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1 A formulação de políticas públicas de saúde bucal | 15 Samuel Jorge Moysés e Paulo Sávio Angeiras de Goes 2 Teorias do planejamento em saúde | 33 Marcos Azeredo Furquim Werneck 3 Métodos e técnicas de planejamento em saúde | 45 Adriana Falangola Benjamin Bezerra 4 A utilização da informação para o planejamento e a programação em saúde bucal | 55 Paulo Sávio Angeiras de Goes e Samuel Jorge Moysés 5 Programação das ações em saúde bucal | 71 Marco Manfredini Planejamento das ações de saúde bucal Parte 1 Book_Moyses.indb 13 25/02/12 12:07 �� introdução O foco deste capítulo é explorar a conexão signifi cante que pode ser extraída destas duas expressões teóricas: “formulação de políticas públicas” e “saúde bucal”. Uma conceitua- ção inicial se impõe e, para tanto, oferecemos nossa visão autoral dentre as várias possíveis. Comecemos com a questão da formulação de políticas públicas. Vale ressaltar que não se trata da formula- ção de políticas públicas em geral, portanto, categorias genéricas e comuns que constituem qualquer política em campos de ação humana – por exemplo, na formulação de políticas sociais, A formulação de políticas públicas de saúde bucal Samuel Jorge Moysés Paulo Sávio Angeiras de Goes capítulo 1 como habitação, educação ou segurança públi- ca – certamente terão de ganhar uma contextu- alização específi ca para a saúde e, neste caso, mais particularmente para a saúde bucal. Seja para a política de saúde bucal, seja para outras políticas públicas, cabe a seguin- te indagação: quais seriam os conceitos e as categorias teórico-políticas e os aspectos his- tóricos relevantes que condicionam sua for- mulação? E quais seriam as regras e doutrinas de ordem prática, legal e institucional que de- limitam sua implementação e seus potenciais efeitos? Introdução | 15 Bases teóricas para a análise da formulação de políticas públicas | 16 O que é saúde bucal? | 19 Políticas públicas de saúde bucal: racionalidade a serviço da população | 22 Considerações fi nais | 27 Book_Moyses.indb 15 25/02/12 12:07 16 Goes & Moysés �� Bases�teóricas�para�a�análise�da� formulação�de�políticas�públicas Um ponto de partida seria compreender de modo simples e direto que as políticas públi- cas nascem da necessidade de equacionar as demandas sociais com a oferta de bens e ser- viços fi nanciados coletivamente com recursos públicos. Contudo, essa primeira aproximação é simplista e ingênua, pois esse é um campo vasto, com imbricações entre a sociologia po- lítica em suas interfaces com outros saberes interdisciplinares,1 além de ser permeado por disputas na área sociopolítica. A literatura específi ca do campo de po- líticas públicas vem recebendo importantes aportes e sofrendo a infl uência de diferentes vertentes das teorias analíticas neoinstitucio- nalistas.2,3 Em suma, conforme adverte Faria,4 há uma Babel instalada, com teorizações que buscam dar inteligibilidade à diversifi cação dos processos de formação e gestão das políticas em um mundo cada vez mais marcado pela interdependência assimétrica, pela incerteza e pela complexidade das questões que deman- dam regulação pública. Políticas públicas envolvem a atividade política em si, que se destina à satisfação (ou omissão) diante das demandas dos agentes sociais ou de reivindicações formuladas por su- jeitos atuantes no sistema político, consideran- do todo o seu espectro.5 Ou seja, as políticas públicas são ações governamentais que visam resolver determinadas necessidades sociais, o que exige pensar se tais ações pertencerão, no espaço público, à esfera estatal ou não estatal, do ponto de vista não apenas de sua regulação, mas de seu provimento e de sua execução. As políticas podem ser sociais (saúde, assistência, habitação, educação, emprego, renda ou pre- vidência), macroeconômicas (fi scal, monetária, cambial, industrial) ou outras (científi ca e tecno- lógica, cultural, agrícola, agrária). No ciclo das políticas em geral (Fig. 1.1), a literatura sinaliza ao menos três grandes con- juntos de questões relativas ao processo de formulação.6 Primeiro, é fundamental compreender que a formulação não se dá em um vácuo político- -social e institucional. Muitas vezes, as neces- sidades públicas locais de determinada socie- dade são pensadas ou decisões são tomadas (mesmo inconscientemente) por governantes insufl ados ou condicionados por teorias so- ciológicas ou de economia política de caráter mais geral. Um caso típico seria relembrar o modelo teórico clássico do keynesianismo e a conjuntura histórica de seu surgimento, com a respectiva infl uência que exerceu no ocidente do pós-grandes guerras, fortalecendo a inter- venção estatal para gerar emprego, renda e oferecer proteção social aos cidadãos, mes- mo que tal intervenção gerasse défi cit público. Contudo, nas duas últimas décadas do século XX e sob os auspícios de agências econômi- cas internacionais, como o Banco Mundial,8 as orientações das políticas de saúde em ní- vel internacional pautam-se em uma funda- mentação neoliberal, em consonância com o recomendado pelo Consenso de Washington,9 defendendo que, no campo da saúde, as inter- venções que não contemplassem custo/efeti- vidade deveriam ser fi nanciadas pela iniciativa privada ou por outra forma de seguro social.12 Formulação da agenda Avaliação Acompanhamento Implementação Figura 1.1. O ciclo das políticas. Fonte: Gelinski e Seibel.7 Book_Moyses.indb 16 25/02/12 12:07 17 Planejamento, Gestão e Avaliação em Saúde Bucal Segundo, os constrangimentos externos que levam à adoção de políticas restritivas a gastos afetam decisivamente as políticas so- ciais. Tais políticas macroeconômicas restri- tivas foram implementadas não apenas no Brasil, mas em boa parte dos países em de- senvolvimento, desde os anos 1990, com vis- tas ao chamado “ajuste estrutural” das suas economias.6 Por exemplo, poderiam ser tra- zidos recortes analíticos dos efeitos do ajuste estrutural das economias latino-americanas sobre as políticas de saúde e, no caso brasi- leiro, tensionando o avanço constitucional que propõe um sistema de saúde de base univer- sal, surge uma retórica de “serviços básicos de vocação universal”, com a seletividade e a ênfase nos serviços de saúde para as camadas mais pobres da população, combinados com a “racionalização” de custos impactando a oferta ao atendimento especializado. Assim, forja-se um sistema fragmentado,13,14 em que a esfera pública vem sustentando de modo subfi nan- ciado a atenção primária e a Estratégia de Saú- de da Família (ESF), ao mesmo tempo que a rede privada foca a rentabilidade dos serviços de alta densidade tecnológica que comportam os níveis secundário e terciário do sistema, o que gera permanentes difi culdades no acesso, na estrutura física, na formação das equipes, na gestão e na organização da rede de saúde.15 E, por fi m, nos países com democracia re- cente, as coalizões políticas que assumem os governos ainda não têm conseguido defi nir como se dá o equacionamento entre recursos e necessidades da população.6 Não obstante, a corrente neoliberal tenta se apropriar da questão da saúde, produzindo e sistematizan- do conhecimentos positivistas e funcionalistas que se apresentam como respostas defi niti- vas aos problemas da área. A atenção à saú- de tem sido vista como um mero investimento que gera retornos em termos de elevação da produtividade e acumulação econômica, e tal- vez o maior problema desse pensamento seja sua abordagem economicista e marginalista da saúde, que a enxerga como uma simples “utilidade” decorrente de cálculos racionais da decisão econômica, não reconhecendo que a situação de saúde de um povo é socialmente determinada.16,17 O problema suscitado é o do relaciona- mento de uma procura infi nita com um siste- ma fi nito, o que faz economistas da saúde e gestores buscarem critérios para escolher prio- ridades, com o intuito de facilitar a tomada de decisão.Porém, o problema se torna ético e, como foi lembrado por Martin,18 a coerência da ação moral pública se desintegra sob pres- sões contraditórias; por exemplo, o cuidado dado a um indivíduo às vezes pode ser poten- cialmente prejudicial à saúde de muitos, pois recursos disponíveis sempre estão limitados, e quando alguns poucos têm acesso a todos os tipos de diagnose e tratamento (casos de judi- cialização no SUS), os altos custos individuais implicados poderão prejudicar os interesses de sociedade. Mas como decidir qual doença, sofrimento e, em certos casos, a própria vida não terá nenhuma salvaguarda? Na formulação de políticas de saúde sempre se deve recorrer Saiba mais Os interessados poderão aprofundar esse tema com alguns recortes analíticos. Por exemplo, é útil registrar que a doutrina do economista John Maynard Keynes infl uenciou todo o campo da macroeconomia moderna, com grande repercussão para a formulação de políticas públicas no século XX, sobretudo nas nações ocidentais após as duas grandes guerras.10,11 Ele defendeu a constituição de Estados nacionais fortes, com ação intervencionista do governo, opondo-se frontalmente aos princípios clássicos liberais que defendiam que os mercados livres ofereceriam respostas automáticas às assimetrias e necessidades sociais. Nas últimas décadas do século XX, com a mudança de condições históricas e forças políticas dominantes, o pensamento hegemônico migrou para o neoliberalismo, com a substituição do arcabouço keynesiano pelas políticas restritivas a gastos governamentais. Então, as políticas sociais passariam a ter um caráter focalizado em vez de universal. É curioso constatar que tal migração sofreu novo desafi o epistemológico e histórico com a crise fi nanceira global instalada no fi nal de 2008. Book_Moyses.indb 17 25/02/12 12:07 18 Goes & Moysés às noções de equidade, buscando evitar as possíveis distorções causadas pelos estudos de avaliação econômica norteados exclusiva- mente por técnicas quantitativas e por noções pretensamente neutras de efi ciência.19 usualmente com reduzido grau de confl ito; (b) políticas redistributivas, que impõem restrições ou perdas a determinados grupos, com um ele- vado grau de confl ito; (c) políticas regulatórias, que envolvem burocracia estatal e grupos de interesse na defi nição de ordens, proibições e regulamentações constitutivas, sendo que o seu grau de confl ito vai depender da forma como se confi gura a política; e d) políticas constitutivas ou estruturadoras, que ditam as regras do jogo e defi nem as condições em que se aplicarão as políticas distributivas, redistri- butivas ou as regulatórias. Há ainda outra classifi cação tradicional, que descreve três modelos de políticas so- ciais para países capitalistas: (1) residual, que se fundamenta na família e no mercado como provedores essenciais das necessidades hu- manas; (2) meritocrático-particularista, para o qual a política social do Estado deve intervir temporariamente somente para corrigir distor- ções do mercado em uma lógica economicista; e (3) institucional-redistributivo, que pressupõe uma ação estatal para garantir proteção social para todos os cidadãos.21,22 No Brasil pós-Constituição de 1988, há esforços razoáveis em adotar políticas redis- tributivas e regulatórias de cunho mais parti- cipativo em contraposição às forças políticas conservadoras neoliberais e à tendência do gerencialismo público onisciente e autoritário. Essas políticas instituiriam novas maneiras de incorporar os segmentos da sociedade na formulação das políticas públicas por meio da ausculta pública na forma de conferências e conselhos gestores (de saúde, de assistência social, de trabalho, de segurança, entre ou- tros). A esses espaços soma-se a proposta de partidos políticos e governos populares de submeter à decisão popular o destino de uma parcela dos recursos na forma de audiências públicas, planos diretores e orçamento parti- cipativo.23-27 Bem, neste ponto, já temos elementos re- ferenciais sufi cientes para pensarmos os fun- damentos da formulação de políticas públicas, contudo, conforme anunciado na introdução deste capítulo, falta-nos ainda defi nir com maior clareza a saúde bucal, e esta é a propos- ta da próxima seção. Para refl etir Com base nos três conjuntos de elementos epistemológicos, políticos, organizativos e operacionais descritos anteriormente, podemos sumarizar assumindo que, do ponto de vista mais geral, a análise da formulação de políticas públicas obedece ao seguinte rol de questões constitutivas: § De que forma questões ou problemas passam a fazer parte da agenda de políticas? § Qual a teoria de fundo que alimenta as crenças, os valores e as ideias da comunidade de formuladores (policy makers) e sua respectiva estratégia de defesa das políticas formuladas? § Que forças políticas hegemonizam a arena de decisão e qual sua concepção de papéis para o Estado e o mercado? § Como são percebidas as “janelas” políticas ou de oportunidades para a ação instituinte de forças contra- -hegemônicas? § Quais instituições intervêm nos processos decisórios e na construção da “imagem” social das políticas, incluindo as infl uências midiáticas? § Qual o volume de recursos que sustenta a defi nição de prioridades e geração de incentivos? § Como se constrói a estabilidade e a sustentabilidade das políticas? § Qual a fi nalidade das políticas públicas? Ainda é preciso observar dois aspectos centrais na abordagem da formulação de polí- ticas públicas:7 sua tipologia e o grau de envol- vimento da sociedade em seu controle – algo que, no Brasil, ganhou a denominação genéri- ca de “controle social”. As políticas públicas são frequentemente agrupadas na literatura específi ca em qua- tro tipos:6,20 (a) políticas distributivas, que benefi ciam um grande número de pessoas, Book_Moyses.indb 18 25/02/12 12:07 19 Planejamento, Gestão e Avaliação em Saúde Bucal �� O�que�é�saúde�bucal? Saúde bucal, para alguns autores, é uma “abstração útil”.28-31 Saúde seria um “estado” que não pode subsistir na forma de “saúdes parcelares” de órgãos, sistemas, partes do corpo ou grupos populacionais – tais como saúde bucal, mental, cardiovascular, da mu- lher, da criança ou do idoso. Não obstante, os autores admitem seu uso para efeitos práticos, servindo para identifi car objetivos profi ssionais das corporações de saúde, bem como agrupar pessoas em programa de saúde pública, por exemplo. Há na literatura também que discuta ex- pressões tais como a “utopia da saúde bu- cal”,32 partindo do argumento central de que, com a tecnifi cação da ciência contemporânea e os usos e costumes que vão se fi rmando so- cialmente, a saúde bucal é apreendida e nego- ciada como um bem sujeito à compra/venda e consumo, ou seja, uma “mercadoria”. Esses autores criticam a visão mercadológica e bus- cam compreender a utopia da saúde bucal, em uma perspectiva coletiva, como uma rea- lidade a se construir, mas também como uma proposta que busca romper com o aspecto de naturalidade que assumem as políticas públi- cas, desmistifi cando o fetichismo odontológico e ressaltando a responsabilidade dos sujeitos como atores sociais que atuam nesse proces- so com a capacidade e a possibilidade de mu- dar o status quo. Raros são os esforços teóricos empreendi- dos para clarifi car o conceito de saúde bucal e sua operacionalização no meio social utilizan- do como quadro de referência uma abordagem crítica e que se nutra dos aportes das ciências sociais e humanas; portanto, deve-se louvar os autores pioneiros que se lançaram a esse desafi o,33-35 sobretudo ao advogar que saúde bucal não é sinônimo de odontologia – muito pelo contrário –, a despeito das inúmeras adje- tivações que a odontologia possa receber.36-38 A infl uência do modelo acadêmico de me- dicina científi ca e as incorporações tecnológi- cas da epidemiologia moderna, especialmente com sua matematizaçãoe aproximação aos métodos estatísticos, levaram fatalmente a uma interpretação da saúde-doença subsumi- da à racionalidade biológica, patológica, quan- titativa na qual mecanismos são interpretados sob inspiração do modelo teórico da história natural das doenças;40,41 ou seja, não impor- ta se linearmente ou em modelos complexos, mas, em última instância, na sua relação cau- sa-efeito em nível individual.42-45 Mesmo com os avanços decorrentes do desenvolvimento da epidemiologia das doenças crônicas ao lon- go do século XX e com a proposição da mul- ticausalidade, ainda assim o modelo interpre- tativo continuou preso à proposição negativa, isto é, de estudo das doenças. Um início de mudança de foco se deu com o relatório La- londe* e os seus clássicos “campos da saúde”: biologia humana, meio ambiente, estilo de vida e organização da atenção à saúde.46-48 O avanço da conceituação crítica relativa ao processo saúde-doença torna-se comple- xo, pois remete a eventos ou vivências multi- dimensionais, que não são bem demarcados e têm signifi cados que variam de acordo com o contexto vivido pelas pessoas individual ou coletivamente.30 Em uma linha mais problema- tizadora, que busca conferir uma concretude positiva ao conceito de saúde, esta tem sido considerada menos em termos de um “esta- do” abstrato e mais como um “meio” para um fi m, podendo ser expresso em termos funcio- nais, como um recurso que permite às pessoas Para refl etir Em suas particularidades, a saúde bucal também deve ser cotejada com a clássica defi nição da Organização Mundial de Saúde (OMS), que desde sua constituição de 1948 defi ne a “saúde” como “um estado de completo bem-estar físico, social e mental, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”.39 Essa defi nição tem gerado inúmeras críticas por sua ambiguidade, conduzindo inevitavelmente à ideia de que saúde é algo abstrato e inatingível, além de ter uma conotação individual. Cabe, então, perguntar: o que é um estado de completo bem-estar e como alcançá-lo? * Esse relatório foi elaborado em 1974 por Marc Lalonde, ministro da saúde do Canadá, e defi ne as bases de um movimento pela promoção da saúde. Book_Moyses.indb 19 25/02/12 12:07 20 Goes & Moysés conduzir uma vida individual, social e economi- camente produtiva. Sendo assim, saúde é per- cebida como um “modo de levar a vida”, isto é, um recurso para a vida cotidiana, e não o obje- to de viver. É um conceito positivo, que enfatiza recursos pessoais e sociais de resistência, resi- liência e equilíbrio dinâmico que busca supera- ção e/ou adaptação, envolvendo capacidades físicas, psíquicas, emocionais e espirituais.49,50 Sendo também considerada um direito hu- mano fundamental, e sendo determinada so- cioambientalmente além de biologicamente, a saúde passa a exigir uma série de pré-requi- sitos para ser desfrutada, muitos dos quais incorporados em arcabouços jurídicos que re- gulam a vida social em muitos países, como é o caso da constituição federal brasileira de 1988. Figuram entre esses pré-requisitos: paz, segurança e liberdade, educação de qualida- de, alimentação saudável e sufi ciente, condi- ções de saneamento e moradia salutar, ocu- pação e renda dignos; ou seja, condições de vida enfeixadas por políticas sociais e econô- micas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, assim como à ampliação de sistemas protetivos e ao acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Por força de consequência, a área temá- tica da saúde bucal também pode se benefi - ciar dessa conceituação mais ampla e proble- matizadora, ligando saúde bucal à qualidade de vida, como já vem ocorrendo na literatura internacional,51,52 inclusive com o desenvolvi- mento de métodos robustos para sua qualifi - cação e mensuração.53 Para além de ser uma “abstração útil” ou uma “utopia”, a saúde bucal é mais um dos recursos positivos para andar a vida. A saúde bucal também foi conceituada em fóruns de ampla participação social, e sua defi - nição foi inscrita na 1ª Conferência Nacional de Saúde Bucal, em 1986, e reiterada nas respec- tivas conferências de 1993 e 2004 como parte integrante e inseparável da saúde geral do in- divíduo, diretamente relacionada às condições de alimentação, moradia, trabalho, renda, meio ambiente, transporte, lazer, liberdade, acesso e posse da terra, e acesso aos serviços de saúde e a informação”.63-65 Adotar esse ideário signifi ca ultrapassar o pensamento hegemônico sobre saúde-doença bucal aprisionado nas grades enferrujadas de uma visão etiopatogênica (e epidemiológica) negativa, condicionada a perceber e diagnos- ticar normativamente as doenças ou, no limite, apenas suas manifestações clínicas, expres- sas na forma terminal de sequelas. As raízes fi losófi cas desse pensamento estão ancoradas na ideia cartesiana de dualidade entre corpo e mente, em que o corpo é visto como uma má- quina, abordando-se predominantemente o as- pecto biológico do processo. Assim, a saúde bucal não é explicitada, quando muito apenas subentendida pelo seu reverso, a doença bucal, convertendo-se em uma distopia, algo anômalo. Aliás, sobre esse assunto Botazzo66 co- mentou que o movimento da Reforma Sanitária Brasileira, a partir dos anos 1970, estruturou-se tendo por alicerce a abordagem de base popu- lacional e de determinação social do processo saúde-doença, considerada uma categoria for- te do ponto de vista heurístico, ao passo que as derivações opostas do mesmo ponto de vista (hábitos, comportamentos e práticas in- dividuais de risco) seriam fracas, isto é, teriam menor capacidade explicativa e de generali- zação. Então, esse autor interroga: “teriam os brasileiros sucumbido às fórmulas neoliberais no que concerne ao processo saúde-doença e à correlata organização dos serviços?”. Para saber mais A extrapolação conceitual da saúde bucal para o plano coletivo permite desvelar um universo orgânico, mas, sobretudo, perpassado pela subjetividade, que tem propiciado o desenvolvimento de uma área fértil no Brasil, denominada Saúde Bucal Coletiva (SBC) e sobre a qual alguns autores vêm dedicando tempo refl exivo e estudos que lhe confi ram solo epistemológico.36,54-62 Acesse o site do número especial da revista Ciência & Saúde Coletiva em que esse tema foi pautado e verifi que as defi nições possíveis para saúde bucal.* * Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1413-812320060001&lng=pt&nrm=iso. Book_Moyses.indb 20 25/02/12 12:07 21 Planejamento, Gestão e Avaliação em Saúde Bucal Talvez sim, mas há reações no campo contra-hegemônico. Em outro polo crítico de produção de conhecimentos começa a se constituir um razoável corpo de literatura que analisa e debate abordagens, estratégias e tec- nologias usadas para: promover e alcançar a saúde bucal,67-72 educar em saúde bucal73-75 e prevenir ou medir as doenças bucais.76-80 Boa parte dessa literatura citada identifi- ca várias lacunas e insuficiências, tais como: (a) genericamente, as práticas intersetoriais e multiprofissionais de promoção de saúde bu- cal ainda são muito tímidas e pouco incorpo- radas por gestores e equipes de saúde, o que caracteriza fragmentação de esforços e baixo impacto socioepidemiológico; (b) apesar da existência de vários programas, a dimensão educativa é pouco desenvolvida e, quando rea- lizada, está fortemente apoiada em práticas de transmissão unidirecional de conhecimentos e no paradigma comportamentalista, ancorado na abordagem higienista, dogmática, autoritá- ria e individualista da prevenção, sem espaço para práticas dialógicas, visando à autonomia com relação ao cuidado com a saúde; e (c) mesmo órgãos governamentais da federação brasileira, por exemplo algumas secretarias de saúde, quando fazem recomendações sobre educação e prevenção em saúde bucal são inconsistentes, aparentemente por falta de ba- ses na evidência científica.Mas, antes de prosseguirmos com esta análise da produção científica em um contexto redacional que se alimenta de visões da comu- nidade epistêmica do próprio campo da saúde bucal, seria proveitoso apreciarmos o que pen- sa a comunidade “não especializada” sobre a saúde bucal, para fecharmos o raciocínio da formulação de políticas nessa área. Já vimos a importância atribuída no Bra- sil pós-Constituição federal de 1988 para as questões de formulação de políticas de modo participativo, mas o que nos mostra a literatu- ra sobre o interesse das instâncias de controle social acerca da agenda da saúde bucal? Geralmente, tal interesse é exíguo, isso quando não é inexistente.81 A análise docu- mental das deliberações voltadas especifica- mente para a saúde bucal, registradas em atas de reuniões de 15 Conselhos Municipais de Saúde, evidencia em 90 atas, das 591 estuda- das, o total de 134 registros de intervenções de em saúde bucal, que eram relatos de ações já concretizadas, desprovidas de caracterís- ticas propositivas quando analisadas sob a óptica da formulação de políticas, sinalizando um baixo padrão de representatividade nesses espaços.82 Em outra linha perceptiva, o que pensam mães cujos filhos são usuários de serviços odontológicos universitários? Estudo com essa finalidade evidencia que elas refletem sobre a saúde bucal de seus filhos com base em no- ções de responsabilidade materna para preve- nir cárie e suas consequências, evitar gastos com tratamentos onerosos e que as crianças passem por experiências desagradáveis.83 A procura por serviços parece ocorrer, princi- palmente, para realização de procedimentos curativos com base na introjeção de informa- ções que não lhes permitiram ressignificar a saúde bucal para além do modelo tecnicista, biológico, dominante. Geralmente, os usuários priorizam sua saúde e o controle das doenças bucais, atribuindo uma responsabilidade in- dividual de realizar a higiene bucal e procurar tratamento dentário, pouco conhecendo ou valorizando procedimentos coletivos, de natu- reza promocional,84 algo que foi considerado elemento central da política de saúde bucal na transição dos anos 1990 para os anos 2000, mas parece não ter sido incorporado no imagi- nário popular.85 Igualmente, reconhecendo a importância da equipe multiprofissional de saúde nas práti- cas integrais de saúde bucal, seria curioso per- guntar qual o nível de conhecimento, atitudes e práticas de outros profissionais, por exemplo médicos pediatras, com relação a problemas bucais? Dados de pesquisa informam que a maioria dos entrevistados possui informação sobre a etiologia e a prevenção “da cárie” [grifo nos- so], bem como examinam os dentes durante suas consultas e orientam os pais das crian- ças. A higiene bucal e o uso de flúor foram os métodos de prevenção mais citados, ao passo que o papel do açúcar na etiologia da cárie foi reconhecido por poucos médicos. A maioria concordou que os pediatras, juntamente com Book_Moyses.indb 21 25/02/12 12:07 22 Goes & Moysés os cirurgiões-dentistas, devem atuar na educa- ção em saúde bucal dos pacientes, mas ape- nas 24% da amostra consideraram seu próprio nível de informação satisfatório.86 É interessante perceber ainda a percepção de saúde bucal no mundo “quase profissional”, mas ainda não inteiramente dominado pela ló- gica corporativa de mercado, que se manifesta entre estudantes de odontologia. Precocemen- te, já se observa que o conceito de educação em saúde (e, por dedução, o conceito de saú- de bucal) dos acadêmicos está fortemente li- gado ao conceito positivista de ensinamento, instrução e prevenção de doenças, pautados na ideia de que a falta de informações dos in- divíduos é que os induz a não exercer práticas saudáveis em saúde (“culpabilização” das víti- mas), sendo função do profissional educar as pessoas nesse sentido.87 Talvez mais interessante ainda será verifi- car a percepção sobre saúde bucal de outros sujeitos universitários, tais como concluintes do curso de pedagogia, uma área que sem- pre terá implicação com a educação e, muito provavelmente, com a educação e saúde. Da- dos de pesquisa indicam que a maioria dos respondentes tiveram acesso a informações de odontologia preventiva, intermediadas pelo cirurgião-dentista. Os estudantes apresentam conhecimento razoável com relação à saúde bucal, sugerindo a instituição de programas educativos dentro do currículo acadêmico, uma vez que esses futuros profissionais contribui- rão para a formação da criança, estabelecendo práticas diárias capazes de gerar saúde.88 Bem, com as premissas apresentadas até aqui, já é possível avançarmos para uma seção central deste capítulo, tratando das políticas de saúde bucal em vigor no Brasil e suas implica- ções para a sociedade brasileira. �� Políticas�públicas�de�saúde� bucal:�racionalidade�a� serviço�da�população Já vimos nas primeiras seções deste ca- pítulo o conjunto de questões que podem ser enfatizadas na análise da formulação de po- líticas públicas. Nas próximas seções, abor- daremos tais questões buscando associá-las à formulação de políticas de saúde bucal no Brasil contemporâneo. A�construção�da�agenda A saúde bucal ocupou pouco espaço polí- tico ao longo de décadas de história sanitária brasileira, exemplificando ruinosamente (e bas- ta verificar os principais indicadores epidemio- lógicos nacionais) uma história de omissão do Estado. Não é preciso detalhar aqui essa cons- tatação, pois há razoável literatura publicada sobre o assunto.31,36,89-94 Por ter sido assim ao longo da história bra- sileira, talvez surpreenderá ao analista ingênuo observar que a Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) em anos recentes, batizada de “Brasil Sorridente”, passe a ocupar um espa- ço maior, que se espraia por indução do go- verno federal para outras esferas federativas e da teia social. Porém, a PNSB não iniciou em 2003, embora tenha recebido forte impulso a partir desse ano.93 É uma política que está sendo construída há muitas décadas, por di- versos setores da sociedade, como aqueles vinculados aos movimentos sociais da saúde e aos sindicatos progressistas, à militância es- tudantil, aos professores e pesquisadores que atuam no entrecruzamento da odontologia com a saúde coletiva, bem como por equipes de saúde pública, pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e pelo Con- selho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), pelo Conselho Nacional de Saúde, por movimentos de profissionais e por algumas gestões de entidades odontoló- gicas. O que o governo federal assumiu de- cisivamente foi o desenho político que vinha sendo formatado desde o início da reforma sa- nitária brasileira. A saúde bucal foi pautada fir- memente desde a 8ª Conferência Nacional de Saúde, desdobrando-se nas três Conferências Nacionais de Saúde Bucal até aqui realizadas (1986, 1993 e 2004). O Brasil Sorridente é, portanto, a política de saúde bucal do Sistema Único de Saúde (SUS).95 De fato, o relatório final da 3ª Conferência Nacional de Saúde Bucal evidenciou como de- veria ser a agenda para um Brasil contempo- râneo.65 Nesse documento, expressão de um Book_Moyses.indb 22 25/02/12 12:07 23 Planejamento, Gestão e Avaliação em Saúde Bucal processo que teve a participação direta de cer- ca de 90 mil pessoas em todo o país, assinala- -se que as condições da saúde bucal e o esta- do dos dentes são, sem dúvida, um dos mais signifi cativos sinais de exclusão social. Seu enfrentamento requer políticas intersetoriais, a integração de ações preventivas, curativas e de reabilitação, e enfoque de promoção da saúde, universalização do acesso, responsabi- lidade pública de todos os segmentos sociais e, sobretudo, compromisso do Estado com en- volvimento de instituições das três esferas de governo. O debate político sobre a necessidade de uma resposta do Estado brasileiro para a ques- tão da saúde bucal foi tomado como tarefa por umgrupo de militantes na construção do pro- grama do candidato Luís Inácio Lula da Silva, em 2002. Em face do resultado da eleição, no fi nal de 2002, várias articulações foram feitas com representantes da coligação vitoriosa, inclusive com reunião em São Paulo, que foi registrada em um documento intitulado “Fome Zero e boca cheia (de dentes)!”.5,96,97 Aliás, autores e entidades importantes no campo da saúde coletiva advertem que os desafi os da prática na área temática de polí- ticas, planejamento e gestão impõem aos su- jeitos, individuais e coletivos, não só perícia técnico-científi ca, mas sobretudo militância so- ciopolítica, com a construção de uma agenda estratégica.100,101 Parece não ter faltado ambas para um conjunto de atores que vem atuando na formulação e implementação da PNSB, em- bora os problemas não resolvidos ainda sejam muitos. Para seu enfrentamento, há exemplos de estratégias e ferramentas que podem con- tribuir para dimensionar problemas, inclusive para utilização rotineira por equipes no nível local, e pautar a agenda de formuladores de políticas e gestores.102 Por exemplo, o índice de necessidade de atenção à saúde bucal que demonstra possuir pré-requisitos de validade para ser usado como instrumento de progra- mação para as Equipes de Saúde Bucal (ESB) da família.103 Autores identifi cam duas fases importantes para a formação da agenda da saúde, válidas também para a PNSB. Entre 2003 e 2006, pre- dominou uma orientação participativa e geren- cialista; entre 2007 e 2010, a orientação ge- rencialista se manteve e houve um esforço de Saiba mais Um personagem importante nesta recente história da PNSB é o próprio presidente Lula. Em seus discursos, ele sempre lembrou que a discussão que temos de travar na área de saúde bucal é não apenas de acesso, mas de integralidade. Temos de reforçar o atendimento básico, que é parte importante da estratégia, mas devemos também garantir que aquilo que hoje é privilégio de uma minoria possa ser de acesso geral a toda a população, por exemplo, os atendimentos especializados. Veja, a seguir, trechos de alguns de seus discursos históricos: § Excerto 1 – Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em Sobral, Ceará, no lançamento do Programa Nacional de Saúde Bucal (Brasil Sorridente), em 17 de março de 2004: “É preciso levar a sério a saúde bucal do nosso povo, porque, no Brasil, lamentavelmente, qualquer parte do corpo humano sempre foi tratada como uma questão de saúde pública, mas a boca, por onde entra tudo que a gente come, nunca foi tratada com o menor respeito por todos aqueles que pensam em saúde neste país”.98 § Excerto 2 – Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no encontro com representantes do setor odontológico Palácio do Planalto, 24 de maio de 2006: “O meu sonho é que a gente crie uma coisa tão forte na consciência da sociedade, mas tão forte, que quem quer que seja que governe este país, daqui a 20 ou 30 anos, saiba que é importante emprestar dinheiro para a empresa vir para cá, saiba que é importante dar dinheiro para o Ministério do Meio Ambiente, para o Ministério da Saúde, para fazer cirurgia, para comprar equipamento, para fazer reforma agrária, mas não esqueça nunca que o tratamento da boca das pessoas é tão importante quanto cuidar da alma das pessoas, porque as pessoas serão muito mais alegres, a autoestima será muito maior, e só quem não passou por isso é que não sabe”.99 Book_Moyses.indb 23 25/02/12 12:07 24 Goes & Moysés 4,261 2002 Maio/2011 20,714 atrelar a política de saúde ao modelo de desen- volvimento. Apesar dos avanços, há limitações de peso, como a não regulamentação do fi nan- ciamento setorial – que tem comprometido a execução dos planos –, o escasso enfrenta- mento de problemas estruturais do sistema de saúde e a fragilidade da lógica territorial.104,105 Atualmente, a PNSB estrutura-se em seis eixos (ou componentes) estruturantes: 1. Reorganização da atenção primária em saúde bucal, com ampliação de ESB na Estratégia de Saúde da Família (ESF) – con- forme a Figura 1.2: aumento da cobertura em atenção primária; unidades odontológi- cas móveis para zonas de difícil fi xação de profi ssionais e unidades, além da prioriza- ção equitativa de áreas com população vul- nerável (quilombolas, população indígenas e população urbana pobre). 2. Ampliação e qualifi cação da atenção es- pecializadas: em maio de 2011 havia 853 Centros de Especialidades Odontológicas (CEO) e 664 Laboratórios Regionais de Pró- tese Dentária implantados. 3. Assistência na atenção terciária: emissão pelo cirurgião-dentista de autorização para internação hospitalar, tratamento odon- tológico para pessoas com necessidades especiais e assistência odontológica nas unidades e nos centros de atendimento on- cológico. 4. Promoção e prevenção: ampliação de rede de abastecimento de água fl uoretada e dis- tribuição de kits de higiene bucal. 5. Reestruturação e qualifi cação: doação de equipamentos odontológicos e incentivo e fi nanciamento de pesquisas na área de saúde bucal coletiva. 6. Vigilância, monitoramento e avaliação: im- plantação de rede de centros colaborado- res em vigilância à saúde bucal e pesqui- sas epidemiológicas transversais em saúde bucal. A�teoria�de�fundo�e�a�tipologia�da�política� nacional�de�saúde�bucal Conforme adverte Souza,107 o uso de rótu- los atribuídos às políticas públicas no Brasil, em especial às políticas sociais, constitui um problema, uma vez que tais rótulos alimentam crenças, valores e ideias que vão se multipli- cando socialmente e, muitas vezes, irrefl etida- mente, “grudam” como uma condenação auto- mática de tudo o que é “público”. Claro, temos razões de sobra para sermos infl uenciados por uma visão de que o Brasil é, por excelência, o território de fenômenos como clientelismo, paroquialismo, patrimonialismo e outros tan- tos “ismos”, todos pouco lisonjeiros. Porém, é exagerado desembocar invariavelmente na conclusão apressada de que não se pode apostar em políticas públicas, pois elas fatal- mente deságuam na corrupção generalizada. Essa história cultural brasileira, que se nutre de suas polifônicas vozes que ecoam na arena política, traz refl exos amplos para as políticas públicas em geral. No caso da saúde bucal, há matizes corporativos particulares que tornam a cena da PNSB ainda mais problemática e, para Figura 1.2. Equipes de Saúde Bucal implantadas na ESF, série histórica de 2002 a 2011. Fonte: Brasil. Ministério da Saúde. Saúde Bucal.106 Book_Moyses.indb 24 25/02/12 12:07 25 Planejamento, Gestão e Avaliação em Saúde Bucal mantermos uma perspectiva crítica sobre as crenças (ou ideologias) corporativas da odonto- logia – e, por outro lado, a teoria de fundo que ambicionamos na PNSB para ultrapassar tais crenças –, não podemos nos perder na con- temporaneidade; ainda hoje é preciso investigar traços históricos de constituição da teoria, da prática e do discurso odontológico para com- preendermos sua aparição nas políticas. Botazzo108 nos guiará em parte dessa tarefa, resgatando que “a teoria sobre bocas e dentes que emerge entre os séculos XVIII e XIX é uma teoria estomatológica, quer dizer, emerge como discurso médico [...] Somente a partir de 1880 é que discursos odontológicos com pretensão científica vêm à luz, na França, e buscam a ne- cessária articulação com os discursos bucoden- tários que ocorriam alhures”; por exemplo, nos Estados Unidos (e poderíamos ainda observar que essa base epistemológica é funcional-posi- tivista, organicista e odontocentrada). Botazzo segue esclarecendo que uma coisa é a produ- ção de conhecimentos, outra são as condições ou os tipos profissionais que se pode encontrar articulados a determinada prática. Seja como for, é essa constituição da odontologia a par- tir do século XIX que podemos presenciar nas características marcantes da odontologia do século XXI: caráter privado de organizaçãoda prática, simultaneamente centrada nas técnicas dentárias, corporativista e tendendo à condição de monopólio mercadológico. É ainda Botazzo quem finaliza, ironizando que, “como convém aos bons liberais, velhos e novos, se incensa a iniciativa privada e a capacidade de empreen- dimento individual, mas não se dispensam as boas graças do Estado”.108 De fato, é com as boas graças do Estado (e, querendo ou não, com os empreendedores da odontologia de mercado) que uma política ao mesmo tempo redistributiva e estruturante se impõe. Entre 2003 e 2008, 17,5 milhões de brasileiros começaram a frequentar o dentista, e houve uma queda de 4,3 pontos percentuais no número de pessoas com renda familiar de até dois salários mínimos que nunca tinham ido ao dentista – 17,9%, em 2003, e 13,6%, em 2008. O percentual dos que nunca se consultaram com um dentista caiu para 11,7%, em 2008 – em 1998, esse percentual era de 18,7%.109,110 Uma�dilemática�questão�no�Brasil:�� a�hegemonia�da�odontologia�de�� mercado�e�sua�influência�no�jogo�� político-institucional Não é preciso reiterar o controle hegemô- nico que a odontologia de mercado exerce na formação acadêmica e na organização das práticas majoritárias no Brasil ao longo de dé- cadas, contudo, dois novos cenários de prá- ticas odontológicas apareceram no horizonte das políticas públicas profissionais, provavel- mente em função de um esgotamento da tra- dicional organização do mercado de trabalho com base no consultório privado odontológico: a odontologia pública de base estatal, com o Brasil Sorridente e sua capilaridade extensa pelos municípios brasileiros, e as operadoras de planos privados de assistência pública não estatal. É interessante notar que o mencionado es- gotamento não significa que a odontologia de mercado deixou de exercer seu fascínio sobre a corporação odontológica, muito pelo contrá- rio, ela segue influenciado a organização do processo de trabalho mesmo na área pública, sob o domínio das práticas clínicas. Para o mo- delo denominado odontologia de mercado, as condições de saúde bucal resultam da assis- tência odontológica prestada às pessoas me- diante pagamento direto ou indireto pelos ser- viços clínico-cirúrgicos realizados. Tais ações “têm valor de troca, e o preço de cada serviço deve ser definido de acordo com as regras de funcionamento do mercado.”31 Desde a publicação da Lei nº 9.656/98, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, e da Lei nº 9.961/00, que cria a Agên- cia Nacional de Saúde Suplementar (ANS), as operadoras de planos odontológicos passaram a experimentar uma política regulatória simul- tânea à sua expansão, adaptando-se às novas regras que enquadram as especificidades des- se segmento.111 Na saúde bucal, o aparato tecnológico tem se desenvolvido de forma constante, com ma- teriais e técnicas de última geração, sendo ins- trumentos de trabalho amplamente utilizados pelos profissionais. No entanto, não se têm observado resultados positivos na qualidade Book_Moyses.indb 25 25/02/12 12:07 26 Goes & Moysés de vida e na situação de saúde bucal da po- pulação em geral, o que permite questionar os processos de trabalho e a incorporação acríti- ca de tecnologias nos modos hegemônicos de produção da atenção/assistência.112,113 Janelas�de�oportunidades�para�forças� políticas�contra-hegemônicas Do ponto de vista da organização do pro- cesso de trabalho, não importa qual é o mo- delo tecnoassistencial adotado na odontologia pública brasileira desde os tempos do sistema incremental de atendimento a escolares, isto é, independentemente de ser o Programa de Inversão da Atenção, a Atenção Precoce em Odontologia, ou Programa ou Estratégia de Saúde da Família – o mais recente deles –, uma falha comum constatada que dificulta o acesso universal e integral à atenção odontológica é a exclusão de clientelas.114 A ESF é uma estratégia apregoada como estruturante de novos arranjos organizacionais e novas práticas de saúde bucal, mas uma re- visão recente da literatura, com publicações do período de 2001 a 2008, aponta que as ESB ainda não pautam suas ações da forma inovadora pretendida no cerne da PNSB, ain- da predominando as práticas do modelo tradi- cional, subsidiárias da odontologia de merca- do.115 Sobre isso, é importante lembrar que a vontade política do gestor municipal para qua- lificar a força de trabalho da saúde da família é o fator fundamental para a consolidação da ESF em face do baixo grau de especialização dos profissionais para atuar em atenção pri- mária em saúde.116 Contudo, o estágio da construção do SUS baliza a possibilidade de realizar as ações con- tra-hegemônicas que permitam atender às ne- cessidades de todas as pessoas (princípio da universalidade), viabilizando seu acesso a to- dos os recursos odontológicos e de saúde ge- ral de que necessitem (princípio da integralida- de) e ofertando mais aos que mais necessitam (princípio da equidade). O SUS é, reconheci- damente, uma importante conquista social dos brasileiros, uma brecha histórica que se mos- trou capaz de resistir à avalanche neoliberal propagada nas últimas décadas, com potencial para destruir a maioria dos sistemas públicos de saúde na América Latina, mas reconhecer isso não significa desconsiderar os enormes problemas enfrentados pelo setor de saúde – seja em decorrência das péssimas condições de vida da maioria (com grande impacto sobre os níveis de saúde), seja em consequência das dificuldades orçamentárias e gerenciais que marcam a administração pública. O Brasil Sorridente é uma política de am- pliação e qualificação da atenção em saúde bucal em todos os níveis, que busca assegurar inclusive atendimento de maior complexidade, e a entrada da saúde bucal na agenda de prio- ridades do governo efetiva-se 17 anos após a realização da 1ª Conferência Nacional de Saú- de Bucal e do 1º Levantamento Epidemiológico em Saúde Bucal, ambos realizados em 1986, quando já se denunciava a precária situação de saúde bucal da população e os limites da atenção nessa área. Nos anos 1990, a área manteve baixo pres- tígio político, e apenas ao longo da primeira década do ano 2000 ocorre uma inovação na trajetória da política. Em 2002, no período de transição de governos, abriu-se uma “janela de oportunidade” para a saúde bucal, pois ha- via no país um movimento de profissionais de odontologia articulados à reforma sanitária, o que foram bem-sucedidos em emplacar a saú- de bucal como prioridade no governo Lula e na proposição de um desenho abrangente para a política, envolvendo ações de promoção, pre- venção, tratamento e reabilitação dentária.5 O Brasil Sorridente, em que pese o seu desenho abrangente, avançou até o momento mais no tocante à expansão das ESB atreladas à ESF do que nos demais componentes. Entre 2002 e 2010, o número de ESB implantadas no país representou um aumento de 400%, e a abran- gência populacional estimada dessas equipes aumentou de 15% para 45%, ultrapassando 85 milhões de pessoas.105 Análise�institucional�e�o�papel�indutor� da�esfera�federal:�um�jogo�político�e� organizativo�de�sustentabilidade�frágil Para Andrade,5 “embora a coordenação nacional de saúde bucal sustente que o Brasil Book_Moyses.indb 26 25/02/12 12:07 27 Planejamento, Gestão e Avaliação em Saúde Bucal Sorridente resultou de discussões conjuntas com movimentos sociais, profissionais e enti- dades avançadas, há evidências de que a tra- jetória de formulação da PNSB restringiu-se ao grupo de profissionais de saúde que posterior- mente viria a compor a estrutura do Ministério da Saúde”. Garcia96 sugere dúvidas quanto à sustentabilidade futura do Brasil Sorridente, acreditando que a centralidade da saúde bu- cal na agenda do Ministério da Saúde decor- re exclusivamente da coalização de um grupo político muito específico (e reduzido) no atual governo federal. Há observações ainda mais críticas, que identificam o “calcanhar de Aquiles”da PNSB no fato de que ela não ganhou capilaridade so- cial no âmbito dos estados e dos municípios e tampouco ganhou a mesma importância dada pelo governo federal; ou seja, não galvanizou a sociedade civil para que esta efetivamente lutasse para que saúde bucal fosse entendida como direito de cidadania e não ganhou os co- rações e as mentes dos profissionais de saúde bucal do país.117 Se há insulamento burocrático da PNSB em nível federal, isso resta ainda como tema con- troverso. Não obstante, já há uma longa tradi- ção em pesquisas nessa área, no sentido de entender por que os níveis regionais e locais dão respostas diversas às questões sociais. Já temos estudos importantes sobre políticas pú- blicas nacionais e sobre políticas locais, mas sabemos ainda muito pouco sobre questões cruciais na esfera estadual. Não sabemos ain- da, por exemplo, por que existem diferenças tão marcantes nas políticas formuladas e/ou implementadas pelos governos estaduais, o que configura um tema de pesquisa importante no Brasil, considerando que uma das marcas do federalismo brasileiro é a concentração de poder legislativo sobre políticas públicas na es- fera federal, inclusive em áreas consideradas de competência concorrente entre as esferas federal e estadual.107 Cordón118 enfatiza que qualquer proposta de intervenção em saúde deve observar, apre- ender a realidade em cada espaço social, para poder compreender o indivíduo, o cidadão e as redes sociais que se constroem, poden- do, dessa forma, definir as necessidades dos cidadãos, seus problemas e os processos co- letivos de transformação do modelo de vida em sociedade para conseguir a saúde bucal. O�financiamento�da�saúde�bucal�e�as� rubricas�de�incentivos Um aspecto que permite dimensionar o grau de prioridade atribuído por governantes a determinada política é expresso em seu nível de financiamento. O desenvolvimento da PNSB é condicionado, claramente, pelo seu financia- mento, e a literatura vem se dedicando a consi- derar o avanço recente dessa questão. Aparen- temente, o maior aporte de recursos financeiros voltado para a atenção à saúde bucal está em sintonia com as políticas adotadas pelo Minis- tério da Saúde (MS) na década de 1990: a reor- ganização da atenção básica por intermédio da ESF e a política de incentivos como forma de repasse de recursos federais, contudo, há risco de retrocesso quando se vincula o financiamen- to a uma política de incentivos voltada para a ESF.119 No discurso dos gestores, observa-se a dificuldade na realização completa do plano de gestão previsto, assim como a necessidade de compromisso por parte dos gestores em acom- panhar as etapas de todo processo de repasse financeiro e aplicação deste.120 Deve-se consi- derar, contudo, que, apesar dos índices infla- cionários estáveis do Brasil na última década, os valores repassados pelo nível federal, tanto para saúde em geral como para odontologia, tiveram um crescimento considerável no decor- rer dos últimos anos.121 �� Considerações�finais Objetivamente, um balanço crítico das re- alizações dos últimos anos da PNSB será ine- quivocamente positivo. Desde a Constituição Federal de 1988 e a criação do SUS, muitas mudanças ocorreram no campo das políticas públicas no Brasil. O número de municípios sem recursos de assistência odontológica diminuiu; consultórios, antes fixados em es- colas, foram realocados para a rede básica, propiciando maior integração das ações de saúde bucal aos demais programas; grupos populacionais excluídos do exercício dos seus Book_Moyses.indb 27 25/02/12 12:07 28 Goes & Moysés direitos mais elementares passaram a usufruir de programações específicas de acordo com o ciclo de vida, as características étnicas e o contexto social; e os recursos do Fundo Nacio- nal de Saúde começaram a financiar, regular- mente, programas de aplicação tópica de flúor e de escovação dental supervisionados em es- colas, inserção de ESB na ESF e CEOs, entre outras iniciativas.122 Porém, ainda é crucial propor o seguinte questionamento: qual a finalidade das políticas públicas em países como o Brasil? No debate internacional recente destaca-se o amplo obje- tivo de reduzir iniquidades no acesso e na uti- lização de serviços, bem como integrar ações intersetoriais públicas com um nível de quali- dade de respostas que impactem os principais indicadores de saúde bucal. Fatores de risco e de proteção incidem comprovadamente de modo desigual sobre as classes sociais, com efeitos deletérios ou salutares que atingem a população de modo heterogêneo e aumentam as iniquidades em saúde. Nesse sentido, é necessário avaliar as políticas de saúde não apenas pelo efeito glo- bal que exercem sobre a saúde coletiva, mas também pelo resultado de suas intervenções sobre o quadro preexistente de iniquidades.123 Essa política ainda está em fase de expansão, mas já há indicações favoráveis quanto a seu efeito de redução das iniquidades em saúde bucal refletidas nos principais indicadores epi- demiológicos.124 Assim, em sintonia com as políticas gerais de saúde, é preciso reconhecer que houve um adensamento setorial na PNSB, visando a dar direcionalidade às políticas. Além disso, sua maior capilaridade política e seu enraizamento no tecido social brasileiro poderão assegurar sua sustentabilidade e capacidade transforma- dora em décadas futuras para o bem da saúde bucal dos brasileiros. RefeRências 1. Cortes SV. Sociedade e políticas públicas. Sociologias. 2006;7(16):14-9. 2. Souza C. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias. 2006;8(16):20-45. 3. 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