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Wanderley C. Oliveira Filosofia da Educação 2011 O48f Oliveira, Wanderley C. Filosofia da Educação — São João del-Rei, MG : UFSJ, 2011. 96p. Curso de Graduação em Pedagogia. 1. Educação - Filosofia I. Título CDU: 37.01 Reitor Helvécio Luiz Reis Coordenador UAB/NEAD/UFSJ Heitor Antônio Gonçalves Comissão Editorial: Fábio Alexandre de Matos Flávia Cristina Figueiredo Coura Geraldo Tibúrcio de Almeida e Silva José do Carmo Toledo José Luiz de Oliveira Leonardo Cristian Rocha (Presidente) Maria Amélia Cesari Quaglia Maria do Carmo Santos Neta Maria Jaqueline de Grammont Machado de Araújo Maria Rita Rocha do Carmo Marise Maria Santana da Rocha Rosângela Branca do Carmo Rosângela Maria de Almeida Camarano Leal Terezinha Lombello Ferreira Edição Núcleo de Educação a Distância Comissão Editorial - NEAD-UFSJ Capa/Diagramação Eduardo Henrique de Oliveira Gaio SUMÁRIO PRA COMEÇO DE CONVERSA... . . . . . . . . 05 UNIDADE 1. Introdução à Filosofia da Educação . . . . . 07 1.1 O que é Filosofia da educação? . . . . . . . . 09 1.1.1 Introdução . . . . . . . . . . 09 1.1.2 O que é um Diálogo? . . . . . . . . 09 1.1.3 As condições que tornam possível um Diálogo . . . . . 09 1.1.4 Os problemas filosóficos da Educação . . . . . . 15 1.1.5 A Filosofia da Educação como um terceiro discurso . . . . 21 1.2 Para que Filosofia da Educação? . . . . . . 24 1.2.1 Introdução . . . . . . . . . . 24 1.2.2 O retorno às questões da filosofia . . . . . . . 25 1.2.3 As relações entre crise e filosofia . . . . . . . 26 1.2.4 Para que Filosofia da Educação? . . . . . . . 29 1.2.5 Considerações finais . . . . . . . . 33 UNIDADE 2. Problemas da Educação na Perspectiva Filosófica . . . 37 2.1 O Problema dos Valores e Objetivos na Educação e seus Fundamentos Filosóficos . 39 2.1.1 Introdução . . . . . . . . . . 39 2.1.2 O Telos e os Valores na Ação Educativa . . . . . . 39 2.1.3 Do Pressuposto Antropológico aos Valores e Objetivos na Educação . . 41 2.1.4 O Ser Humano, sua Circunstância e a Educação . . . . . 44 2.1.5 Eu Sou Eu e Minha Circunstância . . . . . . . 44 2.1.6 O Compromisso com a Circunstância e a Educação no Brasil . . . 45 2.1.7 Considerações finais . . . . . . . . 46 2.2 Os Discursos: Ideológico, Pedagógico e Filosófico . . . . . 47 2.2.1 Introdução . . . . . . . . . . 47 2.2.2 O discurso Ideológico . . . . . . . . 48 2.2.3 O Discurso Pedagógico e o Discurso Ideológico . . . . 49 2.2.4 O Discurso Filosófico . . . . . . . 53 2.2.5 Considerações finais . . . . . . . 55 2.3 Entre a retórica e a dialética: onde situar a fala professor em sala de aula? . . 56 2.3.1 Introdução . . . . . . . . . . 59 2.3.2 Caracterização da Retórica e da Dialética . . . . . . 58 2.3.3 Retórica e Dialética em sala de aula: quadro comparativo. . . . 61 2.3.4 Considerações finais . . . . . . . . 64 UNIDADE 3. A Filosofia na perspectiva dos problemas da Educação . . 67 3.1 A Educação como Mestiçagem na Filosofia de Michel Serres . . . 69 3.3.1 Introdução . . . . . . . . . . 69 3.1.2 A história de Arlequim, Imperador da Lua . . . . . 72 3.1.3 A história de Arlequim e a Filosofia Mestiça da Educação em Michel Serres . 74 3.1.4 A relação entre Exposição e Mestiçagem . . . . . 76 3.1.5 O Desprendimento: condição necessária para a Exposição . . . 80 3.1.6 Considerações finais . . . . . . . . 85 Pra final de conversa... . . . . . . . . 91 REFERÊNCIAS . . . . . . . . . 92 5 PRA COMEÇO DE CONVERSA... Prezado(a) Estudante: Apresentamos a você o curso de Filosofia da Educação. Ele está organizado em três unidades. A primeira unidade, de Introdução à Filosofia da Educação, é composta de dois tópicos. No primeiro, intitulado “O que é Filosofia da Educação?”, nosso objetivo é apresentar- lhe uma definição para esta disciplina, a partir da qual desenvolveremos as unidades seguintes. No segundo tópico, com o título “Para que Filosofia da Educação?”, procuramos pensar a função desta disciplina na formação do educador. Na segunda unidade, a partir do título Problemas da Educação na Perspectiva Filosófica, desenvolvemos três tópicos. No primeiro, mostramos como um problema da educação, aquele dos valores e objetivos, nos remete aos seus fundamentos filosóficos, mais exatamente aos três campos da filosofia identificados na unidade anterior, a saber a Epistemologia, a Axiologia e a Antropologia Filosófica. No segundo, estudamos as relações entre os Discursos Ideológico (DI), Pedagógico (DP) e Filosófico (DF). Para isso, primeiramente, caracterizamos o DI, em seguida, o referimos ao DP, para finalmente, identificar e caracterizar o DF como importante ao DP, caso queiramos defini-lo como um discurso comprometido com o saber e não com poder e a dominação. Finalmente, no terceiro tópico, refletimos sobre a seguinte questão: entre retórica e a dialética, onde situar o discurso do professor em sala de aula? Começamos por uma caracterização da retórica e da dialética. Depois, traçamos um quadro comparativo entre elas para, em seguida, considerarmos a questão central do texto: entre elas, onde situar a fala do professor? Concluímos indagando-nos quanto à possibilidade ou não de se abdicar completamente da retórica em sala de aula. A terceira unidade do curso tem como título: A Filosofia na Perspectiva de Problemas da Educação. Nesta unidade faremos um movimento inverso em relação àquele realizado na segunda unidade. Nela, partimos de problemas da Educação e caminhamos em direção 6 à Filosofia. Agora, partiremos da Filosofia em direção à Educação. Nossa intenção é estudar o pensamento de um filósofo na perspectiva da educação, ou seja, trata-se, nesta unidade, de ver o que uma determinada filosofia sugere ou propõe como reflexão para a educação. O filósofo que estudaremos é o francês Michel Serres (1930). Procuraremos analisar sua obra no sentido de uma concepção da educação como mestiçagem. Daí o título do único tópico que desenvolvemos nesta unidade: A educação como mestiçagem na filosofia de Michel Serres. Esperamos que você goste do curso e que ele seja proveitoso para sua formação como pedagogo(a). Passamos então ao desenvolvimento das unidades. Bons estudos! 7 INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO Objetivos • Elaborar uma definição de Filosofia da Educação. • Explicitar os campos da Filosofia nos quais a Educação encontra seus fundamentos filosóficos. • Refletir a questão: Para que Filosofia da Educação na formação do professor? unidade 1 9 unidade 1 1.1 O que é Filosofia da Educação? 1.1.1 Introdução Concebemos a Filosofia da Educação como um diálogo entre a educação e a filosofia, a partir dos problemas filosóficos da educação, visando a um terceiro discurso, que não é apenas o da educação ou apenas o da filosofia, mas que é Filosofia da Educação. Dada a definição acima, nossa tarefa agora é explicá-la detalhadamente, uma vez que é a partir dela que desenvolveremos as unidades seguintes desta disciplina. Pedimos a sua atenção para os termos escritos em itálico no parágrafo anterior, pois conduziremos o aprofundamento da compreensão da noção de Filosofia da Educação por meio deles. Começamos, então, com o termo diálogo. Quando propomos a Filosofia da Educação como um diálogo entre a educação e a filosofia, o que entendemos por “diálogo”? 1.1.2 O que é um Diálogo? Numa definição sucinta e precisa, o filósofo alemão Martin Heidegger (1973) ensina- nos que o diálogo consiste, “evidentemente, no fato de falarmos uns com os outros sobre alguma coisa” (p. 49). Tomemos esta definição bastante simples e, aparentemente, evidente (como afirma Heidegger) e vejamos o que ela nos desvela do ‘diálogo’ quando nos perguntamos: à luz da noção heideggeriana de diálogo, o que é que o tornapossível? 1.1.3 As condições que tornam possível um Diálogo - O Poder-Falar A primeira condição que a citação de Heidegger parece nos apontar para que exista um diálogo é o fato de as partes nele envolvidas poderem falar. Sem o poder-falar, será que o diálogo é possível? Mas que significa poder-falar? Entendamo-nos, primeiramente, quanto ao falar. Dentre os vários sentidos deste termo, um dos mais corriqueiros é aquele pelo qual ele significa expressar-se ou exprimir-se por meio de palavras. Falar significa também se fazer compreender e tem como sinônimos revelar, indicar, manifestar, exprimir-se ou expressar-se. Podemos, assim, ampliar o sentido de falar, como se exprimir por meio de palavras, para o sentido de fazer-se compreender, expressar-se. É nessa perspectiva que, por exemplo, dizemos que os mudos falam por gestos, são capazes de falar com as mãos, isto é, têm a capacidade de se fazerem compreender através da linguagem dos sinais. Falar, nestes termos, quer dizer, então, exatamente isto: articular e comunicar uma mensagem 10 que tenha significado para outrem, independentemente do recurso usado para dar corpo à mensagem. Mas, no poder-falar, qual o sentido do termo poder? Aqui, propomos dois. Poder como ter a capacidade de se fazer compreender, ter a potência de fazer-se entender não só por palavras, mas por qualquer outro veículo capaz de dar corpo ao que queremos significar. O primeiro sentido do poder no poder-falar é, portanto, aquele do poder como potência ou capacidade de comunicar uma mensagem significativa. Mas a este sentido é preciso acrescentar outro, sem o qual o poder-falar permanece incompleto como condição para a existência do diálogo. Trata-se, agora, de compreender o poder como ter o direito de falar, de expressar-se, de fazer-se compreender. Se ao poder como potência não se acrescenta o poder como direito, o diálogo persiste barrado. É o que vemos, por exemplo, na sala de aula em que apenas o professor faz uso de seu poder-falar, mas não dá direito de voz ao aluno, embora este também possa ou tenha capacidade de falar. Este outro ao qual negamos o direito de dispor de seu poder de falar se reedita para além da sala de aula sob várias figuras em nossa sociedade: a criança, o idoso, o louco, a mulher, o negro, o índio, o imigrante, o operário são apenas algumas delas. Embora todas possam falar, nem sempre têm o direito à fala. Em tais casos, na ausência do poder como direito negado, o caminho é a busca de imposição da fala como potência. Trata-se, aqui, de ver o direito à voz não como um dom, algo que nos é dado, mas como uma conquista, algo pelo qual precisamos brigar. - O Poder-Escutar Contudo, nas situações em que exercemos nosso direito à fala, e o outro não reconhece nossa capacidade de falar, o diálogo se encontra igualmente barrado; porque, embora o outro não possa negar-me o direito, há sempre a possibilidade de ele negar minha capacidade. Assim, tenho o direito de falar, mas o outro não acredita que eu seja capaz de falar algo que faça sentido. Mais uma vez, abrem-se aqui inúmeras cenas de impossibilidade do diálogo em nosso cotidiano. Os professores, os pais, os patrões, os políticos, os adultos, os jovens não negam direito à fala, respectivamente, aos alunos, filhos, empregados, eleitores, às crianças e aos idosos, mas não admitem que eles possam dizer algo significativo. Logo, para que o diálogo exista, ao poder-falar é preciso corresponder o poder-escutar. Só o poder-falar não basta para que o diálogo se torne possível. De nada adianta poder-falar sem que se possa ser ouvido. Assim, além do poder-falar, precisamos acrescentar ainda, 11 unidade 1 como condição para a experiência do diálogo, o poder-escutar não apenas no sentido de ter a capacidade de acolher a fala do outro, de apreender seu sentido, mas, sobretudo, de querer que o outro fale, de ter vontade de escutar sua fala, mesmo que seja para discordar dela. - O Dissenso, o Consenso e o Conflito Resultando no dissenso ou no consenso, o diálogo é sempre uma experiência formativa para aqueles que o vivenciam. No conflito não há diálogo, porque, nele, um quer eliminar o outro, aniquilar seu logos ou seu discurso, silenciar sua voz; mas são frutos do diálogo o consenso e o dissenso, e ambos são formativos. O consenso nos conduz ao encontro do outro e à compreensão de seu ponto de vista. É formativo, porque nele aprofundo e amplio minhas ideias com aquilo que acolho ou recebo do outro. Mas o dissenso também o é, pois nele conheço melhor minhas posições, à medida que busco esclarecê-las, para que se tornem mais nítidas as diferenças entre o que estou dizendo e o que o outro diz. Experiência difícil de ser vivida e com a qual estamos pouco acostumados, a dissidência possibilita o exercício e o aprofundamento das diferenças, sem que isso conduza ao conflito. Diante dos discursos ou práticas imperialistas, totalitaristas e homogeneizantes em sala de aula, na família, na política, na economia, na religião, nas ciências etc., a dissidência abre espaço para a possibilidade de outros modos de ver e de viver. Institui espaços de liberdade ou de diferença vivenciados, exatamente, como “o cuidado de se mover em direção a esta diferença.” (LAIGNEL-LAVASTINE, 1998, p. 92). Diante de todo sentido, que se pretende como único, a dissidência se apoia, primeiramente, “sobre o reconhecimento de que o sentido é sempre algo problemático” e, em seguida, “sobre a vontade [...] de sustentar esta problematicidade até o fim” (p. 81. Itálicos nossos). Retornam aqui personagens de nosso cotidiano, máscaras que usamos no dia a dia, cada qual com seu duplo: professores e alunos, pais e filhos, patrões e empregados, políticos e eleitores, adultos e crianças, jovens e idosos, homens e mulheres, dentre tantas outras figuras que povoam nossas vidas e das quais testemunhamos, quando não somos nós mesmos estas figuras, a facilidade do conflito entre elas e a dificuldade de construção do dissenso na liberdade da diferença ou do consenso sem que haja submissão. Logo, o diálogo, quando acontece, resultando no consenso ou no dissenso, sempre amplia nossa visão do mundo, de nós mesmos e dos outros, pois o consenso soma os pontos de vista, ao passo que o dissenso os multiplica. Contudo, o conflito, à medida que requer a anulação de um deles, os diminui. 12 - Uns e Outros: o Ego e o Alter-Ego Mas, além do poder-falar e do poder-escutar, que outras condições são necessárias para vivenciarmos o diálogo? O poder-falar e o poder-escutar são duas exigências para a existência do diálogo. Mas precisam pertencer a alguém. Voltemos à definição de Heidegger e vejamos a quem elas pertencem. É claro que pertencem, conjuntamente, a “uns” e “outros”, compreendidos aqui como polos de logos distintos, fontes de discursos diferentes, mas não necessariamente antagônicos pois, neste caso, como já foi dito, o resultado é o conflito, e não o dissenso ou o consenso. Vejamos, portanto, para a existência do diálogo, a importância de “uns” e “outros” se reconhecerem como alter-ego. Para que o diálogo se torne possível é preciso que o outro, ao mesmo tempo, seja igual a mim, isto é, um outro-EU, mas diferente de mim, isto é, um OUTRO-eu. Por outras palavras, o outro precisa ser reconhecido, ao mesmo tempo, como idêntico a mim, mas também como realmente uma alteridade, diferente de mim. Se for apenas idêntico a mim, não há diálogo, falamos a mesma coisa, e o que temos é um monólogo a dois. Se for completamente diferente de mim, também não há diálogo, mas puro estranhamento, sem a base comum do EU que permite a identificação entre nós. Portanto, o diálogo exige o reconhecimento entre “uns” e “outros”, ao mesmo tempo, tanto como identidade quanto como diferença, mas nunca como antagônico. Quando afirmo o outro como idêntico a mim, ou seja, também como Ego ou Sujeito, sou destituído de minha posição central, não sou maiso único a poder-falar; pois o outro também pode fazê-lo; mas, ao reconhecê-lo como diferente de mim, sei que não dirá a mesma coisa que eu, que não vê o mundo do lugar em que o vejo. Cumpre acrescentar ainda que o outro jamais aparece diante de mim como um objeto. Ele surge primeiramente como um desdobramento de mim mesmo, uma réplica de mim mesmo: vejo que o outro vê ou percebe o mundo em torno dele como eu o percebo em torno de mim. O reconhecimento do outro se dá, primeiramente, pautado pela semelhança; mas, se ele é verdadeiramente outro, como afirma Merleau-Ponty (1969), “é preciso que em certo momento eu seja surpreendido, desorientado, e que nós nos encontremos, não mais no que tínhamos de semelhança, mas no que temos de diferente” (p. 198), o que engendra uma transformação tanto em mim quanto no outro, pois “a percepção de um verdadeiro alter ego supõe que seu discurso [...] tenha o poder [...] de nos abrir para outro sentido [...], uma nova situação de conhecimento” (p. 199) de mim mesmo, do outro e do mundo. É 13 unidade 1 13 assim que o diálogo tem o poder de nos lançar em direção a significações que, antes dele, não possuíamos. Esclarecida a relação de reconhecimento recíproco que precisa haver entre “uns” e “outros” para a existência do diálogo, podemos estabelecer agora que, ao “poder-falar” de “uns” deve corresponder o “poder-escutar” de “outros” e vice-versa. Sem essa permuta entre “poder-falar” e “poder-escutar” entre “uns” e “outros” não é possível haver diálogo. Numa suposta conversa, entre as duplas de figuras ou personagens que elencamos em parágrafos anteriores, se apenas um fala enquanto o outro apenas escuta, não haverá diálogo, porque, como vimos, para que o diálogo exista, é preciso que ambos os lados possam falar e possam escutar uns aos outros, reciprocamente. Portanto, no diálogo, o que “uns” falam é escutado por “outros”, que ao falarem também serão ouvidos. O diálogo pressupõe esta permuta do Poder-Falar (PF) e do Poder-Escutar (PE) entre Uns e Outros. Já temos, portanto, quatro condições para a experiência do diálogo. Esquematicamente, podemos apresentá-las assim: UNS OUTROS PF ----------------- > PE PE <----------------- PF CINE Os filmes abaixo são indicados para discutir e aprofundar o conceito de diálogo apresentado até agora. Em cada um deles, você pode procurar identificar situações ou cenas nas quais existem ou não o diálogo e analisá-las à luz das condições para a existência do mesmo estudadas até aqui. • KOLYA - UMA LIÇÃO DE AMOR. - Ficha Técnica: Direção: Jan Sverák. País: República Tcheca. Gênero: Drama. Lançamento: 1996. Duração: 105mim. - Sinopse: Por motivos políticos na República Tcheca, violinista é impedido de trabalhar. Um dia conhece uma jovem russa que precisa de marido tcheco para regularizar sua situação. Ele decide ajudar, mas a polícia desconfia. A mulher foge e deixa o filho. cine 14 • O OITAVO DIA - Ficha Técnica: Direção: Jaco van Dormael. País: (França / Bélgica / Inglaterra). Gênero: Drama. Lançamento: 1996. Duração: 118 minutos. - Sinopse: Harry (Daniel Auteuil) é um empresário estressado, que trabalha no departamento comercial de um banco belga e foi abandonado por sua esposa e filhas há pouco tempo. Deprimido, ele se dedica ao trabalho durante os 7 dias da semana. Até que um dia ele decide vagar pelas estradas da França, sem rumo definido. Após quase atropelar Georges (Pascal Duquennes), que sofre de síndrome de Down, Harry decide levá-lo para casa, mas não consegue se desvencilhar dele. • CASA DE AREIA E NÉVOA - Ficha Técnica: Direção: Vadim Perelman. País: EUA. Gênero: Drama. Lançamento: 2003. Duração: 126 minutos - Sinopse: Duas pessoas travam uma disputa até às últimas consequências. De um lado está Kathy (Jennifer Connelly), jovem que sofre profunda depressão após ter sido abandonada pelo marido. Por um erro do governo, ela é expulsa da casa em que morava. Inconformada, contrata um advogado para recuperar o que ela acredita ser o último símbolo de sua sanidade. Do outro lado está Massoud Amir Behrani (Ben Kingsley), imigrante iraniano que comprou a casa de Kathy em leilão, o que para ele é a oportunidade de dar conforto à mulher e ao filho e de recuperar o padrão de vida que tinham no Irã. - Para que haja um diálogo é necessário um assunto Esperamos que tenha gostado dos filmes que indicamos. Voltamos agora ao esquema do diálogo que apresentamos anteriormente. Nele, falta ainda uma condição, sem a qual o “diálogo” não é possível. Para que ele exista é preciso que uns e outros possam falar e possam escutar reciprocamente. Mas o que ainda falta? Ao retomarmos a definição do diálogo como “o fato de falarmos uns com os outros sobre alguma coisa” (HEIDEGGER, 1973, p. 49. Itálico nosso), podemos ver que o que falta no esquema é “alguma coisa”, o assunto sobre o qual dialogar, o campo ou o tema comum sobre o qual se estabelecerá o diálogo. O assunto é o mundo compartilhado no qual podemos nos encontrar. Podemos, agora, completar o esquema das condições para a experiência do diálogo: 15 unidade 1 UNS OUTROS PF --------------------> PE Alguma coisa PE <-------------------- PF Com estes esclarecimentos sobre o “diálogo”, retomemos a definição de Filosofia da Educação dada no início desta unidade. Dizíamos que a concebemos como um diálogo entre a educação e a filosofia, a partir dos problemas filosóficos da educação, visando a um terceiro discurso, que não é apenas o da educação ou apenas o da filosofia, mas que é Filosofia da Educação. Com as condições que desvelamos para a existência de um diálogo, podemos estruturar, agora, esta concepção de Filosofia da Educação da seguinte forma: (Uns/Filosofia) (Outros/Educação) Poder-Falar-----------------------------→ Poder-Escutar (Problemas Filosóficos da Educação) Poder-Escutar←-----------------------------Poder-Falar Assim, ao pensarmos a Filosofia da Educação como um diálogo entre filosofia e educação, precisamos ver que pertencem, igualmente, a uma e a outra, o poder-falar e o poder- escutar. Não se trata de submeter uma ao discurso da outra, pois elas são diferentes. Trata-se de, pelo esquema acima, fazê-las dialogar a partir de assuntos que lhes sejam comuns, a elas saber, justamente, os Problemas Filosóficos da Educação. Eles são o tema do diálogo entre elas. Mas aqui surge uma outra questão: o que são Problemas Filosóficos da Educação? Para melhor tratarmos desta pergunta, vamos dividi-la, procurando saber, primeiramente, o que é “problema”? Em seguida, identificaremos problemas da educação, mostrando como eles podem nos conduzir a Problemas Filosóficos da Educação. 1.1.4 Os Problemas Filosóficos da Educação 1.1.4.1 O que é um problema? Para este ponto nos servimos de Saviani (1989), que nos explica que um problema não é sinônimo de questão, seja ela simples ou complexa. Por exemplo, a questão simples (quantos são 2 + 2?) não é um “problema”; do mesmo modo, a questão complexa (quais os nomes de cada uma das cerca de 7.100 ilhas que compõem o arquipélago das Filipinas?) 16 também não é um problema? O fato de não sabermos a resposta para uma questão não basta para que tenhamos o real significado da palavra problema. Algo que não sei e não preciso saber não é um problema. Também é comum identificarmos o problema com vocábulos tais como obstáculo, dificuldade, dúvida, etc. Mas eles nem sempre são problemas. Posso me deparar com um obstáculo sem ter a necessidade de transpô-lo, então, este obstáculo não será um problema. Do mesmo modo, não são problemas uma dificuldade que eu não precise supera ou uma dúvida que não necessite ser dissipada. Aos poucos, vamos percebendo que, embora uma questão, um obstáculo, uma dificuldade ou uma dúvida não sejam originariamente problemas, eles podem vir a sê-los. Mas o que vai fazer de cada um deles um “problema”?Na resposta a esta questão, chegamos à essência do significado da palavra problema. Segunda esclarece Saviani (1989a, p. 21), uma questão, em si, não caracteriza o problema, nem mesmo aquela cuja resposta é desconhecida; mas uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer, eis aí um problema. Algo que eu não sei não é problema; mas quando eu ignoro alguma coisa que eu preciso saber, eis- me, então, diante de um problema. Da mesma forma, um obstáculo que é necessário transpor, uma dificuldade que precisa ser superada, uma dúvida que não se pode deixar de ser dissipada são situações que se nos configuram como verdadeiramente problemáticas. Retornando à pergunta: o que faz de uma questão um problema ou de um obstáculo, dúvida ou dificuldade situações problemáticas? A resposta é: a necessidade de solucioná- las ou superá-las. Usamos, o tempo todo, a palavra problema desatentos ao sentido dramático desta palavra. Toda vez que estamos numa situação na qual não podemos permanecer, da qual precisamos sair, na qual nos encontramos enrascados e precisamos nos livrar, estamos num problema. “Se o problema deixou de ser problemático, cumpre, então, recuperar a problematicidade do problema.” (SAVIANI, 1989a, p. 21), sob a pena de nos habituarmos a viver tranquilamente entre problemas, distraídos da necessidade, da urgência de solucioná-los, de superá-los, de sairmos dele. Uma vez na posse do real sentido da palavra problema, podemos nos perguntar agora: o que são problemas da educação e como eles podem nos conduzir a problemas filosóficos? 17 unidade 1 CINE Para discutir o cotidiano escolar e os problemas enfrentados pelos alunos, assista ao filme. • PRO DIA NASCER FELIZ. - Ficha Técnica: Direção: João Jardin. País: Brasil. Gênero: Documentário. Lançamento: 2006. Duração: 88 minutos. - Sinopse: O filme documenta as situações que o adolescente brasileiro enfrenta na escola, envolvendo precariedade, violência e esperança. Adolescentes de três estados, de classes sociais distintas, falam de suas vidas na escola, seus projetos e inquietações. Disponível em <http://www.adorocinema.com/>. Acesso em 01 de setembro de 2011. 1.1.4.2 Dos problemas da educação aos problemas filosóficos da educação Nem todo problema da educação é um problema filosófico da educação. Os problemas da educação fundamentam-se nos propósitos, fins e meios da educação, ou seja, “os problemas da educação são, precisamente, problemas de educação e não de filosofia.” (BRAUNER, 1969, p. 18). Contudo, podemos refleti-los até as raízes filosóficas a que remontam. Vejamos, portanto, a seguir, como problemas da educação nos enviam a problemas filosóficos da educação. - Problemas referentes ao conhecimento Uma das metas sempre presente na educação é a aquisição do conhecimento. E a partir desta meta, uma vez definida, surge uma série de problemas relativos ao conhecimento na educação. Por parte do professor, por exemplo, ele pode se questionar se deve transmitir o conhecimento ao aluno ou se deve orientá-lo na elaboração de seu próprio conhecimento; ou seja, ele pode se indagar se é um repassador de conhecimento ou um mediador na aquisição/elaboração do conhecimento por parte dos alunos, sobre os quais, ainda no que diz respeito ao conhecimento, podemos nos perguntar se são uma caixa vazia onde o professor depositará seu conhecimento ou se são sujeitos ativos, capazes de elaborar, com a mediação do professor, seus próprios conhecimentos. Por parte da administração escolar, podemos interrogar pelo tipo de conhecimento que comporá os currículos e que será trabalhado em sala de aula. No tocante às didáticas, elas continuam se desdobrando na busca de caminhos para otimizar a aquisição do conhecimento. cine 18 Todos esses problemas relativos ao conhecimento são problemas da educação e não da filosofia. Mas todos eles somente são possíveis porque pressupõem o conhecimento como possível. Por outras palavras, é porque, na educação, pressupõe-se que é possível conhecer, isto é, pressupõe-se a possibilidade do conhecimento, e por isso que, a partir daí, a educação pode pôr como sua meta a aquisição do conhecimento, deparando-se, em seguida, com todos os problemas relativos ao conhecimento, tal como exemplificamos acima. Se a educação não tomasse como possível o conhecimento ou a questão da possibilidade do conhecimento como já resolvida, ela sequer poderia colocá-lo como sua meta, o que eliminaria pela base os problemas relativos ao conhecimento na educação. Em suma, os problemas referentes ao conhecimento na educação somente são possíveis a partir do pressuposto de que é possível conhecer. Mas é então que surge o problema filosófico: é possível conhecer? Em caso afirmativo, o que é possível conhecer? Como é possível conhecer? Tais questões são, propriamente, problemas filosóficos. E é a filosofia enquanto teoria do conhecimento, isto é, enquanto epistemologia, que vai trabalhá-las. ATIVIDADE Pesquise na Internet sobre os termos: Dogmatismo, Ceticismo e Relativismo e defina as principais diferenças entre eles em relação ao conhecimento. - Problemas referentes aos valores Mas por que é que, na educação, toma-se como meta a aquisição do conhecimento? Será que é porque se julga que é melhor ser instruído que ser ignorante? Que é melhor ser culto que ser inculto? Que o sujeito culto tem seus horizontes mais ampliados que o inculto? Em síntese, será que, na educação, toma-se como meta a aquisição do conhecimento, porque se julga que o conhecimento é um valor para o ser humano? Se dermos uma resposta afirmativa a esta questão, estamos apenas criando condições para outras questões, desta feita, filosóficas, tais como: mas o que é um valor? Como é que algo surge como um valor? Por que algo é um valor? Todas estas questões relativas aos valores são problemas da filosofia. E é a filosofia, enquanto teoriza os valores, ou seja, enquanto axiologia, que vai refleti-las. - Problemas referentes ao ser humano Porém, se na educação o conhecimento é tomado como um valor que deve ser adquirido, é porque se supõe que ele está em função da promoção do ser humano. A educação visa à 19 unidade 1 promoção do ser humano, e é exatamente por isso que toda literatura ou prática educativa pressupõe, explícita ou implicitamente, uma visão ou uma ideia do que é o ser humano que ela pretende formar (GADOTTI, 1981). Entretanto, a partir dessas ideias do que é o ser humano, pressupostas na educação, podemos nos perguntar: mas o que é o ser humano? Como defini-lo? Como ele se constitui naquilo que é? Tais questões, fundamentais para a educação, nem sempre são pensadas pelo educador, pois ele já as toma como respondidas em sua práxis pedagógica. Entretanto, elas são verdadeiros problemas para a filosofia. E é a filosofia, enquanto se preocupa com as questões referentes ao homem, ou seja, enquanto Antropologia Filosófica, que vai refleti-las. É assim que, partindo da educação, chegamos aos problemas da filosofia, tal como eles se apresentam na educação. É assim, também, que chegamos aos três grandes campos da filosofia, nos quais a educação busca seus fundamentos filosóficos, quais sejam: a Epistemologia (teoria do conhecimento), a Axiologia (teoria dos valores) e a Antropologia filosófica. SAIBA MAIS... Os textos abaixo são indicados para você aprofundar os conceitos de Epistemologia, Axiologia e Antropologia Filosófica. GOERGEN, P. Educação e valores no mundo contemporâneo. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 92, p. 983-1011, Especial - Out. 2005. Disponível em: <http://www.cedes. unicamp.br>. Acessado em: 19 de out. de 2011. JAPIASSU, Hilton Ferreira. O que é a epistemologia. In:_. Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. p. 19-29. JOLIF, J-Y. Compreender o homem: introdução a uma Antropologia Filosófica. São Paulo: Herder, 1970. LIMA VAZ, H.C.Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Os valores. In:_. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. p. 115-130. 20 1.1.4.3 A Filosofia da Educação como uma disciplina problematizadora Portanto, já sabemos como vamos, nas unidades seguintes, promover o diálogo entre filosofia e educação. Tomaremos problemas da educação, procurando pensá-los até aquele nível em qe eles se remontam a verdadeiros problemas filosóficos. Deste modo vamos nos deparar não somente com problemas da educação, mas, sobretudo, com problemas da filosofia presentes na educação, ou seja, com problemas filosóficos da educação. Portanto, ao voltarmos, agora, à concepção de Filosofia da Educação que estamos explicando, podemos compreender suas duas primeiras partes: (1) A filosofia da educação como um diálogo entre a educação, e a filosofia, (2) a partir dos problemas filosóficos da educação. À medida que se institui como este diálogo problematizante, a Filosofia da Educação se apresentará mais como uma interrogação do que como uma disciplina afirmativa. Neste sentido, a Filosofia da Educação foge dos quadros de disciplinas mais ou menos positivas como a Sociologia, a Psicologia ou a Estatística, que nos dão o que dizer, que nos oferecem conteúdos mais ou menos positivos, fechados. No caso da Filosofia da Educação, tal como a caracterizamos, trata-se mais de dar o que pensar do que o que dizer. Antes de afirmar, trata-se muito mais de estabelecer um problema e procurar refleti-lo, interrogar-se sobre ele. É pelo exposto acima que a Filosofia da Educação se define como uma disciplina problematizadora, visto que é no viés dos problemas da educação que seremos remetidos à filosofia, mais especificamente, àqueles campos identificados acima como prioritários para a reflexão filosófica da educação, a saber, a Epistemologia, a Axiologia e a Antropologia Filosófica. Cabe-nos, por fim, explicar a terceira e última parte da definição de Filosofia da Educação que estamos construindo. Trata-se daquela parte na qual a apresentamos como um terceiro discurso, resultado do diálogo entre filosofia e educação. 21 unidade 1 SAIBA MAIS... Sobre a concepção de Filosofia da Educação como uma disciplina problematizadora, no texto de PAVIANI, Jayme. A problematização como recurso pedagógico. In:_. Problemas de filosofia da educação. Petrópolis: Vozes, 1990. p. 79-89. Reflita, a partir do texto indicado acima, as seguintes questões: 1. O que é uma educação problematizadora? 2. Em que uma educação problematizadora contribui para a formação do educador? 3. Qual o perfil de um educador problematizador? 4. Como a filosofia da educação pode ser uma disciplina problematizadora? 1.1.5 A filosofia da educação como um terceiro discurso Estamos terminando a apresentação de nossa concepção de Filosofia da Educação. Falta ainda compreendê-la como um terceiro discurso. É disso, portanto, que tratamos agora para terminar o primeiro tópico desta unidade. Você pode perceber que, quando realmente existe um diálogo entre as pessoas, o que sai da boca de uma entra pelo ouvido da outra, que, ao falar, traz mesclado em seu discurso aquilo que escutou do outro. Como afirma Merleau-Ponty (1969), quando “falo ao outro e o escuto, o que escuto vem se inserir nos intervalos do que eu digo, minha fala é recortada lateralmente por aquela do outro, eu me escuto nele e ele fala em mim” (p. 197). É assim que, no diálogo, suposta a escuta do que outro diz, existe sempre esta reformulação da fala, a partir daquilo que acabamos de ouvir, até chegar a um ponto em que um discurso deve tanto ao outro que cada um se vê incapacitado de apreciar com justeza aquilo que é seu e aquilo que recebeu do outro. Desse modo, como resultado de um diálogo, o que temos é sempre um terceiro discurso, que não é nem apenas o discurso de um, nem apenas o discurso de outro, mas que é a mescla de ambos, o resultado do acasalamento daqueles dois primeiros discursos. Assim, voltando ao conceito de Filosofia da Educação exposto no início desta unidade, podemos compreendê-la agora como este terceiro discurso, resultado do diálogo entre filosofia e educação. Nele está presente tanto a filosofia quanto educação. Contudo, como resultado de um diálogo, é impossível repartir nele, a cada momento, o que da filosofia e 22 o que é da educação. Educação e filosofia resultam, assim, como intimamente relacionadas, de modo que, ao se falar de Filosofia da Educação, não estamos falando apenas de filosofia ou de educação, mas estamos falando de filosofia e educação, ao mesmo tempo, presentes numa só disciplina: a Filosofia da Educação. ATIVIDADE I - Marque V ou F para cada bloco de questões e, em seguida, marque com um X a sequência correta das respostas. ( ) São condições para a existência de um diálogo: o poder-falar, o poder-escutar, a existência de duas ou mais pessoas ou logos diferentes e, finalmente, o assunto sobre o qual dialogam. ( ) Falar, em sentido amplo, significa articular ou comunicar uma mensagem que tenha significado para o outro, independentemente do recurso usado para dar corpo à mensagem. ( ) No poder-falar como umas das condições para a existência do diálogo, poder tem duplo sentido ter capacidade de falar e ter direito de falar. 1) ( ) V, V,V 2) ( ) F, V, V 3) ( ) F, F, V 4) ( ) F, V, F ______________________________________________________________________ Faça o mesmo exercício. ( ) Sempre que me deparo com um obstáculo, uma dificuldade ou uma dúvida, tenho um problema. ( ) Todo problema da educação é um problema filosófico da educação. ( ) O ‘diálogo’ que tentaremos estabelecer entre filosofia e educação se fará a partir dos problemas da filosofia tal como se manifestam na educação ou dos problemas da educação alçados à sua dimensão filosófica. ( ) Embora uma questão ou uma dúvida não sejam, a princípio, ‘problemas’ , elas podem vir a sê-los caso eu tenha necessidade de resolvê-las ou solucioná-las. 1) ( ) F, V, V, F 2) ( ) F, V, V, V 3) ( ) V, V, F, F 4) ( ) F, F, V, V 23 unidade 1 23 ( ) A Epistemologia, a Axiologia e a Antropologia Filosófica são campos da filosofia nos quais a educação se fundamenta. ( ) A Epistemologia é um campo da filosofia voltada para as questões relativas ao valores. ( ) A Axiologia é um campo da filosofia voltado para as questões relativas ao conhecimento. ( ) A Antropologia Filosófica é a área da filosofia que reflete as questões relativas ao conhecimento. 1) ( ) F, F, V, V 2) ( ) V, F, F, F 3) ( ) F, V, F, V 4) ( ) F, V, V, F ______________________________________________________________________ ( ) A disciplina Filosofia da Educação, ao buscar refletir os problemas filosóficos da educação, apresenta-se mais como uma disciplina afirmativa do que como uma disciplina interrogativa. ( ) No diálogo existe sempre a reformulação da fala a partir do que ouvimos até chegar a um ponto em que um discurso deve tanto ao outro que cada um se vê incapacitado de apreciar com justeza aquilo que é seu e aquilo que recebeu do outro. ( ) Como resultado de um ‘diálogo’, o que temos é sempre um terceiro discurso,que não é nem apenas o discurso de um, nem apenas o discurso de outro, mas que é a mescla de ambos. ( ) A educação visa sempre à promoção do ser humano. Neste sentido, toda literatura pedagógica pressupõe uma visão ou uma ideia do que é o ser humano. 1) ( ) F, F, V, V 2) ( ) V, V, F, F 3) ( ) F, F, F, V 4) ( ) F, V, V, V II - À luz do conceito de diálogo que estudamos neste tópico e das condições que possibilitam sua existência, procure responder à seguinte questão: Para você, existe diálogo entre professor e aluno em sala de aula? Justifique sua resposta. III - No conceito de Filosofia da Educação tal comoapresentamos neste tópico, qual a importância do diálogo entre filosofia e educação? 24 1.2 Para que Filosofia da Educação? 1.2.1 Introdução Iniciamos aqui o segundo tópico desta unidade de introdução à Filosofia da Educação. Nosso objetivo agora é refletir sobre a pergunta: Será que a Filosofia tem alguma relevância para o educador? Originalmente, o texto que usamos para desenvolver este tópico foi publicado em 2005, em coautoria com duas ex-alunas do curso de pedagogia da Universidade Federal de S. João del-Rei (UFSJ), Eliane L. Calsavara e Patrícia Helena Mol Silva. Para maiores informações, verifique nas Referências (OLIVEIRA, W.C et al., 2005). Passemos, então, ao texto. Por muito tempo, o filósofo foi pintado como alguém que andava com os pés no chão, mas a cabeça nas nuvens. Ainda hoje há quem o veja como alguém desligado de seu tempo e de seu mundo, exilado no universo das ideias, no qual realiza as mais inusitadas viagens. Nessa perspectiva, ao voltar-se para a Filosofia, o educador estará, também, se tornando um “amigo das nuvens”, sendo-lhe, portanto, mais prudente permanecer longe da Filosofia? Mas e se esta descrição do filósofo for apenas um arremedo do que ele é? Se, em contrapartida, procurarmos ver o filósofo como alguém que “pensa sua experiência e seu mundo” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 103), alguém que faz da realidade em que vive o princípio de sua curiosidade e de sua investigação? Nessa perspectiva, é possível que a Filosofia traga alguma contribuição para o educador. Mais que um nefelibata, é de sua experiência que o filósofo se ocupa. Mais que uma atividade abstrata que se passa fora do tempo e do espaço presentes ou um álibi que nos afasta do mundo, a filosofia é, sobretudo, esta reflexão que nasce do ater-se à realidade em que nos encontramos, assumindo-a como problema, questão, dificuldade, assunto a resolver, silêncio à espera da fala que lhe dará voz, mundo mudo aguardando sua expressão. É para o mundo em que vivemos que a Filosofia nos remete e, ao se propor fazer filosofia, mais que para as nuvens, é ao encontro do próprio mundo que o educador será remetido. CINE Para uma divertida crítica aos filósofos como aqueles que vivem com as cabeças nas nuvens e os pés nos chão, assista na Internet ao vídeo “O futebol dos filósofos”, do grupo de humoristas inglês Monty Phyton. cine 25 unidade 1 1.2.2 O Retorno às questões da Filosofia Thévenaz (1966) afirma, não sem ironia, que a Filosofia é “a arte ou a mania de colocar questões onde tudo parece normal e de preferência onde nada parece problemático” (p. 62). E, de fato, ao se ocupar com a Filosofia e ser por ela conduzido ao encontro de seu mundo, uma das primeiras questões com a qual o educador pode se deparar diz respeito ao seu próprio mundo: que mundo é este em que estou? – ele poderá se perguntar. De modo geral, o mundo em que está o educador é aquele no qual todos estamos. Um mundo onde, segundo a descrição de Delors (2003, p. 11), avançam “a pobreza, a exclusão social, as incompreensões, as opressões, as guerras...”. De modo mais específico, nosso lugar, como educadores, dentro desta realidade mais ampla, é o mundo da educação. Restringindo ainda mais, este mundo é aquele da educação no Brasil. E que significa estar neste lugar? O Brasil é um país que tem um dos piores ensinos da América Latina, com um número ainda elevado de analfabetos, escolas com altos índices de evasão, falta de professores, professores com baixa qualificação, sem tempo e sem dinheiro para se qualificarem, falta de material didático, baixos salários, carga horária excessiva, ensino basicamente comprometido com a instrução para o emprego em detrimento de uma formação científica, cultural e crítica. Além disso, no Brasil, historicamente, a educação tem sido um setor da sociedade no qual as tarefas e funções são definidas sob a óptica das elites econômicas, culturais e políticas das classes dominantes, em detrimento de reais necessidades e interesses da maioria da população (FERNANDES, 1989). Hoje como ontem, a educação entre nós continua sendo usada por ideologias do progresso econômico (cf., dentre outros, LINS, 1985; GENTILI E SILVA, 1994; GENTILI, 1995; FIDALGO E MACHADO, 1994), que fazem com que ela continue colaborando para que o abismo entre ricos e empobrecidos, incluídos e excluídos aumente cada vez mais. E se este é o mundo em que está o educador no Brasil, habitá-lo, para aqueles que aí trabalham acreditando quotidianamente que ele possa contribuir, não somente para o crescimento econômico, mas sobretudo para a construção de um mundo menos violento e desigual, estar neste mundo significa encontrar-se descrente e confuso, numa palavra, em crise. A crise caracteriza bem a situação de nossa educação. E o educador, inserido neste mundo em crise, ao tomar consciência dele, acaba se descobrindo, como profissional da educação e cidadão, como sujeito em crise. Assim, se outrora o filósofo pensava a crise, se a ave de 26 Minerva levantava voo após apaziguadas as contendas humanas, hoje, o educador, ao voltar- se para a filosofia que o leva a situar-se reflexivamente em seu mundo, vê-se obrigado a pensar a crise e em crise. SAIBA MAIS... Sobre a situação, os desafios e as pontencialidades da educação no mundo atual DELORS, Jacques. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez; Brasília: MEC: UNESCO, 2003. FERNANDES, Florestan. O desafio educacional. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2001. 1.2.3 As relações entre crise e filosofia Mas o que é a crise e o que ela tem a ver com a filosofia? No intuito de refletir sobre essas questões e de descrever o próprio advento da filosofia no registro da crise, vejamos, em largos traços, a partir de três textos de Vaz (1978, 1984, 1991), o surgimento da filosofia na Grécia. Na Grécia pré-filosófica, aquela em que a filosofia ainda não se fizera necessária, o homem compreendia seu mundo, fundamentalmente, através do mito. O discurso mitológico justificava o mundo para o homem grego, unificando os universos simbólicos nos quais a sociedade grega traduzia e confirmava suas razões de ser (VAZ, 1984, p. 12). Esse mundo, justificado pelo mito, se oferecia, assim, ao homem grego sem nenhuma ruptura, de modo que, anterior aos séculos VII e VI a.C., esse homem estava em paz com seu mundo. Nesse mundo fechado, finito e harmônico, ocorriam ao homem grego dúvidas quanto à explicação mitológica do mundo, elas não chegavam a abalar a autoridade dos mitos como suficiente para justificar sua realidade. Dessa forma, a experiência fundamental do homem na Grécia pré-filosófica não era de oposição ou confronto ao seu mundo, mas de inocente simpatia e harmonia com a realidade na qual desenvolvia sua existência. Na Grécia anterior aos séculos VII e VI a.C., o homem prosseguia sua vida tranquilamente adaptado a um mundo já feito e explicado pelo discurso mitológico. E como não tinha razões 27 unidade 1 para duvidar radicalmente dos mitos que lhe explicavam o mundo, sua vida transcorria numa atmosfera de segurança fundamental. Entretanto, no decorrer dos séculos VII e VI a.C., importantes transformações começam a ocorrer no mundo grego antigo: o padrão urbano de vida se cristaliza cada vez mais, a colonização grega se estende rumo ao Mediterrâneo, aparece o comércio de longo curso, a sociedade grega se torna mais estratificada (VAZ, 1991). Gradualmente, o mundo grego antigo, restrito e fechado, se amplia, e surgem novas possibilidades de pensamento e de visões de mundo. Nesse processo, à medida que o mundo grego antigo se torna mais rico e complexo, em contrapartida, o mito se torna insuficiente para justificar e dar sentido a essa nova realidade. Sua força persuasiva e unificadora começa a enfraquecer (VAZ, 1984, p. 16). O homem grego, aos poucos,percebe a insuficiência de seus mitos para justificar e dar sentido ao novo mundo que se descortina diante de seus olhos. As pequenas dúvidas de outrora, que não chegavam a abalar o sistema de crenças míticas que constituía o mundo grego, crescem e se tornam dúvidas radicais. O homem grego passa, assim, a desacreditar de seus mitos que, até então, lhe bastavam-lhe para unificar e justificar sua realidade. E como era o sistema de crenças míticas que constituía seu mundo, passa, portanto, a duvidar de seu próprio mundo que, gradualmente, lhe parece sem sentido ou injustificado. Aquele homem, que vivia numa atmosfera de segurança fundamental num mundo unificado pelo mito que ele não punha em dúvida, sente-se, com a crise do mito, sem saber em que acreditar; vê que o mundo, uno e justificado no qual vivia, desaparecera para dar lugar a um mundo dilacerado e sem sentido. A cultura grega em crise de um sentido que reunificasse e justificasse sua realidade e sua vida procurou socorro na única autoridade em que ainda acreditava: a razão. Desenvolvendo o discurso racional em sua expressão mais alta, o logos filosófico, o grego procurou respostas que o orientassem no sentido da reconquista da unidade perdida, sob a forma de um novo sistema de crenças, de uma nova escala de valores (VAZ, 1984). Essa passagem da crença no mito à crença na razão marcou também a passagem do mundo grego antigo para o mundo grego moderno. O grego moderno, pela Filosofia, escapou do caos da realidade diluída na carência de sentido após a crise do mito, justificando e reunificando seu mundo, conduzindo-o do caos ao cosmo. 1.2.3.1 A crise e a passagem do estado das crenças ao estado das dúvidas O que podemos aprender sobre a crise com essa breve história do mito na Grécia Antiga? Pelo exemplo grego, vemos a crise como “fratura numa substância” (TRIGUEIRO, 1968, p. 28 225), ou seja, como um espaço de tensão, de ‘con-fusão’ e de ruptura dentro de uma mesma substância, em que “o velho não morreu e o novo ainda não pôde nascer.” (GRAMSCI apud FRIGOTTO, 1994, p. 34-35). Nesse sentido, se objetivamente a crise se instaura nesse ponto de cisão entre o final de um período ou de um sistema de crenças e o advento de um novo período ou sistema de crenças por substituição ao anterior, subjetivamente, ela é vivida como um momento de dúvida em relação ao constituído ou ao velho e de esperança em relação ao que se está constituindo ou ao novo em vir a ser (KUJAWSKI, 1988). Antes da crise, do velho envelhecer-se ou do constituído ser posto em dúvida, habitamos em nossas crenças como em nosso próprio mundo. Elas compõem nossa realidade, e quanto mais acreditamos nelas, mais seguros nos sentimos em nosso mundo. Com o advento da crise, nossas crenças começam a ruir e, com elas, nosso mundo também começa a desmoronar. Aos poucos, nós, que habitávamos em nossas crenças como em nosso próprio mundo, pela crise, na qual elas são arruinadas, somos transferidos para uma outra situação ou estado em que tudo é duvidoso e sem sentido: o sentido do velho é visto como ultrapassado ou duvidoso, o sentido do novo ainda não o vislumbramos. Em suma, a crise nos joga do estado das crenças e dos sentidos reificados para o estado das dúvidas e da ausência de sentidos. Quanto mais a crise se radicaliza, mais se aprofunda a carência de sentido da realidade em que estamos inseridos, e mais cresce o desejo de encontrar um caminho que nos tire da crise e reunifique nosso mundo. Esse desejo de sair da crise, levado às últimas consequências, abre portas para várias saídas ilusórias: as atitudes extremadas, as esperanças absurdas, as propostas redentoras, as previsões escatológicas, os comportamentos mórbidos; mas ele também abre caminho para o advento da reflexão crítica da própria crise. Reflexão crítica entendida aqui “no sentido forte dos filósofos, como investigação fundamental da realidade, isto é, como saber radical e ré-instaurador na ordem objetiva” (TRIGUEIRO, 1968, p. 225). Esse foi o caminho tomado pelos gregos. Desse modo, ainda à luz da breve história da crise do mito na Grécia, se nos perguntarmos: o que leva uma determinada cultura a refletir filosoficamente?, podemos responder, com Vaz (1984, p. 7), que “o surgimento da filosofia é marcado por uma ruptura, por uma cisão interna de uma sociedade cujos valores e representações se tornam questionáveis e que, por isso mesmo, não consegue mais viver a vida em sua imediatidade”. Por outras palavras, “no momento em que a vida sofre uma ruptura das certezas imediatas surge a necessidade de filosofar” (VAZ, 1978, p. 10). Assim, quando uma cultura não é mais capaz de justificar- se a si mesma em sua imediatidade, torna-se necessária a filosofia. Na filosofia, “a razão é 29 unidade 1 chamada a decidir os problemas que surgem quando a vida não é mais capaz de justificar-se a si mesma como experiência imediata” (VAZ, 1978, p. 8). Desse ponto de vista, a filosofia se mostra, primeiramente, como “o processo de uma cultura que erige em si mesma seu próprio tribunal para julgar-se e para criticar-se” (VAZ, 1978, p. 8). Contudo, como processo de reavaliação e de crítica da cultura, ela só se faz necessária numa cultura em crise, na qual a unidade e o sentido do mundo e da vida se perderam e fazem falta. A Filosofia surge como necessária para restituí-los ou restaurá-los. SAIBA MAIS... Sobre crise e suas relações com a filosofia: CALDERA , Alejandro Serrano. Filosofia e crise. Rio de janeiro: Vozes, 1984. KUJAWSKI, Gilberto de M. A crise no século XX. São Paulo: Ática, 1988. 1.2.4 Para que Filosofia da Educação? O exemplo grego nos mostra a crise como espaço propício para o surgimento da filosofia. O educador no Brasil, dado o estado em que se encontrar, pode fazer da filosofia o lugar de crítica e de julgamento de sua própria experiência, a fim de restituir-lhe ou instaurar o sentido profundo que ela deve assumir em sua realidade. Para o educador, fazer filosofia, tomando como horizonte último de sua reflexão a educação em crise, implica definir a filosofia da educação, necessariamente, como uma reflexão comprometida com a realidade à qual ela se refere. Primordialmente, a filosofia da educação se mostrará como “interrogação continuada” (LEFORT, 1964, p. 345) pelo sentido último da educação, isto é, por sua intencionalidade radical no mundo em que vivemos. Na perspectiva dessa interrogação, quando consideramos as grandes linhas ideológicas presentes na educação brasileira ao longo de nossa história, verificamos que o sentido da educação tem sido (embora haja heróicas exceções) o de reproduzir, manter e reforçar o estado de fato vigente na sociedade Mas será esse o sentido de toda educação? Se ensaiarmos uma resposta negativa para a questão acima, embora a partir daquilo que não queremos, estaremos buscando um outro sentido para a educação. Trata-se, primeiramente, de começar por uma “filosofia negativa” da educação, na qual procuramos “determinar os fins da educação partindo daquilo que, no consenso de todos, não podemos querer” (REBOUL, 1988, p. 117). Mas essa maneira, a princípio negativa, de refletir o sentido da educação não 30 se esgota na recusa do que não podemos admitir. A recusa é uma forma de abrir caminho para outros sentidos que poderemos buscar. Esta filosofia, de início, negativa da educação, abre, portanto, perspectiva para a utopia. Nela, veremos, como afirma Reboul (1988), a educação como “o lugar por excelência da utopia”, pois educação – acrescenta o filósofo – “que não passasse de submissão ao real e de reprodução do estado de fato, com todas as suas injustiças, e não tratasse, incansavelmente, de superar o real, corrigindo o estado de fato, já não seria, de modo nenhum, educação.” (p. 118). SAIBA MAIS... Sobre as relações entre educação brasileira, reprodução e ideologias: FIDALGO, Fernando S.; MACHADO, Lucília R. S. Controleda qualidade total: uma nova pedagogia do capital. Belo Horizonte: Movimento de Cultura Marxista, 1994. GENTILI, Pablo A. A.; SILVA, Tomaz Tadeu da (Orgs). Neoliberalismo, qualidade total e educação: visões críticas. Petrópolis: Vozes, 1994. SEVERINO, Antônio J. Educação, ideologia e contra-ideologia. São Paulo: EPU, 1986. 1.2.4.1 Da Explicitação “do que é” à construção “do que deve ser”: o lugar da utopia A filosofia da educação se apresenta, portanto, como uma reflexão comprometida, primeiramente com a explicitação e a apreciação do que é, do presente, do que vivemos aqui e agora; , entretanto, sem jamais perder de vista a perspectiva do que deve ou poderia ser. A filosofia da educação entendida como uma racionalidade puramente objetiva, que se contenta em constatar o que é, sem apreciá-lo e sem contribuir para a construção do que deve ser, não radicaliza suficientemente sua reflexão, quando o que é se configura como um lugar no qual não podemos ficar. Por outras palavras, trata-se de, pela filosofia, assumir o que é como “realidade problemática” (SAVIANI, 1989), ou seja, uma situação em que nos encontramos, mas na qual não podemos permanecer, que precisa ser superada, contudo, no sentido do que deve ser, numa palavra, no sentido de nossa utopia. Mas o que utopia? Na linguagem cotidiana, a utopia possui acima de tudo um sentido pejorativo. Traz o estigma de busca impossível, de projeto desmedido, de exílio ou de álibi. Essa é a idéia que, no senso comum, temos dela. E, de fato, quando ao invés de tentarmos mudar o aqui não seria, de modo nenhum, educação.” (p. 118).não seria, de modo nenhum, educação.” (p. 118).não seria, de modo nenhum, educação.” (p. 118).não seria, de modo nenhum, educação.” (p. 118).não seria, de modo nenhum, educação.” (p. 118).não seria, de modo nenhum, educação.” (p. 118). 31 unidade 1 e agora no qual vivemos, optamos por dele nas evadirmos rumo às terras da promissão imaginadas alhures, a utopia realmente justifica seu sentido pejorativo. Em tais termos, propô-la ao educador seria sugerir-lhe a fuga de seu mundo concreto para aquele das quimeras, dos sonhos inatingíveis. Mas os sentidos da utopia não se esgotam nesse tipo de deserção do real. Por certo, como esclarece Ainsa (1997), há utopias que se caracterizam precisamente pela “necessidade de fugir da realidade construindo um mundo de sonho situado em um outro lugar” (p. 54). São as utopias de evasão. Mas existe também um outro tipo de utopia que se apresenta não como fuga, mas como “crítica política e social do modelo existente convergindo numa proposição alternativa para a realidade de todos os dias” (p. 54). São as utopias de reconstrução. Elas têm em comum com as de evasão o fato de pressuporem a “recusa radical do presente (tempo) ou do lugar (espaço) em que se vive, quando não dos dois ao mesmo tempo” (p. 39). Além do mais, em ambas sonhamos com uma realidade diferente daquela em que vivemos hoje. Mas a diferença fundamental entre elas reside exatamente no modo como cada uma se relaciona com o presente. A utopia de evasão abstrai o presente, recusa-o ou ignora-o, sem tentar mudá-lo. E por deixar tudo como está, é sempre conservadora. Por sua vez, a utopia de reconstrução também assume a insatisfação diante do mundo atual, mas, ao contrário daquela de evasão, que opta pela fuga dele, esta não o ignora, mas ancora-se nele para criticá-lo como é e instaurar a busca de sua transformação no sentido do como deveria ser. Sem se perder em abstrações puramente formais e sem qualquer relação com a vida real, sem se deixar levar pela “retórica oca” (AINSA, 1997, p. 72), prisioneira de palavras vazias, a utopia de reconstrução assume inteiramente a tensão entre o que é e o que deveria ser, explorando efetivamente a possibilidade concreta de transformar o real no sentido de um outro mundo possível a partir deste em que vivemos. Esse mundo possível é a “contra-imagem crítica” (AINSA, 1997, p. 39) daquele em que estamos, um outro mundo qualitativamente diferente por correção ao atual. Daí, portanto, o duplo aspecto desta utopia: ela é – nas palavras de Reboul (1988) – “crítica radical” ou “recusa apaixonada das coisas como são, e dos homens como as fizeram” (p. 77), mas é também proposição de uma alternativa, “daquilo que deveria existir”, como complementa Ainsa (1997, p. 58). Mais que a evasão ou a fuga, a utopia de reconstrução orienta-se para o afrontamento do hoje e a construção do amanhã, o que a leva a se identificar com “esta parte do movimento 32 do desejo que tende para o futuro” (MANNHEIM apud AINSA, 1997, p. 37), contudo, sempre a partir de potencialidades do presente. Ela é o esforço para tornar possível o que até então não era, para “abrir uma alternativa para a realidade de todos os dias” (AINSA, 1997, p. 54) por meio da busca e da fertilização, nesta realidade, de tudo “aquilo que é recente, emergente, novo” (MANNHEIM apud AINSA, 1997, p. 41). Ao invés de “exílio” ou de “álibi”, a utopia é produto da “criatividade”, “obra da invenção” (CERTEAU, 1993, p. 33); ao invés de anulação do presente, é “aprofundamento de seu vir a ser possível”, de seus “possíveis laterais.” (RUYER apud AINSA, 1997, p. 36). Ancorada no real e distanciada tanto do otimismo automático quanto do pessimismo absoluto em relação ao futuro, toda fecundidade da utopia de reconstrução reside em sua capacidade de, a partir do presente, invocar, arrancar de seu sono outras possibilidades para o futuro, “a partir da topia existente” criar “novas utopias” (AINSA, 1997, p. 70). É por isso que, como explicita Ainsa (1997), tal utopia supõe sempre duas coisas: a “fé racional numa realidade que existe apenas em potência” e, “ao mesmo tempo, a vontade de demonstrar que é sempre possível explorar as possibilidades concretas de transformar o real” (p. 66). Se a utopia, como afirma Trigueiro (1968), é aquilo que “não está hoje em lugar nenhum”, é preciso que nossa imaginação exija “que ela comece a existir em algum lugar” (p. 225). Não se trata mais da utopia como “um mundo impossível, mas de uma possibilidade que se torna efetiva na medida em que estejamos dispostos a desentranhá- la das agruras do mundo atual pela lucidez e pela coragem” (p. 225). Nesse sentido, conclui Trigueiro (1968), a utopia “constitui, apenas, uma outra forma de realismo” (p. 226). 1.2.4.2 Utopia, crise e a função do intelectual Esclarecido o sentido da utopia em sua função construtiva ou transformadora frente ao real, ao retornarmos agora para a crise, compreendida como momento de ruptura com o velho, entretanto, em que o novo ainda não pôde nascer, então, é desejável e até mesmo urgente que o educador, ao se ocupar com a reflexão do sentido da educação no mundo em que vive, delineie suas utopias, resgate em si a dimensão utópica, que lhe permitirá ver a crise não como campo de destruição e de morte, mas como canteiro de construção e de vida. Gênese mais que apocalipse, a crise é terra fértil para a utopia. E utopia é criação de quem não está satisfeito com as coisas como estão. Por isso, é próprio do homo utopicus dizer não à sua realidade, reinventando-a nas utopias. Mas nem sempre é fácil dizer não ao mundo 33 unidade 1 em que vivemos. Implica incomodar aqueles que, por comodismo ou por se beneficiarem do estado de fato, querem que tudo continue como está. Implica desencadear a tensão entre um presente inadmissível e a possibilidade de um futuro diferente. Essa tensão é que motiva a crítica da realidade e a ação transformadora sobre ela, no sentido de nossas utopias, compreendidas como os sonhos possíveis de que nos falava Paulo Freire. 1.2.5 Considerações Finais Mas, neste ponto, surgem alguns questionamentos: se a filosofia da educação, nos termos em que está sendo apresentada, não é contrária à utopia e até mesmo a estimula, será que a função do educador, ao fazer filosofia, é sonhar? Construir utopias e dizer aosoutros o que fazer para atingi-las? E se for este o caso, estaríamos ainda fazendo filosofia da educação? Se nos é permitido pensar o educador como um intelectual, Foucault pode nos ajudar a pensar as questões acima. Para Foucault (1984), não é função do intelectual “dizer aos outros o que eles têm que fazer”, não tem esse direito e tampouco é seu dever “modelar a vontade política dos outros”; seu trabalho é o de, atendo-se aos domínios que são seus, “reinterrogar as evidências e os postulados, sacudir os hábitos, as maneiras de fazer e de pensar, dissipar as familiaridades aceitas, retomar a medida das regras e das instituições”; nisso consiste, especificamente, o papel do intelectual (p. 83). Se, a partir dessa “reproblematização” (Idem) de seu mundo, uma vontade política começa a se formar, daí por diante não é mais o educador como intelectual que tem um papel a desempenhar, mas o educador como cidadão. Nesse sentido, o papel de quem faz filosofia da educação não é construir a utopia dos outros para eles, muito menos lhes dizer o que fazer para atingi-la, mas debruçar-se sobre a realidade educacional vigente, inserida em seu contexto mais amplo, o mundo em que vivemos, para reproblematizá-la em seus sentidos, seus valores, suas maneiras de pensar e de fazer, não para confirmá-los ou justificá-los, quando não o são, mas para precisamente tentar vê-los de uma outra forma. Trata-se de fazer da filosofia da educação esta reflexão pela qual nos libertamos, “com esforços, sonhos e ilusões” do que nos é posto como verdade, “a fim de buscar outras regras do jogo”, deslocando ou transformando as “molduras de pensamento” habitualmente aceitas, os valores comodamente estabelecidos, levando adiante “todo o trabalho que se faz para pensar diversamente, para fazer diversamente, para tornar-se outro do que se é.” (FOUCAULT, 1994, p. 137-144). 34 ATIVIDADE I - Leia atentamente as questões a seguinte e coloque V para verdadeiro e F para falso. Justifique as respostas falsas. 1- ( ) A experiência fundamental do homem na Grécia pré-filosófica, na qual prosseguia sua vida adaptado a um mundo explicado pelo discurso filosófico, não era de oposição ou confronto ao seu mundo, mas de inocente simpatia e harmonia com a realidade na qual desenvolvia sua existência. 2- ( ) O filósofo é alguém que faz da realidade em que vive o princípio de sua curiosidade e de sua investigação. 3- ( ) As utopias de evasão se apresentam como uma crítica ao modelo existente, convergindo numa proposição alternativa para a realidade. 4- ( ) A função do educador, ao fazer filosofia da educação, é construir para os outros suas utopias e dizer-lhes o que fazer para atingi-las. 5- ( ) Segundo o texto, o sentido da expressão “filosofia negativa” é “ uma maneira de se chegar àquilo que se quer a partir da afirmação daquilo que, no consenso de todos, devemos aceitar.” 6- ( ) “O surgimento da filosofia é marcado por uma ruptura, por uma cisão interna de uma sociedade cujos valores e representações se tornam questionáveis e que, por isso mesmo, não se consegue mais viver a vida em sua imediatidade.” (VAZ apud OLIVEIRA et al., 2005, p.7). Nesta citação, a palavra IMEDIATIDADE significa: viver sem se questionar pelo sentido da vida. 7- ( ) Segundo o texto, o sentido da expressão “realidade problemática” é: realidade que não pode ser superada. 8- ( ) As utopias de reconstrução abstraem o presente, recusa-o ou ignora-o, sem tentar mudá-lo e, por isso, acabam sendo conservadoras. 9- ( ) O educador deve fazer da filosofia o lugar de crítica e de julgamento de sua própria experiência, procurando instaurar o sentido profundo que a educação deve assumir em nossa realidade; sendo assim, a filosofia da educação é uma reflexão comprometida com a realidade a qual se refere. 10- ( ) A crise se instaura no ponto de cisão entre o final de um sistema de crenças e o advento de um novo sistema por substituição ao anterior, o que faz dela um momento de afirmação do velho e de negação daquilo que está se constituindo ou do novo em devir. 35 unidade 1 35 II – A partir dos conceitos e tema estudados neste tópico, responda às questões abaixo. 1. Quais as diferenças entre as duas ideias de filósofo e filosofia presentes no texto? Defina a importância da filosofia para o educador à luz dessas diferenças.2. Defina o conceito de crise e explique as relações entre crise e filosofia. 3. Defina utopias de evasão e utopias de reconstrução e identifique as diferenças entre elas. 4. Para que filosofia da educação? 37 PROBLEMAS DA EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA FILOSÓFICA Objetivos • Explicar como um problema da educação, aquele dos valores e objetivos, nos remete aos seus fundamentos filosóficos, mais exatamente aos três campos da filosofia identificados na unidade anterior, a saber, a Epistemologia, a Axiologia e a Antropologia Filosófica. • Estabelecer relações entre os Discursos Ideológico (DI), Pedagógico (DP) e Filosófico (DF). • Compreender a questão: entre a retórica e a dialética, onde situar o discurso do professor em sala de aula? unidade 2 39 unidade 2 2.1 O Problema dos Valores e Objetivos na Educação e seus Fundamentos Filosóficos 2.1.1 Introdução Prezado(a) Estudante, neste texto, nosso objetivo é mostrar como um problema da educação nos remete aos seus fundamentos filosóficos, mais exatamente aos três campos da filosofia identificados na unidade anterior, a saber, a Epistemologia, a Axiologia e a Antropologia Filosófica. O problema do qual trataremos é o dos valores e objetivos na educação. Para refletirmos sobre ele, um bom começo consiste na busca de uma definição para educação. Para tanto, explorando a própria palavra “educação”, vejamos o que podemos encontrar. Em sua etimologia, a palavra “educação” nos remete ao termo latino ex-ducere, no qual ducere é um verbo que significa conduzir ou levar; ex é uma preposição latina, que tem o sentido indicativo de origem ou procedência, “o lugar de onde se afasta”; ex pode significar ainda “para fora de...”. Assim, a palavra “educação”, fiando-se no seu antepassado latino “ex ducere”, pode significar: conduzir alguém para fora do lugar onde se encontra; levar para fora; conduzir ou levar alguém no seu ir para fora do lugar onde está. (CRITELLI, 1981, p. 43-44). Portanto, tal como foi significada acima, a palavra “educação” envolve ação, pois nela encontramos os verbos “conduzir” ou “levar”. É nesse sentido que Athayde (1975) observa corretamente que “educação [...] é ação” (p. 20). Aliada a esta observação, se acrescentarmos ainda que “toda ação, em princípio, é intencional” (PAVIANI, 1990, p. 31); logo, podemos concluir que toda educação, à medida que é ação, é também intencional, ou seja, visa a um telos (finalidade ou objetivo último) ou o tem. 2.1.2 O Telos e os Valores na Ação Educativa Não existe educação sem telos, mesmo que ele esteja implicitamente pressuposto. Na educação, o telos é basicamente o direcional que coordena e orienta a ação; ou melhor, ele é que comanda logicamente a dinâmica educativa tanto na teoria quanto na prática. Ademais, é fundamental considerar ainda que é em consonância com o telos objetivado pela educação que os valores vão se definindo, fermentando-se e sendo transmitidos no seio da dinâmica educativa. Assim, no sentido do que afirmamos acima, se, por exemplo, o telos da educação, na cidade 40 de Esparta, da Antiga Grécia, era formar o homem guerreiro para uma sociedade guerreira, então, em consonância com esse telos, a coragem e a habilidade no uso de armas eram tomadas como valores extremamente importantes na educação dos jovens espartanos. Do mesmo modo, nos dias de hoje, para a educação que convém aos “homens de negócio” e à sociedade de consumo, diante da globalização da economia, das novas tecnologias e da reestruturação do padrão de produção capitalista, a flexibilidade, a criatividade,as capacidades de abstração e de decisão são tidas como valores essencialmente pretendidos na formação dos novos operários para o mercado de trabalho contemporâneo. SAIBA MAIS... Sobre as relações entre educação e ideologias políticas em FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e formação humana: ajuste neoconservador e opção democrática. In: GENTILLI, Pablo A.A.; SILVA, Tomás T. Neoliberalismo, qualidade total e educação. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 31-92. REZENDE, Antônio Munis de. O saber e o poder na universidade: dominação ou serviço? 4. ed. São Paulo: Cortez, 1986. SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. São Paulo: Cortez, 1989. Os valores, na educação, atuam no sentido de normatizar o comportamento dos atores envolvidos no agir educativo tento em vista o telos almejado. Desse modo, por exemplo, se um professor que, trabalhando numa escola onde o objetivo é formar técnicos, prioriza, no seu agir educativo, a reflexão crítica, explicitando os contrastes e contradições da sociedade e os interesses ideológicos infiltrados na educação, este professor, obviamente, não estará se comportando de acordo com o padrão que os valores dessa escola esperam dele, pelos quais as prioridades orientam-se para o saber fazer (tecné) e não para o saber pensar. ATENÇÃO! Entretanto, é preciso ressalvar aqui que o fazer não é, necessariamente, inconciliável com o pensar. No texto, o fazer que não se concilia com o pensar é aquele que reifica e dogmatiza a tecné, à qual cabe obedecer dispensando o pensar. Não se trata, portanto, do fazer livre e artístico, que é “ponto de encontro entre a matéria e o espírito”, pelo qual “as coisas vêm a nós [...] com o selo de nossa criatividade” (TRIGUEIRO, 1973, p. 229). Nesse fazer, tecné e logos, ao invés de inconciliáveis, encontram-se integrados numa perspectiva que vai além deles, enquanto “busca do humano como criação gratuita, que não obedece aos a priori do logos, nem à mera funcionalidade da tecné” . na formação dos novos operários para o mercado de trabalho contemporâneo. 41 unidade 2 Com o exemplo acima, o que se pretende mostrar é que os valores priorizados numa determinada ação educativa agem no sentido de moldar o perfil e o comportamento dos atores envolvido nesta ação. Além disso, eles atuam ainda no sentido de determinar a escolha dos conteúdos a serem trabalhados, como também a maneira de trabalhá-los e avaliá-los; tudo isso tendo em vista o telos pretendido ou visado. Assim, se numa determinada escola o objetivo é formar o educando como um técnico ou um “fazedor de coisas”, evidentemente, os conteúdos práticos vinculados à tecné, ou seja, ao saber fazer, serão priorizados na ação educativa desta escola. De maneira sucinta, podemos estabelecer que os valores priorizados numa ação educativa serão tão diferentes quanto forem os telos objetivados por esta ação. Por outras palavras, o que queremos dizer é que os valores priorizados numa ação educativa estão em função do modo de ser humano que aí se quer formar. Sendo assim, para se explicitar a visão de ser humano que uma ação educativa toma como seu telos, é fundamental esclarecer as bases axiológicas desta ação, isto é, o conjunto de valores que a sustenta. 2.1.3 Do Pressuposto Antropológico aos Valores e Objetivos na Educação A ação educativa, mesmo que de modo inconsciente, sempre pressupõe, na definição de seus valores, uma determinada visão de homem. É nesse sentido que, por exemplo, Saviani (1989b) distingue as pedagogias da essência e da existência. As pedagogias da essência pressupondo uma visão de homem que não muda no tempo e no espaço, ou seja, que permanece a mesma em qualquer tempo ou lugar. As pedagogias da existência pressupondo uma visão de homem que se constitui naquilo que é no decorrer de sua existência; o ser do homem, portanto, variando no tempo e no espaço, o que faz com que o homem, neste lugar e neste momento, não seja o mesmo de outro tempo e lugar. Em suma, segundo Saviani (1989b), nas pedagogias da essência, a essência precede e determina a existência, ao passo que, nas pedagogias da existência, a existência precede e determina a essência. Mas, para que fique mais clara a importância da pressuposição de uma visão de homem na definição dos valores a serem priorizados numa ação educativa, tomemos, ainda a título de exemplo, uma prática educativa que pressuponha uma visão essencialista do ser humano e uma prática educativa que pressuponha uma visão existencialista. A partir daí, procuraremos ver como estes pressupostos determinam diferentes valores para cada uma das práticas em questão. A escola tradicional será o exemplo da prática educativa que 42 pressupõe uma visão essencialista de homem; a escola nova ou renovada, o exemplo da prática educativa que pressupõe uma visão existencialista. Na escola tradicional, porque está pressuposta uma visão essencialista do homem, o objetivo principal da educação é o de atualizar no educando as potências inerentes à sua essência. Consequentemente, valorizar-se-á o ensino humanístico como aquele pelo qual o educando atingirá, pelo próprio esforço, a plena atualização de suas potências. Além do mais, o professor será o modelo a ser imitado pelo aluno, visto que o professor representa aquele ser humano que realizou plenamente as potências inerentes à sua essência humana. Sendo assim, o processo educativo será centrado no professor, ao qual cabe conduzir o aluno à atualização ou à realização plena das potências próprias a sua essência de ser humano. Na escola nova, porque está pressuposta uma visão existencialista do homem, o objetivo principal da educação não será o de conduzir o educando a torna-se idêntico a si mesmo pela atualização daquilo que ele já é em potência a partir de sua essência; o objetivo da educação será o de levar o educando a tornar-se um outro de si, ou seja, conduzi-lo à constituição de sua essência no decorrer de sua existência. Nesse sentido, valorizar-se- ão, principalmente, os conhecimentos que o educando traz de sua própria experiência. E porque não há mais essência humana da qual o professor seria a expressão realizada, este deixa de ser o centro do processo educativo que se desloca para o aluno. Assim, nas considerações da escola tradicional e da escola nova, podemos ver, mesmo que de maneira introdutória, como a definição dos valores numa ação educativa é norteada pela visão de ser humano pressuposta como telos desta ação. CINE Para discutir como a definição dos valores numa ação educativa é norteada pelas visões de ser humano e de sociedade pressupostas como telos desta ação, assista aos filmes: • OS FILHOS DA GUERRA - Ficha técnica: Direção: Agnieszka Holland. Países: Alemanha / França / Polônia. Gênero: Drama. Ano de Lançamento: 1990. Duração: 107 minutos. cine 43 unidade 2 - Sinopse: o filme conta a história de Solomon Perel, um jovem sobrevivente do Holocausto, que esconde sua identidade judaica, encontrando refúgio junto à juventude hitlerista. “Sua trajetória começa quando sua família alemã, mas de origem judaica, é perseguida pelos nazistas e se refugia em Loda, na Polônia. Com a invasão, o que parecia ser o começo de uma vida tranquila, rapidamente se transforma num grande pesadelo. Perel consegue fugir levando seu irmão, mas acaba se perdendo dele e busca refúgio entre os bolcheviques. Depois, ele é transferido para um orfanato na região leste da Polônia. Mesmo assim, acaba sendo capturado pelos nazistas. Sua única alternativa é se alinhar ao exército de Hitler e para isso tem que esconder sua verdadeira identidade... Essa é sua história...” Disponível em <http://www.interfilmes.com/filme>. Acesso em 31 de agosto de 2011. ATIVIDADE Nas três educações (judaica, socialista e nazista) recebidas por Solomon, o personagem principal do filme, procure identificar os valores e objetivos presentes em cada uma delas, observando a seguinte: - Qual a visão de homeme de sociedade presente nela? - Que valores incorporam tal visão? Observe os símbolos, os costumes presentes nas cenas; as atitudes, posturas, o modo de vestir dos personagens; os diálogos do filme. - Que conhecimentos ou saberes são priorizados em cada uma delas e por quê? • A SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS - Ficha Técnica: Direção: Peter Weir. País: EUA. Gênero: Drama. Lançamento: 1989. Duração: 129 minutos. - Sinopse: Um carismático professor de literatura chega a um conservador colégio, onde revoluciona os métodos de ensino ao propor que seus alunos aprendam a pensar por si mesmos. Nos dois modelos de educação (a tradicional e a renovada) presentes no filme, procure identificar os valores e objetivos presentes em cada uma delas, observando a seguinte: - Qual a visão de homem e de sociedade presente nela? - Que valores incorporam tal visão? Observe os símbolos, os costumes presentes nas cenas; as atitudes, posturas, o modo de vestir dos personagens; os diálogos do filme. - Que conhecimentos ou saberes são priorizados em cada uma delas e por quê? 44 2.1.4 O Ser Humano, sua Circunstância e a Educação Não há dúvidas de que o homem só pode tornar-se humano pela educação (KANT, 1974). E, de fato, o telos, por excelência, de toda educação é o desenvolvimento e a promoção humana. Entretanto, a educação só realiza sua finalidade (telos), de levar o homem a tornar-se humano, se ela se transforma em ação. A finalidade da educação não tem sentido fora da ação que a concretiza. É na concretização de sua finalidade (telos) que a educação se define como ação que envolve valores, tal como evidenciamos no item anterior. Todavia, se a finalidade geral de toda educação é promover o ser humano, as ideias do que é o homem, que concretamente cada ação educativa pressupõe ao definir seus valores, divergem bastante. Assim, se, realmente, por detrás dos valores de toda ação educativa está postulado, como telos implícito ou explícito, um determinado perfil de ser humano que se pretende confirmar ou atingir, o que precisamos compreender agora é que, enquanto ação, a educação não se dá fora de um tempo e espaço concretos, nos quais se encontrar situado o educando ao qual ela se refere. Desse modo, educar alguém é educá-lo sempre para uma situação, ou seja, para uma circunstância, na qual ele vive e constrói seu ser, à qual ele vai confirmar ou tentar transformar. Logo, no momento em que se impõe o problema dos valores de uma ação educativa, é preciso que interroguemos não somente pelo perfil de ser humano que aí está se pressupondo (às vezes, sem se dar conta), mas sobretudo pela circunstância em que se encontra inserido o educando ao qual esta ação se refere, uma vez que, como veremos a seguir, esta circunstância é parte constitutiva daquilo que ele é. 2.1.5 Eu sou eu e minha circunstância A humanidade é um gênero tão universal que nos engloba a todos como seres iguais. Por outro lado, as circunstâncias nas quais cada um de nós vive diferem muito. E como nos construímos na interação com nossas circunstâncias, embora sejamos todos humanos, somos todos diferentes uns dos outros. É nesse sentido que lemos em As Meditações do Quixote (1967), do filósofo Ortega y Gasset (Espanha, 1883-1955), a afirmação: “Eu sou eu e minha circunstância” (p. 52). Na ideia de homem que esta afirmação estabelece, temos um “Eu” que está nativamente aberto à sua circunstância, isto é, à realidade que o circunda. Esta realidade, que é tudo aquilo que o envolve atualmente (as coisas, os 45 unidade 2 outros, o momento existencial, a situação histórica etc.), é, sem dúvida, distinta do Eu, mas, ao mesmo tempo, inseparável dele, de modo que não há como tomar o Eu sem sua circunstância, posto que ela é parte constitutiva de seu ser. 2.1.6 O compromisso com a circunstância e a Educação no Brasil Portanto, se a circunstância é parte constitutiva do ser do homem, logo, as diferenças de circunstâncias implicam diferenças no ser humano. Sendo assim, uma ação educativa que não esteja, em seus valores e objetivos, profundamente comprometida com a circunstância em que vive o ser humano a que ela se refere, será uma ação alienada e abstrata, por não ter suas raízes afundadas no solo da circunstância em que ela se insere;,mas será também uma ação alienante e ideológica, por afastar o homem a que ela se refere de sua circunstância, afastando-o assim de si mesmo, visto que sua circunstância é parte constitutiva de seu ser. Assim, se nos colocamos agora a questão: como deveriam ser definidos os valores e objetivos de uma ação educativa para o homem no Brasil? Para sermos coerentes com o que estamos dizendo, precisamos nos interrogar, primeiro, pela circunstância na qual este homem se constitui em seu ser humano. Num sentido amplo, podemos dizer que a circunstância do homem brasileiro é a própria América Latina, visto que, enquanto país latino-americano, o Brasil participa da mesma circunstância de opressão, exploração, exclusão e inferiorização em que se encontram os países latino-americanos frente aos países desenvolvidos. Num sentido restrito, que não exclui o sentido amplo, a circunstância deste homem é o próprio Brasil, país tão abaixo de suas potencialidades, com enormes injustiças e desigualdades, com um fosso enorme entre uma minoria rica e opressora e a imensa maioria empobrecida, oprimida, carente de cultura, de participação política, de saúde, de moradia, de comunicação social, de escolhas livres etc. Ora, se, pelo menos a princípio, a meta geral de toda educação é o desenvolvimento ou a promoção do ser humano, discutir educação para o homem que se forma nestas circunstâncias, implica perguntar-se quais deveriam ser os valores e objetivos de uma educação que o levasse a superar essas circunstâncias, que lhe negam na plenitude de seu direito de ter uma vida digna, com casa, comida e cultura, participando nas decisões que definem os rumos da sociedade da qual ele faz parte, podendo criar, escolher, decidir e sonhar, para si, os projetos de sua própria existência. 46 Caso contrário, uma ação educativa para este homem, que tenha os seus valores e objetivos definidos à revelia da circunstância (política, econômica, cultura e, sobretudo, social) na qual ele se constitui, confirma o ser (empobrecido, oprimido e marginalizado) que nesta circunstância se forma, afirmando sua negação que, com isso, perpetua-se. E, assim, mais uma vez, o que se tem é uma educação que, ao invés de promover o ser humano a partir da circunstância concreta em que ele se encontra, simplesmente reproduz o estado de fato (Status quo), confirmando e conservando as coisas como estão e os homens como as fizeram. 2.1.7 Considerações Finais Portanto, se queremos uma ação educativa que, de fato, pretenda em seus valores e objetivos comprometer-se com a promoção do ser a partir de seu acontecer concreto, esta ação precisa estar calcada no conhecimento profundo da circunstância real em que este homem se encontra inserido, orientando-se, com ele, no sentido da negação de tudo aquilo que, em sua circunstância, o nega e educando-o para a superação desta circunstância numa outra em que ele poderá, de maneira incoativa e criativa, desenvolver-se pessoal e socialmente até o limite de suas possibilidades, crescendo, assim, numa sociedade em que, concretamente, todos possam ser e viver como humanos. ATENÇÃO! Não estamos defendendo aqui a tese da educação como panaceia para todas as mazelas de nossa circunstância. Essa é uma crença ingênua que felizmente superamos. Entretanto, igualmente ingênua é a crença de que a função da educação, por essência, seja a reprodução do status quo. Nos dois casos, entre educação e circunstância, está subjacente a ideia de uma causalidade unilateral, quando, tal como pensamos, esta causalidade é recíproca: a circunstância determina a educação tanto quanto, ao menos, é determinada por ela. Desse modo,a ação educativa, pela pouca mas real liberdade que a ela é não seria “concebida”, não deixa de ser uma importante alavanca de transformação de nossa circunstância. Mas, se não há novidade em se estabelecer a necessidade de se tomar a circunstância concreta do educando como o núcleo central e a razão de toda a ação educativa que vise a promovê-lo, esta necessidade, no caso da educação brasileira, está longe de ser atendida. Isso porque, desde o ponto de vista político dos governantes para a educação até as discussões sobre educação no interior de cada escola, os valores e objetivos para a ação pedagógica têm sido definidos mais à luz dos interesses do mercado ou deste ou daquele 47 unidade 2 plano econômico, dos alinhamentos ideológicos dos donos do poder, do que a partir das necessidades, limitações e potencialidades do educando e de sua circunstância. Entretanto, é urgente que mudemos essa atitude, pois só assim chegaremos a uma outra dinâmica no agir educativo caracterizado, em seus valores e objetivos, pelo reconhecimento de que os homens são mais importantes que o capital (REZENDE, 1986), de que o tempo de cada homem concreto é limitado e o seu desenvolvimento pessoal e social não pode esperar até o infinito. ATIVIDADE A partir dos conceitos e tema estudados neste tópico, responda as questões abaixo 1- Que definição de educação é explorada neste tópico e qual sua opinião sobre ela? 2 – Os valores e objetivos priorizados nas ações educativas possuem qual objetivo? 3 – Como deveriam ser definidos os valores e objetivos de uma ação educativa para o homem no Brasil? Justifique sua resposta. 2.2 Os Discursos: Ideológico, Pedagógico e Filosófico 2.2.1 Introdução Prezado(a) Estudante, nas Considerações Finais do primeiro texto desta unidade, afirmamos a “necessidade de se tomar a circunstância concreta do educando como o núcleo central e a razão de toda a ação educativa que vise a promovê-lo; esta necessidade, - dissemos ainda - no caso da educação brasileira, está longe de ser atendida. Isso porque, desde o ponto de vista político dos governantes para a educação até as discussões sobre educação no interior de cada escola, os valores e objetivos para a ação pedagógica têm sido definidos mais à luz dos interesses do mercado ou deste ou daquele plano econômico, dos alinhamentos ideológicos dos donos do poder, do que a partir das necessidades, limitações e potencialidades do educando e de sua circunstância.” No texto que você começa a ler agora, pretendemos, à luz das afirmações acima, mostrar como, em linhas gerais, o Discurso Ideológico (DI) invade e contamina o Discurso Pedagógico (DP) ao longo da história da educação brasileira, tornando justificável a presença do Discurso Filosófico (DF) na Educação como contraponto do DI presente nela. Para tanto, organizamos este texto da seguinte forma: primeiramente, caracterizamos o DI, em seguida, o referimos ao 48 DP para, finalmente, identificar e caracterizar o DF como importante ao DP, caso queiramos defini-lo como um discurso comprometido com o saber e não com poder e a dominação. 2.2.2 O Discurso Ideológico Propomos, aqui, que entendamos o DI como aquele que exprime a visão de mundo de uma determinada classe social (dominante), pretendendo que esta visão seja a de todos. Nesse sentido, ele surge sempre a partir de um posicionamento da consciência frente à realidade social, ou melhor, o processo social é que o impulsiona ou alimenta enquanto processo teórico. Entretanto, o ideólogo (um intelectual, um partido, uma classe social, etc) não reconhece as forças da realidade que impulsiona o seu discurso. Desse modo, o ideólogo, embora ciente do que diz, ignora as forças que impulsionam seu discurso. Assim, ele pensa que desenvolve um discurso livre e incondicionado, quando, na verdade, seu discurso é determinado pela realidade social que o envolve. O DI, baseado no falso perfil de discurso imparcial e incondicionado da realidade, coloca-se, assim, como um discurso legítimo, verdadeiro e válido para todos. Daí a função ilusória do DI, pois ele, mesmo sendo uma visão de certa classe social (dominante) sobre a realidade, portanto, visão parcial e determinada, pretende-se como uma visão indeterminada e universal do mundo, por isso mesmo, devendo ser válida e legítima para todos. Ainda por este motivo, o DI apresenta-se, também, como um discurso dualista, visto que define o seu ponto de vista como única verdade, sendo todo outro ponto de vista falso. Desse modo, o DI tende a ver as coisas em preto e branco: ou algo é falso ou verdadeiro, ou é claro ou é escuro. Nessa perspectiva, Serres (1990a) compara o DI à Lua, pois, enquanto Na Terra, podemos enxergar de um lado do muro quando a fonte de luz está no outro. Isso porque há atmosfera e o raio de luz se parte, se difunde, se refrata de modo complexo e dá a volta ao muro. Na Lua, ao contrário, onde não existe atmosfera, fica absolutamente claro de um lado do muro e absolutamente escuro do outro. (p. 181). Tal como na Lua onde aparece apenas o claro e o escuro, no DI aparece apenas o verdadeiro e o falso. Contudo, ainda segundo Serres (1990a), comparando o conhecimento com um modelo de visão, é preciso afirmar contra o DI, “que não se pode conhecer senão na complexidade da atmosfera terrestre” (p. 181), na infinita possibilidade de nuanças entre o claro e o escuro, o verdadeiro e o falso, o branco e o preto. Além do mais, se estamos caracterizando o DI como aquele que fixa seu ponto de vista sobre o mundo como se ele fosse a visão completa do mundo (Weltanschauung), é preciso considerar, 49 unidade 2 ainda, contra o DI, que, por definição, não existe ponto de vista de onde tudo seja visível. Logo, universalizando seu ponto de vista, o DI faz desaparecer outros pontos de vista sobre a realidade, ocultando, assim, a própria realidade, à medida que ela só se torna visível a partir de seu ponto de vista. Contudo, mais uma vez contra o DI, é preciso considerar que, como ensina-nos Marías (1983), “a realidade, como uma paisagem, tem infinitas perspectivas, todas elas igualmente verídicas e autênticas” (p. 177). Daí, a única perspectiva falsa ser esta que se pretende única. Ademais, porque pretende impor seu ponto de vista como único, o DI realiza uma inversão no seguinte sentido: ele abstrai do todo o seu ponto de vista e pretende que esta perspectiva particular seja universal, ou seja, o DI põe o particular como se fosse o universal, põe a parte como se fosse o todo. Ao operar esta inversão, ele se assevera como um discurso do poder, pois, enquanto visão de mundo de uma classe social, ele tenta abafar as outras visões e se colocar como se fosse a única. Em sua face política e, supostamente, universal, o DI visa a justificar as relações de dominação, afirmando-as como se fossem inerentes ao processo social, tal como aparecem numa visão “científica” e “imparcial” da realidade. Uma vez caracterizado, em largos traços, o DI, cumpre, agora, perguntar: como é que ele invade o espaço da educação e contamina o DP? 2.2.3 O Discurso Pedagógico e o Discurso Ideológico O DP pode ser abordado pelo menos em três planos diferentes: o plano 1) do que se diz sobre educação (plano teórico), 2) do que se faz em educação (plano prático) e 3) do que se legisla à educação (plano legal). Estes três planos se implicam mutuamente: se a teoria nasce da prática e a ela retorna iluminando-a, por sua vez, é também pela prática que se corrige a teoria, ademais, enquanto atividade no seio de uma sociedade, a prática educativa não escapa da instância político- jurídica que normatiza, gerencia e controla a vida social. O Estado, através dos ministérios e das secretarias legisla, regulamenta e controla o trabalho pedagógico (CHAUÍ, 1980). Assim, a legislação, entendida aqui como o ponto de vista do Estado sobre a educação, faz a ponte entre o DP no plano legal e oDP no plano prático. Mas, se se entende a legislação como o ponto de vista do Estado sobre a educação, por sua vez, entenda-se o Estado como representante da classe hegemônica. Daí poder-se-ia perguntam, o que pretende o Estado com a legislação? Não seria a legislação um instrumento usado 50 pelo Estado para impor seu ponto de vista sobre a educação? Em caso afirmativo, através da legislação, as concepções ideológicas dominantes do DP no plano legal não invadiriam, assim, o DP enquanto atividade prática e teórica? Por outras palavras, a legislação serviria, assim, de ponte entre as concepções ideológicas dominantes e o “aparelho escolar” (SEVERINO, 1986, p. 55), contaminado-o com a ideologia da classe dominante, levando-o a reproduzi-la. Os vários momentos da educação brasileira, em suas grandes linhas ideológicas, confirmam o DP como reprodutor do discurso das classes dominantes. Nesse sentido, do ponto de vista do DI dominante no DP, a história da educação brasileira pode ser dividida, grosso modo, em três períodos: 1) de 1500 a 1889; 2) de 1889 a 1964; 3) de 1964 a ... (SEVERINO, 1986, p. 61). No primeiro período, predomina no DP o DI da Igreja Católica; no segundo, prevalece o DI do liberalismo e no terceiro, o DI tecnológico (SEVERINO, 1986, p. 62). 2.2.3.1 O predomínio do DI do Catolicismo no DP brasileiro de 1500 a 1889 Como afirma Severino (1986), no período indicado acima, a “História da Educação [...] está intimamente ligada à presença e à atuação da Igreja Católica” (p. 62). A Igreja Católica, por sua vez, está tão intimamente vinculada ao Estado, que passa a atuar como uma “autêntica instituição estatal” (p. 65). Assim, no período em questão, a ideologia católica serviu sob medida aos objetivos do Estado junto à classe dominada. Não importava o destino profissional ou social do educando, importava somente formá-lo como bom cristão. Segue daí que a aristocracia agrária pôde gerir, sem maiores problemas, a exploração colonizadora, contando, para isso, com uma grande massa de escravos e trabalhadores pobres “educados” pela Igreja Católica. Com a vinda de Dom João para o Brasil, a sociedade brasileira foi se tornando mais estratificada, dando origem a uma camada média (intelectuais, pequenos comerciantes etc.), que desempenhará importante papel político e social na fase seguinte. 2.2.3.2 A consolidação da ideologia liberal: 1889-1964 Neste período o Estado, em sua política educacional, abandona gradualmente a ideologia católica enquanto passa a assumir a ideologia liberal da burguesia leiga ascendente. Tal processo se deu de forma conflitiva, com o embate dos defensores das duas ideologias sendo mediado pelo Estado que, mesmo não tendo mais interesse na ideologia católica, não podia dispensar uma aliada tão forte como ela. 51 unidade 2 A partir de 1930, o confronto entre as duas facções ideológicas se acirra, com cada uma delas querendo fazer valer a sua proposta pedagógica perante o Estado. No largo período histórico que vai de 1930 a 1945, persiste o conflito entre as duas facções ideológicas, cada qual representando uma ala da classe dominante: a ideologia católica vinculada à oligarquia agrária e a ideologia liberal vinculada à burguesia urbano-industrial. A partir de 1945, a facção liberal, insistindo sempre numa educação baseada num humanismo científico e em processos ativos de aprendizagem, passa a prevalecer proclamando a necessidade da renovação da escola como condição do progresso e democratização do País. “A reconstrução educacional seria instrumento para a reconstrução social.” (SEVERINO, 1986, p. 81). Em 1960, a concepção liberal de educação e de mundo constituía, em última análise, o pano de fundo do cenário educacional brasileiro. A ideologia liberal serviria de ponte para a nova ideologia que se delinearia a partir de 1964. Os dois períodos tematizados até aqui têm em comum o fato de nunca terem questionado o sistema vigente. Portanto, de 1500 a 1964, a educação brasileira continuou reproduzindo e legitimando, pelo menos em termos de educação oficial, a estrutura social vigente. 2.2.3.3 A supremacia da ideologia tecnológica de 1964 a ? A mudança de regime em 1964 significou também uma reorientação ideológica para o País e para a educação em especial. Os militares pretendiam modernizar o País e inseri-lo na divisão internacional do trabalho no sistema capitalista. Para tal propósito, a educação deveria dar a sua contribuição. Assim, tão logo os militares se instalaram no poder, surgiram os acordos do Brasil com os EUA (MEC-USAID) para a reestruturação do sistema educacional brasileiro, visando a reorganizar a educação em função do crescimento econômico do País. A ideologia tecnológica passa, assim, a orientar os caminhos da educação brasileira. Daí por diante, tratava-se, acima de tudo, de formar técnicos para o progresso da nação. O que se cobrava do sistema educacional era “a produtividade, o baixo custo da mão-de-obra técnica, disciplinada e dócil, adequada às necessidades da manutenção da ordem vigente.” (SEVERINO, 1986, p. 92). As escolas transformaram-se, assim, em indústrias para a produção em série de técnicos, não cabendo a elas discutir o sentido ou a finalidade última da educação e da escola numa sociedade, mas somente atender às demandas da sociedade capitalista. 52 Assim, concluindo este breve e panorâmico passeio pela história da educação brasileira, na perspectiva do DI dominante no DP, pode-se afirmar que o DP não fez outra coisa senão reproduzir o DI da classe dominante. Todavia, se neste aporte histórico se enfatizou o DP como reprodutor do DI, isto não quer dizer que o DP não possa produzir um discurso contra-ideológico e comprometido com a verdade da realidade brasileira. SAIBA MAIS... Para aprofundar a afirmação do parágrafo acima, leia CUNHA, Luiz Antonio. O golpe na educação. 5. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. É na perspectiva de um DP descontaminado do DI e comprometido com a realidade brasileira de imensas desigualdades e injustiças que o DF pode ser útil e salutar ao educador, servindo- lhe de instrumento para a explicitar a inverdade que o DI impinge ao DP, transformando-o num mero instrumento para a estratégia de dominação. Assim, para que se possa compreender melhor o DF como instrumento de desvelação do DI embutido no DP, passemos ao estudo do DF. SAIBA MAIS... Sobre as relações entre ideologia e educação em CHAUÍ, Marilena de Souza. Ideologia e educação. Educação & Sociedade. São Paulo, n.5, p.24-40, jan. 1980. CRITELLI, Dulce Mara. Educação e dominação cultural: tentativa de reflexão ontológica. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1981. SEVERINO, Antônio Joaquim. Educação, ideologia e contra-ideologia. São Paulo: EPU, 1986. CINE Para discutir o poder do DI no DP, assista ao filme • A ONDA cine 53 unidade 2 - Ficha Técnica: Direção: Dennis Gansel. País: Alemanha. Gênero: Drama. Lançamento: 2008. Duração: 117 minutos. Disponível em <http://cinema.cineclick. uol.com.br >. Acesso em: 31 de agosto de 2011. - Sinopse: Baseado em uma história real, o filme “A Onda” mostra como é possível a criação de doutrinas ideológicas em sala de aula, não só no passado, mas atualmente. O filme que, foi adaptado do ensaio The Third Wave (A Terceira Onda), do professor de História Ron Jones, no qual relata sua experiência numa escola da Califórnia (EUA), em 1967, na tentativa de explicar na prática como Hitler e o Partido Nazista chegaram ao poder na Alemanha. Disponível em <http://www.nomundoenoslivros. com/2010/08/filme-onda.html >. Acesso em: 31 de agosto de 2011. 2.2.4 O Discurso Filosófico O que constitui a especificidade do DF? Qual a sua “marca registrada”? O que o caracteriza fundamentalmente? Enfim, qual a essência do DF? O DF se distingue pela radicalidade de suas questões, pelo rigor com que persegue uma possível resposta e pela universalidade da verdade que pretende encontrar.Um bom exemplo do DF assim caracterizado (radical, rigoroso e universal) é o texto Meditações, do filósofo francês René Descartes (1596-1650). Nas Meditações, Descartes (1970, p. 26) tem um propósito radical: “Começar tudo de novo desde os fundamentos, visando a estabelecer algo de firme e constante nas ciências”. Ao fazer da dúvida o seu caminho seguro (Méthodos), Descartes persegue de modo rigoroso seu objetivo, até que, finalmente, atinge o Cogito como o fundamento universal de todo saber epistemológico. Mas as Meditações desvenda-nos também uma outra característica importante do DF: é um discurso sem pressupostos, ou seja, que não admite nenhuma verdade incontestável a partir da qual se começaria a filosofar. Trata-se, como dizia Descartes (Idem), de “começar tudo de novo desde os fundamentos”, sem nada pressupor, negligenciando o adquirido e correndo o risco de abrir um caminho que não conduza a parte alguma. Por aí se vê que não é no sossego do espírito que frui de suas antigas verdades que o discurso filosófico germina, mas na coragem de constantemente empreender novos começos, de enveredar-se em “tentativas onde se atola e de onde (muitas vezes) sai após esforços gastos em pura perda” (LEFORT, 1992, p. 251; 1964, p. 341. Parênteses nossos). 54 Entretanto, para além da radicalidade, da rigorosidade, da universalidade e da ausência de pressupostos, haveria outras características do DF? Merleau-Ponty, filósofo francês (1908-1961), afirma em seu texto Elogio da Filosofia (1979) que “o filósofo se reconhece pela posse inseparável do gosto pela evidência e pelo sentido da ambiguidade” (p. 2). Decorre daí que o DF, embora pretenda habitar na evidência, abrigue sempre o sentido da ambiguidade, o que nos permite caracterizá-lo também um discurso ambíguo. Mas por que o DF é um discurso ambíguo? Ainda segundo Merleau-Ponty (1979), pode-se dizer que é porque o filósofo é aquele que recusa “o direito de se instalar na posse do saber absoluto” (p. 2). Daí o dizer filosófico ser ambíguo, ser uma mescla de sombra e de luz, enfim, ser este “movimento que leva incessantemente do saber à ignorância, da ignorância ao saber” (Idem). O que faz da filosofia, não “um ‘ponto de vista superior’ de onde se abarquem todas as perspectivas locais” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 22), mas esse constante reaprendizado do olhar para o mundo. Não é outra coisa senão este movimento em duplo sentido (da ignorância ao saber e do saber à ignorância) o que se verifica, por exemplo, no discurso de filósofos tais como Platão, Husserl e, mesmo, Merleau-Ponty. Esses pensadores, na maturidade de suas filosofias, mesmo quando já eram considerados mestres, trilharam, novamente, o caminho que leva do saber à ignorância, através da revisão crítica de seus pensamentos. Assim, porque a filosofia não pretende manter o mundo deitado aos seus pés, porque ela se aborrece no saber já pronto, na verdade reificada, é por isso que o discurso filosófico se assevera também como um discurso crítico do pensamento sobre o próprio pensamento em vistas de uma forma de pensar ainda mais radical, rigorosa e universal. Tal é o sentido dos questionamentos de Foucault (1984a): [...] o que é filosofar hoje em dia - quero dizer, a atividade filosófica - senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? (p. 13). Mas o que faz o DF ser esse dizer especulativo e crítico, que se move sempre na direção de uma forma de pensar diferente? Na resposta a esta questão julgamos encontrar a essência do DF, ou seja, o seu sentido fundamental, isto é, o sentido que justifica todas as características que a ele foram referidas. 55 unidade 2 O DF é um discurso que se pretende radical, rigoroso, universal, dinâmico (movente), aporético (indagador), crítico e ambíguo pela mesma razão que faz do filósofo um philosophos. Trata- se sempre da amorosa amizade (philó) pela sabedoria (sophia). Porque cultiva a amizade (e não a posse) da sabedoria, o dizer filosófico se institui com todas as características nele verificadas. Na essência do DF é o amor à Verdade que vamos encontrar. E é nesta medida que ele pode servir ao educador como instrumento para descontaminar o DP do DI que abriga em seu íntimo mais profundo a ânsia pelo poder e a pretensão de posse da Verdade. SAIBA MAIS... Sobre o discurso filosófico em: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2007. MERLEAU-PONTY, Maurice. Elogio da filosofia. Tradução de A.B.Teixeira. Lisboa : Guimarães & C, 1979. 2.2.5 Considerações Finais Para terminar este texto, resta dizer que, é se tornando filosófico que o DP pode desmascarar o DI nele incrustado; é se fazendo cheio de amor à Verdade, de amizade amorosa pela Sabedoria, que o DP não se deixa contaminar pelo DI. Talvez este seja um dos caminhos pelo qual o DP pode atingir sua maioridade, deixando a inocência “a-crítica” e dogmática de um mero veículo ou títere do DI, tornando-se responsável pelo seu próprio dizer como um dizer próprio (CHAUÍ, 1980), contra-ideológico (SEVERINO, 1986) e comprometido com a verdade da realidade em que se encontra inserido, com a busca do sentido profundo que deve assumir perante esta verdade. CINE Para discutir as relações entre os discursos filosófico e político. assista ao filme • GIORDANO BRUNO - Ficha Técnica: Direção: Giuliano Montaldo. País: Itália. Gênero: Drama. Lançamento: 1973. Duração: 114 minutos. - Sinopse: Giordano foi um dos grandes pensadores de Esquerda de sua época, num momento em que o poder da Igreja Católica estava acima de tudo. cine 56 Ao menor descuido, qualquer um poderia ser acusado de herege e queimado em praça pública. Preso pela inquisição, o filme conta o processo pelo qual passa Giordano até sua morte. Disponível em <http://cinema.uol.com.br/resenha/ giordano-bruno-1973.jhtm>. Acesso em: 31 de agosto de 2011. 2.3 Entre a retórica e a dialética: onde situar a fala professor em sala de aula? Prezado(a) Estudante, no segundo texto desta unidade, você viu que caracterizamos o Discurso Ideológico como aquele comprometido com o poder, e o Discurso Filosófico como aquele comprometido com o saber. No texto que lhe apresentamos agora, vamos levar essa discussão sobre saber e poder, que no segundo texto foi abordada do ponto de vista da história da educação, para dentro da sala de aula, numa perspectiva de abordagem filosófica do discurso do professor neste ambiente. Você está fazendo um curso de Pedagogia a distância e sua sala de aula é virtual, mas, até aqui, sua trajetória escolar a colocou, por vários anos, num sala de aula com a presença física de professores e alunos diante uns dos outros. Este texto trata da sala de aula presencial, mas tentaremos,no decorrer de nossa reflexão, pensar o modo como podemos relacionar os problemas que trabalhamos nele com aqueles que também podem estar presentes em uma sala de aula virtual ou na relação à distância entre o professor e o aluno. É neste sentido que o (a) convidamos, na leitura a seguir, a refletir conosco sobre o real compromisso da fala (ou do texto) docente: é com o poder ou com o saber? Esta questão, na nossa opinião, transcende o ensino presencial e se aplica também ao ensino a distância, pois o que você está lendo e estudando desde a primeira unidade deste curso não é mais que a fala escrita de um docente, presente virtualmente diante de você, através deste texto. 2.3.1 Introdução Este trabalho é resultado da tentativa de produzir um texto incitado por um debate iniciado, na disciplina Filosofia da Educação, com os (as) estudantes do 5º período de Pedagogia da Universidade Federal de São João del-Rei, no primeiro semestre de 2004. Discutimos, em grupos de até quatro pessoas, a seguinte questão: a partir de sua experiência,desde o primeiro grau, passando pelo nível médio e, agora, no ensino superior, em sala de aula, quem fala mais, o professor ou o aluno? Nas respostas dadas pelos dez grupos formados na sala, todos identificaram o professor como aquele que, na maioria das vezes, mais fala em sala 57 unidade 2 de aula. E, mesmo quando não é este o caso, mesmo quando opta por metodologias mais dialógicas, como seminários, debates, estudos em grupo, leituras ou vídeos comentados, ainda assim, a fala do professor é aquela que o aluno mais leva em conta. Tais constatações não surpreenderam a ninguém. Pelo contrário, surgiram como naturais. REFLITA Algumas respostas dadas pelos grupos: “O professor fala mais porque detém o conhecimento”, “porque seu discurso é mais amplo por deter uma bagagem maior de conhecimento e experiências”, “pois ele tem uma postura de detentor do saber”, “porque é tido como aquele que sabe mais”, “porque na maioria das vezes é visto como o único detentor do conhecimento”. Procuramos, então, indagar: Por que isso? De diversas maneiras, as respostas giraram em torno da ideia de que o professor fala mais porque, pelo menos supostamente, sabe mais que os alunos, possui um logos ou discurso mais rico que aquele dos alunos à medida que se encontra “enriquecido pela memória cultural, aquela de que falava Gasset, formada por vivências acumuladas e enriquecidas ao logo do tempo” (TRIGUEIRO, 1968, p. 226). Logo, para o próprio aluno parece natural que o professor possa falar mais ou tenha de sua fala uma escuta privilegiada. É para que promova o saber - seja aquele que possui e repassa ou transmite para o aluno, seja o saber incipiente que o aluno traz da própria experiência e que será potencializado ou atualizado na relação com o professor, seja ainda o saber que o próprio aluno constrói ou adquire na relação mediatizada pelo professor com o saber já produzido em nossa cultura - é por isso que, pelo que surgiu no debate, o professor pode (no sentido de que tem o direito) falar mais e sua fala tem mais poder (no sentido de que é acatada pelo aluno, senão pelo respeito, pelo menos, por medo ou como matéria de prova). Em suma, pela discussão com a turma, o professor tem mais poder à fala e sua fala tem mais poder, porque com sua fala ele promove o saber. Mas será sempre este o caso? E se o poder à fala e o poder da fala do professor puder ser usado para promover seu poder sobre os alunos? E se o logos docente, em sala de aula, estiver a serviço, não do saber, mas do poder de um (o professor) sobre os outros (os alunos)? No horizonte desses questionamentos, procuraremos relacionar a fala do professor em sala de aula a duas maneiras de falar identificadas e caracterizadas por H. Arendt (1993), em seu livro A dignidade da política, entre os gregos do tempo de Sócrates. As duas maneiras são a retórica e a dialética. Nossa intenção é refletir a seguinte pergunta: entre essas duas formas de falar, onde situar a fala do professor em sala de aula. Começamos por uma caracterização da retórica e da dialética. Depois, traçamos um quadro comparativo entre elas para, em seguida, considerarmos a 58 questão central do texto: entre elas, onde situar a fala do professor? Finalmente, concluímos indagando-nos quanto à possibilidade ou não de se abdicar completamente da retórica em sala de aula. 2.3.2 Caracterização da Retórica e da Dialética No que diz respeito à retórica, foi criada por Protágoras de Abdera e, historicamente, se impôs sobre Atenas por volta de 450 a.C. sob a forma da sofística. Atenas, nesta época, estava no auge de sua democracia. Nela, todo cidadão, ao completar 18 anos, podia participar da Assembleia, na qual era dada a palavra final em assuntos relativos à guerra, à paz, aos tratados, à legislação e obras públicas, enfim, a todas as atividades governamentais. A Assembleia era um grande comício ao ar livre, com todos os cidadãos que quisessem comparecer e as decisões eram tomadas pela maioria simples dos votos dos cidadãos presentes. (FINLEY, 1988). ATENÇÃO! Mas todo habitante de Atenas, na época da qual falamos, era cidadão? Quem dera! O cidadão era o homem livre, filho de pai e mãe atenienses. Estavam excluídos da democracia ateniense, as mulheres, os escravos, em sua maioria, prisioneiros de guerra e os metecos, estrangeiros, em grande parte, artesãos e comerciantes, que mesmo sendo gregos, não sendo atenienses, estavam fora da democracia. Nesta democracia, repleta de jovens ambiciosos e sedentos de poder, o sofista aparece como “o mestre devotado, que ensina que não há verdade em si, que existe apenas opiniões variando com os indivíduos ou com as cidades; e a melhor opinião é aquela que assegura o êxito” (REBOUL, 1998, p.11). O relativismo é, portanto, o fundamento da retórica sofista. Com ela, a palavra torna-se um instrumento de poder pelo qual a retidão do que se diz é menos importante do que “a maneira de dizê-lo para impô-lo ao outro. Tornar-se hábil para falar a fim de tornar o homem poderoso” (MANON, 1992, p. 39), esta é a arte dos retóricos, na qual o que se pretende é convencer os outros do que quer que seja, “de fazer do mais fraco argumento o mais forte” (REBOUL, 1998, p.12). Daí, Arendt (1993) definir a retórica como a fala, por excelência, persuasiva. E compreendamos “por ‘persuadir’ o ato de suscitar no outro, por meios tanto afetivos quanto racionais, uma crença” em determinada opinião (REBOUL, 1998, p.7-8). Obreira da persuasão, a retórica conduz à crença (PLATÃO, 1989). E acreditar, como define Manon (1992) é “consentir por outras razões que não as próprias, aderir sem ter em si 59 unidade 2 o recurso para distinguir a idéia falsa da idéia verdadeira” (p. 35). Na crença demitimos nossa capacidade de discernir por nós mesmo e submetemo-nos ao jogo do outro. E é isso, precisamente, o que almeja o retórico, que acreditemos nele; por isso, para suscitar em sua plateia a crença em sua opinião, ele busca atingi-la tanto pelo logos quanto pelo pathos, ao mesmo tempo “pela verdade e pela volúpia”, como dizia Pascal (apud REBOUL, 1998, p. 8). Manipulando sentimentos e argumentos, por deduções e seduções, o retórico ataca seus ouvintes tanto na cabeça quanto no coração. Insinuando-se no outro e impondo a ele sua lei, a retórica paralisa o espírito crítico e o subjuga, deixando-lhe, entretanto, a impressão de que continua livre. A retórica define, assim, “o poder em estado puro, aquele que se exerce sem ser reconhecido, que escraviza também, com o consentimento dos que se submetem a ele” (MANON, 1992, p. 36). É nesse sentido que, para Arendt, a retórica não deixa de ser um tipo de violência, de governo pela violência, só que ao invés de se usar a força física ou as armas, usam-se as palavras. A “violência só com palavras, [...] a violência com meras palavras” (ARENDT, 1993, p. 96), afirma a filósofa. É a tirania simpática da doxa de um sobre as dos outros. Num dos sentidos que Arendt (1993) nos oferece da doxa, ela é a “formulação em fala [...] daquilo que me parece” (p. 96). Nessa perspectiva, ela equivale ao verossímil, aquilo que parece verdade, que pode ou não ser verdadeiro. Na doxa, portanto, expressamos nossa compreensão do mundo tal como ele se mostra para nós. Fundada nesse posicionamento da consciência perante o real ou nesse aparecer do mundo tal como se apresenta para nós ou como o vemos do lugar em que estamos, a doxa não é mera “fantasia subjetiva” ou resultado da pura “arbitrariedade” daquele que fala (ARENDT, 1993, p. 96). Ela surge de nosso ponto de vista sobre o mundo e sob esse aspecto não há violência alguma no ato de alguém querer expor aos outros a sua doxa sob determinado assunto. Entretanto, para Arendt (1993), a violência surge quando se pretende impor a própria opinião como “alguma coisa de absoluto e válida para todos” (p. 96), quando se busca colocar o próprio ponto de vista sobre o mundo comose fosse a visão completa do mundo. Deste momento em diante, ao universalizar seu ponto de vista, o que o retórico pretende é fazer desaparecer ou escamotear os outros pontos de vistas sobre a realidade, ocultando, assim, a própria realidade, à medida que ela só se torna visível a partir de seu ponto de vista. Ao realizar esta inversão, na qual abstrai do todo o seu ponto de vista e pretende que esta perspectiva particular seja universal, é exatamente aí que a retórica se assevera como um discurso que visa, por excelência, o poder, pois, embora seja uma perspectiva 60 sobre o mundo, procura abafar as outras, prevalecer sobre elas e se colocar como a única e verdadeira maneira de ver o mundo. Em suma, portanto, “o problema moral que a retórica põe não é aquele da mentira”, pois a doxa, a princípio, não é necessariamente falsa, mas aquele “do poder” (REBOUL, 1998, p. 109). Daí, Arendt (1993) concebê-la como a “forma especificamente política de falar” (p.91), porque, em última análise, o que ela visa, essencialmente, é o poder de um sobre os outros. SAIBA MAIS... Sobre a Retórica em ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Rideel, 2007. CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 4. Ed. São Paulo: Ática, 1989. HALLIDAY, Teresa Lucia. O que é a retórica. São Paulo: Brasiliense, 1990. PLATÃO. Górgias ou a oratória. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. PLATÃO. Fedro. São Paulo: Martin Claret, 2007. Consideremos, agora, a dialética. Arendt (1993) a identifica com a “forma de falar especificamente filosófica” (p. 95). Nela, o que se pretende é “discutir algo até o fim com alguém” (p. 96). Por isso, para a filósofa, em contrapartida à retórica na qual temos a fala de um para muitos, a dialética “só é possível em um diálogo entre dois” (p. 96). Em Sócrates, através da maiêutica, ela se apresenta como a “a arte da obstetrícia”, pela qual o filósofo ajudava “os outros a darem à luz o que eles próprios pensavam, a descobrirem a verdade em sua doxa” (p. 97). Com Sócrates e sua “arte de parturejar os espíritos” (GRESSON, 1956, p. 83), vemos a dialética empenhada em “gerar essa verdade que cada um possui em potencial” (ARENDT, 1993, p. 97). Para Sócrates, não se tratava de, na cidade, engendrar o poder de um sobre os outros, mas de “tornar a cidade mais verdadeira fazendo com que cada cidadão desse à luz suas verdades” (Idem). Não é intenção do dialético ter o poder ou “dizer verdades filosóficas,” mas tornar a todos “mais verdadeiros” (Idem) O método para isso era “a dialegesthai, discutir até o fim” para “revelar a doxa em sua verdade” (idem, p. 97), sem que fosse, necessariamente, preciso chegar a essa verdade. Na perspectiva socrática, “ter discutido alguma coisa até o fim, ter falado sobre alguma coisa, sobre a doxa de um cidadão, isso já parecia um resultado suficiente.”(Idem, p. 98). 61 unidade 2 Vemos, portanto, a dialética como um tipo de diálogo mais comum entre amigos, que - como escreve Arendt (1993) - ao “falarem sobre o que têm em comum entre si, isso se torna muito mais comum entre eles. Não só o assunto ganha sua articulação específica, mas desenvolve-se, expande-se e finalmente, no decorrer do tempo e da vida, começa a constituir um pequeno mundo particular, que é compartilhado na amizade” (p. 98). Ao invés, portanto, do poder de um sobre os outros, a dialética fomenta a amizade entre um e outro. E a amizade, como explica Arendt (1993), referindo-se a Aristóteles, faz com “que os amigos se tornem [...] parceiros iguais em um mundo comum” (p. 99). Nesse sentido, o que alcançamos com ela “é justamente a comunidade” (p. 99), uma comunidade fundada no diálogo, na qual não se busca impor a própria opinião sobre aquelas dos demais, mas procura-se “compreender a verdade inerente à opinião do outro” (p.99), ver o mundo “do ponto de vista do outro” (p. 99). Nesse “mundo comum, construído sobre a compreensão da amizade”, o governo, o controle ou o poder de um sobre os outros não tem nenhuma razão de ser, é desnecessário (p. 100). 2.3.3 Retórica e Dialética em sala de aula: quadro comparativo Na Retórica • A doxa ou a opinião do outro (do aluno) não é considerada. • Tem-se a fala de um (o professor) para muitos (os alunos), visando à persuasão, isto é, fazer com que os outros acreditem na opinião de um, permitindo-lhe impô-la a eles. • Engendra o poder de um sobre os outros. • Serve-se do discurso para alcançar o poder. • Engendra-se um Dualismo, no qual uma fala se põe como verdadeira e as outras são falsas. • Institui um centro do discurso supostamente verdadeiro. Na Dialética • Considera-se a doxa ou a opinião do outro. • É a fala de um com o outro e visa à descoberta da verdade presente na opinião tanto de um quanto na do outro. • Cria a amizade de um com o outro. • Serve-se do discurso para buscar o conhecimento. • Todas as falas podem ser parcialmente verdadeiras. • A fonte do discurso verdadeiro não está centrada em um único indivíduo. 62 • Doutrina-se, à medida que se puxa o aluno para dentro do discurso (docente) supostamente verdadeiro. • Educa-se à medida que conduz o aluno ao encontro de si mesmo e dos outros. CINE Para identificar e discutir as características da Retórica, assista ao filme • OBRIGADO POR FUMAR - Ficha Técnica: Direção: Jason Reitman. País: EUA. Gênero: Comédia. Lançamento: 2006. Duração: 92 minutos. - Sinopse:-O porta-voz das grandes empresas do tabaco manipula informações para minimizar o risco do uso de cigarros. Porém o interesse de seu próprio filho em seu trabalho faz com que ele repense o que faz. Disponível em <www.adorocinema. com>. Acesso em: 31 de/agosto de 2011. Explicitadas, em seus principais pontos, as diferenças entre a retórica e a dialética, resta- nos agora voltar à questão inicial, motivadora deste texto, qual seja; onde situar, entre a retórica e a dialética, a fala do professor em sala de aula? A resposta parece ser óbvia. Do lado da Dialética, diríamos, o que nos permitiria mudar essa cena tão comum nas escolas, na qual temos dezenas de alunos ouvindo e copiando conteúdos que, concebidos como “verdades absolutas” ou “saberes já feitos”, vão sendo “torrencialmente lançados da cátedra” (TRIGUEIRO, 1968, p. 230) pelo professor, sem se preocupar em articulá-los com o logos do aluno, sem que seja necessária sua participação ativa, pois o ritmo, a sequência e a complexidade dos conteúdos, enfim, tudo é determinado pela retórica docente, cabendo ao aluno a tarefa de armazenar, tanto quanto possível, os conhecimentos que lhe são transmitidos e que depois serão cobrados na prova. Nessa perspectiva, mesmo que o professor fale bem e tenha um bom conteúdo, ao ceder à retórica, seu canto de sereia se institui como um “esforço unilateral” que é mais verbosidade, tagarelice estilizada do que propriamente um verbo, demonstrando, com isso, apenas que não há confiança na criatividade do estudante (TRIGUEIRO, 1968, p. 230). Como adverte Alain (1978), “ninguém se instrui escutando” (p. 103), ninguém aprende a escrever e a pensar ouvindo alguém “que fala e pensa bem. É preciso tentar, fazer, refazer, até que o ofício entre, como se diz” (p. 91). O conhecimento acontece através da relação do educando cine 63 unidade 2 com o objeto e não pela ação do professor. É no diálogo com o pensamento, com a cultura presente nas obras, nas práticas sociais que o aluno aprende, sendo o papel do professor mais o de um mediador que o de um transmissor ou repassador do conhecimento (CHAUÍ, 1980). Entretanto, optar pela dialética não significa que o professor tenha que deixar de falar em sala de aula, mas que faça de sua fala uma fala dialógica, isto é, aberta ao logos do aluno um logos menos rico que o do professor, um logos ainda imaturo; contudo, “não uma imaturidade tábula rasa, mas uma imaturidade abertura” (TRIGUEIRO, 1968). Trata-se, assim, de atribuir ao aluno o direito de se colocar no diálogo, ultrapassandoesse modelo de comunicação entre professor e aluno tão comum em nossas salas de aula: esse que se produz entre “o rico e o pobre, o ato e a potência, o informado e o desinformado” (Idem, p. 226); enfim, entre o professor que, supostamente, sabe, por isso, fala e ensina e o aluno que não sabe; por isso, deve se calar e aprender. O erro dessa visão costumeira, segundo Trigueiro (1968), está em não concedermos que o aluno tenha seu logos e que, primeiro, é só a partir deste que ele pode engrenar uma “comunicação verdadeira com o logos do mestre”; e, segundo, que “o logos do aluno é válido por si mesmo, não por simples complacência, demagógica ou paternalística” por parte do professor (p. 226). Acompanhando ainda as reflexões do professor Trigueiro (1968), o que é necessário encontrar é “o modo de captar o logos: do aluno pelo professor, e deste por aquele”(p. 226). Assim, dialeticamente, estaremos fazendo da aula uma conversa entre dois logos. No trânsito de um ao outro, “o tempo de germinação: um propõe, o outro acolhe, e, ao devolver o que lhe foi proposto, a resposta será a recusa, pela proposição de outro verbo, ou a adesão, na qual o verbo de quem recebeu se integra – enriquecendo-o – no verbo de quem deu.” (TRIGUEIRO, 1968, p. 230). Mas, se o que se propõe aqui é o abandono do monólogo retórico em prol do diálogo ou da conversatio dialética, esta também não está isenta de todo risco. É preciso que nos perguntemos: qual seria o verbo veiculado nessa conversa entre dois logos? O risco que corremos é o de fazer da conversatio um espaço em que transita um assunto que não acrescenta em nada a capacidade (do professor e do aluno) de compreensão, de discernimento da realidade em que se encontram. Transitar da retórica para a dialética, do monólogo persuasivo ao diálogo não implica fazer da aula um espaço para a verborragia: muitas palavras, mas pouca substância. 64 Como afirma Paulo Freire em seus diálogos com Ira Shor, “uma experiência dialógica que não se baseia na seriedade e na competência é muito pior do que uma experiência ‘bancária’, em que o professor simplesmente transfere conhecimento” (FREIRE E SHOR, 2001, p.101). Fazer da aula um lugar para o “papo furado” entre professor e aluno é, como identificam os educadores citados acima, dar aos alunos testemunho “de irresponsabilidade intelectual”, passar-lhes a impressão de que “aprender é uma coisa impulsiva e desorganizada [...], que o conhecimento é uma coisa que acontece [...] por acaso” (Idem), quando não se trata, absolutamente, disto. O conhecimento exige disciplina e só tem sentido se nos serve de instrumento para a compreensão ou transformação da realidade (MORIN, 2000). Desse modo, a tarefa do professor na perspectiva dialética é a de, com zelo e rigor, ajudar o aluno a tomar consciência das necessidades postas por sua realidade, colaborando na articulação delas com o objeto de conhecimento trabalhado por eles (professor e alunos). Vemos, portanto, que a opção pela dialética também envolve seus riscos. Contudo, ainda assim, do ponto de vista de um logos docente que vise ao saber e não ao poder, são maiores as razões para situar a fala do professor em sala de aula do lado da dialética que da retórica. Mas como a filosofia é essa mania quase obsessiva de criar problemas onde nada parece problemático ou de colocar questões onde nada parece questionável (THÉVENAZ, 1966), a pergunta final que pretendemos refletir, à guisa de conclusão, é a seguinte: é realmente possível para o professor abster-se completamente da retórica em sala de aula? SAIBA MAIS... Sobre dialética, educação e sala de aula em: LIMA, Paulo Gomes. Transversalidade e docência universitária: por uma recorrência dialética do ensinar-aprender. Educação - Revista do Centro de Educação, Santa Maria, s.n, v.33, n.3, p. 457-468, set./dez. 2008. VASCONCELLOS, Celso dos S. Metodologia dialética em sala de aula. Revista de Educação AEC, Brasília, s.n, n.83, p. 28-55, abr./jun. 1992. VASCONCELLOS, Celso dos S. A questão da disciplina: dialética da interação professor-aluno. Revista de Educação AEC, Brasília: s.n, n.87, p. 82-87, abr./jun. 1993. 2.3.4 Considerações finais Nossa realidade como professor não é novidade. Contando, quase todo tempo, apenas, 65 unidade 2 como se diz, “com o cuspe e o giz”, deparamo-nos com salas de aula lotadas de alunos que nem sempre têm tempo, ânimo ou hábito de ler, nem sempre estão interessados pelo que se estuda na escola, nem sempre têm dinheiro para adquirir o livro ou o xerox do texto que o professor precisa para suas aulas. Nessa realidade, será que podemos, nós professores, realmente passar sem a retórica? Talvez seja preciso admitir que, para ensinar, temos necessidade da retórica. Quantas vezes temos que, apenas com a fala, despertar a atenção do aluno, sustentar seu interesse, ilustrar aquilo que falamos, criar imagens e argumentos que facilitam sua compreensão. Quantas vezes precisamos convencer os alunos da importância do que ensinamos, persuadi-los a encontrarem o que pretendemos que aprendam. E toda esta prática docente não é da ordem da retórica? Todo professor sabe que, em sala de aula, muitas vezes, “para ser crível, não basta a um discurso que seja verdadeiro, que seja claro para ser compreendido, é preciso toda uma técnica para que ele seja escutado, assimilado e retido.” (REBOUL, 1998, p.110-111). E essa técnica docente para dissuadir, estimular e levar o aluno a ler, a estudar e a compreender o que propomos, mesmo que o professor não tenha consciência dela, é, em grande parte, de ordem retórica. Vemos, portanto, que não é tão fácil prescindir da retórica em sala de aula. Contudo, é possível amenizá-la, tomando consciência do uso que se faz dela, conduzindo os alunos à compreensão de sua utilidade no ensino e dos quadros conceituais que lhes permitam identificá-la e dominá-la, ao invés de, sem se darem conta, a ela se submeterem. Entre a retórica e a dialética, onde situar a fala do professor? Concluindo, provisoriamente, este texto que pretende ser apenas uma introdução e um convite à reflexão desse assunto, a resposta mais razoável talvez seja entre elas, oscilando entre elas, servindo-se da retórica para abrir espaço para a dialética. No ensino massificado, com condições sofríveis tanto para o trabalho do professor quanto para o estudo do aluno, a dialética não é caminho fácil; mas, se quisermos ir além das imagens opostas, mas irmãs, do professor como operário da reprodução ou “Peregrino da Revolução” que, “sem discutir a ‘verdade’”, busca simplesmente colocá-la “dentro do maior número possível de cabeças” (FREIRE E SHOR, 2001, p. 108), a dialética é o caminho necessário. Nessa perspectiva, aprendemos (professores e alunos) a fazer da sala de aula um espaço para dialogarmos sobre nossa experiência, para construirmos ou reconstruirmos nossos saberes sobre ela, iluminando-a e orientando nossa ação, seja para confirmá-la, seja para transformá-la. 66 ATIVIDADE Use a seguinte chave para responder as questões de 1 a 3: ( A ) se somente as afirmações I e II forem verdadeiras. ( B ) se somente as afirmações I e III forem verdadeiras. ( C ) se somente as afirmações II e III forem verdadeiras. ( D ) se somente as afirmações II e IV forem verdadeiras. ( E ) se somente as afirmações I, II e IV forem verdadeiras. ( F ) se somente as afirmações I, III e IV forem verdadeiras. ( G ) se todas as afirmações forem verdadeiras. 1- ( ) I. Na retórica, a fonte do discurso verdadeiro é um diálogo entre dois indivíduos. II. O professor em sala de aula, muitas vezes, precisa utilizar a retórica para convencer os alunos da importância do que ensina e persuadi-los a encontrarem o que pretende que aprendam. III. A retórica se impôs sobre Atenas com os Sofistas, que ensinavam que não há verdade em si, que existe apenas opiniões variando com os indivíduos ou com as cidades; e a melhor opiniãoé aquela que assegura o êxito. IV. Arendt identifica a retórica como a forma de falar especificamente filosófica. 2- ( ) I. Optar pela dialética não significa que o professor tenha que deixar de falar em sala de aula, mas que faça de sua fala uma fala dialógica, isto é, aberta ao logos do aluno. II. O problema moral que a retórica põe não é aquele do poder, mas o da mentira. III. Na doxa, expressamos nossa compreensão do mundo tal como ele se mostra para nós. IV. Quando emitimos nossa opinião (doxa) sem querer que ela seja a de todos, estamos sendo retóricos. 3- ( ) I. Com Sócrates e sua “arte de parturejar os espíritos” vemos a dialética empenhada em gerar a verdade que cada um possui em potencial. II. Não é intenção do dialético ter o poder e dizer verdades filosóficas, mas tornar todos mais verdadeiros e amigos. III. Para Arendt, a retórica não deixa de ser um tipo de violência, que surge quando se pretende impor a própria opinião como alguma coisa de absoluto e válida para todos, quando se busca colocar o próprio ponto de vista sobre o mundo como se fosse a visão completa do mundo. IV. A dialética é um tipo de diálogo mais comum entre amigos, em que cada um procura compreender a verdade inerente à opinião do outro. 67 A FILOSOFIA NA PERSPECTIVA DOS PROBLEMAS DA EDUCAÇÃO Objetivos • Expor a filosofia de Michel Serres dando uma visão panorâmica de sua obra. • Conceituar concepção de educação como mestiçagem na filosofia de Serres. • Explicitar a relação entre exposição e mestiçagem. • Esclarecer a necessidade do desprendimento para que haja exposição. unidade 3 69 unidade 3 3.1 A Educação como Mestiçagem em Michel Serres “Ama o outro que engendra em ti o espírito.” Michel Serres (1993a, p. 62) “Sem terra nem tribo, vemo-nos como cidadãos do mundo e irmãos dos homens.” Michel Serres (2005, p. 192) 3.1.1 Introdução O texto que utilizamos para desenvolver esta unidade foi publicado como capítulo de livro, em coautoria com Maria E. E. Santos, ex-bolsista de Iniciação Científica do curso de Pedagogia da UFSJ. Para referência completa, verifique Oliveira e Santos (2007). Feito esse esclarecimento, passemos ao texto. Michel Serres é uma das figuras mais instigantes da vida intelectual contemporânea. Contudo, ainda é pouco conhecido no meio acadêmico brasileiro. Por isso, antes de passarmos para a exposição e o detalhamento do objetivo específico deste trabalho, faremos uma pequena apresentação da vida e da obra deste pensador. O filósofo descende de uma família de camponeses e marinheiros. Nasceu em Agen, sudoeste da França, em 1930. Começou seus estudos superiores na Escola Naval Francesa, onde cursou matemática, entre os anos de 1949 e 1951. Depois, entrou na Escola Normal Superior, de Paris, concluindo, em 1955, o curso de Filosofia. Alistou-se, em seguida, na marinha francesa e viajou pelo mundo até 1958. De volta à academia, defendeu, em 1968, sua tese de doutorado sobre Leibniz, filósofo e matemático alemão. Neste mesmo ano, participou com Michel Foucault da criação da Universidade de Vincennes. Foi indicado, logo após, para lecionar História das Ciências no Departamento de História da Sorbonne. Desde 1984, leciona também em Stanford, nos EUA. SAIBA MAIS... Para mais informações e esclarecimentos sobre a vida e a obra de Michel Serres, a melhor referência é o livro Eclaircissements (SERRES, 1994), um conjunto de cinco entrevistas do filósofo com o amigo e ex-aluno Bruno Latour. Este livro foi traduzido no Brasil por Luiz Paulo Rouanet, com o título Luzes, lançado pela editora Unimarco de São Paulo (SERRES, 1999). 70 Autor de uma vasta obra (são mais de 50 livros até 2010), difícil de classificar dentro das correntes do pensamento ocidental, Serres compõe, em passadas largas, uma filosofia original e sedutora. Ao percorrer os confins dos grandes domínios do pensamento (ciências exatas e humanas, literatura, artes e religiões), o filósofo “sonha com uma reconciliação dos diversos ramos do saber, longe dos dogmas e dos imperialismos teóricos.” (SERRES, 1990a, p. 178). Inimigo do espírito de sistema e partidário de um novo enciclopedismo, publicou seu primeiro livro em 1968. Deu continuidade à sua obra com uma série de cinco livros, escritos entre 1969 e 1980, que têm como título geral Hermes. Nesses livros, o filósofo desenvolve as múltiplas facetas de sua reflexão sobre as ciências e sua influência sobre a literatura e as artes, temas que ainda desenvolve em vários ensaios até 1987. Um novo período na filosofia de Serres se inicia com Statues (1987), meditação sobre a morte e a ausência de comunicação entre os homens. A partir desta obra, a comunicação passa, cada vez mais, a ocupar sua reflexão. Nesse sentido, após Statues, o filósofo escreve Le contrat naturel (1990b), que faz apelo a uma relação contratual ou simbiótica do homem com a natureza; Le tiers-instruit (1991), que trata da educação e da célebre mestiçagem cultural; La légende des anges (1993b), que propõe uma compreensão filosófica para a evolução das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e seu impacto nas relações dos homens entre si e com o conhecimento; Hominescence (2001), no qual o filósofo procura refletir como o homem se inventa e se transforma com o progresso das biotecnologias e das TIC; e L’incandescent (2003), que propõe a refundação do humanismo e a consolidação da paz através da ruptura da fronteira entre natureza e cultura. O estudo que aqui apresentamos se situa na fase da filosofia de Serres aberta com Statues (1987). Dentro dessa fase, especificamente no Le tiers-instruit, livro em que Serres condensa sua reflexão sobre a educação. Reconhecido pelos críticos franceses como pequena obra-prima, garantiu ao filósofo, logo após sua publicação em 1991, a eleição para a Academia Francesa. Em 1993, foi traduzido no Brasil com o título Filosofia Mestiça. É a partir dele que abordamos o sentido da educação em Serres.O livro Filosofia Mestiça (1993a) está organizado em três partes: Criar, Instruir e Educar, precedidas por um prólogo intitulado Laicidade, no qual Serres apresenta-nos Arlequim. Com este personagem da commedia dell’arte, o filósofo nos faz refletir sobre a educação não através de conceitos, mas, sobretudo, através dessa figura que erra ou vagueia pelas 71 unidade 3 paisagens do mundo, que é capaz de vibrar entre a pessoa e o símbolo, que alia o singular ao Universal, um personagem que, portanto, muito mais que um conceito abstrato, possui as singularidades capazes de encarnar o ideal pedagógico de mestiçagem proposto em Filosofia Mestiça. Nos demais capítulos do livro, o filósofo descreve com precisão e originalidade o processo de formação de um aprendiz, que tem sua educação pautada na concepção da pluralidade do mundo e das coisas e na tolerância à alteridade. Para Serres, toda educação consiste numa exposição e numa mestiçagem. Exposição, que implica desprender-se de uma posição ou de um lugar no qual nos mantemos ou que nos aprisiona e ir ao encontro dos outros e do mundo; mestiçagem, que implica dilatar-se, dividir-se, tornar-se vários através desses encontros. Assim, para Serres, quanto mais exposto mais nos mestiçamos, e quanto mais mestiços, mais educados nos tornamos. O sentido da educação configura-se, assim, sempre como um movimento de exposição e de mestiçagem. Esta é a principal ideia que tematizamos neste trabalho. Para melhor compreender o sentido desse ideal pedagógico, primeiramente apresentamos a história, contada por Serres, da figura que o incorpora, Arlequim. Em seguida, procuramos ver, em linhas gerais, o que essa história nos ensina sobre a filosofia de Serres. Daí por diante, centramo-nos, mais especificamente, na questão da educação, propondo a reflexão da relação entre exposição e mestiçagem e, por fim, explicitando a necessidade do desprendimento para que haja exposição. SAIBA MAIS... Sobreas relações da filosofia de Serres com a Educação: CALLONI, Humberto. Paulo Freire e Michel Serres: aproximações na perspectiva interdisciplinar num diálogo a múltiplas vozes. (Tese de doutorado). Rio Grande do Sul: UFRGS, 2002. (Mimeo) SANTOS, Maria Emanuela Esteves dos. Michel Serres: a possível nova hominescência e os desafios para a educação do homem contemporâneo. São Paulo: Unicamp, 2010. Dissertação (Mestrado em Educação). PEREIRA, Wani Fernandes Pereira. Por uma pedagogia da complexidade: cartografia das ideias de Clarival. (Tese de doutorado). Rio Grande do Norte: UFRGN, 1999. 72 3.1.2 A História de Arlequim, Imperador da Lua. Serres nos conta que Arlequim, Imperador da Lua, chega de sua viagem de inspeção às terras da Lua e aparece no palco, diante de seus súditos, para responder às perguntas deles. A plateia, ansiosa, está “na expectativa de grandes extravagâncias”. Todos esperam ouvir o rei falar das maravilhas que viu, “atravessando lugares extraordinários”. Mas, contrariando a expectativa geral, Arlequim anuncia apenas que não há novidade alguma para contar, que em toda parte tudo era como ali onde estavam, tudo igual ao que estavam acostumados a ver. Decepcionados, os ouvintes relutam em acreditar no rei e insistem: “Lá fora, obviamente, tem que ser diferente! Será que Arlequim não conseguiu observar nada durante a viagem?” (SERRES, 1993a, p. 1). Mudos, estupefatos, todos começam a se agitar, enquanto Arlequim, arrogante e desdenhoso, desafia a plateia repetindo doutamente sua lição: nada de novo sob o Sol, nada de novo na Lua. Mas é neste momento que Serres faz intervir na cena o que qualifica como “algum belo e maldoso espírito”, que se levanta no meio da plateia e, apontando o casaco de Arlequim, grita: “Hei! [...] você aí, que diz que tudo em toda parte é como aqui, quer que a gente acredite também que sua capa é feita de uma mesma peça, tanto na frente como na traseira?” (Idem, p. 1). O rei, que proclamava ser o mundo um espaço homogêneo e sem novidades, diante de sua própria roupa, é pego em contradição. A roupa de Arlequim dá a ver o contrário do que anunciam suas palavras. E como é a roupa de Arlequim? Serres assim a descreve: Composição descombinada, feita de pedaços, de trapos de todos os tamanhos, mil formas e cores variadas, de idades diversas, de proveniências diferentes, mal alinhavados, justapostos sem harmonia, sem nenhuma atenção às combinações, remendados segundo as circunstâncias, à medida das necessidades, dos acidentes e das contingências (Idem, p. 2). Será que a roupa do Rei - indaga Serres - “mostra uma espécie de mappa-múndi, o mapa das viagens do artista, como uma mala constelada de marcas?”. E prossegue Serres como quem reflete com a plateia de Arlequim: “O lá-fora, então, nunca é como aqui. Nenhuma peça se parece com a outra, nenhuma província jamais pode ser comparada com tal outra, e todas as culturas diferem. A pelerine-portulano desmente o que pretende o Rei da Lua” (Idem, p. 2). Para além das palavras de Arlequim, que vitrificam o mundo e dão dele uma imagem homogênea e sem novidades, monótona como as paisagens lunares, sobressai a roupa do Rei, que, mais que suas palavras, revela a verdadeira paisagem de suas viagens. Uma 73 unidade 3 paisagem “inesperada em todo canto, miserável, gloriosa, magnífica de cortar o fôlego e de fazer o coração bater”. Diante da palavra “poderosa e banal”, que “reina, monótona, e vitrifica o espaço; soberbo de miséria, - comenta Serres - o traje, improvável, deslumbra”. Então, novamente, “o belo espírito pérfido”, do meio da sala, questiona Arlequim: “Tu te vestes como o roteiro de tuas viagens?” A plateia cai no riso diante do rei envergonhado com a pergunta que o apanha. (Idem, p. 2). Arlequim, que não é bobo, prossegue Serres, “logo advinha a única saída para o ridículo da situação: basta tirar o casaco que o desmente.” Serres descreve a cena da seguinte forma: primeiro, o rei “se levanta, hesitante, olha boquiaberto os panos de seu traje; em seguida, com ar de bobo, olha para o público e de novo para seu casaco, como que tomado de vergonha. A plateia ri, um pouco abobalhada. Ele demora, se faz esperar”; mas, enfim, decide-se e retira o casaco. (Idem, p. 3). Ao se despir, o rei aparece nu? Debaixo do casaco de Arlequim, o que aparece? Outro casaco, idêntico ao primeiro, e, debaixo deste segundo, um outro e mais outro, até que, despido de todos os seus casacos, o Rei, finalmente, aparece nu. Contudo, a nudez do rei desfaz a contradição que o levou a se despir? O corpo do rei, livre das vestes multifacetadas que se opunham à mesmice do mundo que defendia suas palavras, iria colocá-lo em coerência com o que dizia? Vejamos como Serres nos descreve a nudez real: Estupor! Tatuado, o Imperador da Lua exibe uma pele multicor, muito mais cor do que pele. Todo corpo parece uma impressão digital. Como um quadro sobre uma tapeçaria, a tatuagem - estriada, matizada, recamada, tigrada, adamascada, mourisca - é um obstáculo para o olhar, tanto quanto os trajes ou os casacos que jazem no chão. [...] Até mesmo a pele de Arlequim desmente a unidade pretendida por suas palavras. Também ela é um casaco de arlequim (Idem, p. 3). Como fazer para livrar-se da contradição? O mundo dito, pelas palavras de Arlequim é um; o mundo visto pela plateia, no próprio corpo do rei, é outro. Há ainda uma última saída, que Arlequim se esfole; que arranque a própria pele. Mas, pondera Serres, “pode-se pedir a alguém para arrancar a própria pele?” (Idem, p. 4). Diante do rei nu, brutalmente, seus espectadores, mudos, “acabam por descobrir todo o mistério”. Não apenas a pele de Arlequim é como seu casaco, como ainda “Arlequim é hermafrodita, corpo mesclado, macho e mulher [...] homem perdido na fêmea, mulher mesclada no macho.” E mais: a plateia já havia percebido, enquanto ele se despia, que Arlequim se servia das duas mãos, que era um “canhoto completado”, pois, ao tirar suas capas, elas rodopiavam para os dois lados. (Idem , p. 4). 74 A nudez do rei, sua pele e seu corpo à mostra revelam, sobretudo, sua mestiçagem: “mulato, temperado, híbrido em geral”. E agora pergunta Serres, “que nos poderia exibir [...] o monstro comum, tatuado, ambidestro, hermafrodita e mestiço sob a própria pele?” Seu sangue e sua carne. Mas, ainda assim, continua Serres, o que a carne designa é, “precisamente, [...] a mistura de músculos e de sangue, de pele e de pêlos, de ossos, de nervos e de funções diversas”. A carne e o sangue se confundem também com o casaco de Arlequim. A contradição da realeza persiste. E vários espectadores já perderam a paciência e abandonaram, decepcionados, a sala. Ora, vieram ali para rir e agora eram obrigados a pensar. Contudo, finalizando a história, Serres escreve: Quando todos já estavam virando costas, [...] e sentia-se que naquela noite a improvisação terminaria em fiasco, alguém lançou um súbito apelo, como se algo de novo estivesse acontecendo num lugar onde tudo, até então, se repetira. O público inteiro se voltou de um só golpe e todos os olhares convergiram para o palco, dramaticamente iluminado pelos últimos focos moribundos dos projetores [...]. No lugar exato do Imperador da Lua erguia-se agora uma massa ofuscante, incandescente, mais clara que pálida, mais transparente que diáfana, lilácea, nevada, cândida, pura virginal, inteiramente branca (Idem, p. 5-6). Arlequim havia-se transformado em Pierrô. “Pierrô ! Pierrô ! - gritavam os tolos, quando a cortina se fechou”. E, assim, todos saíram se perguntando: “- Como as mil cores do casaco podem se dissolver numa soma branca?” (Idem, p. 6). Fim da história. 3.1.3 A História de Arlequim e a Filosofia Mestiça da Educação em Michel Serres O que podemos aprender com essa história sobre a filosofia de Serres e, mais especificamente, de sua filosofia da educação? Em linhas gerais, a contradição que identificamosna narrativa entre o mundo dito, no discurso de Arlequim, e o mundo visto, através de seu casaco e corpo, aponta para uma relação crítica, constante nos livros de Serres, entre a complexidade do mundo (o casaco e o corpo de Arlequim) e as simplificações absurdas das ideologias (o discurso do Rei Lunático). Para Serres, o discurso de Arlequim, tal como as ideologias, se parece com a Lua: o claro e o escuro, sem nuanças entre eles. Na Terra, se estamos de um lado do muro, enquanto a fonte de luz está do outro, ainda assim, podemos vê-lo. Isso porque, devido à atmosfera, o raio de luz se parte, se refrata e dá volta no muro. Na Lua, como não há atmosfera, “fica absolutamente claro de um lado do muro e absolutamente escuro do outro”. Nas ideologias também é assim: ou claro ou escuro. São sempre dualistas, definem o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o bem e o mal. Contra o discurso do rei e em prol da complexidade de 75 unidade 3 seu casaco, para Serres não existe “um caso em que as coisas possam se resolver de forma tão simples.” Desse modo, se comparamos o conhecimento com a visão, podemos afirmar com o filósofo “que não se pode conhecer senão na complexidade da atmosfera terrestre”, na infinita possibilidade de nuanças entre o claro e o escuro, o verdadeiro e o falso, o branco e o preto. (SERRES, 1990a, p. 181). No mundo, para Serres, “as verdades são sempre locais, distribuídas pelo espaço de um modo um tanto complicado.” O oposto desse pluralismo é exatamente a ideologia, quando afirma “que uma única verdade é válida para todo o espaço, que ela é universal”. A diferença aqui está entre “um espaço homogêneo, inteiramente ocupado por uma única verdade, e um espaço complexo, onde todo trabalho consiste em passar de uma singularidade a outra.” Quando um discurso pretende ocupar todo o espaço, para Serres, isso é uma tentativa de “imperialismo”. O que, segundo o filósofo, é muito comum nas “multinacionais do pensamento” ou no que se chama de “grandes correntes do pensamento”, que, na concepção de Serres, são, na verdade, “pequenos pensamentos locais que procuraram conquistar o espaço apresentando-se como universais.” (SERRES, 1990a, p. 182-183). Além da crítica às ideologias, a fábula de Arlequim revela uma outra forte característica da filosofia de Serres, aquela pela qual contar histórias, reanimar os mitos é também uma maneira de filosofar. “Philomuthos, philosophos pôs. Philosophos, philomuthos pôs” é o que lemos, antes mesmo do prólogo, no livro Filosofia mestiça. Serres resgata a ideia do filósofo como, de certa maneira, um filomito, um amigo do mito, das narrativas fabulosas, como uma maneira de trabalhar conceitos. Mas se, desse ponto, ele aproxima a filosofia da literatura, um dos problemas que mais o assedia, de livro a livro (cf., por exemplo, SERRES, 1969, 1972, 1974, 1977a-b, 1980a) é, sobretudo, de cunho epistemológico. Trata- se de pensar como nossos principais saberes se perpetuam hemiplégicos. Ou seja, como aconteceu de as ciências humanas ou sociais não falarem jamais do mundo, e as ciências, ditas “duras”, deixarem os homens de lado? Esta, fala do mundo com exatidão, mas esquece completamente a história e a cultura; aquela, fala do homem de modo imperturbável, mas ignora o mundo e suas mudanças (SERRES, 1990a, p. 179). Ambas persistem, assim, no que Serres (1993a, p. 10) designa como a “tola patologia da divisão”. Logo, o que Serres (1980a) procura, em sua filosofia, é a passagem entre elas, “a passagem do noroeste”, diz o filósofo, por analogia com o labirinto de gelo que une o oceano Atlântico ao Pacífico no Pólo Norte. Seu objetivo é reunir, através de uma passagem qualquer, as ideias científicas mais rigorosas e aquilo que sabemos do ser humano (SERRES, 1990a, p.179). É 76 a busca de uma “reconciliação dos saberes”, das ciências “duras” e das humanas (Idem), que mal toleram uma a outra. Com esse ódio entre irmãs, cada qual continua com um lado de seu corpo paralisado, arrastando um lado morto. Fazê-las aprender a caminhar com os dois pés, a utilizar as duas mãos, é, para Serres, um dos deveres da filosofia. Daí, Arlequim e seu casaco, tecido de misturas, justamente, o que causa horror aos filósofos e cientistas da pureza. O casaco é a ideia de cada ciência trabalhando na interseção ou na interferência de várias outras. A ambidestria de Arlequim (ele usa as duas mãos para se despir, os casacos rodopiam para os dois lados), por sua vez, elogia os corpos completos de canhotos contrariados. Sua mestiçaria (Arlequim é mesclado, tigrado, matizado, multicor) convida-nos a abandonar o conforto e a segurança do ninho (nossa disciplina, nosso grupo, nossa cultura ou raça) e partir, expor-se e, às vezes, perigosamente, ao outro, ao mundo, às coletividades, retendo as diversas diferenças vividas durante as viagens, tornando-nos vários, às vezes, incoerentes e voltando para casa mestiçados de novos gestos e de novos costumes fundidos em nossas atitudes e funções a ponto de acreditarmos que nada mudou para nós (SERRES, 1993a, p. 6). Essa é a aprendizagem que Serres pretende para os cientistas: que saiam de seus ninhos, que deixem de se combater “para tomar o poder, ocupar o espaço [...], obter medalhas, créditos e postos” (SERRES, 1990a, p. 180) e que se mesticem, que completem seus corpo; pois, só assim, o “milagre laico da tolerância, da neutralidade indulgente, acolhe, na paz, todas as aprendizagens, para delas fazer brotar a liberdade de invenção e, portanto, de pensamento” (SERRES, 1993a, p. 6). Finalizando a história, é assim que Arlequim se torna Pierrô, as mil cores do casaco se dissolvendo numa soma branca, cor para a qual tendem e da qual provem todas as outras, o branco de Pierrô significando, portanto, a possibilidade de criação, após o longo processo de instrução ou de mestiçagem. 3.1.4 A Relação entre Exposição e Mestiçagem 3.1.4.1 Mestre é aquele que forma na plenitude de um corpo completo Sem a travessia para os lados paralisados ou adormecidos de nossos corpos, continuamos hemiplégicos. É nesse sentido que, ao iniciar a primeira parte do Filosofia Mestiça, aquela referente ao “Criar”, Serres presta homenagem ao mestre anônimo e já falecido que fez dele, ainda criança e canhoto de nascença, alguém que aprendeu a escrever com a mão direita. Isso não o tornou, na fase adulta, um neurótico ou um perverso, mas fez dele, como Arlequim, um “canhoto contrariado”, ou seja, um corpo completado com sua outra metade. A este mestre anônimo Serres se declara profundamente grato (SERRES, 1993a, p. 9). Vejamos, a seguir, o sentido dessa gratidão. 77 unidade 3 O filósofo esclarece, ao aprofundar sua reflexão sobre o próprio corpo, que quando se permite aos canhotos e destros permanecerem o que são, faz-se deles corpos hemiplégicos, pois passam a ter um lado do corpo paralisado, já que não lhes é necessário aprender o outro. Assim, canhoto e destro valem um pelo outro, cada qual arrastando um lado morto. E nessa lateralização, um dos lados do corpo é tão bem assinalado, “tão fortemente existente que se toma como referência”, esquecendo o outro (Idem, p. 27). Desse modo, destro e canhoto vivem num mundo fracionado, cegos “para seu complemento morto” (Idem, p. 24). Nesse sentido, se o corpo já se assemelha a uma estátua, “por seu peso dirigido para baixo, com essa estátua ele esculpe uma segunda, por sua lateralização para a direita ou a esquerda.” (Idem, p. 33). Entretanto, para Serres, não somos um, só canhoto ou destro, mas dois. Daí ser o filósofo contra a pena de morte de um dos lados e nos revelar o sentido da homenagem ao mestre, reconhecendo-o como aquele que forma, na plenitude, de corpos reconciliados ou completos. Mestre, então, é aquele que contraria, que empurra o canhoto em direção à direita e o destro à esquerda, fazendo-os se exporem ao sentido inverso ao seu, levando-os a atravessar rumo à outramargem, ao lado adormecido, desconhecido ou paralisado. 3.1.4.2 O Sentido da mudança de sentido Essa travessia ou mudança de sentido, em Serres, é de grande significado para que a educação como mestiçagem se realize. Como afirma o filósofo, “nada confere mais sentido do que a mudança de sentido” (Idem, p.11). Mas, para ele, o que significa mudar? Apenas passar para a outra margem? Passar de um domínio para o outro? Certamente, na travessia ou mudança de sentido, chega-se a um segundo mundo, alcança-se a segunda margem, aquela para a qual se dirige. Mas, segundo Serres, é no meio, entre esses dois mundos, entre as duas margens, numa terceira margem ou terceiro mundo pelos quais se transita, é aí que se dá a mestiçagem, que ocorrem as mudanças. “A verdadeira passagem ocorre no meio”, sentencia o filósofo (p. 12). E que meio ou terceira margem é esta? Procuremos compreendê-la por uma imagem. Quando atravessamos um grande rio a nado, chegamos a um ponto em que não vemos mais o lugar do qual nos lançamos ou fomos jogados e não sabemos ainda aonde vamos chegar na outra margem. Este ponto, em que as referências desaparecem e nos encontramos sozinhos, é a terceira margem. Ela é, no dizer de Serres (1993a, p.12), o “rio branco que corre dentre do rio visível”, o “lugar-meio”(Idem, p. 14), “estado de mudança de fase”, lugar de transposição, como o meio do dia, “começo e término ao mesmo tempo”, ou como a soleira da passagem, ao atravessá-la, se está num outro mundo, “a viagem atinge um estágio”; mas ao mesmo tempo não terminou, porque esse lugar mestiço foi incluído. (Idem, p. 16). 78 Na aventura da travessia de um rio está contida virtualmente, para Serres, a aprendizagem (Idem, p. 20). Ao abandonar a referência segura da margem, ao lançar-se no rio, o aprendiz se expõe, isto é, lança-se para fora de sua posição; à medida que nada e avança para o meio do rio, perde as referências das margens, encontra-se sozinho. Mas é neste ponto, da perda das referências e da solidão, que está pronto para aprender, tudo receber e integrar. (Idem, p. 14). Em toda aprendizagem dá-se a passagem pelo lugar mestiço e sua inclusão. Serres o descreve também como tendo a forma de estrela, para mostrar que é possibilidade de todos os sentidos. O aprendiz, o pensador ou o inventor “não cessa de passar de um lugar mestiço a outro”, é “um passante mestiço”: alguém que nunca está posto, pois na posição “está o equilíbrio das estátua”; mas também não está oposto, pois a oposição é uma “segunda estabilidade”, outra estátua, mas está incessantemente exposto, isto é, posto para fora de seu lugar, posição lançada ou arremessada para fora dela mesma (Idem p. 19). Logo, o que o caracteriza é “o não lugar” e o “desaprumo”; no primeiro sentido, não está em nenhuma comunidade, pôs-se ou foi posto para fora de todas elas, só para, ao mesmo tempo, estar “um pouco, e levemente, em todas” (p. 13); no segundo, o desaprumo ou o desequilíbrio é condição para o aprendizado, para a busca do conhecimento (p. 19-20). No aprumo equilibrado, rígido e estático da estátua bem posta em seu lugar, não há busca do conhecimento e nada se aprende. 3.1.4.3 A Educação conduz para fora É assim que, em Serres, a educação exige a exposição, isto é, passagem de um dentro em que estamos para um fora onde nos expomos. Como estátuas, ao recusarmos a exposição, negamos a possibilidade da educação no sentido mais elementar da palavra. Aquele pelo qual aprendemos, com a etimologia, que a educação conduz (ducere) para fora (ex). E, de fato, Serres nos lembra que a educação da criança começava, antigamente, quando o escravo a pegava pela mão e a conduzia para fora de sua casa rumo à escola. Nesse trajeto entre dois interiores (um, a casa dos pais, e outro, a escola), no intervalo em que, guiada pelo escravo, a criança se encontrava exposta ao mundo e à própria alteridade de seu condutor, é aí, nesse exterior, que, para Serres, realmente, começava sua educação. A viagem já era “escola em si mesma”, a “emigração” já era “instrução”, de modo que, antes mesmo chegar à escola, de ultrapassar seus portais, a primeira pessoa, o “pequeno sabichão” já não era mais o mesmo, havia “re-nascido”, se tornado uma “terceira pessoa”, através de sua exposição ao mundo, ao tempo, à singularidade de seu condutor, o escravo excluído (SERRES, 1993a, p. 60-61). 79 unidade 3 Vemos, assim, que a educação, em Serres (1993a), remete à viagem, abandono da casa, partida; saída de um interior para um exterior, de uma posição para a exposição. No exterior, lá fora, falta abrigo, ninho ou referência, é o lugar da errância. Contudo, é aí, lugar em que estamos expostos, que nos educamos. A exigência da exposição como condição para a educação se impõe de tal modo, para Serres, que ninguém se educa se não se expõe, isto é, se não se conduz ou se deixa conduzir para fora do lugar ou da posição em que está. Antes da viagem da pedagogia, a estátua, portanto, é nossa primeira posição, “um ser-aí tranqüilo e estável, núcleo denso que não se mexe” (Idem, p. 38). Mas, por um pequeno e despreocupado empurrão do mestre, que nos desequilibra, por uma sedução do caminho, que nos extravia, esse ser-aí, a estátua, coloca o ali, expõe-se, pula para fora de sua posição, deixa de ser estável, atira-se da margem, abandona a rigidez dos hábitos para experimentar, “viaja, vagueia, conhece, observa, inventa, pensa. Não repete mais”, em suma, como conclui Serres, zarpa “do ser-aí.” (Idem, p. 38-39). Se antes sou estátua, ser-aí, “indesenraizável posição estável”; depois, não “estou mais aí”, “exponho-me: sou essa exposição-aí.” (Idem, p. 39). No horizonte da constante exposição, quem sou eu, então? Ou o que vou me tornando? Para Serres, somos exatamente o volume acumulado de nossas exposições, inseridas em nosso ser como as tatuagens de Arlequim, mais as diferentes marcas que o “ponto exposto” traz; por outras palavras, somos o que éramos antes de nos depormos ou sermos depostos de nossa posição mais aquilo que a exposição aporta de novo ou diferente a este ser. É nesta distância entre o que eu era e o que a exposição faz de mim, é aí que estou e sou. Para Serres, essa “distância cobre [...] um enorme espaço” e é o que ele chama de alma (Idem, p. 39). Segundo o filósofo, “Sempre proporcional à exposição. As almas grandes se expõem muito”; por isso, ampliam-se e crescem, ao passo que as pusilânimes muito pouco se expõem, por isso, não se dilatam, mas atrofiam, definham-se (Idem, p. 39). É assim que a exposição “abre no corpo um lugar de mestiçagens, para ser preenchido por outras pessoas”, o aprendiz ou o mestiço “se torna gordo” (Idem, p. 41). Sem essas dilatações, engendradas pela exposição, não há humano. É nas mestiçagens que a exposição opera que “o eu se engendra.” (Idem, p. 42). Através delas, no eu, primeira pessoa, fechada, estática e estável, os outros constituem uma terceira pessoa, identidade aberta, dinâmica e instável. Mas, por isso mesmo, sempre com a possibilidade de se ampliar, dilatar e educar-se (Idem, p. 43). “Cada um, sem dúvida, - afirma o filósofo - pelo menos um dia, passa por essa dilatação formidável do ser [...]: a possibilidade infinita de aprender.” (Idem, 80 p. 44). Assim, se antes de nosso nascimento fomos criados na mistura dos genes de nossos pais, uma vez nascidos, nossa criação só evolui através de novos cruzamentos. Daí o sentido das palavras de Serres (1993a, p. 61), quanto à pedagogia. Para ele, [...] toda pedagogia recomeça o engendramento e o nascimento de uma criança: canhoto nato, aprende a se servir da mão direita, permanece canhoto, renasce destro, na confluência dos dois sentidos; nascido [...] francês, viaja e se faz espanhol, italiano, inglês ou alemão; esposa e aprende a cultura deles, sua língua, ei-lo mestiço de quarta ou oitava geração, alma e corpo mesclados. Seu espírito se assemelha ao casaco furta-cor de Arlequim.(p. 61). 3.1.5 O Desprendimento: condição necessária para a exposição Explicitada a necessidade da exposição para que a educação se concretize como mestiçagem, precisamos elucidar agora a relação entre exposição e desprendimento. Trata- se de mostrar como esse é condição de possibilidade para aquela. Sem o desprendimento não há exposição. Nessa etapa do texto, portanto, recorremos especialmente a dois livros de Serres: Le parasite (1980b) e Détachement (SERRES, 1983). O primeiro nos ajudará a pensar a situação de apego ou dependência à posição ou ao lugar que nos dá alimento, proteção e calor. Pelo segundo, veremos através dos excluídos, mestiços e errantes a importância do desprendimento para que a mestiçagem aconteça. Essa obra está dividida em quatro partes intituladas Camponês, Marinheiro, Errante, Franciscano. Utilizamos as três últimas. 3.1.5.1 Desprendimento: perdas e ganhos A mestiçagem, como veremos, exige o desprendimento. Mas esta não é uma exigência fácil de ser atendida. Em nosso abrigo, estamos protegidos, aquecidos e alimentados. Então, por que abandoná-lo? Nele, conhecemos o espaço e seu funcionamento, temos nossos aliados, cultivamos nossos hábitos, falamos uma língua comum, unimo-nos para nos defender ou para atacar o inimigo. Enfim, não estamos em perigo, porque muito pouco nos expomos. Em contrapartida, nada de novo aprendemos ou inventamos (SERRES, 1993a). Criamos nossos pertencimentos, formamos nossos grupos de pressão, nos quais estabelecemos hierarquias, comparações, partilhamos prestígio e poder. Com isso, acomodados no grupo, seja ele igreja, partido político, disciplina etc, de modo quase imperceptível, tal como nas ordens religiosas, fazemos os votos de pobreza, obediência e castidade ao grupo ou ao seu papa. Pobreza, nada produzir. Obediência, sempre repetir. Castidade, abster-se de relações fora do grupo. Assim, como afirma Serres (1994, p. 35), atados pela “libido da pertença”, 81 unidade 3 permanecemos aquecidos e protegidos sob as asas destas pequenas coletividades “da anestesia intelectual” (SERRES, 1997, p. 29). Desprender-se desses interiores, certamente, não é fácil, requer coragem para enfrentar o exterior, sem calor, alimento ou proteção, enfrentar a solidão que tal desprendimento engendra. Mas há também positivo nesse desprender-se. Ele retira “as obrigações do pensamento corporativo, alivia a pressão dos pares” e, diante dos problemas, faz-nos ganhar tempo, justamente pela economia que fazemos dele, não mais perdendo-o nos “conflitos monótonos” e sem outro motivo senão manter ou adquirir status dentro do grupo e armar-se contra as outras pertinências. (SERRES, 1997, p. 33-34). Para Serres (1983), sair desses espaços fechados “custa quase a vida, a credibilidade”, contudo, “não sair daí custará o mundo” (p. 172), pois é exatamente ele que se perde quando o que se busca é a glória, a fortuna, a dominação. O “soldado do saber” (Idem, p. 87) só tem ciência da batalha, de frente para seus adversários, está sempre de costas para o mundo, para a árvore do conhecimento e da vida. Apegado à “sua progressão no grupo, sua pequena potência ou sua glória medíocre” (Idem, p.118), ele deixa a árvore do conhecimento secar. Se quiser conhecer, desprenda-se, desfaça os elos que o prendem ao grupo, abandone o corporativismo caseiro pela errância no mundo, em direção aos outros e às coisas. Assim, dirá Serres (1983), sua educação se reinicia. Sem o rompimento com a condição de apego ao ninho, que nos acompanha mesmo antes do nascimento, a educação não se inicia. E, de fato, se ela nos empurra para fora (ex ducere), então ela começa com nosso próprio nascimento, quando, alimentados pelo sangue de nossa mãe, habitamos seu ventre como nossa primeira morada, nosso primeiro ninho. Assim como nossos pais bíblicos foram expulsos do paraíso, cada um de nós, ao nascer, também é posto para fora por sua mãe. Nascido, banido, expulso, no exterior, “não há mais alojamento, nem alimento, nem calor” (Idem, 1980b). O nascimento é, assim, nosso primeiro desprendimento, primeira exposição, primeira passagem de um dentro para um fora, primeira contrariedade que nos obriga a sair de uma relação que Serres define como parasitária. 3.1.5.2 Educar é ensinar alguém a deixar de ser parasita do outro A relação parasitária, para o filósofo, é sempre uma relação abusiva pois nela, um “pega tudo e nada dá, ao passo que o outro tudo dá e nada recebe” (SERRES, 1980b, p. 9. Itálicos do autor). Trata-se, assim, de uma relação que se estabelece “num único sentido”, o 82 canal que os reúne “e aquilo que ele transporta vai sempre de um ao outro, sem nenhum retorno.” (Idem, p.9). Para o filósofo, nos grupos humanos há muitas relações organizadas deste modo, ou seja, num “sentido único, [...] sem inversão de sentido”(Idem, p.19), “em que um se alimenta do outro sem que o outro nada possa tirar do primeiro”; é a “relação em flecha simples irreversível, [...] o fluxo vai num sentido, jamais em outro”; em suma, é a “exploração sem retorno.” (Idem, p.20). Diante dessas relações, retorna novamente com toda evidência, a figura do mestre, descrita no item 4.1 deste texto, aquela pela qual dizíamos que o mestre, o educador ou o pedagogo é aquele que nos contraria. Ao resgatar o sentido antigo da figura do pedagogo, Serres nos lembra que ele, senhor na arte de conduzir a criança mundo afora, sendo escravo, ele próprio sabe o que é estar fora, ser excluído, tanto da casa de seus senhores quanto da escola, para a qual conduz o menino e onde reina o professor. Contudo, escravo excluído, ele sabe que só os heréticos realmente se educam e fazem avançar o saber (SERRES, 1997). Excluído, posto para fora, por vontade própria ou por imposição, perde-se a proteção da casa ou do grupo, mas se ganha a liberdade de novos encontros, de pensar e de inventar. Para Serres (1993a, p. 43), é no fora ou no exterior que realmente estamos abertos para “a soma da alteridade” que nos amplia. Daí, o mestre ou o educador ser, portanto, não aquele que nos confirma em nossos hábitos e saberes, que nos deixa conformados aos nossos ninhos, mas, ao contrário, aquele que constantemente nos faz abandoná-los. Assim, a educação nos faz deslocar, lança a errância e, agindo como uma força contrária à nossa natureza de dependência, leva-nos a mudar o tipo de relação que estabelecemos com os outros, no sentido de romper com o cordão umbilical univetorial que nos liga a um hospedeiro, liberando-nos, “pouco a pouco, de nossos costumes primordiais de parasitas” (SERRES, 1980b, p. 10. Itálicos do autor), tornando-nos capazes de desenvolver uma relação mais igualitária, de trocas mútuas ou contratuais. É nesse tipo de relação que, para Serres, está o caminho que nos conduz para além da repetição e exploração, rumo à invenção e à produção. Contudo, tais construções pedagógicas, previne Serres, são extremamente frágeis, pois, como ele afirma, é frequente vermos, na primeira oportunidade, muitos se refugiarem “em condutas de dependências, como se tendessem para o equilíbrio fundamental.” (Idem, p. 10). A relação contratual nos tira da condição de parasitas e da ausência de exposição e nos leva para uma condição na qual somos atores de trocas. Para Serres, portanto, educar é ensinar o desprendimento, ensinar alguém a deixar de ser parasita do outro, ensinar-lhe 83 unidade 3 a autonomia. Não somos mais parasitas, somos autônomos. Logo, sem o desprendimento não existe vida humana, nem mesmo nascemos, sem ele, não há ritos de iniciação ou aprendizagem, não há relações igualitárias, mas apenas aquelas parasitárias. Essas relações condicionam a vida e a aprendizagem. (SERRES, 2005, p. 155). 3.1.5.3 A hominidade: entrelaçamento de Arlequim e Pierrô As condições em que se dá a produção ou a reprodução nas relações em que estabelecemos são abordadas, ainda, por Serres, na obra O incandescente (2005).Nesse livro, o autor alia a reprodução ou a repetição à memória e a produção ou a invenção ao esquecimento. Para ele, a memória nos leva à repetição; portanto, não é preciso apenas desprender-se de nossos hospedeiros, deslocarmos de nossas posições, é preciso, antes, esquecer nossa antiga fonte de alimento ou de saber, para que, então, estejamos aptos a produzir ou inventar. Decerto, afirma o filósofo no Filosofia Mestiça, para “criar, deve-se saber tudo e, portanto, ter trabalhado imensamente”; é preciso “instruir-se o mais possível, no começo, para se chegar à formação: tudo vem do trabalho”; mas, se essa condição é necessária para a criação, ela, entretanto, para Serres, não é suficiente. Para ele, “o peso da ciência ou do passado esmaga e esteriliza”, “o poderio do saber, tanto das obras já realizadas como das instituições que as parasitam” impedem a criação (SERRES, 1993a, p. 114). Sendo assim, é preciso buscar compreender tudo, mas para não saber nada. “Duvidar para criar” (Idem). Esquecer para inventar. Desprender-se para errar. O esquecimento é uma forma de desprendimento que “nos condiciona à aprendizagem, à adaptação rápida, à desobediência e à invenção”. Ele efetiva a liberdade humana e a autonomia do aprendiz. Trata-se de, como Diógenes, atirar ao fogo a camisa e os sapatos e partir munido simplesmente do corpo (SERRES, 2005). Diógenes, exemplo de desprendimento, o mendigo que abandonou tudo, que deixou todo interior e reduziu “tudo ao que é, sem ilusão, discurso ou firulas.” Saiu “da dura casa”, tirou “a vestimenta imprecisa”, escapou “das relações viscosas”, permaneceu nu, sozinho, em seu barril. (SERRES, 1983, p. 117-118). No exterior, desprovido de tudo, sem abrigo, o corpo sofre com as intempéries do tempo. Mas, para Serres, é justamente do sofrimento que nasce o eu. “Cada um de nós sente seu corpo apenas quando ele sofre. A consciência emerge com a falta e a miséria.” (SERRES, 2005, p.185). Assim, o desprendimento leva à miséria, estado pleno de desapego e esquecimento, que 84 torna o aprendiz limpo, branco, asséptico e estéril, livre de parasitas e de dejetos. Essa limpeza, essa brancura o transforma num abrigo “aberto a todos os estrangeiros” (SERRES, 2005, p.81), “capaz de receber a todos” (Idem, p. 77). Nesse limite extremo do completo desapego dá-se o engendramento do eu mestiço. Ninguém, nada, branco. Forma-se com a totalidade de cores pintadas sobre esta brancura, não cessa de costurar e tecer com o que acolhe dos outros, seu manto de Arlequim. Não é nada e, nesta medida, é infinita capacidade de ser, de se “transformar em outro, depois em outros, em todo mundo e, finalmente, num sujeito indeterminado [...], soma do eu, do tu, do nós, do vós e do eles. Não é ninguém, mas “acrescido de todos os outros” (Idem, p.104). É, ao mesmo tempo, Pierrô, que tende para Arlequim, e Arlequim, que tende para Pierrô. Quanto mais cores Arlequim acrescenta ao seu manto, mais ele se afirma em sua singularidade, mais se dirige para a brancura, que integra todas elas, mas que é, também, possibilidade de toda cor. Para Serres, (2005, p. 112), os homens são feitos desse somatório, desse tipo de mistura que lhes é exclusiva: “Incandescente como Pierrô; supercolorida como Arlequim.” Ecce Homo? Eis, então, o eu mestiço: “Ego nemo et alii.” (SERRES, 2005, p.104). A relação, portanto, produz o sujeito. Ele se engendra, assujeitado aos laços de comunicação com os outros no turbilhão “movediço da intersubjetividade” (SERRES, 1993a, p. 166). É, assim, todos aqueles que foi dentro e através dos relacionamentos sucessivos ou justapostos nos quais se viu embarcado. É Arlequim, que vive sob mil camadas de casacos remendados. É legião, sem que seja o diabo, mas sendo “todo mundo ao mesmo tempo.” (Idem, p. 170). É desse modo que, “no sujeito, primeira pessoa, os outros engendram uma terceira pessoa, finalmente bem educada.” (Idem, p. 43. Itálicos do autor). A educação, entendida como mestiçagem cultural, constrói, pois, um ideal pedagógico que é capaz de acolher a diferença, fazendo dela o seu objeto, uma pedagogia não da violência, mas da tolerância. O sujeito educado é, portanto, uma mistura, mas uma mistura contraditória, na qual tudo pode virar ao contrário, ou onde tudo se mistura no mesmo tempo e lugar. Entretanto, esse caos, essa aparente irregularidade é, ainda, a gênese da regularidade. O mestiço instruído é como uma rede topológica. Na perspectiva topológica, explica Moraes (2000, p. 2), uma “rede é formada num dado instante por uma pluralidade de pontos ligados entre si, uma pluralidade de conexões [...] nenhum ponto é privilegiado em relação a outro, o que faz com que uma rede tenha múltiplas entradas.” Assim, aberto em todos os sentidos, a indeterminação do mestiço lhe permite fundamentar determinações várias, adequadas a cada circunstância. Logo, ele é flexível, tolerante, uma 85 unidade 3 totalidade sempre aberta, na qual se sucedem avanços e recuos, que definem progressos, invenções ou descobertas, isto é, o mestiço instruído é o dinamismo das diferenças: nem aleatório, nem determinismo unívoco, mas construção simultânea do espaço e do tempo, onde nada ocupa posição privilegiada, e tudo pode estar no centro. 3.1.6 Considerações finais A filosofia de Serres estabelece duas funções simultâneas e complementares para a educação. De acordo com o filósofo, sua função inicial é codificar, não importa qual seja a forma desse código (SERRES, 2005, p. 108). Mais tarde, entretanto, seu projeto é decodificar-se, isto é, desconstruir todo o referencial em que se baseou a aprendizagem, retornando à sábia ignorância. Entretanto, a educação “só poderá fazer isso, se souber como codificar” (SERRES, 2005, p.108). O sentido primeiro da educação consiste, pois, em conhecer a sua cultura, o subconjunto dos seus primeiros pertencimentos, para depois prontamente recusá-los e ir ao encontro de outros. A maior contribuição da Filosofia Mestiça, para pensarmos o sentido da educação em Serres, está em descrever essa passagem da codificação à decodificação, na qual o aprendiz é levado a recusar seus pertencimentos e a lançar-se em novos encontros. Nesse sentido, exposição e mestiçagem são constituintes do ideal pedagógico que Serres apresenta nessa obra. Em uma palavra, o sentido da educação na Filosofia Mestiça é movimento, mas não movimento como deslocamento, simplesmente, mas movimento como deslocamento sucedido de acolhida da alteridade. “O corpo que atravessa aprende certamente um segundo mundo, aquele para o qual se dirige [...]. Mas ele se inicia, sobretudo, num terceiro pelo qual transita” (SERRES, 1993a, p. 12); este terceiro mundo é o lugar mestiço, lugar onde a tolerância mostra a sua lógica, e o aprendiz compreende como e porque ser múltiplo. O que, portanto, realmente, nos forma e nos torna sábios não é nem o abandono do abrigo, nem o esquecimento, nem tampouco a exposição. Aquilo que, realmente, nos educa é a passagem pelo lugar mestiço, lugar de intersecções, no qual alguma coisa terminou, mas não terminou ao mesmo tempo. Nesse ponto extremo, conhecemos aquilo que liga duas realidades até então diversas e contrárias, conhecemos o mecanismo de solidariedade que as reúne em uma terceira realidade renovada e original. Aprendemos, pois, a não sermos nem um, nem dois, nas trocas que estabelecemos a alteridade, mas a sermos um terceiro, um mestiço, capaz de aceitar a todos. 86 Não podemos deixar de dizer que esse mestiço capaz de acolher a todos e a educação como processo de mestiçagem podem parecer coisas advindas do humanismo ingênuo de um imaginário filosófico, no qual todos os homens são bons e todas as culturas, sedentas por se mestiçarem. Certamente, as coisas não são bem assim. A mestiçagem que Serres propõe não é harmônica nem se realiza sem conflitos. Requer que se conjugue em si a parte do outro e a sua própria,criando, assim, reestruturações na identidade, que se torna móvel e instável. Pela mestiçagem, passa-se da identidade como síntese estabilizada do eu para a identidade como síntese aberta, constituída de recomposições permanentes através das trocas com a alteridade. Assim, o pensamento mestiço de Serres exige a entrada em si da cultura do outro e, com isso, a produção de uma cultura inédita, sempre sob a dinâmica do inacabamento. A mestiçagem é o inverso da fixidez e da estabilidade. É também, ao propor a reconciliação entre culturas separadas e distintas, gerando uma terceira cultura diferente, transgressora. Isso porque nega a ideia de cultura pura ou da pureza cultural e supõe a transformação da identidade do sujeito ou aquela dos grupos, sem que se coloque a priori uma cultura dominante legítima. Não há, para o pensamento mestiço, uma “cultura primeira” fundadora, superior às outras, à qual elas devem se integrar ou da qual devem permanecer à margem. Nem totalizante, nem excludente, a mestiçagem resiste tanto à opressão do mesmo ou do idêntico, à indiferenciação e à uniformização crescente, quanto à diferenciação exacerbada e isoladora, que é sempre reacionária a toda mistura. Se ela é o direito à diferença, o é, na contrapartida, ao mesmo tempo, à homogeneização e aos particularismos exclusivistas, sejam eles de origem racial, epistemológica, religiosa ou étnica. Em suma, no mundo globalizado de hoje, a filosofia mestiça de Serres propõe que as culturas e os homens, ao se encontrarem, não vejam, na alteridade, o Mal, em quem se devem jogar bombas ou aviões, mas um simbionte, que faz de mim um outro com aquilo que acolho dele e que também se transforma com o que recebe de mim. 87 unidade 3 CINE Para pensar as relações entre desprendimento, exposição e educação em Serres a partir de um filme, indico vivamente: • A EXCÊNTRICA FAMÍLIA DE ANTÔNIA. - Ficha técnica: Direção: Maleen Gorris. Países: Bélgica/Holanda/Reino Unido. Gênero: Comédia/Drama. Ano de Lançamento: 1995. Duração: 102 minutos. - Sinopse: Em uma pequena vila europeia, uma matriarca revive os importantes momentos de sua vida, reunida com membros de sua família e amigos, relembrando gerações e acontecimentos. Disponível em: <http://www.cineplayers.com>. Acesso em: 02 de setembro de 2011. ATIVIDADE I – Assinale, entre as afirmações a seguir, aquela que caracteriza CORRETAMENTE a filosofia de Serres. 1. ( ) - Em Filosofia Mestiça, o filósofo descreve com precisão e originalidade o processo de formação de um aprendiz, que tem sua educação pautada na concepção da homogeneidade do mundo, das coisas e dos saberes. 2. ( ) - Para Serres, toda educação consiste numa exposição e numa mestiçagem. Mestiçagem, que implica desprender-se de uma posição ou de um lugar, no qual nos mantemos ou que nos aprisiona, e ir ao encontro dos outros e do mundo; exposição, que implica dilatar-se, dividir-se, tornar-se vários através desses encontros. 3. ( ) - Para Serres, quanto mais expostos, mais nos mestiçamos e, quanto mais mestiços, mais educados nos tornamos. O sentido da educação configura-se, assim, sempre como um movimento de exposição e de mestiçagem. 4. ( ) - Pierrô é o personagem criado por Serres que melhor incorpora o ideal pedagógico de mestiçagem presente em sua filosofia. II - Cada pergunta do primeiro bloco é respondida por um enunciado do segundo. Identifique as respostas corretas e numere o segundo bloco de acordo com o enunciado do primeiro. 1. Para que aponta a contradição que identificamos, na história de Arlequim, entre o mundo dito, no discurso do rei, e o mundo visto, através de seu casaco e corpo? cine 88 2. Para Serres, as verdades são sempre locais, distribuídas pelo espaço de um modo um tanto complicado. O que seria o oposto deste pluralismo? 3. Em que consiste, para Serres hemiplegia de nossos saberes? 4. O que Serres procura, em sua filosofia, com o nome de “a passagem do noroeste”? - ( ) As ciências humanas não falam do mundo, e as ciências exatas os homens de lado. Cada uma continua com um lado de seu corpo paralisado, arrastando um lado morto. - ( ) A ideologia, quando afirma “que uma única verdade é válida para todo o espaço, que ela é universal”. - ( ) A reunião entre as ideias científicas e aquilo que sabemos do ser humano; por outras palavras, a reconciliação dos saberes das ciências “duras” e das humanas, que mal toleram uma à outra. - ( ) A relação crítica, constante nos livros de Serres, entre a complexidade do mundo e as simplificações absurdas das ideologias. III – Os enunciados abaixo mencionados são verdadeiros, EXCETO o da alternativa 1. ( ) O casaco de arlequim é a ideia de cada ciência trabalhando na interseção ou na interferência de várias outras. 2. ( ) A ambidestria do Rei elogia os corpos completos de canhotos contrariados. 3. ( ) Sua mestiçaria (Arlequim é mesclado, tigrado, matizado, multicor) convida- nos a abandonar o conforto e a segurança do ninho e partir, expor-se ao outro, ao mundo, às coletividades, retendo as diferenças vividas durante as viagens e tornando- nos vários. 4. ( ) O multicolorido casaco de Arlequim significa a possibilidade de criação, após o longo processo de instrução ou de mestiçagem. IV –Leia atentamente as afirmações abaixo que dizem respeito às questões sobre Exposição, Mestiçagem e Desprendimento em Serres. 1 - Para Serres, o pensador ou o inventor não é nunca um “passante mestiço”, pois jamais abandona sua posição ou passa de um lugar a outro. O que o caracteriza essencialmente é a imobilidade das estátuas. 2 - A educação, em Serres, exige a exposição, pois sem ela negamos a possibilidade da educação no sentido mais elementar da palavra, aquele pelo qual aprendemos, 89 com a etimologia, que a educação conduz (ducere) para fora (ex). 3 - Antes de nosso nascimento, fomos criados na mistura dos genes de nossos pais; uma vez nascidos, nossa criação só evolui através de novos cruzamentos. Daí, para Serres, toda PEDAGOGIA, compreendida como processo de mestiçagem, recomeçar o engendramento e o nascimento de uma criança. 4- O que há de negativo no desprendimento é o fato de ele retirar as obrigações do pensamento corporativo e aliviar a pressão dos pares. 5 - Sem o rompimento com a condição de apego ao ninho, que nos acompanha mesmo antes do nascimento, a educação não se inicia. -Marque agora: estão corretos apenas os enunciados. ( ) 1, 2 e 3 ( ) 2, 3 e 4 ( ) 2 , 3 e 5 ( ) 3, 4 e 5 V - Marque V ou F para as afirmações abaixo. 1. ( ) O eu mestiço é um sujeito indeterminado, pois é a soma do eu, do tu, do nós, do vós e do eles. Não é ninguém, mas acrescido de todos os outros. 2. ( ) A relação produz o sujeito, pois ele se engendra, assujeitado aos laços de comunicação com os outros no turbilhão movediço da intersubjetividade. 3. ( ) É a indeterminação do eu mestiço lhe não lhe permite fundamentar determinações várias e adequadas a cada circunstância. 4. ( ) A mestiçagem que Serres propõe é harmônica e se realiza sem conflitos, pois requer que se conjugue em si a parte do outro e a sua própria, criando, assim, reestruturações na identidade, que se torna móvel e instável. 5. ( ) Pela mestiçagem, passa-se da identidade como síntese estabilizada do eu para a identidade como síntese aberta, constituída de recomposições permanentes através das trocas com a alteridade. 6. ( ) A mestiçagem é transgressora, pois nega a ideia de pureza cultural e supõe a transformação da identidade do sujeito ou aquela dos grupos, sem que se coloque a priori uma cultura dominante legítima. 7. ( ) Todo processo de conhecimento é uma mestiçagem, porque, quando falamos uma outra língua, temos um outro corpo; quando pensamos em outra ciência, entramos em outro ser humano. E, de tanto falar línguas diferentes, de tanto conhecer disciplinas diferentes, fabricamos em nós um mestiçointelectual. 4 90 VI - Escolha duas das questões abaixo para responder. 1. A partir da história de Arlequim, explique o que Serres designa como “a tola patologia da divisão”.2. Qual a relação entre ciência, poder e ideologia em Serres? 3. Explique a relação entre educação, exposição e mestiçagem em Serres.4. Como Serres define o Mestre (Educador ou Pedagogo) e qual sua função na Filosofia Mestiça? 91 Pra final de conversa... Talvez você não tenha reparado, mas terminamos nossa conversa com reticências. Pois elas foram propositais. Não acho que este curso de Filosofia da Educação que acaba aqui tenha sido o final de sua conversa com esta disciplina. Daí o sentido das reticências. O que lhe propusemoss neste curso foi um percurso pela Filosofia da Educação, dentre tantos outros possíveis. Partilhamos com você um pouco de nossa trajetória. Na primeira unidade, apresentamos nosso modo de pensar e justificar a filosofia da educação através do diálogo, de temas e de problemas. Na segunda unidade, mostramos como é possível partir de problemas da educação e chegar aos seus fundamentos na filosofia. Na terceira unidade fizemos o caminho inverso: partimos da filosofia e chegamos à educação, ao que um filósofo pode propor como reflexão ao educador. Agora cabe a você construir seus diálogos entre filosofia e educação, criar seu caminho. Se alguma coisa do que lhe apresentamos lhe interessou, comece por aí sua trajetória, vá abrindo seus temas e problemas, suas veredas da educação para a filosofia ou da filosofia para a educação. Esperamos ter contribuído um pouco para sua formação como pedagog(a). Daqui para frente, mais do que nosso(a) aluno(a), você passa a ser nosso parceiro nesta empreitada, a de fazer filosofia da educação e de ter nela uma importante aliada na tarefa jamais terminada de todo educador, que é aquela de refletir e de agir em prol da formação de homens e mulheres cada vez mais críticos, autônomos, tolerantes, mestiços, livres e em paz. Um grande abraço, Parceiro(a). O Autor 92 REFERÊNCIAS (ALAIN) Emile Chartier. Reflexões sobre a educação. São Paulo: Saraiva, 1978. AINSA, Fernando. La reconstruction de l’Utopie. Préface de Federico Mayor. Traduction de l’espagnol par Nicole Cantò. Paris: Arcantères Éditions, 1997. ARENDT, Hannah. Filosofia e política. In:______. A dignidade da política. 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