavra, por mais simples que pareça, é
produto de um longo desenvolvimento. Inicialmente, a palavra está vin-
culada à situação em que é ouvida e utilizada. Ela passa a ter uma referên-
cia estável, embora conserve ainda sua ligação com a ação prática, so-
mente quando a criança atinge mais ou menos os 3 anos (Luria: 1987).
A elaboração das funções analítica e generalizadora
da palavra
Quando a palavra adquire uma referência estável, o desenvolvi-
mento de seu significado ainda não está concluído. Embora sua função
designadora pareça ser constante e a mesma para um adulto e uma
criança, permitindo que ambos se comuniquem, suas funções analítica
e generalizadora sofrem profundas transformações à medida que o indi-
víduo avança no domínio das operações intelectuais culturalmente de-
senvolvidas.
Vejamos uma situação que nos ajuda a perceber essas diferenças de
elaboração.
Voltando da escola, a mãe conversava com Eduardo, seu filho
de 3 anos.
Mãe: Quando a gente chegar em casa, vamos brincar?! .
Filho (emburrado): Não quero...
Mãe: Ah..., vamos jogar bingo!
Filho: Não quero!
Mãe: 1h, bobinho. Bingo é uma delícia!
Filho (olhando espantado para a mãe): E de comer?
(Episódio narrado pela mãe a uma das autoras.)
O adjetivo delícia, utili-
zado pela mãe, tem uma re-
ferência estável tanto para
ela quanto para a criança:
ambos revelam, na interlo-
cução, que aplicam esse qua-
lificativo a determinados ti-
pos de situação da realidade.
E possível perceber também,
na dinâmica enunciativa, que
os dois elaboram a palavra
delícia de forma generali-
zante: para a mãe, delícia é
um qualificativo que se apli-
ca a coisas ou situações que produzem deleite; para a criança, delícia é
um qualificativo que se aplica a alimentos gostosos. A diferença está no
grau de generalização que a palavra tem para cada um dos
interlocutores: mais amplo para a mãe e mais restrito para a criança.
Em um diálogo,
mãe e filho
expressam
diferentes graus
de generalização
de uma mesma
palavra.
7
98
Como destaca Vygotsky, o conceito ligado a uma palavra sempre
representa um ato de generalização, qualquer que seja a idade da pes-
soa. Mas essa generalização se amplia à medida que os contextos vão
sendo diversificados e as funções intelectuais complexas, como a abs-
tração e a generalização, vão sendo elaboradas e consolidadas. Nesse
sentido, diz-nos Vygotsky, "quando uma palavra nova é aprendida pela
criança, o seu desenvolvimento mal começou" (1987: 71).
Gustavo, de 6 anos, era o garoto menor da turma de futebol da
rua. Apesar da diferença de idade, os garotos de 8 a 10 anos o
aceitavam, porque era bom de bola e se enquadrava às exigências
da turma: não reclamava e esperava sua vez de jogar.
Um dia, ele contou para a mãe a grande dificuldade por que
passara para descobrir o significado de uma palavra muito utiliza-
da pelos meninos durante o jogo. A palavra era frangueiro. Ela lhe
causava estranheza porque ele a associava apenas a frangos ("Eu
pensava que era o lugar de vender frango"), e não ao futebol. Ele
não podia perguntar aos meninos o que eles queriam dizer com
aquela palavra, pois seria alvo de gozações.
Assim, decidiu ficar atento às situações do jogo para tentar
entender em que momentos a palavra era usada. O que acontecia
durante as jogadas para que alguém a pronunciasse?
Depois de observar por vários dias, Gustavo chegou à conclu-
são de que a palavra estava relacionada ao goleiro que deixava
passar a bola e, na primeira oportunidade que teve, berrou:
"Frangueiro! ".
— Daí, mãe, eu vi que eu tinha aprendido. Sabe por quê? Por-
que eles viraram pra mim e disseram "Aí, Gutão! ".
(Episódio lembrado e relatado por Esteta, mãe de Guto, a uma das
autoras.)
No processo de elaboração do significado, o indivíduo explora o
material sensorial e opera intelectualmente sobre ele, orientado pela
palavra em funcionamento nas interações. A palavra aprendida, fran-
gueiro, suscita imagens (frango) e associações (lugar de vender frango)
das quais a criança lança mão para apreender seu sentido. Como o con-
texto não comporta essas primeiras tentativas de significação, a palavra
passa a dirigir as observações da criança, que centra ativamente sua
atenção nas situações do jogo e nas enunciações nele envolvidas.
As situações não revelam por si mesmas os possíveis significados
da palavra frangueiro. É preciso analisá-las, compará-las. O que dife-
rencia as situações em que a palavra é empregada daquelas em que não
é? Qual a semelhança entre todas as situações em que a palavra é utili-
zada? Nesse processo de observação e análise, algumas peculiaridades
se fazem notar: frangueiro é uma palavra dirigida ao goleiro, e não a
outros jogadores; frangueiro é uma palavra dirigida ao goleiro em de-
terminadas situações, e não em outras. A criança analisa e generaliza,
começando a ter uma idéia vaga do significado da palavra. Sente neces-
sidade de usá-la, e, ao fazê-lo, o grupo confirma a adequação do signifi-
cado esboçado, fortalecendo-o. A palavra agora lhe pertence: "Daí,
mãe, eu vi que eu tinha aprendido".
Funções intelectuais básicas — atenção, formação de imagens, as-
sociação, comparação, inferências — participam da elaboração do sig-
nificado da palavra, associadas a ela. A palavra funciona como meio
para centrar ativamente a atenção, para abstrair e selecionar os traços
relevantes na situação considerada (análise), para estabelecer relações
entre esses traços e sintetizá-los (generalização).
Por pressupor a articulação entre funções intelectuais complexas,
como a generalização e a análise, que não podem ser dominadas na
aprendizagem inicial, o processo de elaboração conceitual desenvolve-
se na infância por meio do pensamento por complexos e dos conceitos
potenciais.
O pensamento por complexos e os conceitos potenciais
O pensamento por complexos cria as bases para a generalização.
Nesse tipo de pensamento a criança busca estabelecer relações entre os
elementos da realidade, unificar impressões dispersas. Por exemplo, ela
pode definir a palavra supermercado como o lugar onde a mãe compra
doces, bolachas, iogurte, sucos. Nesse caso, a palavra é elaborada com
base no sentido afetivo que o supermercado tem para a criança. Ela tam-
bém pode definir a palavra como um lugar grande e movimentado aon-
de vai com os pais para fazer compras. Nessa situação, a palavra super-
mercado é elaborada com base na imagem direta do supermercado con-
creto e na situação real de compra.
No pensamento por complexos, a palavra evoca e agrupa uma série
de elementos e situações da realidade não apenas em razão das impres-
sões subjetivas da criança, mas também das relações que de fato exis-
tem entre esses elementos nos seus contextos de uso (os supermercados
são realmente lugares de compra, onde doces, bolachas, iogurte e sucos
são encontrados).
Segundo Vygotsky, a diferença principal entre um pensamento por
complexos e um conceito está no tipo de relação que une os elementos
numa palavra. No pensamento porcomplexos as relações estabelecidas
são concretas, factuais e tão diversas quanto os contatos e as relações
que de fato existem entre os elementos da realidade. Diferentemente, o
conceito ancora-se em relações lógicas, cujo grau de generalização ul-
trapassa as relações imediatas.
Voltando ao exemplo do supermercado, ao procurarmos no dicio-
nário essa palavra, encontramos uma definição como esta: "Loja de
auto-serviço, onde em ampla área se expõe à venda grande variedade de
mercadorias, particularmente gêneros alimentícios, bebidas, artigos de
limpeza doméstica e perfumaria popular" (Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio 99:
i0
de Janeiro, 1986). A definição conceituai da palavra supermercado
comporta o complexo elaborado pela criança, mas o ultrapassa em mui-
to. Ela remete a um tipo de sistema de compra (auto-serviço), que é
parte de um sistema social de troca (o comércio), que é parte de um
sistema econômico (modo socialmente organizado de produção e distri-
buição). Na elaboração conceituai da palavra, as relações imediatas e
parciais integram-se e subordinam-se a relações lógico-verbais, que
abarcam muito mais elementos da palavra, generalizando-a.
Embora a busca de ligações seja o traço distintivo do pensamento
por complexos, para chegar a elas a criança dá seus primeiros passos na
análise: ela destaca alguns elementos na totalidade da experiência com
base no grau máximo de semelhança entre eles. Ela isola essa seme-
lhança, tomando-a como atributo para definir a palavra.
No caso da palavra supermercado, por exemplo, um traço distinti-
vo que costuma aparecer nas elaborações das crianças é a função social
de lugar de compra, ainda que por trás dessa idéia estejam relações
afetivas e a imagem imediata do próprio supermercado.
Podemos encontrar outro exemplo desse processo de elaboração
conceituai na situação de sala de aula descrita no início do capítulo 7.
Ao definirem pátria como "coisa de soldado", as crianças elaboram um
pensamento por complexos com base em elementos comumente pre-
sentes em eventos e situações da vida real (os desfiles, os desenhos) por
elas agrupados na palavra.
O trabalho mental de destacar um elemento da totalidade e tomá-lo
como critério para conferir o significado à palavra é uma característica
do pensamento analítico e também a marca distintiva dos conceitos po-
tenciais. Eles resultam de "uma espécie de abstração isolante", segundo
as palavras de Vygotsky (1987: 67), uma vez que as características dos
elementos e situações da realidade não são consideradas em conjunto.
A palavra é elaborada com base em apenas uma semelhança perce-
bida. Além disso, o elemento que foi privilegiado num dado momento
para dar significado à palavra não é estável, podendo ser substituído por
outro. Na elaboração da palavra pátria como um pensamento por com-
plexos, por exemplo, o elemento destacado foi soldado, mas poderia ser
a bandeira, que também é um elemento recorrente nas atividades come-
morativas relativas à Semana da Pátria e aparece com freqüência nos
enunciados das crianças.
A diferença entre um conceito e os conceitos potenciais está no
modo como o atributo (o critério) que os define é estabelecido. Num
conceito potencial, um atributo único é estabelecido com base na máxi-
ma semelhança entre os elementos ou situações designados pela pala-
vra. Num conceito, distintos elementos são agrupados de acordo com
um conjunto de atributos comuns a todos os elementos que podem ser
reunidos sob sua denominação.
No conceito, a abstração — que caracteriza os conceitos potenciais
— e a generalização — que caracteriza o pensamento por complexos —
combinam-se. "Um conceito só aparece quando os traços abstraídos são
sintetizados novamente, e a síntese abstrata daí resultante torna-se o
principal instrumento de pensamento" (Vygotsky, 1987: 68). A palavra
passa a ser usada com referência a categorias abstratas. Sua nova função
torna-se codificar a experiência, os objetos e situações do mundo em
esquemas conceituais.
Para exemplificar essas características dos conceitos, basta recor-
darmos as definições dicionarizadas de supermercado e de pátria já
apresentadas neste capítulo. Elas envolvem as experiências que as crian-
ças destacam em suas elaborações, mas as superam em generalidade.
O papel do outro no desenvolvimento da
elaboração conceitua)
As mudanças nas formas de utilização e de compreensão das pala-
vras ao longo do desenvolvimento da criança são produzidas nas suas
interações verbais com os adultos, crianças mais velhas e produtos cul-
turais (livros, revistas, jornais, TV, propagandas, etc.). Nessas relações,
a criança integra-së ao fluxo da comunicação verbal, adquirindo novas
palavras e ampliando as possibilidades de significação daquelas que já
conhece.
Beto, aos 7 anos, perguntou um dia à mãe:
— Frágil é perigoso?
A mãe, sem entender a indagação da criança, quis saber o mo-
tivo da pergunta.
— Por que você está me perguntando isso?
— E porque aqui nesta caixa está escrito CUIDADO, FRÁGIL.
(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)
A criança lê ou ouve palavras desconhecidas em contextos com-
preensíveis e vai formando uma idéia vaga do seu significado, vai ajus-
tando os significados elaborados de modo a aproximá-los dos conceitos
predominantes no grupo cultural e lingüístico de que faz parte.
Em suas relações, crianças e adultos compartilham palavras que
em termos práticos significam a mesma coisa para ambos. Ou seja, há
uma coincidência de conteúdo (aspecto da realidade ao qual a palavra
se-aplica) entre as palavras utilizadas pela criança e pelo adulto. No
entanto, quanto à generalização e à abstração contidas na palavra, essa
coincidência não se verifica.
Mariana, de 7 anos, vinha encontrando grandes dificuldades
para resolver os problemas de Matemática na escola. A mãe, pro-
fessora, dispôs-se a ajudá-la. Leram juntas o primeiro problema
da tarefa: "Mamãe foi ao supermercado e comprou 1 quilo de car-
ne por 4 reais, 10 pães por 1 real e 2 litros de leite por 2 reais.
Quanto mamãe gastou?".
Adultos e
crianças podem
empregar a
mesma palavra
mas com
diferentes
significados.
102
Após a leitura, a mãe perguntou à menina:
— Então, Mari, qual a continha que nós temos que fazer?
— De menos, mãe.
A mãe, surpresa, contestou:
— De menos... Por que de menos? Olha bem, a pergunta do
problema é: quanto a mamãe gastou...
— Então, mãe!!! Quando a gente gasta a gente não fica com
menos dinheiro?
(Episódio relatado pela mãe de Mariana num curso para profes-
sores, ministrado pelas autoras.)
Se, por um lado, a coincidência de con-
teúdo da palavra permite a comunicação entre
adulto e criança, por outro, a diferença na ela-
boração do significado possibilita que a crian-
ça desenvolva seus conceitos.
Ao interagir com a criança, os adultos ou
as crianças mais velhas apresentam a ela, de
forma deliberada ou não, significados estáveis
ou sentidos possíveis de determinada palavra
no seu grupo social. Embora não transmitam à
criança seu próprio modo de pensar, nem pos-
sam "controlar" o modo de pensar dela, sua
alocução verbal interfere na atividade da cri-
ança de diferentes formas.
A palavra do outro ajuda a criança a ela-
borar o significado de novas palavras (como
nos episódios envolvendo Beto e Guto). Ao se
encontrar com aquelas que a criança já tem
elaboradas, explicita-as, confirma-as ou colo-
ca-as em questão (como no caso de Mari e da criança do episódio do
bingo). A criança pode assumir a palavra do outro, imitando-a, utilizan-
do-a com sua ajuda, ou pode recusá-la.
(Episódio extraído da experiéncia familiar de uma das autoras.)
Comida e sopa são palavras que nomeiam coisas distintas para a
criança. Ela não estabelece entre as coisas nomeadas e as palavras utili-
zadas nenhuma relação de inclusão. Na situação descrita, na qual se
decidia sobre o que comer no almoço, Rafael recusa a inclusão apresen-
tada pela mãe: a sopa pode ser uma comida, mas é uma sopa também. A
sopaapresentando seus princi-
pais teóricos e uma amostra das pesquisas que as fundamentam, e apon-
taremos as influências que exerceram e ainda exercem na escola e no
trabalho pedagógico.
No capítulo 6, discutiremos as relações entre teoria e prática.
A psicologia na escola
Escola é lugar de aprender. E de ensinar
É também lugar de tomar merenda, de jogar futebol, de fazer fila,
de ficar triste ou se alegrar. As crianças escrevem, somam ou subtraem,
copiam, perguntam. Elas brigam, choram, se machucam. Fazem gran-
des amigos. O professor explica a lição, lê histórias, pega na mão da
criança que começa a escrever. Ele também grita, fica bravo, perde a
calma. Tem que fazer chamada, corrigir prova, preparar aula, preencher
papelada. As crianças às vezes têm fome, às vezes estão doentes, às
vezes estão sadias
e felizes. De onde
elas vêm? Do bairro
ao lado, da favela
ali em cima, do ou-
tro lado da avenida,
do sítio a alguns
quilômetros. Falta
lápis e, por vezes,
até o sapato. Trinta
(ou quarenta?) em
cada sala. Lousa
nova, lousa gasta.
Carteiras meio que-
bradas. O diretor se
preocupa com a re-
forma do prédio,
orienta e fiscaliza
os professores, tem um monte de papel para assinar, é homenageado na
formatura. Na escola tem mais gente: merendeira, servente, secretário,
inspetor... O salário está baixo. A vida está dura. Mas escola é lugar de
ensinar e de aprender.
Escola: espaço
de aprender e de
brincar.
4
Quando pensamos na complexidade de tudo o que ocorre na esco-
la, percebemos a multiplicidade de relações em que está envolvido o
"ensinar e aprender". Relações econômicas e materiais, relações sociais
e institucionais, relações entre conteúdos e métodos de ensino, crenças,
concepções, teorias. O cotidiano da escola é sempre permeado por tudo
isso e, dessa forma, não é tarefa simples procurar apreendê-lo, analisá-
lo, compreendê-lo.
A escola tem uma longa história. Em cada período histórico ela
assume novas características quanto a funções, funcionamento, idéias e
concepções que embasam suas práticas. As transformações dessas ca-
racterísticas sempre se relacionaram a mudanças da sociedade: mudan-
ças econômicas, políticas, sociais e ideológicas.
O que acontece na escola é, assim, determinado por uma diversida-
de de fatores, o que faz com que a educação escolar seja objeto do inte-
resse e de pesquisas de várias ciências: a psicologia, a economia, a so-
ciologia, a história, entre outras.
Cada uma delas, de acordo com suas especificidades, produz análi-
ses de aspectos determinados da educação escolar, sem que nenhuma
consiga (ou mesmo pretenda) isoladamente dar conta da complexidade
da prática pedagógica.
A psicologia e a educação escolar
A psicologia é apenas uma entre as ciências que concorrem para a
reflexão sobre a educação escolar. Sendo uma das ciências que estudam
o homem, a psicologia tem se ocupado de uma grande variedade de
temas: a afetividade, o desenvolvimento da criança, a velhice, a apren-
dizagem, as relações sociais e institucionais, a deficiência mental, as
relações de trabalho, a saúde mental, entre outros.
Muitas das pesquisas e teorias psicológicas que têm servido à prá-
tica pedagógica não foram elaboradas com esse objetivo. Assim, as
questões e interesses dos psicólogos são às vezes mais abrangentes e às
vezes mais restritos do que aqueles colocados pelos agentes do proces-
so educacional. Esses dois âmbitos, o psicológico e o pedagógico, rara-
mente coincidem; portanto, não podem ser confundidos.
Considerando que o papel social da escola é essencialmente defini-
do pelo processo de transmissão/assimilação do conhecimento, enten-
demos que as contribuições fundamentais da psicologia à prática peda-
gógica são aquelas que podem lançar luz sobre alguns aspectos do "en-
sinar e aprender".
O que é ensinar? Como a criança aprende?
Essas são questões importantes quando se objetiva construir uma
prática pedagógica que possa garantir a todas as crianças um processo
de aprendizagem significativo.
Todos nós já temos,
em alguma medida, res-
postas a essas questões.
Se nos perguntarmos,
por exemplo, como se
aprende a fazer bolo,
uma infinidade de res-
postas pode aparecer: a
gente aprende fazendo,
seguindo uma receita,
vendo outra pessoa fa-
zer, seguindo as orienta-
ções de alguém. Quan-
do o primeiro bolo não
dá certo, podemos ainda
dizer que "errando é que
se aprende".
E ensinar, o que é? Como se ensina? Novamente uma série de res-
postas acaba emergindo: ensinar é transmitir conhecimentos, técnicas,
valores, é deixar o outro fazer, orientando, explicando, "dando a recei-
ta", fazendo junto...
Quando se trata de criança, as idéias que temos sobre aprendiza-
gem quase sempre se relacionam ao seu desenvolvimento, já que habi-
tualmente admitimos que aprendizagem e desenvolvimento são proces-
sos, de alguma forma, inter-relacionados.
Quando dizemos, por exemplo, que, para ensinar à criança uma
coisa determinada, é preciso esperar que ela amadureça ou atinja uma
certa idade, estamos subordinando a aprendizagem ao desenvolvimen-
to. Ou seja, admitimos que para aprender é necessário determinado ní-
vel de desenvolvimento. Por outro lado, sempre ouvimos dizer que o
ensino deve promover o desenvolvimento da criança.
Embora a gente conheça, em decorrência de nossa própria expe-
riência, muita coisa sobre o ensinar, sobre o aprender e suas relações
com o desenvolvimento, quando se trata de desenvolver uma ação
educativa intencional, de escolher os métodos, um grande número de
questões acaba aparecendo.
Fonte: Nova Escola, maio/91.
A escola é mu
espaço essencial-
utente de
relações sociais
de rocas.
Representações
de crianças na
Roma antiga
(século f!).
Será que, se o professor explicar direitinho, a criança aprende?
Como explicar as coisas para uma criança? E se a deixarmos agir, mon-
tar quebra-cabeça, brincar com pedrinhas, estará aprendendo? O que ela
estará aprendendo? E, se a criança não aprende, será sinal de algum
distúrbio? Com quantos anos uma criança pode ser ensinada a ler?
Quais são os pré-requisitos para aprender a adição?
E sobre esse tipo de questões que a psicologia pode ajudar a refletir,
uma vez que, no decorrer de sua história, ela tem enfocado como obje-
tos de estudo o desenvolvimento humano, os processos de aprendiza-
gem e a própria criança, além de ter produzido conhecimentos que cer-
tamente contribuem para a compreensão do processo de apropriação/
elaboração do conhecimento.
O estudo científico da criança: um pouco de história
A preocupação com o estudo da criança é bastante recente na histó-
ria da humanidade. Aliás, a própria idéia de criança, tal como a conce-
bemos hoje (como um ser que tem necessidades, interesses, motivos e
modos de pensar específicos), não existia antes do século XVII.
Até então, as crianças eram consideradas adultos em mi-
niatura. Esse modo de conceber a criança pode ser percebido
nas suas representações em pinturas. Nas ilustrações desta pá-
gina, por exemplo, vê-se a representação de um jogo de bolas
entre meninos e de um menino aprendendo a andar em um
andador, feitas em uma tumba subterrânea, em Roma, no sécu-
lo II. Repare como os meninos são representados: as propor-
ções e formas do corpo se assemelham às de uma pessoa adul-
ta, de tal modo que
não encontramos ne-
nhum traço que indi-
que qualquer especifi-
cidade da criança em
relação ao adulto.
A convivência
com um índice de
mortalidade infantil
extremamente alto fa-
zia com que a morte
das crianças fosse
considerada natural e
que a duração da in-
fância fosse limitada a
um período muito cur-
to na vida dos indivíduos. Ela correspondia ao período em que, para so-
breviver, a criança necessitava de cuidados físicos. Quando sobrevivia,
com 6 ou 7 anos, após o desmame tardio, a criança "tornava-se a compa-
nheira natural do adulto" (Ariès, 1981), com quem passava a conviver o
tempo todo. Participava das atividades do adulto, compartilhando com
ele o trabalho nos campos ou nos mercados, os jogos e as festas.
O avanço das descobertas científicas tornounão perde a sua peculiaridade, a sua condição de sopa.
As palavras não são apenas lógicas, do mesmo modo que a
interlocução não é apenas troca de informações. Nas relações sociais há
interesses em jogo. As palavras não são neutras, elas apenas têm uma
face neutra, conforme nos ensina o poeta. Com elas negociamos senti-
dos ("trouxeste a chave?").
E no movimento interativo, assumindo ou recusando a palavra do
outro, que a criança (e não só ela, mas qualquer um de nós) organiza e
transforma seus processos de elaboração do significado das palavras,
desenvolvendo-se. Nesse processo, ela apreende e começa a elaborar as
operações intelectuais complexas presentes na palavra, praticando o
pensamento conceitual antes de ter uma consciência clara da natureza
dessas operações.
O desenvolvimento da elaboração conceitual da palavra não é re-
sultado de um processo individual e estritamente intelectual (cogni-
tivo). Ele é resultado da prática social da criança nas diferentes institui-
ções sociais.
Nesse sentido, aponta Vygotsky, o aprendizado precede o desen-
volvimento.
Esse modo de conceber a relação entre desenvolvimento e aprendi-
zado é oposto ao adotado por Piaget, que considera o desenvolvimento
condição para o aprendizado. Segundo Piaget, tudo o que a criança re-
cebe do exterior, por transmissão familiar, escolar, educativa em geral,
constitui o aspecto psicossocial do desenvolvimento. Este só pode ser
explicado pelo desenvolvimento espontâneo (ou psicológico) da crian-
ça, que corresponde a tudo que ela aprende por si mesma, sem que lhe
seja ensinado, ao que ela descobre sozinha.
Vygotsky e Piaget apresentam dois modos distintos de olhar o hu-
mano em suas relações e transformações. Que facetas a prática pedagó-
gica nos revela, quando a olhamos através de uma ou outra dessas duas
concepções? E o que veremos no próximo capítulo.
Rafael, aos 5 anos, conversando sobre o que gostaria de co-
mer no almoço, contesta da seguinte forma a sugestão da mãe:
— Sopa, não! Eu quero comida!
— Mas a sopa é uma comida, Rafa!
— Tá bom, a sopa é uma comida, mas é uma sopa também!
,;
103
104
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Sintetize o desenvolvimento da linguagem na criança segundo a con-
cepção de Piaget, destacando as características da linguagem e o pa-
pel desempenhado por ela ao longo do desenvolvimento da inteli-
gência.
2. Sintetize o desenvolvimento da linguagem na criança segundo a con-
cepção de Vygotsky, caracterizando os seguintes pontos: o papel da
palavra, o papel do outro e o papel do sujeito.
3. Enumere as semelhanças e as diferenças básicas entre o pensamento
de Piaget e o de Vygotsky acerca do desenvolvimento do significa-
do da palavra na criança. Faça um resumo comparativo do processo
de elaboração de conceitos pelo qual, segundo esses dois autores, a
criança passa.
Exercitando a análise
A seguir são descritos dois momentos de relação da criança com
a palavra. Procure analisá-los prestando atenção aos modos como a
criança elabora a palavra e aos modos de participação do outro na
situação.
Situação n° 1
Livro de Matemática da 1! série, página de problemas.
Mamãe está pendurando roupa no varal. Para cada peça ela
usa dois prendedores. Ela já pendurou seis peças de roupa.
Quantos prendedores usou?
Resposta: 12 (resposta da criança).
Por quê? "Pra roupa não voar" (resposta da criança).
Situação n? 2
A professora escreve na lousa "A mamãe afia a faca" e pede
para uma criança ler. A criança lê corretamente.
Um adulto pergunta à criança:
— Quem é a mamãe?
— É a minha mãe, né?
— E o que é "afia"?
A criança pensa, hesita e responde:
— Sou eu, porque ela (a mamãe) diz: "vem cá, minha fia "i
A professora, desconcertada, intervém:
— Não, afia é amola a faca!
(A criança na fase inicial da escrita. Ana L. B. Smolka. São Paulo:
Conez; Campinas: Ed. da Unicamp, 1988.)
Em pequenos grupos, discutam as análises feitas. Depois, confron-
tem as análises dos grupos, complementando e apurando a argumentação.
Trabalho de campo
Os episódios descritos na atividade anterior apontam um caminho
interessante para um trabalho de observação e registro.
As práticas cotidianas dos adultos que trabalham com crianças são
marcadas pelas concepções que eles têm tanto a respeito do processo de
elaboração do conhecimento e da palavra como do seu próprio papel
nesse processo. Essas concepções determinam as condições de elabora-
ção que eles possibilitam à criança e os modos como participam de suas
elaborações.
Com a classe dividida em três grandes grupos, observem como as
crianças elaboram as palavras em suas relações com os adultos e com
outras crianças, nas creches e nas escolas.
• O grupo 1 se encarregará de observar bebês e crianças de até 2 anos
de idade. Deverá ser observado como os adultos interagem com es-
sas crianças e em que momentos; o que falam com elas e como falam
a elas. E também os comportamentos da criança, suas reações não-
verbais, as suas primeiras palavras.
Será interessante, ainda, dar atenção às relações entre as crianças
que já brincam juntas, as que disputam espaço e a atenção do adulto.
Como se dão essas relações?
• O grupo 2 observará as crianças dos diferentes ciclos da pré-escola.
Deverá estar atento às condições de interação verbal, aos modos de
participação do adulto e da criança. O trabalho ficará mais interessan-
te se diferentes momentos da rotina escolar (as atividades de roda, os
brinquedos, os jogos ou desenhos, o lanche, a hora do parque, contar
e.ouvir histórias, etc.) forem observados, assim como os momentos de
interação entre as crianças.
As questões que podem direcionar a atenção do grupo são as mesmas.
• O grupo 3 observará as quatro séries iniciais do 1? grau. O trabalho
de observação deverá ser do mesmo tipo do desenvolvido pelos ou-
tros grupos.
Observação:
Para facilitar o trabalho de coleta de dados, cada grupo poderá organi-
zar, com base nas informações contidas no texto e com a orientação do pro-
fessor, um roteiro com questões ou itens aos quais deverão estar atentos. 105
As formas de registro poderão ser várias: em diário de campo, gra-
vação em vídeo e gravação em áudio. O material gravado, depois de
ouvido e visto atentamente, deverá, pelo menos em parte, ser transcrito. Capítulo 9
106
Organizando e analisando os dados
À fase de observação e registro segue-se a de organização e análise
dos dados obtidos pelo grupo.
Lembrem-se de que o trabalho de análise envolve a comparação
dos dados, observando-se o que há de comum entre eles, sua classifi-
cação, o estabelecimento de relações (inferências e generalizações).
Isso sempre à luz dos princípios teóricos e dos objetivos que nortearam
a observação (nesse caso, os modos de elaboração da palavra pela
criança, as condições em que eles se processam e a participação que
neles tem o outro).
Convém que todo esse trabalho seja documentado num relatório
socializado com os outros grupos.
Havendo tempo, seria interessante organizar sessões de apresen-
tação e debate do trabalho de cada grupo, sendo conveniente uma leitura
anterior do relatório do grupo que vai fazer a apresentação, anotações de
dúvidas, pontos a serem esclarecidos e questionamentos a serem feitos.
Sugestão de leituras
LURIA, A. Pensamento e linguagem — As últimas conferências. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1987.
OLIVEIRA, M. K. de. Vygotsky. São Paulo: Scipione, 1993. (Em especial
os capítulos 3, Pensamento e linguagem, e 4, Desenvolvimento e
aprendizado.)
PIAGET, J. A construção do real na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar,
1975.
VYGOTSKY, L. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes,
1987. (Em especial os capítulos 5 e 6.)
O papel da escola
Certamente você já ouviu mais de uma vez a afirmação "Escola é
lugar de aprender". Crianças, jovens e adultos aprenderam, na escola, a
ler, a escrever, a contar e tiveram acesso a muitas informações e concei-
tos sobre o homem, a natureza, a sociedade, a língua que falamos. Os
conceitos queaprendemos na escola, nas diferentes disciplinas, sao par-
tes de teorias que buscam explicar e comprovar os fenômenos da natu-
reza e os fatos sociais. Eles são organizados conforme uma lógica que
procura garantir-lhes coerência interna, e sua elaboração requer a utili-
zação de operações complexas (como a comparação, a classificação, a
dedução, etc.) de transição de uma generalização para outras.
Na pedagogia tradicional, que herdamos do século XIX, considera-
va-se que os conceitos científicos não tinham nenhuma história interna,
sendo transmitidos prontos à criança e memorizados tal qual por ela.
Grande parte dos méto-
dos de ensino ainda utilizados
em nossas escolas baseia-se
nessa concepção. Ensinam-se
às crianças os conceitos cien-
tíficos, transmitindo-se a elas
seu significado por meio de
definições. Essas definições
são, então, utilizadas em uma
série de exercícios para trei-
namento e memorização. Pela
repetição dos exercícios, a de-
finição é fixada (memoriza-
da) e utilizada (reproduzida)
pela criança, além de reco-
nhecida na fala de seus interlocutores. Nas séries iniciais, a quantidade
de informações e detalhes fornecida é menor. A cada etapa da esco-
larização, o mesmo conjunto de informações vai sendo retomado e
complementado. Conhecimento e desenvolvimento são processos cu-
mulativos: acumulamos informações e significados.
Há diferentes
formas de se
apresentarem os
conceitos
científicos.
107
Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1970. v. 2.
Nesse modo de considerar o ensino, está contida uma concepção de
linguagem segundo a qual os significados das palavras estão fixados na
língua e se impõem ao indivíduo. Daí a importância atribuída à exposi-
ção das informações pelo professor (ou pelo livro didático), considera-
da determinante para o aprender. A expressão da criança e suas elabora-
ções próprias não são levadas em conta. A história dos conceitos, as
transformações por que passam, os sentidos que evocam e provocam
nos alunos, as experiências anteriores dos alunos com essas palavras,
também não são tidos como questões relevantes, porque os atos de
compreensão e de expressão (fala) que não seguem a norma vigente são
considerados deformações da língua, erros.
Assim, o modo pelo qual a criança responde às questões escolares,
como a relativa à definição de pátria, por exemplo, revela se ela apren-
deu (reconhece) ou não, se "entendeu" ou não a exposição do professor.
Alguns professores, ao ouvirem as crianças definindo pátria como
"coisa de soldado" e considerando que elas não entenderam o conceito,
podem achar graça dos seus dizeres, que passam a compor o anedotário
escolar. Outros vêem na resposta a revelação de que as crianças não
aprenderam aquilo que se esperava que tivessem aprendido, pois, sendo
alunos da 3! série, seguramente, nos anos anteriores, ouviram falar so-
bre o tema, tiveram acesso àquele conceito e, no entanto, não respon-
dem de modo adequado à expectativa escolar.
Os dizeres das crianças julgados como "falta de entendimento" le-
vam a conseqüências: criança que não entende e não aprende precisa
estudar mais, precisa prestar mais atenção, ou então "repete o ano".
No entanto, como procuramos destacar no capítulo 7, a palavra não
é transparente, nem tem um único significado. "Ela tem mil faces secre-
tas sob a face neutra...", como disse Drummond.
Sua multiplicidade se deixa entrever nos dizeres espontâneos das
crianças (algo que acontece em todas as salas de aula, quer os professo-
res queiram e reconheçam, quer não). Eles nos revelam como as crian-
ças procuram ativamente apreender o sentido da fala do adulto relacio-
nando com suas experiências o que foi dito, evocando sentidos nem
sempre esperados ou reconhecidos por nós.
108
	
Piaget e Vygotsky, dando importância à atividade do indivíduo no
processo de conhecimento, refutam os pressupostos da pedagogia
tradicional: os conceitos têm história interna, eles se desenvolvem na
criança. Por isso, seu ensino direto é impossível e infrutífero
(Vygotsky, 1987: 72).
Apesar dessa concordância, os dois focalizam e explicam de modo
diverso o que acontece com os processos de elaboração conceituai
quando a criança defronta com os conceitos científicos que lhe são
apresentados na escola.
Piaget, considerando a construção do conhecimento um processo
individual, prioriza o ponto de vista da criança. Ele diz, por exemplo,
que, quando ensinamos alguma coisa à criança, a impedimos de realizar
uma descoberta por si mesma. Vygotsky enfatiza a participação do ou-
tro no processo de conhecimento, que define como "internalização das
formas culturais de pensamento", e, de acordo com o conceito de zona
de desenvolvimento proximal, que elaborou, afirma que a criança fará
sozinha amanhã o que hoje faz em cooperação.
Escola é lugar de aprender a aprender, lugar de
aprender pensando...
A expressão do subtítulo acima, muito provavelmente, você tam-
bém já ouviu. Ela reflete o deslocamento do foco do ensino, que se
transfere para a aprendizagem. Seu centro passa a ser a criança, em vez
do professor, e o processo de elaboração ativa do conhecimento, no
lugar da acumulação da informação pronta.
Embora Piaget não tenha formulado nenhuma proposta meto-
dológica, nem tenha se proposto a estudar os aspectos psicossociais
do desenvolvimento — aqueles conhecimentos que a criança rece-
be do exterior, por transmissão familiar, escolar, educativa em ge-
ral —, suas idéias acerca do desenvolvimento infantil têm influen-
ciado as chamadas propostas ativas de ensino, servindo como fun-
damento para uma série de procedimentos metodológicos adotados
pelos professores.
Partindo do pressuposto que os conceitos científicos são objetos de
conhecimento que o sujeito constrói de acordo com o estágio de desen-
volvimento em que se encontra, Piaget considera que os conceitos não
se ensinam. Tudo o que se pode fazer é criar situações para que a criança
possa formulá-los (Dienes-Golding, 1972). Essas situações deverão
possibilitar-lhe atuar sobre os objetos de conhecimento, e, pela ativida-
de cognitiva, levá-la a estabelecer as relações de análise e de generaliza-
ção, por meio das quais irá elaborar a palavra.
Nesse sentido, o ensino depende do desenvolvimento espontâneo
da criança, acompanhando-o. Apesar dos esforços que os professores
fazem para explicar os conceitos, a criança recebe as informações e ati-
vamente as transforma. "O processo de aprendizagem não é conduzido
pelo professor, mas pela criança" (Ferreiro, 1982: 131).
Segundo Emilia
Ferreiro, "o
processo de
aprendizagem
não é conduzido
pelo professor,
mas pela
criança ".
De acordo com es-
ses princípios, o ensino
calcado na verbaliza-
ção é visto como uma
atividade mecânica, que
deve ser substituída pe-
la elaboração espontâ-
nea dos conceitos, con-
dição determinante da
construção conceituai
da palavra. Deixa-se de
esperar da criança a
postura de ouvinte, va-
lorizando-se sua ação e
sua expressão. Possibi-
litar à criança situações em que ela possa agir e ouvi-la expressar suas
elaborações passam a ser princípios básicos da atuação do professor.
Apoiado nesse referencial teórico, o professor não vê como
desinformação ou falta de compreensão a diferença entre os significa-
dos elaborados pela criança e o conceito sistematizado. A diferença re-
vela um erro construtivo, que é indicativo do desenvolvimento da crian-
ça, uma vez que suas palavras e ações mapeiam a especificidade do seu
pensamento.
Ao definirem pátria como "coisa de soldado", por exemplo, as
crianças revelam a especificidade de seu pensamento pouco
generalizante, preso a imagens e experiências vividas. A fala de Sérgio
enumerando algumas condições necessárias para se ter (ou não) pátria
— casa, dinheiro, trabalho — revela uma causalidade por identificação,
própria do pensamento pré-operatório.
Deixando de dar prioridade às funções informativa e instrucional, o
ensino tem sua função social redefinida: contribuir para o desenvolvi-
mento dos indivíduos, possibilitando-lhes vivenciar modos deconstruir
conhecimento por si mesmos, modos de aprender pensando.
em que estão envolvidos, aplicando-as a elementos nelas presentes. A
atenção de ambos está centrada na própria situação e não na atividade
intelectual que estão desenvolvendo enquanto a vivenciam.
Assim, pai e filho, por exemplo, podem utilizar a palavra ferramen-
ta numa situação de trabalho, sem que se explicite, para ambos, os sen-
tidos que atribuem a ela. Para a criança, a palavra ferramenta pode de-
signar apenas o martelo, não incluindo a chave de fenda ou o serrote.
No entanto, como nesse contexto vivencial a palavra e a situação se
entrelaçam, e a maioria das palavras utilizadas pelo adulto e pela crian-
ça designa os mesmos objetos ou eventos, equivalendo-se funcional-
mente, são raras as vezes em que ambos se dão conta das diferenças de
generalização e de abstração entre seus modos de elaborar as palavras.
Essas diferenças aparecem ocasionalmente, quando a criança acaba
revelando, por um motivo ou outro, o modo pelo qual "compreende" a
palavra. Exemplos desse tipo de situação foram apresentados no capítulo 8.
Já nas interações escolarizadas, que têm uma orientação deliberada
e explícita no sentido da aquisição de conhecimentos sistematizados
pela criança, as condições de produção da elaboração conceitual modi-
ficam-se sob vários aspectos.
Na escola, a criança e o adulto interagem numa relação social espe-
cífica — a relação de ensino. Sua finalidade imediata, a de ensinar e
aprender, é explícita para seus participantes, que nela ocupam lugares
sociais diferentes: a criança, no papel de aluno, é colocada diante da
tarefa de "compreender" as bases dos conceitos sistematizados ou cien-
tíficos; o professor é encarregado de orientá-la.
Nessas condições, a participação do adulto é deliberada e explícita
tanto para ele quanto para a criança. Cabe ao adulto, no papel de profes-
sor, possibilitar à criança o acesso aos conceitos sistematizados, procu-
rando induzir nela formas de raciocínio e significados. Cabe à criança,
no papel de aluno, realizar as atividades propostas, seguindo as indica-
ções e explicações dadas.
No entanto, destaca Vygotsky, o papel do professor não implica
ensinar ou explicar diretamente o significado de uma palavra à criança.
Isso é impossível, assegura ele, porque "quando se explica qualquer
palavra, colocamos em seu lugar outra palavra igualmente incompreen-
sível, ou toda uma série de palavras, sendo a conexão delas tão
ininteligível quanto a própria palavra" (Tolstoi. Apud Vygotsky, 1987:
72). Esse encadeamento de palavras que se substituem umas às outras
conduz apenas ao verbalismo vazio, "uma repetição de palavras pela
criança, semelhante à de um papagaio, que simula um conhecimento
dos conceitos correspondentes, mas que na realidade oculta um vácuo"
(idem, ibidem).
O que a criança necessita, aponta Vygotsky, é de oportunidades
para adquirir novos conceitos e palavras na dinâmica das interações
verbais, mediadas pelo professor.
O professor participa ativamente do processo de elaboração
conceitual da criança. Nas relações que mantêm, ele utiliza novos con-
Escola é lugar de compartilhar conhecimentos
A relação entre os processos de elaboração conceitual em desen-
volvimento na criança e o aprendizado de conceitos científicos na esco-
la é tematizada explicitamente por Vygotsky.
Embora considere o processo de elaboração conceitual único e in-
tegrado, Vygotsky destaca a necessidade de diferenciarmos as condi-
ções em que a elaboração do conhecimento se dá nas relações coti-
dianas e nas relações de ensino vividas no contexto escolar.
Nas interações cotidianas, o adulto participa espontaneamente do
processo de utilização e de elaboração da linguagem pela criança. Ele e
a criança compartilham palavras, utilizando-as nas situações imediatas11O
112
ceitos, define-os, apresenta-os em diferentes contextos de uso, propõe
atividades em que devem ser empregados. Destaca, recorta informa-
ções e significados em circulação na sala de aula, direcionando a aten-
ção da criança para eles; induz à comparação entre informações e signi-
ficados; possibilita a expressão das elaborações da palavra, organizan-
do verbalmente seu pensamento; problematiza as elaborações iniciais
da criança, levando-a a retomá-las, a refletir sobre possibilidades não
consideradas, a refletir sobre seus próprios modos de pensar...
Na situação que vimos de conceituação da palavra pátria, é a pro-
fessora quem conduz as crianças a explicitarem o significado que essa
palavra tem para elas. Inicialmente ela destaca a expressão Semana da
Pátria, tentando organizar os comentários espontâneos que se seguiram
à saída da diretora. Como Sérgio separa as duas palavras da expressão,
indicando o significado de semana, a professora destaca a palavra pá-
tria, perguntando sobre seu significado.
Ao fazer a pergunta, ela interrompe os comentários entre as crian-
ças e as conduz para uma elaboração refletida sobre a palavra.
Para a criança, pensar sobre seu próprio modo de utilizar a palavra
é uma atividade intelectual complexa e nova. Como a maioria de nós,
ela está acostumada a utilizar as palavras nas relações cotidianas, e não
a pensar sobre elas. Assim, o que a professora faz é levar as crianças a
desenvolverem um tipo de atividade intelectual que elas ainda não rea-
lizam por si mesmas.
Visando responder às solicitações da professora é que as crianças
começam a realizar esse trabalho intelectual, novo para elas. Mesmo
sem compreender completamente o que estão fazendo, elas buscam na
memória elementos das experiências vividas, sentidos da palavra já
internalizados que lhes possibilitem atender à solicitação feita. A per-
gunta da professora não é apenas o disparador da atividade intelectual
da criança. E a partir dela que as crianças selecionam os fragmentos de
suas experiências (soldados, desfiles, desenhos, bandeiras), articulam e
ordenam esses fragmentos na resposta, organizando verbalmente o pen-
samento, elaboram justificativas.
O contexto (a situação) em que a pergunta da professora foi feita (a
propósito das solenidades na escola para a comemoração da Semana da
Pátria) também orienta as respostas das crianças. Elas respondem le-
vando em conta esse contexto quando privilegiam, inicialmente, ele-
mentos ligados às comemorações da Semana da Pátria, como o soldado,
os desfiles e os desenhos.
Nesse sentido, não se pode dizer que as respostas elaboradas pelas
crianças sejam decorrentes apenas da especificidade do seu modo de
pensar, como sugere Piaget, nem que sejam um mero reflexo de suas
vivências, simplesmente uma associação entre estímulos. Elas são uma
resposta ao outro numa relação social específica — a relação do ensino.
Ao possibilitar o acesso das crianças a atividades intelectuais ainda
não incorporadas por elas, a professora contribui para o desenvolvi-
mento de seus conceitos iniciais, que são deslocados do processo de
utilização da palavra nas situações imediatas (que as crianças já domi-
nam) para o de reflexão sobre a própria linguagem (uma atividade inte-
lectual a ser desenvolvida pela criança).
A intervenção da professora contribui para o desenvolvimento
proximal das crianças, uma vez que atua sobre atividades psíquicas ne-
las emergentes, fazendo-as avançar no raciocínio e começar a se dar
conta dele para poder responder ao outro.
A professora ouve atentamente as crianças, mas não se limita a
isso. Ela questiona as relações por elas estabelecidas entre pátria e sol-
dado, indagando sobre a inclusão delas próprias no conceito: "Quem
aqui tem pátria?", "Por que povão não tem pátria?". Em suas perguntas
estão embutidas referências às relações entre grupos na sociedade: se
pátria é coisa de soldado, em que conceito se encaixariam os indivíduos
que não são soldados? Ela consegue formular essas questões porque já
teve acesso, como adulta, a uma forma de elaboração mais generali-
zante do conceito de pátria.
Através de suas perguntas, ela não nega nem exclui as definições
iniciais das crianças. Ela as problematizae as "empurra" para outro pa-
tamar de generalização. Leva as crianças a considerarem relações que
não foram incluídas nas suas primeiras definições, provocando reelabo-
rações na argumentação desenvolvida por elas.
As respostas dadas por Sérgio evidenciam esses esforços de reela-
boração. Buscando responder aos questionamentos da professora e ori-
entado pelas palavras dos colegas ("Pátria é coisa de soldado"), Sérgio
acaba destacando outro sentido possível da palavra.
Em sua primeira resposta, "Povão não tem pátria", Sérgio reafirma
a exclusão dos não-soldados do conceito de pátria. Mas explicita, deli-
mita o grupo a que está fazendo referência. Não são quaisquer não-
soldados que não têm pátria. Quem não tem pátria é o "povão".
Para responder ao novo questionamento da professora (por quê?),
Sérgio acaba definindo, com base nas experiências de seu grupo social,
as condições necessárias para ter ou não pátria — dispor de casa, di-
nheiro, trabalho — e, ao mesmo tempo, a expressão povão como a ne-
gação dessas condições.
A elaboração da resposta de Sérgio à professora revela outra
nuance do conceito. Pátria diz respeito a participação social, cidadania,
relações de poder: Quem não tem acesso aos processos de produção e
consumo da sociedade em que vive fica ou está à margem dela.
Embora Sérgio recorra a elementos de suas experiências vivenciais
para responder à pergunta da professora, ele os coloca num quadro de
generalização mais amplo. Ao fazer referência ao "povão" (um grupo
social específico) e suas condições de vida, ele utiliza na elaboração da
palavra pátria as relações entre grupos da sociedade. Ele não faz uma
análise completa e deliberada das relações sociais de poder (que são a
base das relações entre os grupos) na sociedade em que vive. Ele as
sugere, destacando um lugar social determinado: o dos despatriados. 113
114
A reelaboração resultante do encontro entre as perguntas da profes-
sora e as primeiras definições expressas pelas crianças mostra como
seus conceitos iniciais (e cotidianos) foram se aproximando das formu-
lações científicas do conceito de pátria, elaboradas pela história, pela
sociologia, pela antropologia e pela política.
Nas formulações dos cientistas sociais, as relações de poder são vi-
síveis quando se considera o sentido de nação e de identidade nacional
que a palavra pátria tomou a partir do século XIX na Europa, com a con-
solidação dos Estados nacionais. (Os professores da área de História
poderão fornecer detalhes desse período, além de explicar como os con-
ceitos de pátria e de nacionalismo se relacionam. Poderão explicar tam-
bém como esses conceitos foram sendo produzidos, como foram ga-
nhando destaque e novos sentidos e a que setores da sociedade interessa-
vam esses novos sentidos.) O sentido político, embora minimizado no
contexto escolar e nos livros didáticos, é que marca as solenidades da
Semana da Pátria e em especial os desfiles mencionados pelas crianças.
A aproximação entre as definições iniciais das crianças e as formula-
ções científicas do conceito revela que o sentido político, o da relação en-
tre pátria e poder, está presente nas elaborações que elas fazem. Os modos
como definem pátria dizem respeito ao lugar por elas ocupado na socieda-
de, à experiência histórico-cultural do grupo social a que pertencem. As-
sim, o que de início poderia parecer falta de compreensão ou espe-
cificidade do pensamento infantil pré-lógico é, na verdade, uma forma de
elaboração não só aceitável como também relativamente complexa.
Ao prestarmos atenção a essas possibilidades, vamos percebendo
que as palavras não são apenas modos de representação do mundo e do
pensamento ou instrumentos de comunicação. Elas são elemento de
interação e de constituição de identidades.
Vamos percebendo, também, que é nas relações sociais que a "neu-
tralidade" das palavras se desfaz. Pois é aí que "chegamos perto das
palavras", apreendendo-as na linguagem viva, em funcionamento.
Ao considerarmos os conceitos em sua história, em sua relação
com a sociedade, em sua relação com a vida das pessoas que os utili-
zam, redefinimos a relação de ensino como relação de partilha e de
articulação de saberes. Nela, crianças e professores ensinam-se recipro-
camente.
As crianças nos mostram como, a partir dos lugares sociais que
ocupam, compreendem as palavras, os conceitos que vamos trabalhar
com elas. Elas nos falam de algumas das faces secretas que conseguem
apreender nas palavras.
Nós, professores, como parceiros sociais da criança, tomamos
contato com os sentidos e saberes que ela traz para a sala de aula e,
levando-os em conta, participamos ativamente dos seus processos de
conhecimento e de desenvolvimento. Para isso, destacamos outros sig-
nificados e sentidos além dos que ela já conhece, outros modos de orga-
nizar e articular os conhecimentos, tendo em vista chegar ao conheci-
mento sistematizado.
Nesse processo de entrecruzamento dos modos de conhecer se fa-
zem presentes e atuantes as maneiras de dizer e pensar da criança, as
operações lógicas que ela realiza, as informações que o professor lhe
possibilita e, fundamentalmente, a dinâmica das relações sociais em
que o conhecimento é produzido, tanto na escola quanto fora dela.
A sistematização é uma tarefa que as crianças não podem realizar
sozinhas, pois requer o domínio de informações e de operações intelec-
tuais que ainda estão fora de seu alcance. Elas necessitam da mediação
do professor para realizá-la.
Para isso, o professor, como adulto que já teve acesso a um conjun-
to muito mais amplo de informações e de práticas culturais de conheci-
mento e de organização da atividade intelectiva, possibilita às crianças
o contato com diferentes situações de uso do conceito, destacando,
apontando as diferenças de que o conceito se reveste em cada situação.
O professor ensina (ajudando, fazendo junto) as crianças a compararem
suas definições iniciais com os sentidos históricos dos conceitos. Ele
problematiza os sentidos dicionarizados das palavras ou os tradicional-
mente enfatizados nos livros didáticos e nas solenidades escolares.
A tarefa da sistematização exige que o professor, ele próprio, ela-
bore ativamente os conceitos: que conheça sua história, que apreenda as
atividades intelectuais contidas ou envolvidas na sua elaboração, que
conheça os sentidos que têm nas práticas cotidianas das crianças com as
quais trabalha, que analise as possibilidades de articulação entre os seus
diferentes sentidos.
Essa elaboração de conceitos por parte do professor, porém, não é
uma tarefa que ele realize sozinho. Ela é mediada pela produção cientí-
fica e pelos dizeres das crianças.
Nas relações de ensino compartilhadas, professor e crianças ensi-
nam e aprendem. Eles aceitam o convite do poeta e contemplam juntos
as palavras. Eles aceitam juntos o desafio das palavras, mergulhando na
história, nas práticas sociais de conhecimento em que se constituem, em
busca das chaves...
115
116
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Compare as concepções de Piaget e de Vygotsky acerca do papel da
escola no desenvolvimento da elaboração conceitual, enumerando as
semelhanças e as diferenças entre elas.
2. Confronte sua lista com a dos colegas, ajudando a organizar uma sín-
tese do levantamento feito pela classe.
Refletindo sobre os dados do texto
A partir dos elementos apresentados no texto, elabore uma pequena
reflexão considerando a seguinte questão: Professores para quê?
Exercitando a síntese
Retome os dados do relatório do trabalho de campo sugerido no ca-
pítulo anterior e complemente-o, utilizando informações e questio-
namentos possibilitados pelo presente capítulo. Reelabore sua primeira
versão, retomando os pontos que, depois dessa reflexão, considerar ne-
cessários.
Exercitando a análise
Vamos dividir a classe em dois grupos:
• Os alunos do grupo 1 deverão ler o texto "Ensinando Ciências e Es-
tudos Sociais nas séries iniciais ", de Terezinha Nunes Carraher e
David W. Carraher, publicado emIsto se aprende com o Ciclo Básico
(Projeto Ipê, curso II. São Paulo: SEICENP, 1986).
• Os alunos do grupo 2 deverão ler "A elaboração conceitual: a dinâ-
mica das interlocuções na sala de aula", de Roseli A. C. Fontana, no
livro A linguagem e o outro no espaço escolar: Vygotsky e a constru-
ção do conhecimento, de A. L. Smolka e M. C. Góes, editado pela
Papirus.
Nesses textos, os autores abordam situações de elaboração de con-
ceitos em sala de aula ou experimentalmente.
Cada aluno deve ler atentamente o texto que coube ao seu grupo e
sintetizá-lo, destacando a concepção de elaboração de conhecimento
adotada pelo autor e suas implicações pedagógicas.
Cada grupo deve fazer uma síntese da sua leitura e apresentá-la à
classe.
Reunidos, os grupos devem debater sobre as posições defendidas nos
textos, tendo como referência a seguinte questão: Como ensinar às crianças?
Unidade 3
Introdução
	
Capítulo 10
rincar e desenhar são atividades fundamentais da crian-
ça. Ela brinca e desenha na rua, em casa, na' escola.
Pela brincadeira e pelo desenho, ela fala, pensa, elabora
sentidos para o mundo, para as coisas, para as relações.
Pela brincadeira, objetos e movimentos são transformados. As rela-
ções sociais em que a criança está imersa são elaboradas, revividas,
compreendidas. Brincando de casinha, de médico, de escolinha, de
roda, de amarelinha, de bolinhas de gude ou de pião, a criança se rela-
ciona com seus companheiros, e com eles, num movimento partilhado,
dá sentido às coisas da vida.
Pelo desenho, a criança deixa suas primeiras marcas. Traços, rabis-
cos, círculos, que, aos poucos, vão assumindo formas mais definidas.
As marcas são nomeadas — pelos outros e por ela mesma — e come-
çam a se tornar simbólicas. Pelo desenho é possível representar objetos,
pessoas, espaços. A criança desenha sozinha, com outros, para outros.
Pelo desenho ela fala de si e do mundo.
São essas as atividades da criança para as quais vamos, agora, diri-
gir o nosso olhar, procurando compreendê-las a partir das perspectivas
de Luquet (no desenho), Piaget e Vygotsky.
No capítulo 10, vamos apresentar as concepções de Vygotsky e de
Piaget sobre a brincadeira, sobre por que as crianças brincam e qual a
sua importância no processo de desenvolvimento.
No capítulo 11, acompanharemos as transformações por que passa
a brincadeira da criança, desde os primeiros jogos até aqueles com re-
gras, e discutiremos o lugar da brincadeira na escola.
No capítulo 12, focalizaremos o desenvolvimento do desenho in-
fantil com base nos pontos de vista de Luquet, Vygotsky e Piaget.
No capítulo 13, vamos olhar o processo de elaboração do desenho
pela criança, o papel que nele têm os outros e os modelos. E discutire-
mos algumas concepções sobre criatividade e desenho e sobre o traba-
lho com o desenho na escola.
O papel da brincadeira no
desenvolvimento da criança
Hora do recreio. No pátio, crianças correm, pulam, jogam bola,
brincam de amarelinha, de roda e fazem outras tantas brincadeiras.
Na sala de aula, crianças reunidas em pequenos grupos estão con-
centradas em jogos que a professora escolheu para ajudá-la a ensinar
algum conteúdo. Em outra sala (ou em outro momento), crianças prepa-
ram a encenação de um texto.
Na aula de Educação Física
as crianças jogam, pulam corda,
praticam esportes.
Na pré-escola, as crianças
brincam na areia, imitam bichos,
montam quebra-cabeças, inven-
tam coisas com sucata, brincam
de faz-de-conta; enfim, passam
boa parte do tempo brincando.
A brincadeira se faz pre-
sente na escola nas mais varia-
das situações e sob as mais di-
versas formas. Muitas também
são as concepções sobre o seu
lugar e sua importância na práti-
ca pedagógica.
Uma concepção é aquela que pode ser traduzida na frase "Criança
vai à escola para aprender, e não para se divertir". De acordo com esse
ponto de vista, a brincadeira é pura diversão e, portanto, só deve ser
permitida na hora do recreio.
Outra concepção é a de que o criança tem necessidade de brincar,
mas que na escola é preciso separar brincadeiras e "tarefas sérias". As
brincadeiras estão presentes tanto na pré-escola como nas séries iniciais
do 1? grau, e o tempo ocupado por elas é determinado pela idade das
crianças ou pelo andamento da programação pedagógica.
A brincadeira faz
parte das
práticas
escolares das
crianças.
1T,.9
120
Existe ainda a concepção segundo a qual "brincando a criança
aprende", que pode ser traduzida em métodos educacionais que valori-
zam a brincadeira e procuram evitar uma distinção rígida entre jogo e
"tarefas sérias". Nesse caso, os jogos podem ser introduzidos como re-
cursos didáticos importantes, ou, então, especialmente na pré-escola,
todo o trabalho pedagógico pode basear-se na brincadeira.
Diante desse quadro, somos levados a perguntar: "Mas, afinal, qual
a importância da brincadeira na vida da criança e qual o lugar que ela
pode ou deve ocupar na escola?". E isso o que vamos procurar examinar
a seguir, com base na psicologia do desenvolvimento.
Por que as crianças brincam?
Todos nós já ouvimos, ou até já demos, algumas respostas à ques-
tão formulada acima, como: "Criança brinca para descarregar energia";
"Criança não trabalha, não precisa se preocupar com a sobrevivência e,
portanto, brinca para ocupar o seu tempo"; ou, ainda, "Criança brinca
por puro prazer".
Hoje, prestar atenção à brincadeira infantil e buscar explicações
(de senso comum ou científicas) para ela faz parte de nosso dia-a-dia.
Parece-nos natural que as crianças brinquem e que tenha sido sempre
assim.
No entanto, não foi sempre assim. Houve um tempo em que a idade
não era um critério de diferenciação social, e a criança partilhava os
trabalhos e as festas dos adultos. Conforme vimos no primeiro capítulo,
foi apenas nos séculos XV e XVI que nas sociedades ocidentais as
crianças foram afastadas das atividades adultas. E a idéia da infância
como um período particular somente se consolidou no século XVII,
acompanhada da elaboração de uma teoria filosófica sobre a especifici-
dade infantil, que tomou possível o posterior aparecimento de uma psi-
cologia da criança e de seu desenvolvimento.
A assimilação do real ao eu: a concepção de Piaget
A psicologia vem mostrando que a brincadeira tem um papel im-
portante no desenvolvimento da criança e que ela satisfaz algumas de
suas necessidades. Mas que necessidades são essas? O que leva a crian-
ça a brincar?
Para Piaget, a brincadeira infantil é uma assimilação quase pura do
real ao eu, não tendo nenhuma finalidade adaptativa. A criança pequena
sente constantemente necessidade de adaptar-se ao mundo social dos
adultos, cujos interesses e regras ainda lhe são estranhos, e a uma infini-
dade de objetos, acontecimentos e relações que ela ainda não com-
preende. De acordo com Piaget, a criança não consegue satisfazer todas
as suas necessidades afetivas e intelectuais nesse processo de adaptação
ao mundo adulto.
Assim, a criança brinca porque é "indispensável ao seu equilí-
brio afetivo e intelectual que possa dispor de um setor de atividade
cuja motivação não seja a adaptação ao real senão, pelo contrário, a
assimilação do real ao eu, sem coações nem sanções [...]" (Piaget e
Inhelder, 1989: 52).
A brincadeira é, então, uma atividade que transforma o real, por
assimilação quase pura às necessidades da criança, em razão dos seus
interesses afetivos e cognitivos.
Unia garotinha que havia feito diversas perguntas sobre o me-
canismo dos sinos, observado num velho campanário de aldeia,
mantém-se imóvel e em pé ao lado da mesa do pai, fazendo um
barulho ensurdecedor. "Você está me atrapalhando um pouco, não
vê que eu estou trabalhando? ", acode o pai. E a pequena: "Não
fale comigo, sou uma igreja ". Da mesma forma, profundamente
impressionada por um pato depenado sobre a mesa da cozinha, a
criança é encontrada à noite, estendida em um canapé, a ponto de
a cuidarem doente e de a crivarem de perguntas, a princípio sem
respostas; depois, com voz fraca, ela acaba explicando: "Eu sou o
pato morto! ".
(Episódio relatadopor Piage( e Inhelder, em A psicologia da
criança.)
Para Piaget, situações como essas indicam que na brincadeira do
faz-de-conta (chamada por ele de jogo simbólico) as crianças criam
símbolos lúdicos que podem funcionar como uma espécie de lingua-
gem interior, que permite a elas reviver e repensar acontecimentos inte-
ressantes ou impressionantes. As crianças, mais do que repensar, neces-
sitam reviver os acontecimentos. Para isso recorrem ao simbolismo di-
reto da brincadeira.
As relações sociais com o mundo adulto: a concepção
de Vygotsky
Vygotsky também analisa a emergência e o desenvolvimento da
brincadeira nas relações sociais da criança com o mundo adulto.
Segundo ele, na idade pré-escolar algumas modificações ocorrem
no desenvolvimento da criança. Como demonstra Leontiev, impor-
tante psicólogo soviético, o mundo objetivo que a criança conhece
está continuamente se expandindo e, nesse período, já não inclui
apenas os objetos que constituem o ambiente que a envolve (como
seus brinquedos, sua cama ou os utensílios e objetos com os quais
ela está sempre em contato e sobre os quais pode agir), mas também
os objetos com os quais os adultos operam e sobre os quais ela ain-
da não pode agir. 121.
A situação
imaginária da
brincadeira é
uma decorrência
da ação, afirma
Vygotsky.
122
(Adaptado de Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desen-
volvimento e aprendizagem. São Paulo: ícone/Edusp.)
Ou seja, a criança passa ase interessar por uma esfera mais ampla
da realidade e sente necessidade de agir sobre ela. Agir sobre as coisas é
a principal forma de que a criança
dispõe para conhecê-las, compreen-
dê-las. Nesse período, ela tenta atuar
não apenas sobre as coisas às quais
tem acesso, mas esforça-se para agir
como um adulto: quer, por exemplo,
dirigir um carro ou fazer comida.
Surge, então, uma contradição
entre a necessidade de agir sobre um
número cada vez maior de objetos e o
desenvolvimento das capacidades fí-
sicas. Em outras palavras, surgem na
criança as necessidades não realizá-
veis imediatamente, no dizer de
Vygotsky, e que se tornam motivo
para as brincadeiras. Isso não significa, porém, que as crianças com-
preendem as motivações que as levam a brincar.
A brincadeira é, então, a forma possível de satisfazer a essas necessi-
dades, já que possibilita à criança agir como os adultos (dirigindo um carro,
cuidando de um bebê, fazendo "comidinha") em uma situação imaginária.
Para Vygotsky, a situação imaginária da brincadeira decorre da ação
da criança. Ou seja, a tentativa da criança de reproduzir as ações do adul-
to em condições diferentes daquelas em que elas ocorrem na realidade é
que dá origem a uma situação imaginária. Isso significa que a criança
não imagina uma situação para depois agir, brincar. Ao contrário, para
imaginar, ela precisa agir. E o que vamos compreender melhor analisan-
do uma situação real de crianças brincando, descrita a seguir.
Brincando de estação de trem
Algumas crianças brincam de estação de trem em uma pré-escola
na antiga União Soviética, observadas por um pesquisador.
Sete crianças estão brincando em uma sala grande. B é o che-
fe da estação. Ele está usando um boné vermelho e carrega um
disco de madeira em uma vara. Ele cercou uma área com cadeiras,
explicando que é a estação onde o chefe mora.
7; L e N são passageiros. Eles dispuseram as cadeiras em fila,
uma atrás da outra, e sentaram-se.
N: "Como podemos começar sem um condutor? Eu serei o ma-
quinista ". Ele vai para a frente e começa a resfolegar: "Ssh-ssh-ssh ".
G é a garçonete do restaurante. Ela cercou um "restaurante"
com cadeiras em torno de uma mesinha, pôs uma caixa de papelão
sobre ela e encheu-a de pedaços de papel rasgados por ela e que
seriam o "dinheiro ". Perto da caixa, ela dispôs ordenadamente,
em fileiras, pedacinhos de biscoito. "Veja como eu tenho um res-
taurante bem-fornido", diz ela.
Ba: "Eu venderei as passagens... oh! Como se chama quem
faz isso? ". "Caixa ", diz o pesquisador. Ba: "Sim, sim, o caixa. Dê-
me um pouco de papel ". Tendo obtido o papel, ela o rasga em tiras
e separa os pedaços maiores. "Aquelas são as passagens e estes
(os pedaços pequenos) o dinheiro, para dar o troco".
B dirige-se a N: "Quando eu lhe der este disco, você imediata-
mente começa ". N imita o som de descarga de uma máquina e os
passageiros ocupam seus lugares. De repente, B diz: "Os passa-
geiros estão embarcando sem bilhetes e está na hora do trem par-
tir". Os passageiros correm para o guichê de venda de passagens,
onde Ba está sentada, esperando. Eles estendem a ela pedaços de
papel e ela lhes dá, em troca, as passagens. Os passageiros voltam
a seus lugares. B aparece e dá o disco a N. N imita o som de descar-
ga, sopra, e eles "partem ".
G (com ar aborrecido): "Quando é que eles virão para com-
prar? ". B: "Eu posso vir agora, o trem partiu e por isso eu posso ".
Quem foi Leontiev?
Alexis N. Leontiev, nascido em 1903, foi um dos
mais importantes psicólogos soviéticos que trabalha-
ram com »gotsky e Luria. Membro daAcademia Sovié-
tica de Ciências Pedagógicas, recebeu em 1968 o título
de doutor honoris causa pela Universidade de Paris.
Leontiev pesquisou principalmente a relação en-
tre o desenvolvimento do psiquismo humano e a cultu-
ra, ou seja, entre a evolução das funções psíquicas e a
assimilação individual da experiência histórica.
Assim como Vygotsky, Leontiev criticou as con-
cepções mecanicistas do comportamento humano. Sua
preocupação era encontrar um referencial materialis-
ta histórico e dialético para a psicologia.
A defesa que Leontiev fez da natureza sócio-histó-
rica do psiquismo humano teve como base a teoria
marxista do desenvolvimento social.
Teórico e experimentador, Alexis Leontiev não se limitou ao tra-
balho de laboratório. Preocupou-se com os problemas da vida hu-
mana em que o psiquismo intervém. Seu campo de estudos compre-
endeu principalmente a pedagogia, a cultura, o problema da perso-
nalidade. Criou a Faculdade de Psicologia da Universidade de
Moscou, da qual se tornou decano.
Leontiev morreu em 1979.
123
Ele vai até o restaurante e pede um bolo. G lhe dá um e pergunta:
"E o dinheiro?". B corre até o pesquisador e, tendo recebido um
pedaço de papel, volta e "compra" um bolo. Ele come com ar sa-
tisfeito. Ba mexe-se na cadeira, olha para o restaurante, mas não
se levanta. Em seguida, ela olha novamente para o restaurante e
para o pesquisador, e pergunta: "Quando é que vou comer? Não
há ninguém aqui agora ", diz ela, como que para se justificar. N
observa: "O que é que está impedindo? Vá em frente ". Ba olha ao
redor, depois corre para o restaurante, compra rapidamente e vol-
ta depressa. G arruma de novo os seus bolos, mas não se serve.
N assopra ruidosamente e grita: "Estação! ". Ele e os passa-
geiros correm ao restaurante, compram bolos e voltam. B toma o
disco de N e, depois, devolve-o. N assopra e resfolega, e eles "par-
tem" novamente.
Ba examina o restaurante, compra um bolo e o come. G: "Eu
também gostaria de comer, mas o que é que eu faço, compro ou me
sirvo? ". B ri: "Compre de você mesma e pague-se ". G ri, mas
imediatamente pega duas "moedas" e compra de si mesma dois
pedaços de bolo, explicando como se fosse para o pesquisador que
está presente: "Eles já compraram uma vez ". Não recebendo res-
posta, ela se põe a comer.
(Situação relatada por Leontiev, 1988: 136-7.)
podem se transformar em um trem. Desse modo, a criança transforma
o significado dos objetos de acordo com seus desejos, sem preocupa-
ção de adaptar-se à realidade.
Assim, na brincadeira qualquer coisa pode transformar-se em ou-
tra, sem regras nem limitações. Essa possibilidade de livre transforma-
ção de significado dos objetos explica-se pelo predomínio da atividade
assimilativa da criança, ou seja, pela incorporação a seus esquemas de
ação e pensamento de objetos diferentes sem a correspondente transfor-
mação (acomodação) desses esquemas e com o único propósito de per-
mitir à criança imitá-los ou evocá-los.
Vygotsky, no entanto, observou que na situaçãodo faz-de-conta
não é qualquer objeto que pode substituir outro e que a criança, ao brin-
car, sempre submete seu comportamento a regras.
Se observarmos na brincadeira de estação de trem como se de-
senrolam as ações das crianças, notaremos que, ao contrário do que
habitualmente se diz sobre as brincadeiras das crianças — que nelas
tudo pode acontecer —, toda a ação das crianças é regulada pela si-
tuação imaginária, desenvolve-se de acordo com ela. Assim, o trem
não pode partir antes que os passageiros tenham comprado seus bilhe-
tes e que o chefe da estação tenha dado a devida autorização ao ma-
quinista. Da mesma forma, não se pode comprar bolo sem dinheiro, e
os passageiros que estão no trem só se dirigem ao restaurante quando
o trem pára na estação.
Aprendendo a olhar a brincadeira
Comecemos por examinar quais são as características dessa brin-
cadeira. A primeira coisa que nos chama a atenção é que cada criança
envolvida na situação assume um papel definido: algumas são os passa-
geiros, uma é o maquinista, outra o chefe da estação, e assim por diante.
Toda a ação das crianças se desenvolve e se estrutura a partir desses
papéis, configurando-se, assim, uma situação imaginária. Ou seja, a
criança que assume o papel de chefe de estação, age como tal: é ela
quem deve autorizar a partida do trem. O mesmo ocorre com as crianças
que assumem os outros papéis: elas agem como passageiros, como ma-
quinista, como bilheteiro.
Um segundo aspecto que podemos notar na brincadeira é a utiliza-
ção que as crianças fazem dos objetos: cadeiras tanto demarcam os es-
paços como compõem o trem; pedaços de papel transformam-se em
dinheiro e em passagens; pedaços de biscoito viram bolo.
Essa transformação dos objetos é interpretada por Piaget como
resultado da utilização de esquemas habituais, contando não com a
presença dos objetos a que comumente se aplicam, mas de novos ob-
jetos que "não lhe convém [à criança] do ponto de vista de uma adap-
tação efetiva" (Piaget, 1978: 127). Um pequeno travesseiro, por
1 24
	
exemplo, pode ser embalado como uma boneca; uma caixa, empurra-
da como um carrinho; ou, ainda, como na situação acima, cadeiras
Brincadeira é coisa séria
Podemos notar, então, que a situação imaginária, longe de ser algo
criado livremente pelas crianças, sem nenhuma relação com a realida-
de, traz as marcas da experiência social das crianças, de suas vivências
e conhecimentos sobre a realidade.
Vygotsky dá um exemplo de duas irmãs, uma com 5 e outra com 7
anos, que resolveram "brincar de irmãs". Nessa brincadeira, elas fazem
tudo aquilo que enfatiza sua relação social de irmãs, passando a agir de
acordo com regras de comportamento próprias dessa relação, que não
são percebidas na vida real.
Essa situação, como a da criança que assume o papel de maquinista
de trem, mostra que aquilo que na vida real passa despercebido pelas
crianças torna-se regra de comportamento na brincadeira.
De acordo com Vygotsky, essas regras decorrem da própria situa-
ção imaginária. E o fato de assumir determinado papel que induz a
criança a submeter seu comportamento a regras.
A submissão a regras implica a superação da ação impulsiva. Para
esperar que o trem pare na estação para ir ao restaurante comprar bolo,
as crianças precisam evitar a ação impulsiva de obter um biscoito e
submetê-la às regras implícitas na situação imaginária. Segundo Vy-
gotsky, essa submissão da criança a regras de comportamento é a razão
do prazer que ela experimenta na brincadeira.
125
Durante a
brincadeira, a
criança opera
com o significado
das coisas, e não
com elas em si.
126
Na situação de brincadeira, a criança supera a ação impulsiva tam-
bém relativamente aos objetos. Crianças muito pequenas ainda não têm
essa capacidade: os objetos é que determinam o que devem fazer, por-
que sua percepção é sempre um estímulo para a atividade. Ou seja, a
criança pequena age de acordo com o que vê. Se vê um cabo de vassou-
ra perto de uma lata, por exemplo, ela poderá usá-lo para bater na lata.
Ou então, se vê um biscoito, ela provavelmente o comerá.
De acordo com Vygotsky, "é no brinquedo que a criança aprende a
agir numa esfera cognitiva, ao invés de numa esfera visual externa, de-
pendendo das motivações e tendências internas, e não dos incentivos
fornecidos pelos objetos externos".
Isso significa que na brincadeira os objetos perdem sua força deter-
minadora e a criança passa a operar com o significado das coisas. Na
brincadeira, um cabo de vassoura pode ser utilizado como um cavalo, e
biscoitos podem se transformar em pedaços de bolo vendidos no restau-
rante de um trem.
Objetos e significados na brincadeira
Mas a criança não realiza a transformação de significados de uma
hora para outra. Como vimos, quando muito pequena, ela ainda não é
capaz de agir como se um cabo de vassoura fosse um cavalo. Isso por-
que os significados ainda estão ligados aos objetos concretos que a
criança conhece: cachorro significa seu próprio cachorro; relógio é o
relógio de parede da sala de sua casa; irmã é sua própria irmã.
Vygotsky vê a brincadeira infantil como um recurso que possibilita
a transição da estreita vinculação entre significado e objeto concreto à
operação com significados separados dos objetos. Na brincadeira, a
criança ainda utiliza um objeto concreto para promover a separação en-
tre significado e objeto. Ela só é capaz de operar, por exemplo, com o
significado de cavalo (sem se referir ao cavalo real) utilizando um obje-
to, como o cabo de vassoura, que lhe permita realizar a mesma ação
possível com o cavalo real: montar ou cavalgar.
Assim, não é qualquer objeto que pode substituir outro. Uma bola,
uma caneta ou uma mesa não poderiam representar um cavalo, porque a
criança não poderia agir com esses objetos como se fossem um cavalo,
não poderia montá-los ou cavalgá-los.
Já uma criança mais velha ou um adulto poderiam utilizar qualquer
um desses objetos para representar um cavalo. Um adolescente, por
exemplo, que estivesse relatando uma experiência a um amigo, poderia
tranqüilamente dizer: "Faça de conta que aquela mesa é o cavalo. Eu
estava aqui, mais ou menos a essa distância, quando ele disparou em
minha direção".
Isso porque crianças mais velhas, adolescentes ou adultos já po-
dem operar com o significado, independentemente do objeto concreto.
Qualquer coisa pode simbolizar outra, e é possível até mesmo operar
com significados Sue dizem respeito a coisas que nunca foram vistas ou
experimentadas. E por isso que, se nos falam sobre violino, é possível
compreendermos o que dizem sem nunca termos visto um violino ou
ouvido o seu som. Para isso, basta conhecermos o significado da pala-
vra violino.
E nesse sentido que a brincadeira infantil constitui uma transição:
ao agir com um objeto como se fosse outro, a criança separa do objeto
real, concreto, o significado. Mas, para realizar essa separação, ainda há
necessidade de um objeto substituto que possibilite a mesma ação que o
objeto real.
Da mesma forma que um objeto substitui outro, na brincadeira in-
fantil uma ação também substitui outra. Quando a criança brinca de
montar a cavalo, sua ação de correr com um cabo de vassoura entre as
pernas, imitando um trotar, substitui a ação real de cavalgar.
Nesse caso, o significado também se separa da ação por intermédio
de uma ação diferente (como no caso dos objetos), e a criança opera
com o significado de sua ação: "montar" um cabo de vassoura adquire o
significado de cavalgar.
Na brincadeira, a criança opera com significados desvinculados
dos objetos e das ações; mas o fato de utilizar outros objetos reais
(como o cabo de vassoura) e outras ações reais (como "montar" um
cabo de vassoura) ajuda-a a realizar uma importante transição.
O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança
A brincadeira e a função simbólica
Piaget e Vygotsky têm pontos de vista diferentes também quanto à
função da brincadeira no desenvolvimento infantil.
Para Piaget, o jogo simbólico é parte de uma função fundamental
do processo cognitivo da criança,a função simbólica. Essa função apa-
127
situações concretas, tendo dificuldade em controlar voluntariamente
seu comportamento e submetê-lo a regras. Quem conhece crianças des-
sa idade sabe que é preciso estar constantemente lhe dizendo o que fa-
zer. E preciso sempre chamá-la para tomar banho, lembrá-la de escovar
os dentes, recomendar que guarde seus brinquedos, e assim por diante.
Ela ainda não decide antecipadamente o que vai fazer e só submete seu
comportamento a regras impostas obedecendo a uma autoridade exte-
rior (os pais ou o professor).
Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural. 1970. v. 2.
A criança dessa idade tem no dia-a-dia dificuldade para fazer dis-
tinção entre o significado dos objetos e suas características. Uma crian-
ça que tenha aprendido a utilizar a palavra animal para se referir a ma-
míferos de quatro patas, provavelmente terá dificuldade em reconhecer
um inseto ou uma ave como animais. O significado da palavra animal
permanece ligado às características dos seres que concretamente ela
conhece como animal: as quatro patas, por exemplo.
E por isso que, segundo Vygotsky, a brincadeira cria uma zona de
desenvolvimento proximal: "[...] no brinquedo, a criança sempre se
comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu
comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é
na realidade" (Leontiev, 1988: 122).
Assim, a brincadeira é a atividade "em conexão com a qual ocor-
rem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da
criança e dentro da qual se desenvolvem processos psíquicos que prepa-
ram o caminho da transição da criança para um novo e mais elevado
nível de desenvolvimento" (idem, ibidem).
Logo, a atividade de brincar é essencial para o desenvolvimento da
criança em idade pré-escolar.
129
rece na criança mais ou menos aos 2 anos e permite que ela possa repre-
sentar uma coisa (um objeto, um acontecimento, etc.) por intermédio de
outra coisa, como a linguagem, o desenho ou o gesto simbólico.
Como vimos, Piaget considera que a brincadeira não tem finalida-
de adaptativa, não provoca um aprimoramento dos esquemas mentais,
ou de ação, da criança. Sua importância para o desenvolvimento consis-
te no fato de possibilitar — pela aplicação de esquemas conhecidos a
objetos "inadequados" — a transformação do significado dos objetos e
a criação de símbolos lúdicos individuais. Num símbolo lúdico, como
pedacinhos de biscoito que representam bolo, um objeto é evocado por
outro, ao qual são atribuídas as qualidades daquele.
Assim, o jogo simbólico relaciona-se ao aparecimento da capaci-
dade de representar eventos e objetos. E, com a representação, a criança
torna-se capaz de pensar em objetos que não estão presentes em seu
campo perceptivo, de lembrar-se de acontecimentos, de prever mental-
mente o resultado de suas ações.
A função simbólica é, então, indispensável para a ampliação das
fronteiras da inteligência, embora, de acordo com Piaget, ela só progri-
da com o desenvolvimento da própria inteligência. Ou seja, é à medida
que o pensamento da criança se desenvolve que sua linguagem, o dese-
nho e o próprio jogo evoluem.
Portanto, embora o jogo simbólico seja importante para a constitui-
ção de símbolos que servem para representar objetos ou acontecimen-
tos, ampliando o campo de ação da inteligência, seu desenvolvimento
está subordinado ao desenvolvimento da própria inteligência.
A criação de zonas de desenvolvimento proximal
Já para Vygotsky, a brincadeira tem um papel fundamental no de-
senvolvimento do pensamento da criança. Ao substituir um objeto por
outro, a criança opera com o significado das coisas e dá um passo im-
portante em direção ao pensamento conceitual, que, como já vimos,
baseia-se nos significados, e não nos objetos. Por exemplo, o conceito
de escola para um adulto não se refere a uma ou várias escolas que ele
conhece, mas corresponde a uma generalização, a uma idéia de escola
que pode incluir múltiplos aspectos: seu caráter de instituição, sua fun-
ção social, sua forma de organização em geral, etc.
Além disso, quando a criança assume um papel na brincadeira, ela
opera com o significado de sua ação e submete seu comportamento a
determinadas regras. Isso conduz ao desenvolvimento da vontade, da
capacidade de fazer escolhas conscientes, que estão intrinsecamente
relacionadas à capacidade de atuar de acordo com o significado de
ações ou de situações e de controlar o próprio comportamento por
meio de regras.
E importante notar também que no jogo a criança faz coisas que
128
	
ainda não consegue realizar no cotidiano. Nas atividades cotidianas, a
criança em idade pré-escolar age de acordo com o meio, os objetos e as
130
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Reproduza o quadro abaixo e preencha-o com as informações do
texto:
Trabalho de campo
1. Observe crianças brincando. Faça uma combinação entre as idades e
as situações seguintes:
Situações
	
Idades
Sozinhas
	
De 1 a 3 anos
Com outras crianças
	
De 4 a 6 anos
Com adultos
	
De 7 a 9 anos
De 8 a 11 anos
Combinando as diferentes faixas de idade e situações (por exemplo,
crianças de 1 a 3 anos sozinhas, de 1 a 3 anos com outras crianças e
de 1 a 3 anos com adultos), serão doze as condições para a observa-
ção. A classe deverá ser dividida em grupos, e a cada grupo será atri-
buída uma das condições.
Durante as observações, prestem atenção aos seguintes aspectos:
• de que as crianças brincam;
• com quem brincam;
• que objetos ou brinquedos utilizam e como os utilizam;
• que atividades realizam e como as realizam;
• o que falam e a quem se dirigem;
• como se relacionam durante a brincadeira.
Procurem registrar tudo o que puderem e bem rapidamente (as falas
das crianças merecem atenção especial e, na medida do possível, de-
vem ser registradas literalmente).
Cada grupo deve organizar o seu registro e depois apresentá-lo para a
classe.
2. Com base nos resultados das observações de todos os grupos, organi-
ze com os colegas um painel sobre a brincadeira infantil. Na apresen-
tação do painel, façam um debate sobre a brincadeira infantil, con-
frontando os modos como a vêem Piaget e Vygotsky.
Sugestão de leituras
KIsHiMOTo, T. M. O brinquedo na educação — Considerações históri-
cas. O cotidiano da pré-escola. São Paulo: FDE, 1990. (Idéias, 7).
OLIVEIRA, Zilma M. R. de. L. S. Vygotsky: algumas idéias sobre desen-
volvimento e jogo infantil. A pré-escota e a criança hoje. São Paulo:
FDE, 1988. (Idéias, 7).
PIAGET, J. A função semiótica ou simbólica. In: 	 . A psicologia
da criança. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
VYGOTSKY, L. S. O papel do brinquedo no desenvolvimento. In:
. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes,
1984.
Piaget
	
Vygotsky
Por que as crianças
brincam
Como as crianças
brincam
Papel da brincadeira no
desenvolvimento
131
Capítulo 11
A brincadeira na vida
e na escola
Como vimos no capítulo anterior, Piaget e Vygotsky têm concep-
ções diferentes sobre a importância da brincadeira para a criança. No
entanto, os dois concordam que a brincadeira evolui e se modifica.
Para Piaget, essa evolução acompanha o desenvolvimento da inte-
ligência e do pensamento, enquanto para Vygotsky ela se deve a mu-
danças que ocorrem na interação da criança com o meio social, em ra-
zão das diferentes posições que ocupa e das diferentes tarefas que lhe
são colocadas.
Assim, cada um desses autores dirige sua atenção para aspectos
distintos do processo de evolução da brincadeira, reconhecendo nele
diferentes momentos.
A perspectiva de Piaget sobre o desenvolvimento da
brincadeira
Os primeiros jogos que a criança realiza são denominados por
Piaget jogos de exercício. Estes não comportam ainda nenhum simbo-
lismo e consistem na repetição, por puro prazer, de comportamento que
ela já aprendeu.
Depois de ter aprendido, a partir dos 7 meses, a repelir um
obstáculo para agarrar o objetivo, T começa, entre 8 e 9 meses, a
sentir prazer nesse gênero de exercícios. Quando eu interponho,várias vezes seguidas, a minha mão ou um cartão entre a sua e o
brinquedo que ele cobiça, T chega a esquecer momentaneamente
esse brinquedo para limitar-se a repelir o obstáculo, rindo às gar-
galhadas. O que era adaptação inteligente converteu-se, pois, em
jogo por deslocamento do interesse para a própria ação indepen-
dentemente de sua finalidade.
1 32
	
(Situação relatada por Piaget em A formação do símbolo na
^'-	 	 criança.)
O jogo vai se tornando mais
elaborado e mais complexo à medi-
da que o bebê começa a combinar
ludicamente ações diferentes, pas-
sando de uma a outra ação sem em-
preender nenhum esforço que vise
adaptação ao meio ou aos objetos e
sem ter nenhuma finalidade deter-
minada. O bebê repete certas ações
pelo prazer de exercitá-las.
Se num primeiro momento as
ações do bebê são repetidas, apli-
cando-se aos mesmos objetos (co-
mo, por exemplo, repetir com o travesseiro todos os movimentos que
habitualmente faz para dormir: deitar-se de lado, apoiando nele a cabe-
ça, chupar-lhe as franjas, fechar os olhos, etc.), chega um momento em
que outros e novos objetos começam a ser empregados.
J. (1 ano e 3 meses) vê uma toalha cujas bordas franjadas lhe
recordam vagamente as de seu travesseiro: apanha-a, retém uma
ponta na sua mão direita, chupa o polegar da mesma mão e deita-se
de lado, rindo muito. Conserva os olhos abertos mas pisca-os de tem-
pos a tempos, como se quisesse fazer uma alusão aos olhos fechados
para dormir. Enfim, rindo cada vez mais, grita nanã (= dormir).
(Situação relatada por Piaget em A formação do símbolo na
criança.)
É apenas por
puro prazer que
os bebês repetem
certas ações.
O jogo do faz-de-conta surge quando a criança torna-se
capaz de representar objetos e acontecimentos ausentes.
Esse tipo de jogo dá origem
ao jogo simbólico (o faz-de-con-
ta), que surge na criança quando
seu pensamento torna-se capaz
da representação simbólica (mais
ou menos aos 2 anos). Diferente-
mente do jogo de exercício, que
não supõe o pensamento nem a
representação mental de objetos
ou situações, o jogo simbólico,
conforme já observamos, impli-
ca a representação de objetos e
acontecimentos ausentes.
De acordo com Piaget, o jo-
go simbólico começa por comportamentos
pelos quais a criança imita objetos, pessoas
ou situações.Aos poucos, a brincadeira sim-
bólica com outras crianças (casinha, escoli-
nha, etc.) começa a ter lugar, e o simbolismo lúdico vai se tornando mais
complexo. O símbolo lúdico pouco a pouco leva às representações adap-
134
tadas, em que verdadeiras dramatizações com papéis definidos ocupam
o lugar do faz-de-conta. Construções com madeira, pedras, modelagem,
etc. passam a ser utilizadas, substituindo as transformações mais rudi-
mentares dos objetos que ocorrem no jogo de faz-de-conta.
Assim, o jogo simbólico se desenvolve na direção de uma atividade
mais construtiva, com finalidade de adaptação ao real. Os jogos de cons-
trução (em que a criança constrói maquetes e réplicas de objeto a partir
dos mais variados materiais), os jogos dramáticos (teatrinho, drama-
tização) e também os jogos com regras (bolas de gude, cartas, amare-
linha, etc.), todos eles se devem ao desenvolvimento do jogo simbólico.
Os jogos com regras aparecem por volta dos 7 anos, possibilitados
pela crescente socialização do pensamento da criança, que conduz à
substituição do símbolo lúdico individual pelas regras. Ao contrário do
simbolismo, a regra supõe relações interindividuais, pois é "uma regu-
laridade imposta pelo grupo, e de tal sorte que a sua violação representa
uma falta" (Piaget, 1978: 148).
Os jogos com regras são jogos de combinações sensório-motoras
(como corridas, bolas de gude, etc.) ou intelectuais (cartas, xadrez,
etc.). Quase sempre há entre indivíduos competições que são reguladas
por regras estabelecidas pelo grupo, por acordo momentâneo ou por
regras transmitidas de uma geração a outra:
[...] os jogos de regras podem ter origem quer em costumes
adultos que caíram em desuso (de origem mágico-religiosa, etc.),
quer em jogos de exercícios sensório-motores que se tornaram co-
letivos, quer, enfim, em jogos simbólicos que passaram igualmente
a coletivos mas esvaziando-se, então, de todo ou parte de seu con-
teúdo imaginativo, isto é, de seu próprio simbolismo.
(Piaget, 1978: 185)
A perspectiva de Vygotsky sobre o desenvolvimento
da brincadeira
De acordo com Vygotsky, as primeiras brincadeiras surgem da ne-
cessidade de dominar o mundo dos objetos humanos. Ao brincar, a crian-
ça tenta agir sobre os objetos, como os adultos. É por isso que a brin-
cadeira de crianças mais novas caracteriza-se pela reprodução de ações
humanas realizadas em torno de objetos. Elas brincam de montar um
cavalo, de dirigir um trem, de alimentar, trocar ou banhar uma boneca.
Durante o desenvolvimento dessas brincadeiras, as relações huma-
nas incluídas nessas ações começam a aparecer mais claramente. As cri-
anças passam a brincar não apenas de dirigir um trem, mas reproduzem
as relações humanas em que o maquinista está envolvido. Já não importa
apenas a relação entre o maquinista e o trem (a ação de conduzir o trem),
mas também as relações entre o maquinista e seu ajudante, os passagei-
ros, o chefe da estação e o funcionário que dá o sinal de partida.
Ao embalar a boneca, trocar sua roupa, dar-lhe banho ou comidi-
nha, a criança pequena assume o papel de mãe, preocupando-se em re-
produzir as ações maternas. Já a criança mais velha inclui essas ações
em um contexto de relações sociais mais amplo, em que não importam
apenas as ações que a mãe realiza com o filho, mas as relações entre
ambos. Ela ralha com a boneca, leva-a ao médico ou à escola, o pai e
outros irmãos podem aparecer, trazendo para o primeiro plano as rela-
ções sociais em que mãe e criança estão inseridas.
Nas brincadeiras de grupo, as relações sociais são reproduzidas nas
relações das crianças entre si. Reguladas por regras implícitas de com-
portamento, essas relações são uma pré-condição importante para que,
aos poucos, as crianças tornem-se conscientes da existência de regras
na brincadeira. E sobre essa base que surgem os jogos com regras (co-
mo amarelinha, esportes, cartas).
Vygotsky afirma que "da mesma forma que uma situação imaginá-
ria tem que conter regras de comportamento, todo jogo com regras
contém uma situação imaginária". O jogo de xadrez (que é um jogo
com regras), por exemplo, baseia-se em uma situação imaginária.
Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1970. v. 1.
Ao se vestirem
de mulher, as
meninas
reproduzem
ações sociais
do seu meio.
135
O cavalo, o rei, a rainha e
outras peças só podem ser
movidos no tabuleiro de ma-
neiras específicas, determi-
nadas por uma situação ima-
ginária. O mesmo ocorre nos
jogos com cartas, na bata-
lha-naval, no jogo de bolas
de gude e outros.
Assim, no contexto das
práticas histórico-culturais,
a brincadeira se desenvol-
ve, passando de uma situa-
ção claramente imaginária,
com regras implícitas, para uma situação implicitamente imaginá-
ria, com regras e objetivos claros.
Da mesma forma que a brincadeira, o papel que ela exerce no de-
senvolvimento infantil também se modifica. Na idade pré-escolar, a
brincadeira de faz-de-conta é a principal atividade da criança. Já na ida-
de escolar, os jogos com regras e os esportes tomam-se mais impor-
tantes. Estes têm um papel específico no desenvolvimento, mas não são
tão fundamentais como o faz-de-conta na idade pré-escolar. A instrução
formal, culturalmente valorizada e estimulada, passa a ocupar então o
papel central no desenvolvimento da criança.
Brincando, aprendendo e sendo
Após tratar do papel da brincadeira no desenvolvimento infantil
em nossa sociedade, vamos retornar à questão do seu lugar na escola.
Brincar na escola não é a mesma coisa que brincar em casa ou na
rua. O cotidiano escolar é marcado pelas características, pelas funções e
pelo modo de funcionamento dessa instituição.
Na escola, como lugar essencialmente destinado à apropriação e
elaboração pela criança de determinadashabilidades e determinados
conteúdos do saber historicamente construído, a brincadeira é negada,
secundarizada ou vinculada a seus objetivos didáticos. Nesse último
caso, diz-se que brincar é uma forma de aprender, privilegiando-se as-
sim a atividade cognitiva implícita na brincadeira, em detrimento de seu
caráter lúdico.
E na escola existe o professor, que é o adulto que conduz intencio-
nalmente as relações de ensino, de acordo com objetivos e concepções
didático-pedagógicos. Concepções e objetivos que constituem, ao mes-
mo tempo, o crivo de seleção das atividades apresentadas às crianças e
a "lente" com a qual ele focaliza o que elas fazem e dizem. Diferente-
136
	
do adulto que em casa vê a criança brincar, ou brinca com ela e1.36
	
para ela, "experimentando com o acaso" (Novalis), o professor relacio-
No jogo de regras
estão presentes
também situações
imaginárias.
na-se com a brincadeira como um procedimento previsto em seu plano
de ação com as crianças.
No entanto, nas condições concretas do cotidiano escolar, como o
brincar se realiza?
Brincando na escola
Sala de jogos. Acompanhadas pela professora, as crian-
ças do jardim (5 anos) vão se acomodando nas mesinhas e esco-
lhendo, nas prateleiras, os jogos e materiais com que desejam ocu-
par-se.
O material disponível à exploração das crianças é consti-
tuído basicamente por jogos pedagógicos — quebra-cabeças, jo-
gos de encaixe e montagem, placas de alinhavo, etc.
Nesse espaço, a professora não precisa orientar verbal-
mente a atividade dos alunos. A próprig organização das condi-
ções físicas da sala indica o que é esperado deles, o que é permiti-
do a eles nesse lugar e momento da rotina escolar.
Na situação há possibilidades de escolha. Não há lugares
marcados, nem uma tarefa única para todos — cada criança esco-
lhe com que e com quem brincar, onde sentar.
A situação é um convite à exploração — os jogos estão à
disposição para serem manipulados, observados... Eles permitem/
incitam a atividade das crianças. Nos jogos há problemas implíci-
tos a serem solucionados: para que servem as peças? Como
montá-las?A criança obedece às sugestões dos brinquedos, apren-
dendo a usá-los dentro das regras a que foram destinados.
Mas essa não é a única forma de explorá-los. Além de sua
experiência ou conhecimento desses tipos de jogos, as crianças
também exploram as peças que os compõem, elaborando outras
possibilidades e modos de brincar com elas.
Epossível comparar as peças, juntá-las ao acaso, agrupá-
las segundo os mais diferentes critérios e até desenhar com elas,
percorrendo os múltiplos caminhos que o material oferece à sua
atividade.
Sem levar em conta figura e forma, Guilherme junta as
peças de um quebra-cabeça em pares. Ana, percebendo o contorno
do quebra-cabeça, uma borda azul e reta existente em várias pe-
ças, utiliza-o como ponto de encontro para enfileirá-las, sem se
importar com os encaixes. Fernando engata quatro peças montan-
do, empolgado, um trenzinho, enquanto Júlio transforma a haste e
as argolas, que formariam o corpo do palhaço, no eixo e nas rodas
de um avião.
Sentadas no chão, Carol, Elisa e Natália brincam de ali-
nhavo. Enquanto as mãos movimentam-se ritmadamente sobre as
placas, elas conversam.
Carol: "Eu era a costureira. Eu tava tão cansada, mas
preciso terminar este vestido".
137
Por meio de
jogos, na escola,
as crianças
reproduzem
diversas
situações sociais:
das trocas
interpessoais, da
negociação. da
disputa.
138
Elisa: "Eu também".
Natália: "Eu também. É pra festa de hoje à noite ".
Carol: "E duro ser costureira. Dá uma dor na costa.
Tem que trabalhar muito. Este vestido é tão grandão, não acaba
nunca".
Natália: "A gente furava o dedo na agulha e não vai poder
ir na festa ".
Elisa: "É... a madrasta não vai deixar: Ela vai com as fi-
lhas dela e a gente vai ficar sozinha trabalhando...".
Carol: "Que nem Cinderela, né?".
(Episódio extraído do relatório de estágio de Fernanda Victor. alu-
na do curso de Magistério, 1993.)
As crianças brincam, transformando os brinquedos, reelaborando-
os criativamente. Combinando os dados da experiência, elas constroem
uma nova realidade.
O movimento de ali-
nhavar, treino motor obje-
tivado pedagogicamente,
adquire um novo significa-
do — o "gesto" de costurar
—, enquanto as crianças se
transformam em costurei-
ras e, em seguida, são im-
pedidas de irem à festa, em
Cinderelas.
Pelo gesto, pela pala-
vra, a placa de alinhavo é
convertida em símbolo para
o jogo, e as crianças imitam
e vivenciam um mundo que
querem conquistar.
O faz-de-conta impõe-se aos objetivos didático-pedagógicos, redi-
mensionando-os. Na brincadeira, conhecimento e fabulação, experiên-
cia e simbolização entrelaçam-se.
Brincar na sala de jogos possibilita, também, o relacionamento en-
tre as crianças. Algumas ficam sozinhas. Outras se agrupam, mas têm
dificuldade de se entrosar, não sabem exatamente o que fazer, ficam
observando os colegas. Há as que falam com os amigos, trocam peças e
idéias, num trabalho conjunto efetivo e equilibrado.
Otávio fica em dúvida sobre onde colocar a peça do quebra-
cabeça que tem nas mãos. Danilo, ao seu lado, lhe diz: "Tá vendo
o nome?" (apontando para a parte já montada do quebra-cabeça).
"Então, coloca a sua peça embaixo."
(Episódio extraído do relatório de estágio de Juliana Nogueira.
aluna do curso de Magistério. 1993.)
Há grupos em que as relações são tensas, envolvendo disputa de
interesses, e com algumas crianças querendo se impor ao restante do
grupo. Como todas as crianças queriam o quebra-cabeça da árvore, es-
tabelece-se entre elas a seguinte conversa:
Ricardo: "Ah, Carla! Dá o da árvore para mim. Eu quero fazê
primeiro, tá?".
Fabiana: "Não, não pode dar pra ele. Tem que acabar de
montar pra pegar o outro ".
Carla: "Eu vou ficar com o da árvore. Depois eu vejo pra
quem eu vou dar".
Ricardo: "Isso não vale!".
Carla: "Eu e minhas amigas vamos ficar de mal de você! ".
(Episódio extraído do relatório de estágio de Juliana Nogueira,
aluna do curso de Magistério, 1993.)
No confronto das possibilidades, no exercício das trocas e negocia-
ções, vai se delineando a disputa entre os modos de ver e dizer o mundo
e o outro. Emergem, na dinâmica da brincadeira, as práticas sociais das
crianças, suas histórias em construção no jogo "real" e conflitante das
relações sociais.
O lugar da brincadeira na escola
Vista de perto, com enfoque na criança que brinca, a brincadeira na es-
cola se revela muito mais complexa, múltipla e contraditória do que leva em
conta o princípio didático-pedagógico que associa o brincar a aprender.
Brincar é, sem dúvida, uma forma de aprender, mas é muito mais
que isso. Brincar é experimentar-se, relacionar-se, imaginar-se, expres-
sar-se, compreender-se, confrontar-se, negociar, transformar-se, ser. Na
escola, a despeito dos objetivos do professor e de seu controle, a brinca-
deira não envolve apenas a atividade cognitiva da criança. Envolve a
criança toda. E prática social, atividade simbólica, forma de interação
com o outro. Acontece no âmago das disputas sociais, implica a consti-
tuição do sentido. E criação, desejo, emoção, ação voluntária.
Quando perde sua dimensão lúdica, sufocada por um uso didático
que a restringe a seu papel técnico, a brincadeira esvazia-se: a criança
explora rapidamente o material, esgotando-o. Isso se dá quando, em vez
de aprender brincando, a criança é levada a usar o brinquedo para
aprender.
Esse uso da brincadeira como estratégia de aprendizagem acentua-
se nas séries iniciais do 1? grau. Incentivada e considerada atividade
fundamental da criança na fase pré-escolar, a brincadeira costuma ser,
então, deixada de lado, ou apenas tolerada. Nas sociedades urbanas
contemporâneas, ler, escrever e estudar tornam-se as atividades funda-
mentais para as crianças em idade escolar, e os jogos e as brincadeiras
só têm lugar na prática pedagógica quando auxiliam a elaboração e
construção de conhecimentos sistematizados.
139
Nesse contexto, o jogo aparece (con)fundido com o "materialpossível o prolonga-
mento da vida e a diminuição da mortalidade infantil. A partir do século
XVII, gradativamente passou-se a admitir a idéia de que a criança era
diferente do adulto não apenas fisicamente. Começou-se então a con-
siderá-la como não preparada para a vida, cabendo aos pais, além da
garantia de sua sobrevivência, a responsabilidade por sua formação, en-
tendida principalmente como espiritual e moral. Nessa época foi que se
iniciou o costume de enviar crianças às escolas, as quais se ocupavam
basicamente com o ensino da religião e da moral e de algumas habilida-
des, como a leitura e a aritmética.
Se antes a socialização da criança acontecia em meio à convivência
direta com os adultos — ajudando os mais velhos ela aprendia valores,
costumes e habilidades —, a partir do século XVII, ela foi afastada do con-
vívio constante com eles e sua formação passou a ser responsabilidade da
família e da escola. Repare, na ilustração a seguir, um quadro do século
XVII, como a representação da criança se transformou: seu corpo, suas
proporções, seus movimentos
ganharam contornos que per-
mitem diferenciá-la claramente
dos adultos (compare com a re-
presentação do século II, a do
menino 'aprendendo a andar).
Repare também como ela é co-
locada como centro do interes-
se, da atenção e dos cuidados
dos adultos: seus primeiros
passos são acompanhados a-
tentamente pela mãe, pela ama
e pela avó.
O historiador Phillippe
Ariès cita um texto de 1602, que
fala da preocupação dos pais
com a educação das crianças:
Os pais que se preocupam com a educação de suas crianças
merecem mais respeito do que aqueles que se contentam em pô-las
no mundo. Eles lhes dão não apenas a vida, mas uma.vida boa e
santa. Por esse motivo, esses pais têm razão em enviar seus filhos,
desde a mais tenra idade, ao mercado da verdadeira sabedoria [o
colégio], onde eles se tornarão os artífices de sua própria fortuna...
(Ariès, 1981: 277.)
Mas a atuação da escola era ainda bastante limitada, tanto no que se
refere aos objetivos que ela assumia quanto em relação aos métodos que
utilizava e ao pequeno número de crianças que atendia.
A retirada da criança do mundo adulto teve repercussões no modo de
pensar sobre elas. No século XVIII, os filósofos começaram a apontar a
O primeiro passo
da infância,
quadro de
Marguerite
Gérard.
8
existência de um mundo próprio e autônomo da criança. Rousseau,
Pestalozzi e outros consideraram que a mente infantil opera diferentemente
da dos adultos. Isso possibilitou o estudo científico da criança e seu desen-
volvimento em suas formas próprias de organização (Charlot, 1979).
Mas foi apenas no começo do século XX que se iniciou efetiva-
mente o estudo científico da criança e do comportamento infantil. Des-
de então vem sendo desenvolvida uma série de pesquisas sobre diferen-
tes aspectos da vida psíquica da criança. Importantes sistemas teóricos
foram construídos e têm servido de base às reflexões sobre seu desen-
volvimento, sua afetividade e sua educação.
Além disso, diversas abordagens sobre os processos de aprendizagem
e desenvolvimento foram elaboradas, a partir de questões e interesses espe-
cíficos e com base em diferentes métodos de investigação. Enfocando te-
mas como a inteligência e as diferenças individuais, a maturação, a aprendi-
zagem, a construção do conhecimento e o desenvolvimento da criança, al-
gumas dessas abordagens têm exercido considerável influência nos meios
educacionais e levado a reflexões sobre as metodologias e conteúdos do
ensino escolar. Entre elas destacam-se a inatista-maturacionista, o
comportamentalismo, a piagetiana e a histórico-cultural.
E sobre essas abordagens que trataremos nos próximos capítulos,
destacando os autores mais representativos, os conceitos fundamentais
ligados a cada uma e as relações entre elas. Apresentaremos também
algumas das pesquisas que as embasaram, suas concepções quanto à
relação desenvolvimento-aprendizagem e sua influência na escola.
O início da psicologia da criança no Brasil
No Brasil, as principais pesquisas psicológicas sobre a criança
datam do início do século. Foram educadores, geralmente vincula-
dos às Escolas Normais, que implantaram a psicologia do desenvol-
vimento infantil, realizando pesquisas e experimentos com crianças
em idade escolar.
Alguns fatos que marcaram o início da psicologia da criança no
Brasil foram:
1) O estabelecimento, em 1914, de um laboratório de pedagogia
experimental junto à Escola Normal de São Paulo, onde crianças eram
submetidas a exames destinados a medir suas reações psicofísicas
(como, por exemplo, discriminações visuais, auditivas, etc).
2) A criação, em 1916, de um laboratório de psicologia pedagó-
gica, por uma academia de pedagogos do Rio de Janeiro. Esse labo-
ratório foi planejado por Alfred Binet (ver boxe no próximo tópico)
e, através dele, introduziram-se os testes psicológicos no Brasil, es-
pecialmente aqueles destinados a medir e avaliar as capacidades e
habilidades infantis.
3) Os estudos sobre a maturidade para a leitura em escolares,
realizados por Lourenço Filho na Escola Normal de Piracicaba/SP.
Sugestão de atividades
Trabalho de campo
Escolha uma classe da l! à 48 série para observar durante um pe-
ríodo de aula. Anote, em folhas de papel, a série observada, a data, o
horário do início e -do término da observação, o número de alunos pre-
sentes à aula, como está organizada a sala, que móveis e outros objetos
há nela (por exemplo, se as carteiras estão dispostas em círculos, grupos
ou fileiras; a posição da mesa do professor; se há armários, prateleiras,
murais, etc.).
Em seguida, vá anotando bem rapidamente tudo o que se passa na
sala de aula, prestando atenção aos seguintes aspectos:
• os conteúdos trabalhados;
• os recursos utilizados pela professora;
• as atividades realizadas pelas crianças;
• a movimentação das crianças e da professora;
• acontecimentos "não previstos":
a) interrupções da aula;
b) situações de briga, choro, doença, falta de material;
c) situações em que a professora perdeu a paciência;
d) assuntos sobre os quais a professora e os alunos falaram que vo-
cê considera não pertinentes aos conteúdos trabalhados;
• reação das crianças à sua presença.
Depois, organize o seu registro, agrupando as situações semelhan-
tes, de acordo com os aspectos sugeridos acima. Lembre-se de redigir
seus registros de maneira clara, para que possam ser compreendidos
facilmente por outras pessoas.
Comente, por escrito, as situações observadas, considerando a
questão da complexidade do ensinar e do aprender.
Problematizando a observação
Destaque um comportamento ou um episódio observado ao desen-
volver a atividade acima que, a seu ver, a psicologia poderia ajudar a
analisar. Justifique sua escolha. Enumere as perguntas que você faria,
pensando em encontrar respostas na psicologia.
Aprofundando as informações do texto
1
Conforme vimos, os sentimentos que temos atualmente em relação
à criança e as formas de nos comportarmos em relação a ela não são os
mesmos que se viam antes do século XVII. Para conhecer um pouco das
práticas sociais de educação da criança até então, leia um dos dois tex-
tos sugeridos a seguir, anotando seus pontos principais:
• P. Ariès, A história social da família e da criança (`Conclusão', p.
275-279).
• J. Gélis, A individualização da criança (História da vida privada,
v. 3).
Sugestão de leituras
ARIÈS, P. História social da família e da criança. Rio de Janeiro: Zahar,
1978.
GÉLIs, J. A individualização da criança. In: ARIÈS, P., CHARTIER, R. Histó-
ria da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. v. 3.
KORCZAK, J. Quando eu voltar a ser criança. São Paulo: Summus.
MIRANDA, M. G. O processo de socialização da criança: a evolução da
condição social da criança. In: LANE, S. T. M., CoDO, W. Psicologia
social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984.
Capítulo 2
A abordagem
inatista-maturacionista
Todos nós já ouvimos ou dissemos coisas como: "Ele ainda não
tem maturidade para aprender a ler";con-
creto" utilizado nas aulas de Matemática, como recurso para a fixação
de regras ortográficas ou de conteúdos a serem memorizados, como
meio para a elaboração conceituai. Usam-se bingos, jogos de memória,
"coelhinho sai da toca" (para dar noções espaciais, como de domínios e
fronteiras), etc.
Os professores propõem aos alunos: "Vamos fazer um jogo?". Mas
o jogo sugerido pouco tem dos "jogos de verdade" com que as crianças
se divertem fora da escola. Nele não há ganhador ou perdedor, pois o
objetivo é aprender, e não jogar. Seu propósito não diz respeito à ativi-
dade do próprio jogo, e sim a uma necessidade e a uma lógica alheias a
ele: a necessidade de sistematização de determinado conhecimento e a
lógica do próprio conhecimento.
A culminância das atividades envolvendo jogos está, do ponto de
vista pedagógico, no que acontece depois do jogo. Está no registro e na
análise do que se fez, dos resultados obtidos, do que se observou duran-
te o jogo, etc., e não no jogar em si.
Desfigurado, o jogo oscila entre a "ausência de sentido" e a
"busca de sentido". Ou as crianças não se envolvem, reclamam que
os jogos propostos são chatos, resistem ao registro e à análise, ou
então brincam, mas "sem prestar atenção ao que é importante". Pro-
fessores e crianças passam a desconfiar (por motivos distintos, natu-
ralmente) da presença do jogo na escola. Para que, então, o jogo na
escola? Como lidar com ele?
Ao possibilitarmos o jogo e observarmos as crianças brincando,
podemos nos ater a suas respostas (ao que elas fazem), identificando o
que elas conhecem (ou não), se desempenham as tarefas e se solucio-
nam os problemas. Podemos, também, intervir na sua atividade, no sen-
tido de ajustar suas respostas ao que delas esperamos durante o jogo. Os
dados observados, incluindo os "efeitos" de nossa intervenção, permi-
tem a nós, professores, classificar as crianças segundo seu desempenho,
- formando o grupo daquelas que conseguem montar o quebra-cabeça e o
daquelas que não conseguem, o das que agem prontamente e o das
dispersivas.
As respostas das crianças também podem nos servir de indicadores
do seu desenvolvimento: estas "já" montam o quebra-cabeça, aquelas
"ainda" não, etc. Nesse caso, continuamos classificando as crianças,
mas a classificação baseia-se no grau de proximidade ou distancia-
mento entre o que a criança faz e o que é esperado dela, de acordo com
as etapas do desenvolvimento apontadas pelas teorias da psicologia.
Nos dois modos acima descritos de utilizar o jogo, este serve como
instrumento de avaliação e, implicitamente, de seleção: a diversidade
que aparece entre as crianças é hierarquizada e analisada como desi-
gualdade. Uma teoria psicológica adotada pelo professor pode, então,
levá-lo a colocar e sustentar "etiquetas" nas crianças.
E possível, no entanto, fazer do jogo um momento de conhecimen-
to e de convivência com as crianças, que nos permite conhecer seus
modos e percursos de apropriação e elaboração do mundo, pois pode-
mos voltar nosso olhar não apenas para aquilo que elas fazem, mas para
o como elas fazem. Quais são as elaborações das crianças? Em que me-
dida respeitam ou transformam o projeto, a estrutura e a tática do jogo?
Que associações de idéias elas fazem no transcorrer da brincadeira? O
que se mostra significativo para elas? Que elementos se tornam subita-
mente personagens, passando a agir por conta própria? Durante a brin-
cadeira, o que elas dizem, a quem, quando, como? Como se relacionam
com o outro (real ou imaginado)?
Nesse processo o objeto de nossa atenção torna-se outro, bem
como nossas perguntas acerca da criança e de nossa prática. Busca-
mos um novo sentido para o nosso trabalho pedagógico: conhecer a
criança para trabalhar com ela, para brincar com ela, para aprender
com ela.
Aprender e ensinar a brincar
No parque, crianças de 4 anos brincam na areia. Uma delas se
aproxima da professora e oferece o "bolo de chocolate" que havia
feito com areia:
— Professora, experimenta. Fui eu que fiz.
— Hum! Que delícia! Ah, mas agora me deu sede. Você não
quer fazer um suco para mim?
— Tá bom.
A criança mistura água com um pouco de areia num copinho
de danone.
— Professora, olha o suco.
— Do que é?
— É de laranja.
— Que tipo de laranja?
— Laranja-lima.
A criança volta e faz outro bolo, só que agora com enfeites de
folha de árvore, e o oferece à professora.
— Você só sabe fazer doce?
— Não.
— Então eu quero um salgado.
— Eu vou preparar um salgadinho doce.
A criança volta com várias bolinhas de areia nas mãos.
— Oba! Que salgadinho é esse?
— Bolinha de queijo.
A professora, fingindo comer o salgadinho, oferece-o a outra
criança:
— Quer uma, Mateus?
— Eu não!!! — responde Mateus.
— Ah! Nós come de mentirinha — diz a primeira criança.
(Episódio extraído do relatório de estágio de Juliana Nogueira,
aluna do curso de Magistério, 1993.)
4
A professora, ao aceitar o bolo de chocolate, aceita o convite que a
criança lhe faz para brincarem juntas. Quem comanda a brincadeira é
a criança, mas a professora, assumindo um papel na brincadeira, enco-
raja-a a explorar outras possibilidades e nuances da situação imaginada:
"Você não quer fazer um suco para mim?", "Você só sabe fazer doce?".
A atenção ou destaque que a professora vai dando a determinados
aspectos da brincadeira constituem a via pela qual ela interfere na ativi-
dade da criança, não para ajustá-la à sua própria maneira de considerar
o jogo, mas para, explorando com ela outras possibilidades, enriquecê-
lo em organicidade e duração.
Pelo fato de a brincadeira não ser uma simples recordação de im-
pressões vividas, mas uma reelaboração criativa delas, e por consistir
sempre e apenas de materiais colhidos na realidade, o adulto tem nela
um importante papel. A vantagem de dispor de uma experiência mais
vasta, de um repertório mais amplo de formas para imitar lhe permite ir
mais longe com a imaginação. Ao compartilhar sua experiência inventi-
va com a criança, a professora "ensina-a" a brincar.
Na dinâmica do jogo, ela pode estimular e organizar as respostas
da criança, colocando ao seu alcance novos elementos e possibilida-
des sígnicas.
Além de ensinar, nessa relação a professora também aprende.
Como destaca Rodari, no seu Gramática da fantasia:
[...] aprende-se com a criança a falar com as peças do jogo, a
compreender seus nomes e papéis, a transformar um erro em uma
invenção, um gesto em uma história [...]; mas também a confiar
às peças mensagens secretas (porque são elas que dizem à criança
que a queremos bem, que ela pode contar conosco, que nossa
força é sua).
(1982: 93.)
Nesse terceiro modo de utilizar o jogo que descrevemos, o profes-
sor elabora um saber sobre as crianças (sobre as particularidades de
cada uma e sobre as regularidades no processo de como elas aprendem
e se desenvolvem) e um saber sobre sua prática (sobre as possibilida-
des de sua participação nos processos de aprendizagem e desenvolvi-
mento de cada uma e de todas as crianças com quem interage).
Nesse saber elaborado no cotidiano do trabalho pedagógico, as teo-
rias constituem um referencial importante para ajudar a perceber e com-
preender a complexidade, a multiplicidade e as contradições das rela-
ções de ensino.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
Elabore um quadro-resumo acerca das diferenças e semelhanças
entre as concepções de Vygotsky e Piaget sobre o desenvolvimento da
brincadeira da criança.
Trabalho de campo
Observe crianças brincando na escola e anote tudo o que puder,
seguindo as mesmas orientações dadas no capítulo anterior. Elabore um
relatório de suas observações, discutindo, a partir dos subsídios do tex-
to, questões relativas ao lugar do brinquedo na escola.
Exercitando a análise
O filme O Menino Maluquinho focaliza com sensibilidade a infân-
cia: os desejos, a família, as angústias, a escola, os amigos, as brincadei-
ras, as traquinagens.
Assista ao filme e, depois, organize um debate em classe. Troque
com os colegas opiniões e impressões sobre o filme e destaque aspec-tos, cenas, situações que possibilitem refletir sobre a brincadeira infan-
til, sua importância e seu desenvolvimento.
Sugestão de leitura
RODARI, G. Jogos no parque. In:	 . Gramática da fantasia. São
Paulo: Summus, 1982.
142
	
143
Capítulo 12
restrito e delimitado: as aulas de Educação Artística. Estas podem ser
tanto um espaço para a atividade artística criativa, para o ensino de téc-
nicas diferentes, quanto para a reprodução de modelos, por meio da
confecção de "trabalhos manuais", em que o trabalho de uma criança
seja semelhante aos das outras.
Desenho:
presença
constante na
pré-escola.
O desenho infantil
A professora distribui folhas em
branco, lápis e giz de cera. Uma agitação
toma conta das crianças. E hora de dese-
nhar. Elas falam umas com as outras,
contam sobre o que vão desenhar. Uma
olha o desenho da outra. Alguém diz que
não sabe fazer um gato. Gradativamente
as marcas no papel vão aparecendo: ga-
ratujas, bonecos, casinhas, animais. De-
senhos grandes, que ocupam toda a fo-
lha. Desenhos pequenos colocados em
um cantinho do papel. Monocromáticos
ou multicoloridos.
Atividade intensa e envolvente para
as crianças, o desenho na pré-escola tem
uma presença constante. É visto como
possibilidade de expressão, como incen-
tivo à criatividade. Ou ainda como indi-
cador do nível de desenvolvimento
cognitivo e afetivo das crianças. Tendo
em vista a alfabetização, o desenho é
também considerado uma forma agradável de trabalhar a coordenação
motora das crianças, sua capacidade de atenção e concentração, seus
conhecimentos sobre cores, formas, etc.
Na escola do 1? grau, a escrita, a leitura e os cálculos gradualmente
passam a ocupar o espaço do desenho e a determinar seu novo papel. As
crianças desenham para ilustrar um texto, para enfeitar seus cadernos,
para compor conjuntos numéricos. Desenham ainda nas aulas de Ciên-
cias ou Estudos Sociais, copiando dos livros o ciclo da água ou mapas
geográficos.
O desenho livre, a exploração das diversas possibilidades ofereci-
das pela atividade gráfica, quando ainda se mantém, ganha um espaço
Elemento capaz de proporcionar a livre expressão e a criatividade,
o desenho se faz presente na escola como exercício da coordenação
motora ou treino de habilidades manuais, como ilustração ou apoio para
a compreensão de determinados conteúdos ou, ainda, como recurso
para a mera ocupação do tempo quando a programação do dia já foi
cumprida.
Entretanto, que concepções sobre o desenho sustentam sua
presença na escola? Qual o significado do desenho para a criança?
Como ele se desenvolve? E qual o seu papel no desenvolvimento
e na aprendizagem da criança? Esses são alguns aspectos que nos
parecem fundamentais quando se busca a construção de uma prá-
tica pedagógica cientificamente fundamentada. Este capítulo pre-
tende trazer elementos que ajudem a compreensão e a reflexão
sobre esses pontos.
Quando o traço no papel recebe um nome
Quando observamos uma criança muito pequena rabiscando ou
"desenhando", notamos facilmente que os traços não são nada mais que
a fixação no papel de seus movimentos das mãos, dos braços e, às ve-
zes, até do corpo todo.
Os primeiros desenhos ou rabiscos infantis podem ser vistos mais
como gestos que imprimem marcas em uma superfície do que propria-
mente como desenhos.
De acordo com Vygotsky, o desenvolvimento posterior do desenho
não é puramente mecânico nem tem explicação em si mesmo: é preciso
que, num dado momento, a criança descubra que os traços feitos por ela
podem significar algo.
Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1970. v. 3.
145
146
Rafael, de 3 anos, está desenhando em sua casa. Sentado à
mesa, produz com o lápis movimentos mais ou menos circulares,
deixando marcas no papel. Num dado momento, olha para a sua
produção e exclama, dirigindo-se à sua mãe: "Olha, mãe! Eu fiz
um fusca!".
(Episódio extraído das experiências familiares de uma das au-
toras.)
A criança, ao nomear o seu desenho depois que o fez, relaciona os
traços que produziu (que podem ou não assemelhar-se a algo real) a um
objeto concreto (no caso, um fusca). E, pelo ato de nomear, seu desenho
torna-se significativo.
A fala tem, assim, um papel fundamental na descoberta que a crian-
ça faz de que seus rabiscos podem significar algo, segundo Vygotsky. E
importante lembrar que, antes que a criança nomeie seu desenho, ele é
nomeado pelos adultos que a rodeiam (habitualmente perguntam à
criança o que ela desenhou ou dizem coisas como "Olha, você fez um
menininho!").
Embora a descoberta de que os traços do desenho podem repre-
sentar objetos reais ocorra nos primeiros anos da infância, Vygotsky
observa que essa descoberta ainda não equivale à da função simbólica
do desenho.
A nomeação, feita inicialmente depois de pronto o desenho,
passa gradativamente a acompanhar o ato de desenhar. E muito co-
mum observarmos crianças que começam a fazer traços no papel e
vão, durante o ato de desenhar, nomeando o que estão fazendo. A
decisão quanto ao que desenhar não é tomada antecipadamente, mas
no decorrer do próprio desenho elas falam e nomeiam o que estão
fazendo.
Depois, a nomeação começa a se dar no início do processo de dese-
nhar. A criança diz "Vou desenhar uma flor" ou "Vou fazer uma casa",
antes de começar a desenhar.
Essa mudança relativa ao momento da nomeação no desenho de-
monstra que os primeiros traçados da criança ainda não representam
simbolicamente, em si mesmos, os objetos reais. E apenas pelo ato de
nomeação, pela utilização da linguagem falada que os desenhos ga-
nham algum significado. Tanto é assim que muitas vezes o significado
passa a ser outro no decorrer do ato de desenhar. A criança pode expli-
car que está fazendo um gato e, antes mesmo de completar o desenho,
dizer "Isto é uma bruxa".
Por isso Vygotsky afirma que a "representação simbólica primária
deve ser atribuída à fala" e considera que o próprio desenho torna-se
simbólico pela utilização da linguagem oral. O desenho transforma-se
efetivamente em representação simbólica quando a nomeação passa a
se dar no início do ato de desenhar e a criança torna-se capaz de decidir
antecipadamente o que vai desenhar.
A criança desenha o que sabe e não o que vê
Rabiscos, bonecos formados por um círculo do qual saem dois tra-
ços, carro de perfil com quatro rodas, casinha com chaminé, árvores e
sol com raios. Essas e outras formas tomadas pelo desenho da criança
são vistas por Vygotsky em sua estreita relação com a linguagem. Para
ele, "o desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a
linguagem verbal" (1984: 127), conforme já observamos.
Os primeiros desenhos infantis, reproduzindo somente aspectos es-
senciais dos objetos, assemelham-se a conceitos verbais. Ao desenhar, a
criança tem a fala como base: ela conta uma história ou o que ela sabe
sobre os objetos. Vygotsky diz que a criança não se preocupa com a
representação da realidade, com a reprodução daquilo que vê. Ao con-
trário, ela tenta, por meio do desenho, identificar, designar, indicar as-
pectos determinados dos objetos. Ou seja, a criança não começa dese-
nhando o que vê, mas sim o que sabe sobre os objetos.
..
	
/
Fig. 1
	
Rareto• 4 a
Na figura 1, por exemplo, o desenho mos-
tra traços que, antes de representar em deta-
lhes o que a criança quis desenhar (um carro-
guincho), indicam aspectos de um carro-guin-
cho: duas formas contendo duas rodas cada
uma, ligadas por um traço. Na figura 2, pes- Fig. 2
soas são representadas por formas que indi-
cam a cabeça, os braços e as pernas.
Isso implica certo grau de abstração, de generalização, do mesmo
modo que a palavra na linguagem verbal. Já vimos, em capítulos anteriores,
que o significado de determinada palavra não é um objeto concreto com
todas as suas características. O significado da palavra coelho, por exemplo,
comporta uma abstração, uma generalização que poderia ser expressa da
seguinte forma: "pequeno mamífero leporídeo, selvagem e doméstico"
(Dicionário Melhoramentos da língua portuguesa). Esse conceito verbal
não faz referênciapectiva de maneira correta, tomando-a pelo que é: uma "simples
montagem" estética e não uma categoria do espírito.
(Meredieu, 1974: 41.)
Vygotsky também observa que a capacidade de desenhar o que se
vê não é algo que se desenvolve espontaneamente. Ele demonstra, em-
pregando dados de outros pesquisadores, que a idade normalmente
identificada pelas teorias como aquela em que se chega ao realismo
visual coincide com o momento em que os desenhos começam a desa-
parecer.
De fato, poucas crianças atingem esse "último estágio" do desen-
volvimento do desenho sem terem recebido algum tipo de treino ou
instrução especial. A maioria gradativamente abandona a atividade do
desenho e, quando desenha, não chega a ultrapassar as formas próprias
do estágio que Luquet denominou realismo intelectual. Quantos de nós
mesmos dizemos que não sabemos desenhar? E, se nos vimos obriga-
dos a fazê-lo, produzimos geralmente algo que se assemelha ao dese-
nho de uma criança de 8 ou 9 anos.
Ao que tudo indica, o realismo visual equivale, de fato, a um pa-
drão estético convencional socialmente valorizado, não tendo sua
aprendizagem nada de natural. A partir de determinada idade, a criança
já não se contenta com seu desenho, como aponta Vygotsky. Seja por
não conseguir corresponder aos padrões socialmente valorizados, seja
por já não ser suficiente para atender às necessidades expressivas da
criança, o desenho acaba por ser abandonado.
A partir de certo momento, torna-se fundamental a aprendizagem
de técnicas, pois é apenas quando a criança ou o adolescente passam a
conhecer as diferentes técnicas e os diversos padrões estéticos consti-
tuídos culturalmente que sua própria habilidade poderá continuar a se
desenvolver, ajudando-a a expressar sua visão de mundo.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Organize um quadro-resumo com as etapas de desenvolvimento do
desenho discriminadas por Luquet.
2. Reproduza o quadro abaixo e, a partir das informações do texto,
complete-o.
Vygotsky
	
Piaget
Semelhanças
Diferenças
Trabalho de campo
Observe pelo menos duas crianças de idades diferentes (uma de 2 e
outra de 5 anos, por exemplo) desenhando, em casa ou na escola. Caso
não surja naturalmente uma oportunidade para isso, convide crianças
conhecidas (parentes, vizinhos) para desenhar. Se for necessário, provi-
dencie o material: folhas de sulfite, lápis ou giz de cera. Peça às crianças
que lhe dêem ou emprestem um dos desenhos que elas fizerem para
você mostrar a seus colegas na escola ou para guardar.
Durante a observação, preste atenção à fala da criança: o que ela diz,
a quem, em que momento da produção de seu desenho. Se possível, faça
suas anotações na própria situação de observação, ou logo em seguida.
Elabore um pequeno relatório, analisando, a partir dos subsídios do
texto, o papel da fala na elaboração do desenho. Tente também classifi-
car os desenhos que coletou, segundo os estágios propostos por Luquet.
Justifique sua classificação e, caso tenha encontrado dificuldades, co-
mente-as.
Exercitando a análise
1. Convide o professor de Educação Artística da escola para fazer uma
breve apresentação (se possível, ilustrada com reproduções de obras
famosas) da evolução histórica da pintura, com o objetivo de discutir
a questão do realismo nas representações gráficas. Faça anotações
durante a exposição do professor. Depois, com base nas anotações e
na releitura do capítulo, elabore um texto analisando o realismo no
desenho infantil. 153
154
2. Faça um desenho. Cada qual deve fazer pelo menos um e, depois,
vocês devem organizar uma exposição de seus próprios desenhos.
Analisem a exposição: Em que os desenhos que vocês produziram
são diferentes dos das crianças? Em que são parecidos?
A partir dessa análise, discutam as abordagens apresentadas no texto
sobre a evolução do desenho. Todos os adultos atingem a última eta-
pa identificada por Luquet e Piaget? Por quê?
Sugestão de leituras
DERDYCK, E. Fonnas de pensar o desenho; o desenvolvimento do gra-
fismo infantil. São Paulo: Scipione. (Coleção Magistério).
MEREDrEU, F. O desenho infantil. São Paulo: Cultrix, 1974.
Capítulo 13
Desenhando na escola
Numa sala de pré-escola, as crianças estão desenhando. Ivo pede a
Toni que lhe faça um desenho. Toni concorda, mas continua desenhando.
Ivo: Toni, você faiz um menininho desse pra mim, faiz? (Toni
concorda com a cabeça, e continua desenhando). Que que é isso,
Toni?
Toni: Ué, maçã, aqui laranja e aqui é a banana (vai apontando).
Ivo: Nunca vi laranja assim, ó (mostra na folha de Toni).
Toni:...Vai dando um giz, vai dando um cor de abacate (Ivo
havia pegado todos os lápis).
Ivo: Num tem cor de abacate.
Toni: O cor de abacate (tira o verde do monte que está com
Ivo).
[...]
Toni desenha uma árvore com frutas.
Ivo: Toni, como que faiz árvore?
Toni: Faz árvore? Qué que eu faço?
Ivo: Quero.
Toni: Cê qué amarrão ou azul?
Ivo: Quero...
Toni: Cor de laranja?
Ivo: Quero cor de aba... ó, é, é assim, assim, assim (mostra no
desenho de Toni).
Toni: Qué com fruta?
Ivo: Quero com maçã, com... com...
Toni: Com laranja.
Ivo: E com...
Toni: Uva.
Ivo: Com uva!
Toni: Maçã. E com banana, não é?
Ivo: Cadê a banana?
155
156
Toni: A banana é aqui (aponta), e aqui é abacate. Abacate é
mais gostosa com açúcar.
Ivo: Eu quero abacate.
(...J
Ivo: Pode pintá colorido?
Toni: Pode!
Ivo: Cor de abacate? (Ivo pinta e Toni olha, debruçado sobre
a mesa).
Toni: Cor de abacate também. Faz as fruta também. Num es-
quece, tá bom?
Ivo: Eu num sei fazê fruta.
Toni: Fruta? Então deixa que eu faço.
(Episódio apresentado na dissertação de mestrado de Silvia Maria
Cintra da Silva, As condições sociais de produção do desenho,
Unicamp, 1993. Os comentários que faremos a seguir são de nossa
responsabilidade, embora inspirados nas belas análises feitas pela
autora no decorrer de sua dissertação.)
Toni aparece aqui como aquele que sabe, que serve de modelo, que
ensina e que faz para o outro. Nem por isso Ivo deixa de fazer uma
observação crítica sobre o seu desenho ("Que que é isso?", "Nunca vi
laranja assim"). O fato de dizer "Nunca vi laranja assim" demonstra que
Ivo espera que o desenho se pareça com aquilo que ele vê na realidade.
E talvez seja por isso que ele pede a Toni que lhe desenhe um menini-
nho. Toni "sabe desenhar", seus desenhos se parecem com o que se vê.
Ivo provavelmente ainda não consegue fazer o mesmo.
Depois de observar o desenho de Toni, Ivo não quer mais que este
lhe faça um menininho. Quer saber e aprender como se faz uma árvore.
Toni se propõe fazer por ele e para ele. Ivo aceita e começam, então, a
negociar as cores e os detalhes do desenho.
Ivo pinta sua árvore. Ainda aqui pede a ajuda de Toni: "Pode pintá
colorido?", "Cor de abacate?". A expressão cor de abacate, que no iní-
cio fora utilizada por Toni sem que Ivo identificasse a que cor se referia
("Num tem cor de abacate"), é agora também utilizada por este.
Toni assume realmente o papel daquele que sabe e que ensina. Diz
a Ivo que faça as frutas e propõe-se desenhá-las quando este diz que
não sabe.
Se tivéssemos em mãos o desenho de Ivo, o que veríamos? Uma
árvore com frutas coloridas, pela qual poderíamos tentar avaliar sua
capacidade de desenhar. Qual o tema de seu desenho? A forma aproxi-
ma-se da realidade? As cores que utilizou estão "adequadas"?
A partir das respostas a essas perguntas, faríamos uma avaliação ou
uma apreciação do trabalho de Ivo e de sua capacidade de desenhar. A
avaliação provavelmente não corresponderia à realidade. Se comparás-
semos o seu desenho com o de Toni, poderíamos concluir que Ivo fez
uma cópia ou, então, que Toni é realmente o autor do desenho. Nesse
caso, não haveria nada a dizer sobre a capacidade de desenhar de Ivo,
sobre sua escolha de tema e a forma de seu desenho.
Analisando o processo de elaboração do desenho
Mas, quando observamos o processo de elaboração do desenho vi-
vido por Ivo e Toni, o que apreendemos sobre eles, sobre como dese-
nham e sobre como seu desenho vai sendo produzido?
Nesseprocesso, uma criança serve de modelo para a outra, tem
seus desenhos valorizados, já que "sabe fazer". Essa criança auxilia,
explica, ensina, ajuda a decidir e faz pela outra, a que pede ajuda e
explicações, a que aparentemente "não sabe", mas que critica e opina.
Durante a elaboração do desenho, há um partilhar de saberes, de infor-
mações e de experiências ("Nunca vi laranja assim", "O cor de
abacate", "Abacate é mais gostosa com açúcar"). Há também negocia-
ção envolvendo formas, cores, o que e como desenhar.
Quando observamos o processo de elaboração do desenho pelas
crianças, colocamos em questão a pretensa natureza individual dessa
forma de atividade. A participação do outro nesse processo é clara: um
adulto ou outra criança auxilia, fornece pistas ou instruções, opina, cri-
tica, elogia, incentiva ou faz junto.
Também nos modelos à disposição da criança, está presente a parti-
cipação do outro. O desenho da professora, de um colega ou do irmão, as
gravuras dos livros, das revistas, das propagandas, etc., sugerem os temas,
as formas, as cores, evidenciam o que é socialmente valorizado como
belo, correto, bem-feito, indicam o que é saber e não saber desenhar.
Portanto, o processo de aprender a desenhar implica a interação da
criança com outros membros de seu grupo cultural e com modelos so-
cialmente disponíveis. O desenho evolui à medida que a criança se
apropria das formas culturalmente constituídas de atividade gráfica.
O desenho é
sempre resultado
das interações
sociais somadas
ao auxílio que o
indivíduo recebe
e aos materiais e
técnicas a que
ele tem acesso.
157
Desenhando, as
crianças
partilham seus
saberes.
158
O desenhar não é,
assim, uma atividade
necessariamente solitá-
ria e individual. Não é
apenas o grau de maturi-
dade ou o nível de de-
senvolvimento do pen-
samento que se manifes-
tam nos desenhos da
criança. O que e como
ela desenha emerge das
interações sociais em
que ela está inserida.
Depende do auxílio, das
pistas e instruções que
recebe; da partilha de in-
formações, opiniões, preferências; da sua relação com os modelos, os
materiais e as técnicas a que tem acesso.
E a criatividade, onde fica?
Será possível criar algo novo sem recorrer às nossas experiências
anteriores? Vygotsky afirma que a possibilidade de criação do ho-
mem está apoiada em sua faculdade de combinar o antigo com o novo
a partir de elementos da sua própria experiência. A atividade criadora
encontra-se em relação direta não só com a riqueza e a variedade de
nossas experiências individuais, mas também com as experiências
socialmente produzidas pela humanidade. Cada grande invento, des-
coberta ou obra de arte produzidos pelo homem tem como base para
seu surgimento a enorme experiência acumulada social e cultural-
mente.
Vygotsky nos dá o seguinte exemplo da relação entre criação e
meio social:
Suponhamos que nas ilhas Samoa nascesse uma criança dota-
da das qualidades e do gênio de um Mozart. Que poderia fazer?
No máximo, ampliar a gama de três ou quatro tons para sete e
compor algumas melodias um pouco mais complicadas, mas seria
tão incapaz de compor sinfonias como Arquimedes de construir um
dínamo elétrico.
(Vygotsky. Imaginación p el arte en la infancia. México:
Hispénicas. 1987.)
Toda obra criadora parte sempre de níveis alcançados anteriormen-
te (seja na arte, seja na ciência), e nenhuma descoberta ou obra original
aparece antes que estejam socialmente criadas as condições materiais e
psicológicas para seu surgimento.
Assim, antes de ser um potencial de certos indivíduos, a criativi-
dade é algo que emerge de práticas sociais próprias de determinadas
épocas históricas e de determinados grupos culturais.
Logo, o desenvolvimento da criatividade depende das experiên-
cias, dos interesses e necessidades da criança, mas também de conheci-
mentos técnicos, das tradições e dos modelos de criação a que ela tem
acesso. O desenvolvimento do desenho criativo envolve a apropriação
pela criança da experiência cultural. Quanto mais ricas essas experiên-
cias, quanto mais variados os modelos a que tiver acesso, quanto mais
incentivos, auxílios, técnicas e materiais lhe forem proporcionados,
maior será a sua capacidade criativa.
Desenhando e aprendendo
Numa sala de pré-escola, a professora aproxima-se para ver os
desenhos das crianças: Esse aqui é a menina, é? Esse que é a meni-
na? Que que é, as pernas da menina?
Eva: É.
P: Cê fez uma perna vermelha e outra verde? Que mais cê fez
aí? E a cabecinha dela? Faz a cabeça pra ela.
Lu: E a boca?
P: Não, pra mim isso é o corpo... Faz o chão pra ela não ficar
voando.
Eva: Onde tá o chão?
P: Onde é as pernas dela? Mostra pra mim.
Eva: Aqui (mostra no desenho).
P: Então, então faz o chão pra ela não ficar voando.
Eva desenha um traço, o chão, sob as pernas da menina.
P: Isso, muito bem! Então aqui é a perninha dela? (indica com
o dedo).
Eva: E.
P: Aqui é os braços, a perna, agora faz a cabecinha dela.
[...I
P: Isso, Eva. Agora o olhinho, pra ela não ficar sem olho...
Eva risca em outro lugar da folha.
P: Aí não é o olho não, né? O que que é aí?
Eva: Aí é a cabeça!
P: Aí que é a cabeça? Então faz!
Lu: A oreia, cadê a oreia?
Gil: Cadê a oreia?
P: Faltou a boca, ó (Eva desenha a boca). E o nariz? (ele faz).
Gil: E a oreia? isso que é oreia, faiz otra oreia aqui, ó (aponta
com o lápis no desenho de Eva).
159
160
Que modelos estão sendo oferecidos
às crianças na escola? Que padrões de de-
senho estão sendo valorizados? Como se
dá a participação do professor e das crian-
ças nessa atividade? Que materiais estão
sendo utilizados pela criança?
A escola e o desenho
Para as questões formuladas acima, não
há uma única resposta. Os inúmeros modos
de lidar com o desenho infantil na escola re-
fletem as diversas concepções que funda-
mentam o trabalho pedagógico cotidiano.
Não oferecer modelos, não intervir,
deixar que a criança desenhe sozinha.
Direcionar a produção da criança, valori-
zando um único modelo e procurando
ensiná-la a "desenhar corretamente". Dis-
tribuir folhas mimeografadas para colorir
ou cobrir o pontilhado, determinando as
cores que devem ser utilizadas. Essas são
algumas práticas relativas ao desenho pre-
sentes no cotidiano escolar.
Quando a escola incentiva a criança a
desenhar livremente, a construir sozinha
seu próprio trabalho, com o objetivo de
possibilitar o desenvolvimento livre do de-
senho, da criatividade e da expressão, ain-
da assim os modelos e o outro estão pre-
sentes. Afinal, não há outros desenhos na
sala de aula? Não há gravuras, livros de
histórias, desenhos da professora e de ou-
tras crianças pelo ambiente? As crianças
não comentam, opinam, avaliam os dese-
nhos umas das outras?
161
Lu: É mesmo. Fica igual a um coelho! Cadê os cabelo?
P: O cabelo, ela esqueceu? Cê esqueceu do cabelo, Eva?
Eva: Aí, o nariz.
(Episódio apresentado na dissertação de mestrado de Silvia M. C. da
Silva, As condições sociais de produção do desenho, Unicamp, 1993.)
Desenhar na escola é desenhar com os outros e para os outros.
Crianças e professora participam da construção do desenho de Eva. Su-
gerem, apontam, indicam, comentam. O desenho de Eva vai se com-
pondo, se transformando. E Eva vai "aprendendo" a desenhar, vai des-
cobrindo o que é esperado de seu desenho, quais os padrões socialmen-
te valorizados como corretos, necessários e bonitos.
Esses padrões, no episódio descrito acima, aparecem na interven-
ção da professora, revelando suas concepções sobre o desenho infantil:
"Cê fez uma perna vermelha e uma verde?", "Faz o chão pra ela não
ficar voando", "E a cabecinha dela?".
A professora espera que o desenho da criança reproduza o mais
fielmente possível a realidade e atua tendo em vista esse resultado. Uma
menininha precisa ter pernas, braços, cabeça, olhos, cabelo, etc., suas
pernas não podem ser uma vermelha e outra verde. O espaço do papel
precisa ser delimitado, a criança precisa aprender a se orientar nele:
fazer o chão é necessário.
Há uma partilha de experiências sobre a atividade do desenho que
envolve o que acriança já sabe fazer e os conhecimentos e as concep-
ções da professora e de outras crianças. E nesse jogo que o desenho vai
emergindo, trazendo em si as marcas da participação do outro.
A criança não desenha sozinha. Seu desenho não é desvinculado do
momento e do espaço em que é produzido. Ao contrário, constitui-se
sempre a partir de modelos e da participação do outro.
Numa sala de pré-escola, a professora trabalha com as crian-
ças em um estudo de artes durante vários dias. Ela apresenta às
crianças produções gráficas típicas de diferentes países, como mo-
tivos chineses, russos, indianos, egípcios. Apresenta, ainda, repro-
duções de obras de artistas como Van Gogh, Goya e Picasso, além
de outras representativas da pintura renascentista e abstrata. As
crianças podem ver, conversar, perguntar.. A professora informa,
explica, direciona a atenção das crianças para determinadas ca-
racterísticas dessas produções. Novos horizontes são abertos: am-
plia-se o conhecimento que já se tem, possibilidades interessantes
são descobertas. As crianças desenham e em seus desenhos explo-
ram as novas descobertas. Reproduções de motivos egípcios, in-
dianos, russos e chineses aparecem com grande riqueza de deta-
lhes; obras famosas também são reproduzidas pelas tintas, pelos
lápis, pelas mãos, pelas cores, como você pode verificar na página
ao lado.
(Situação reconstituída a partir do relato de experiéncia da professora
Cristina Rufino Jates, da EMEI Agostinho Pátaro, Barão Geraldo, Cam-
pinas, que gentilmente compartilhou conosco o material dela resultante.)
1.62
Para poder criar e se expressar, por meio do desenho, a criança se
apropria das experiências do seu ambiente, servindo-se de modelos e do
auxílio de outras pessoas. A experiência que ela tem é que lhe propor-
ciona os meios para se expressar de modo criativo.
A preocupação com a correspondência do desenho à realidade re-
vela não só a valorização de determinado padrão estético, mas também
o empenho da escola em desenvolver na criança habilidades de obser-
vação, concentração, discriminação visual, orientação espacial e coor-
denação motora. Também as folhas mimeografadas são utilizadas com
essa finalidade, considerada requisito para a aquisição da escrita.
Quando observamos uma criança desenhando, desde as suas pri-
meiras garatujas até as composições mais definidas, desde suas primei-
ras experiências de marcar o papel com os próprios movimentos até
produções com formas bem determinadas, descobrimos uma grande
evolução de suas capacidades de concentração, orientação espacial,
coordenação motora, etc.
Nesse mesmo processo, o caráter simbólico do desenho também
vai se constituindo, com base na linguagem. O simbolismo é a dimen-
são fundamental do desenho e se vincula mais estreitamente à elabora-
ção da escrita e ao desenvolvimento da conceituação. A escrita, sendo
também essencialmente uma atividade simbólica, apresenta uma es-
treita ligação com outras formas de simbolização, como o desenho e a
brincadeira.
A relação de continuidade que há na pré-escola entre o desenho e a
escrita, na escola fundamental transforma-se em substituição do dese-
nho pela escrita. O espaço para o desenho diminui e não há preocupação
em trabalhá-lo. A criança desenha do jeito que sabe e aquilo que já sabe.
As possibilidades de transformação, de evolução da atividade do dese-
nho, via de regra, são mínimas. Deixadas a si próprias, gradativamente
as crianças vão parando de desenhar.
Como criar em sala de aula, no 1? grau, condições e situações que
possibilitem a utilização e o desenvolvimento do desenho?
"O lápis é o melhor dos olhos..."
A afirmativa acima, que aparece em O segredo da observação, de
Ramacharaca, nos levou a descobrir, professora e crianças, o desenho
como um modo de guiar e instrumentalizar nossa observação.
Era o ano letivo de 1986, e estávamos em uma 3f série do 1.°
grau, de uma escola municipal, na periferia de Campinas.
Ao lado das salas de aula da escola havia muitas árvores e
arbustos que abrigavam um grande número de insetos. Freqüen-
temente, marimbondos, abelhas e percevejos de plantas (conheci-
dos pelas crianças como marias-fedidas) entravam na classe, pro-
duzindo alvoroço: os dois primeiros por causa da picada e os últi-
mos por causa do mau-cheiro que desprendiam quando tocados.
Resolvida a problematizar com as crianças esse tipo de rea-
ção, propus a elas uma questão: Por que a marfa fedida fede?
Essa questão foi o disparador para nosso estudo sobre insetos, que
durou um semestre inteiro.
Onde buscar a resposta?
Antes de consultar os livros, decidimos fazer um trabalho de
campo, coletando insetos para observação.
Puçás improvisados, vidros de boca larga de vários tamanhos
(alguns com álcool), éter para anestesiar os insetos, pinças,
lançamo-nos ao trabalho, anotando o nome de todos os animais
encontrados, além do que faziam no momento da coleta, e tratando
de conseguir pelo menos um exemplar para identificação posterior.
Sacudimos as árvores e os arbustos, observamos folhas e flo-
res, reviramos pedras e galhos caídos, improvisamos uma armadi-
lha com uma lata perfurada contendo pedaços de frutas...
Em sala, começamos a estudar os exemplares coletados, aten-
tando para suas características gerais, número de patas, número
de asas, antenas, configuração do corpo, co,; formato, caracterís-
ticas como dureza, transparência, existência de pêlos, etc.
Procurando explicitar e tematizar a atividade intelectual que
desenvolvíamos, propus à classe a leitura e o estudo do texto O
segredo da observação. Nele, o personagem central, contando
como descobrira o segredo da observação, dizia, destacando a
importância do desenho: "o lápis é o melhor dos olhos..." . A partir
daí, o lápis passou a guiar nossa observação.
Todos queriam desenhar. Cada criança escolheu um exemplar
e trabalhando individualmente procurava representá-lo na folha
de sulfite. Alguns ampliavam o inseto, explorando todo o espaço
do papel, outros faziam reproduções diminutas.
As dificuldades emergiam, e com elas as frustrações: como
marcar no papel a variedade de formas observadas, as simetrias,
as proporções?
"Oh, meu! Olha o tamanho dessa antena!"
"Ich! Tá torto!"
"Desse tamainho não dá nem pra saber que bicho é..."
Sentindo-se incapazes de representar pelo desenho algo que
fosse o mais parecido possível com o "real", algumas crianças
queriam desistir.
A própria classe discutiu quanto a qual seria o papel do dese-
nho: "Esse desenho é pra gente saber mais sobre o inseto ".
Propusemos, então, o trabalho em conjunto, que favoreceu a
comparação entre os insetos e a atenção aos detalhes particulares
de cada tipo, a troca de técnicas, de modos de desenhar, entre os mais
e os menos habilidosos, a troca de informações ("presta atenção,
aqui do lado do corpo tem um furinho "), enfim, a busca conjunta de
um desenho mais apurado e um grande conjunto de questões.
"O que é esse fiozinho enrolado que tem na borboleta?" 163.
164;
"Por que alguns insetos têm um tubinho que parece um alfine-
te e outros não?"
"Por que esse tem a antena lisa e a desse outro parece feita de
um morte de pedacinhos emendados?"
Detalhes que haviam escapado num primeiro momento foram
sendo identificados...
O sentimento de incapacidade de desenhar foi sendo substituí-
do por comentários como "Eu aprendi com o Marcelo a fazer o
gafanhoto". A admiração diante das habilidades reveladas pelos
colegas foi sendo explicitada: "Nossa, a senhora viu como o
Douglas é bom de desenho? Olha que bonito que ficou o desenho
dele!". A descoberta das próprias habilidades e interesses foi sen-
do percebida: "Eu por mim ficava o dia inteiro olhando e dese-
nhando esses bichos. Você viu como a perninha desse aqui é for-
mada por um monte de bolinha? Olha! Parece até um colarzinho...
Por que será que é assim?".
Depois, os desenhos feitos pelas crianças foram confrontados
com desenhos e esquemas apresentados nos livros, evidenciando o
muito que eles haviam apreendido em suas observações (e que ale-
gria: " ViuVemos essas tentativas
como relevantes apenas
sob um aspecto: o de, por
meio delas, as crianças aprenderem a manejar o lápis e a utilizar o espaço
do papel, desenvolvendo habilidades motoras que lhes serão úteis para
aprender a escrever.
utdoors, prateleiras de supermercado, rótulos, ban-
cas de revistas, jornais, letreiros, livros, placas de
O que é a escrita
para a criança?
:giz
169
170
Por que isso acontece?
Para entendermos o nosso próprio modo de nos relacionarmos com a
escrita em nossa tão letrada sociedade, precisamos, ainda que brevemente,
refletir sobre o que é a escrita e sobre a história de sua escolarização.
Escrita e poder
A linguagem escrita, como a linguagem falada, é um sistema sim-
bólico criado pelo homem. No fluxo da comunicação verbal, grupos
humanos passaram a utilizar linhas, pontos e outros sinais para repre-
sentar, registrar, recordar e transmitir informações, conceitos, rela-
ções, produzindo assim a escrita.
Vários tipos de escrita (pictográfica, ideográfica, etc.) foram pro-
duzidos ao longo da história. Hoje, a escrita dominante é a alfabética.
A escrita alfabética é uma forma de representar a palavra falada
com base nos seus aspectos sonoros e nas possibilidades de uso das
letras do alfabeto. Por exemplo, para escrever a palavra gato, na nossa
língua, usamos quatro letras que correspondem às quatro unidades mí-
nimas de som que compõem essa palavra no seu registro oral. As letras
g, a, t, o são grafismos (marcas) que representam aspectos sonoros da
palavra falada.
As letras grafadas no papel representam, mediante uma convenção
socialmente estabelecida, os sons da palavra falada (seu significante,
sua imagem sonora), e esta, por sua vez, designa os objetos, as ações e
os fatos da realidade. Nesse sentido, podemos dizer que a linguagem
escrita é mais complexa do que a linguagem falada, uma vez que a
representa.
Para que a escrita seja dominada, essa complexidade requer a
aprendizagem sistematizada e o treinamento específico de algumas ha-
bilidades e convenções, tais como: o conhecimento do conjunto de le-
tras disponíveis para o registro dos sons da linguagem falada, suas rela-
ções com esses sons e as regras de combinação entre elas, o traçado que
as constitui, sua direcionalidade, e outros tantos detalhes.
No processo de divisão social do trabalho, o acesso a essa aprendi-
zagem foi sendo controlado por algumas classes sociais, transformando
a escrita em privilégio, em índice de poder e recurso de dominação.
Embora desde a Renascença (século XV) a universalização da
aprendizagem da escrita e da leitura fosse uma reivindicação das clas-
ses excluídas do acesso à cultura letrada, somente com a criação dos
sistemas nacionais de ensino dos Estados modernos (século XIX) foi
que se concretizou a idéia de escola como a instituição encarregada de
iniciar as crianças no mundo da escrita e, com ela, criou-se o modelo de
alfabetização que conhecemos hoje.
Entre nós, brasileiros, o lema "Escolarizar para alfabetizar " é mais
recente ainda. Tendo sido uma bandeira do pensamento republicano,
consolidou-se a partir da última década de 30, quando a alfabetização
passou a ser claramente definida e defendida como um conhecimento a
ser possibilitado pela escola.
Ao passar para a esfera de responsabilidade da escola pública
mantida pelo Estado, o acesso ao domínio das convenções e comple-
xidades dessa forma de linguagem foi ampliado, representando um
grande avanço em direção à meta de universalização da alfabetização.
No entanto, a ação da escola fixou-se de tal forma no treinamento
das habilidades específicas relativas à escrita e ao traçado de letras
que acabou relegando sua utilização como linguagem a um segundo
plano.
Alfabetização e desenvolvimento da escrita
Já na década de 20, Vygotsky criticava a não priorização da escrita
como linguagem. Para ele, o ensino da habilidade da escrita por si mes-
ma corresponde ao domínio da habilidade técnica de tocar piano, em
que o aluno desenvolve a destreza dos dedos e a leitura simultânea da
partitura, sem se envolver na essência da própria música.
Embora ele considerasse necessário o ensino da escrita, sua crítica
dirigia-se ao modelo de ensino então adotado e que é, ainda hoje, domi-
nante na prática escolar.
Nesse modelo, a escrita é considerada principalmente como um
código que permite representar graficamente a linguagem falada. Para
dominar esse código, as crianças necessitam treinar duas técnicas bási-
cas: a codificação, que é a transformação dos sons da língua falada em
sinais gráficos, e a decodificação, que é a possibilidade de reconstituir a
palavra falada a partir dos sinais gráficos registrados.
Essas técnicas enfatizam os aspectos perceptivos (auditivos e vi-
suais) e as habilidades motoras envolvidas no ato de ler e escrever, cuja
aprendizagem é feita de modo progressivo, hierarquizado e cumulativo.
As crianças precisam dominar passo a passo o traçado correto das le-
tras, as correspondências entre os sons e as grafias, a discriminação de 171
Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1970. v. 5.
sons e grafias semelhantes para chegar ao registro e à leitura de pala-
vras, frases e textos.
Durante o processo de alfabetização, as crianças desenham letras,
copiam ou formam palavras com elas, escrevem palavras ditadas pela
professora, completam-nas, dominam a mecânica de decodificar o que
está escrito, independentemente do significado que as palavras escritas
ou lidas tenham para elas.
Esse modo de considerar o ensino da escrita leva a que todos os es-
forços se concentrem no treinamento de habilidades que possibilitarão à
criança sua utilização futura. Ou seja, só depois de terem dominado essas
habilidades é que elas poderão utilizar a escrita para registrar suas expe-
riências e pensamentos, para se comunicar com outras pessoas... Até
então, elas escrevem para treinar a escrita e lêem para treinar a leitura.
Suas tentativas de "dizer por escrito" o que querem e o que pensam são
controladas. "E melhor que o aluno escreva uma linha certa do que uma
folha cheia de erros", dizem alguns professores alfabetizadores.
A escrita, privada de sentido e do seu funcionamento social, é con-
vertida em fim último da aprendizagem escolar. E esta, em vez de ser
vista como parte imprescindível de um processo amplo, passou a ser
considerada o único e possível caminho de apropriação e de elaboração
da linguagem escrita.
A crítica a essa forma de ensino da escrita vem sendo feita desde o
início do século por psicólogos, pedagogos, lingüistas. Entre esses traba-
lhos críticos vamos destacar o de Vygotsky e Luria (1920) e o de Emilia
Ferreiro e seus colaboradores (1980), baseados nos pressupostos da teo-
ria piagetiana de desenvolvimento.
Quem foi Luria?
Alexander Romanovich Luria (1902-1977) foi
colaborador de Vygotsky. Na década de 20, reali-
zou experimentos relativos ao estudo do desenvol-
vimento da escrita e dos conceitos matemáticos na
criança. Pondo em questão o modo como a psico-
logia da época abordava esses temas, conduziu ex-
tenso trabalho de campo sobre o funcionamento
psicológico de moradores de vilarejos e áreas ru-
rais de uma região remota da Ásia central. Seu ob-
jetivo era estudar como os processos psicológicos
superiores são construídos em diferentes contextos
culturais. Dedicou-se mais intensamente ao estudo
das funções psicológicas relacionadas ao sistema
nervoso central, tornando-se conhecido como um dos mais impor-
tantes neuropsicólogos do mundo.
Esses estudos procuraram descrever como se origina e como se
desenvolve a escrita na criança. Por meio deles tornou-se possível co-
nhecer:
• o que as crianças pensam sobre a escrita e como se relacionam com
ela, antes e durante a alfabetização,
• os processos envolvidos nas relações da criança com a escrita, que têm
início muito antes da alfabetização, acompanham-na e prolongam-se
para além dela, segundo a relevância da escrita no contexto social em
que vivem seus usuários;
• as especificidades da alfabetização, vista como um processoque, en-
volvendo sistematização de regras, mecanismos e funções da escrita,
acontece na relação de ensino do contexto escolar.
A seguir, vamos apresentar e comparar essas duas contribuições.
Primeiramente focalizaremos o modo como esses estudos explicam
as relações da criança com a escrita. A seguir abordaremos como eles
descrevem e analisam a escrita produzida pela criança. E finalmente
discutiremos as implicações dessas teorias para as práticas escolares
de alfabetização.
Quem é Emilia Ferreiro?
Emilia Ferreiro, psicóloga argentina, é douto-
ra pela Universidade de Genebra, onde foi
orientanda e colaboradora de Jean Piaget. Suas
pesquisas sobre alfabetização foram realizadas
principalmente na Argentina e no México, onde é
professora titular do Centro de Investigação e Es-
tudos Avançados do Instituto Politécnico Nacio-
nal. Deslocando do "como se ensina" para o
"como se aprende" o foco da investigação relativa
à aprendizagem da escrita, descreveu, no final da
década de 70, a psicogênese da língua escrita.
Suas conclusões têm possibilitado aos educadores
o redimensionamento da compreensão acerca das
relações da criança com a escrita.
V
173
174
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
No texto foram utilizados dois conceitos distintos para definir as
relações da criança com a escrita: alfabetização e desenvolvimento da
-escrita na criança.
Com base nos dados do texto, compare os dois conceitos. Lembre-
se de que comparar é apontar semelhanças e diferenças entre os elemen-
tos considerados.
Pesquisa bibliográfica
De tal maneira nos acostumamos às coisas que fazem parte do nos-
so cotidiano, que as consideramos naturais. Parece que elas sempre
existiram e sempre com as mesmas características. A escrita é um des-
ses elementos.
Vivendo num mundo povoado por representações escritas, fica di-
fícil imaginar como surgiram e como evoluíram ao longo da história
humana as formas de registro que utilizamos hoje.
Vamos fazer um pequeno estudo sobre a história da escrita. Um
roteiro básico pode ser o seguinte:
a) Identificaras condições históricas que possibilitaram o aparecimento
da escrita e quais foram suas finalidades sociais.
b) Resumir as etapas da evolução histórica da escrita, caracterizando
suas diversas configurações, até chegar à escrita alfabética.
c) Procurar informações sobre o funcionamento do sistema de escrita
alfabético, tendo em vista caracterizar o princípio fundamental que
o rege.
Para isso consulte outros livros didáticos ou livros especializados,
como os que são indicados neste capítulo nas sugestões para leitura e
pesquisa.
Você pode também recorrer a vídeos (neste capítulo sugerimos um)
e a seus professores de História, História da Educação, Português e
Metodologia da Alfabetização.
Exercitando a análise
Leia o livro O menino que aprendeu a ver, de Ruth Rocha (Editora
Melhoramentos). Nele a autora focaliza as relações da personagem
João com a escrita.
Ao analisar o texto, observe se o livro fala da relação de alfabetiza-
ção, do desenvolvimento da escrita na criança ou dos dois temas.
Sugestão de leituras
BARBOSA, José Juvêncio. A história da escrita. In: 	 . Alfabetiza-
ção e leitura. São Paulo: Cortez, 1990.
CAGLIARI, L. C. O mundo da escrita. In: 	 . Alfabetização & lin-
güística. São Paulo: Scipione, 1989.
GOMES JR., G. S. Escrita. Cadernos CEVEC, n° 4. São Paulo: Centro de
Estudos Educacionais Vera Cruz, 1988.
Filme recomendado
• Escrita, direção de Fernando Passos, 1988. Distribuído pela Fun-
dação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), São Paulo.
175
176
Capítulo 15
As relações da criança
com a escrita
Quando prestamos atenção aos comentários que as crianças fazem
sobre a escrita ou às suas tentativas de utilizá-la, percebemos que elas
não são indiferentes a essa forma de linguagem. Elas procuram imitá-la,
interpretá-la, entendê-la.
Olívia, de 3 anos, conversando com a mãe, diz:
— Na escola eu faço desenho, eu escrevo...
— Ah, é?! Como é que você escreve?
— É assim, ó.
E enquanto traça rabiscos em ziguezague no papel, ela vai
nomeando:
— Papai, mamãe, Olívia.
(Relato feito pela mãe da criança às autoras durante um curso para
professores.)
Escrever, para Olívia, é diferente de desenhar. Ao demonstrar para
a mãe o que é escrever, ela nomeia cada um dos rabiscos feitos no papel.
O ato de escrever, em casos assim, é relacionado pela criança à
tarefa de anotar palavras. Neste momento, trata-se apenas de um esboço
de apreensão da função representativa. Esta só será apreendida, de fato,
um pouco mais tarde.
Os ziguezagues traçados por Olívia, em linhas mais ou menos
retas, constituem a forma de grafismo utilizada pela maioria das
crianças de sua idade quando se pede a elas que escrevam. Esse dado
foi observado e analisado nos estudos de Luria e Emilia Ferreiro,
como um indicador da apreensão de algumas das características for-
mais da escrita pela criança. Observando os adultos quando escre-
vem, a criança percebe que a escrita apresenta configurações (tais
como o formato, a distribuição no papel, etc.) que a distingue de ou-
tras formas de representação gráfica. Ela imita, então, o formato ex-
terno da escrita do adulto.
As características gráficas da escrita também orientam as "tentati-
vas de leitura" das crianças.
Rafael, de 3 anos, olhando para a tampa da lata de Nescau,
onde estava escrita em relevo a palavra Nestlé, diz para o irmão de
9 anos:
— Olha,, Beto!
E, passando o dedinho sobre as letras, vai pronunciando pau-
sadamente:
— Neeeeessscaaauuu!
(Episódio envolvendo os filhos de uma das autoras.)
Não são quaisquer traços que podem ser lidos. O formato dos tra-
ços em relevo na tampa da lata e o lugar onde foram impressos não são
arbitrários. Eles significam alguma coisa. Na interpretação de Rafael,
eles nomeiam.
Rafael, imitando o modo de ler de uma criança mais velha, compar-
tilha a possibilidade de leitura com o irmão, que muitas vezes lê para
ele. Na imitação, ele reproduz a relação entre o texto escrito e a fala.
Nas duas situações observamos que a escrita, além de estar presen-
te no cotidiano das crianças, é compartilhada com elas por adultos e
crianças mais velhas: a mãe possibilita a Olívia explicitar o que pensa e
sabe sobre a escrita; o irmão, que lê, serve de modelo para Rafael.
Esses episódios cotidianos mostram processos não escolares de
elaboração da escrita em que a criança formula uma compreensão
incidental e inicial dessa forma de linguagem.
Como as crianças chegam a essas elaborações iniciais da escrita?
A gênese da escrita na criança é vista de modos diferentes por
Emilia Ferreiro e Vygotsky.
A criança constrói a escrita
Emilia Ferreiro e seus colaboradores consideram que a escrita,
como toda representação, baseia-se em uma construção mental que cria
suas próprias regras.
"Escrever não é transformar o que se ouve em formas gráficas, as-
sim como ler não equivale a produzir com a boca o que o olho reconhe-
ce visualmente", destaca Emilia Ferreiro (1985: 55). O sistema de escri-
ta tem uma estrutura lógica, e compreendê-la não é uma tarefa simples.
Há várias relações e detalhes que a criança precisa apreender.
No caso do sistema alfabético, por exemplo, a criança deve com-
preender, entre outras coisas, que existe uma relação entre a letra escrita
(grafema) e o som pronunciado (fonema); que não há nenhuma relação
entre a forma da palavra escrita e as características físicas do elemento
da realidade nomeado por ela; que palavras com o mesmo significado
não são escritas da mesma forma; que elementos essenciais da orali-
dade, como a entonação, não são registrados na escrita, etc. 177
Esse conjunto de relações não é simplesmente aprendido pela
criança, mas construído ("reinventado") por ela.
Nas relações que mantém com a escrita no ambiente em que vive, a
criança elabora e testa hipóteses acerca da lógica de seu funcionamento.
Ela assimila a escrita interpretando-a de acordo com os conhecimentos
e modos de pensar que já desenvolveu e organizou no decorrer de sua
experiênciade vida, produzindo "escritas" e "leituras" não compatíveis
com a escrita convencional.
Tal qual Olívia no episódio relatado anteriormente, ela começa di-
ferenciando a escrita do desenho.
A
	
C) E
A
Em seguida, preocupa-se com a disposição das letras conhecidas
ou com o número de letras utilizadas, tentando marcar diferenças entre
as palavras que deseja (ou é solicitada a) registrar.
Fonte: Reflexões sobre alfabetização— Emilia Ferreiro. Cortez, p. 23.
Conforme desenvolve a capacidade de prestar atenção às caracte-
rísticas sonoras da palavra falada, a criança começa a estabelecer rela-
ções entre as partes da palavra escrita e a quantidade de partes que reco-
nhece na palavra falada. Ela passa, então, a representar cada sílaba com
uma letra.
	
.
iKh
DA s
RAFAEL-q* .
A criança pode utilizar letras convencionais cujo traçado conhece,
para representar a escrita, sem estabelecer nenhuma diferenciação entre
as palavras, como na ilustração a seguir.
s E A
SE
Fonte: Reflexões sobre alfabetização — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 22.
S K^^ tv rn J
Fonte: Reflexões sobre alfabetização — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 26.178
179
180
As informações fornecidas por adul-
tos leitores (inclusive a professora na es-
cola) a respeito de especificidades da es-
crita não são mecanicamente acrescenta-
das às elaborações da criança.
Ela vai passando de uma forma de
escrita para outra, à medida que vai se
dando conta, por si mesma, das contra-
dições entre sua interpretação da escrita
e a escrita convencional. Nesse proces-
so, ela reelabora gradativamente suas
hipóteses, por meio de acomodações su-
cessivas, até chegar à lógica da escrita
alfabética.
O conjunto dessas formas de escrita que nos parecem "erradas" do
ponto de vista convencional são, segundo Emilia Ferreiro, "erros cons-
trutivos": é passando por essas hipóteses que a criança vai construindo
(reinventando) a lógica do sistema alfabético. Nesse sentido, os erros
revelam o raciocínio da criança sobre o que é escrever e as etapas pelas
quais ela vai passando no processo de construção da escrita.
Nos estudos realizados por Emilia Ferreiro e seus colaboradores
com crianças de diversos meios sociais em diferentes países (Argentina,
México, Espanha, Brasil), as formas de escrita mostradas nas ilustra-
ções acima apareceram de modo sistemático, regular e na mesma pro-
gressão. O que diferia de uma criança para outra era o tempo de duração
de cada etapa e o tempo de passagem de uma etapa para outra. As regu-
laridades observadas comprovavam, segundo ela, que o desenvolvi-
mento da escrita envolve uma série de concepções e de relações cuja
elaboração não pode ser atribuída à influência do meio, nem à aprendi-
zagem, mas, sim, ao desenvolvimento cognitivo da criança.
Isso acontece, explica Emilia Ferreiro, porque a criança "é um su-
jeito que pensa. Um sujeito que assimila para compreender, que deve
criar a fim de assimilar, que transforma o que vai conhecendo, que
constrói seu próprio conhecimento para apropriar-se do conhecimento
dos outros" (1987: 103; o destaque é nosso).
A criança integra-se às práticas sociais de escrita
Já para Vygotsky e Luria, a escrita é mais do que um sistema de for-
mas lingüísticas organizado segundo uma lógica com a qual o sujeito se
confronta, esforçando-se por compreendê-lo. Ela é uma forma de lingua-
gem, uma prática social própria de membros de uma sociedade letrada.
A escrita nos confere o título de cidadãos. É por meio do registro
legal, nosso primeiro documento, que somos inscritos no rol de habitan-
tes do país, temos nossa nacionalidade definida.
A escrita nos faz ser classificados como alfabetizados ou analfabe-
tos, e arcar com as vantagens e desvantagens de pertencer a um ou a
outro desses grupos.
Como sistema de signos (conjunto organizado de marcas externas que
nos permitem representar ou expressar objetos, eventos e situações da reali-
dade), a escrita age sobre nossos processos psicológicos, transformando-os.
Sua utilização, por exemplo, transforma nossa memória. Ao fazer-
mos uma lista de compras por escrito, ao anotarmos um endereço ou os
ingredientes e o modo de preparo de uma receita, não só liberamos
nossos neurônios da necessidade de reter mecanicamente algumas in-
formações, como também aumentamos enormemente a quantidade de
informações que podemos armazenar. A escrita nos permite esquecer
informações que, tendo sido registradas, podem ser recuperadas.
Ela também transforma nossa atenção, nossos modos de buscar in-
formações. Pense, por exemplo, nos usos de placas informativas.
Por não ser nem natural (ela é produção cultural) nem arbitrária
(escrever não é marcar quaisquer traços sobre qualquer superfície), a
elaboração da escrita não começa dentro de cada um de nós. Apro-
priamo-nos dos conhecimentos das gerações que nos precederam para
construirmos o nosso conhecimento. Nesse sentido, a elaboração da es-
crita pela criança tem início nas suas relações sociais (cotidianas e
escolarizadas), contando sempre com a participação do outro.
Nas sociedades letradas, como a nossa, a escrita vai sendo gra-
dativamente apontada e destacada para a criança pelos adultos leitores.
Aline, de 3 anos, pega um pedaço de papel e pede à avó:
— Vá, faz Aline...
A avó escreve no papel: ALINE.
A criança não aceita e volta a pedir.
— Faz Aline, vovó.
A avó, na tentativa de entender e atender ao pedido da neta,
desenha urna menininha, e Aline mostra-se satisfeita.
Alguns dias depois, a criança faz de novo o mesmo pedido à avó.
A avó pega lápis e papel e desenha a menininha.
A criança retruca:
— Assim não, vovó. A outra...
E, pegando o lápis, faz risquinhos no papel, enquanto diz:
— Assim, Aline, Aline pequenininha.
E, enquanto traça rabiscos maiores, vai dizendo:
— Aline grande...
(Episódio relatado por uma professora durante curso ministrado
pelas autoras.)
É na interação com a avó que Aline, ao tomar contato simultanea-
	
181mente com duas formas de simbolização — o desenho e a escrita —,
Fonte: Reflexões sobre alfabetização —
Emilia Ferreiro. Cortez, p. 29.
descobre a possibilidade de usar marcas para representar. A avó, ao es-
crever o nome da menina no papel, não determina os significados do
desenho e da escrita, mas desencadeia essa elaboração em Aline.
As crianças mais velhas também participam da progressiva inte-
gração da criança à comunicação escrita. Elas compartilham com as
mais novas suas relações com a escrita, lendo, desenhando e escreven-
do para elas, ensinando-lhes os nomes das letras e a escreverem o pró-
prio nome, brincando de escolinha, etc. A elaboração ativa dos conteú-
dos e formas de organização da es-
crita depende, fundamentalmente,
das possibilidades que as crianças
têm (ou não) de utilizar e comparti-
lhar a escrita em suas interações.
Num país como o nosso, a
grande maioria das crianças tem
contato incidental com a escrita, por
meio de rótulos de produtos, de pla-
cas e propagandas na rua, quando
vai aos supermercados, vendo TV...
Elas convivem com a escrita.
Nas grandes cidades, com o au-
mento de freqüência à pré-escola, a utilização de papéis, lápis, tintas e o
contato com a escrita têm se intensificado e sido submetidos a um modo
de organização mais sistemático.
Essas crianças, assim, além de conviver com a escrita, a utilizam e or-
ganizam algumas de suas convenções no espaço das relações escolares.
Apenas um número reduzido de crianças brasileiras tem, na vida
em família, como Aline, oportunidade de conviver com leitores, papel,
lápis, livros de história, jornais, revistas.
Em algumas dessas famílias, os pais
lêem histórias para as crianças, escrevem
palavras com elas e para elas. Nesse
caso, essas crianças vão além da situação
de convivência com a escrita, passando a
utilizá-la. Assim, mesmo sem dominar
autônoma e convencionalmente a escrita,
elas começam a elaborar e a compreen-
der, desde muito muito cedo, seus princí-
pios de organização e sua natureza.
Nas relações que mantêm com a es-
crita, as crianças apropriam-se de técni-
cas para sua utilização"Meu filho tem uma aptidão incrí-
vel para a matemática"; "A Marina é tão inteligente! Puxou ao pai!".
Maturidade, aptidão, inteligência são temas tradicionalmente abor-
dados pela psicologia numa perspectiva que atribui um papel central a
fatores biológicos no desenvolvimento da criança. Essa perspectiva,
que estamos denominando inatista-maturacionista, parte do princípio
de que fatores hereditários ou de maturação são mais importantes para o
desenvolvimento da criança e para a determinação de suas capacidades
do que os fatores relacionados à aprendizagem e à experiência.
Mas o que são esses fatores hereditários ou de maturação?
A hereditariedade pode ser entendida como um conjunto de quali-
dades ou características que estão fixadas na criança, já ao nascimento.
Ou seja, quando falamos em hereditariedade estamos nos referindo à
herança genética individual que a criança recebe de seus pais. Todos
sabemos que traços como, por exemplo, a cor dos olhos e do cabelo, o
tipo sanguíneo, o formato da orelha e da boca já estão determinados
geneticamente quando nascemos.
A idéia de maturação refere-se a um padrão de mudanças comum a
todos os membros de determinada espécie, que se verifica durante a
vida de cada indivíduo. O crescimento do feto dentro do útero da mãe,
por exemplo, segue um padrão de mudanças biologicamente determi-
nado. As transformações do corpo, o crescimento dos órgãos, etc. acon-
tecem de acordo com uma seqüência predeterminada, que, a princípio,
não dependeria de fatores externos.
Você pode estar se perguntando o que essa história de cor dos olhos
ou do desenvolvimento do feto tem a ver com uma abordagem psicoló-
gica da maturidade, das aptidões e da inteligência.
E que, na psicologia, teóricos da perspectiva inatista-maturacio-
nista supõem que, do mesmo modo que a cor dos olhos, aptidões indivi-
Gêmeos: centro
de interesse nos
estudos sobre
hereditariedade.
12
duais e inteligência são características herdadas dos pais e, portanto, já
estão determinadas biologicamente quando a criança nasce. Ou então
que, à maneira do crescimento das partes do corpo, o desenvolvimento
do comportamento e das habilidades da criança é governado por um
processo de maturação biológica, independentemente da aprendizagem
e da experiência.
São essas concepções que estudaremos no decorrer deste capítulo.
A questão das diferenças individuais e a hereditariedade
da inteligência: "filho de peixe, peixinho é?"
Por que as pessoas são diferentes umas das outras? Por que algu-
mas crianças parecem mais inclinadas para atividades artísticas, en-
quanto outras se saem melhor com os nú-
meros? Foram perguntas desse tipo que
orientaram, no começo do século, as pri-
meiras investigações psicológicas sobre o
problema da natureza hereditária das apti-
dões e da inteligência.
Interessados em saber por que uma pes-
soa é diferente da outra — quanto a traços de
personalidade, de habilidades, de desempe-
nho intelectual, etc. —, pesquisadores pro-
curaram obter dados que permitissem esta-
belecer comparações entre pessoas.
Eles constataram, então, que pessoas
com uma aptidão especial (um artista, por
exemplo) normalmente tinham familiares
que apresentavam o mesmo tipo de aptidão.
Ou, ainda, que gêmeos idênticos apresenta-
vam aptidões e nível intelectual com um
grau de semelhança maior do que o encon-
trado entre irmãos não gêmeos. Por outro
lado, identificaram diferenças de aptidões e
de traços mentais entre homens e mulheres
ou entre raças diferentes.
Essas constatações foram interpretadas como indicadoras de que os
fatores inatos são mais poderosos na determinação das aptidões indivi-
duais e do grau em que estas podem se desenvolver do que a experiên-
cia, o meio social e a educação. O papel do meio social, segundo essa
perspectiva inatista, se restringe a impedir ou a permitir que essas apti-
dões se manifestem.
Assim, uma criança — filha, neta ou sobrinha de músicos — apre-
senta inclinação e facilidade para aprender música porque herdou de
seus familiares a aptidão, o "dom" para a música, e não porque foi
educada num ambiente em que, provavelmente, a música é valorizada e
ensinada. Do mesmo modo, crianças brancas e negras apresentam dife-
renças no desempenho de determinadas tarefas em razão da herança ge-
nética de suas raças, e não de diferenças culturais ou de oportunidades.
Foi nessa linha da preocupação com as diferenças individuais que
se desenvolveram os primeiros estudos psicológicos com o objetivo de
avaliar a inteligência. Um dos pioneiros desses estudos, o pesquisador
francês Alfred Binet, interessou-se especialmente pela mensuração da
inteligência através de testes.
Quem foi Binet?
Alfred Binet nasceu em 1857 e viveu até 1911. Formou-se em
Medicina, mas desde cedo interessou-se pela psicologia da crian-
ça e do deficiente, área em que se tornou conhecido.
Em 1904, quando era diretor do Labora-
tório de Psicologia Fisiológica da Universi-
dade de Sorbonne, participou de uma comis-
são de médicos, educadores e cientistas, no-
meados pelo ministro da Instrução Pública da
França, que tinha como objetivo estabelecer
métodos e formular recomendações para o
ensino de crianças deficientes mentais. Binet
foi incumbido da tarefa de desenvolver um
instrumento que permitisse identificar as crian-
ças mentalmente deficientes.
Como resultado de seu trabalho nessa
comissão e de suas pesquisas anteriores, ele
publicou em 1905, com a colaboração de
Théodore Simon, a primeira escala para a
medida da inteligência geral. Essa escala,
que se tornou conhecida como escala Binet-
Simon, passou por duas revisões: a primeira,
em 1908, e a segunda, em 1911, pouco antes da morte de Binet.
Pode-se dizer que o desenvolvimento dessa escala marcou o
início da medida da inteligência, tal como a conhecemos hoje.
Os testes de Binet e Simon foram traduzidos e utilizados também
em muitos outros países e deram origem a inúmeras revisões,
realizadas por outros pesquisadores, bem como inspiraram a
elaboração de outros testes de inteligência.
No Brasil, seus estudos e testes foram introduzidos em 1916
por educadores ligados ao Laboratório de Psicologia Pedagógi-
ca do Rio de Janeiro.
Binet concebia a inteligência como uma aptidão geral que não de-
	
1 3pende das informações ou das experiências adquiridas no decorrer da
Quem foi Gesell?
Pesquisador norte-americano que viveu entre 1880 e 1961,
Gesell foi o principal expoente das teorias do desenvolvimento
que dão maior ênfase ao papel da maturação. Desde
muito cedo, logo que formado na Escola Normal (Ma-
gistério), dedicou-se à carreira de professor. Foi dire-
tor de colégio e escreveu sua primeira tese sobre um
assunto ligado à pedagogia. Depois de doutorar-se
em psicologia, Gesell retomou o seu trabalho como
professor em uma escola primária. Alguns anos de-
pois, decidiu-se por fazer o curso de Medicina e assim
que o concluiu foi nomeado professor de Higiene da
Criança na Escola de Medicina de Yale, cargo que
ocupou até a sua aposentadoria.
Em 1915, Gesell passou a empregar a psicologia
com vistas a proporcionar ajuda pedagógica às
crianças desadaptadas. Ele é, por isso, considerado
o primeiro psicólogo escolar norte-americano.
Preocupado com a criação de uma ciência do desenvolvimento
humano que integrasse todos os recursos da psicologia experimen-
tal, da biologia evolutiva e da neurofisiologia, de 1920 a 1961 Gesell
dedicou-se à pesquisa científica e à publicação de livros e artigos.
4
vida do indivíduo. Segundo ele, as principais características da inteli-
gência seriam as capacidades de atenção, de julgamento e de adaptação
do comportamento a objetivos:
Parece-nos que na inteligência há uma faculdade fundamen-
tal... Esta faculdade é o julgamento, também chamado bom senso
prático, iniciativa, a faculdade de adaptar-se às circunstâncias. Jul-
gar, compreender e raciocinar bem; estas são as atividades essen-
ciais da inteligência.
(Binet e Simon, O desenvolvimento da inteligência nas crianças.
Apud Bee, F(.)
É importante compreender que, nessa perspectiva,e de algumas de
A descoberta da leitua: momento de prazer
	
suas convenções básicas — o nome de
algumas letras, o modo de traçá-las, a
direcionalidade, etc. E apreendem também suas funções sociais — para
que, para quem, por que, e onde, e como se escreve.
Elas brincam de escrever, como Rafael, que aos 3 anos e meio en-
trega para a mãe um papel cheio de letras traçadas por ele, dizendo:
^5JC10^ _^^ \A10-^N
j \_Si tr
— Toma, mãe. Isso é uma carta pra você.
— Ah! Que bom, Rafa! Lê a carta pra mim!
— Não! Você é que lê! Eu escrevi a carta pra você!
(Episódio envolvendo urna das autoras e seu filho.)
Nesse episódio, a criança, que aprendeu a traçar algumas das le-
tras do seu nome com o irmão e os primos, utiliza esse conhecimento
para produzir alguma coisa "para ser lida", ou seja, algo que reúne
determinadas características daquilo que seus parceiros sociais mais
experientes tomam como objeto de leitura. Ela produz (essa é a inten-
ção revelada por ela diante do produto pronto) uma carta, produto
cultural típico de uma sociedade letrada. A elaboração da função social
da escrita, mais do que de sua lógica interna, é o que se destaca nessa
atitude da criança.
Pela mediação do outro é que a lógica da escrita começa também a
ser elaborada. As crianças pedem a adultos (ou a crianças mais velhas)
que escrevam ou leiam para elas. Tentam escrever e ler, imitando o que
observam e fazendo suposições a respeito das características e das re-
gras de funcionamento da escrita, e procuram verificar, entre aqueles
que são leitores, a adequação de suas suposições.
São muitos os
estímulos que as
crianças recebem
para desenvolver
a leitura.
182 -
, lumet&osmAltale1109r4
183
184
As crianças do pré exploram as letras de plástico, tentando
compor palavras. Uma das meninas, após justapor uma série de
consoantes, chama a professora e pede a ela que leia o que es-
creveu.
Ruth, a professora, vai emitindo sons correspondentes às le-
tras justapostas.
A criança desmancha a combinação de letras e volta a fazer
uma nova justaposição de consoantes. Novamente ela pede à pro-
fessora que leia o que escreveu e a professora repete o tipo de lei-
tura que fez antes.
A criança então pergunta:
— Ruth, por que será que eu só consigo escrever em inglês?
(Depoimento da professora Ruth Jofily Dias, professora da EMEI
Meia Lua, do município de Paulínia, SP, a quem agradecemos a
autorização para a utilização desse episódio.)
Enquanto para Emilia Ferreiro o papel do adulto (inclusive o pro-
fessor) deve ser o de possibilitar o desenvolvimento da escrita, criando
condições estimuladoras e conflitos cognitivos (situações em que a crian-
ça percebe contradições entre suas hipóteses e os princípios da escrita
convencional) para que ela descubra por si mesma as chaves secretas
do sistema alfabético (1985: 60), Vygotsky considera fundamental a
participação do outro no processo em que a escrita vai se tornando
parte da criança, destacando e diferenciando o papel do professor.
Vygotsky considera que o ingresso na escola representa para as
crianças um novo tipo de relação com a escrita, que, além de ser inten-
sificada, passa a ser sistematizada.
Nessa instituição, todas as crianças são colocadas diante da tarefa
de interpretar convencionalmente a escrita. O papel do professor é dife-
rente daquele desempenhado pelos adultos que com elas convivem dia-
riamente. Na família, o adulto intervém ocasionalmente e, em geral,
quando solicitado. Na escola, a ação do alfabetizador é intencional e
explícita: ele proporciona à criança um contato sistemático com a escri-
ta padronizada, que, entrecruzando-se com suas elaborações iniciais,
acaba por substituí-las.
Também diferentemente de Emilia Ferreiro, Vygotsky não conside-
ra que as relações da criança com a escrita sejam estritamente cog-
nitivas. A escrita não é apenas objeto de conhecimento. Ela constitui o
conhecimento, sendo uma forma cultural de ação no mundo.
A palavra materializada sobre o papel não é um fim em si mesma.
Ela cria relações entre os indivíduos: "A criança aprende a ouvir, a en-
tender o outro pela leitura; aprende a falar, a dizer o que quer pela escri-
ta. Mas esse aprender significa fazer, usar, praticar, conhecer. Enquanto
escreve, a criança aprende a escrever e aprende sobre a escrita"
(Smolka,1988: 63).
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
Reproduza e preencha o quadro abaixo, sintetizando as concepções
de desenvolvimento e aprendizagem da escrita adotadas pela psi-
cogênese (Emilia Ferreiro) e pela abordagem histórico-cultural (Vy-
gotsky e Luria).
Refletindo sobre as informações do texto
No texto apresentamos as seguintes afirmações:
"A criança constrói seu próprio conhecimento para apropriar-se do
conhecimento do outros" (E. Ferreiro).
"Nós nos apropriamos dos conhecimentos das gerações que nos
precederam, para construirmos o nosso próprio conhecimento"
(Vygotsky).
Explique e compare a duas afirmações, buscando no texto os argu-
mentos que as sustentam.
Exercitando a análise
A partir das leituras e discussões sugeridas até aqui, analise a si-
tuação seguinte:
No ônibus havia um anúncio de chapéu, com um chapéu mas-
culino desenhado em destaque. Abaixo, a marca do chapéu,
PRADA, escrita em maiúsculas e o endereço da firma. O avô,
encontrando um amigo, diz-lhe entusiasmado que estava justa-
mente ensinando seu neto a ler e que ele aprendia com grande
facilidade. Apontando para o anúncio, objeto de treino desde o
início da viagem, o avô pede ao garotinho que leia o mesmo. O
garoto prontamente:
Psicogênese
Concepção de escrita
A relação da criança
com a escrita
185
186
—PE-ERRE-A-DE-A.
— Muito bem, diz o avô, e o que está escrito?
—PE-ERRE-A-DE-A.
— Sim, muito bem. E isso é o quê? Leia lá.
— Chapéu.
(Episódio registrado por Nunes, T. no texto 'Leitura e escrita: pro-
cessos e desenvolvimento', In: Alencar, E. (org.). Novas contribui-
ções da psicologia aos processos de ensino e aprendizagem. São
Paulo: Cortez, 1992.)
Trãbalho de campo
Vamos observar crianças de 2 a 7 anos, que ainda não estejam sen-
do alfabetizadas, e descrever o modo como se relacionam cotidiana-
mente com a escrita. Para isso, vamos nos dividir em dois grupos.
• Cada um dos alunos do primeiro grupo deverá observar uma crian-
ça e descrever suas eventuais tentativas de uso do registro escrito,
para que ela o utiliza, e como ela se relaciona com a escrita presen-
te no seu espaço doméstico.
• Cada um dos alunos do segundo grupo deverá observar uma crian-
ça não alfabetizada e descrever a relação que ela mantém com o
material escrito existente na pré-escola e a utilização que ela faz de
registros gráficos nesse contexto (para que e como).
Para um melhor aproveitamento desse trabalho de campo, sugeri-
mos que cada criança seja observada mais de uma vez e que sejam ob-
servadas crianças de idades diferentes, dentro da faixa de idade in-
dicada.
O seguinte roteiro poderá ser útil à observação e ao registro:
• Registre a idade da criança, o dia, o local, a hora e quanto tempo
durou a observação.
• Descreva a situação em que você observou a criança (onde ela
estava, o que fazia, quem a acompanhava, etc.).
• Que tipo de material escrito chama a atenção da criança ou está
sendo explorado por ela? O que ela faz e o que diz em relação ao
material escrito? Que finalidade atribui a ele?
• Com quem ela compartilha sua exploração ou comentários? Como
o faz? Como o outro participa dessa situação? O que diz? O que
faz?
• Se a criança estiver numa situação de produção de escrita, descre-
va também o que ela está fazendo. Que material está utilizando
para isso? Que tipo de marcas produz? Em que condições as pro-
duz? Que significado ou função atribui a elas (está escrevendo o
que, para que, para quem) Como e com quem compartilha a ativi-
dade? Como o outro participa da atividade? O que faz, o que diz?
Peça à criança o material produzido. Se ela não quiser dá-lo, respei-
te sua decisão.
Se você dispuser de câmara de vídeo ou de gravador, poderá
utilizá-losa idéia de inteli-
gência não se confunde com os conhecimentos adquiridos pelo indiví-
duo durante sua vida. Habitualmente, consideramos como muito inteli-
gente uma pessoa que demonstra ter um vasto conhecimento; ou seja,
dizemos que os mais inteligentes (entre nossos colegas, por exemplo)
são os que sabem mais.
No entanto, o que define a inteligência de um indivíduo não é a quan-
tidade de conhecimentos que ele possui, mas sua capacidade de julgar,
compreender e raciocinar. Essas capacidades, segundo Binet, não podem
ser aprendidas, mas, ao contrário, são biologicamente determinadas. As-
sim, a inteligência é vista como um atributo do indivíduo fixado pela he-
reditariedade e, como tal, variável de uma pessoa para outra.
Padrões de desenvolvimento: o que é próprio de
cada idade?
Mas, se as pessoas são diferentes umas das outras nas suas apti-
dões, traços de personalidade ou de inteligência, existem também mui-
tas semelhanças entre elas. A maioria dos bebês, por exemplo, torna-se
capaz de se sentar antes que possa se arrastar, engatinhar e depois andar.
Do mesmo modo, quando começa a falar, a criança primeiro diz apenas
palavras isoladas, e só depois junta duas ou mais palavras, formando
frases. Ou, então, antes de desenhar casas, animais ou carros, a criança
rabisca traços e círculos.
Essas seqüências parecem se repetir sempre em relação à maioria
das crianças, o que sugere a existência de certo padrão de desenvolvi-
mento humano. Esse fato tem chamado a atenção de muitos pesquisa-
dores desde as primeiras décadas deste século. Um dos primeiros psicó-
logos a se interessarem por essa questão foi Arnold Gesell, nos Estados
Unidos. Ele se preocupou com a evolução da criança, do nascimento
aos 16 anos, e estudou as formas que seu comportamento vai tomando
no decorrer dessa evolução.
Pode-se dizer que Gesell foi o primeiro teórico da maturação, uma vez
que defendia a prioridade dos fatores de maturação sobre os fatores de
aprendizagem, ou de experiência, na evolução do comportamento da
criança. Para ele, o que explica a existência de um padrão de desenvolvi-
mento comum à maioria das crianças é o processo de maturação biológica
inerente às transformações por que passa o comportamento da criança.
Assim, a evolução psicológica da criança seria determinada biolo-
gicamente, do mesmo modo que o crescimento do feto no útero mater-
no. Seus comportamentos e formas de pensar tornam-se mais comple-
xos à medida que ela cresce, que seu sistema nervoso, sua estrutura
muscular, etc. se desenvolvem. O ambiente social e as influências exter-
nas, de modo geral, limitam-se a facilitar ou dificultar o processo de
maturação. Por exemplo, uma criança que raramente é tirada do berço e
deixada à vontade no chão, certamente vai demorar mais para.enga-
tinhar ou andar. Em condições adequadas, seu desenvolvimento se pro-
cessaria no ritmo e na seqüência determinados pela maturação.
Tanto Binet quanto Gesell, acreditando que a inteligência e o desenvolvi-
mento psíquico da criança são biologicamente determinados, preocuparam-
se em descrever comportamentos e habilidades típicos de cada faixa etária.
Binet estava interessado, como já dissemos, em medir e comparar a
inteligência das pessoas. Mas, se podemos medir a altura ou o tamanho
do dedo de uma criança simplesmente usando uma fita métrica, medir a
inteligência é bem mais complicado. Enquanto aptidão geral do indiví-
duo, a inteligência não pode ser medida diretamente, mas apenas atra-
l5
16
vés de algumas de suas realizações. Por isso, para construir um teste de
inteligência, Binet precisava conhecer o que crianças são capazes de
fazer em cada idade.
Essa também foi uma necessidade experimentada por Gesell. Preo-
cupado em compreender a evolução da criança, ele procurou estabele-
cer escalas de desenvolvimento que permitissem comparar os compor-
tamentos de uma criança com aqueles que eram esperados, ou conside-
rados "normais", para sua faixa etária.
Mas como foram criados os testes de inteligência e estabelecidas as
escalas de desenvolvimento?
Essa é uma pergunta importante, porque sua resposta nos mostra um
pouco como o conhecimento é produzido na área da psicologia. Partindo
do princípio de que a hereditariedade e a maturação são os fatores mais
decisivos na determinação da inteligência e na evolução do comporta-
mento da criança, tanto Binet quanto Gesell dedicaram-se a pesquisas.
Pesquisando a criança: a construção dos testes de
inteligência
Binet partiu da experimentação e da observação do que as crianças
eram capazes de fazer em idades variadas. Ele procurou selecionar proble-
mas ou questões cuja solução envolvesse os efeitos combinados da aten-
ção, do juízo e do raciocínio e não dependesse de aprendizagens anteriores.
Essas questões eram organizadas em grupos por idade, de acordo
com o seguinte critério: se um teste era resolvido satisfatoriamente por
60% a 90% das crianças de determinada idade estudadas, ele era consi-
derado adequado para aquela idade.
Um exemplo: se todas ou quase todas as crianças de 6 anos fossem
capazes de comparar dois pesos, essa tarefa era considerada muito fácil
para essa idade; se 60% a 90% das crianças de 5 anos estudadas resol-
vessem o problema de maneira correta, ele era aceito como adequado
para essa faixa etária. Do mesmo modo, se quase nenhuma das crianças
de 4 anos estudadas conseguisse copiar um quadrado, essa tarefa era
considerada difícil demais para essa idade.
Seguindo esse procedimento, Binet selecionava um número deter-
minado de tarefas, em ordem crescente de dificuldade, para cada idade.
Assim, o seu teste de inteligência geral, destinado a avaliar pessoas dos
3 anos até a idade adulta, era composto por vários conjuntos de proble-
mas: um para as crianças de 3 anos, outro para as de 4 anos, outro para
as de 5 anos, e assim sucessivamente.
Por meio desses testes, a inteligência é avaliada pelo desempenho
nas tarefas. O número de testes que a criança consegue resolver determi-
na a sua idade mental ou o seu quociente de inteligência (QI). Se ela con-
seguir resolver todos os testes propostos para a sua idade, sua inteligên-
cia será considerada normal. Se ela também resolver corretamente al-
guns dos testes propostos para crianças mais velhas, seu QI estará acima
da média. E se, ao contrário, ela acertar apenas questões propostas para
crianças mais novas, sua inteligência será considerada abaixo da média.
Você sabe o que é o QI?
Embora confundido por muita gente com a própria inteligên-
cia, o QI (quociente intelectual) é basicamente uma comparação
entre a idade mental e a idade real da criança (idade cronológica).
A idade mental é determinada pelo número de tarefas de um tes-
te que a criança consegue resolver corretamente. Por exemplo, se ela
acerta todas as tarefas atribuídas ao grupo de 10 anos, diz-se que ela
tem idade mental de 10 anos, seja qual for sua idade cronológica.
O QI é obtido quando se divide a idade mental de uma criança
pela sua idade cronológica. Suponhamos que uma criança de 8
anos consiga resolver todos os problemas propostos para a idade
de 10 anos, mas nada além desse nível. Diremos que sua idade men-
tal é de 10 anos e, para calcular o seu QI, dividiremos 10 por 8, o
que dá um resultado de 1,25. Por convenção, esse resultado é mul-
tiplicado por 100, para que o QI possa ser expresso em números
inteiros. Isso significa que, em nosso exemplo, a criança tem um QI
de 125, que é considerado acima da média.
QI = idade mental x 100
idade cronológica
Assim, quando a idade mental e a idade cronológica forem
as mesmas, o QI será sempre 100. Se a idade mental for inferior
à idade cronológica, os resultados serão sempre inferiores a 100,
o que indicará um QI abaixo da média. Se, ao contrário, a idade
mental for superior à idade cronológica, o QI será sempre supe-
rior a 100, ou acima da média.
Pesquisando a criança: a elaboração das escalas de
desenvolvimento
À semelhança de Binet, Gesell também se utilizou da observação e
da experimentação com crianças para elaborar suasescalas de desen-
volvimento. No entanto, ele introduziu uma importante inovação técni-
ca na observação e no registro do comportamento da criança: as câme-
ras cinematográficas.
Na Clínica do Desenvolvimento da Criança, criada por ele em
1930 na Universidade de Yale, Gesell montou um observatório fotográ-
fico, que era um hemisfério de 4 metros de diâmetro e 2,5 metros de
altura, equipado no alto e nas paredes laterais com câmeras cinemato-
gráficas. Enquanto Gesell submetia as crianças a vários testes — sem-
pre voltados a descobrir o que são capazes de fazer em cada idade — as
câmeras rodavam, registrando todas as reações que elas apresentavam. 17
aumento do controle da cabeça: gradativamente as costas do bebê (que,
no recém-nascido, são arredondadas) ficam mais alinhadas, e a criança
toma-se capaz de manter a cabeça levantada, podendo, então, permane-
cer sentada sem apoio.
Primeiras 4
semanas de vida:
o dorso do bebê
é uniformemente
arredondado,
havendo falta de
controle da
cabeça.
Entre 4 e 6
semanas o bebê
tem o dorso
arredondado e a
cabeça é erguida
por alguns
momentos.
Entre 8 e 12
semanas o dorso
ainda é
arredondado e a
cabeça já se
levanta mais,
porém o bebê
ainda tende a
pender o corpo
para a frente.
Entre 16 e 20
semanas o bebê
tem o dorso mais
alinhado e a
cabeça é mantida
ereta sem
vacilação.
19
Binet, por sua vez, preocupava-se
com aqueles comportamentos que, numa
determinada idade, pudessem ser tomados
como indicadores do nível de inteligência
da criança. A evolução ou o desenvolvi-
mento dos comportamentos considerados
típicos não o interessaram de modo espe-
cial, mas sim a capacidade da criança de
realizá-los na idade tida como adequada.
Mas, apesar das diferenças, podemos
dizer que Binet e Gesell estabeleceram pa-
drões de comportamento com a finalidade
de avaliar a inteligência ou o desenvolvi-
mento da criança. O pressuposto de que os
fatores biológicos (hereditariedade e
maturação) são os mais decisivos na deter-
minação da inteligência e do desenvolvi-
mento leva a supor que tais padrões de
comportamento são independentes de fa-
tores externos ou do contexto social em
que as crianças vivem. Desse modo, não
importa o lugar e a época em que a criança
viva ou as condições materiais e as possi-
bilidades educacionais a que tenha acesso:
a criança "normal" deve apresentar tais
comportamentos.
No entanto, é importante lembrar que eles chegaram à definição
dos padrões de comportamento de cada faixa etária a partir de pesqui-
sas realizadas nas primeiras décadas do século, com determinados gru-
pos de crianças (francesas e norte-americanas). Logo, os comporta-
Os filmes obtidos eram posteriormente analisados. Gesell procura-
va, então, destacar diversos aspectos da evolução do comportamento
da criança. A postura, a locomoção, a ação de agarrar, os jogos, as con-
dutas sociais, etc. eram minuciosamente analisados e descritos com o
objetivo de captar as formas que esses com-
portamentos tomam no decorrer do desenvol-
vimento da criança.
A partir dessas análises, tornava-se possí-
vel estabelecer que comportamentos eram típi-
cos de cada faixa etária, como, por exemplo,
começar a engatinhar, colocar-se de pé e andar
com apoio, subir em cadeiras ou sofás e cami-
nhar sozinha.
Engatinhar e andar sozinho: estágios
diferentes do desenvolvimento infantil.
Essas pesquisas, baseadas na análise dos filmes, foram denomina-
das por Gesell pesquisas normativas, já que visavam à apreensão do
ritmo e da seqüência "normais" do desenvolvimento. Assim, ao enume-
rar os comportamentos considerados típicos de cada faixa etária, é esse
ritmo e essa seqüência que as escalas de desenvolvimento expressam.
A questão dos comportamentos típicos
Tanto Binet quanto Gesell ocuparam-se em definir os comportamen-
tos típicos de cada faixa etária, embora a partir de perspectivas diferentes.
Como já apontamos, Gesell não apenas destacava quais são os
comportamentos infantis comuns a determinada idade, mas também
procurava retratar a maneira como esses comportamentos evoluem,
transformam-se. E o caso, por exemplo, da capacidade da criança de
manter-se sentada sem apoio.
E possível observar, nas figuras a seguir, que a evolução desse
comportamento deve-se ao progresso do alinhamento das costas e do18
20
mentos considerados típicos foram aqueles apresentados pela maioria
das crianças que eles estudaram, e foi a partir daí que se definiu o que
é normal ou não.
Esse procedimento é bastante coerente com os princípios teóricos
pelos quais Binet e Gesell se orientaram. Se o ritmo e a seqüência do
desenvolvimento são biologicamente determinados, espera-se que cer-
tos comportamentos apareçam sempre na mesma seqüência e na mesma
idade, quer se trate de crianças européias de classe média, quer de crian-
ças do interior do Nordeste brasileiro.
As relações entre desenvolvimento e aprendizagem e
as influências do inatismo-maturacionismo na escola
Se o ritmo e a seqüência do desenvolvimento são biologicamente
determinados, qual a sua relação com os processos de aprendizagem?
Antes de responder a essa pergunta, é importante lembrar que os pes-
quisadores da abordagem inatista-maturacionista não tinham como ob-
jetivo o estudo da aprendizagem. No entanto, ao destacar o papel de
fatores internos na determinação da inteligência e do desenvolvimento,
essa abordagem considera que aquilo que a criança aprende no decorrer
da vida não interfere no processo de desenvolvimento.
De acordo com a perspectiva inatista-maturacionista, a aprendiza-
gem é que depende do desenvolvimento. Ou seja, o que a criança é
capaz ou não de aprender é determinado pelo nível de maturação de
suas habilidades e do seu pensamento ou, ainda, pelo seu nível de
inteligência.
Essa concepção tem tido bastante influência na escola, desde sua
elaboração. Pode-se dizer que o inatismo-maturacionismo marca o co-
meço da relação entre a psicologia científica e a educação. Como vi-
mos, a construção dos primeiros testes de inteligência de Binet e
Simon foi resultado de uma necessidade emergente nos meios educa-
cionais franceses da época: a de identificar as crianças mentalmente
deficientes e estabelecer métodos que tornassem o ensino acessível a
elas. O trabalho de Gesell também foi orientado por fins ligados à
educação, especialmente a de crianças consideradas desadaptadas.
No Brasil, as principais pesquisas psicológicas sobre crianças da-
tam do início do século. Educadores, geralmente vinculados às Escolas
Normais (antigo nome dos cursos de Magistério), implantaram na déca-
da de 20, em suas escolas, laboratórios de Psicologia Experimental e de
Psicologia Pedagógica. Nesses laboratórios, as crianças eram submeti-
das a exames destinados a medir suas reações psicofísicas (discrimina-
ções visuais, auditivas, etc.), e foi através deles que se introduziram no
país os primeiros testes psicológicos. O primeiro teste para avaliar a
prontidão de crianças para a alfabetização foi desenvolvido por um edu-
cador, Lourenço Filho.
A idéia de que a criança é portadora dos atributos universais (bioló-
gicos) do gênero humano produz ou justifica a crença de que caberia à
educação- fazer aflorar esses atributos naturais, desenvolvendo as
potencialidades do educando de modo harmonioso. Tal concepção teve
o mérito de chamar a atenção para as especificidades da criança, para as
características, habilidades e capacidades dos educandos, colocando
em destaque noções como prontidão, maturidade, aptidão.
Mas, ao mesmo tempo que atribuem à escola o papel de "cultivar"
o indivíduo, de possibilitar o seu desenvolvimento harmonioso, as pro-
postas pedagógicas orientadas por essa perspectiva consideram que
para aprender os conteúdos escolares a criança precisaria já ter desen-
volvido determinadas capacidades. Isso acaba gerando a idéia de que
existe uma idade bem precisa para aprender certos conteúdos. Ou, ain-
da, que o proveito que a criança tira das situações de aprendizagem
depende de seu nível de prontidão ou maturidade.
Essas noções, além de circularem entreos agentes do processo
educacional, influenciando, muitas vezes, o cotidiano da escola, tam-
bém dão sustentação à prática de utilização de testes psicológicos para
avaliar as possibilidades educacionais da criança.
E fato bem conhecido que testes de prontidão (para a leitura, por
exemplo) e testes de inteligência têm sido amplamente utilizados para a
avaliação de crianças em idade escolar, penalizando muitas delas. Os
resultados de tais testes têm, historicamente, impedido que inúmeras
crianças tenham acesso ao conhecimento e à própria escolarização, ao
fornecerem indicadores de sua "imaturidade" ou de seus "déficits" de
inteligência. Há crianças, por exemplo, que são retidas na pré-escola ou
permanecem nos exercícios preparatórios, às vezes um ano inteiro, por-
que "não estão prontas" para aprender a ler e escrever; outras são envi-
adas às classes especiais porque "não têm condições" intelectuais de
seguir o curso normal da escolaridade.
21
'22
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Organize um quadro explicando, resumidamente, o que é:
• hereditariedade;
• maturação.
2. Monte um quadro que apresente um resumo de como se explica, na
abordagem inatista-maturacionista:
• inteligência;
• desenvolvimento.
3. Explique a relação existente entre desenvolvimento e aprendizagem,
de acordo com essa abordagem.
Refletindo sobre o texto
1. Dividam-se em dois grupos, para discutir a seguinte frase: "Algumas
pessoas são mais inteligentes que outras em razão de sua herança
genética".
2. O grupo 1 deve se reunir e pensar em argumentos a favor dessa frase
(durante dez minutos).
3. O grupo 2 pensará em argumentos contra essa frase (durante dez mi-
nutos).
4. Organizem o debate entre os grupos. Mas lembrem-se: quem é do
grupo 1 só pode falar "a favor" da frase e quem é do grupo 2 deve
falar "contra".
5. Registre em seu caderno suas opiniões sobre os aspectos favoráveis e
desfavoráveis da abordagem analisada.
Trabalho de campo
1. Para realizar esta pesquisa, cada aluno deverá entrevistar uma pessoa
que tenha filhos (mãe ou pai) e uma professora (de pré-escola ou de
1! a 4! série). Explique à pessoa que você está realizando um trabalho
escolar e precisa da ajuda dela.
• Pergunte à mãe (ou ao pai) sobre o que se lembra a respeito do
desenvolvimento dos filhos. O que mais lhe chamou a atenção
nesse processo? O que foi motivo de encantamento e o que foi
motivo de preocupação? Por quê? Registre ou grave as respostas
obtidas. Caso a pessoa queira lhe mostrar fotos da criança ou ano-
tações sobre ela, observe-as atentamente e sintetize as informa-
ções proporcionadas por esses materiais.
• Pergunte à professora quais são as situações a que ela presta aten-
ção para analisar o desenvolvimento de seus alunos. Procure saber
o que a encanta e o que a preocupa em seus alunos. Peça a ela que
descreva algumas situações ou experiências que foram marcantes
em seu trabalho com as crianças. Registre as respostas obtidas.
2. Em grupo, organizem os dados obtidos, reunindo as respostas seme-
lhantes. Destaquem nas respostas dadas pelos pais e professoras os
aspectos que as associam à visão inatista-maturacionista do desen-
volvimento.
Concluído o trabalho, convém guardar os registros das entrevistas e o
resultado da Organização dos dados estabelecida pelo grupo, pois
eles serão utilizados em atividades referentes aos próximos capí-
tulos.
Exercitando a análise
Leia o livro A Terra dos Meninos Pelados, de Graciliano Ramos
(Editora Record). Nesse livro, o autor conta a estória de Raimundo, um
menino considerado "diferente" ...
Após a leitura, responda:
• De que tipos são as diferenças de Raimundo?
• Quais as conseqüências dessas diferenças na vida do menino?
Em grupo, discutam essas questões, relacionando-as com as idéias
apresentadas no capítulo a respeito do desenvolvimento humano.
Sugestão de leituras
A curva do sino. Folha de S. Paulo, 30 de outubro de 1994, p. 6-4 a 6-6.
BEE, H. A criança em desenvolvimento. São Paulo: Harper e Row do
Brasil, 1977.
Capítulo 3
A abordagem
comportamentalista
Ao contrário do inatismo-maturacionismo, a abordagem compor-
tamentalista destaca a importância da influência de fatores externos, do
ambiente e da experiência sobre o comportamento da criança.
Enquanto aquela abordagem enfatiza o papel de fatores biológicos
internos, como a hereditariedade e a maturação, o comportamentalismo
parte do princípio de que as ações e as habilidades dos indivíduos são
determinadas por suas relações com o meio em que se encontram.
John B. Watson foi o fundador do movimento comportamentalista
(ou behaviorista, do inglês behavior, que significa "comportamento")
na psicologia. Ele definiu a psicologia como a ciência do comportamen-
to, como um ramo objetivo e experimental das ciências naturais.
Quem foi Watson?
John Broadus Watson nasceu em 1878, nos
EUA, e viveu até 1958. Formou-se em Filosofia,
pela Universidade de Funnam, aos 22 anos, mas
logo interessou-se pela psicologia animal, área em
que desenvolveu sua tese de doutoramento.
Em 1908, assumiu o cargo de professor de Psi-
cologia na Universidade Johns Hopkins, onde conti-
nuou suas pesquisas com animais.
Após algumas tentativas de formulação de prin-
cípios que considerava mais objetivos para o estudo
da psicologia — desestimuladas pelas críticas —,
Watson publicou, em 1913, um artigo intitulado "A
psicologia como um behaviorista a vê", considera-
do o lançamento oficial da escola behaviorista.
O fato de incluir a psicologia entre as ciências naturais deve-se à
crença na existência de uma continuidade entre o animal e o homem.
Ou seja, para os comportamentalistas, embora o comportamento do ho-
mem difira do dos animais em razão de um maior refinamento e com-
plexidade, ambos podem ser explicados pelos mesmos princípios. Des-
se modo, o comportamento humano não é privilegiado como objeto de
pesquisa: no comportamentalismo, estudam-se tanto o comportamento
humano quanto o comportamento animal.
Mas o que é comportamento?
Na perspectiva de Watson, podemos dizer que o comportamento é
sempre uma resposta do organismo (humano ou animal) a algum estí-
mulo presente no meio ambiente.
Por estímulo, Watson entende toda modificação do ambiente que
pode ser captada pelo organismo por meio dos sentidos. Assim, as res-
postas são modificações que ocorrem no organismo em decorrência
desses estímulos, como, por exemplo, alterações na expressão facial,
mudanças na posição do corpo, ações ou movimentos de qualquer tipo.
Imaginemos um pequeno animal silvestre bebendo água na beira
de um riacho. Ao captar um ruído de passos de animal no mato, ele sai
correndo. Na linguagem comportamentalista, diremos que o ruído (estí-
mulo) provocou, no animal, uma resposta: o ato de correr.
O que interessa à psicologia, entendida como Uma ciência natural
e objetiva, é a relação entre estímulos e respostas — fatos exteriores
que podem ser empiricamente observados. O que ocorre no interior do
organismo entre um dado estímulo e uma dada resposta não pode ser
observado e, portanto, não interessa aos psicólogos comporta-
mentalistas. No exemplo do animal silvestre bebendo água, o compor-
tamento do animal é explicado pela relação entre o estímulo (o ruído) e
a resposta desencadeada por ele (correr), e não a partir de determinado
estado interno do organismo.
Veja bem: isso não significa que Watson descarte a existência de pro-
cessos internos no organismo. Ele apenas considera que tais processos
devem ser estudados pela fisiologia. A psicologia, segundo sua concep-
ção, cabe o estudo das respostas do organismo aos estímulos do meio.
Assim, os problemas de que se ocupa o comportamentalismo são:
prever a resposta, quando se conhece o estímulo, e identificar o estímu-
lo, quando se conhece a resposta. Ou seja, o estudo do comportamento
deve possibilitar o conhecimento das relações estímulo-resposta, das
quais ele é o resultado. Assim, cabe ao comportamentalista descobrir
quais são os estímulos que provocam determinado comportamento.De acordo com essa concepção, o comportamento animal ou huma-
no é sempre uma adaptação, uma reação aos estímulos, às alterações que
se processam no ambiente. Essa postura ambientalista opõe-se a qual-
quer tipo de inatismo. Para Watson, não existem aptidões, disposições
intelectuais ou temperamentos inatos ou hereditários. O que existe é certa
propensão para responder a certos estímulos de uma forma determinada.
25
26
Comportamento e aprendizagem
Para o comportamentalismo, a aprendizagem é um tema central.
Ao enfatizar a influência dos fatores externos e ambientais, essa con-
cepção teórica afirma que o mais importante na determinação do com-
portamento do indivíduo são as suas experiências, aquilo que ele apren-
de durante a vida. Aliás, podemos dizer que o comportamentalismo
confunde-se com uma teoria da aprendizagem, uma vez que sua preo-
cupação básica é explicar como os comportamentos são aprendidos.
Skinner, outro importante comportamentalista, cujo trabalho deu
continuidade a algumas das formulações de Watson, distingue dois ti-
pos de aprendizagem: por condicionamento clássico e por condiciona-
mento operante.
A aprendizagem por condicionamento clássico envolve um tipo de
comportamento determinado, que é sempre provocado por um estímulo
também determinado. Ela envolve uma reação do organismo ao meio e
não uma ação do organismo sobre o meio.
Digamos que alguém dê um sopro em seus olhos. Você automatica-
mente irá piscar. Piscar é uma reação, uma resposta a um estímulo. Não
se pode dizer que tenha sido uma resposta aprendida. No entanto, se
toda vez que alguém sopra em seus olhos soa uma campainha, pode
chegar um momento em que você piscará ao ouvir tal campainha, mes-
mo na ausência do sopro. Dizemos, então, que você aprendeu a piscar
quando ouve determinado som.
Em relação à primeira parte do nosso exemplo, podemos dizer que
o sopro é o estímulo que provoca a reação de piscar. Essa reação, como
já dissemos, é um tipo de resposta não aprendida, é um reflexo do orga-
nismo. A medida que o sopro é associado a um som determinado, esse
som passará a servir como um estímulo que também provoca a resposta
de piscar. Nesse caso, o som é chamado pelos comportamentalistas de
estímulo condicionado, porque, por si mesmo, ele não provoca a reação
de piscar, mas apenas quando é associado a outro tipo de estímulo (o
sopro) que automaticamente desencadeia tal reação.
Esse é um exemplo de aprendizagem por condicionamento clássi-
co, em que estão envolvidos um estímulo condicionado e uma resposta
que é simplesmente uma reação do organismo. Esse tipo de aprendiza-
gem não implica nenhuma iniciativa por parte de quem aprende. Ou
seja, a pessoa aprende a piscar quando ouve um som determinado por-
que sua reação original acabou se associando a um novo estímulo.
Já a aprendizagem por condiciona-
mento operante se dá de forma bastante
diferente, apoiando-se não em reações
provocadas por estímulos, mas em
comportamentos emitidos pelo próprio
organismo que são seguidos por algum
tipo de conseqüência.
Se o comportamento é seguido
por uma conseqüência agradável, ele
tende a se repetir. Ao contrário, se a
conseqüência for desagradável, o com-
portamento tem menos probabilidade
de se repetir. Essas conseqüências,
chamadas pelos comportamentalistas
de reforçadores, "modelam" o compor-
tamento dos indivíduos, sendo respon-
sáveis pela criação dos hábitos.
Segundo a concepção de Skinner,
a grande maioria dos comportamentos
das pessoas é aprendida por condicio-
namento operante. A birra de uma crian-
ça, por exemplo, é um comportamento
aprendido. Se a criança chora e
esperneia e a mãe (ou outro adulto) lhe
dá algo que ela deseja (como um doce,
um brinquedo, um refrigerante), o
comportamento da criança é reforçado e tende a se repetir em outras
ocasiões. Da mesma forma, uma criança pequena que sozinha leva o
copo de água à boca, tende a repetir esse comportamento se for elogia-
da e beijada pela mãe. Mas, se a mãe a repreender todas as vezes (te-
merosa de que a água seja derramada), ela provavelmente deixará de
ter esse comportamento.
Quem foi Skinner?
Burrhus Frederic Skinner; psicólogo norte-americano, nascido
em 1904, foi o criador do que ele denominou "análise experimental
do comportamento ", método que permite prever e con-
trolar cientificamente o comportamento humano.
Doutorou-se em Harvard, em 1931, e depois de
alguns anos lecionou na Universidade de Minnesota
e na Universidade de Indiana, da qual foi presidente.
Regressou a Harvard como professor e pesquisador
em 1947.
Skinner interessou-se pela análise da aprendiza-
gem verbal, pelo adestramento de pombos, pelas má-
quinas de ensinar e pelo controle do comportamento
mediante reforço positivo.
Até a sua morte, em 1980, desenvolveu trabalhos
de aplicação tecnológica dos princípios da análise ex-
perimental do comportamento no campo do ensino e no
trabalho psicoterapêutico. Além disso, dedicou-se à
elaboração de uma filosofia, o behaviorismo, que se vincula ao mo-
vimento de análise experimental do comportamento.
Para Skinner a
birra é um
compormmento
que se aprende.
27
As crianças, a
princípio, não
têm medo dos
animais.
28
Pesquisando a criança: condicionamento e
modelagem do comportamento
A idéia de que os comportamentos e as habilidades do indivíduo
são sempre aprendidos a partir da influência do ambiente serviu de base
para pesquisas psicológicas que tinham como objetivo estabelecer um
método que permitisse prever e controlar cientificamente o comporta-
mento humano ou animal.
Para que você saiba um pouco sobre as pesquisas que auxiliaram a
produção de conhecimentos relativos a como os comportamentos são
aprendidos, destacaremos aqui as pesquisas mais conhecidas de Watson
e Skinner.
A aprendizagem de comportamentos emocionais: uma
pesquisa de Watson
Interessado em saber como as crianças aprendiam comportamen-
. tos emocionais, Watson realizou uma pesquisa com crianças de 4 meses
a 1 ano de idade que haviam sido criadas em hospitais e nunca tinham
visto nenhum dos animais ou objetos utilizados no experimento.
Vários animais foram apresentados às crianças no laboratório e em
um jardim zoológico. Suas reações eram todas anotadas pelo pesquisa-
dor. O resultado dessas situações foi sempre o mesmo: não se verificou
nenhuma manifestação de medo nas crianças.
Watson já havia verificado que situações como exposição a um
ruído forte, perda do equilíbrio ou sensação de dor provocavam rea-
ções de medo nas crianças. Para ele, essas seriam as situações originais
que suscitariam medo.
Como explicar o medo de tanta coisa que muitas crianças mais ve-
lhas e até mesmo adultos sentem? Watson afirma que medo de cachor-
ro, de escuridão, de insetos, e outros tipos de medo, é um sentimento
aprendido através de condicionamento. Ele resolveu verificar se era
possível produzir, em laboratório, uma reação de medo.
O sujeito da experiência foi uma criança de 11 meses que original-
mente não demonstrava medo a animais peludos, como o coelho e o
rato branco. Quando, no laboratório, era apresentado à criança um rato
branco e ela o tocava, um ruído forte — de uma barra de aço golpeada
com um martelo — era produzido. A criança manifestava então reações
de medo: estremecia e começava a chorar.
Após várias repetições desse procedimento, a criança passou a
apresentar reações de medo diante do rato branco quando este lhe era
apresentado sozinho (sem o ruído). Watson verificou, ainda, que tal rea-
ção estendia-se a outros animais ou objetos que lembravam o rato bran-
co: um coelho, um cão, um casaco de peles ou um chumaço de algodão.
Você pode reconhecer nessa experiência uma situação experimen-
tal de aprendizagem por condicionamento clássico. Um estímulo que
originalmente não provocava a resposta de medo (o rato branco) foi
associado a outro que naturalmente a provocava (um ruído forte), tor-
nando-se, assim, um estímulo condicionado. A reação de medo a ani-
mais peludos foi, portanto, aprendida pela criança.
Com esse experimento, Watson procurava comprovarde vida, produzindo "escritas" e "leituras" não compatíveis
com a escrita convencional.
Tal qual Olívia no episódio relatado anteriormente, ela começa di-
ferenciando a escrita do desenho.
A
	
C) E
A
Em seguida, preocupa-se com a disposição das letras conhecidas
ou com o número de letras utilizadas, tentando marcar diferenças entre
as palavras que deseja (ou é solicitada a) registrar.
Fonte: Reflexões sobre alfabetização— Emilia Ferreiro. Cortez, p. 23.
Conforme desenvolve a capacidade de prestar atenção às caracte-
rísticas sonoras da palavra falada, a criança começa a estabelecer rela-
ções entre as partes da palavra escrita e a quantidade de partes que reco-
nhece na palavra falada. Ela passa, então, a representar cada sílaba com
uma letra.
	
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RAFAEL-q* .
A criança pode utilizar letras convencionais cujo traçado conhece,
para representar a escrita, sem estabelecer nenhuma diferenciação entre
as palavras, como na ilustração a seguir.
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Fonte: Reflexões sobre alfabetização — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 22.
S K^^ tv rn J
Fonte: Reflexões sobre alfabetização — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 26.178
179
180
As informações fornecidas por adul-
tos leitores (inclusive a professora na es-
cola) a respeito de especificidades da es-
crita não são mecanicamente acrescenta-
das às elaborações da criança.
Ela vai passando de uma forma de
escrita para outra, à medida que vai se
dando conta, por si mesma, das contra-
dições entre sua interpretação da escrita
e a escrita convencional. Nesse proces-
so, ela reelabora gradativamente suas
hipóteses, por meio de acomodações su-
cessivas, até chegar à lógica da escrita
alfabética.
O conjunto dessas formas de escrita que nos parecem "erradas" do
ponto de vista convencional são, segundo Emilia Ferreiro, "erros cons-
trutivos": é passando por essas hipóteses que a criança vai construindo
(reinventando) a lógica do sistema alfabético. Nesse sentido, os erros
revelam o raciocínio da criança sobre o que é escrever e as etapas pelas
quais ela vai passando no processo de construção da escrita.
Nos estudos realizados por Emilia Ferreiro e seus colaboradores
com crianças de diversos meios sociais em diferentes países (Argentina,
México, Espanha, Brasil), as formas de escrita mostradas nas ilustra-
ções acima apareceram de modo sistemático, regular e na mesma pro-
gressão. O que diferia de uma criança para outra era o tempo de duração
de cada etapa e o tempo de passagem de uma etapa para outra. As regu-
laridades observadas comprovavam, segundo ela, que o desenvolvi-
mento da escrita envolve uma série de concepções e de relações cuja
elaboração não pode ser atribuída à influência do meio, nem à aprendi-
zagem, mas, sim, ao desenvolvimento cognitivo da criança.
Isso acontece, explica Emilia Ferreiro, porque a criança "é um su-
jeito que pensa. Um sujeito que assimila para compreender, que deve
criar a fim de assimilar, que transforma o que vai conhecendo, que
constrói seu próprio conhecimento para apropriar-se do conhecimento
dos outros" (1987: 103; o destaque é nosso).
A criança integra-se às práticas sociais de escrita
Já para Vygotsky e Luria, a escrita é mais do que um sistema de for-
mas lingüísticas organizado segundo uma lógica com a qual o sujeito se
confronta, esforçando-se por compreendê-lo. Ela é uma forma de lingua-
gem, uma prática social própria de membros de uma sociedade letrada.
A escrita nos confere o título de cidadãos. É por meio do registro
legal, nosso primeiro documento, que somos inscritos no rol de habitan-
tes do país, temos nossa nacionalidade definida.
A escrita nos faz ser classificados como alfabetizados ou analfabe-
tos, e arcar com as vantagens e desvantagens de pertencer a um ou a
outro desses grupos.
Como sistema de signos (conjunto organizado de marcas externas que
nos permitem representar ou expressar objetos, eventos e situações da reali-
dade), a escrita age sobre nossos processos psicológicos, transformando-os.
Sua utilização, por exemplo, transforma nossa memória. Ao fazer-
mos uma lista de compras por escrito, ao anotarmos um endereço ou os
ingredientes e o modo de preparo de uma receita, não só liberamos
nossos neurônios da necessidade de reter mecanicamente algumas in-
formações, como também aumentamos enormemente a quantidade de
informações que podemos armazenar. A escrita nos permite esquecer
informações que, tendo sido registradas, podem ser recuperadas.
Ela também transforma nossa atenção, nossos modos de buscar in-
formações. Pense, por exemplo, nos usos de placas informativas.
Por não ser nem natural (ela é produção cultural) nem arbitrária
(escrever não é marcar quaisquer traços sobre qualquer superfície), a
elaboração da escrita não começa dentro de cada um de nós. Apro-
priamo-nos dos conhecimentos das gerações que nos precederam para
construirmos o nosso conhecimento. Nesse sentido, a elaboração da es-
crita pela criança tem início nas suas relações sociais (cotidianas e
escolarizadas), contando sempre com a participação do outro.
Nas sociedades letradas, como a nossa, a escrita vai sendo gra-
dativamente apontada e destacada para a criança pelos adultos leitores.
Aline, de 3 anos, pega um pedaço de papel e pede à avó:
— Vá, faz Aline...
A avó escreve no papel: ALINE.
A criança não aceita e volta a pedir.
— Faz Aline, vovó.
A avó, na tentativa de entender e atender ao pedido da neta,
desenha urna menininha, e Aline mostra-se satisfeita.
Alguns dias depois, a criança faz de novo o mesmo pedido à avó.
A avó pega lápis e papel e desenha a menininha.
A criança retruca:
— Assim não, vovó. A outra...
E, pegando o lápis, faz risquinhos no papel, enquanto diz:
— Assim, Aline, Aline pequenininha.
E, enquanto traça rabiscos maiores, vai dizendo:
— Aline grande...
(Episódio relatado por uma professora durante curso ministrado
pelas autoras.)
É na interação com a avó que Aline, ao tomar contato simultanea-
	
181mente com duas formas de simbolização — o desenho e a escrita —,
Fonte: Reflexões sobre alfabetização —
Emilia Ferreiro. Cortez, p. 29.
descobre a possibilidade de usar marcas para representar. A avó, ao es-
crever o nome da menina no papel, não determina os significados do
desenho e da escrita, mas desencadeia essa elaboração em Aline.
As crianças mais velhas também participam da progressiva inte-
gração da criança à comunicação escrita. Elas compartilham com as
mais novas suas relações com a escrita, lendo, desenhando e escreven-
do para elas, ensinando-lhes os nomes das letras e a escreverem o pró-
prio nome, brincando de escolinha, etc. A elaboração ativa dos conteú-
dos e formas de organização da es-
crita depende, fundamentalmente,
das possibilidades que as crianças
têm (ou não) de utilizar e comparti-
lhar a escrita em suas interações.
Num país como o nosso, a
grande maioria das crianças tem
contato incidental com a escrita, por
meio de rótulos de produtos, de pla-
cas e propagandas na rua, quando
vai aos supermercados, vendo TV...
Elas convivem com a escrita.
Nas grandes cidades, com o au-
mento de freqüência à pré-escola, a utilização de papéis, lápis, tintas e o
contato com a escrita têm se intensificado e sido submetidos a um modo
de organização mais sistemático.
Essas crianças, assim, além de conviver com a escrita, a utilizam e or-
ganizam algumas de suas convenções no espaço das relações escolares.
Apenas um número reduzido de crianças brasileiras tem, na vida
em família, como Aline, oportunidade de conviver com leitores, papel,
lápis, livros de história, jornais, revistas.
Em algumas dessas famílias, os pais
lêem histórias para as crianças, escrevem
palavras com elas e para elas. Nesse
caso, essas crianças vão além da situação
de convivência com a escrita, passando a
utilizá-la. Assim, mesmo sem dominar
autônoma e convencionalmente a escrita,
elas começam a elaborar e a compreen-
der, desde muito muito cedo, seus princí-
pios de organização e sua natureza.
Nas relações que mantêm com a es-
crita, as crianças apropriam-se de técni-
cas para sua utilizaçãoe de algumas de
A descoberta da leitua: momento de prazer
	
suas convenções básicas — o nome de
algumas letras, o modo de traçá-las, a
direcionalidade, etc. E apreendem também suas funções sociais — para
que, para quem, por que, e onde, e como se escreve.
Elas brincam de escrever, como Rafael, que aos 3 anos e meio en-
trega para a mãe um papel cheio de letras traçadas por ele, dizendo:
^5JC10^ _^^ \A10-^N
j \_Si tr
— Toma, mãe. Isso é uma carta pra você.
— Ah! Que bom, Rafa! Lê a carta pra mim!
— Não! Você é que lê! Eu escrevi a carta pra você!
(Episódio envolvendo urna das autoras e seu filho.)
Nesse episódio, a criança, que aprendeu a traçar algumas das le-
tras do seu nome com o irmão e os primos, utiliza esse conhecimento
para produzir alguma coisa "para ser lida", ou seja, algo que reúne
determinadas características daquilo que seus parceiros sociais mais
experientes tomam como objeto de leitura. Ela produz (essa é a inten-
ção revelada por ela diante do produto pronto) uma carta, produto
cultural típico de uma sociedade letrada. A elaboração da função social
da escrita, mais do que de sua lógica interna, é o que se destaca nessa
atitude da criança.
Pela mediação do outro é que a lógica da escrita começa também a
ser elaborada. As crianças pedem a adultos (ou a crianças mais velhas)
que escrevam ou leiam para elas. Tentam escrever e ler, imitando o que
observam e fazendo suposições a respeito das características e das re-
gras de funcionamento da escrita, e procuram verificar, entre aqueles
que são leitores, a adequação de suas suposições.
São muitos os
estímulos que as
crianças recebem
para desenvolver
a leitura.
182 -
, lumet&osmAltale1109r4
183
184
As crianças do pré exploram as letras de plástico, tentando
compor palavras. Uma das meninas, após justapor uma série de
consoantes, chama a professora e pede a ela que leia o que es-
creveu.
Ruth, a professora, vai emitindo sons correspondentes às le-
tras justapostas.
A criança desmancha a combinação de letras e volta a fazer
uma nova justaposição de consoantes. Novamente ela pede à pro-
fessora que leia o que escreveu e a professora repete o tipo de lei-
tura que fez antes.
A criança então pergunta:
— Ruth, por que será que eu só consigo escrever em inglês?
(Depoimento da professora Ruth Jofily Dias, professora da EMEI
Meia Lua, do município de Paulínia, SP, a quem agradecemos a
autorização para a utilização desse episódio.)
Enquanto para Emilia Ferreiro o papel do adulto (inclusive o pro-
fessor) deve ser o de possibilitar o desenvolvimento da escrita, criando
condições estimuladoras e conflitos cognitivos (situações em que a crian-
ça percebe contradições entre suas hipóteses e os princípios da escrita
convencional) para que ela descubra por si mesma as chaves secretas
do sistema alfabético (1985: 60), Vygotsky considera fundamental a
participação do outro no processo em que a escrita vai se tornando
parte da criança, destacando e diferenciando o papel do professor.
Vygotsky considera que o ingresso na escola representa para as
crianças um novo tipo de relação com a escrita, que, além de ser inten-
sificada, passa a ser sistematizada.
Nessa instituição, todas as crianças são colocadas diante da tarefa
de interpretar convencionalmente a escrita. O papel do professor é dife-
rente daquele desempenhado pelos adultos que com elas convivem dia-
riamente. Na família, o adulto intervém ocasionalmente e, em geral,
quando solicitado. Na escola, a ação do alfabetizador é intencional e
explícita: ele proporciona à criança um contato sistemático com a escri-
ta padronizada, que, entrecruzando-se com suas elaborações iniciais,
acaba por substituí-las.
Também diferentemente de Emilia Ferreiro, Vygotsky não conside-
ra que as relações da criança com a escrita sejam estritamente cog-
nitivas. A escrita não é apenas objeto de conhecimento. Ela constitui o
conhecimento, sendo uma forma cultural de ação no mundo.
A palavra materializada sobre o papel não é um fim em si mesma.
Ela cria relações entre os indivíduos: "A criança aprende a ouvir, a en-
tender o outro pela leitura; aprende a falar, a dizer o que quer pela escri-
ta. Mas esse aprender significa fazer, usar, praticar, conhecer. Enquanto
escreve, a criança aprende a escrever e aprende sobre a escrita"
(Smolka,1988: 63).
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
Reproduza e preencha o quadro abaixo, sintetizando as concepções
de desenvolvimento e aprendizagem da escrita adotadas pela psi-
cogênese (Emilia Ferreiro) e pela abordagem histórico-cultural (Vy-
gotsky e Luria).
Refletindo sobre as informações do texto
No texto apresentamos as seguintes afirmações:
"A criança constrói seu próprio conhecimento para apropriar-se do
conhecimento do outros" (E. Ferreiro).
"Nós nos apropriamos dos conhecimentos das gerações que nos
precederam, para construirmos o nosso próprio conhecimento"
(Vygotsky).
Explique e compare a duas afirmações, buscando no texto os argu-
mentos que as sustentam.
Exercitando a análise
A partir das leituras e discussões sugeridas até aqui, analise a si-
tuação seguinte:
No ônibus havia um anúncio de chapéu, com um chapéu mas-
culino desenhado em destaque. Abaixo, a marca do chapéu,
PRADA, escrita em maiúsculas e o endereço da firma. O avô,
encontrando um amigo, diz-lhe entusiasmado que estava justa-
mente ensinando seu neto a ler e que ele aprendia com grande
facilidade. Apontando para o anúncio, objeto de treino desde o
início da viagem, o avô pede ao garotinho que leia o mesmo. O
garoto prontamente:
Psicogênese
Concepção de escrita
A relação da criança
com a escrita
185
186
—PE-ERRE-A-DE-A.
— Muito bem, diz o avô, e o que está escrito?
—PE-ERRE-A-DE-A.
— Sim, muito bem. E isso é o quê? Leia lá.
— Chapéu.
(Episódio registrado por Nunes, T. no texto 'Leitura e escrita: pro-
cessos e desenvolvimento', In: Alencar, E. (org.). Novas contribui-
ções da psicologia aos processos de ensino e aprendizagem. São
Paulo: Cortez, 1992.)
Trãbalho de campo
Vamos observar crianças de 2 a 7 anos, que ainda não estejam sen-
do alfabetizadas, e descrever o modo como se relacionam cotidiana-
mente com a escrita. Para isso, vamos nos dividir em dois grupos.
• Cada um dos alunos do primeiro grupo deverá observar uma crian-
ça e descrever suas eventuais tentativas de uso do registro escrito,
para que ela o utiliza, e como ela se relaciona com a escrita presen-
te no seu espaço doméstico.
• Cada um dos alunos do segundo grupo deverá observar uma crian-
ça não alfabetizada e descrever a relação que ela mantém com o
material escrito existente na pré-escola e a utilização que ela faz de
registros gráficos nesse contexto (para que e como).
Para um melhor aproveitamento desse trabalho de campo, sugeri-
mos que cada criança seja observada mais de uma vez e que sejam ob-
servadas crianças de idades diferentes, dentro da faixa de idade in-
dicada.
O seguinte roteiro poderá ser útil à observação e ao registro:
• Registre a idade da criança, o dia, o local, a hora e quanto tempo
durou a observação.
• Descreva a situação em que você observou a criança (onde ela
estava, o que fazia, quem a acompanhava, etc.).
• Que tipo de material escrito chama a atenção da criança ou está
sendo explorado por ela? O que ela faz e o que diz em relação ao
material escrito? Que finalidade atribui a ele?
• Com quem ela compartilha sua exploração ou comentários? Como
o faz? Como o outro participa dessa situação? O que diz? O que
faz?
• Se a criança estiver numa situação de produção de escrita, descre-
va também o que ela está fazendo. Que material está utilizando
para isso? Que tipo de marcas produz? Em que condições as pro-
duz? Que significado ou função atribui a elas (está escrevendo o
que, para que, para quem) Como e com quem compartilha a ativi-
dade? Como o outro participa da atividade? O que faz, o que diz?
Peça à criança o material produzido. Se ela não quiser dá-lo, respei-
te sua decisão.
Se você dispuser de câmara de vídeo ou de gravador, poderá
utilizá-los

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