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A LEGITIMIDADE DA DIFERENÇA PRÉ-BRASÍLIA A filiação corbusiana do jovem Niemeyer não é segredo, mas a originalidade de sua arquitetura foi prontamente reconhecida. Nas décadas balizadas pelo início do projeto do Ministério da Educação e pelo início do projeto dos palácios As críticas à arquitetura de Brasília, Oscar se consagra internacionalmente com uma obra que inclui moderna brasileira, feitas por ministério, Pavilhão Brasileiro da Feira de Nova York, Hotel de Ouro Preto, a arquitetos estrangeiros durante Pampulha, residências, escolas e clubes, prédios de escritórios e apartamentos no Rio, São Paulo e Minas, campus do ITA, a fábrica Duchen, hospital Sul- a década de 50, foram América, Ibirapuera, os estudos para a ONU e para Museu de Caracas. A obra amplamente divulgadas, em é formalmente exuberante e a exuberância se manifesta Oscar adota soluções diferentes para os mesmos elementos em diferentes particular as do Max-Bill, projetos. A coluna é cilíndrica e recoberta em granito no Ministério, cilíndrica e que mereceram enérgica metalizada no Cassino da Pampulha, cilíndrica e laqueada na casa da Gávea, em resposta de Lúcio Costa. aço e chapa curvada no Pavilhão, em concreto e de secção quadrada no Hotel de Ouro Preto, assume configuração em "V" nos Pavilhões do Ibirapuera. Propõe professor Carlos Eduardo Dias lajes de bordos no Pavilhão e na Pampulha, perfurações de lajes de Comas faz aqui um contorno livre no Ibirapuera, assimila quebra-sol a placas paralelas no Copan e detalbamento dessa resposta no no edifício de apartamentos Liberdade, inventa tipos diversos de quebra-sol. Usa teto-terraço no Ministério, telhas de barro em Ouro Preto, cascas parabólicas na que se refere ao individualismo Capela da Pampulha e deixa aflorar a estrutura porticada na cobertura da fábrica e ao barroquismo da Pampulha, Duchen. A paleta de revestimentos é extensa e em muitos momentos mais afim contrastando a obra do jovem com luxo de art déco italiano ou construção de Mies que ao purismo branco das villas de Le Corbusier (ITA/Diamantina). arquiteto com mesmo A exuberância transparece também na predileção pelo jogo de volumes entusiasmo classicizante da contrastados literal ou virtualmente. Mesmo quando a situação torna difícil evitar produção americana de Mies prisma puro, este se fragmenta conforme ângulo de vista, Hotel de Ouro Preto parece geodo cortado ao meio ou superposição de blocos van der Robe, também defasados. Marquise e campanário se destacam do corpo já dividido em nave, personagem-chave do período. altar e sacristia da pequena Capela de São Francisco. A predileção pela composição aditiva ajuda a exacerbar a tensão exterior entre ortogonalidade e AU55 Ago/Set 94 49Capela São Francisco Pampulha não-ortogonalidade, horizontalidade e verticalidade, como no insólito contraste entre fachadas de rua e de jardim no Pavi- lhão de Nova York ou entre os quatro prédios da Pampulha. Enseja desenvolvi- mento, ao ar livre, de elaboradas "promenades contrapondo frontalidade con- ceitual e penetração oblíqua. No Ministério, contraponto se estabelece via partido em "T", experienciado como um "H" erodido, graças às bandas plantadas paralelas ao corpo baixo, pórtico hipostilo vazado e a disposição lateral de portas de entrada; no Pavilhão, Hotel e Yacht Club, através de rampa curva ou paralela à fachada de acesso principal. Menos óbvia é a exteriorização em fachada do debate socrático entre suportes, vedações e lajes, que está implícito na "planta livre" enunciada por Corbusier no esquema Dom-ino de 1916. Nas décadas de 20 e 30, Corbusier havia convertido a expressão arquitetônica da estrutura independente em drama puro, Mies tinha explorado lirismo potencial de uma dialética que contrapunha suportes lineares e sistema de lajes planas geometricamente organizado a um sistema de vedações topologicamente dispostas. Entretanto, drama de um se encerrava quase sempre dentro dos limites do prisma puro; lirismo de outro se continha, geralmente, dentro dos muros de um pátio; em ambos os casos, a exceção das vedações se subordinando à regra da estrutura. Casa do Baile Pampulha Oscar extroverte debate. Não tem precedente a planta baixa do Pavilhão nova- iorquino, onde a exibição da profundidade total do pilotis se alterna com episódios em que as paredes ocultam colunas periféricas e episódios em que se dispõem atrás dessas colunas. No Hotel de Ouro Preto, colunatas de três pés- direitos de altura são parcialmente veladas ou ocultas por paredes que se aproximam e se afastam. No Banco Boavista, a parede do acesso principal dobra primeiro, configurando biombo sinusoidal entre as colunas externamente à vista e continua como pano reto que as oculta na fachada adjacente. Na casa do arquiteto, a laje amebóide parece flutuar sobre delgadas colunas, às vezes internas, às vezes externas, a uma envolvente curvilínea, como uma ampulheta. Em outra instância, mesmo debate se evidencia através das colunatas de ordem colossal nas fachadas do corpo baixo do Ministério, do Pavilhão, do Hotel de Ouro Preto e do Cassino do Pampulha. A configuração independente dos bordos de lajes paralelas, que a ordem implica, se reitera na loggia do Pavilhão, Clube Pampulha opondo expansividade curvilínea de laje de cobertura à retilineidade de laje de piso. Menos dramaticamente, painel cego sobre galeria na fachada principal do Cassino e pano de vidro de duplo pé-direito deixam claro que a laje intermediária se reduz a um mezanino. Em qualquer caso, Oscar radicaliza e confere à regra e à exceção igual valor, questionando por extensão a identificação de laje e malha de suportes com ortogonalidade, regularidade e Quer em termos de elementos de arquitetura, elementos de composição ou de partidos, Oscar se compraz na multiplicidade e diversidade, em flagrante oposição à arte do Mies, transplantado para Chicago nos anos 30. primeiro estudo de Mies para campus do IIT é de 39 ano da inauguração do Pavilhão Brasileiro na Feira Mundial de Nova York; último edifício no campus se conclui contemporaneamente ao Plano de Brasília, de Lúcio Costa. Entre uma data e outra, a influência de Mies atinge apogeu através de uma obra paradigmática que incluía tanto os edifícios do IIT como a casa de vidro Farnsworth, os apartamentos de Lake Shore Drive e a torre de escritórios Seagram. Projeto e fotos da casa e dos apartamentos foram expostos em 51, na Bienal de Arquitetura de São Paulo, junto com a casa de vidro do discípulo Philip Johnson. Menos é mais, dizia Mies: não faz sentido inventar toda semana uma arquitetura nova. A refinada e potente ortogonalidade de suas caixas se constrói com poucos elementos: esqueleto recheado por vidro ou tijolo no exterior, divisórias e núcleos AU55 Ago/Set 94de serviço, forros planos escondendo vigamento. A arte do Mies americano é arte de geometria, tipicidade, impessoalidade, medida, proporção e repetição rítmica. Axialidade e simetria organizam plantas, ainda que a estratificação de forros e pisos atenue as afirmações de centralidade. Diversamente do observado no Corbusier do concreto bruto pós-45, da "planta livre" sobra só vestígio num conjunto de obras que agora se comanda por um desejo de unidade platônica; as inflexões que as particularizam são escassas e sutis, quase indiferentes a programa e sítio. Corbusier continua operando com regra e exceção; para Mies de Chicago, a regra é soberana. "Arquitetura é construção", repete Mies, e a atitude tem conotações implica predominância absoluta de regularidade, de ortogonalidade e de desenvolvimento horizontal do espaço interno entre forro e piso. É mais do que provável que o exemplo de Mies seja a referência encoberta nas críticas à arquitetura moderna brasileira que começam a aparecer em meados da década de 50. Entre elas, causou celeuma no país a do suíço Max-Bill, que tachou a obra de Oscar de caprichosa, individualista e barroca, emblemática de uma atitude frívola e perdulária. Entretanto, a multiplicação e a diversidade exuberantes dessa obra não carecem de justificativa prática. A correspondência entre articulação volumétrica e divisão do programa funcional em setores internamente homogêneos tem inegáveis vantagens operacionais. prisma puro não é necessariamente a melhor solução para programas que não implicam a repetição de células funcionais idênticas e terrenos relativamente grandes. Mesmo na situação de prisma puro respondendo a condições de repetitividade de célula funcional, faz sentido distinguir entre planta baixa correlacionada com a excepcionalidade de acessos, Cassino Pampulha corpo vertical repetitivo e ático correlacionado com a singularidade de cobertura. Multiplicação e diversidade exuberantes se justificam alternativamente como respostas a um contexto urbanístico preciso. partido do Ministério reconhece a hierarquia diferenciada das ruas limítrofes e abre suas duas esplanadas em correspondência com a intensidade dos fluxos de veículos e pedestres no entorno. Segundo Lúcio Costa, partido do Pavilhão de Nova York foi sugerido pela curvatura de um dos bordos do terreno e pela massa do Pavilhão Francês vizinho. No Copan ou no edifício de apartamentos Liberdade, as planimetrias serpenteantes tratam de maximizar aproveitamento de terrenos irregulares. Independentemente de justificativa "prática", multiplicação e diversidade têm defesa teórica em um plano comunicacional. Multiplicidade e diversidade têm função de explicitação visível da fisiologia do edifício, de representação de programa e/ou situação. A educação de Lúcio e Oscar foi acadêmica e, em termos acadêmicos, a questão da boa arquitetura envolve tanto uma composição correta que satisfaça os requisitos vitruvianos de firmeza, utilidade e beleza quanto uma caracterização simbólica apropriada. Estrategicamente, caracterizar implica ma- nipulação de plantas, elevações, ornamento, materiais e técnicas construtivas para vincular obra nova a precedentes formais culturalmente significativos e/ou manipulação visando estabelecer correspondência entre atributos ou fisionomia expressiva dos ambientes projetados e expectativas culturais correlatas. Julien Guadet escrevera em 1905 que programa é a fonte legítima de diversidade em arquitetura e Oscar ecoa catedrático da Beaux-Arts quando condena a repetição que faz com que "os edifícios percam o caráter indispensável que suas finalidades e suas conveniências programáticas deviam exigir. E assim, edifícios públicos, escolas, teatros, museus, casas etc. passam a apresentar aspectos idênticos, a despeito de seus programas". Lúcio Costa defende emprego do brise-soleil no Ministério porque outros tipos de proteção solar lhe dariam feição de edifício banal de apartamentos e aponta contraste significativo entre a "severidade dórica do Ministério e a elegância jônica do Pavilhão de Nova York" deixando implícito que uma convinha a um prédio público que deveria ser representação permanente da nação e a outra convinha a uma representação efêmera e teatral de um ambiente de feira. É essa lógica do decoro que preside a diversificação formal dos edifícios da AU55 Ago/Set 94Pampulha, "cada qual traduzido com seu caráter próprio apontou Lúcio Costa em sua resposta a Max-Bill. Yacht Club é casa-barco atirando-se à água, a Casa de Baile, uma cabana primitiva que aparece rotundamente feminina vista contra garbo aquadradado e anguloso da sede esportiva. O Cassino acomoda rituais mundanos, em palacete que lembra a Villa Savoye e se reveste dentro em metal, cetim e espelho; a Capela se apóia em arco parabólico, conjugando evocação goticizante e reminiscência dos hangares de aviões que Freyssinet projetara para Orly. A mesma lógica preside o uso do azulejo em série nos edifícios profanos da Pampulha e do painel de azulejos pintados na Capela, praxe de muito convento colonial. A elevação dos painéis parece ideograma da parede de morros circundantes; a marquise da Casa do Baile sugere estilização da sombra proporcionada por bosque ou nuvem; a casa do arquiteto parafraseia as casas de vidro de Mies e Philip Johnson, reinterpretando como elas tema da cabana original. A alusão a precedentes vernaculares, eruditos, mecânicos ou naturais é às vezes surpreendente, mas sempre plausível em termos de programa e situação. O aspecto naval da superestrutura do Ministério enfatiza a proximidade da baía de Guanabara; as telhas de barro do Hotel de Ouro Preto se harmonizam com os telhados do entorno. Concreto e granito nas colunas redondas do Ministério sugerem solidez essencial e duradoura; aço e chapa ondulada nas colunas do Pavilhão conotam possibilidade de desmonte; os pilares quadrados do Hotel de Ouro Preto remetem ao esqueleto de madeira que sustenta as construções vizinhas. interesse acadêmico pela caracterização de programa e situação coexistia do Brasil em Nova York com O interesse pela caracterização temporal e geográfica de civilização e cultura. A preocupação de Corbusier e Mies com a expressão do "zeitgeist" é conhecida e bem se poderia dizer que foi a preocupação com a caracterização do "espírito da época" que impulsionou suas buscas compositivas. A preocupação de Niemeyer com a caracterização do "espírito do lugar" é fartamente documentada. Exuberância, multiplicidade e diversidade se podem ler também como atributos de uma paisagem, clima, temperamento e como tal se interpretaram em seu tempo. O Mies americano despreza caráter programático em prol de uma caracteri- zação genérica: "Eu me oponho à idéia de que um edifício específico deva ter um caráter individual. Creio que deve expressar um caráter universal, determinado pelo problema total que a arquitetura deve lutar para resolver". Para Mies americano, a ordem é tudo, a circunstância, nada. Oscar confere a ambas importância idêntica e isso não impede de abordar também problema total que a arquitetura deve resolver" e equacioná-lo em termos de afirmação da continuidade evolucionária de uma cultura arquitetônica. Reitera em sua obra a primazia da contribuição de Corbusier, mas é possível que os arranha-céus desenhados pelo Mies alemão tenham deixado nele marca tão funda quanto esquema Elogiar ou defender jovem Niemeyer como irracional ou anti-racional só faz sentido se pressupusesse uma identificação questionável de racionalidade como ortogonalidade e regularidade, ambas associadas a uma certa idéia de industria- lização massificante. Fundadamente céticos quanto à sua fetichização, os anos 90 estão maduros para redescobrir a poesia epicurista do arquiteto brasileiro e desfrutá-la sem deixar de apreciar a excelência do Mies americano. Ironicamente, parte da debilidade do Niemeyer de Brasília se pode creditar à adoção, como partido típico, de caixas de vidro veladas por peristilos exóticos. Oscar não se despreocupa com a caracterização de programa, mas só reconhece situação enquanto espaço abstrato. Talvez por isso sua obra se introverta, insinuando a impossibilidade da humanização arquitetônica do espaço aberto; cai na armadilha megalômana da cidade ideal da arquitetura moderna. Contudo, já havia demonstrado que a arquitetura moderna nada devia à sua aberrante cidade ideal, que podia existir múltipla e legitimamente diferente. Porque assim foi, nos edificou e, tontos seríamos se não Ministério da Educação e Saúde CARLOS EDUARDO DIAS COMAS 52 AU55 Ago/Set 94BRASÍLIA A DA CRÍTICA Não é gratuita esta edição da AU sobre Niemeyer. Tantas são as publicações A partir de uma reflexão sobre sua obra que AU estaria "chovendo no molhado" não fossem duas aprofundada sobre a obra de circunstâncias. A primeira refere-se à fertilidade do arquiteto, posta em evidência Oscar Niemeyer, o professor pela com que fecunda sua prancheta com novas idéias, novos projetos. A segunda deve-se à constante renovação dos modos de descrever e Benamy Turkienicz questiona analisar a obra de Niemeyer. aqueles que identificam em seu Não resta a menor dúvida de que a primeira circunstância exige da revista uma cobertura atualizada da produção contemporânea da arquitetura brasileira, logo, trabalho apenas um possível de Niemeyer. A segunda não é assim tão se tantos já descreveram caráter formalista ou a e analisaram seu trabalho, toda argumentação para ser nova implica natural ausência de referências claras à dificuldade. Quando me convidaram para escrever a respeito da obra de Niemeyer em tradição local. E conclui que a Brasília, confesso que, junto com a satisfação de poder retornar, "embarcado na arquitetura de Niemeyer evoluiu teoria", à cidade onde convivi por quase cinco anos com a Catedral, com o muito nos últimos 30 anos, com os edifícios da Esplanda dos Ministérios e com tantos outros prédios e espaços significativos da capital federal, fui assaltado pela iminente certamente bem mais que as dificuldade em discutir a obra de Niemeyer a partir de ponto de vista diferente críticas que procuram dos precedentes. descrevê-las. A real condição de Brasília como local do mais completo "laboratório" de Niemeyer trouxe a convicção de que valeria a pena a tentativa de analisar sua obra sob dois enfoques não muito explorados. Verificar e caracterizar a eventual existência de uma no tempo, da arquitetura do grande mestre, que pudesse ser visualizada, por contraste, no mesmo espaço. Afinal, se tantos anos se passaram desde a construção do Catetinho e da Catedral, até que ponto os projetos mais recentes refletem mudanças de atitude do arquiteto. Niemeyer descreve sempre com muita autonomia tudo que fez. Quem já assistiu a suas palestras dificilmente captou qualquer crítica retrospectiva sobre projeto feito ou menção mais séria a análises de sua A descoberta de uma eventual evolução poderia lançar luz a respeito do que é raramente explicitado pelo autor das O segundo enfoque deveria invadir a classificação organizada pelos seus críticos e verificar até que ponto explicam ou deixam transparecer as raízes dos princípios de projetação de Niemeyer, ajudando a esclarecer um possível sentido de evolução. Afinal, projetando em Brasília por tantos anos, devemos comparar as obras a partir de algum critério ou parâmetro. Por isso, começaremos pelo segundo enfoque, invadindo terreno dos críticos das obras de Niemeyer. Analisando os Desde a obra de ON tem passado por avaliações que enfatizam, na AU55 Ago/Set 94 53década de 50, caráter "romântico" e excessivamente "formalista" da sua arquitetura, totalmente desvinculado de raízes históricas, até por avaliações mais contemporâ- neas que propõem a vinculação da obra de Niemeyer às mais profundas raízes da arquitetura clássica, ressalvadas algumas particularidades de As duas análises da arquitetura, aparentemente antitéticas, trabalham com dois objetos diferentes. Enquanto uma critica relativo descompromisso de ON com programas e formas arquitetônicas precedentes, a outra busca na obra mais "comportada" de Niemeyer a sustentação para a idéia de que sua fase mais consistente e autenticamente "brasileira" foi aquela em que se ateve às regras da "boa arquitetura e composição A crítica quanto ao descompromisso da forma acontece em dois momentos: surge numa época em que racionalismo alcançava seu maior grau de correspondência entre ideologia da produção e a arquitetura. Justamente em um período em que Ocidente procurava reerguer-se dos escombros da II Guerra, Niemeyer propõe uma racionalidade não visível: utilizando princípios modernos do cálculo estrutural, chega a formas surpreendentes, comumente consideradas como gratuitas, injustificadamente onerosas. Preceito do racionalismo ortodoxo, a forma deveria ter sua justificativa na função. A forma de seus edifícios definitivamente não ajudava a estabelecer um nexo visível com as funções... Num segundo momento, no auge do pós-modernismo culturalista, Niemeyer e outros modernistas são "crucificados" pela crítica européia e por seguidores tupiniquins por não tornarem visível em seus projetos a ponte cultural que uniria esses mesmos projetos ao acervo arquitetônico do Ocidente em geral e de seus países em Curiosamente, essa fase coincide com vários projetos de Niemeyer na Europa e na África, e praticamente nenhum no Brasil. A análise mais contemporânea da obra de ON procura estabelecer uma trégua em relação à crítica feroz dos pós-modernos culturalistas. A trégua faz com que seja concedido a Niemeyer um momento de lucidez arquitetônica, que coincide com início de sua carreira. Para ilustrar esse momento estão, entre outros, Ministério da Educação e Pavilhão da Feira Mundial de Nova York, Clube, a Casa do Baile e a residência de Santa Bárbara, na Califórnia. Fica evidente nesta abordagem a procura, por seus autores, dos elementos que poderiam conduzir a uma explicação para bom resultado da arquitetura de ON. Tais elementos são encontrados na reutilização ("subversões tipológicas") de recursos espaciais característicos da arquitetura clássica e do barroco, agora em prédios com princípios arquitetônicos diferentes. Descobre-se que peristilos e que antes conviviam com uma arquitetura de planta paralisada, passam agora a conviver com corte paralisado e a planta livre, característicos da parte do movimento moderno liderado por Le Corbusier. A ênfase no percurso como forma de criar alternâncias visuais e evitar a frontalidade é ressaltada nas primeiras obras de Niemeyer. A facilidade e a com que esses elementos ordenadores puderam ser lidos na primeira fase de Niemeyer estimularam uma descrição da arquitetura voltada para os efeitos de uma ordem constituída por ícones Se a crítica funcionalista exigia que a forma fosse explicada pela função, a nova abordagem dos modernos culturalistas torna exponencial essa ordem como emblema visível da De certa maneira, as visões racionalista, pós-moderna e moderna culturalista convergem para mesmo ponto. Criam todas uma ligação cultural fora da arquitetura para explicar a linguagem da arquitetura. No primeiro caso, argumento é sustentado pela cultura da razão; no segundo, pela cultura da história e, no terceiro, pela cultura da cultura. 54 AU55 Ago/Set 94Talvez as limitações auto-impostas pelos modernos culturalistas que vêem na obra de Niemeyer em Brasília um sentido involutivo em relação às suas primeiras obras e a falta de uma fundamentação teórica mais consistente tenham restringido a crítica da obra de Niemeyer mais recente, incluindo aí Brasília. O artigo de Edson na edição comemorativa dos 50 anos de profissão de ON constitui tentativa séria de sistematizar as diferentes obras de Niemeyer a partir dos seus elementos estruturais relevantes (estratégias compositivas). Conclui que Niemeyer trabalha com um "repertório fechado", constituído por um número de elementos/partes barra horizontal, torre, prédio-viga, edifício circular de baixa altura, marquise orgânica, plataforma, "cascas" de forma livre e "calotas". Esse número de elementos, considerado limitado por Mahfuz, con- tribuiria para restringir número de estratégias compositivas utilizadas por Niemeyer. Por sua vez, a restrição do número de estratégias compositivas imporia à obra de Niemeyer certa condição de A estruturação proposta por Mahfuz não tem correspondência no tempo. Isto é, ao trabalhar com número restrito de elementos, a obra de Niemeyer estaria irremediavelmente condenada ao comum déjà vu dos conhecedores de todas as suas possibilidades arquitetônicas. Isso vale dizer que Brasília já não reservaria espaço para grandes surpresas em relação à obra de Niemeyer. Há muito mais tempo do que a concepção de seus últimos projetos recentemente lá construídos, entre eles mais significativo, Panteão da Pátria. Algumas evidências nos induzem a estimar que Mahfuz não esteja totalmente correto na sua apreciação. Além disso, tais evidências sinalizam para um caminho novo de compreensão da arquitetura de Niemeyer. É que veremos a seguir. Aleatoriedade, criatividade e invenção Martine de sugere que, durante as últimas décadas, teorias descritivas tendo base comum em paradigmas lingüísticos fundamentaram-se na idéia de que a essência do conhecimento reside profundamente entranhada na cultura (ou mesmo no cérebro). Postulam essas teorias que é por meio de um processo de tentativa e erro que os descobrimentos ou invenções poderiam se seguir um ao outro, a partir da identificação de um princípio ou estrutura geracional. Isso criou a codificação do que constituiria a essência do comporta- mento criativo: isto é "explorar" e "consentir", tendo por base essa estrutura geracional subjacente. A partir desse ponto de vista, toda significância do indivíduo no que se refere a assuntos ligados à criatividade passa a ser facilmente ignorada ou, talvez, mal explicada. Para De Maeseneer, a realidade funciona de maneira bem mais complexa do que essas teorias nos fazem acreditar. Seu trabalho indica que as principais idéias que inspiraram nosso patrimônio arquitetônico de tipos, estilos e movimentos são identificáveis não a partir de pressupostos culturais mas, ao contrário, num punhado de excepcionais arqui- tetos que chegariam a "fazer milagres" (palavras de Le Corbusier), ou mais, para se contraporem às tendências estabelecidas que governaram suas épocas. Fundamentada nos estudos de Ilya Prigogine e Isabelle sobre teorias da evolução, De Maeseneer examina a complexa relação entre individual e coletivo e sugere que a performance criativa envolve a competição e não a adaptação entre os dois comportamentos. De Maeseneer propõe uma teoria do conhecimento "sintética" (ilustrada por um estudo de caso, a capela Ronchamp), cuja tendência principal é a de sugerir que cada todo concebido e não somente transcende as suas partes constituintes, mas também não é logicamente derivável de princípios preestabelecidos. Suas conclusões Ago/Set 94 55Notas: contrastam com as teorias descritivas tradicionais que, devido à sua principal 1. "Nunca me interessei pela crítica, não por acre- fixação na lógica do descobrimento da recombinação de coisas, condenam-se a ditar no conceito de Bernard Shaw, "quem sabe faz, si próprias a trabalharem com caminhos estabilizadores de padronização, quem não sabe ensina". Sentia-me feliz, isto sim, como o poeta Fernando Pessoa: "Não leio livros de tendendo à conservação do existente como forma de torná-lo comunicável para literatura. Nada mais tenho a aprender". Realmente, a sociedade. Dentro dessa perspectiva, afirma ela, toda a afinidade com a genuína depois de tantos anos de trabalho, bastava-me a criatividade se perde. De fato, conclui, a criatividade é baseada não somente num própria experiência." Niemeyer sobre a crítica de sua arquitetura em Brasília Forma da Arquite- melhor entendimento do que já existe, mas na suspensão momentânea do que tura". Avenir Editora, Rio de Janeiro, 1978. é "conhecido" e das "linguagens" em que é conhecido. 2. Niemeyer divide sua obra em Brasília em duas Essas idéias parecem esclarecer que número de elementos conhecidos não partes: antes e depois do exílio induzido pelo regime militar. "(...) Se Pampulha foi a contestação é fator restritivo à originalidade. A criatividade concentra-se precisamente na ao funcionalismo ortodoxo, meu trabalho em Brasília capacidade de desenhar novos objetos utilizando elementos pertencentes a foi a defesa da liberdade plástica, da forma livre e outros objetos. É isso que faz Picasso em sua conhecida "Cabeça de Touro", criativa, da leveza e da invenção arquitetônica." No exterior, admite, seu pensamento evoluiu. "(...) quando associa imagens conhecidas como volante e selim de bicicleta para criar Uma nova fase se abria para minha arquitetura (...) a figura de um animal. A nova conjugação cria uma terceira imagem, esta, sim, Agora, caminharei de braços dados com a técnica, verdadeiramente nova e genial. A obra de Niemeyer está repleta dessas surpresas. criando vãos enormes e surpreendentes balanços. Não pretenderei tanto exibir minha arquitetura Daí sua genialidade. quanto o progresso da engenharia do meu país." "Balanço Confidencial". Texto escrito para mostra da própria obra, Turim-Bolonha, outubro de 1987. Uma nova complexidade 3. Stamo Papadaki, "The Work of Oscar Niemeyer", Reinhold Publishing Corporation, NY, 1950. Após sair de Brasília para trabalhar no exterior, Niemeyer utiliza um acervo semân- 4. "No final dos anos 50, Oscar começa a abandonar planaridade e brise-soleil nos palácios envidraçados tico não experimentado na capital federal. Esse acervo, enriquecido pelas possibi- de Brasília, começa a se firmar uma "escola paulista", lidades tecnológicas que lhe foram oferecidas, tornou possível uma série de com- "miesianismo" americano ganha terreno." Co- binações cada vez mais difíceis de ser desmontadas em partes decodificáveis que mas, "Arquitetura moderna, estilo Corbu, Pavilhão brasileiro", in AU/26, out/nov 89, esclarecessem uma origem arquitetônica no tempo. Essa falta de referência explícita 5. "De acordo com a minha forma de ver, pelo fez com que a rationale seus projetos se perdesse, para os modernos culturalistas. menos, há de lamentar, igualmente, que Niemeyer A mesma coisa aconteceu com Le Corbusier. Os modernos culturalistas jamais tenha atingido tal frescor e exuberância novamente." K. Frampton, "Homenagem a descrevem suas obras até Ronchamp. Ronchamp não é explicada porque exige Niemeyer", in AU/15, dez/jan 88, pág. 59. decodificação para além dos elementos arquitetônicos conhecidos, para além dos 6. Como fizeram Rossi, Stirling (metamorfoseado limites da percepção visual. O estudo de De Maeseneer mostra em detalhe que pela relação com Krier) e tantos outros, buscando encontrar "genius loci", ou espírito do lugar. as proporções matematicamente determinadas de Ronchamp constituem ordem 7. Comas descrevendo edifício do Ministério impermeável aos sentidos. Essa ordem, que não se resgata facilmente ao olhar do da Educação dá exemplo: "(...) a importância volume, do espaço, do corte ou da planta, requer um instrumental descritivo mais desse conjunto de alusões e subversões tipológicas pode licitamente considerar-se crucial, porque é complexo que correlacione esses elementos analógicos, certamente baseado em em seu conteúdo metafórico complexo que em modelos não tão analógicos quanto abstratos. última instância repousa a expressividade simbóli- ca do ministério enquanto monumento, que se Pela riqueza de paradoxos, Panteão da Pátria exige uma descrição à altura de pode ler representação do mundo na perspectiva sua complexidade. Construído em terreno até então "sagrado", Panteão faz de uma civilização determinada, representação da reviver argumentos anteriores que reivindicavam sua intocabilidade, Lúcio Costa instituição que abriga". 8. Que é para ser lida, supostamente, por iniciados. incluído. Sem entrar no mérito se positivo ou negativo resultado plástico da 9. "O Clássico, Poético e o Erótico", AU/15, dez/ interposição não resta dúvida que O Panteão acaba destruindo a tensão entre jan 88, págs. 60-68. os edifícios que estruturavam a Praça (Planalto, Congresso e Supremo Tribunal). 10. Um complicador para a utilização da classifica- ção proposta por Mahfuz é a justaposição, na Nessa ruptura, Niemeyer destrói mais do que a imagem à qual estavam habituados mesma categoria, de um elemento estrutural os cidadãos brasilienses. Ao agregar um edifício com mais força plástica do que prédio-viga com outros de natureza geométrica, Planalto e Supremo, Niemeyer contesta a idéia de que Brasília é intocável. como barra horizontal ou edifício circular de baixa altura. Um prédio-viga também pode ser uma barra Muito embora privilégio de transformar seja uma concessão que dificilmente horizontal e Niemeyer já projetou inúmeros prédios alcançaria outro arquiteto a não ser ele, Niemeyer não joga fora a oportunidade cilíndricos altos, talvez classificados por Mahfuz na categoria de torres. A grande dificuldade imposta de plantar no território, simbolicamente mais carregado de significado político do por esse tipo de taxonomia é poder reconhecer Brasil, uma obra que mostra com força indubitável sua capacidade de renovação afinidades para além da classificação fenotípica. ou evolução. O Panteão contrasta com todos os outros edifícios até então Aliás, esse era o grande desafio da Ciência quando Gregor Mendel e Charles Darwin expuseram suas projetados por ele em Brasília. Os mais importantes da primeira fase adotavam teorias sobre seleção natural e descrição de caracteres a idéia da estrutura como elemento arquitetônico preponderante, conferindo-lhes hereditários. Infelizmente, o conhecimento arquite- leveza e um rendilhado jogo de luz e sombra. O Panteão consegue materializar tônico parece não ter superado suficientemente a organização proposta por Durand, parente, como um paradoxo: a construção completamente exposta à luz, que parece paradigma científico, da organização da natureza flutuar no apesar da marcação bem visível do encontro do edifício com solo. proposta por Jean Baptiste de Lamarck. Nenhuma obra arquitetônica até hoje conseguiu esse efeito. 11. Se as considerações de Mahfuz se sustentam, então, a partir de quantos outros elementos a obra Não deixa de ser significativo que Niemeyer tenha desejado fazer esse "gol de de qualquer arquiteto seria imprevisível? placa" justamente entre os dois dos principais emblemas de sua arquitetura 12. "Thought Built Architecture an argument for Supremo e Planalto -, retirando deles a importância conferida pelo vazio da Ronchamp's Le Corbusier and the creative process in general". Martine De Maeseneer, MSc. Thesis Praça. Entre outras conjecturas, parece insofismável que deixou gravado em (não publicada). Barlett School of Architecture, concreto e aço a certeza de que sua arquitetura evoluiu muito nos últimos 30 anos. UCL, 1987. 13. "Order out of Chaos Man's new dialogue with E, para mim, a convicção de que seus projetos continuam mais modernos do que nature". Fontana Paperbacks, 1985. a crítica que procura descrevê-los. 14. Ao contrário do Memorial JK. BENAMY TURKIENICZ 56 AU55 Ago/Set 94