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2.2.1 Bulhas cardíacas As bulhas cardíacas são os sons produzidos pela atividade cardíaca. Quando se contraem, os ventrículos produzem sons característicos, vibrados essencialmente pelo fechamento das válvulas atrioventriculares e semilunares. O primeiro som cardíaco é chamado “primeira bulha cardíaca”, ele coincide com o início da sístole e é representado pelo fechamento das válvulas tricúspide e mitral. O segundo som cardíaco é a “segunda bulha cardíaca”, ele coincide com o início da diástole e representa o fechamento das válvulas pulmonar e aórtica. Por se situarem estrategicamente ao início da sístole e ao início da diástole, o som produzido pelo fechamento das válvulas pode fornecer informações importantes acerca do funcionamento do coração. Todos os sons anormais emitidos entre a primeira e segunda bulha cardíaca são causados por fenômenos disparados durante a sístole, já todos os sons anormais produzidos entre a segunda e a primeira bulha cardíaca são causados por fenômenos que ocorrem durante a diástole. A detecção dos sons cardíacos faz parte do exame clínico cardiológico e muitas patologias cardíacas podem ser diagnosticadas pela ausculta do coração (CURI; PROCOPIO, 2009). 1.1 Débito cardíaco Chamamos débito cardíaco (DC) ou volume cardíaco minuto (VCM) o volume de sangue que o coração bombeia em um dado intervalo de tempo na pequena ou na grande circulação. É comumente expresso em litros por minuto (l/min). Podemos definir DC como o volume ejetado pelo coração (dos ventrículos esquerdo e direito), em um intervalo de tempo; no caso, um minuto. Para calcularmos o DC, antes, precisamos saber qual é o volume ejetado pelo coração, e a esse parâmetro damos o nome de volume sistólico (VS). Portanto, o VS é o volume de sangue ejetado em cada batimento cardíaco, ou seja, a cada sístole. É necessário saber também a quantidade de vezes que o coração bate em um minuto – esta segunda variável é definida como frequência cardíaca (FC). Podemos assumir, então, o DC como o volume de sangue ejetado pelo coração em cada sístole (VS) pela quantidade de batimentos cardíacos em um minuto (FC). A partir disso, chega‑se à seguinte equação (CURI; PROCOPIO, 2009): DC = FC x VS Um homem adulto em repouso, com cerca de 70 kg, possui um VS de aproximadamente 80 ml, e, se sua FC for de 65 batimentos por minuto (bpm), o DC será de 5.200 ml/min – valor este representativo da média da população, embora se deva levar em conta, também, outros fatores, como sexo, peso e altura. A equação mostra que o DC é diretamente proporcional à FC e ao VS. Se o VS for mantido constante, o DC é uma função linear da FC. No exercício físico, quando a demanda por oxigênio pelo organismo está exacerbada, o DC pode aumentar de 4 a 5 vezes, graças ao aumento de ambos, FC e VS, mediado pela ativação do sistema nervoso simpático. É importante definir e considerar também o conceito de retorno venoso (RV). Trata‑se ele do fluxo de sangue que retorna ao coração e entra na câmara ventricular. O retorno venoso influencia diretamente o volume sistólico e, consequentemente, o débito cardíaco. Dentro de determinados limites, 19 FISIOLOGIA GERAL o coração transfere o que recebe pelo RV em DC. Isso quer dizer que, se mais sangue retornar ao coração, em um dado intervalo de tempo, causando maior enchimento do ventrículo durante a diástole e, por conseguinte, aumento da pré‑carga, o mecanismo de Frank‑Starling, pelo maior estiramento das fibras do músculo cardíaco, garantirá um volume sistólico (VS) maior na sístole seguinte. Portanto, se houver aumento no RV, também o haverá no VS (CURI; PROCOPIO, 2009). Observação A lei de Frank‑Starling assim determina: “Quanto maior o estiramento de uma fibra muscular, maior será sua força de contração” (STARLING, 1920). Devemos considerar também que as variações da frequência cardíaca não significam necessariamente variações do débito cardíaco. Uma leitura desatenta da equação DC = FC x VS levar‑nos‑ia a crer que, aumentando a FC, testemunharíamos sistematicamente o aumento do DC. É um engano. Para isso ser verdadeiro, seria necessário que o VS permanecesse constante. Uma simples elevação da FC, pelo uso de marca‑passo, por exemplo, não aumenta o DC, pelo simples motivo de que, ao aumentarmos a frequência, estaremos diminuindo concomitantemente o enchimento diastólico e, consequentemente, diminuindo o VS. Se a frequência é excessivamente elevada, a diástole torna‑se muito curta e o enchimento cardíaco fica muito comprometido. No homem, uma alteração na FC pode ou não alterar o DC. Isso dependerá do VS e, como já discutimos, do retorno venoso. Uma situação em que o DC é afetado pela FC é o exercício físico. Variações importantes do DC são conquistadas com a variação da FC, enquanto o VS permanece constante. O DC pode chegar a valores de 21 l/min, e o trabalho cardíaco quase quadruplica seu valor, permanecendo o VS em 120 ml. É a frequência da ordem de 175 bpm que garante esse débito. Nesses casos, é bom lembrar que a duração da diástole pode ser reduzida em cinco vezes, e a sístole mal chega a uma redução pela metade. Em exercícios cardíacos muito intensos, nos quais o DC chega a 40 l/min, há a necessidade de aumento também do VS, porque mesmo frequências da ordem de 200 bpm não conseguem dar conta desse valor de débito. A FC pode ser verificada pelos batimentos de veias no pescoço, mas, normalmente, a palpação do pulso é uma das primeiras fontes de informação da ação cardíaca. Por estar sincronizado com o ciclo cardíaco (embora defasado), o pulso periférico permite‑nos saber a frequência cardíaca (CURI; PROCOPIO, 2009). 1.2 Automatismo cardíaco As contrações rítmicas e coordenadas das câmaras cardíacas produzem o fluxo sanguíneo que supre os órgãos do corpo com nutrientes e oxigênio. Essas contrações são ativadas por impulsos elétricos gerados espontaneamente por células marca‑passo, localizadas no átrio direito, mais precisamente no nó Unidade I sinoatrial (NSA). Os impulsos elétricos gerados no NSA são transmitidos sequencialmente ao miocárdio atrial, ou seja, espalham‑se pelo átrio. Em seguida, o impulso elétrico chega ao nó atrioventricular, localizado entre os átrios e os ventrículos, sofrendo um pequeno retardo. Ao chegar ao feixe de His, o impulso elétrico desce entre os ventrículos direito e esquerdo, e espalha‑se completamente pelo miocárdio ventricular por meio das fibras de Purkinje. A origem e propagação dos impulsos elétricos pelas células cardíacas dependem da existência de gradientes iônicos por meio da membrana plasmática e de mudanças transitórias rápidas na permeabilidade da membrana, que permitam fluxos de íons de acordo com seus gradientes eletroquímicos (CURI; PROCOPIO, 2009). Nó sinoatrial (marcapasso) Átrio direito Átrio esquerdo Septo interatrial Nó atrioventricular Ventrículo direito Septo interventricular Feixe de His (fascículo átrioventricular) Ventrículo esquerdo 20 Rede de Purkinje (miócito condutor cardíaco) Figura 5 – Automatismo cardíaco: podemos observar o sistema de excito‑condução, formado pelo nó sinoatrial, nó atrioventricular, feixe de His e as fibras de Purkinje 1.3 Potencial de ação cardíaco As células musculares cardíacas são células excitáveis e, assim como sucede a outras células excitáveis, o citoplasma é eletricamente negativo em relação ao meio extracelular. Por essa razão, a inserção de um eletródio no citoplasma detecta uma diferença de potencial elétrico por meio da membrana, comumente denominado potencial de membrana. O potencial de membranas das células cardíacas (atriais e ventriculares) em repouso é de aproximadamente ‑80 mV. Como já abordado anteriormente, no capítulo em que estudamos o sistema nervoso, o potencial de membrana em repouso é determinado basicamente pela existência de gradientes de concentração de íons por meio da membrana plasmática, que é determinada basicamente por dois fatores: · em repouso, a membrana plasmática apresenta maior permeabilidade ao potássio (K+) do que a outros íons; 21 FISIOLOGIAGERAL · e a presença da bomba de sódio e potássio (Na+‑K+‑ATPase) garante que a concentração de potássio (K+) seja maior dentro da célula e a concentração de sódio (Na+) maior no meio extracelular. Além disso, a bomba de cálcio (Ca2+‑ATPase) e o trocador Na+‑Ca2+ mantêm o gradiente de concentração de cálcio (Ca2+) maior no meio extracelular. Quando o cardiomiócito é estimulado por uma onda despolarizante e o potencial da membrana é rapidamente deslocado até um ponto crítico, chamado “potencial limiar”, ocorre então um evento transitório chamado “potencial de ação”. Os impulsos elétricos gerados no NSA e transmitidos pelo miocárdio atrial e ventricular são potenciais de ação que se propagam pela membrana celular, passando de célula a célula. Diferentemente dos potenciais de ação dos axônios e das fibras musculares esqueléticas, os potenciais de ação cardíacos possuem duração muito longa, de até 500 ms, o que consequentemente limita a frequência máxima de ativação cardíaca. Frequências cardíacas muito altas são indesejáveis, pois reduzem o tempo de enchimento ventricular durante a diástole, comprometendo, assim, a eficiência da bomba cardíaca. No coração, os potenciais de ação diferem em forma e duração de uma região para outra. Podem ser classificados como rápidos ou lentos, de acordo com a velocidade da fase ascendente de despolarização, na transição entre o potencial limiar e o pico. Os rápidos efetivam‑se nas células musculares atriais e ventriculares, bem como nas células do sistema de condução feixe de Hiss e fibras Purkinje; já os lentos, nas células nodais do NSA e do NAV. As células cardíacas que tipicamente apresentam potenciais de ação rápidos têm em comum o potencial de repouso ou potencial diastólico máximo mais hiperpolarizado (em torno de ‑80 a ‑90 mV) e, quando ativadas, despolarizam rapidamente, em uma faixa de 200 a 800 V/s, até atingir o pico do potencial de ação. Essa alta taxa de despolarização está associada a uma propagação mais rápida do potencial de ação, já o potencial de ação lento está associado à automaticidade das células marca‑passo do NSA e à baixa velocidade de propagação do impulso elétrico nas células do NAV. Essas células não apresentam um potencial de repouso estável, mas, sim, uma lenta e gradual despolarização diastólica, o potencial marca-passo que, ao atingir o potencial limiar, dispara um potencial de ação, cuja fase de despolarização, de ascensão ao pico, é bastante lenta. A base iônica do potencial de ação reside nas correntes elétricas que fluem por meio da membrana plasmática, e cujas características dependem das propriedades biofísicas de canais iônicos, tais como: seletividade iônica, condutância, dependência de voltagem e cinética de abertura e fechamento. Os canais iônicos são a base molecular dos processos de gênese e condução da atividade elétrica da membrana celular. Eles são proteínas integrais de membrana, inseridas na bicamada lipídica, formando poros seletivos aos íons específicos. O poro do canal pode abrir ou fechar em resposta a determinados estímulos. Os canais que abrem em resposta a mudanças no potencial de membrana são chamados canais dependentes de voltagem. Quando os canais iônicos abrem, íons seletivos podem fluir passivamente por meio do poro, de um lado para o outro da membrana, de acordo com seus gradientes eletroquímicos, gerando correntes iônicas que irão mudar o potencial da membrana (CURI; PROCOPIO, 2009). 22 Unidade I A despolarização inicial do potencial de ação rápido é produzida por um influxo (entrada) de íons de Na+ na célula por meio de canais de Na+ dependentes de voltagem. Isto ocorre quando o potencial de membrana em repouso é subitamente alterado, por correntes provenientes de um estímulo externo ou de uma célula adjacente, para um valor limiar de aproximadamente ‑65 mV, abrindo canais Na+ suficientes para gerar uma corrente de influxo de Na+ que irá despolarizar ainda mais a membrana, levando à abertura de mais canais de Na+. O influxo de Na+ deveria cessar quando o potencial de membrana atingisse o potencial de equilíbrio deste íon, entretanto os canais de Na+ inativam‑se antes que o equilíbrio seja alcançado, este é um processo dependente de voltagem e de tempo. Os canais de Na+ só serão reabertos após a membrana ser repolarizada até seu potencial de repouso (CURI; PROCOPIO, 2009). Após despolarização e ascensão até o pico do potencial de ação, ocorre um breve período de repolarização. Essa repolarização é originada devido à ativação de uma corrente transitória de efluxo (saída) de K+, que é ativada e inativada muito rapidamente. Em seguida, ocorre o platô de longa‑duração causado essencialmente pelo influxo de Ca2+ através de canais de Ca2+ tipo L, que sustenta a despolarização da membrana contra a ação repolarizante das correntes de efluxo de K+, cujos canais iniciam a lenta ativação nesta fase e atingem máxima condutância na etapa seguinte. A repolarização da célula se dá com a inativação dos canais de Ca2+ e a ativação máxima dos canais de K+ que leva ao efluxo deste íon e gera correntes repolarizantes que deslocam o potencial de membrana de volta ao potencial de repouso. 1 2 0 3 4 K+ K– K– Saída Entrada Ca2+ Na+ Figura 6 – Potencial de ação na célula muscular cardíaca Diferentemente do que foi descrito anteriormente, a despolarização inicial do potencial de ação lento das células do NSA e NAV ocorre por um influxo de Ca2+, através de canais de Ca2+ tipo L. Estes canais têm cinéticas de ativação e inativação mais lentas que os canais de Na+, o que explica a lenta despolarização inicial neste tipo de potencial de ação. Após atingir o pico, essas células já entram em repolarização sem passar pelo platô. A repolarização ocorre pelo efluxo de K+ através dos canais de K+ retificadores de efluxo retardados, que são ativados pela despolarização. Quando o potencial de 23 FISIOLOGIA GERAL membrana se torna hiperpolarizado, um canal de Na+ é aberto, gerando uma corrente de influxo de Na+ que despolariza lentamente a membrana. Quando a despolarização induzida por esse influxo Na+ atinge potenciais de aproximadamente ‑50 mV, ocorre ativação dos canais de Ca2+ gerando um influxo de Ca2+, que resultará um próximo potencial de ação (CURI; PROCOPIO, 2009). 1.4 Ritmicidade cardíaca e o sistema de condução Em condições normais, o estímulo para a ativação elétrica das câmaras cardíacas origina‑se no NSA, sendo este considerado o marca-passo cardíaco. As células do marca‑passo têm a capacidade de iniciar um potencial de ação na ausência de qualquer estímulo externo. Essa propriedade é denominada automatismo e está presente nas células do NSA, NAV, feixe de His e fibras de Purkinje. Portanto, além das células do NSA, as células desses outros locais do eixo de excito‑condução são potencialmente marca‑passos cardíacos. Essas células não apresentam um potencial de repouso fixo, e sim uma despolarização basal lenta, causada pelo influxo de Na+ nas células, que, ao atingir um determinado potencial limiar, desencadeia a despolarização mais rápida, causada pela entrada de Ca2+ nas células e, em seguida, um potencial de ação. A frequência de disparos de potenciais de ação pelas células marca‑passo depende da velocidade da despolarização inicial. As células do NSA conseguem atingir o limiar em menor tempo, portanto têm maior frequência de disparos. Essa característica confere ao NSA a condição de marca‑passo dominante, já os outros marca‑passos permanecem latentes. Entretanto, se o NSA falhar, o marca‑passo latente de frequência intrínseca imediatamente inferior dispara e assume a função de marca‑passo dominante. Em condições normais, as células cardíacas estão acopladas eletricamente, de forma que a excitação de uma única célula resulta na excitação de todas as células do tecido; o miocárdio é considerado um sincício funcional, pois suas células estão unidas entre si por estruturas chamadas de discos intercalares. Nesses discos, existem áreas de íntima aposição das membranas das duas células, as junções comunicantes.As junções comunicantes são canais que comunicam diretamente o citoplasma das células adjacentes, e são formados por proteínas denominadas conexinas. Esses canais permitem a condução rápida do potencial de ação entre as células, facilitando o espalhamento da atividade elétrica pelo miocárdio e o batimento sincronizado do coração. As junções comunicantes são essenciais para a propagação do potencial de ação cardíaco. O impulso elétrico formado no NSA, localizado na parede do átrio direito, é transmitido inicialmente para o átrio direito adjacente e daí para o átrio esquerdo e NAV. No miocárdio atrial, em que o potencial de ação é do tipo rápido, a velocidade de condução é de 0,8‑1,0 m/s. As câmaras atriais e ventriculares estão isoladas eletricamente pelo tecido conjuntivo fibroso que separa os átrios e os ventrículos. O impulso proveniente do NSA para chegar aos ventrículos precisa antes passar pelo NAV. O NAV tem potencial de ação do tipo lento, com velocidade de condução de 0,02‑0,05 m/s, o que retarda a transmissão do impulso elétrico dos átrios para os ventrículos. Esse retardo assegura que no momento da contração atrial os ventrículos estejam relaxados, favorecendo maior enchimento ventricular. Após trafegar pelo NAV o impulso elétrico atinge o feixe de His, de onde é conduzido para os ventrículos, em alta velocidade, pelo sistema de condução His‑Purkinje. As células do feixe de His e fibras de Purkinje são image5.jpeg image6.jpeg image7.jpeg image1.png image2.png image3.png image4.png