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HISTÓRIA DA ARQUITETURA E URBANISMO II Autores: Angélica Linhares Buchmayer; Carina Mendes dos Santos Melo e Elis Monteiro dos Santos Pacheco. Capa para impressão_2022.indd 3Capa para impressão_2022.indd 3 12/12/2022 14:30:5212/12/2022 14:30:52 História da Arquitetura e Urbanismo II © by Ser Educacional Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, do Grupo Ser Educacional. Imagens e Ícones: ©Shutterstock, ©Freepik, ©Unsplash. Diretor de EAD: Enzo Moreira. Gerente de design instrucional: Paulo Kazuo Kato. Coordenadora de projetos EAD: Jennifer dos Santos Sousa. Equipe de Designers Instrucionais: Carlos Mello; Gabriela Falcão; Isis Oliveira; José Felipe Soares; Márcia Gouveia; Mariana Fernandes; Mônica Oliveira; Nomager Sousa. Equipe de Revisores: Everton Tenório; Helayne Lima ; Lillyte Berenguer ; Maria Gabriela Pedrosa. Equipe de Designers gráficos: Bruna Helena Ferreira; Danielle Almeida; Jonas Fragoso; Lucas Amaral; Sabrina Guimarães; Sérgio Ramos e Rafael Carvalho. Ilustrador: João Henrique Martins. Buchmayer, Angélica Linhares; Melo, Carina Mendes dos Santos; Pacheco, Elis Monteiro dos Santos. História da Arquitetura e Urbanismo II: Recife: Editora - 2023. 114 p.: pdf ISBN: xxx-xx-xxxxx-xx-x 1. palavra chave 2. palavra chave 3. palavra chave. Grupo Ser Educacional Rua Treze de Maio, 254 - Santo Amaro CEP: 50100-160, Recife - PE PABX: (81) 3413-4611 E-mail: sereducacional@sereducacional.com Iconografia Estes ícones irão aparecer ao longo de sua leitura: ACESSE Links que complementam o contéudo. OBJETIVO Descrição do conteúdo abordado. IMPORTANTE Informações importantes que merecem atenção. OBSERVAÇÃO Nota sobre uma informação. PALAVRAS DO PROFESSOR/AUTOR Nota pessoal e particular do autor. PODCAST Recomendação de podcasts. REFLITA Convite a reflexão sobre um determinado texto. RESUMINDO Um resumo sobre o que foi visto no conteúdo. SAIBA MAIS Informações extras sobre o conteúdo. SINTETIZANDO Uma síntese sobre o conteúdo estudado. VOCÊ SABIA? Informações complementares. ASSISTA Recomendação de vídeos e videoaulas. ATENÇÃO Informações importantes que merecem maior atenção. CURIOSIDADES Informações interessantes e relevantes. CONTEXTUALIZANDO Contextualização sobre o tema abordado. DEFINIÇÃO Definição sobre o tema abordado. DICA Dicas interessantes sobre o tema abordado. EXEMPLIFICANDO Exemplos e explicações para melhor absorção do tema. EXEMPLO Exemplos sobre o tema abordado. FIQUE DE OLHO Informações que merecem relevância. SUMÁRIO Brasil pré-colonial � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 11 A história dos povos pré-cabralinos � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 11 Formas de morar e viver dos indígenas � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 16 Aldeias � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � �17 Tipos de casas� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 20 Métodos e materiais utilizados pelos indígenas � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 25 Cultura arquitetônica e urbanística portuguesa na época do “Descobrimento” � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 27 Influências que marcaram a identidade urbana portuguesa � � � � � � � � 28 Formação do Estado Português (século XIII) � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 31 Românico (1100–1230) � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 32 Gótico (c.1230-c.1450) � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � �33 Período dos Descobrimentos (1415-1543) � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 34 Resultados formais das influências sobre as cidades portuguesas no século XV � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 35 Cidade portuguesa e a sua transferência para o Brasil � � � � � � � � � � � 41 Núcleos urbanos brasileiros � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 43 A arquitetura desenvolvida pelos portugueses: séculos XV e XVII 47 Estilos arquitetônicos e a arquitetura erudita � � � � � � � � � � � � � � � � � � �50 Arquitetura residencial e administrativa � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � �51 Construções públicas � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 54 Arquitetura religiosa � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 55 Ordens religiosas e suas construções � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 57 Arquitetura militar � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � �61 Evolução das estruturas urbanas e de urbanização a partir da metade do século XVII � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 69 Características do lote urbano e sua relação com a Arquitetura � � � � � 70 Características da arquitetura colonial � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 74 Introdução ao estilo Barroco no Brasil � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � �80 Principais características do Barroco � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 83 Escolas regionais do Barroco no Brasil � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 89 Barroco Mineiro � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 90 Barroco carioca � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 92 Rococó no Brasil � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � �95 Rococó mineiro � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 96 Rococó pernambucano � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 97 Outros estilos do século XVIII � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 99 Processo de urbanização no Brasil colonial (1750-1822) � � � � � � � �102 Introdução ao neoclassicismo � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � �105 O sistema Beaux-Arts � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 107 Missão Francesa e a linguagem acadêmica � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 108 Autoria Angélica Linhares Buchmayer Carina Mendes dos Santos Melo Elis Monteiro dos Santos Pacheco UN ID AD E 1 8 Introdução Olá! Você está na unidade 1 – Os povos pré-cabralinos. Aqui você vai conhecer a história dos povos que habitavam o Brasil pré-colo- nial, as características da arquitetura construída por eles e seus mé- todos construtivos e materiais de construção. Também conhecerá a arquitetura e as características do urbanismo português do século XVI, bem como as suas origens. Bons estudos! 9 Brasil pré-colonial A Carta de Pero Vaz de Caminha (1500) é considerada o primeiro do- cumento escrito da história do Brasil. Em suas quatorze páginas, ela relata a chegada da frota comandada por Pedro Álvares Cabral ao território denominado de Ilha Vera Cruz. A carta foi redigida para comunicar o rei D. Manuel I. É nesta carta que se encontra a pri- meira referência à arquitetura dos nativos em um curto relato sobre uma visita, de parte da tripulação da nau portuguesa, à aldeia dos nativos: E segundo depois diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria noveIsso, porque a própria evolução do sítio, decorrente das dinâmicas urbanas, resultaram em demoli- ções, sobreposições, alterações etc. É mais fácil encontrar edifica- ções isoladas ou resquícios do traçado original, mas para povoar a imaginação do leitor, apresentamos a seguir a imagem da “Cidade de Parati/RJ”. Ainda que seu traçado e desenvolvimento tenha ocor- rido ao longo do século XVIII, esta imagem nos permite apreciar al- gumas das características que tratamos até aqui, e outras que serão abordadas mais adiante. 44 Figura 1 - Cidade de Parati (RJ) Fonte: Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: Na imagem, há uma foto da cidade de Parati no Rio de Janeiro com arquitetura do século XVIII. 45 A arquitetura desenvolvida pelos portugueses: séculos XV e XVII O histórico de formação do Estado Português resultou numa ex- pressiva diversidade de contribuições à cultura portuguesa, que teve certamente reflexos na arquitetura desenvolvida em solo brasileiro. Os romanos estiveram na península ibérica até 476 d.C., dominan- do-a por mais de 600 anos. Em seguida, foi a vez dos povos germâ- nicos (também chamados de bárbaros), que por ali permaneceram por cerca de 300 anos até as invasões islâmicas. Essa presença de muçulmanos na região durou, aproximadamente, 700 anos, quan- do foram então expulsos pelas guerras de Reconquista, com a re- tomada consolidada do território, em 1492, e a fundação do Estado Português. Essa influência se dará também pela referência aos estilos arquitetônicos que durante os séculos XVI e XVII se desenvolveram em Portugal. Carvalho et al. (2000, p.6) ressaltam que no período de formação da nacionalidade portuguesa esteve presente o estilo românico, de forma que algumas características acabaram se in- corporando no gosto da cultura portuguesa: “o peso, a rigidez, a simplicidade e o caráter estático constituíam tendências que iriam permear a produção arquitetônica”. Outra característica que se tor- nou marcante na arquitetura portuguesa, essa associada à herança cultural islâmica, foi a prática de preencher e compartimentar su- perfícies e inserir formas menores em maiores. (CARVALHO et al., 2000). Podemos dizer que esses foram aspectos que em linhas gerais in- fluenciaram a arquitetura portuguesa e por desdobramento a ar- quitetura colonial brasileira. As contribuições e influências na arquitetura popular portuguesa, nos dois primeiros séculos de empresa colonial brasileira, podem ser sistematizadas em 3 ramos FIQUE DE OLHO 46 de heranças culturais: a dos romanos, a dos germânicos e a dos islâmicos. Do período de domínio romano, a arquitetura portuguesa herdou a diversidade de programas, técnicas e formas arquitetôni- cas. Em relação aos programas, podemos citar os templos, basílicas, fontes, termas, aquedutos, pontes, anfiteatros, castros (castelos), palácios etc. Das técnicas de construção, herdou a maneira de as- sentar as pedras, com argamassas de cal e de cimento e, provavel- mente, as técnicas da taipa e do adobe. Em função do contato dos romanos com o Oriente, temos a técnica de produção de cerâmicas para a confecção de tijolos e telhas, também introduzida e aperfei- çoada em solo português. No que diz respeito às formas, arcos, abó- badas, cúpulas, colunas e pilastras fazem parte do repertório que influenciaram a história da Arquitetura de modo geral. Dos povos germânicos, a estrutura fortificada foi uma im- portante herança, com a construção de castelos e fortes, sendo que até as igrejas podiam apresentar aspectos e recursos defensivos. Mas, segundo Weimer (2005, p.85), “há quem julgue que foram herdeiros e continuadores da arquitetura de defesa romana”, e che- garam inclusive a fazer uso do arco pleno, adotando o arco apontado somente mais tarde. A grande contribuição, diz o mesmo autor, foi a introdução das estruturas de enxaimel, paredes com requadro de madeira que formavam panos independentes e que eram fechados por adobe, tijolos, pedra etc. Essa solução deixava aparentes as pe- ças de madeira que estruturavam paredes e vãos. Com base nos estudos de Weimer (2005) abordaremos a in- fluência da cultura islâmica na arquitetura portuguesa em duas correntes: a árabe e a berbere. Em relação à primeira, sua interfe- rência na forma e no partido da arquitetura portuguesa foi restrita, porque os árabes se estabeleceram efetivamente na Andaluzia, ter- ritório espanhol, mantendo apenas representações no lado portu- guês. A casa árabe vai influenciar de forma mais direta a solução das casas senhoriais e dos claustros conventuais, que adotavam como partido o pátio central, em torno do qual se organizavam os demais 47 compartimentos. Mais evidentes e difundidas foram as referências adotadas em elementos arquitetônicos, como o emprego abundante de adufas (fechamentos em treliça) e muxarabis (balcões fechados por treliças). O lado ocidental da península, que corresponde ao atual ter- ritório português, era administrado efetivamente pelos berberes, povos oriundos do norte da África, que deixaram marcas mais sig- nificativas na arquitetura local. Segundo Weimer (2005), as casas muçulmanas que mais influenciaram as portuguesas e, por conse- quência, as casas brasileiras, em termos de forma, foram variações das casas berberes. As casas berberes eram geminadas (coladas umas às outras nas divisas laterais dos lotes), seus cômodos eram ordenados li- nearmente de forma perpendicular à rua, contavam ainda com pou- cas aberturas. Nessas casas havia uma única entrada e nos fundos podia haver pequenas janelas, que davam para um pátio fechado por muros altos. A ordem de disposição dos cômodos a partir da entra- da era: sala, dormitórios e cozinha. A cobertura podia ser plana, em áreas mais secas e de duas águas de telhado com ponto de cumeeira baixo, para as zonas mais úmidas. Essa tipologia foi adaptada para Portugal, recebendo o nome de “casa de pescadores” e para o Brasil, como veremos, recebendo o nome de “casa de porta e janela” (WEIMER, 2005). Inúmeras palavras que usamos no vocabulário arquitetônico têm origem árabe e berbere. Você provavelmente já ouviu falar em algu- mas delas. Confira: açoteia, adobe, adufa, alcova, aldeia, alfândega, algeroz, alicerce, alisar, almofada, almoxarifado, alpendre, alvará, alvenaria, andaime, armazém, arrabalde, azulejo, bairro, baldrame, chafariz, coxim, enxaimel, enxovia, fasquia, harém, masmorra, mastaba, medina, mesquita, minarete, mudéjar, muxarabi, saguão, sanefa, sarrafo, sofá, tabique, taipa, trapiche, zarcão etc. FIQUE DE OLHO 48 Estilos arquitetônicos e a arquitetura erudita O românico era o estilo em voga durante boa parte do período da Reconquista, que se estendeu do século VIII ao XV. Carvalho et al. (2000) atribuem a sobriedade e a rigidez da arquitetura portuguesa a essa ocorrência, como uma referência presente no imaginário luso. No entanto, é preciso investigar um pouco mais, pois outros estilos se sucederam desde o românico dos séculos XII e XIII. O gótico e o gótico tardio, esse último também conhecido como estilo Manuelino, em referência ao rei de Portu- gal D. Manuel I, presentes desde o século XIII até princípios do XVI, aportaram outra linguagem arquitetônica, refletida numa arquite- tura mais verticalizada, bem ornamentada, com arcos e elementos pontiagudos. Apesar dessa sucessão de estilos, observa-se nos séculos XVI e XVII o retorno do gosto português pela mencionada sobriedade e rigidez, mas agora em razão da influência do Renascimento italia- no. À arquitetura que se desenvolveu nessas centúrias em Portugal, pós-Manuelino, convencionou-se chamar de maneirista, mas há controvérsias no emprego do termo. Carvalho et al. (2000) atribuem essa controvérsia ao pouco domínio da linguagem clássica pelos portugueses, pois, ainda que o estilo maneirista se caracterizasse pelo rompimento dos cânones clássicos, era preciso conhecê-los profundamente. Há autores, contudo, que preferem se referir à arquitetura que se produziu nesse período,sobretudo a religiosa, por arquite- tura chã ou estilo chão, como uma manifestação própria da cultura portuguesa. Esse termo foi cunhado pelo historiador George Kluber, em 1972, no livro A Arquitectura Portuguesa Chã. Entre as Especia- rias e os Diamantes, 1521-1706, que até hoje suscita reflexão. Senos (2012), por exemplo, questiona se esse estilo é uma expressão da nacionalidade portuguesa ou é de fato uma reação anticlássica ou anti-italiana. 49 Tenha ou não acertado no emprego dos referenciais clássicos, o fato é que a arquitetura erudita desse período valorizou aspectos como a simplicidade e a austeridade. Sobre suas características, Carvalho et al. (2000, p.6) a descrevem: pela tentativa de usar a linguagem clássica a partir de formas geométricas básicas, com a proporção das fachadas próxima ao quadrado, frontão triangular e forte contraste entre as linhas marcadas pelo uso da pedra e do para- mento branco, revelando um caráter eminen- temente bidimensional e ainda a subordinação da ornamentação à estrutura compositiva. Já em fins do século XVII, ganha terreno a arquitetura barro- ca, que se caracterizava pela expressividade da linguagem clássica, subvertendo-a definitivamente no uso de frontões interrompidos, colunas torcidas, encurvamento de superfícies e profusão de orna- tos. Seu aparecimento em Portugal vai coincidir com a descoberta do ouro no Brasil, o que proporcionou uma pujança econômica e a construção de ricos e belos exemplares desse estilo. Arquitetura residencial e administrativa Na arquitetura civil, residencial e administrativa, pode-se dizer que as influências que predominaram foram as das heranças culturais e seus desdobramentos na arquitetura popular portuguesa, que abordamos anteriormente. Os recursos e as técnicas construtivas eram aqui ainda rudimentares, pois não havia capacitação técnica, instrumentos acurados de medição e ferramentas mais elaboradas (como aquelas ligadas ao trabalho de carpintaria, por exemplo). O trabalho escravo ajuda a explicar, em parte, essa limitação e explica ainda como puderam funcionar as casas no Brasil colônia, despro- vidas que eram de sistemas de abastecimento de água e de esgoto. Vejamos esses e outros aspectos na sequência. Para compreender a arquitetura residencial que se implantou e se desenvolveu nos dois primeiros séculos de ocupação portugue- sa no Brasil, é preciso conhecer a própria conformação da sociedade 50 e da família brasileira. Enquanto sociedade, sua conformação é uma miscigenação de brancos, indígenas e africanos; e sua estrutura é essencialmente rural, patriarcal, hierárquica e escravocrata. O mo- delo familiar nasceu no meio rural, onde o homem (o senhor), mais que o chefe de família era o “dono da terra, dos escravos, da vida e da morte de seus subordinados” (MENDES et al., 2010, p.118). Dito isso, podemos sistematizar, a fim de generalizar, as formas de morar no Brasil colônia nesse período em rural e urba- na. Aliás, vimos como o funcionamento dos núcleos urbanos eram, essencialmente, vinculados ao mundo rural, construídos para abri- gar moradores das fazendas em dias de festa. Como observa Reis Filho (1997, p. 30) “vilas e centros menores tinham vida urbana intermitente, apresentando normalmente um terrível aspecto de desolação”. A morada rural que abordaremos aqui é aquela vinculada ao cultivo monocultor da cana e à produção do açúcar para exportação, mas cabe dizer que existiam outras, de outros tipos, como as fazen- das de gado no Nordeste. As principais construções desses comple- xos agroindustriais eram a casa grande (residência do senhor e sua família), a senzala (alojamento dos escravos) e o engenho (constru- ção destinada ao processo de beneficiamento da cana, que acabou denominando as próprias propriedades latifundiárias produtoras de cana). Dependendo do tamanho e importância, seu programa poderia incluir ainda: capela (espaço de devoção religiosa da famí- lia), depósitos, alambiques, casas de capatazes e de colonos, entre outros. A casa grande era a sede, ficava geralmente em ponto alto do terreno, permitindo ao senhor um controle visual de suas terras. Entre esse ponto elevado e a fonte de água (seja rio ou mar), por onde se escoava a produção e cuja força hidráulica era utilizada para girar moendas, espalhavam-se as demais construções do comple- xo. As casas grandes eram compostas por salas, alcovas, quartos de hóspedes e cozinhas, além da varanda – espaço que desempenhava função de amenizar os efeitos do clima, mas também servia ao lazer e ao controle da fazenda – e da capela, podendo estar colada ou se- parada fisicamente da casa. 51 Havia em geral dois tipos de senzala: a doméstica e a de eito, ou de trabalho. A primeira destinada ao abrigo dos escravos com tarefas relacionadas ao funcionamento da casa, como cozinhar, limpar e arrumar; e a segunda, voltada à mão de obra pesada, que trabalhava nas plantações ou no beneficiamento da cana (MENDES et al., 2010). Já o engenho era um amplo galpão localizado junto a um rio ou curso d’água, que viabilizasse o funcionamento hidráu- lico da moenda, abrigando também outros espaços relacionados às demais etapas do processo. O senhor do engenho tinha, geralmente, uma casa no nú- cleo urbano mais próximo, para onde se deslocava com sua famí- lia nos dias de festividades ou compromissos políticos. As moradas urbanas, seja em pequenos povoados, seja em vilas e/ou cidades apresentavam profundas semelhanças. Elas podiam ser térreas ou assobradadas, mas eram sempre coladas às divisas frontal e late- rais, com um quintal aos fundos, destinado a pomares, hortas e ao trabalho relacionado à cozinha. A disposição dos cômodos seguia a referência berbere que mencionamos: à frente a sala de receber, sucedida pelas alcovas, sala de viver e aos fundos a cozinha, geral- mente num volume anexo ao principal. Essas casas também pos- suíam um corredor que ligava a porta da frente à dos fundos. Nos sobrados, a parte térrea comportava comércio, escravos, hóspedes, animais etc.; já a casa, seguindo essa mesma disposição de planta, se desenvolvia no segundo andar, longe dos olhos de quem passava na rua. Mendes et al. (2010, p.20), atribuem o descolamento da co- zinha do corpo da casa a uma influência da cultura indígena: “Com o índio [o português] aprendeu que cozinhar era uma tarefa a ser realizada do lado de fora, no terreiro, numa varanda ou num puxa- do do lado da casa.” Não havia banheiro como compartimento em planta nas casas, seja urbana ou rural, ele era substituído por equi- pamentos como urinóis e retretas, disponíveis nos cômodos de usos íntimos. O funcionamento das casas, nesse período, se alicerçava no trabalho da mão de obra escrava. Mendes et al. (2010) nos con- tam que os dejetos, por exemplo, eram armazenados em barris em uma edícula no fundo do quintal e depois carregados pelos “tigres” (escravos que transportavam as águas servidas para despejo) para 52 áreas molhadas – rios, lagoas, mares, brejos – próximos ao núcleo urbano. Ou eram jogados pelas janelas, precedidos por um “lá vai água”. Construções públicas As construções empreendidas pelo governo na colônia eram majo- ritariamente de função militar, uma vez que, até meados do século XVII, a administração pública cabia em geral aos donatários e aos colonos, confundindo-se, como assinala Reis Filho (1968, p.162), “a administração – quase inexistente – com a camada dominan- te”. Nos núcleos maiores se assentavam construções oficiais de re- levante importância. Em Salvador, a partir de fontes documentais, Reis Filho (1968) identifica que havia na Cidade Baixa a “casa de fazenda e alfandegas e almazens [sic] e ferrarias” e na Cidade Alta, a Casa dos governadores, a Câmara e o Tribunal da Relação. Quase nada existe atualmente, visto que a partir de meados do século XVII, esses foram sendo substituídos por construções mais imponentes e arrojadas. Nos núcleos urbanos menores, as obras oficiais eram de iniciativamunicipal e, em geral, se limitavam à Casa de Câmara e cadeia e a algumas obras de infraestrutura, como pontes, calça- mento, fontes, chafarizes etc. Mesmo uma vila podia ter uma Casa de Câmara e Cadeia, e essa constituía a principal edificação do local, representava o poder municipal, congregando funções adminis- trativas, judiciárias e penitenciárias. Situava-se em frente à praça e, normalmente, erguia-se à sua frente o Pelourinho, símbolo do poder municipal. É difícil identificar um padrão formal e constru- tivo entre elas, visto que dependiam basicamente da importância política e econômica do núcleo urbano. Pode-se dizer que, em geral, tinham dois pavimentos, funcionando a Câmara na parte superior, com a sala do juiz, sala do conselho, secretaria e gabinetes; e a Ca- deia no térreo. O abastecimento de água nas vilas e cidades era uma ques- tão que merecia importância, mas enquanto houve escravidão, as obras efetivamente realizadas foram poucas. Nos centros menores o 53 abastecimento era realizado pela própria população, com transporte de água da fonte até as casas pelos escravos. Nos centros maiores, o crescimento populacional demandava outra solução. Assim, no Rio de Janeiro, já no início do século XVII, iniciaram-se os trabalhos de captação e condução das águas do rio Carioca, concluídos somente no século XVIII, com a construção de aquedutos, fontes e chafarizes. O calçamento de ruas era raro, levando em consideração que era realizado em pedra, atendendo a demandas pontuais em função do aumento do tráfego e dos problemas de conservação dele decor- rentes. Em Salvador, com o crescimento da cidade, a partir de 1650, procuraram-se novas formas de solucionar o problema da mobi- lidade, o que tornou este assunto o principal foco de preocupação da Câmara. Resolvem assim os oficiais, em 1656, para dar conta de executar esses serviços “estabelecer um impôsto sôbre as matanças nos currais e açougues da cidade” [sic] (REIS FILHO, 1968, p.138). Já as pontes, foram poucas as construídas, exemplos são as de Recife e de Belém. Arquitetura religiosa A Colonização era um projeto de expansão comercial portuguesa, mas também de expansão religiosa, de dominação cultural. Tanto é verdade, que a esquadra de Cabral já contava com frades francisca- nos em sua tripulação, dentre eles Frei Henrique Soares, que cele- brou a primeira missa na Ilha de Vera Cruz; e que em 1549, vieram para o Brasil, junto com o primeiro governador geral, Tomé de Sou- za, representantes da Ordem dos Jesuítas. Assim, as construções religiosas estiveram presentes desde os primeiros tempos do Brasil colônia, que, além das funções re- ligiosas, desempenhavam funções administrativas, uma vez que Igreja e Estado andavam lado a lado nesse período. As igrejas paro- quiais concentravam, por exemplo, a função de registros de nasci- mento, casamento e óbito, bem como realizavam as celebrações de cunho religioso. Mais imponentes, contudo, eram os conventos com suas igrejas. As diferentes ordens se fizeram presentes nos princi- pais núcleos urbanos, especialmente ao longo do litoral. Reis Filho 54 (1968) registra como os conventos se organizaram como grandes proprietários de terra e engenhos, reunindo volumosos recursos fi- nanceiros; e que, apesar da pobreza do meio em que viviam, conse- guiram financiar atividades culturais e artísticas. Esse mesmo autor, analisando as igrejas em Salvador a partir do estudo iconográfico, observa a homogeneidade no padrão, cujas fachadas apresentavam “uma única porta, óculo e frontão triangu- lar, características do tipo de risco românico”, e completa “a única a aparecer com tôrre [sic] é a da Sé, talvez porque na época só as ma- trizes pudessem tê-la” (REIS FILHO, 1968, p.179). A fachada, com um corpo central ladeada por torres, com destaque das principais linhas e elementos de cantaria em contraste com o fundo branco, parece ser uma constante, com mais ou menos variações. Observa-se também nas plantas um padrão básico a partir do qual a arquitetura foi se alterando pelas intervenções sucessivas. O modelo da nave única retangular com capela-mor aos fundos, for- mada por um retângulo menor e profundo, mais a sacristia como um pequeno quarto lateral, constitui a base geral. Conforme foi se tor- nando mais complexo o programa desses centros religiosos, foram sendo anexados outros compartimentos com outros usos. A partir da segunda metade do século XVII ocorrem mudanças quantitati- vas e qualitativas na produção da arquitetura religiosa. As sucessi- vas Invasões Holandesas, no Nordeste do Brasil, colocaram freios ao projeto de expansão católica. Mas, com a Restauração do Tro- no Português, em 1640 – seguida da expulsão desses invasores em 1654 – as Ordens tomaram novo fôlego. Foram comuns a ampliação e a reforma de construções antes singelas e rústicas, dotando-as de ornamentação e revestimentos mais elaborados. Para se fazer uma leitura mais generalizada dessa arquitetu- ra, os historiadores procuram enquadrá-las por semelhanças. Mas essa é uma tarefa difícil, ainda mais considerando que a obra de uma igreja pode durar diversos anos, quem sabe décadas, de forma que, mudam-se gostos e estilos. Tomemos, assim, a abordagem de San- tos (1981) e Mendes et al. (2010), que as analisam pelas ordens reli- giosas que as construíram. 55 Figura 2 - Catedral Basílica de Salvador Fonte: Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: Na imagem, há uma arquitetura religiosa que mostra a catedral Basílica de Salvador. Ordens religiosas e suas construções Fundada em 1534, a Companhia de Jesus configurou-se como um dos braços mais eficientes para pôr em ação as resoluções da Con- trarreforma. Com a missão de angariar novos fiéis (e retomar os an- tigos perdidos para o movimento protestante) e de ampliar a ação e os domínios da Igreja. Com isso, em 1534, o líder da Companhia, Inácio de Loyola, enviou padres para diversos países com o objeti- vo de implantar escolas e seminários. Os jesuítas tiveram papel de 56 destaque no ensino. No Brasil, ministravam a catequese, alfabeti- zavam leigos e gentios, nas naves das suas igrejas e nas construções agregadas, denominadas colégios (MENDES et al., 2010). As atividades da Companhia de Jesus, no Brasil, desenvolve- ram-se de 1549, com a chegada do primeiro grupo jesuítico no país, até 1759, quando foram expulsos em função dos problemas que vi- nham gerando seus posicionamentos e estratégias políticas, bem como pela popularidade e alcance de suas ações. As determinações do Concílio de Trento, realizado em 1545 – e que marcou o início da Contrarreforma, assim como os referenciais arquitetônicos eu- ropeus – vão ajudar a moldar a arquitetura que se levantará em ter- ras brasileiras pelos jesuítas. Dentre as alterações demandadas pela Contrarreforma, temos a inclusão do púlpito, um espaço localizado dentro da nave, voltado para os fiéis, onde o pároco proclamava a palavra de Deus na língua natal do seu público. Essa determinação ajudou a eliminar as naves laterais, visto que dificultavam a inser- ção do púlpito na nave central. O diálogo com a cultura cristã local também se efetuava pela incorporação dos santos aos quais eram devotos os frequentadores, inserindo-se suas imagens em altares e capelas laterais (MENDES et al., 2010). Havia certa uniformidade na solução arquitetônica dos colé- gios jesuítas no século XVI, até meados do XVII. A planta da igreja era retangular e colada com o colégio, ambos organizados em torno de um pátio interno. Na fachada principal, estavam dispostos se- quencialmente e em um mesmo plano: a igreja, a torre sineira e o colégio. A entrada se dava por uma única porta de acesso, e sobre ela havia um óculo ou janelas. São exemplos ainda hoje existentes, com algumas alterações: a Igreja N. S. da Assunção, em Anchieta/ES e a Igreja Matriz de São Pedro da Aldeia/RJ. Tratam-se de construções rústicas, com a nave despida de ornamentação, paredes caiadas e telha vã. Alguma decoração via-senos retábulos e altares por causa de trabalhos de talha. Apesar da simplicidade, a solução acabou servindo de modelo para as demais ordens que por aqui estiveram e se estabeleceram e, ainda, para as pequenas capelas, sejam urbanas ou rurais. 57 Bury (2006) destaca a Igreja São Roque de Lisboa (1573), em Portugal, como o precedente de maior importância para a arquite- tura dos jesuítas no Brasil. Com efeito, tendo em vista a precarie- dade das primeiras construções jesuíticas, Mendes et al. (2010) nos conta que a Coroa enviou ao Brasil, em 1577, o irmão Francisco Dias, arquiteto que havia colaborado na referida constru- ção. São a ele atribuídos os projetos de reconstrução do Colégio de Olinda, de 1584, e do Rio de Janeiro, de 1585, verificado inclusive na semelhança do partido em planta, que seguiu a de São Roque, com- posta por uma nave única, capela-mor com duas capelas colaterais (que são dispostas na mesma parede em que localiza a capela-mor, uma em cada lado da mesma). As influências clássicas oriundas da arquitetura maneirista (ou chã) de São Roque na fachada dos exemplares brasileiros podem ser associadas à simplicidade das formas, ao emprego do frontão triangular, às linhas verticais bem marcadas e à sua bidimensio- nalidade. Mas o marco principal da arquitetura jesuítica, no Bra- sil, será a construção do seu principal e maior templo, em 1654, em Salvador. Vemos na figura “Catedral de Salvador/BA” a combinação do frontão com volutas e torres laterais, interpretada como uma síntese entre a Igreja de Jesus (Chiesa del Gesú) de Roma, sede da Companhia de Jesus, e da Igreja de São Vicente de Fora de Portugal, de 1602; ambas maneiristas. Essa solução acabou repercutindo em outras igrejas, inclusive de outras ordens religiosas, de irmandades e confrarias. A Ordem Franciscana, criada por Francisco de Assis no século XIII, esteve presente na colônia desde 1500 em missões de evan- gelização, mas somente em 1584 é que foi dada a autorização para a implantação da Ordem em Pernambuco. O primeiro convento foi fundado em 1585, o Convento de Nossa Senhora das Neves de Olin- da, seguido de outros; de forma que em 1659 já se registravam vinte conventos, geralmente implantados ao longo do litoral, em terrenos doados por grandes proprietários de terras (MENDES et al., 2000). Diferente da arquitetura dos jesuítas, as igrejas conven- tuais dos franciscanos eram precedidas por um pórtico com arca- das, um elemento de transição exterior-interior. Já as plantas eram 58 compostas por nave única, com a capela-mor mais estreita e com sacristia. Os conventos eram como os colégios dos jesuítas, colados à igreja e com um pátio interno, para o qual, nesse caso, se voltava o claustro. Esses tipos de conventos possuíam, em geral, uma única torre sineira levemente destacada em relação à fachada. Além disso, outro elemento comum nos conventos franciscanos é a presença do adro com um cruzeiro, de forma a preparar o fiel para uma sequên- cia lógica: “mundo exterior, representado no adro, o pórtico como transição até o espaço de contrição composto pela nave da igreja, que gradativamente tornava-se mais decorada” (MENDES et al., 2010, p. 187). A Ordem do Carmo, fundada no século XII por cruzados lei- gos que chegaram ao Monte Carmelo, em Israel, pousou por essas bandas em 1580 pelas mãos de quatro carmelitas. Em Olinda elas fundaram seu primeiro convento (1583), em terras recebidas em doação. Mendes et al. (2010) registram suas chegadas em Salvador (1586), Santos (1589) e Rio de Janeiro (1590). Sua arquitetura tam- bém teve influência dos modelos jesuítas, com o uso da linguagem clássica e pouca ou nenhuma ornamentação. Em fins do século XVII foram incorporados alguns elementos de inspiração barroca. As fachadas com composições tripartidas continham arcadas no pavimento térreo. Sobre os partidos de planta, é possível dizer que eles possuíam semelhança não só com o dos jesuítas, mas tam- bém com os dos franciscanos, não ocorrendo grandes mudanças de programa: “Um claustro, frequentemente distribuído por dois pa- vimentos, com alas dispostas em quadra, em torno de um ou dois pátios internos. As igrejas continuavam com nave única, eventual- mente acrescida de capelas laterais” (MENDES et al., 2010, p.190). Para finalizar, temos ainda a Ordem dos Beneditinos, fundada em 529 por Bento de Núrsia em Monte Cassino na Itália. Chegaram ao Brasil em 1581, com a missão de fundar um mosteiro na capital do Governo Geral. A ordem se expandiu por Olinda, Rio de Janeiro, Pa- raíba, São Paulo e Santos. Por conta da característica reclusa desta Ordem, os conjuntos arquitetônicos, apesar da sua importância, não tiveram repercussão junto à população. 59 Exemplar de destaque das construções beneditinas é o Mos- teiro de São Bento, no Rio de Janeiro e projetado pelo Engenheiro- -mor Francisco Frias de Mesquita, com obras iniciadas em 1633. Mendes et al. (2010) destacam as proporções românicas das facha- das com linguagem geométrica resolvida em um único plano. As duas torres sineiras encontram-se levemente recuadas das facha- das, mas sem comprometer a sua bidimensionalidade. No trecho inferior da fachada, entre as torres, uma galilé (alpendre à frente da fachada principal) com três arcos, proporciona a transição ex- terior-interior, preparando-nos para a profusão decorativa do seu interior, obra já do período barroco. Encontram-se em curso os trabalhos relativos à candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras como patrimônio mundial da humanidade pela UNESCO. Engloba um conjunto de 19 fortes e fortalezas já tombados pelo IPHAN, que testemunham o sistema de ocupação e defesa do território nacional. Arquitetura militar O sistema de defesa do território brasileiro configurou-se primeiramente pela descentralização, seguindo a própria estratégia de ocupação dos portugueses. Ao deixarem a missão aos donatários e colonos, não tinham qualquer controle sobre a defesa destes. Em meados do século XVII, com a política de centralização empreendi- da pela Metrópole, a estratégia de defesa seguiu essa tendência. A arquitetura militar vai sendo gradualmente reforçada ou substituí- da e, com isso, se constroem verdadeiros complexos arquitetônicos para esse fim. Nos primeiros anos de ocupação portuguesa, os esquemas defensivos eram rudimentares em função da escassez de recursos. FIQUE DE OLHO 60 As feitorias funcionaram como uma espécie de fortim, com paliça- da em seu entorno. Quando da implantação das primeiras vilas, a defesa era realizada pelos próprios colonos, que as defendiam com cercas ou muros; algumas inclusive de madeira (REIS FILHO, 1968, p. 167). Os muros, construções grosseiras e pouco resistentes, foram sendo substituídos de acordo com as pressões de invasão. Conforme as cidades e vilas iam crescendo, os muros mais antigos iam sendo abandonados e eram criados outros; outras linhas de fortificações em direção à expansão do núcleo urbano. Segundo Reis Filho (1968), os muros da cidade de Salvador foram refeitos, renovados e amplia- dos em várias oportunidades e completava o sistema de defesa da cidade as fortalezas e os diques, conformando o mais complexo es- quema defensivo do período no Brasil. Ponto crítico é que logo os muros se tornaram obsoletos em função do aparecimento da pólvora e das peças de artilharia, obri- gando os colonizadores a implantarem outras estratégias de defesa. As construções no alto, no topo de colinas, por exemplo, consti- tuíam um cenário mais eficaz, e essa foi a opção adotada no caso do Rio de Janeiro, cujo núcleo urbano, após instalado em local menos abrigado, foi deslocado para o Morro do Castelo; e de Olinda, que em contraste com Recife, apresentava melhores características de implantação em sítio elevado. A mudança de localização de Iguape, no sul do Estado de São Paulo, também ilustra essa preocupação de- fensiva, tirando partido das características geográficas. O primeiro núcleo urbano, localizadojunto à barra do rio Ribeira de Iguape, foi posteriormente transferido para terras abrigadas por uma ilha e um braço de mar. Com a ruralização do Brasil, confirma-se a descentralização do sistema defensivo. No interior assiste-se inclusive ao apareci- mento de pontos fortificados reunidos em torno das casas grandes com suas torres. Exemplo ainda hoje existente, apesar de estar em ruínas, é a torre de Garcia d’ Ávila na Bahia. Apesar disso, havia discretos pontos de coordenação desses postos nas vilas próximas, que por sua vez, e aos poucos, foram sendo controladas por um centro administrativo regional. Esses 61 centros, de responsabilidade política e administrativa da Coroa, eram verdadeiras fortalezas, dotados de corpo efetivo (tropas regu- lares) e equipamento bélico pesado. Foram instalados esses centros em Salvador, Rio de Janeiro, São Luiz e Belém e, com isso, assiste- -se a um processo de centralização dos esquemas de defesa (REIS FILHO, 1968). Essa política centralizadora, que teve início em meados do século XVII, apresentou como efeitos a ampliação do repertório de construções militares: baluartes, fortes, fortins, fortalezas, arse- nais, quartéis etc.; e a valorização dos centros regionais, que pas- saram a exercer controle também sobre as atividades políticas e de comércio das suas regiões. São elaborados verdadeiros esquemas de fortificações, como na defesa do Rio de Janeiro, cuja entrada da Baía de Guanabara, foi ladeada pelas fortalezas de Santa Cruz e São João no trecho mais estreito; e também em Santa Catarina, com as for- talezas de Santo Antônio de Ratones, Santa Cruz de Anhatomirim e São José da Ponta Grossa, formando um triângulo de defesa para invasores que se aproximavam pelo Norte. As soluções empíricas foram aos poucos se tornando fruto de estratégias e planejamento. Inspirados nos modelos de Vauban, en- genheiros militares projetaram fortins, fortes e fortalezas, a serem executados por mestres de obras e soldados. Aliás, sobre a formação desses profissionais, é importante registrar que em 1647, os portu- gueses criaram em Lisboa a aula de fortificações e arquitetura mi- litar com fundamentos na tratadística renascentista. E, mesmo no Rio de Janeiro, foi criada uma aula de fortificação em 1699. Ainda no século XVI, eram enviados pela Metrópole engenheiros militares, com o intuito de elaborar projetos de fortes e confeccionar mapas e plantas para estudos de defesa de cidades. As construções destinadas ao sistema defensivo podem ser ordenadas em termos de complexidade, do menos ao mais comple- xo: reduto, bateria, fortim, forte, fortaleza e praça forte. A fortaleza é considerada o último nível de obras de uso estritamente militar, já que a praça forte se configura como uma cidade murada, abrangen- do também a função de moradia (CASTRO, 2016). 62 Castro (2016b) define forte como uma construção única, fe- chada, capaz de promover a defesa e resistir ao ataque por um pe- ríodo relativamente prolongado. Não se trata somente de abrigo, o forte tem que possibilitar também a ofensiva contra o inimigo. Possuem quartéis e paióis (depósito de munição e alimentos), o que os distinguem dos fortins, que não têm esses apoios. O forte pode, ainda, ser subordinado a uma fortaleza, já que essa se diferencia do forte, justamente por ter obras auxiliares, como redutos, baterias e outros fortes. Assim, pode-se dizer que “a fortaleza não é mais do que um forte que tem outras obras a ele subordinadas” (CASTRO, 2016a). Todas essas estruturas defensivas se instalaram nesse pri- meiro momento de ocupação, principalmente, ao longo do litoral. Configuraram um esforço descentralizado de proteção do território, levado a cabo, sobretudo, pelos donatários e colonos das diferen- tes capitanias, sem maiores apoios das metrópoles. Em diversas si- tuações, a implantação dessas fortificações acabou dando origem a vilas ou cidades, como foi o caso do Forte dos Reis Magos, que deu origem à cidade de Natal. Os fortes eram em geral construídos com quatro ou cinco pontas, ou baluartes. Apesar de projetados para serem regulares, as vezes o relevo forçava uma adaptação, gerando distorções no de- senho original. O Forte dos Reis Magos em Natal mantém até hoje o formato pentagonal. Já o Forte de Cinco Pontas de Recife que já teve cinco baluartes, hoje tem apenas quatro, devido às sucessivas alterações. Encontram-se em curso os trabalhos relativos à candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras como patrimônio mundial da humanidade pela UNESCO. Engloba um conjunto de 19 fortes e fortalezas já tombados pelo IPHAN, que testemunham o sistema de ocupação e defesa do território nacional. FIQUE DE OLHO 63 Nesta unidade, você teve a oportunidade de: • compreender o processo de ocupação do território brasileiro e sua associação com os primeiros ciclos econômicos do Brasil Colonial, além da conformação e características dos primeiros núcleos urbanos aqui implantados a partir dos modelos portu- gueses de cidades; • conhecer a arquitetura que se desenvolveu em Portugal nos dois primeiros séculos após o “descobrimento” a partir de duas vertentes: aquelas oriundas das heranças culturais que confor- maram o próprio povo português e aquelas que podem ser clas- sificadas como “estilos arqui SINTETIZANDO 64 UN ID AD E 3 66 Introdução Olá! (apresentação) Você está na unidade 3. Conheça aqui um pouco do processo de ocupação do território brasileiro, a partir das estruturas urba- nas definidas em meados do século XVII, correspondente ao Período Colonial, os parâmetros que nortearam a configuração urbana, suas causas e características. Entenda a conformação primária dos lotes, as configurações arquitetônicas, de que forma esses elementos que compõem o núcleo urbano interagem e se influenciam, bem como qual o resultado disso na paisagem urbana. Além disso, veremos também, de forma introdutória, os parâmetros que configuraram a arte e arquitetura barroca no Brasil. Principalmente na Arquitetura religiosa, onde esse estilo foi mais retratado. Bons estudos! 67 Evolução das estruturas urbanas e de urbanização a partir da metade do século XVII Durante o Período Colonial no Brasil, o processo de ocupação e ur- banização das cidades era motivado pela organização de um sistema defensivo. Normalmente, esses núcleos eram implantados em ter- renos elevados, com traçado regular das vias e lotes com dimensões padrões – testada estreita, compridos – configurando uniformida- de e rigidez à estrutura urbana. Em algumas cidades, como São Luís do Maranhão, além da estruturação do território em função da proteção, as missões reli- giosas desempenharam papel decisivo na ocupação e delimitação do território. É possível depreender que a cidade estava sendo organi- zada pela implantação das edificações religiosas, que funcionavam como polos de atração, provocando a ocupação e o adensamento da área. Algumas dessas edificações podem ser definidas como marcos e limites da cidade. Por exemplo, o Convento de Nossa Senhora do Carmo, que pode ser considerado como o marco na paisagem e li- mite da cidade no século XVII (SENADO FEDERAL, IPHAN, 2007). Para compreender a evolução das estruturas urbanas, é importan- te analisar a configuração do lote urbano; a relação da arquitetu- ra produzida a partir desse lote; e o resultado dessa interação nas características arquitetônicas e seus respectivos usos. Ademais, o contexto histórico das motivações e as necessidades de ocupação de dado território, assim como os usos e setorização espacial da cidade, definiram a forma e modelo de ocupação das cidades. Figura 1 - Convento Nossa Senhora do Carmo na paisagem urbana de São Luís (MA) Fonte: Stefano Ember, Shuttersock, 2020. #PraCegoVer: A imagem é uma foto da fachada e do entorno do Convento Nossa Senhora do Carmo, em São Luís (MA). 68 Características do lote urbano e sua relação com a Arquitetura Durante o período colonial os lotes tinham configuraçõesclara- mente definidas. Segundo Reis Filho (1983, p. 22): “Aproveitando antigas tradições urbanísticas de Portugal, nossas vilas e cidades apresentavam ruas de aspectos uniformes, com residências cons- truídas sobre o alinhamento das vias públicas e paredes laterais so- bre os limites dos terrenos”. Figura 2 - Cidade de Paraty (RJ) Fonte: Wtondossantos, Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: A imagem é uma foto de uma das ruas de Parati (RJ), na qual podemos ver a representação da implantação da edificação junto à rua, delimitando o traçado urbano. Dessas ocupações, resultaram configurações espaciais de ruas, quadras, implantação das edificações nos lotes e atribuição de usos que se alteraram com o tempo, com os interesses econômicos, com os modos de ocupação da região e de apropriação das edifica- ções, resultando na conformação e aparência urbanas atuais. 69 A rua era definida a partir da sequência das edificações cons- truídas alinhadas umas às outras, estabelecendo espacialmente os limites dos passeios. Essa uniformidade e rigidez nas linhas urba- nas é característica do período em que Portugal estava sob domínio espanhol (1580 – 1640), o qual repercutiu, entre outras coisas, na aplicação do traçado ortogonal diferente dos projetos empregados pela Coroa Portuguesa, que procuravam respeitar as linhas de ter- reno e outros elementos naturais para compor seu traçado urbano, gerando estruturas mais orgânicas. Segundo Bury (2006, p. 170), essas plantas ortogonais são re- sultantes da cultura da Europa Ocidental, originárias da Antiguidade Clássica. No entanto, como já afirmado, esse traçado não é comum em Portugal e também são raros nas cidades mais antigas fundadas pelos portugueses: “Parece que a intenção básica no Brasil era simi- lar à da América espanhola, no sentido de dar plantas ortogonais aos centros administrativos”. Para aplicação desse traçado ortogonal, eram utilizados ins- trumentos rudimentares, como cordas e estacas. No entanto, a ga- rantia desse traçado regular somente era obtida com a construção dos edifícios, erguidos nos limites das vias públicas e laterais con- figurando uma paisagem urbana densa, ainda que o núcleo ocupado fosse reduzido (REIS FILHO, 1983, p. 24). Em São Luís do Maranhão, por exemplo, até aproximada- mente 1700, a cidade ficou estabelecida no traçado ortogonal de- senhado por Frias de Mesquita, respeitando a divisão de lotes e a implantação das edificações. Porém, a partir de 1750, é iniciado o processo de consolidação da ocupação da cidade, primeiramen- te motivado pelo controle de acesso à região – sendo, por isso, transformada em acampamento militar –, tornando-se, então, entreposto comercial. Essa mudança suscitou duas grandes conse- quências na urbanização: elevou o número de habitantes – provo- cado pela migração das famílias vindas do arquipélago dos Açores e, sobretudo, pelos escravos africanos –, e diversificou as funções ali realizadas, concentrando atividades e provocando a valorização do solo urbano nas áreas ligadas ao porto. Tal transformação possi- bilitou, ainda, a ampliação das dimensões dos lotes na cidade para abrigar edificações de maior porte para atender às novas atividades 70 e aos ricos proprietários, que ansiavam por ostentar sua riqueza por meio das exuberantes edificações. Figura 3 - Vista aérea do Centro Histórico de São Luís (MA) Fonte: Josereisjr, Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: A imagem é uma vista aérea do Centro Histórico de São Luís (MA), no qual podemos ver algumas características próprias de cidades brasileiras coloniais. Além de garantir o traçado e dimensões das vias, a implan- tação da edificação no lote é feita de forma a preservar uma área do terreno livre para a criação de jardim ou horta, consequentemente, apta para captação das águaspluviais, uma vez que as coberturas ti- nhas suas águas dos telhados direcionadas para a fachada frontal e para os fundos do terreno, evitando que a água invadisse o terreno vizinho (SILVA, 1998, p. 52). 71 Figura 4 - Ouro Preto (MG) Fonte: Felipequeiroz, Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: Imagem das fachadas de algumas edificações históricas de Ouro Preto (MG) representando a simetria da fachada por meio da volumetria, coberturas em telha de barro e a disposição ritmada dos vãos. Tal uniformidade conferida aos lotes resultava da regulari- dade dos partidos arquitetônicos empregados nas edificações, ca- racterizadas por sólidas volumetrias com padrões de aberturas e coberturas previamente definidos por Cartas Régias ou em normas de posturas municipais. Em São Luís, as mudanças na forma de ocupação se concre- tizam com a elaboração de leis e decretos pelo governo, a fim de normatizar a expansão da cidade, ou seja, o Estado passa a orien- tar, por meio desses códigos, a ocupação e a organização do espaço urbano. Essas normas deram continuidade ao padrão de ocupação/ expansão desenhado por Frias de Mesquita, assim como os códigos de 1842, 1866 e 1893 e, posteriormente, o Código de Posturas, de 1932, que passou a regular o modelo de expansão urbanístico pela malha ortogonal. 72 Características da arquitetura colonial Das tipologias arquitetônicas desenvolvidas durante esse período podemos destacar a militar, a religiosa, a civil e a residencial. So- bre a arquitetura religiosa colonial no Brasil podemos observar que estão geograficamente concentradas ao longo do litoral brasileiro, em uma faixa que vai desde Belém do Pará até Santos. Outras se lo- calizam na província mineradora de Minas Gerais e Goiás. Desses exemplares remanescentes destacamos a mais importante estrutu- ra seiscentista que ainda subsiste no Brasil: a antiga Igreja do Colé- gio da Companhia de Jesus, hoje Catedral de Salvador, caracterizado por William Beckford (2006, p. 175) como “o estilo majestoso que prevaleceu durante o domínio espanhol em Portugal”. Ainda se- gundo este autor: “A fachada, sóbria e digna, construída com um arenito local, áspero, cinzento e emassado, surge com grande des- taque no fundo de uma praça longa e estreita, que como um adro, tem no centro uma cruz monumental”. Figura 5 - Fachada da Igreja de São Francisco, em Salvador (BA) Fonte: Helissa Grundemann, Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: Imagem da fachada da Igreja de São Francisco, no Centro Histórico de Salvador (BA). 73 Importante elemento empregado na sua fachada dá supor- te para o desenvolvimento da arquitetura religiosa no Brasil: série de volutas livremente entrelaçadas, que circundam a parte central do frontão. Esses traços indicam o ponto de partida do processo da arte e arquitetura barroca, a partir do rompimento dos rigorosos padrões da arquitetura do fim da Renascença. De acordo com Bury (2006, p. 177): “A partir desse início, à medida que avança o século, a progressiva emancipação quanto às regras restritivas da compo- sição clássica se evidencia na substituição das formas ortogonais tradicionais pelas novas formas curvas e móveis, e pelos perfis em forma de ‘S’” . Da arquitetura civil, podemos mencionar como as obras mais re- presentativas dessa tipologia as Casas de Câmara, as residências dos governadores e bispos, as casas rurais ou solares das famílias patrícias e as casas-grandes de engenhos e fazendas. Das casas de câmara um bom exemplo é o edifício de Ouro Preto. Figura 6 - Casa de Câmara em Ouro Preto (MG) Fonte: EAFO, Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: Na imagem há a Casa de Câmara em Ouro Preto (MG). FIQUE DE OLHO 74 É preciso lembrar que, sendo a arquitetura uma arte social, o projeto das residências particulares merece também atenção espe- cial. A categoria é vasta, abrangendo desde cabanas de pau-a-pique de um ou dois cômodos até residências urbanas de pedra, grandes até mesmo para padrões europeus, tais como a Casa de Contos em Ouro Preto. Figura 7 - Casa de Contos em Ouro Preto (MG) Fonte: Vanessa Volk, Shutterstock, 2020. A casa-grande do senhor do engenho ou fazendeiro também seguia o padrão mais oumenos constante, derivado das práticas costumeiras em Portugal. Característica tradicional são os telhados de quatro águas, a escadaria externa e a varanda, cujo telhado incli- nado com vigas aparentes era sustentado por uma fileira de gros- sas colunas ou pilares de pedra. Um belo exemplo é a casa-grande da fazenda Colubandê, Rio de Janeiro, de meados do século XVIII (BURY, 2006, p.194). Das edificações residenciais urbanas podemos acrescentar que estas estão associadas diretamente ao traçado da cidade e às di- mensões do lote em que serão construídas. Segundo o professor e arquiteto Nestor Goulart Reis Filho, uma característica dessa arqui- tetura é a relação a depender do tipo de lote em que está implantada: 75 “Assim, as casas de frente de rua [...] são conjuntos tão coerentes, que não é possível descrevê-los completamente sem fazer referên- cia à forma de sua implantação” (REIS FILHO, 2000, p. 16). Em São Luís é possível verificar esse vínculo direto entre a edificação e sua implantação no lote, de forma que as edificações erguidas durante os séculos XVIII e XIX apresentam a implantação sobre a testada e limites laterais do lote, ou seja, resultam em plan- tas que não incluem corredores para acesso lateral. Figura 8 - Edificação junto à testada do lote, em São Luís (MA) Fonte: Stefano Ember, Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: Imagem de uma rua no Centro Histórico de São Luís (MA), na qual podemos ver a implantação da edificação junto à testada do lote. Em relação à volumetria, verifica-se que não há associação entre as suas variações e as dos partidos das plantas. No entanto, é possível perceber a direta ligação das plantas e a distribuição das águas da cobertura. Além disso, para cada programa é possível iden- tificar uma tipologia arquitetônica, vinculada à melhor distribuição das funções e dos cômodos. Além disso, a topografia dos lotes, nos quais as edificações são implantadas (plano ou inclinado), também influencia as características arquitetônicas da edificação. 76 As normas que regulavam as linhas arquitetônicas, o número de aberturas, alturas dos pavimentos e alinhamentos eram deter- minados em função da necessidade de garantir que as cidades brasi- leiras exprimissem aparência portuguesa. A paisagem urbana passa a ser definida por fachadas: “simetricamente riscadas e com ligeira supremacia de cheios sobre os vazios, sem reentrâncias ou saliên- cias, exceto as resultantes dos beirais, das sacadas, das portas e das guarnições dos vãos e das quinas” (SILVA, 1998, p. 51). Além disso, observa-se o alinhamento dos vãos e o nivelamento das vergas, que reforçam a simetria e ritmo nas fachadas. A monotonia volumétrica dessas edificações era quebrada quando introduzido elementos na cobertura, como a água furtada ou camarinha, que além de servir para ventilação e iluminação na- tural daquele pavimento superior, enriquecia o skyline da rua, per- mitindo diferentes perspectivas daquele núcleo urbano. Figura 9 - Centro Histórico de Salvador (BA) Fonte: Cassiohabib, Shutterstock, 2020. #PraCego Ver: Representação do ritmo volumétrico das edificações, interrompido pela presença da água furtada, em Salvador (BA). 77 A rigidez expressa nas fachadas também era aplicada nas plantas, pois, conforme descrito por Reis Filho, cada ambiente era pensado de acordo com a sua função doméstica e com o perfil do seu ocupante (REIS FILHO, 1983,p. 24). Dentro desse contexto podemos distinguir, basicamente, duas tipologias arquitetônicas das habitações: o sobrado e a casa térrea. Essas tipologias diferenciavam, além do número de pa- vimentos, pelo acabamento de piso utilizado. A primeira com uso predominante de assoalho e a segunda de chão batido. Essa carac- terística definia não só o tipo de habitação, mas significava a cama- da social a qual cada uma abrigava: no sobrado a classe mais rica, ao contrário da casa térrea, que abrigava a população mais pobre. Essa divisão não se restringia às edificações de forma individual, mas também de forma específica. No sobrado, por exemplo, quando analisados individualmente – “os pavimentos térreos dos sobra- dos, quando não eram utilizados como lojas, deixavam-se para aco- modação dos escravos e animais ou ficavam quase sempre vazios” (REIS FILHO, 1983, p. 28). A simplicidade das técnicas construtivas adotadas denuncia- va o restrito desenvolvimento tecnológico da nossa sociedade co- lonial: abundância de mão de obra determinada pela existência do trabalho escravo, mas ausência de aperfeiçoamentos. Como vimos, a abundância dessa mão de obra determinava as formas de uso das edificações, a distribuição dos cômodos e a dinâmica diária da casa (REIS FILHO, 1983, p. 26). 78 Introdução ao estilo Barroco no Brasil Segundo as autoras Albernaz e Lima (1997), o estilo arquitetônico Barroco reúne grande parte das manifestações artísticas surgidas na Europa de meados do século XVII a meados do século seguinte. Baseia-se em expressões dinâmicas, percepção ilusória, profundi- dade, claro-escuro e elementos decorativos. Predominam nesse es- tilo o movimento e não linearidade das massas construídas, assim como a unidade do conjunto. Na Arquitetura Brasileira o Barroco é predominantemente utilizado em construções religiosas, mais frequente durante o século XVIII e em Minas Gerais. A Matriz de N. Sra. do Bom Sucesso, Caeté, MG; Capela de N. Sra. Ó. Sabará, G é um claro exemplar desse estilo (AL- BERNAZ; LIMA, 1997 – 1998, p. 85). Esse estilo foi muito bem desenvolvido nas igrejas francis- canas no nordeste do Brasil, a partir da substituição de formas tra- dicionais de ortogonalidade e rigidez pelas formas curvas e móveis. A igreja de Marechal Deodoro, de 1793, é um modelo representati- vo dessa transformação, por apresentar uma fachada com detalhes curvilíneos, ausência de entablamento inferior e uma sequência de curvas dinâmicas. FIQUE DE OLHO 79 Figura 10 - Igreja na cidade de Marechal Deodoro (AL) Fonte: Lana Endermar, Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: Imagem da fachada de uma igreja na cidade de Marechal Deodoro (AL), com características próprias de edificações franciscanas do Nordeste do Brasil. A incorporação desses elementos dinâmicos não se restringe à fachada dessas edificações religiosas. Bury (2006,p. 20) acrescen- ta que as igrejas coloniais brasileiras possuem em seu interior uma rica decoração barroca, que inclui “pinturas de tetos em perspec- tivas ilusionista, mobiliário barroco, lavabos de sacristia, púlpitos, tapa-ventos e, acima de tudo, retábulos de talha dourada, consti- tuindo as “igrejas todas de ouro” e outros interiores inteiramente revestidos, como, por exemplo, a Igreja Nossa Senhora da Concei- ção dos Militares de Recife. Os efeitos espetaculares produzidos nos interiores das edifi- cações eram buscados também nas vias de acessos para as constru- ções consideradas mais importantes. Aqui, temos como referência o conjunto dos Passos e adro dos Profetas, do Santuário de peregri- nação do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas (BURY, 2006, p. 222). O santuário fica no alto de uma colina, e o acesso é feito por um caminho em ziguezague, que passa por seis capelas de Passos, seguido por uma monumental escadaria dupla que leva ao adro da 80 igreja. A localização retirada e o panorama delimitado por longín- quas serras causam extraordinária impressão, e a elegante escada- ria curvilínea do adro, com doze estátuas de profetas no parapeito, esculpidas por Aleijadinho, constitui imagem inesquecível (BURY, 2006, p.190). Figura 11 - Igreja Bom Jesus de Matosinhos e o conjunto de Profetas, em Congonhas (MG) Fonte: Inspired By Maps, Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: Imagem da fachada da Igreja Bom Jesus de Matosinhos e o conjunto de Profetas, em Congonhas (MG). Em frente à igreja, uma área pavimentada e limitada por um guarda-corpo integra o conjunto. Com função de acomodar o gran- de grupo de peregrinos possibilitando que ouvissem dali, por meio das portas abertas,as missas realizadas no interior da edificação. Dessa forma, o adro se configura como uma extensão da igreja e as paredes da escadaria como o avanço da fachada. 81 Figura 12 - Igreja Bom Jesus de Matosinhos e o conjunto de Profetas, em Congonhas (MG) Fonte: Luciano Queiroz, Shuttersotck, 2020. #PraCegoVer: Vista da Igreja de Congonhas assentada sobre um calçamento delimitado com guarda-corpo para receber os fiéis, em Congonhas (MG). Nesse caso, as esculturas dos profetas, da forma que estão incorporadas ao contexto, assumem, junto ao valor escultórico in- trínseco, um valor arquitetônico e o efeito produzido é considerado autenticamente barroco, dada a intensa teatralidade que o conjunto da obra produz (BURY, 2006, p. 191). Principais características do Barroco Sobre o Barroco, podemos pontuar algumas características funda- mentais que o diferenciam de outros estilos arquitetônicos. Bury (2006) aponta três definições de Anthony Blunt como as caracterís- ticas marcantes dessa arquitetura: preferência pela grande escala, por formas complexas e pelos efeitos teatrais (BURY, 2006, p. 218). Segundo o autor (BURY, 2006), os arquitetos barrocos tinham tendência a desenvolver volumes altos e imponentes. Além disso, as plantas e fachadas em contraste côncavo-convexo se destacam, 82 criando efeitos de movimento, uma das principais características desse estilo. As plantas ogivais também eram muito apreciadas. A igreja de Nossa Senhora do Rosário de Ouro Preto repre- senta o resultado final e mais avançado de todas as experiências já feitas em Portugal e no Brasil com plantas poligonais e curvilíneas. É uma estrutura autenticamente barroca, não apenas na decoração. Tem a fachada arqueada, torres redondas e a nave e a capela-mor elípticas, só a sacristia permanecendo retangular. Projetada para ser vista por todos os lados, sua construção iniciou depois de 1753 e foi terminada provavelmente em 1785, data inscrita acima do frontão (BURY, 2006. P. 185). Figura 13 - Igreja Nossa Senhora do Rosário de Ouro Preto (MG) Fonte: Diego Grandi, Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: Imagem da fachada da Igreja Nossa Senhora do Rosário de Ouro Preto (MG). Segundo Bury (2006), antecederam à igreja de Nossa Senhora do Rosário, com a planta em dupla elipse, as singelas igrejas no Rio de Janeiro: Nossa Senhora da Glória do Outeiro e São Pedro dos Clé- rigos (1733 – 1738, demolida em 1943). 83 Além da busca por movimento, através do jogo de volumes, as concepções arquitetônicas barrocas faziam uso de referenciais teatrais, como a luz dirigida, que se originavam de locais ocultos, assim como as ilusões óticas proporcionadas através de pinturas nos tetos com simulações de arquitetura ascendentes e a falsa apa- rência de abóbada com um profundo céu. Para a concepção desse ambiente cênico foram empregados alguns materiais, porém com custo menor dos habitualmente utilizados. Figura 14 - Forro da igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto (MG) Fonte: T photography, Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: Imagem do forro da igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto (MG). 84 SINTETIZANDO Externamente, a arquitetura barroca se expressa por meio do enquadramento dos vãos e arremate das fachadas e torres. No Brasil é mais frequente encontrarmos este estilo aplicado nos ornamen- tos, mas, ainda assim, temos exemplares significativos do barroco arquitetônico no Rio de Janeiro – Igreja São Pedro dos Clérigos (já demolida) e outras duas em Minas Gerais – São Pedro dos Clérigos, em Mariana e Nossa Senhora do Rosário, em Ouro Preto. Nesta unidade, você teve a oportunidade de: • entender a influência dos elementos urbanísticos e arquitetô- nicos na composição da paisagem durante o período colonial; • observar que a ocupação do solo ocorreu em função do uso e destinação do território; • estudar que a representação dos usos das arquiteturas também ocorre através dos materiais empregados; • estudar as características básicas do estilo Barroco e observar o quanto elas contrastam com as regras rígidas adotadas pelas arquiteturas coloniais; • compreender que o estilo Barroco não se restringe à arquitetu- ra, ele está presente nos ornamentos, esculturas e técnicas de acabamentos. UN ID AD E 4 86 Introdução Olá! (apresentação) Você está na unidade 4 – Do Barroco ao Neoclássico. Conhe- ça, aqui, as manifestações artístico-estilísticas que se desenvol- veram no Brasil do século XVIII até princípios do XIX. Partindo das escolas regionais do barroco e do rococó, veremos como os referen- ciais estilísticos de matrizes europeias foram sendo interpretados, adaptados e aclimatados no Brasil, como é o caso, por exemplo, do estilo Aleijadinho. Veja também como ocorreu o processo de urbanização no Brasil, a partir da segunda metade do século XVIII, com a intensifi- cação do surgimento de vilas e cidades, e como essas se configuram arquitetônica e urbanisticamente. Por fim, faremos uma introdução ao estudo do neoclassicismo, a fim de entender como ocorreram as primeiras manifestações desse estilo. Bons estudos! 87 Escolas regionais do Barroco no Brasil Ao ler no título deste item “Barroco no Brasil”, é bem provável que, já de antemão, algumas imagens ou palavras-chave venham à mente do leitor: igrejas, ciclo do ouro, Minas Gerais, Aleijadinho, entre outras. Todas elas são pertinentes e se associam ao tema que trataremos aqui, mas não só. De antemão, é preciso dizer que a ex- pressão do barroco na arquitetura extrapolou a região das Minas Gerais e também teve palco em outras cidades brasileiras. Por isso, falaremos, aqui, sobre algumas escolas regionais. Vamos lembrar que a ascensão do estilo barroco esteve es- treitamente vinculada à descoberta do ouro no Brasil, que ocorreu ainda em fins do século XVII. O enriquecimento rápido proporcio- nado pela mineração mudou a rotina colonial ao longo do século se- guinte, com a “intensificação da vida urbana, capital de giro, contato com a Europa, valorização do luxo e do conforto, [...] cenário extre- mamente favorável para abrigar o gosto barroco” (MENDES et al., 2010a, p.193). Será sobretudo nas igrejas que veremos a sua expres- são, especialmente naquelas das ordens seculares e leigas (ordens terceiras, irmandades e confrarias), já que a Coroa proibiu a instala- ção das ordens regulares nas proximidades dos locais de mineração. Tratou-se de uma postura de disputa política, especialmente contra os jesuítas, cujo poder vinha aumentando progressivamente. Cabe esclarecer que as ordens terceiras, organizações vin- culadas a uma ordem religiosa, antes do século XVIII, não tinham edificações próprias, ocupando capelas no corpo das igrejas pri- meiras ou segundas (MENDES et al., 2010a). Com o ciclo do ouro, tais ordens passaram a construir edifícios próprios, principalmente a Ordem dos Carmelitas e dos Franciscanos, que ascenderam eco- nomicamente no período. Assim, é comum vermos conjuntos com a igreja da ordem religiosa e outra anexa, tão imponente quanto, pertencente à ordem terceira. Há um debate sobre a originalidade do chamado “barroco mineiro”, mas Oliveira (2001) relativiza essa visão e a atribui, de forma mais ampla, às regiões que emergiram como centros de poder político e econômico no século 88 XVIII. Primeiramente, a capitania de minas do ouro e seu porto, no Rio de Janeiro, enriquecido pelo comércio e pela condição de sede do governo a partir de 1763. Depois, as capitanias de Per- nambuco e Paraíba, seguidas por Belém do Pará, ambas com econo- mias fortalecidas em função das companhias de comércio regionais. Veremos a seguir duas dessas escolas, uma no interior e outra no litoral, e algumas de suas particularidades. Antes, contudo, vale re- lembrar que sua origem deriva do barroco italiano, cujas caracterís- ticas são assim sintetizadas por Oliveira (2008, p.119): [...] formas grandiosas das construções, com ornamentação abundante e desenho variado e complexo das plantas e fachadas,com emprego de secções curvilíneas. Nas decorações internas, a re- gra é a opulência, com revestimento integral das superfícies e uso de materiais nobres e preciosos, como os mármores policromos e o bronze dourado. Da mesma forma, os relevos de madeira ou estu- que recobertos com folhas de ouro ou prata foram usados nos países ibéricos e na Europa Central. O barroco brasileiro, contudo, deriva de sua pré-adaptação em Portugal, e já nesse país apresenta variações. Bom ter em mente que, apesar do conceito de obra integral, isto é, que segue o princí- pio de integração das artes (arquitetura, pintura, escultura); o esti- lo se manifestou com mais recorrência nos interiores, ganhando as plantas e fachadas já na segunda metade do século XVIII. Por isso, é cabível a interpretação de Mendes et al. (2010a, p.211), de que a ar- quitetura genericamente denominada barroca, produzida no referi- do período, “(...) contou com manifestações singulares que incluíam resquícios do maneirismo dos séculos anteriores, o dinamismo es- pacial do barroco propriamente dito e a decoração superficial do rococó”. Barroco Mineiro O distanciamento da região aurífera do litoral acabou conferindo à arquitetura, que ali se desenvolveu, certas particularidades. O uso de materiais locais é uma delas. A dificuldade de transportar a pe- dra lioz, que chegava nos navios até a região mineira, incorreu na 89 sua substituição pela pedra sabão, de fácil trabalhabilidade e larga- mente disponível naquelas regiões. Ademais, elementos decorati- vos, como azulejos, também foram substituídos por pinturas, que contavam com a habilidade de profissionais como o Mestre Manoel da Costa Athaíde. O distanciamento da região aurífera do litoral acabou confe- rindo à arquitetura que ali se desenvolveu certas particularidades. O uso de materiais locais é uma delas. A dificuldade de transportar a pedra lioz que chegava nos navios até a região mineira, incorreu na sua substituição pela pedra sabão, de fácil trabalhabilidade e larga- mente disponível naquelas bandas. Ademais, elementos decorati- vos, como azulejos, também foram substituídos por pinturas, que contavam com a habilidade de profissionais como o Mestre Manoel da Costa Athaíde. Sem dúvida, atribui-se aos trabalhos de pedra sabão uma das originalidades do barroco mineiro. As portadas de igrejas, ricamente decoradas, constituem traços do estilo. Além das portadas, foi em- pregado também em cunhais, molduras, vergas, sobrevergas, frisos e em magníficos grupos escultóricos, como no adro do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, a última grande obra do Mestre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. O Barroco, sobretudo em sua fase inicial, terá expressão nos interiores das igrejas, em trabalhos de talha, pinturas e esculturas. Nos primeiros exemplares, as paredes eram decoradas com pintu- ras emolduradas com talhas douradas, formando painéis, como na Capela de Nossa Senhora do Ó, em Sabará. Mas, conforme foi evo- luindo, transmutou-se para uma visão global, sem divisões, preen- chendo todo o ambiente. Nos forros, a ornamentação também era, assim, compartimentada, panos de pintura emoldurados, os cha- mados “caixotões”; evoluindo mais tarde para as pinturas ilusio- nistas, com céu em perspectiva, dando efeito tridimensional. Eram pinturas sobre forros abobadados em tabuado corrido. As mudanças em plantas só vão ocorrer a partir de meados do século XVIII, com a introdução das plantas poligonais e curvilíneas. Os movimentos do espaço interior e da fachada vão contribuir para a grande retórica barroca, sua dramaticidade e opulência. São poucas, 90 entretanto, as plantas a apresentar essa característica, que con- tabilizam 13 apenas, num universo de centenas construídas nesse período no Brasil (cf. OLIVEIRA, 2001). Em Minas, de tipologia poli- gonal, temos a Igreja Nossa Senhora do Pilar, de Ouro Preto (1731), e de tipologia curvilínea, ainda no espírito barroco, as de São Pedro dos Clérigos, de Mariana (1753), e de Nossa Senhor do Rosário, de Ouro Preto (1757). As mais comuns continuavam a ser as plantas retangulares, seguindo ainda o estilo jesuítico (ou maneirista), e as fachadas com aberturas formando um “V”, ou seja, com a porta centralizada e duas janelas simétricas situadas na altura do coro. Bury (2006) ob- serva que, no segundo quartel do século XVIII, foram construídas várias igrejas de pedra de tamanho considerável e com torres la- deando a fachada, mas que manteve o padrão de abertura diagonal da fachada, contrastando com outras soluções adotadas no litoral. O autor atribui esse conservadorismo à situação de isolamento terri- torial de Minas. Caracterizam ainda as fachadas barrocas mineiras: os frontões curvilíneos e bem ornamentados e a abertura de óculos acima das portadas com a adequação da cornija ou do entablamento. Principais característica do Barroco Mineiro: ◼ pinturas e esculturas com temática sacra/cristã; ◼ adereços e ornamentos em ouro e outros materiais nobres no interior das igrejas; ◼ utilização da pedra-sabão. Barroco carioca Por sua condição portuária, o Rio de Janeiro assimila mais rápi- da e diretamente os referenciais estilísticos europeus do período, além do fato de tornar-se capital, em 1763. Observa, assim, Olivei- ra (2008) que essa foi a primeira cidade a assimilar a talha joanina (em referência ao monarca) e a pintura em perspectiva, novidades importadas da Itália e que revolucionaram o barroco português no período de D. João V. O mesmo ocorreu com as plantas poligonais e 91 curvilíneas, que foram primeiramente adotadas nas igrejas cario- cas, cerca de vinte anos antes de suas incidências em Minas Gerais. Exemplo de maior relevância, ainda hoje existente e consi- derada a “joia barroca” da cidade, é a Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, cuja planta se configura pela intersecção de dois polígonos (octógonos), gerando volumetria com interessante mo- vimento de fachadas. Curioso nesse caso é a torre única à frente da fachada, sobre galilé de um arco, constituindo tipologia diversa daquela de duas torres laterais, comumente empregada nas igrejas brasileiras setecentistas. Mendes et al. (2010a) atribuem ao referido exemplar o papel de fonte inspiradora para as igrejas mineiras com torre única no eixo da composição. Salvo raros exemplares, as plantas e fachadas não se liber- taram da regularidade e rigidez formal típicas do maneirismo, e o barroco se restringiu a detalhes ou trechos da composição, como nas formas curvas e no exagerado relevo de elementos. Analisando a igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, no centro da cidade, Carvalho et al. (2010, p.10) registram aspectos característi- cos do barroco luso: “a força da cornija superior e da modenatura do frontão e a respectiva sombra que projeta na fachada, associada à expressividade de seu revestimento total em pedra e aos grandes capitéis de ordem gigante”. Além da portada com torção de elemen- tos verticais, característica encontrada em vários retábulos. Muitos interiores receberam ornamentação de inspiração barroca: altares, arcos-cruzeiros, retábulos. Todos eram ricamente recobertos de talha dourada, pintura com coloridos quentes, e ainda azulejos, muitas vezes monocromos, em branco e azul. Mas, como observa Oliveira (2008), a condição do Rio de Janeiro como local de novidades, fez com que se sobrepusessem outros estilos, mais fa- cilmente do que naqueles exemplares de Minas Gerais, cujo rápido declínio da exploração aurífera, praticamente cessou a produção arquitetônica naquela região. Ainda assim, no Rio de Janeiro, ape- sar de algumas mudanças, existem exemplares que mantiveram de forma dominante a estética barroca em seu interior, como podemos ver na Figura “Nave principal da Igreja de Nossa Senhora de Mont- serrat”, pertencente ao Mosteiro de São Bento. 92 Figura 1 - Nave principal da Igreja de Nossa Senhora de Montserrat no Rio de Janeiro (RJ) Fonte: Shutterstock, 2020. #PraCegoVer:Vemos na imagem a Nave Principal da igreja Nossa Senhora de Montserrat, no Rio de Janeiro (RJ), com características barrocas. A Igreja São Pedro dos Clérigos situada na cidade do Rio de Janeiro constituía outro exemplar de planta curvilínea de inspiração bar- roca, em um desenho que associava cinco formas de seção curvi- línea à nave central de formato elíptico. Infelizmente, a igreja foi totalmente demolida em 1943, em função da abertura da Avenida Presidente Vargas. SAIBA MAIS 93 Rococó no Brasil Na historiografia da arte e da arquitetura, o rococó foi definido como estilo a partir da década de 1940. Antes disso, suas caracte- rísticas eram consideradas pertencentes ao quadro mais amplo do Barroco. Esse estilo nasceu na França, durante o reinado de Luiz XV, vinculado à ideia de conforto e prazer, expressando-se sobretudo na decoração de interiores e no mobiliário. Caracterizava-se pela suavidade e leveza, podendo ser interpretado “como uma suaviza- ção e diluição das fortes, expressivas e dinâmicas formas do barro- co” (CARVALHO et al., 2000, p.11). Em termos de ornamentação, os temas eram as conchas, pedrinhas, curvas, contracurvas, flores e folhagens, apresentan- do formato irregular e ondulante. Esses ornatos, quando internos, geralmente eram dourados e combinados com fundos brancos ou de tons suaves, mantendo-se espaços sem preenchimentos, para “descanso dos olhos”. Eram aplicados em paredes e tetos por meio de painéis emoldurados com perfis delicados. Quando nas fachadas, os ornatos eram em pedra, contrastando com as alvenarias brancas. No Brasil, o rococó passou a ser adotado mais largamente a partir de aproximadamente 1770, portanto, já em fins do século XVIII. Nessa época, o ciclo do ouro vinha apresentando sinais de exaustão, e a adoção de um estilo menos ornamentado, tornou-se mais adequado economicamente, diminuindo os gastos com o ex- cesso de ornamentação e de douramentos. Em fins desse século, muitos templos permaneceram inacabados, em função do empo- brecimento das ordens leigas. “Vilas do sertão e cidades litorâneas assistiram à interrupção de um ciclo de prosperidade que se refletia no cotidiano, nas migrações de retorno, na tentativa de retomar a agricultura abandonada” (MENDES et al., 2010a, p.218). O estilo rococó no Brasil, também, cabe ser estudado por meio de suas expressões regionais, das quais destacaremos duas escolas, mais uma vez a mineira, em função de sua centralidade econômi- ca e artística; e, para proporcionar um comparativo com a aborda- gem anterior do barroco, a pernambucana, trazendo o panorama de 94 outra cidade litorânea. É válido dizer, entretanto, que também teve expressão do rococó no Rio de Janeiro. Rococó mineiro Parte da originalidade atribuída ao barroco mineiro, sobretudo pe- los modernistas em princípios do século XX, se vincula mais apro- priadamente ao rococó que, como vimos, só foi delimitado como estilo por volta da década de 1940 na Europa. As obras de Aleijadi- nho representam a expressão máxima desse estilo. Suas primeiras manifestações ocorreram nos interiores, nas talhas, com o emprego do tema da rocalha e, sobretudo, nos retá- bulos encontraremos essa linguagem. Oliveira (2001), assinala que o mais característico do rococó em Minas foi o retábulo com coroa- mento em arbaleta (um tipo de arma medieval, também chamada canga de boi), mas outros dois tipos merecem atenção. O retábulo com coroamento em frontão, conjugando curvas e contracurvas. O retábulo com a colocação de grupos escultóricos, criação de Aleijadinho, e característica circunscrita à sua obra. Nas naves das igrejas, a decoração se dava pela sequência rít- mica desses retábulos, configurando estruturas autônomas e não inseridas em arcadas. Esta conformação favoreceu o aumento de sua altura, adequando-se à do pé direito da nave, com a aplicação de sanefas protetoras (ou guarda-pó; é uma barra disposta na parte superior do retábulo, colocada horizontalmente). O efeito visual de movimento é obtido pelo desenho ondulado destas sanefas dispos- tas ao longo das paredes; acima das quais, janelas permitem a en- trada de luz, “fazendo cintilar os ornatos dourados da talha contra os fundos brancos ou em tons suaves, segundo a estética própria do rococó”. (OLIVEIRA, 2001, p.160). Nos tetos abobadados entram as pinturas em perspectivas realizadas sobre tabuados corridos. Oliveira (2001) destaca que um padrão de particular popularidade foi o que desenhava uma varanda ou muro baixo na parte baixa do teto, no encontro com as paredes, 95 deixando um espaço vazio entre esse elemento e o medalhão, que se localizava na parte central. Evidências do estilo serão encontradas também nas portadas, como se pode notar na figura 2 – “Igreja São Francisco de Assis, Ouro Preto”, elaborada por Aleijadinho. Aliás, essa igreja vem sendo considerada como a obra prima do rococó. Figura 2 - Igreja São Francisco de Assis, Ouro Preto (MG) Fonte: Shutterstock, 2929. #PraCegoVer: Na imagem há uma foto da fachada e da área externa da Igreja São Francisco de Assis, Ouro Preto (MG). Na mesma igreja pode ser observada outra característica do rococó mineiro, a planta de partido curvilíneo sinuoso, onde as su- perfícies laterais da fachada levemente curvadas se conectam com as torres de formato cilíndrico. Essa característica também pode ser encontrada nas igrejas de Nossa Senhora do Carmo, em Ouro Preto; e na igreja de São Francisco de Assis, em São João del-Rei. Rococó pernambucano Pernambuco, assim como o Rio de Janeiro, era privilegiado pela con- dição litorânea e encontrava sua economia fortalecida em função 96 das companhias de comércio regionais. Essa condição favoreceu a chegada das novidades das terras europeias, com forte influência das formas portuguesas do rococó. Afirma Oliveira (2001) que, as- sim como Minas, as manifestações do estilo ultrapassaram os in- teriores, atingindo aspectos externos das igrejas, como frontões e coroamento de torres. Merece destaque também o uso de azulejos portugueses, importados em larga escala, decorando o interior de construções religiosas; mono ou policromos com cabeceiras recor- tadas, como os dos claustros dos conventos franciscanos de Olinda e Recife. A ornamentação interna das igrejas pernambucanas, desse estilo, associavam a talha dourada, os azulejos e as pinturas, em uma composição integrada e harmônica. Os trabalhos de talha apre- sentavam a conjugação de referenciais eruditos portugueses com expressões dos artistas locais. Os retábulos, por sua vez, foram sen- do progressivamente liberados dos nichos tradicionais, ganhando como proteção, as sanefas, que tinham também caráter ornamental. Dos forros, abobadados e em tabuado corrido, possuímos poucos registros das pinturas em perspectiva, segundo Oliveira (2001), isto ocorre do fato de que muitos não chegaram mesmo a ser executa- dos, e outros porque foram arruinados em épocas posteriores. Arquitetonicamente, assim como nas demais regiões em que o rococó esteve presente, as plantas continuaram a ser retangulares, composta por nave única e capela-mor alongada. Constitui exceção apenas a Igreja de São Pedro dos Clérigos em Recife, com seu espa- ço interno poligonal. As fachadas apresentam particularidades em função do tratamento elaborado dos frontões, cada vez mais altos, com desenhos escultóricos de volutas, combinando curvas e con- tracurvas; pelo coroamento das torres em bulbos; e pelo movimento ondulatório da cimalha (OLIVEIRA, 2001). São exemplos: a Igreja Matriz de Santo Antônio; a Igreja da Ordem Terceira do Carmo; e a Igreja do Convento de Nossa Senhora do Carmo, todas localizadas em Recife. 97 SAIBA MAIS Conheça mais sobre o vocabulário específico relativo à arte sacra, bem como algumas das características estilísticas de talhas, retá- bulos e pinturas, acessando o “Guia de Identificação da Arte Sacra” do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Outros estilos do séculoou dez casas, as quais diziam que eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. E eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoável altura; e todas de um só espaço, sem repartição alguma, tinham de dentro muitos esteios; e de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. E de baixo, para se aquen- tarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma numa extremidade, e outra na oposta. E diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os en- contraram; e que lhes deram de comer dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na terra dá, que eles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar; e não quiseram que lá ficasse nenhum. A região que serviu de primeiro porto aos portugueses, hoje Porto Seguro, era habitada por duas nações indígenas do grupo lin- guístico tupi: os Tupinambás, que ocupavam a faixa compreendida entre Camamu e a foz do rio São Francisco; e os Tupiniquins em uma área que se estendia de Camamu até a fronteira entre Bahia e Espí- rito Santo. Seguindo para o interior, encontrava-se a área ocupada pelos Aimorés. A história dos povos pré-cabralinos A história dos antigos povos indígenas do Brasil é baseada em três ramos distintos de informação disponível atualmente, que são: os 10 relatos deixados pelos exploradores e pesquisadores, que visitaram o país nos séculos que se seguiram ao “descobrimento”; as pesqui- sas realizadas por arqueólogos em sítios antes habitados por esses povos; e os trabalhos realizados, principalmente por etnólogos, nas últimas décadas que nos permitem conhecer a cultura e os costumes atuais dos povos indígenas. Os exploradores europeus faziam levantamento das terras a fim de informar à coroa portuguesa o que haviam encontrado nas novas terras do rei. Outra parte dos relatos antigos foi feita por na- turalistas que, curiosos sobre o “novo mundo”, vieram ao Brasil com intuito de conhecer as suas terras. Segundo Derenji (2002, p. 26-27), foram várias as expedições realizadas nos primeiros sécu- los após o “descobrimento”. A expedição de Palmier de Gonneville chegou a Santa Catarina em janeiro de 1504 e em seus relatos cons- tam referências às tribos nativas e às suas habitações. A expedição do normando Jean de Léry visitou o país no pe- ríodo de 1555 a 1557 e o pesquisador faz um relato minucioso sobre a cultura dos povos nativos, mas segundo Derenji (2002, p. 26-27) sem abordar sua arquitetura. O autor cita ainda o explorador alemão Hans Staden, que fez duas viagens ao Brasil, respectivamente, em 1548 e em 1551, deixando descrições sobre as aldeias dos Tupinambá onde foi feito prisioneiro. Formam aldeias de trinta, quarenta, cinquenta ou oitenta cabanas, feitas à maneira de galpões com estacas unidas umas às outras, ligadas por ervas e folhas, com as quais os ditos habitantes são igualmente cobertos; e têm por chaminé um buraco, para fazer sair fumaça. As portas são bastões corretamente ligados; e eles as fecham com chaves de madeira, quase como as que usam, nos campos da Normandia, nos estábulos (STADEN, 1945 p. 35, apud DERENJI, 2002, p. 27). A expedição do normando Jean de Léry visitou o país no pe- ríodo de 1555 a 1557, período em que o pesquisador faz um relato minucioso sobre a cultura dos povos nativos, mas sem abordar a arquitetura, segundo Derenji (2002, p. 26-27). O autor cita ainda 11 o explorador alemão Hans Staden, que fez duas viagens ao Brasil, respectivamente, em 1548 e em 1551 e deixou descrições sobre as aldeias dos Tupinambá onde foi feito prisioneiro (STADEN, 1945 p. 35, apud DERENJI, 2002, p. 27): Levantam cabanas de mais ou menos 14 pés de largura por 150 de comprimento e duas braças de alto, com tetos redondos, como abóbada. Cobrem-nas depois com folhas de palmeira de modo que não chova dentro. Ninguém tem quarto separado; cada casal ocupa na cabana um espaço de uns 12 pés, e fica um casal ao lado do outro. Enchem-se, assim, as cabanas, cada grupo com seu fogo. O chefe ocupa o centro. As cabanas em geral têm três entradas, uma em cada extremo e uma no centro, são muito baixas, de modo que, para en- trar, as criaturas precisam curvar-se. Poucas aldeias têm mais que sete dessas cabanas. A história do explorador alemão Hans Staden virou filme em 1999. O relato se passa no século XVI, durante a segunda viagem de Staden ao Brasil. Dois anos após sua chegada, ele foi capturado pelos Tu- pinambás, da tribo Ubatuba no litoral de São Paulo, dos quais per- maneceu refém por nove meses. Quando foi libertado e voltou para Europa, Staden lançou o livro “Duas Viagens ao Brasil”, publicado originalmente, em 1557, na Alemanha. O livro foi um grande sucesso na época de lançamento e, ainda hoje, é considerado um dos mais importantes documentos sobre o Brasil Colônia. A direção do filme “Hans Staden” é de Luís Alberto Pereira. Vale a pena conferir! Outros registros importantes sobre os costumes dos povos indígenas, realizados nessa fase inicial da colonização do Brasil, são citados ainda por Derenji (2002, p. 28), um deles é o trabalho de Ferdinand Dénis publicado pela primeira vez em 1888. Neste estudo são descritos os costumes e as habitações dos Tupinambás. FIQUE DE OLHO 12 Outra fonte de informação sobre a história dos povos do Brasil pré-colonial são as pesquisas arqueológicas contemporâneas, que permitem a obtenção de dados sobre os povos que viveram no Brasil durante o início do período colonial. Eles estudam os vestígios dei- xados pelas tribos que já não existem, buscando construir um qua- dro da cultura desses povos. No Brasil, essa tarefa se caracterizava como particularmente difícil, porque os ameríndios que habitavam a América Portuguesa utilizavam como principal matéria-prima, tanto de suas construções quanto de seus artefatos do uso cotidiano, a palha, um material frágil e de duração curta em comparação, por exemplo, com as civilizações indígenas da América Espanhola, que utilizavam pedra como matéria-prima de suas construções, assim como os Incas, os Astecas, entre outros povos. Somam-se ainda os estudos etnográficos realizados por an- tropólogos, etnógrafos, arquitetos, entre outros tantos pesquisado- res, que visitam as tribos remanescentes nos nossos dias e, a partir destes dados, tentam identificar o que ainda é original de seus an- tepassados; quais costumes e tecnologias foram mantidas através do tempo e podem servir como testemunho de costumes da época; para que possamos ver o que não foi transformado mediante o con- tato com a civilização ou com os povos ditos “civilizados”; e quais costumes foram adquiridos e adaptados à realidade atual. Todas essas obras contêm testemunhos de povos que desa- pareceram ou mudaram seu modo de ser. Com base nesses estudos e relatos, é possível obter dados sobre o tamanho das comunidades, movimento das populações, relações entre as tribos e as influências externas sofridas. Face à ruptura demográfica e social promovida pela colonização portuguesa, é preciso entender que os padrões de organização social e de manejo dos recursos naturais das popula- ções indígenas que ocupam o território brasileiro atualmente ofere- cem indícios dos padrões das sociedades pré-coloniais. Na realidade, o processo de colonização causou o extermínio de milhares de indígenas. Isso, porque o contato direto e indire- to com os europeus deixa a população indígena exposta a diversas doenças por eles trazidas, além da violência contra os grupos que tentavam resistir à colonização. Com efeito, a população que se acredita ter sido de milhões caiu para cerca de 150 mil em meados do 13 século XX. Apesar da impossibilidade de se quantificar a população indígena do período colonial com exatidão, o arqueólogo Eduardo Góes Neves indica estimativas de que “a população nativa do con- tinente chegava, à época da conquista, a mais de cinquenta e três milhões de pessoas,XVIII É sempre tarefa complicada encaixar as manifestações artísticas em “gavetas”, ou tentar colocar “etiquetas”, a partir de semelhan- ças encontradas em diversos exemplares. Mas é isso que a história da arte e da arquitetura basicamente tenta fazer, seja para melhor compreender essas manifestações e suas relações com outros as- pectos da história (social, política, econômica etc.), seja para faci- litar o ensino. Apesar dos estilos característicos do século XVIII serem o barroco e o rococó, já abordados até aqui, há historiadores que iden- tificam outros, em função de suas peculiaridades, que podem con- figurar um afastamento dessas correntes principais. Vejamos então os chamados estilo pombalino e o estilo Aleijadinho. O Estilo pombalino teve como matriz a arquitetura erigida na reconstrução de Lisboa, promovida pelo Secretário de Estado, Mar- quês de Pombal, logo após o terremoto de 1755. Por contenção de despesas e pela necessidade de rápida solução, foi empregada uma forma de construção mais simplificada, mais rígida, retornando à matriz clássica. Tais construções foram caracterizadas pelas facha- das planas e inteiramente revestidas em pedra, com ornamentação concentrada nas portadas, painéis e sobrevergas, torres em forma de bulbo e frontões contracurvados com terminação em ápice, como os que vemos no Rio de Janeiro, nas igrejas da Ordem Terceira do Carmo e de São Francisco de Paula. Nos interiores, predomina o re- vestimento em mármore, ou a pintura marmorizada. 98 Mas o estilo desenvolve-se, aqui no Brasil, de forma particu- lar. Nos interiores há a preferência pela talha, mas sem o trabalho de douramento, adotando-se a decoração rococó, já nas fachadas, a preferência se dá pelo emprego do contraste da pedra com o bran- co, como na Igreja da Candelária no Rio de Janeiro. Sobre essa igre- ja e seu caráter criativo, descrevem Carvalho et al. (2000, p.10): “A leveza da sua composição resulta em grande parte do movimento suave e ondulante obtido pela diferença na altura e no perfil das so- brevergas curvas dos vãos, cuja forma é enfatizada pelos painéis de cantaria que as encimam”. A Igreja da Ordem Terceira do Carmo, da qual destacamos anteriormente suas feições barrocas da fachada, impressas na cor- nija, no frontão e nos capitéis de ordem gigante, são mais especifi- camente enquadradas por Oliveira (2001), como características do pombalino. Não é um erro ou um contrassenso estas duas visões, já que o pombalino pode ser classificado como um barroco tardio, sendo esse o gosto empregado nas reconstruções lisboetas. Conta a autora que as formas do pombalino aqui aportaram sobretudo pelos elementos ornamentais de pedra lioz, importados e vindos de Portugal como lastro dos navios comerciais. Não por aca- so, ele ocorre somente em duas cidades brasileiras que por conjun- tura política estiveram mais ligadas à Lisboa nesse período: o Rio de Janeiro, transformada em capital dos vice-reis a partir de 1763, e Belém do Pará, capital do extremo Norte, que teve como governa- dor, a partir de 1751, um irmão do Marquês de Pombal. Além da introdução dos elementos em pedra lioz em Belém, marco fundamental na adoção do estilo pombalino nessas terras, outro fator importante foi a presença do arquiteto italiano Anto- nio Giuseppe Landi, que ali permaneceu por quase quatro décadas, desde 1753. Suas primeiras intervenções ocorreram em igrejas com construção já adiantada, de planta retangular, onde, além das por- tadas e molduras já previstas em projeto, adicionou frontões con- tracurvados e coroamentos de torres de inspiração bolonhesa (sua terra de origem). O projeto da Matriz de Santana e o da Igreja de São João Batista são integralmente concebidos por ele, conectan- do- se diretamente à tradição italiana, configuradas com plantas de 99 espaços centralizados com cúpulas e sem torres, apesar da primeira tê-las recebido posteriormente (OLIVEIRA, 2001). O Estilo Aleijadinho foi o termo cunhado pelo historiador John Bury, em 1955, para delimitar as obras do Mestre Aleijadinho, já que elas apresentam traços tanto barrocos quanto rococós, não se encerrando, assim, em nenhum dos dois estilos. Abarca um total de cinco construções que são a ele integralmente atribuídas: Igrejas da Ordem Terceira do Carmo e de São Francisco de Assis em Ouro Preto; as de mesmo nome em São João del-Rei; e o adro da Igreja de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo. Cabe dizer, contudo, que Aleijadinho também executou trabalhos em outras obras, mas esses de forma parcial, sendo interpretado como mode- los de transição pelo historiador. O estilo teve caráter ocasional, de forma que seu momento criativo se restringe, basicamente, ao último quartel do século XVIII. Poucos artistas aderiram. Além do próprio Aleijadinho, os pedreiros Domingos Moreira de Oliveira e Francisco de Lima Cerqueira, bem como o pintor Manoel da Costa Athaíde. O estilo não apresentava novidade em si, explica Bury (2001, p.117): A originalidade está em sua combinação, na maneira como foram empregadas. O aspecto mais nítido e marcante é a ornamen- tação externa esculpida em alto-relevo, essencialmente associada à atuação do próprio Aleijadinho. A pedra-sabão local [...] permite que seja trabalhada tão facilmente quanto a madeira, o que possibilitava aos escultores mineiros a obtenção de efeitos ornamentais e delica- deza extraordinárias. Bury (2006) considera a expressão máxima da obra de Aleija- dinho, representando-o de modo mais completo, a igreja São Fran- cisco de Assis, de São João del Rei. Apesar da fachada apresentar o traçado habitual português para igrejas matrizes, os princípios do tratamento maneirista foram abandonados. Especialmente nas tor- res, onde apresentam formato cilíndrico, e são encimadas por cú- pulas semi-ovais coroadas por obeliscos. A nave da igreja é elíptica e a porta principal é precedida por uma escadaria monumental, com acesso ao adro. 100 O autor delineia, em linhas gerais e do ponto de vista arqui- tetônico, como traços típicos do estilo, o tratamento refinado da or- namentação de fachadas e os efeitos alcançados pelo uso de seções curvas nas paredes, combinadas de forma harmônica entre si, e com as superfícies planas adjacentes. Processo de urbanização no Brasil colonial (1750-1822) A descoberta do ouro na Capitania de Minas Gerais contribuiu para o processo de interiorização do Brasil. Os locais de mineração passa- ram a atrair pessoas de todos os tipos. Nos primeiros anos, “diversos arraiais nasceram e desapareceram, alguns sem deixar notícias de sua existência” (MENDES et al, 2010a, p.35), pois tratava-se do ouro de aluvião, que rapidamente se exauriu. Somente com a exploração das minas de ouro e diamante, ocorreu de fato a fixação de arraiais, normalmente no fundo dos vales e próximos às regiões de interes- se, erigindo-se neles construções mais duradouras. Nesse período, apareceram núcleos urbanos como Vila Rica (atual Ouro Preto), Vila do Carmo (atual Mariana), São João del-Rei, entre outros. Contribuíram também para esse processo de interiorização, os bandeirantes, que faziam expedições em busca de metais precio- sos e de índios; e a pecuária, cujo produto, que servia à força tração e à alimentação, era necessário tanto nas regiões mineiras, como nas fazendas de cana-de-açúcar ainda existentes. Surgiram assim, vilas nas estradas e caminhos que compunham a rota do ouro (in- clusive na sua conexão com os portos escoadouros), bem como nos da rota do gado (cuja criação se dava em áreas longínquas, como no sertão da paraíba e nos pastos na região sul, gerando longos deslocamentos). A importância econômica da região mineira acabou contri- buindo ainda mais com a transferência da capital para o Rio de Ja- neiro, em meados do século XVIII, pela maior proximidade do novo polo econômico. Essa mudança, associada também aos movimentos migratórios, acabou “esvaziando de importância” regiões, até en- tão, prósperas do Nordeste brasileiro,como a Bahia. 101 Esses processos marcam uma nova etapa de urbanização no Brasil, com o rápido aparecimento de cidades e vilas, especialmente ao longo dessas rotas, a partir da segunda metade do século XVIII. A rapidez com que surgiram as vilas mineiras ajudam a ex- plicar o traçado irregular de sua malha, aspecto fortalecido pelas necessidades de adequação topográfica, entre morros e vales. Mas, além de Minas, foram muitas as vilas que surgiram ao longo do sé- culo XVIII, decorrentes de processos diversos. Santos (1968) nos fornece um panorama amplo de exemplos, que evidenciam a di- versidade de suas origens: Goiás (hoje Goiás Velho) e Cuiabá foram fundadas por bandeirantes; Manaus e Macapá foram fundadas nas proximidades de fortificações; Barcelos foi fundada por religiosos da ordem carmelita; e Mazagão, por um “mameluco aventureiro ‘audacioso e intrépido’” (SANTOS, 1968, p.63). Percebe-se, sobretudo a partir da metade do século XVIII, a preferência pelos traçados ortogonais naqueles núcleos urbanos implantados a partir de projetos, tanto por influência da Engenharia Militar quanto pela proximidade dos modelos hispânicos de cida- des. Santos (1968) observa que a opção pelo desenho xadrez perfei- to, seguida pelos militares se deve à essa influência hispânica, num momento marcado pelas aproximações entre os dois povos, espe- cialmente em função do Tratado de Madri (1750), que ensejou tra- balhos relativos à demarcação das novas fronteiras. Pará, Amazonas e Mato Grosso foram percorridos pelos engenheiros da Comissão de Demarcação, onde, dentre outros, estava Landi, que, como já vimos, teve grande destaque no projeto de igrejas em Belém. Propagou-se, assim, a malha xadrez, cuja rigidez só era dis- torcida em função da presença de acidentes geográficos. Esse foi o caso, por exemplo, de Mazagão (AP), elevado a vila em 1770, cuja monotonia da malha xadrez foi rompida pela necessária adequação aos alagadiços, igarapés etc. Mas não foi o caso de Vila Bela da San- tíssima Trindade (MT), cujo terreno permitiu a implantação do tra- çado retilíneo quase perfeito, com a praça quadrada e ruas partindo ortogonalmente dos cantos, seguindo quase à risca os traçados his- pânicos como os de Buenos Aires e Santiago do Chile. (SANTOS, 1968). 102 Os estilos arquitetônicos eram empregados nas construções de maior porte – nas construções religiosas ou das classes mais abastadas. No geral, a arquitetura de menor porte seguia um padrão muito semelhante ao do século anterior, isto é, com a edificação co- lada nas divisas laterais e frontal do lote, espaço ao fundo para o quintal, e coberta com telhado capa e canal com cumeeira paralela à rua. Explica essa persistência a configuração da própria sociedade, ainda escravocrata, que mantinha o mesmo esquema de uso das ha- bitações e os mesmos métodos construtivos tradicionais. A implantação no lote praticamente não se alterou, seguiu-se o mesmo padrão por praticamente todo o período colonial. Algumas pequenas alterações foram sendo realizadas, sobretudo em função de novos materiais. Reis Filho evidencia algumas, ao descrever um conjunto de sobrados daquela época ainda existente na rua do Cate- te, no Rio de Janeiro: Sua aparência difere apenas em pequenos de- talhes das construções coloniais. Em alguns a porta de entrada, maior do que as outras, ocu- pando posição central, abre para um saguão relativamente amplo, valorizado por barras de azulejos coloridos e pela presença de uma escada de madeira torneada. Em outros, como nos velhos modelos descritos por Debret, essa passagem corresponderia ao acesso às es- trabarias do quintal e abrigo para carruagens (REIS FILHO, 1997, p. 36). A economia mineradora ajudou a conformar áreas com uma população de caráter expressivamente urbano. O fluxo de metais e pedras preciosas promoveu o enriquecimento de camadas da po- pulação residentes nas vilas e cidades; além do incremento e da diversidade de atividades comerciais e relações sociais que ali se es- tabeleciam. Ocorreu, assim, um processo de adensamento das áreas urbanas que, sem uma infraestrutura de serviços adequada, piorou a qualidade de vida da população residente. Desse modo, no século XVIII, apareceu a tipologia das casas de chácaras, um meio termo entre a morada urbana e a rural, localizadas nas periferias das vilas e cidades, para onde se deslocou a população mais abastada (MENDES 103 et al., 2010a). O novo arranjo resolvia a questão de abastecimento, constantemente em crise nas zonas urbanas. Nas chácaras, além da criação de alguns animais e da plantação de subsistência, alia- ram-se as vantagens da proximidade aos cursos d’água, suprindo a carência dos equipamentos hidráulicos das áreas urbanas (REIS FILHO, 1991). Somente com a vinda da família real, em 1808, e a conse- quente abertura dos portos às nações amigas, naquele mesmo ano, é que ocorreram alterações mais significativas nos esquemas de im- plantação e configuração arquitetônica, viabilizadas pela introdu- ção em massa de novos materiais construtivos. Além disso, um novo estilo arquitetônico começa a despontar no início do século XIX: o neoclássico. O filme brasileiro Carlota Joaquina, princesa do Brasil conta a história da rainha, esposa de Dom João VI, registrando sua vida na corte portu- guesa e depois em terras brasileiras. Recomendamos o filme não só pela diversão, mas também pelo registro e reconstituição de época, fornecendo um bom retrato do Brasil em princípios do século XIX. Introdução ao neoclassicismo O neoclassicismo é o nome dado ao estilo arquitetônico que reto- ma a matriz clássica da Antiguidade greco-romana, já interpretada pelo Renascimento. Pautado nos ideais iluministas e classicizantes, Rocha-Peixoto (2000), identifica sua entrada no Brasil ainda em meados do século XVIII, interpretando alguns exemplares arqui- tetônicos associados ao estilo pombalino por outros autores como neoclássico. Foi principalmente por meio do Marquês de Pombal que uma nova racionalidade se instalou oficialmente no país. DICA 104 No entanto, podemos dizer que somente a partir da chega- da da família real ao Brasil, em 1808, o neoclassicismo começa a se firmar como tendência da arquitetura oficial, especialmente no Rio de Janeiro, cidade que comportou os membros da coroa portuguesa e sua comitiva. Some-se a esse evento, a vinda da Missão Francesa, logo após, em 1816, e a abertura da Academia Imperial de Belas Ar- tes, em 1826, que tiveram papéis fundamentais e estruturantes na aceitação e propagação desse estilo, que vigorou ao longo de quase todo o século XIX. A arquitetura neoclássica, difundida pela Academia, era mar- cada pela composição rígida de elementos tomados do vocabulário clássico, caracterizado pela simplicidade das formas e constância das proporções (ROCHA- PEIXOTO, 2000, p.34). Essas caracterís- ticas eram mais facilmente perceptíveis nas construções de cará- ter excepcional, como edificações públicas e residências da classe dominante. Entre o casario do centro da cidade, a adoção do estilo limitou-se, quando muito, ao emprego simplificado do vocabulá- rio clássico, que passava a revestir superficialmente construções já existentes. No que diz respeito a essa arquitetura popular, modificações mais significativas se deram sobretudo em função da entrada em maior volume de materiais de construção, como o ferro e o vidro. A possibilidade da execução de calhas, por exemplo, permitiu es- conder os telhados pelo uso das platibandas, bem como a execução de desenhos mais elaborados de cobertura. Assim, as construções urbanas ao longo do século XIX foram progressivamente se afas- tando das divisas, recebendo aberturas nas fachadas laterais, que passaram a iluminar e ventilar cômodos que antes permaneciam na penumbra. Entretanto, para essa introdução, vamos nos concentrar na arquitetura erudita, aquela que serviu ao gosto oficial do recém- -instaurado Império do Brasil. Características do Neoclassicismo no Brasil:◼ influência das ideias do Iluminismo, ligadas à razão; ◼ valorização de temas e padrões estéticos da arte; ◼ clássica da Antiguidade Ocidental; 105 ◼ valorização da simplicidade e pureza estética, em contraste com o Barro e o Rococó. O sistema Beaux-Arts Retomemos antes, como era o ensino da arquitetura e da engenha- ria na França e que constituiu a base de referência para o neoclas- sicismo brasileiro. O denominado Sistema Beaux-Arts surgiu em princípios do século XIX, fruto da união dos processos de projeto da École des Beaux-Arts e da École Polytechnique. Segundo Mendes et al. (2020b), os arquitetos da École des Beaux-Arts se pautavam num processo de projeto com base na composição tipológica, cujo re- pertório era buscado nos partidos da Antiguidade Clássica, ou seja, templos, panteões, arcos do triunfo, basílicas etc. A preferência por essa linguagem e repertório vinha de encontro à necessidade de re- presentar os regimes políticos – de base republicana –, surgidos após as Revoluções Francesa e Americana, erigindo-se monumen- tos de ares clássicos imponentes e destacados na paisagem. Já os engenheiros da École Polytechnique se baseavam em um método de projeto criado pelo professor Jean-Nicolas- Louis Durand, em que tomava por base a coluna como elemento de comando da composição. Projetava- se a partir de um quadrado re- ticulado, de forma que “a planta era caracterizada pela modulação, simetria axial e ritmo constante, determinando sempre o sistema construtivo que poderia ser composto de paredes, arcadas, corpos de edifícios, pátios interior” (MENDES et al, 2010b, p.37). O método atendia às necessidades das novas tipologias arquitetônicas surgi- das durante a Revolução Industrial, entre o século XVIII e XIX, como fábricas, estações ferroviárias, hospitais, escolas, entre outros. Pelo método, os engenheiros livraram-se da necessidade de relacionar a linguagem da construção à alguma referência da Antiguidade, con- ferindo grande flexibilidade aos arranjos. Os modelos tipológico e metodológico de composição se uni- ram e formaram o sistema Beaux-Arts, que foi usado durante todo o século XIX. Mendes et al. (2010b), ainda explicam que, para que o processo tipológico não ficasse esvaziado, Quatremère de Nancy 106 criou os conceitos de decoro, linguagem e caráter próprio, atributos, que deveriam ter a obra arquitetônica, como elementos prévios ao processo projetivo. Essas diretrizes se somaram à metodologia de Durand. Missão Francesa e a linguagem acadêmica No Brasil, o estilo neoclássico passou a vigorar efetivamente a partir do funcionamento da Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro, isto é, já depois da Proclamação da Independência. A Missão Francesa, chefiada por Joachim Lebreton, trouxe uma leva de artis- tas para o país, dentre os quais estava Jean-Baptiste Debret, pintor e desenhista, cujos registros, até hoje, nos ajudam a delinear como era a vida em terras brasileiras nas primeiras décadas do século XIX. Entre outros, veio também, o único arquiteto da comitiva, Grand- jean de Montigny, a quem pode ser atribuído o papel de responsável pela introdução do ensino regular de arquitetura no país. Em termos de linguagem, o neoclassicismo rejeitava a pro- fusão ornamental do rococó e do barroco tardio, prezando por uma linguagem mais simples e austera. No entanto, “não significou a re- jeição de qualquer forma de ornato, mas apontou para a escolha dos temas decorativos passíveis de serem racionalmente justificados” (ROCHA-PEIXOTO, 2000, p.26). A linguagem era formada a par- tir do vocabulário clássico, ajustado dentro de um rígido padrão de composição, conforme os preceitos do Sistema Beaux-Arts. O Rio de Janeiro, por sua centralidade e importância política naquele momento, tornou-se o centro irradiador da tendência clas- sista. A instalação da família real na cidade deu início a uma série de transformações urbanas e incrementou as atividades econômicas. Instaurou-se sem dúvida uma nova urbanidade. Foram criadas ins- tituições como o Banco do Brasil, a Biblioteca Real e o Jardim Botâ- nico. O neoclassicismo como linguagem arquitetônica atendia aos novos paradigmas e uma série de construções com essas feições de releitura clássica foram construídos na cidade, a exemplo do prédio da antiga Casa da Moeda (atual Arquivo Nacional), e da antiga Praça 107 do Comércio (atual Casa França Brasil), esse último, projeto de au- toria do próprio Grandjean de Montigny. Nesta unidade, você teve a oportunidade de: • aprofundar o conhecimento sobre o barroco brasileiro, a partir de suas escolas regionais, podendo perceber como a linguagem artística proveniente da Europa foi recebendo contornos e ca- racterísticas locais; • conhecer o estilo rococó, um novo gosto artístico que teve seus reflexos aqui no Brasil já em fins do século XVIII, cuja preferên- cia era por uma linguagem mais leve e suave se comparada aos tons fortes e carregados do barroco; • distinguir as características gerais do barroco e do rococó; • aprender sobre outros estilos que se desenvolveram no Brasil durante o século XVIII derivados das correntes predominantes: o estilo pombalino, em referência à arquitetura da reconstru- ção de Lisboa e que ficou restrito ao Rio de Janeiro e à Belém do Pará; e o estilo aleijadinho, em referência à obra do Mestre An- tônio Francisco Lisboa (Aleijadinho) e que ficou restrito à Minas Gerais; • compreender o processo de urbanização no Brasil a partir da se- gunda metade do século XVIII, com a preferência pelo desenho urbano em malha xadrez, que podia apresentar pequenas dis- torções a depender do sítio de implantação; • entender que houve pouca alteração na arquitetura popular, ordinária, que acabou mantendo as características do século anterior; • iniciar seus conhecimentos sobre o estilo neoclássico, sabendo sobre sua origem francesa e como passou a figurar como ten- dência dominante, a partir de princípios do século XIX. 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Calcula-se que antes do “descobrimento” eram faladas mais de 1300 línguas nativas. Atualmente, são contabilizadas 274 lín- guas pelo IBGE, mas muitas delas correm risco de desaparecer, pois possuem poucos falantes e não estão devidamente documentadas. As línguas indígenas se dividem em dois grandes troncos linguísti- cos, o tupi e o macro-jê. O total de tribos classificadas chega a 216 (IBGE,2010). Os povos indígenas brasileiros são formados por diferentes grupos étnicos, que formam parte do grupo maior dos povos ame- ríndios que habitam o Brasil. Estudos arqueológicos recentes esta- belecem a chegada dos primeiros habitantes do Brasil à Bahia e ao Piauí entre 20 mil e 40 mil anos atrás. No início do século XVI, quando tem início a colonização do Brasil, a população nativa era composta por tribos seminôma- des que viviam da coleta, caça, pesca e agricultura de subsistência. Periodicamente, a aldeia mudava de lugar, conforme os recursos naturais das regiões ocupadas se esgotassem. Essa transferência permitia que as áreas, antes ocupadas e exploradas pelas tribos, ti- vessem tempo de se recuperar e voltar a produzir. 14 Formas de morar e viver dos indígenas Figura 1 - Indígenas brasileiros Fonte: Shutterstock. #PraCegoVer: Na imagem, há 3 índios fazendo um ritual. Os povos ameríndios espalhados pelo continente americano possuem características bastante diversas, algumas delas baseadas no ambiente em que existiam. Em outros países da América do Sul, os ameríndios desenvolveram uma arquitetura bastante diversa dos povos situados no Brasil e países limítrofes. As construções andi- nas de pedra e outras construções de material duradouro, como a argila, descobertas pelos arqueólogos, são testemunhos de civiliza- ções altamente desenvolvidas, urbanas e letradas, que viviam em uma sociedade complexa e com alta capacidade tecnológica. Alguns grupos chegaram a desenvolver grande poderio militar e riqueza material, realizando grandes obras de engenharia para adequação do ambiente natural ao seu redor. Os povos radicados no Brasil, se- parados dessas culturas intensamente aprimoradas, permaneceram 15 silvícolas e seminômades e, assim, desenvolveram uma arquitetura leve e relativamente “efêmera”, em acordo com o modo de vida de- les, construída a partir dos materiais disponíveis e de rápida cons- trução, já que a aldeia mudava de lugar de acordo com a época do ano. Desse modo, o domínio das técnicas de fabricação, tanto de artefatos quanto de arquitetura, foi essencial para a adaptação das tribos brasileiras ao meio ambiente (COSTA e MALHANO, 1986). O granito, encontrado em grande quantidade no Norte de Portu- gal, era uma matéria-prima muito utilizada na construção castreja, mesmo antes dela e também depois pelos romanos, que permanece até os dias de hoje. Existe, em função do uso de matérias-primas distintas na arquitetura, a definição de civilização do granito para a região norte e civilização do barro para região sul (RIBEIRO, 2013, p.17-45). Aldeias É preciso definir os termos estabelecimento, aldeia e casa, para avançar em relação ao estudo dos tipos de construções indígenas. O estabelecimento compreende toda a área usada pela tribo, incluin- do locais de caça, água, onde pescam ou se banham, e também os caminhos que levam a eles. A aldeia engloba o conjunto de casas, a área comum, chamada de praça e os caminhos que percorrem esses dois espaços. Já a casa, é a construção que abriga as famílias e seu tamanho e a quantidade de habitantes varia de acordo com a tribo. De forma geral, as tribos se apresentam como sociedades co- munais, descentralizadas, mas com certo grau de hierarquia com papéis sociais nítidos e divisão de trabalho entre homens e mulhe- res. As tribos são compostas por várias aldeias ligadas por paren- tesco ou interesses comuns. A forma das aldeias varia em função FIQUE DE OLHO 16 das tradições relativas a cada tribo. Podemos classificá-las confor- me a planta de situação em três tipos: aldeias circulares, lineares e retangulares. O formato da planta de situação das aldeias circulares pode variar entre o círculo fechado, dois semicírculos ou arco de círculo. A planta circular de situação é amplamente difundida, sendo en- contrada na Amazônia, na região da bacia do Rio Xingu e na região central do país, no planalto Mato-Grossense. Na época do “desco- brimento” era o modelo utilizado pelos Tupinambás (Tupi) da faixa litorânea. Muitas das aldeias de conformação circular apresentavam uma paliçada exterior circundando a aldeia e outra “paliçada inter- na, em forma de linha poligonal quebrada” (COSTA e MALHANO, 1986, p. 29). Os Yawalapiti vivem no Alto Xingu, sua população atual é 260 pessoas e pertence ao tronco linguístico aruak. O primeiro contato historicamente registrado dos Yawalapiti com não indígenas ocor- reu em 1887, quando foram visitados pela expedição do etnólogo alemão Karl von den Steinen. (ISA, 2019a). Seguindo o padrão alto- xinguano, a aldeia yawalapiti é circular. As casas são dispostas ao redor da praça, espaço destinado a atividades comunitárias como celebrações, rituais, assembleias, entre outras. No centro da pra- ça fica localizada a casa-dos- homens ou casa das flautas e é nesta casa que os homens se reúnem para realizar atividades exclusiva- mente masculinas. A entrada das mulheres é proibida, salvo em al- gumas ocasiões. A casa das flautas tem construção semelhante às residências, as flautas sagradas apapálu ficam penduradas na viga mestra e são utilizadas nos rituais da tribo. As casas abrigam várias famílias, aparentadas entre si e seu tamanho varia de acordo com o número de moradores. Cada casa forma uma unidade autônoma em relação às outras e contam com uma cozinha e um depósito de alimentos comuns a todos habitantes. No espaço interno da casa as famílias armam redes contiguamente. À noite, a casa é fechada com portas feitas de madeira e palha e cada família acende uma pequena fogueira próxima a suas redes para re- gular a temperatura interna. 17 As aldeias lineares são alinhadas paralelamente às margens do rio, em uma ou duas fileiras de casas. A circulação principal é fei- ta em frente as casas por um caminho que ladeia o rio e um caminho secundário contorna a parte de trás. A casa-dos-homens fica a uma certa distância das casas e possui um caminho de acesso separado dos outros. As aldeias Karajá estão localizadas nos Estados do To- cantins, Mato Grosso, Goiás e Pará. Os Karajá, atualmente, têm uma população de 3768 pessoas e suas aldeias, antigas e recentes, são constituídas de alinhamentos de casas paralelas ao rio Araguaia, podendo ocorrer um, dois ou mais arruamentos formados pelas fi- leiras de casas; ou ainda, uma única fileira. Antigamente, a aldeia dos Karajá não era fixa variando sua localização de acordo com a época do ano. Na estação das chuvas, as casas eram construídas afastadas das margens do rio, possuíam estrutura de madeira e a cobertura de palha cobria toda a casa, até o chão. Na estação seca eram construídas casas mais simples, cons- truções estacionais, por estarem próximas das margens do rio, fa- cilitavam o abastecimento de água e a pesca. Atualmente, esse ciclo de construção estacionais foi abandonado e as aldeias se fixaram em locais permanentes. Entre os textos etnográficos mais antigos, há a rica descri- ção de Paul Ehrenreich, que visitou os Karajá em 1888, depois de ter participado da segundo viagem de Karl von den Steinen ao Alto Xingu. Lançado em Berlim em 1891, seu trabalho foi traduzido para o Português por Egon Schaden e publicado com introdução e notas de Herbert Baldus em 1948, com o título Contribuições para a Etno- logia do Brasil, que se inicia com a seção“As tribos Karajá do Ara- guaia (Goiás)”. Depois temos a descrição bastante confiável de Fritz Krause, que viajou pelo Araguaia em 1908 e publicou Nos sertões do Brasil. Instituto Socioambiental (ISA, 2019b). A tribo dos Xavante tem uma população de cerca de 13.000 pessoas abrigadas em diversas Terras Indígenas que constituem parte do seu antigo território de ocupação tradicional há pelo menos 180 anos, no estado do Mato Grosso. Segundo o Instituto Socioam- biental (ISA, 2019c), o povo Xavante se dividia entre uma aldeia base e acampamentos temporários, construídos ao longo do ano, duran- te as migrações. As tribos se deslocavam por grandes distâncias, 18 pois viviam em meio a um conjunto de bacias hidrográficas respon- sáveis pela rica biodiversidade regional. Suas viagens eram longas, chegando a durar vários meses. Os grupos de viajantes se encon- travam em grandes aldeias semipermanentes para realizar rituais e atividades coletivas. Mesmo esses acampamentos temporários mantinham a composição original da aldeia base na forma de uma ferradura. Os grupos se mantinham em comunicação por meio de sinais de fumaça, para que pudessem se reunir durante e também ao final da expedição. Atualmente, o modo de vida seminômade foi abandonado pelos Xavante, pois grandes pedaços das terras habita- das pelos grupos foram ocupados pela agropecuária extensiva, em especial a produção de soja. Tipos de casas Apesar das semelhanças nos métodos construtivos e matérias-pri- mas empregadas pelas tribos brasileiras, é possível identificar as construções pertencentes aos diferentes grupos, pois tanto no nível ecológico como no social e no religioso, assim como nos meios de adaptação às características do terreno de implantação, as cons- truções apresentam uma grande diversidade. A escolha do sítio, o tempo de permanência no local, a quantidade de famílias que habi- tarão a casa e suas funções são fatores determinantes da forma final e variam de acordo com a tradição cultural de cada um dos povos. Sem dúvida, o material usado para a construção de casas e abrigos varia pouco: a matéria-prima é a madeira para esteios e tra- vessões, as folhas de palmeira para a cobertura e as tiras de embira para a amarração. Mesmo assim, podemos imediatamente reco- nhecer uma casa Xavante e distingui-la de uma casa Yawalapiti. Para uma compreensão adequada da função deste espaço ar- quitetônico, a casa deve ser considerada parte de contexto etnográ- fico mais amplo, em conjunto com os outros espaços ocupados pela tribo. As casas são pensadas em conjunto com os caminhos, praça e outras casas, não de maneira isolada. Para os grupos indígenas é, em geral, a aldeia o ponto para elaboração da identidade, um espaço 19 mais amplo que vai além das casas, englobando toda comunidade e o espaço territorial ocupado pelo grupo (SÁ, 1983, p. 119-125). As grandes casas Tukano abrigam uma comunidade inteira que, em seu interior, desenvolve tanto atividades cotidianas quanto grandes rituais. Neste caso, a importância atribuída à casa manifes- ta-se no requinte arquitetônico e decorativo. Para outros povos, a casa pode ser vista simplesmente como uma unidade, com funções específicas, dentro de um contexto espacial habitado mais amplo, como a aldeia, ou mesmo o território tribal, quando se trata de gru- pos seminômades. Embora as sociedades indígenas sejam muito diferentes umas das outras, é possível afirmar que, entre elas, não existe um alto grau de especialização do espaço. Isso não significa que o espa- ço nas sociedades indígenas seja homogêneo e indiferenciado, mas indica uma grande integração entre as atividades realizadas pelo grupo. O espaço de trabalho, convívio familiar, lazer e outros são sobrepostos coexistindo de forma harmoniosa. Algumas técnicas de construção, que otimizam os espaços habitados, são comuns a muitas tribos. Normalmente as casas têm um pé direito alto que facilita a ventilação do interior e funciona como uma espécie de chaminé, levando a fumaça das fogueiras para o alto, liberando a parte baixa habitada. As portas de entrada são baixas dificultando, propositalmente, o acesso por questões de se- gurança. A ausência de janelas e pouca altura das entradas mantêm o ambiente escuro afastando os insetos. Quando necessário, faz-se uma abertura temporária para a iluminação diurna. Nas casas de moradia, as entradas anterior e posterior cor- respondem a espaços com funções específicas, decorrentes da divi- são sexual de áreas e do conceito de espaço público e privado. Assim, as áreas de domínio masculino – abertas aos visitantes – são aque- las situadas à entrada principal da casa. As áreas de domínio femini- no se localizam em setores mais resguardados (COSTA e MALHANO, 1986, p. 68,73-74). Para facilitar o estudo, as casas indígenas serão divididas em grupos, considerando suas diferentes tipologias, classificadas em 20 cinco tipos básicos: casas com planta baixa circular, planta elíptica, retangular e poligonal. As casas de planta circular são comuns em vários grupos indígenas, apresentando uma grande variação na distribuição in- terna dos espaços, dos elementos estruturais e no formato de suas coberturas. As versões mais simples são compostas por apenas um elemento estrutural central de onde partem uma série de caibros flexíveis (taquaras cortadas ao meio), enterrados no solo formando uma cúpula, nos quais são atadas com cipó taquaras no sentido ho- rizontal, sobre as quais serão presas as folhas de palmeira formando a cobertura. Um exemplo deste tipo de construção é a casa Xavante, que possui um diâmetro de aproximadamente 7 metros altura de 4,5 metros com apenas uma abertura voltada para o centro da aldeia. Nesses espaços, podem viver duas ou três famílias (DERENJI, 2002, p. 41). Outro exemplo de casa de planta circular é a casa Tukussi- pan da tribo Wayana. A Tukussipan ocupa o centro da aldeia e exerce duas funções, a de casa-dos-homens e a de acolher grupos visitan- tes durante as festividades. A Tukussipan possui planta circular com diâmetro de apro- ximadamente 10 metros e altura total de 2 metros. Possui o teto em formato de cúpula e em seu centro o esteio central atravessa a co- bertura e projetando-se por mais um metro e meio. É composta por oito esteios na periferia além do central e não possui paredes (VEL- THEM, 1983, p. 171-177). As casas xinguanas dos Yawalapiti são belos exemplos de construções de planta elíptica. As proporções e a forma da casa tra- dicional xinguana variam, ligeiramente, de uma aldeia para outra e sua construção dura em torno de seis meses. Essas casas têm uma dimensão de aproximadamente 28 m de comprimento por 13 m de largura e altura de 8 m. Sua estrutura é formada por cinco pilares de madeira (ou esteios) com 50 cm de diâmetro e 10 metros de compri- mento. Os pilares recebem as peças da cumeeira e quatro estruturas em X, que fazem o apoio intermediário da cobertura, formando a estrutura da casa. A cobertura de palha se estende até o chão co- brindo toda a construção, mas internamente a casa conta com uma 21 parede formada por uma paliçada de troncos de 1,5 m de altura. Pos- suem duas portas opostas centralizadas em relação a lateral maior (SÁ, 1983, p. 119-125). As casas das aldeias Timbira têm, em geral, plantas de for- mato retangular, tendo como frente um dos lados maiores da cons- trução que, dependendo do grupo, pode ter a cobertura formada por duas ou quatro águas, feita de folhas de babaçu ou inajá. Do mesmo material são feitas as paredes. Toda a ligação é feita por amarração com cipó. Todas as folhas de palmeira são aplicadas em posição ho- rizontal, com os folíolos pendentes para um lado só. Algumas vezes, as folhas são aplicadas em sentido vertical, de ponta para baixo e com os folíolos em posição natural. Segun- do Ladeira, essa forma de construir parece ser a forma original dos Timbira construírem suas casas (LADEIRA, 1983, p. 22-27). Os Timbira atuais estão localizados nos camposdo cerrado do Maranhão e de Goiás. Suas aldeias são construídas em lugares planos, em solo não pedregoso e perto de córregos d’água. Nas proximidades deve haver mata ciliar para os roçados; quando, em consequência das derrubadas anuais, esta mata se acaba, a aldeia é reconstruída em outro lugar, de acordo com o Instituto Socioam- biental (ISA, 2019d). Os Timbira eram grupos seminômades, que vi- viam da coleta e da caça se deslocando durante os períodos do ano por uma vasta região. Por esse motivo, construíam acampamentos temporários, formados por abrigos simples, e tinham uma cultura de produzir artefatos de palha (ainda hoje são produzidos), como cestos para transportar ferramentas e utensílios, bem como para armazenar alimentos. As aldeias Timbira são circulares. Todas as casas estão loca- lizadas a mesma distância do centro da aldeia de onde partem ca- minhos ligando o centro a cada uma das casas. Um outro caminho circular passa pela frente de todas as casas, ligando umas às outras e formando dessa maneira uma divisão entre o espaço de produção da aldeia (produção doméstica das famílias e suas moradias), domínio das mulheres, e o pátio da aldeia, espaço dos homens. As casas são fechadas por paredes de todos os lados, mas, em alguns casos, a casa pode ter a parte da frente total ou parcialmente 22 aberta em substituição a porta frontal. A porta frontal está sempre voltada para o centro da aldeia e a ela corresponde uma porta dos fundos na parte de trás da casa (LADEIRA, 1983, p. 22-27). Como exemplo de casas indígenas de planta poligonal temos a casa-aldeia dos Marúbo. Casa-aldeia ou maloca é uma casa uni- tária que abriga toda a tribo e onde são realizados tanto os rituais quanto as atividades do dia a dia. Essas construções são mais co- muns entre outras tribos da região amazônica situadas na bacia do Rio Negro, fronteira com a Colômbia, que habitam a região a mais de dois mil anos. Pertencem às famílias linguísticas: Aruak, Maku e Tukano. Em algumas tribos a maloca possui divisões internas que se- param as famílias, mas durante festividades ou cerimônias, essas divisórias internas são rearranjadas para dar espaço às danças dos homens adultos. Os Marúbo vivem na terra indígena Vale do Javarí, junto com os Korubo, Mayá, Matis, Matsés, Kanamari, Kulina Pano, entre ou- tros povos isolados. É uma região cheia de pequenas colinas ligadas entre si por cristas e coberta pela floresta amazônica. As casas-aldeia dos Marúbo têm planta decagonal e são cons- truídas no alto das colinas e rodeadas por roças. Cada casa abriga um grupo local. Em volta do cimo da colina, onde está implantada a maloca, também existem casas sobre pilotis, que constituem depósitos ou oficinas. O tamanho da maloca é proporcional à quantidade de ha- bitantes. A casa Marúbo, assim como as casas alto-xinguanas, são construções antropomórficas, tendo cada uma de suas partes iden- tificada com as partes do corpo do Xamã. A maloca é construída seguindo um modelo padrão, cuja plan- ta baixa tem forma poligonal, irregular, de dez lados. Ela apresenta simetria em relação a um eixo longitudinal, em cujas extremidades são colocadas as portas da referida maloca. Os lados intermediários do decágono, situados nas extremidades de um eixo transversal, são maiores que os demais. Suas medidas variam entre 9 e 31 metros de comprimento, 7 e 17 metros de largura e 8 metros de altura. 23 A maloca apresenta um total de vinte e quatro esteios, sen- do oito centrais mais elevados e dezesseis periféricos dispostos em duas fileiras paralelas aos esteios principais. Terças de madeira são amarradas sobre o topo dos esteios e sobre elas apoiam os caibros que sustentam a cumeeira; já a cobertura é finalizada com folhas de jarina amarradas na horizontal, diretamente sobre os caibros. A estrutura das paredes é formada por uma paliçada de troncos finos fincados no chão, que têm cerca de um metro de altura, chegando até a altura da extremidade dos caibros, fechando toda a altura late- ral da construção (COSTA e MALHANO, 1986, p. 68,73-74). Métodos e materiais utilizados pelos indígenas Existem pequenas variações em relação aos materiais utili- zados na construção das casas indígenas, que ocorrem em função do local dos assentamentos e das espécies vegetais disponíveis. A estrutura principal das casas varia de acordo com a forma da planta e cobertura. As peças de madeira que formam a estrutura das casas são escolhidas por sua resistência e durabilidade e as di- mensões variam de acordo com o uso: esteio, viga, caibro ou ripa, que em alguns casos são substituídas por taquaras partidas ao meio. As taquaras, ou hastes de bambu, são flexíveis e, por isso, muito uti- lizadas em estruturas curvas como, por exemplo, as coberturas em abóbada ou ogiva. Nas casas circulares com cobertura cônica, uma ou duas séries de esteios suportam as vigas e o conjunto de terças e caibros que se curvam para definir a forma cônica ou a cúpula da co- bertura, como nas casas Tiriyó e Wayana Tukussipan. Caso se pre- tenda reforçar a resistência de tal elemento curvo, usa-se a técnica do enlaçamento das varas encurvadas com cipó. Isto era observado nas antigas casas Xavante e Karajá, nas Tapirapé e Tiriyó, e ainda no alto Xingu. Enfim, todas as construções cupulares e de cobertura com seção reta em ogiva ou abóbada (caso do alto Xingu) apresen- tam tal tipo de amarração. Na cobertura são utilizadas folhas de palmeiras como ubim, bacaba, açaí ou inajá, dependendo da disponibilidade do local. Uma exceção à regra do uso de folhas de palmeira é a casa xinguana, em 24 cuja cobertura é utilizado o sapé, preso à estrutura por meio do en- laçamento de molhos dessa gramínea. Para a fixação das folhas de palmeira nas estruturas tanto de cobertura quanto de fechamento é utilizada também a técnica de amarração cipós, sendo os talos das folhas presos ao ripamento. Quando as paredes são independentes da cobertura, o fechamento pode ser feito com a mesma palha, mas sendo trançada diretamen- te na estrutura. Outras formas de fechamento podem ser utilizadas, como a paliçada composta por estacas de madeira cravadas verti- calmente no solo, erguendo-se até o encontro com a cobertura. Em algumas construções são utilizadas cascas de árvore no fechamento. No alto Xingu a taipa também é muito utilizada, não só no fecha- mento como também na cobertura. Segundo Costa e Malhano (1986, p. 74): A amarração – chamamos amarração ao conjunto de procedi- mentos técnicos visando a fixar os elementos construtivos incluídos na estrutura ou revestimento. Todos os grupos indígenas brasileiros empregam o cipó na técnica de amarração por enlace. Usavam-no os Karajá para a construção da casa antiga. O encaixe lateral, assim como a técnica mista (encaixe lateral conjugado ao enlaçamento), são correntes entre os Tiriyó. O encaixe em topo é utilizado no alto Xingu, e também entre os Tukâno. Entre as maneiras de fixar os elementos estruturais, cabe citar o enlaçamento das peças de madeira com cipó. Além da amarração, para fixar as peças de madeira maiores e mais pesadas, também, é utilizada a técnica de encaixe lateral, ou seja, as peças têm as pontas escavadas, criando pontos de encaixe que evitam o deslocamento produzido pelo excesso de peso. Como não poderia deixar de ser, a casa e a aldeia indígena procuram atender às necessidades básicas de vida comunitária e à observância de características locais: topografia, clima e materiais de construção disponíveis. As construções indígenas se fundem com o local onde estão implantadas, pois sua matéria-prima vem dire- tamente da natureza que a circunda, ao mesmo tempo que a organi- zação do espaço, seguindo as necessidades e tradições culturais das tribos, contrasta com o ambiente natural. 25 Cultura arquitetônica e urbanística portuguesa na época do “Descobrimento” Em virtude de sua localização, o território português foi, ao longo dos séculos, alvo de interesse de vários povosque ocuparam o território. Na Antiguidade, o mar Mediterrâneo interligava dife- rentes civilizações que, por meio das navegações constituíram uma rede comercial de extrema importância para a economia desses di- ferentes povos. Por volta do século III a. C., ocorreram as coloni- zações do Mediterrâneo oriental, com as feitorias fenícias, gregas e cartaginesas, que se implantaram no território, estimulando o de- senvolvimento da região e deixando suas influências marcadas na cultura local. Com o fim das Guerras Púnicas, a região passou a ser ocupada pelos romanos no século II a.C. No século V, é a vez da re- gião ser ocupada pelos povos chamados “bárbaros” pelos romanos, os suevos, vândalos, alanos, francos e visigodos. A partir do século VIII, tem início a invasão árabe, que dura até o século XIII. Apesar dos territórios sob o domínio desses vários povos por vezes estarem sobrepostos, o Norte de Portugal ficou marcado do ponto de vista cultural e civilizacional, pela influência da Europa central, enquan- to o Sul adquiriu um caráter mediterrânico. Essa diferenciação é acentuada pelas características climáticas das duas regiões e pela matéria-prima disponível para a construção em cada uma delas. Ao Norte, desenvolveu-se a civilização do granito; enquanto no Sul, a matéria-prima dominante era o barro. Essa diversidade cultural tomou forma mediante a arquitetura e a configuração dos espaços urbanos portugueses, definindo características específicas que di- ferenciam Portugal no contexto da tradição urbana europeia. 26 Figura 2 - Cidade brasileira com características coloniais Fonte: Shutterstock 108994037. #PraCegoVer: Na imagem, há uma cidade com arquitetura de características coloniais coloridas. Influências que marcaram a identidade urbana portuguesa Os castros, ou citânias, eram núcleos de povoamento que, no pe- ríodo pré-romano, ocupavam os pontos dominantes do território que, mais tarde, veio a se tornar Portugal. As principais caracterís- ticas de assentamento, praticadas por essa civilização pré-roma- na, permaneceu em muitas cidades portuguesas, bem como nas cidades coloniais construídas por Portugal no contexto da expan- são ultramarina. Seguindo essa tradição, as cidades têm seu núcleo primitivo erigido no topo de uma colina proeminente, a partir da qual se desenvolvem. São várias as características do mundo me- diterrâneo que subsistiram na tradição urbana portuguesa. Entre alguns aspectos, podemos destacar: a localização privilegiada dos 27 núcleos urbanos na costa marítima; a escolha de lugares elevados para a implantação do núcleo defensivo; a adaptação do traçado à topografia; a estruturação do núcleo urbano em cidade alta, que en- globa os núcleos institucional, político e religioso, e em cidade baixa dedicada às atividades portuária e comercial. A conformação urbana que segue as linhas naturais do território também é uma caracterís- tica da cultura castreja do norte da península, uma das mais antigas expressões da civilização do granito e que subsistiu até à ocupação romana (TEIXEIRA, 2012, p.23). O granito encontrado em grande quantidade no Norte de Portugal era matéria-prima muito utilizada na construção castreja e mesmo antes dela e também depois pelos romanos e permanece até os dias de hoje. Existe, em função do uso de matérias-primas distintas na arquitetura, a definição de civilização do granito para a região norte e civilização do barro para região sul (RIBEIRO, 2013, p. 17-45). Com a ocupação romana, do século II a.C. ao século V d.C., várias cidades são fundadas e os romanos são responsáveis pela realização de grandes obras de infraestrutura que aceleram o de- senvolvimento da região, como pontes, estradas e aquedutos. A or- denação do território, seguindo os preceitos romanos, contribuía para a romanização das populações conquistadas. A regularidade do traçado criava um cenário comum a todos que viviam sob o domí- nio romano. O Castrum, era uma bem-sucedida estratégia de sim- bolização utilizada para dividir a cidade em quatro seções usando o cruzamento de eixos viários monumentais como lugar simbólico, reunia tanto os poderes administrativos quanto o povo. Os princí- pios urbanísticos baseados na regularidade, na racionalidade e na geometria foram impostos também às cidades já existentes e visa- vam a circulação de pessoas e de mercadorias, fatores indispensá- veis para uma conomia mercantil em larga escala como a romana. As cidades de Braga, Beja e Évora, entre outras, mantêm, ainda hoje, FIQUE DE OLHO 28 as marcas da presença romana. Essa herança cultural, partilhada por tantos outros países europeus, se traduz em formas urbanas baseadas na geometria e na regularidade. O urbanismo português está incluído nessa cultura urbana europeia, mas apresenta especi- ficidades que são resultado tanto de seu posicionamento geográfico quanto das outras tantas influências culturais incorporadas ao lon- go de sua história. O império romano foi desestruturado pela sequência de in- vasões bárbaras que tiveram início no século IV. A população dei- xou as cidades em direção ao meio rural, que sofria menos ataques dos invasores. As grandes propriedades rurais passaram, então, a representar o papel antes desempenhado pelas cidades. Nos feudos, o castelo, inicialmente construído de madeira e depois de pedra, tornou-se o centro político. Com o passar dos séculos, os feudos já não dispunham de terras suficientes para a população em constante crescimento. Assim as cidades voltam a ser ocupadas e surgem no- vos núcleos mercantes, estabelecendo uma vasta rede de comércio entre os burgos e fortalecendo a burguesia, o que era um segmento da sociedade até então pouco relevante na pirâmide social. Após a conquista muçulmana do século VIII, e durante sua permanência em território português, até o século XIII, a cultura urbana dos muçulmanos ficou inscrita em muitas cidades. Vários fatores determinavam a forma da cidade islâmica: as condições ma- teriais e ambientais do espaço em que se implantavam e os fatores culturais e religiosos. Em relação aos primeiros, a presença muçul- mana contribuiu para reforçar as características mediterrâneas já presentes nas cidades do Centro e do Sul, ocupadas e adaptadas às necessidades desse povo. Muitas características que habitualmente se atribuem à cidade muçulmana ibérica são antes características da cidade mediterrânea, segundo TEIXEIRA (2012). Essas caracterís- ticas são visíveis nos critérios de localização, na escolha dos sítios para a implantação dos núcleos urbanos, na capacidade de adapta- ção ao terreno e na organização funcional da cidade. As cidades islâ- micas eram situadas de forma a dominar grandes percursos de água, tais como Al-Usbuna (Lisboa), Santarim (Santarém), Kulümriyya (Coimbra), Märtula (Mértola) ou Silb (Silves). Cidades estas que re- ciclaram espaços, estruturas e materiais do período romano. 29 Na arquitetura desse período foram adotadas várias soluções e técnicas construtivas, originalmente apresentadas pelos árabes para a resolução de problemas de ordem estrutural dos edifícios. Os arcos ferradura, as arcadas de colunas com capitéis, por vezes, rica- mente trabalhados com motivos árabes, foram soluções estruturais largamente utilizadas nesse período. Formação do Estado Português (século XIII) No ano de 1139, Afonso Henriques de Borgonha tornou seu território (o condado Portucalense localizado no extremo Norte Ocidental da Península Ibérica) independente. Durante a dinastia de Borgonha, Portugal deu continuidade às guerras de Reconquista, ampliando seu território em direção ao sul. Reconquista é o processo histórico em que os reinos cristãos da Península Ibérica procuraram dominar a região durante o pe- ríodo do Al-Andalus. Este processo decorreu entre 718 ou 722 (data provável da Batalha de Covadonga, liderada por Pelágio das Astú- rias) e 1492, com a conquista do Reino de Granada pelos reinos cris- tãos. O controle progressivoda península ganhou destaque por ter possibilitado a fundação de novos reinos cristãos como o Reino de Portugal e o Reino de Castela, precursores de Portugal e de Espanha. Com a morte do último rei da dinastia Borgonha e a ascen- são de D. João I, iniciou-se da dinastia de Avis, que marcou a vitória dos interesses burgueses, fortalecidos pelo surgimento de uma nova rota comercial que ligava as cidades italianas à região da Flandres, fazendo escala em Lisboa. Tendo sido o novo monarca apoiado pela burguesia, ele agiu de acordo com seus interesses e, assim, foram criadas as condições necessárias para a expansão marítima em bus- ca de novas terras. Ao final do período da Reconquista, uma das primeiras preo- cupações do poder cristão em Portugal foi eliminar de imediato qualquer influência visível da presença muçulmana no território português, resgatando a fé cristã. As medidas tomadas pelo Estado incluíam a descaracterização dos edifícios públicos que continham traços da arquitetura árabe, eliminando vestígios da técnica ou 30 elementos característicos. As mesquitas foram demolidas ou trans- formadas para atender a ofícios religiosos cristãos. Mas as técnicas construtivas e certos elementos arquitetônicos não puderam ser completamente eliminados do conhecimento popular. Alguns elementos que sobreviveram aos ataques cristãos são os azulejos, os ferros forjados e os objetos de luxo como os tapetes, alguns trabalhos em couro e o metal. Na arquitetura, principalmen- te as muralhas e os castelos mantiveram seus estilos, bem como o traçado de ruelas e becos de algumas cidades do sul do país. São tes- temunhos da ascendência árabe os terraços das casas algarvias (re- gião Sul de Portugal) e outros exemplos emblemáticos da influência arquitetônica árabe em Portugal seriam: o Castelo de Silves, no Al- garve; o Castelo dos Mouros, em Sintra; o Castelo e a Igreja Matriz de Mértola, que são de um reaproveitamento cristão da antiga mes- quita muçulmana. Agora, veja os estilos arquitetônicos presentes em Portugal no período da Reconquista! Românico (1100–1230) Nos tempos que seguiram à queda do Império Romano não houve o surgimento de nenhum estilo original até o século XII, com o surgimento do românico fortemente inspirado pelo Cristianismo e que foi usado principalmente na construção de igrejas. Sob o co- mando do Conde D. Henrique, fundador da Casa de Borgonha em Portugal, um conjunto de nobres e monges franceses implantaram, de forma gradual, o românico no país. Durante a Reconquista foram construídas muitas igrejas como forma de recuperar a fé cristã em Portugal, que foram construídas no estilo românico. A característica inerente à arquitetura românica é o arco de volta perfeita presente nas portas, janelas, arcadas, abóbadas e, ainda, em muitos detalhes decorativos. As primeiras igrejas tinham telhados de madeira que foram gradualmente sendo substituídos por abóbadas construídas em pedra. Esse peso extra exigia que a estrutura fosse reforçada com contrafortes lisos encostados às paredes. As torres altas poderiam ter planta circular, quadrada ou octogonal e os edifícios possuíam 31 janelas pequenas por motivos estruturais. Além disso, a planta da igreja românica é sempre em cruz. Em Portugal, o Românico sofre influência francesa dando origem a igrejas orientadas para o Oeste, normalmente, com duas torres-campanário e três naves em abóbada de berço; já as igrejas orientadas para o Leste, com três naves cobertas por abóbadas de berço e uma torre-campanário sobre o transepto. Contudo, as igre- jas românicas portuguesas fugiram um pouco ao estilo original as- semelhando-se mais a grandes fortalezas devido às paredes grossas e poucas aberturas. Gótico (c.1230-c.1450) O estilo gótico nasceu na França e parte, a princípio, de inova- ções técnicas que permitem a construção de edifícios mais arrojados do que os do período anterior. O método construtivo que utiliza- va dois arcos transversais para construir as abóbadas das igrejas permitia a edificação de estruturas mais altas e leves, e permitia a abertura de grandes janelas, já que não havia mais a necessidade das grossas paredes de pedra que antes suportavam a estrutura. Os construtores descobriram que os pilares eram suficientes para sus- tentar os arcos da abóbada, abrindo espaço para os grandes panos de vidro que vieram a substituir as paredes de pedra, que antes fa- ziam o fechamento dos edifícios. O estilo gótico era focado, sobretudo, nas construções reli- giosas e em Portugal prolongou-se até o século XV por meio do esti- lo Manuelino. O Gótico chegou mais tarde a Portugal do que no resto da Europa, concentrando-se fundamentalmente no centro do país, onde muitas igrejas e sés construídas no estilo românico sofreram adaptações e foram alargadas com um transepto gótico ou com ele- mentos desse estilo. O Mosteiro de Alcobaça (construção iniciada em 1178) foi o primeiro edifício gótico a ser construído em Portu- gal, em conjunto com o Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, um dos mais importantes mosteiros medievais portugueses. 32 O estilo gótico pode ser dividido em três períodos: o gótico primitivo, o gótico clássico e o gótico tardio ou flamejante. Cada um destes períodos com suas próprias particularidades. Período dos Descobrimentos (1415-1543) Com motivações de ordem econômica, em 1419, o Infante Dom Henrique reuniu, na vila de Lagos, vários especialistas com o ob- jetivo de investigar os mistérios da navegação transoceânica, o que permitiu a Portugal o pioneirismo nas grandes navegações. Os lu- cros do comércio de especiarias nas primeiras décadas do século XIV permitiram o surgimento de um estilo arquitetônico luxuoso, uma categoria do estilo Gótico tardio e que veio a ficar conhecido como estilo Manuelino por ter sido empregado nos edifícios construídos durante o reinado de Manuel I. A Era dos “Descobrimentos” é o período em que acontece o conjunto de conquistas realizadas pelos portugueses nas explo- rações marítimas entre 1415 e 1543. Período que foi iniciado com a conquista de Ceuta no continente africano. Com o fim do período da Reconquista, os portugueses se voltaram à procura de rotas alter- nativas que poderiam trazer mais riquezas do que as já conhecidas rotas de comércio no Mediterrâneo. Portugal realizou importantes avanços tecnológicos que permitiram aos seus navios viajar com se- gurança em mar aberto, cobrindo, assim, enormes distâncias. O estilo Manuelino está inserido na corrente arquitetôni- ca denominada como gótico tardio ou flamejante, que aconteceu em toda a Europa. No século XIV, as cidades haviam se converti- do em grandes centros de comércio. Esse estilo passou a ser apli- cado na construção das casas particulares dos nobres e burgueses e em edifícios públicos, contrastando com os períodos anteriores, quando o gótico era aplicado quase exclusivamente na construção de catedrais. Os construtores do século XIV já não se contentavam em re- produzir as formas das catedrais góticas tradicionais, além do fato de que era cada vez mais comum a encomenda de edifícios gran- diosos que não tinham nenhuma relação com a igreja. As cidades 33 se desenvolviam com grande rapidez. Dessa forma, buscaram exibir suas habilidades decorativas, cobrindo os edifícios com rendilha- dos complexos e utilizando os mais variados temas. De acordo com Gombrich (1993, p. 156), “nas cidades prósperas e em permanen- te expansão, muitos edifícios seculares tiveram que ser projetados e construídos: municipalidades, sedes das guildas e corporações, universidades, palácios, pontes e portas das cidades”. Em Portugal não foi diferente, apesar do estilo ter chegado com atraso em relação ao resto da Europa. São poucas as diferenças do Manuelino em relação ao gótico final de outros países europeus, seguindo a tendência de homogeneizar os espaços internos, que nas igrejas se materializava na preferência por naves de mesma altura, dando, assim, unidade ao espaço interno,ausência de transepto e cabeceira regular em oposição às plantas em cruz. Nos edifícios ci- vis, as plantas retangulares também prevalecem e as fachadas são ricamente decoradas. Os motivos mais presentes na decoração são os naturalistas marinhos, cordas, uma rica variedade de animais e motivos vegetais. O estilo revela o crescente gosto pelo exotismo, desde o início da expansão marítima. O primeiro edifício manuelino conhecido é o Mosteiro de Jesus de Setúbal, construído entre 1490 e 1510, do arquiteto Diogo Boitaca, considerado um dos criadores do estilo. Resultados formais das influências sobre as cidades portuguesas no século XV O modelo que regeu o desenvolvimento urbano português, presente em todos os momentos históricos, vem da sua herança mediterrâ- nea, de natureza vernacular e é percebida principalmente pelo fato de as vias principais acompanharem a topografia natural existente e a utilização das partes altas do terreno (dominantes) para a im- plantação dos edifícios notáveis. Sendo assim, a conformação final da cidade construída é uma expressão do território onde foi criada, as vias seguem a natureza do terreno e, naturalmente, levam aos pontos dominantes, marcados com a presença de edifícios impor- tantes e também para as praças construídas a fim de acompanhar esses edifícios. 34 Essa vertente de urbanização, definida por Teixeira (2012) como vernacular, gera uma grande diferenciação entre os espaços, uma variedade de formas que torna a cidade mais legível e permite que cada área tenha uma identidade própria. Estes princípios vão, mais tarde, ser disseminados pelas colônias portuguesas ao redor do mundo, dando origem a cidades que apresentam características morfológicas específicas, as quais as distinguem dos espaços urba- nos de outras culturas. Apesar de ser possível encontrar essas carac- terísticas morfológicas, consideradas individualmente, em outros contextos históricos e geográficos, a articulação desses elementos e sua síntese são especificamente portuguesas. As especificidades da cidade de origem portuguesa têm a ver com muitos aspectos, incluindo suas heranças culturais, já apresen- tadas aqui, nas culturas dos vários povos que ocuparam a região an- tes dela se tornar Portugal e ficaram sedimentadas no conhecimento popular, sendo adaptadas umas às outras. A lógica empregada para a escolha dos sítios onde foram implantados os núcleos urbanos, seguindo a tradição mediterrânea pré-romana e a influência ára- be que formou vários núcleos em Portugal. As formas primordiais na construção do traçado urbano são uma combinação da herança geométrica romana: seus traçados regulares e cruzamentos simbó- licos; lugar de praças e edifícios públicos importantes; os elementos árabes que concebem vias em concordância com a topografia natu- ral do terreno, que naturalmente levam aos pontos topográficos de destaque etc. A hierarquia entre os diversos elementos de referên- cia do território cria uma percepção rica e heterogênea do espaço urbano: as praças e seu papel na organização urbana, as estruturas de quarteirão e de loteamento e os processos de planejamento e de construção da cidade. No século XV as principais cidades do país passaram por pro- gramas de modernização urbana, associando a intervenção urbana com a arquitetura. Em meados do século XV, D. Afonso V, preocu- pado com a harmonia estética e funcionamento do espaço urbano de Lisboa, decretou que “as casas deveriam passar a ser construí- das com paredes de pedra e cal sobre arcos de cantaria” (TEIXEIRA, 2012, p. 76). No século XVI, o processo de modernização continua pelas mãos de D. Manuel I, que realizou grandes reformas nos es- paços públicos existentes e regulamentou o ordenamento das áreas urbanas em expansão, dotando essas áreas de equipamentos urba- nos e espaços públicos: 35 Como consequência, os traçados urbanos portugueses rara- mente eram geometricamente rigorosos. Além de suas referências geométricas, tais traçados adaptavam-se à topografia, à hidrogra- fia e ao ambiente físico de seus locais de implantação, sendo fre- quentemente subvertidos para uma melhor adequação ao terreno, sob o ponto de vista funcional, formal ou simbólico. Essa plastici- dade dos traçados urbanos portugueses não se traduzia, contudo, em estruturas amorfas. Pelo contrário, as cidades portuguesas eram estruturadas e hierarquizadas, facilmente legíveis e paisagistica- mente valorizadas. Essa adaptação ao território e ao clima e sua não sujeição a rígidos princípios geométricos produziram cidades eminentemente maleáveis e adaptáveis às diferentes circunstâncias que surgiram ao longo do tempo. O urbanismo português, de forma geral, seguiu um plano com base em uma regularidade subjacente a seu traçado, ainda que nem sempre de uma forma explícita, mas que leva em consideração as particularidades do sítio e as explora, no- meadamente, por meio da definição das principais vias estruturan- tes sobre as linhas naturais do território e da criteriosa localização dos edifícios notáveis em posições dominantes (TEIXEIRA, 2012, p. 36). Nesta unidade, você teve a oportunidade de: • conhecer a história dos povos pré-cabralinos; • estudar a configuração das aldeias indígenas com base em ele- mentos culturais tradicionais; • conhecer os diferentes tipos de casa construídas por esses povos; • aprender sobre a história da formação de Portugal; • conhecer as influências culturais estrangeiras que deram forma à arquitetura e ao urbanismo português; • estudar o estilo manuelino, em uso no país na época do descobrimento. SINTETIZANDO 36 UN ID AD E 2 38 Introdução Olá! Você está na unidade 2 – Arquitetura colonial nos séculos XVI e XVII. Conheça, aqui, como se deu o processo de ocupação do terri- tório brasileiro pelos portugueses nos primeiros séculos da coloni- zação e quais foram as suas estratégias para exploração econômica das novas terras. Veja também quais heranças esses colonizadores deixaram em nossa arquitetura e na conformação de nossas cidades, a partir das influências culturais que carregavam de suas origens e das in- fluências que receberam em terras brasileiras, pelo contato com os povos indígenas e africanos. Conheça também as características dos principais programas arquitetônicos do período: arquitetura resi- dencial e administrativa, religiosa e militar. Bons estudos! 39 Cidade portuguesa e a sua transferência para o Brasil Os modelos de cidades portuguesas podem ser sistematizados em duas grandes vertentes: a primeira de referência medieval mu- çulmana e a segunda pautada no ideário renascentista. Esses dois modelos estão na “gênese da maioria dos traçados das cidades bra- sileiras” (MENDES, 2010, p.20). Com esses referenciais em mente, os portugueses promoveram o processo de colonização do territó- rio brasileiro. Esse processo se deu em consonância com os ciclos econômicos aqui estabelecidos. Dois ciclos econômicos marcaram a ocupação do território brasileiro no arco de tempo que tratamos nesta unidade: o ciclo do pau brasil e o da cana-de-açúcar. Os trinta primeiros anos da presença dos portugueses nas terras recém-descobertas corresponderam a um período de ex- ploração rudimentar de recursos naturais, principalmente do pau brasil. Essa atividade resultou no estabelecimento das feitorias, que funcionavam como entreposto comercial e se situavam ao longo da costa litorânea. De acordo com Mendes et al. (2010, p.23), as feito- rias formavam núcleos de povoamento, criados pelos colonizado- res, que reuniam cerca de 20 homens. Mencionam ainda os autores que “a escassa iconografia registra estes assentamentos como um conjunto de pouquíssimas casas de madeira a palha, protegidas por uma paliçada, também de madeira, fornecida pela nossa abundante floresta litorânea” (MENDES et al, 2010, p.23). Uma ocupação efetiva do território brasileiro só terá início com a vinda de Martim Afonso de Souza, em 1531, a mando de Dom João III, que fundou,no ano seguinte, as duas primeiras vilas: São Vicente e Piratininga. Diante das constantes ameaças francesas, adotou-se como solução para a colonização e povoamento das ter- ras o sistema de Capitanias Hereditárias, experiência que os portu- gueses já haviam aplicado em suas colônias nos Açores e na Ilha da Madeira. As terras situadas a leste das Tordesilhas foram assim di- vididas em 14 capitanias doadas a 12 donatários. Tratava-se de en- tregar a empresa da colonização à iniciativa particular de fidalgos, que assumiam o ônus econômico da ocupação, podendo legislar, 40 controlar e fundar vilas e povoados. A metrópole fiscalizava e rece- bia os impostos. O sistema de Capitanias obteve relativo sucesso, tendo em vista o interesse predominante no comércio com o Oriente. Algu- mas foram recompradas pela Coroa Portuguesa virando Capitanias Reais. Reis Filho (1968, p.31) informa que, em 1548, um ano antes da criação do Governo Geral, haviam sido fundadas cerca de 16 vilas e povoados no litoral brasileiro, que já exportavam mercadorias para a Metrópole. O estabelecimento de um Governo Geral caracteriza- va-se como um esforço de centralização, uma forma de coordenar militar e administrativamente as capitanias e povoados, compen- sando os “excessos de dispersão” gerados pelo sistema de Capita- nias (REIS FILHO, 1968, p.32). Esse governo centralizado funcionou na primeira cidade fundada em 1549: São Salvador da Baía de Todos os Santos. Esse segundo momento de ocupação do território foi mar- cado pelo ciclo econômico da cana-de-açúcar, caracterizado pelas grandes propriedades de terras, com uma produção monocultural e extensiva, toda pautada no trabalho escravo. Esse ciclo teve maior importância nos dois primeiros séculos da colonização, pois a des- coberta do ouro nas Gerais, em fins do século XVII, redireciona e re- dimensiona a economia colonial. Além dos portugueses, estiveram por nossas terras os franceses e os holandeses. Os franceses praticavam, desde 1550, escambo com os índios para obtenção do pau-brasil, mas, em 1555, lideraram a empresa de fundar no Brasil a França Antártica; porém sem suces- so. Já os holandeses, com interesse na economia açucareira, após um período de tentativas de invasão, se estabeleceram no Nordeste entre 1637 e 1654. FIQUE DE OLHO 41 Núcleos urbanos brasileiros Olá! Para darmos continuidade assista ao vídeo sobre as técnicas construtivas dos dois primeiros séculos de colonização no Brasil. Apesar de essencialmente rural nos dois primeiros séculos da colonização, o Brasil passou também por processos de urbanização, com a criação de diversos núcleos urbanos. Cabia aos donatários a fundação de vilas, que podemos definir como aglomerações de me- nor importância política. Contudo, as cidades só podiam ser funda- das por decisão e ação da Coroa. Conforme dados de Reis Filho (1968), dos 37 povoados fun- dados, entre 1532 e 1650, apenas 7 seriam por conta da Coroa, tendo sido os demais fundados por donatários e seus colonos. Esse mesmo autor coloca que, até meados do século XVII, existiam duas políticas urbanizadoras promovidas por Portugal: uma estimulava a forma- ção de vilas indiretamente nos territórios pertencentes aos dona- tários, para serem estabelecidas às expensas desses, devendo ser orientadas pelas Ordenações Régias; a outra fundava diretamente as cidades reais, centros de controles regionais, para o que fornecia pessoal e recursos. Depois de Salvador, em 1549, foram fundadas as cidades reais do Rio de Janeiro, em 1565, e, no século XVII, São Luís e Belém. As Ordenações Régias conformavam um conjunto de leis, aplicáveis a Portugal e às suas colônias, que incorporaram elemen- tos do código civil, penal e administrativo, estabelecendo normas e orientações para o funcionamento de vilas e cidades. A partir delas definiram-se as práticas de regularidade para os traçados e cons- truções dos núcleos urbanos, práticas que se consolidaram “sob o impulso da racionalidade renascentista” (MENDES et al., 2010, p.20). Houve também influência das Leis das Índias, conjunto de códigos e diretrizes voltados à criação das cidades nas colônias es- panholas, especialmente na América, que determinavam, do ponto de vista urbanístico, o traçado regular, com nítidas bases no modelo das cidades romanas, apesar de voltadas oficialmente às colônias hispânicas. Este documento era de amplo conhecimento dos Portu- gueses, que acabavam fazendo uso de seus preceitos. 42 Podemos dizer que o modelo de fato implementado no Bra- sil, nos dois primeiros séculos de colonização, foi um híbrido de cidade medieval e renascentista, predominando um ou outro mo- delo dependendo da cidade. Ainda que se tenha buscado implantar a regularidade pregada pelas disposições Reais, o projeto esbarrou em duas dificuldades. Uma relativa às condições geográficas locais, muitas vezes acidentadas, havendo necessidade de adaptação. Outra relativa à insuficiência de profissionais qualificados para a tarefa e à falta de instrumentos de precisão para demarcar ruas, lotes e situar as edificações. O trecho a seguir, exemplifica a falta de rigidez na implantação e desenvolvimento da cidade-sede do Governo Geral: Salvador, originalmente, obedeceu a traços regulares por determinação real, mas o enxa- drezado de ruas e praças foi flexível, permitin- do a adaptação de terrenos disponíveis entre o mar, as encostas e lençóis d’água, às ruas das extremidades, determinando quarteirões de formas, tamanhos e proporções diversas (MENDES et al., 2010, p.49). Em Salvador, adotaram-se ainda duas estratégias de inspira- ções medievais na sua implantação: localização em sítio elevado e a construção de muralhas à sua volta. Mas a solução já se implantou tardiamente, em função da descoberta da pólvora, tornando-as ob- soletas e inócuas. Assim, devido ao seu crescimento, a cidade trans- cendeu a muralha, alcançando a beira-mar, dividindo-se em Cidade Alta e Cidade Baixa. Podemos dizer, grosso modo, que havia uma regularidade relativa nos traçados das cidades brasileiras, os lotes seguiam um padrão similar nesse primeiro período de ocupação, mantendo-se praticamente inalterados até princípios do século XIX. Eram retan- gulares e alongados, ou seja, eles tinham a largura voltada para a rua estreita e as laterais compridas. Os lotes agrupavam-se em quadras, com linhas contínuas de construções, cujos alinhamentos junto à rua, deixaram um vazio na parte posterior, que correspondiam aos quintais das casas. 43 A imagem das ruas era de duas faixas contínuas de cons- truções, coladas umas às outras, sem interrupção. Em geral, as ruas eram estreitas, com alinhamentos e nivelamentos precários, apresentando um aspecto pouco regular. Como observa Reis Filho (1968), numa mesma rua poderia haver diferença em sua largura ao mudar de uma quadra para outra. Não contavam com passeios para circulação de pedestres, e em poucos casos havia a possibilidade de existir algumas lajes sob os beirais para proteção das águas das chu- vas. Poucas eram as que contavam com calçamento, que, quando existia era em pedra. O calçamento de ruas começou a se popularizar quando se tornou necessário separar os tráfegos de circulação: os pedestres dos transportes sobre rodas. Em núcleos urbanos maio- res, a presença de ruas comerciais passou a caracterizar espaços de permanência e pontos de reunião. No entanto, o centro principal da vida urbana eram as pra- ças. Nelas “se realizavam as cerimónias [sic] cívicas e toda sorte de festividades: religiosas e recreativas; e serviam ainda aos mercados e às feiras” (REIS FILHO, 1968, p.64). Nas praças se localizavam as principais construções da cidade, em geral: a Casa de Câmara e Ca- deia, a Igreja Matriz e o Pelourinho, símbolo da autonomia munici- pal colonial, representado por um marco, que podia ainda servir ao castigo público de alguns infratores. Nos dias de hoje, é difícil encontrar um núcleo urbano dos sé- culos XVI e XVII ainda íntegro.