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Antropologia e Sociologia Jurídica Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Américo Soares da Silva Revisão Textual: Prof.ª Esp. Kelciane da Rocha Campos Sociologia como Ciência Sociologia como Ciência • Aprofundar a reflexão em torno da sociedade moderna com base em categorias sociológicas. OBJETIVO DE APRENDIZADO • A Busca pelos Fatos; • Por uma Sociologia Compreensiva; • Mudanças e Controles Sociais. UNIDADE Sociologia como Ciência A Busca pelos Fatos A legitimação da Sociologia como uma ciência social passou por várias etapas en- quanto ganhava uma identidade própria, distinta da Filosofia e da Política. Entre essas etapas está o seu reconhecimento acadêmico enquanto área de pesquisa autônoma. Essa também foi a contribuição de Émile Durkheim (1858-1917) para a Sociolo- gia. Foi graças aos esforços do então jovem Durkheim na Universidade de Bordeaux que em 1887 foi criada – até aquele momento inédita no ensino superior francês – uma cátedra exclusiva para a sociologia. Para Reale & Antiseri (1991), a sociologia que se delineava no século XIX, ainda era um saber “sistemático”, ainda carregado dos anseios e aspirações de autores mais filosóficos. Com Émile Durkheim, a sociologia “sistemática” entra em crise. Na opi- nião de Durkheim, a sociologia não é e não deve ser uma filosofia da história, que pretenda descobrir as leis gerais que giram a marcha do “pro- gresso” de toda a humanidade. Ela também não é e não deve ser metafí- sica, que se julgue em condições de determinar a natureza da sociedade. E a sociologia não é nem psicologia nem filosofia. [...] Para Durkheim, a sociologia é uma ciência: ciência autônoma e diferente das outras ciências. (REALE & ANTISERI, 1991, p. 394) Figura 1 – Émile Durkheim Fonte: Wikimedia Commons Na visão durkheimiana, o que construiria uma identidade própria para a sociologia como uma ciência seria a sua metodologia; assim sendo, em 1895, publica “As regras do método sociológico”, nesta obra Durkheim procura demarcar o que vem a ser o objeto de estudo da sociologia, enquanto ciência social, a saber, o fato social: 8 9 É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações indi- viduais. (DURKHEIM, 2007, p. 13) A partir dessa definição, Durkheim estabelece as características distintivas do conceito de fato social. Analisando-as mais de perto, temos: • Coercitividade: essa condição traz consigo uma existência ou acontecimento que se impõe ao indivíduo. A pessoa sofre “pressão” da sociedade para agir ou não agir de determinada maneira, situações sociais que se caracterizam como socialmente fatuais devem carregar consigo essa exigência social em relação ao indivíduo; • Generalidade: se estamos falando de uma condição social, então trata-se de algo diferente de condições ou formas de comportamento individuais. Dada a diversidade de interesses pessoais, um comportamento ou uma situação para ser copiada, colocada em prática por um grande contingente de indivíduos, so- mente é possível se houver algum tipo de coercitividade, pois é essa “pressão” que tende a tornar certo tipo de comportamento mais homogêneo dentro da sociedade, e não uma coincidência momentânea de ações individuais; como essas últimas podem ou não acontecer, haveria uma “fraca” exigência quanto àquela situação ou comportamento. Uma forma de explicar melhor essa ca- racterística é usar por analogia a distinção de Montesquieu entre costumes e hábitos. Os costumes têm uma dose de coercitividade, ao “exigir” das pessoas este ou aquele comportamento. Enquanto hábitos tendem a ser individuais, a pessoa pode ou não repetir uma rotina que está acostumada, e como essa não é uma rotina imposta ou cobrada socialmente, quando a rotina não se repetir, nada acontece. Por exemplo, ingerir suco de laranja no café da manhã; embora haja um número grande de pessoas que assumiram esse hábito, o mesmo não seria geral o suficiente – e nem teria a coercitividade necessária – para ser con- siderado um fato social no sentido de Durkheim; • Exterioridade: pelo fato social, até aqui, ser algo que se impõe à coletividade, não se colocam em pauta os desejos individuais, mesmo porque, se assim o fosse, significaria que a “pressão” da coletividade sobre o indivíduo seria muito branda. Neste caso, o conceito perderia a sua efetividade e então seria um estu- do dos hábitos individuais, o que aproximaria a análise do campo da psicologia. Mas, não é nessa direção que segue o pensamento durkheimiano. O sociólogo francês quer compreender os fenômenos sociais (comportamento coletivo) que se impõem ao indivíduo, portanto eles devem ter grande alcance (afetar a so- ciedade como um todo ou grande parte da mesma), o que tende a ser possível se há um componente de coerção. Mas se estamos falando de uma coerção da coletividade sobre o conjunto dos indivíduos, então estamos tratando de algo que vem de fora das pessoas, que não depende de seus hábitos, ou seja, algo que se constitui no ambiente social muito antes desta ou daquela pessoa em par- ticular ter nascido. Quando essa mesma pessoa se integra ao todo social, aquele 9 UNIDADE Sociologia como Ciência padrão de comportamento, aquele costume, regra de convívio social, já estava estabelecido, já era difundido e imposto aos membros da comunidade. Tudo isso sem que aquele recém-integrado à sociedade tivesse dado qualquer contribuição para este ou aquele fato social; O uso do dinheiro na forma de papel moeda é um excelente exemplo de fato so- cial. É um fenômeno que tem a generalidade (universalidade) necessária. A maioria das moedas nacionais é utilizada nos meios de troca de todo um país, e não apenas nessa ou naquela cidade. Possui alta coercitividade, pois como moeda corrente de um país impõe que praticamente todas as transações comerciais e o recolhimento de tributos deverão ser efetuados com ela, salvo raras exceções. Por fim, a população em geral, quando se integra à sociedade, não participou diretamente das discussões se deveria ou não utilizar o papel-moeda ou outros mecanismos de troca. Figura 2 Fonte: Getty Images Um cuidado ao se utilizar esse conceito de Durkheim é o de não confundir grupo social, que é um conjunto grande de indivíduos que se relacionam entre si, com a to- talidade da sociedade. Embora não haja um número mágico de quantas pessoas um fenômeno social deve afetar para ser considerado fato social, basta compreendermos que quanto mais amplo e mais extenso for esse efeito na sociedade, mais nítida fica a nossa percepção da sua generalidade, como no caso do uso do dinheiro, do paga- mento de impostos, ou mesmo das leis presentes na Constituição Federal. Quanto mais local é o fenômeno, e quanto menor é o grupo de pessoas afetadas, essa nitidez vai se perdendo ao ponto de se confundir hábitos de um determinado grupo com fato social. Certamente, o hábito dos moradores de um determinado condomínio se reunirem para jogar futebol aos domingos é exatamente isso, um hábito daquele grupo, e não um fato extensivo a toda uma sociedade. Uns dos aspectos interessantes acerca do fato social é que o conceito permite absorver a mudança social – um pouco como a condição dinâmica da sociedade pensada por Comte –, afinal, se olharmos em retrospectiva, muitos aspectos da sociedade que outrora 10 11 teriam apresentado as características de fato social (generalidade, coercitividade e exterioridade), como sociedades que organizavam a sua produção pelo trabalho escravo, hoje não existem mais. Dois anos antes deste trabalho acerca do conceito de fato social e das regras do método sociológico, o sociólogo francês também publicou o livro chamado “Da di- visão do trabalho social” (1893), essa obra é muito importante para entendermos a concepção durkheimiana de sociedade.Para começar, Durkheim se inspira em uma lógica muito próxima à das funciona- lidades de um organismo para descrever a articulação da sociedade. Para Durkheim, o que permite a existência da sociedade, que se mantém atuando de forma coletiva, apesar de cada indivíduo ter seus próprios interesses e seus próprios anseios, são as relações de solidariedade. Destacamos aqui que o uso da palavra “solidariedade” difere um pouco da associação mais imediata do senso comum atual, no qual soli- dariedade está ligada a apoio, empatia, caridade, algo como fraternidade. Embora o uso corriqueiro do termo não esteja errado, esse não é o sentido conceitual da sociologia de Durkheim! Ele pensa solidariedade muito mais no sentido de víncu- los de interdependência. Ou seja, as instituições, os grupos sociais diversos dentro da sociedade, se articulam a partir de funções específicas que se complementam mutuamente. Dessa forma, tal como órgãos de um organismo maior, cada parte é importante para o funcionamento e bem-estar do todo. Daí o cuidado de não con- fundir o termo “solidariedade” em Durkheim com o gesto de caridade. O conceito do sociólogo é muito mais amplo e permite inclusive a exploração da análise de dife- rentes formas de sociedade, utilizando a perspectiva da intensidade e a forma como os vínculos se estabelecem em seu interior. Nesse ensejo, Durkheim distinguiu dois tipos de solidariedade: solidariedade me- cânica e solidariedade orgânica, para fazer alusão a sociedades de tipo mecânico e sociedades de tipo orgânico. Aqui mais uma dica para evitar confusão. Em nossa experiência, percebermos que alguns jovens leitores ao se depararem pela primeira vez com essas categorias tendem a associar “mecânico” à tecnologia e, portanto, a imaginar uma “sociedade mecânica” como “mais tecnológica” e portanto “mais complexa”, sendo que para o sociólogo francês acontece justamente o contrário... Partindo da abordagem de Durkheim, uma sociedade que ele define como me- cânica ou por semelhança implica uma sociedade cujos membros compartilham percepções em comum em relação a valores e ao mundo. Durkheim chamou isso de consciência coletiva: O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida pró- pria; podemos chamá-lo de consciência coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato um órgão único; ela é, por definição, difusa em toda a extensão da sociedade, mas tem, ainda assim, características espe- cíficas que fazem dela uma realidade distinta. (DURKHEIM, 1999, p. 50) 11 UNIDADE Sociologia como Ciência Essa condição dá à sociedade mecânica uma tendência à homogeneização dos seus membros – nunca é demais lembrarmos que tendência é algo com muita chance de acontecer, mas não é uma regra absoluta. Neste contexto, não são incomuns os vínculos por relações sociais primárias, laços de proximidade, noção de pertenci- mento, compartilhamento de crença e de valores. Isso acarreta que em sociedades mecânicas a distribuição ou divisão do trabalho pode seguir práticas que se conso- lidaram como tradição. O trabalho tende a ser, por exemplo, mais inspirado numa divisão por gênero do que por iniciativas individuais. Mesmo que não estivéssemos pensando em uma sociedade tribal, as funções distribuídas em pequenas comuni- dades tendem a separar o “trabalho masculino” do “trabalho feminino”. Códigos morais ligados à honra também costumam estar presentes, o que significa que há forte presença de acordos verbais, pois a honra já faz o papel que em outras socie- dades é desempenhado pelos registros burocráticos, uma forma de herança de uma tradição mais baseada na oralidade do que na escrita, daí a ideia e a importância da manutenção ou do cumprimento de uma promessa. Essa descrição pode abranger sociedades tribais, assim como serve para as comunidades de menor extensão que ainda hoje apresentam várias dessas características. Figura 3 – Cidade pequena (Brasil) Fonte: Getty Images Em contrapartida, sociedades alicerçadas de forma orgânica apresentam um pre- domínio das relações secundárias, dos vínculos formais, da impessoalidade. Embora haja valores minimamente compartilhados, a força que a consciência coletiva tem numa sociedade mecânica (de menor extensão) é muito maior. Enquanto em uma sociedade orgânica, de extensão muito maior, essa força é reduzida. Na sociedade mecânica, a coletividade tem muita mais força em relação àquilo que é individual; numa sociedade orgânica, o individual ganha muito mais espaço. Isso está entrelaça- do com a própria divisão do trabalho. Bem diverso é o caso da solidariedade produzida pela divisão do trabalho. Enquanto a precedente [sociedade mecânica] implica que os indivíduos se assemelham, esta [sociedade orgânica] supõe que eles diferem uns dos outros. A primeira só é possível na medida em que a personalidade 12 13 individual é absorvida na personalidade coletiva; a segunda só é possí- vel se cada um tiver uma esfera de ação própria, por conseguinte, uma personalidade. [...] De fato, de um lado, cada um depende tanto mais estreitamente da sociedade quanto mais dividido for o trabalho nela e, de outro, atividade de cada um é um tanto mais pessoal quanto mais for especializada. (DURKHEIM, 1999, p. 108) Esses vínculos sociais mais orgânicos, mais complexos, repousam sobre uma divi- são também mais complexa do trabalho, que, por sua vez, somente é possível a partir de uma grande diversidade de funções, o que é próprio de sociedades mais populosas. Uma sociedade mais populosa é capaz de comportar a necessidade de trabalhos sociais específicos, que não seriam sustentáveis em um grupo populacional menor. Quantos advogados podem se manter apenas com o exercício da própria profissão em uma grande cidade? Agora, imaginemos esse mesmo número de profissionais em um pequeno vilarejo... Haveria, no pequeno vilarejo, tantas disputas judiciais que pudessem demandar o serviço (e gerar honorários) suficiente para a manutenção da atividade simultânea de um imenso contingente desses profissionais? A mesma lógica poderia ser aplicada a cirurgiões-dentistas, designers, economistas, fonoaudiólogos, analistas de sistemas e um vasto número de outras profissões. Por serem atividades específicas, a sua demanda social também dependerá de situações específicas, que, por sua vez, são mais numerosas se a população do lugar também for muito maior. As repercussões de aglomerados humanos maiores e de maior complexidade nos vínculos de convivência são bastante amplas. Figura 4 Fonte: Getty Images 13 UNIDADE Sociologia como Ciência Para começar, há uma forte tendência em se romper com a ideia de “profissão como herança”, não raro são os casos em que o filho da dentista preferiu ser cabele- reiro, ou a filha da advogada preferiu seguir carreira como atriz, ou ainda o filho do pequeno comerciante buscou carreira como assistente social, ou a filha do pedreiro almejou se tornar engenheira elétrica. A ideia de divisão profissional por gênero, e dos filhos continuarem na mesma profissão dos pais, enfraquece bastante. É difícil esperar que em sociedades orgânicas haja práticas mais próprias das comunidades menores, mais mecânicas. A “palavra”, a “promessa”; ou melhor, con- tratos verbais, podem ainda existir, contudo os mecanismos jurídicos de controle pressionam pela formalização das relações contratuais. É bem possível ainda encon- trar nas grandes cidades pequenos comerciantes que mantêm algumas práticas co- merciais que pendem para a informalidade - por exemplo, o famoso “caderno de fia- dos”, que é uma prática ainda hoje presente em pequenos municípios. Todavia, nas grandes metrópoles, a maioria do comércio (incluindo até alguns dos pequenos) irá preferir sistemas formais de pagamento, como cartão de crédito ou boleto bancário. Apesar de os vínculos serem mais impessoais, a tese durkheimiana é de que ainda assim eles formam uma corrente de interdependência (a solidariedadesocial) à sua própria maneira, pois quanto mais são especializadas as profissões, mais as pessoas tendem a depender dessa rede profissional de relações. Um economista com a sua expertise irá precisar do trabalho especializado do cirurgião-dentista ou do advoga- do, os quais, por sua vez, podem precisar da habilidade profissional do eletricista, que dependerá do pedagogo para alfabetizar o seu filho, e assim se seguiria numa imensa rede de complementariedade mútua. Um ponto a ser retomado é o da consciência coletiva, uma vez que se trata, como vimos, do “conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade” (DURKHEIM, 1999, p. 50). Então, temos uma forma de “mentalidade compartilhada”, porém as crenças de uma época não necessariamente serão as crenças de uma mesma sociedade em um período posterior. Se as mentali- dades e crenças mudam com o tempo, a consciência coletiva também. Isso é importante para compreendermos que mesmo considerando que as re- lações de solidariedade social formavam uma força de coesão social, isso poderia ser entendido como uma grande tendência, mas nunca de forma absoluta. Há fatos desagregadores dentro da sociedade, como, por exemplo, o crime. Mesmo a ideia de crime pode ser tratada à luz do conceito de consciência coletiva, pois é a aceitação ou não da coletividade de determinadas ações que pode vir a classificar as mesmas como sendo ou não ações criminosas. O nível de rejeição de tipo de conduta deter- minaria o quão grave o crime é. Todavia, Durkheim reconhece que de uma forma ou de outra sempre houve crime na sociedade, portanto, assim como qualquer fato social, a criminalidade poderia ser avaliada quanto à sua condição de normalidade ou de patologia. Pode a princípio parecer estranho falar do crime como algo “dentro de uma normalidade social”. Não se trata da consciência social “aceitar” no sentido de des- criminalizar todas as formas de crime, extinguindo-o conceitualmente; o ponto em questão, observado por Durkheim, é que alguns fatos sociais – e o crime, entre eles 14 15 – teriam um nível maior ou menor de “aceitação” por parte da sociedade; neste caso, talvez, a melhor palavra fosse tolerância. Essa “tolerância” implicaria um “apesar de”; ou seja, apesar de determinado tipo de crime ocorrer com um nível de regulari- dade, a sociedade continua funcionando – poderia se dizer que continua funcionan- do normalmente... No entanto, determinados tipos de fatos sociais, não desejáveis, que crescem em proporções extremas, criam uma situação patológica, pois não haveria mais “nor- malidade”. Neste estágio, patológico, aquele fato – podemos pensar como um tipo de crime – afeta o cotidiano das relações a tal ponto que a sociedade pode não mais funcionar de forma equilibrada. Pensemos no crime de homicídio. Em nenhum momento aquela consciência so- cial deixa de repudiar o ato criminal, seja moral, seja juridicamente; no entanto, ape- sar do mesmo, as pessoas cotidianamente vão à escola, ao trabalho, saem no final de semana para o lazer, as lojas abrem, clientes vão ao shopping, etc. Numa fórmula popular se diz que “a vida não para”. Porém, em casos em que o fato social afronte por demais a consciência social, ou por sua natureza, ou pela extensão do acontecimento - como uma explosão nas ta- xas de homicídio, isso afetaria o funcionamento regular da sociedade. Se, por exem- plo, houvesse um aumento brutal da violência urbana num curto espaço de tempo, isso interferiria na dinâmica de trocas normais da sociedade. Neste contexto, os pais hesitariam em enviar seus filhos para a escola, lojas poderiam fechar mais cedo, ou mesmo não abrir no final de semana, as pessoas deixariam de passear ou de visitar determinada localidade. Como bem lembra Iamundo (IAMUNDO, 2013, p. 49), a distinção entre normal e patológico poderia tanto ser aplicada a fatos sociais singulares, como taxas de sui- cídio e de criminalidade, como nas próprias estruturas sociais, como Estado, família, religião, etc. Essa ideia permite-nos refletir sobre a própria natureza de “normalidade social” de um fato, pois, se a tolerância ou não depende da aceitação ou não da consciência co- letiva, temos uma pista para pensarmos por que em determinadas regiões do mundo mesmo com a violência urbana, seja pela criminalidade patrocinada por quadrilhas, seja pela proximidade a zonas de conflito militar, aquelas localidades continuam ativas, as coisas parecem ainda “funcionar”. Qual, então, seria o ponto de ruptura que faria grande parte de pessoas abandonar aquela localidade? Qual nível de risco à vida deixa de ser tolerável sobre qualquer hipótese? Não é possível obter uma métrica precisa para estas situações, cada caso será um caso, contudo parece ser plausível que admitamos que a sociedade se exposta progressivamente a determinado acon- tecimento, mesmo o desaprovando, pode se “adaptar” a ele; mas, se essa exposição for demasiadamente intensa ou crescer de forma muito rápida, a tendência é que esta se torne tão intolerável que assuma a condição de patologia. Podemos, então, nos voltarmos para um referencial teórico que busca entender o sentido da ação social. 15 UNIDADE Sociologia como Ciência Por uma Sociologia Compreensiva Max Weber, nascido na Alemanha em 1864 e falecido em 1920, foi outro dos gi- gantes das ciências sociais, seus trabalhos em Sociologia estendem seu alcance para campos como a Política, a Economia e o Direito. Figura 5 – Max Weber (Sociologia) Fonte: Wikimedia Commons A teoria sociológica de Weber muda a ênfase dada por Durkheim dos fatos sociais – que são externos ao indivíduo – para se concentrar mais em como o sujeito dá sentido à própria conduta dentro da sociedade (conf. SELL, 2017). Ou seja, o foco do pensamento weberiano não é o fato social, mas a ação social, a compreensão e a interpretação das causas dessas ações, ou nas palavras do próprio Max Weber: O termo “sociologia” está aberto a muitas interpretações diferentes. No contexto usado aqui significará aquela ciência que tem como meta a compreensão interpretativa da ação social de maneira a obter uma explica- ção de suas causas, de seu curso e dos seus efeitos. Por “ação” se designará toda a conduta humana cujos sujeitos vinculem a esta ação um sentido sub- jetivo. Tal comportamento pode ser mental ou exterior; poderá consistir de ação ou de omissão no agir. O termo “ação social” será reservado à ação cuja intenção fomentada pelos indivíduos envolvidos se refere à conduta de outros, orientando-se de acordo com ela. (WEBER, 2002, p. 11) Essa dimensão de um agir que carrega uma intencionalidade e que estas intenções estão sempre em referência às outras pessoas, e também à maneira como os outros agem ao nosso redor, fica ainda mais nítida a partir da classificação feita por Weber sobre os principais tipos de ação social. 16 17 • Ação social de tipo tradicional: esse é um tipo de ação que, segundo Weber, se daria por imitação, mas não uma imitação qualquer, ela deve vir carregada com um sentido, seja religioso, de prestígio ou alguma forma de aceitação so- cial. A tradição pode se referir a antigas práticas que vão se reforçando ao longo do tempo, pode gerar uma expectativa social quanto a uma série de compor- tamentos. Quando o indivíduo justifica para si mesmo, e para os outros, a sua conduta com base nessas práticas anteriormente realizadas, este pode estar se conectando a uma tradição e agindo segundo a mesma. Ações segundo costu- mes se enquadram nesta categoria, como, por exemplo, a cerimônia religiosa de casamento em uma sociedade laica, que também reconheceria o matrimônio mesmo que ele fosse realizado apenas como registro civil. Adicione-se a isso o uso de alianças de casamento, que é um objeto que faz referência à tradição religiosa e acaba sendo incorporado, em alguns casos, até por casais que não realizaram uma cerimônia religiosa, porque o objeto pode ser visto pelo casal como símbolo de fidelidade; •Ação social de tipo afetivo: “A ação estritamente afetiva também fica na linha do que pode ser considerado uma ação consciente de sentido e, com frequên- cia, ultrapassa também a linha; por exemplo, pode ser uma reação desinibida a algum estímulo extraordinário” (Idem, p. 42). Ou seja, no sentido weberiano, uma ação afetiva – como o próprio nome já diz – é guiada pelos afetos, pelas emoções, muitas vezes não é uma ação (ou reação) planejada, racional, tende a ser impulsiva, seja por emoções como medo ou raiva; • Ação social de tipo racional para fins: Weber insere nessa classificação as ações sociais mais “estratégicas”, o indivíduo tem um objetivo a alcançar, para tanto o mesmo racionaliza por quais meios é possível alcançar aquele determi- nado fim. Todas as ações de planejamento podem facilmente ser enquadradas nessa categoria. O indivíduo quando avalia diferentes opções para alcançar um dado resultado, posteriormente opta por uma de várias vias concorrentes, está agindo racionalmente segundo fins, pois delimitou o melhor caminho para al- cançar o fim desejado (resultado). Um bom exemplo são os estudantes universi- tários; em vários casos, a pessoa inicia estudos universitários após uma série de planejamentos. Questões como: qual a profissão?, qual o tempo de duração do curso?, quais os custos envolvidos? geralmente fazem parte da tomada de deci- são do estudante, que além de tudo tinha como finalidade obter conhecimento para o exercício de uma determinada profissão. Todo esse itinerário de escolher um curso que prepara para o exercício de uma determinada profissão e se em- penhar no aprendizado dos conteúdos do curso durante um determinado perío- do de tempo são passos de uma sequência escolhida racionalmente, não é uma sequência aleatória, a todo instante estava presente uma avaliação do tipo fazer A, que leva ao resultado B, por isso tratam-se de ações racionais segundo fins; • Ações de tipo racional orientadas para valores: esse é um tipo peculiar de ação social. Se por um lado há uma racionalidade ausente nas ações puramente afetivas, por outro lado submete-se a valores que Weber chama de “absolutos”, o objetivo da ação não é alcançar um resultado específico como nos exemplos 17 UNIDADE Sociologia como Ciência dados da racionalidade para fins, o objetivo, poderia se dizer, é se manter har- mônico com um ou mais valores, podendo ser estes tanto éticos como religio- sos. Os motivadores da ação não são os resultados a serem alcançados, mas a coerência com os valores motivadores. Esse é um ponto em que por vezes o leitor iniciante tem dificuldade de abstrair e passa erradamente a considerar ações tradicionais e ações segundo valores como sendo sinônimos, não são. Ações por tradição seguem comportamentos passados e inclusive podem variar quanto à motivação de foro íntimo. Um dos cônjuges pode concordar com a tradição e realizar o matrimônio religioso numa determinada igreja, porque “seu avô e seu pai” também se casaram ali e não por um imperativo específico da fé. Já as ações orientadas por valores tomam esse ou aquele código de valores ab- solutos como guia; em casos extremos o sujeito coloca a própria segurança pessoal para agir conforme suas convicções. É o caso do suicídio ritual, que era (e ainda há vestígios desse tipo de prática nos tempos atuais) uma ação em que o sujeito que vivia segundo a sua honra considera a violação dos seus códigos morais tão inadmis- sível, que, numa espécie de expiação por sua falha, tira a própria vida. Ou ainda, su- jeitos que se apegam tão radicalmente a suas crenças, que não titubeiam em realizar ações que a maioria das pessoas – e até o sistema judiciário – daquela determinada sociedade interprete como sendo criminosa. Max Weber foi o primeiro a reconhecer que a sua classificação nem sempre po- deria ser abordada na sua forma pura (Idem). Encontraremos na sociedade diversas linhas de condutas que poderiam ser um tipo de ação “híbrida”, carregando sentidos diversos. Uma ação que inicialmente deveria ser motivada mais por motivo afetivo pode ter misturado interesses racionais segundo fins. Alguém que se associa a uma outra pessoa para ajudá-la alegando motivos racionais segundo valores – éticos ou religiosos – quando, na verdade, o “benfeitor” está manipulando a situação, sua verdadeira motivação é alcançar determinado fim (geralmente, nestas situações em benefício próprio), o que significa dizer que havia mais de uma motivação para a conduta. Neste cenário hipotético, a conduta pode até coincidir com determinado valor absoluto, mas carrega consigo também o interesse próprio, que pouco ou nada teria de relação com os valores que o autor alega ter para a ação. O estudo das ações sociais se desdobra na ideia de relações sociais, na medida em que Weber pressupõe que tais relações se dão porque as ações dos indivíduos se referenciam umas nas outras, ora como concordância, ora como divergência. Cada parte de uma relação social pode estar ali articulada por sentidos diversos; para Weber, as relações sociais podem ser tanto simétricas - ter o mesmo sentido de reciprocidade, por “amizade”, “amor”, “contrato”, etc. - como podem ser assimétricas, em que uma das partes envolvidas não compartilha da mesma motivação que a outra (Idem, p. 46). De qualquer forma, quando estabelecido um tipo de relação, essa se orienta em uma direção comum – novamente, mesmo que a motivação seja diferente, como em casos em que uns dos cônjuges se une por interesse afetivo e o outro por interesse financeiro –, há uma expectativa de conduta dentro daquela relação. Se for uma relação contratual, há a expectativa de o que cada parte do contrato 18 19 deverá fazer. Se, por exemplo, tratar-se de uma relação comercial de compra e venda, o comprador espera que a mercadoria seja entregue no prazo acordado e nas condições estabelecidas (o produto em bom estado e funcionando); do lado do vendedor, espera-se que o cliente pague o montante combinado na data estabelecida. Esse é um caso em que a relação social se dá por consentimento mútuo, com base “numa promessa de conduta futura” (Idem). E, é claro, Weber enfatiza que essas expectativas e a observação de casos anterio- res permitem pensarmos em termos de probabilidade de determinada conduta em determina circunstância. Assim, se a “amizade” ou o “Estado” existem ou têm existido, isto signi- fica apenas que: em nosso juízo, de observadores, há ou tem havido a probabilidade de que, dados certos tipos de atitudes subjetivas conheci- das de certos indivíduos, resulte, na média, num certo tipo específico de conduta, e nada mais. (WEBER, 2002, p. 47) Essa percepção da ação social e a sua maior ou menor aceitação junto à comuni- dade desembocam na ideia da probabilidade de determinadas condutas futuras; essa maior ou menor expectativa de que determinada conduta seja aceita e, portanto, posta em prática, abre espaço para outro tema de discussão weberiano, a saber, a ideia de autoridade. Quanto se interroga sobre a probabilidade de determinadas condutas no futuro, também se pode perguntar sobre a ideia de autoridade, pois o exercício de autori- dade contém essa capacidade de moldar as probabilidades (no sentido sociológico weberiano) da ocorrência de uma dada conduta, quer seja o cumprimento de uma ordem ou o respeito a uma proibição. Então, como se constitui a autoridade, segundo o pensamento weberiano? A ação, especialmente a ação social, e mais particularmente a relação social, pode ser orientada, de parte dos indivíduos, pelo que constitui sua “representação” da existência de uma autoridade legítima. A pro- babilidade de que uma tal orientação realmente ocorra será chamada de “validação” da autoridade em questão. (WEBER, 2002, p. 53) É importante destacar que a associação da validação da autoridade e a alta probabilidade de uma conduta social se associam, mas não com base na probabili- dade pura de uma determinada conduta, pois a alta probabilidade de uma condutapode ter diferentes motivações, inclusive o atendimento de interesse próprio. Por exemplo, há alta probabilidade de o comércio em diferentes localidades realizar pro- moções para aumentar a venda de seus produtos quando se aproximam algumas datas comemorativas (Natal, Dia das mães, Dia dos pais, etc.) Quando se trata da probabilidade da ação associada à autoridade, esta implica um outro conceito, que é o de poder, o que permite compreender que se aquela deter- minada pessoa ou grupo possui autoridade, é pelo poder que pode exercer sobre os demais. 19 UNIDADE Sociologia como Ciência Entende-se por poder a oportunidade existente dentro de uma relação social que permite a alguém impor a sua própria vontade mesmo contra a resistência e independentemente da base na qual esta oportunidade se fundamenta. Por dominação entende-se a oportunidade de ter um co- mando de um dado conteúdo específico, obedecido por um dado grupo de pessoas. (WEBER, 2002, p. 97) Então, temos os conceitos de autoridade, poder e dominação entrelaçados. A au- toridade é quem exerce o poder (pessoa ou grupo de pessoas); a força para que seu comando seja obedecido (alta probabilidade de moldar a conduta), seja por convencimento de ideias, seja pela imposição da vontade por meios físicos (poder judiciário, polícia, exército, etc.), diz respeito ao poder propriamente dito; e, por fim, a aceitação ou subordinação ao comando dado é a dominação. Dentro desse entrelaçamento, o pensamento weberiano irá classificar três tipos principais de dominação: Dominação Tradicional, Dominação Carismática e Domi- nação Legal-Racional. A dominação tradicional está, como o nome diz, ligada à tradição; uma longa história de práticas na sociedade, de reconhecimentos e entendimentos de como ela funciona cria costumes que podem se enraizar com o passar das gerações, fortalecen- do o princípio do “sempre foi assim”, o que faz com que uma vez formado um arranjo de princípios e de forças na sociedade este não mude, ou pelo menos mude muitís- simo devagar. O poder da tradição é a força do passado pressionando o presente. A dominação exercida pelas antigas sociedades patriarcais é exemplo de dominação tradicional, as próprias monarquias teriam muito dessa forma de dominação. Outra classe de dominação é a dominação carismática. Nessa classe, “o portador do carisma assume as tarefas que considera adequadas e exige obediência e adesão em virtude de sua missão” (WEBER, 1999, p. 324). O portador do carisma (e nes- se caso da autoridade) está envolto em condições subjetivas muito específicas. Ao contrário de uma dominação tradicional, em que o componente de continuidade em relação ao passado está presente, o carismático pode surgir como um novo polo de poder, poder esse que emana de uma poderosa simpatia que essa liderança exerce sobre seus comandados. Não há fórmula específica para definir um poder que surge pelo carisma (no que se refere ao poder e à dominação), apenas a presença de um fascínio pela pessoa do líder, fascinação essa atribuída a uma causa (missão) cuja liderança se comprometeu a realizar. Claramente, essa missão conta com a adesão de um grande número de apoiadores, os quais tendem a confundir a missão ou causa e suas respectivas ideias com a própria pessoa do carismático. Este, por sua vez, talvez como estratégia para reforçar a sua dominação sobre o grupo, não só não repudia a ideia dos seus seguidores de mesclar a sua figura com a missão a ser alcançada, como incentiva tal motivação, dizendo-se mais que um líder, mas uma ideia encarnada. Por fim, e nem de longe menos importante, a dominação legal-racional “deriva da validade de estatutos legais que possuem competência funcional [...] Fundamenta-se 20 21 em bases jurídicas que amparam a legitimidade de tal poder” (IAMUNDO, 2013, p. 107). Esse tipo de dominação podemos dizer que é mais normativa, no sentido de que o exercício do poder está pré-formatado a um ecossistema de regras, pensadas racionalmente e que compõem, por exemplo, toda a arquitetura da burocracia admi- nistrativa, tanto na administração pública como na administração privada. A cadeia de comando e a submissão à mesma segue regulamentos. A própria autoridade, neste caso, só é autoridade enquanto ocupante de cargo ou função, como um pre- feito na administração pública ou um diretor de uma grande empresa. Em ambos os casos, o poder de comando não é intrinsecamente do indivíduo, e sim do cargo ou função desempenhada; de uma maneira mais popularesca: “O poder pertence à cadeira”. Assim sendo, esse tipo de dominação também está atrelado ao sistema nor- mativo que a organiza e a legitima, incluindo o ordenamento jurídico, que irá estabe- lecer regras e limites para o exercício do poder na esfera pública, como o estatuto da empresa, que define as competências de cada cargo. Por trás desse regramento está a preservação da organização ou do Estado, o planejamento racional dessas regras busca assegurar uma maior eficiência e equilíbrio, sendo esse um objetivo comum no poder público e na burocracia privada. Em suma, numa dominação legal-racional, mesmo as lideranças estão submetidas a esse regramento e somente exercem poder com base no mesmo, não podendo se colocar acima ou à parte das instituições. Mudanças e Controles Sociais Um dos alvos primários da sociologia foi entender as mudanças sociais. Até o momento, alguns conceitos fizeram alusão ao tema, como os de “sociologia dinâ- mica” e “sociologia estática” na versão ainda incipiente de Comte, passando pela perspectiva marxista de “conflito social”. Para nos aprofundarmos um pouco mais nessa discussão, vamos acrescentar mais dois conceitos: a anomia de Durkheim e a burocracia de Weber, por não apenas nos aproximarem dessas dicotomias entre co- esão e dissociação, liberdade e controle, como estarem tematizando mais próximos da fronteira com a ciência jurídica. A burocracia segundo Max Weber Como vimos, há uma articulação entre os conceitos de autoridade, poder e do- minação em Max Weber. Essa articulação, segundo o próprio sociólogo alemão, é oriunda de um processo de racionalização que se espalha pelas relações sociais, principalmente, com a formação e a manutenção dos Estados nacionais modernos. Uma maneira de pautar racionalmente esses arranjos institucionais foi a formação de uma burocracia. A burocracia enquanto processo é o que dá origem ao controle social presente em uma dominação legal-racional. 21 UNIDADE Sociologia como Ciência [...] a burocracia é resultado do desenvolvimento na esfera da racionali- dade vinculada ao caráter da dominação e poder, pois, para o processo burocrático atingir efetivamente o controle, exigem-se hierarquia e a ra- zão das funções. No interior da hierarquia verifica-se a obediência às normas estabelecidas para o funcionamento dos procedimentos para atingir os fins estabeleci- dos. Em outras palavras, a burocracia é um impositivo da organiza- ção social racional [grifo nosso]. [...] é possível afirmar que a burocracia firma-se como regra que deve ser seguida para a eficácia, portanto, para o estabelecimento de condutas disciplinadas: um instrumento de controle das pessoas, da produção e das instituições. (IAMUNDO, 2013, p. 74-75) Porém, não é qualquer tipo de conjunto de regras que atende a condições como “eficácia” e produzir “condutas disciplinadas”; no pensamento weberiano, uma buro- cracia capaz disso deve apresentar as seguintes características: • Racionalidade: por visar, acima de tudo, uma maior eficácia, a coerência ra- cional impõe critérios sempre técnicos - por exemplo, da criação, distribuição e preenchimento de cargos/funções. Aqueles considerados mais aptos, mais treinados para a execução de determinada tarefa, devem ter a preferência para ocupar um posto burocrático; • Impessoalidade: muitas vezes, é confundida erroneamente com insensibi- lidade; aquele que desempenha função burocrática deve fazê-lo preocupado apenas com a melhor qualidade possívelno desempenho da tarefa, não deixar que aspectos pessoais ou particulares interfiram no desempenho da função. Exemplo: no atendimento médico, embora, seja sempre esperada uma certa “humanidade” no atendimento por parte do profissional, este não pode deixar que questões afetivas particulares interfiram na qualidade e objetividade do aten- dimento, sob pena de colocar a integridade da saúde do paciente em risco; • Controle: por estar sempre visando a um conjunto de metas (o planejamento também é uma etapa burocrática), é imprescindível que haja monitoramento na execução dos processos. A qualquer instante em que os processos se desviam do estabelecido, mecanismos de correção são acionados. Isso, quando aplicado ao trabalho de pessoas, pressupõe sanções a serem aplicadas pelo descumpri- mento da tarefa esperada; • Imparcialidade: “evidencia-se pelo caráter da adoção de uma forma que fun- ciona com este ou aquele funcionário, pois não importa quem é, importa uni- camente o que deve ser feito” (Idem, p. 75). Tal condição tenta prevenir favo- recimentos, discriminações e outros componentes que ao final prejudicam a execução da tarefa de forma harmoniosa. Podemos notar que muito daquilo que o senso comum associa com burocracia, na verdade, são exemplos daquilo que a burocracia procura evitar (pelo menos se tomada no sentido weberiano). Mesmo a ideia de controle na burocracia não é apenas de opressão, mas também de controle de qualidade. Quando pensamos na 22 23 administração pública, a ausência de planejamento e controle adequados pode criar situações absurdas - por exemplo: o Estado compra medicamentos de laboratórios privados para distribuir gratuitamente com base em programas de saúde pública para o a população mais carente; quando não há uma burocracia eficaz, corre-se o risco de serem comprados remédios segundo critérios promocionais (e não de acordo com um levantamento prévio de quais medicamentos eram os mais demandados pelos pacientes) ou por não haver o devido controle e acompanhamento dos estoques, esses mesmo medicamentos perderem o prazo de validade (e a eficácia terapêutica) sem ao menos terem sido distribuídos, como era a meta inicial do programa. Figura 6 – Burocracia inteligente (Planejamento e Controle) Fonte: Getty Images Contudo, a associação do senso comum de burocracia com obstáculo não é des- provida completamente de fundamento. O lado perverso da burocracia é que a mes- ma pode ser distorcida por diversos fatores, gerando controles excessivos e proces- sos lentos que não atendem às expectativas daqueles que dela dependem. Figura 7 – Burocracia como obstáculo Fonte: Getty Images 23 UNIDADE Sociologia como Ciência Isso suscita a reflexão de sociólogos, políticos, educadores, operadores de direito e da sociedade em geral: Quais controles sociais são, ou não, benéficos para a maioria da sociedade? Quais os limites ou a extensão desses controles? Como calibrá-los de forma transparente de maneira que prevaleça o interesse coletivo? A anomia segundo Durkheim Se consideramos que os desafios e contradições das transformações sociais foram justamente os promotores maiores do impulso para se criar uma ciência social, não é de se estranhar que encontremos em cada autor uma ou outra consideração sobre aspectos sociais de quando “as coisas não vão bem”; impulsos que teriam uma dire- ção mais auspiciosa podem ser distorcidos pelo caminho, tendo, então, resultados bem perniciosos. Marx expressa isso imediatamente, ao partir do princípio da luta de classes. Weber nos deu ferramentas para enxergarmos as nuances de um amplo processo de racionalização, que se por um lado produziria uma burocracia eficaz, por outro pode ter a distorção dessa própria burocracia, gerando práticas sociais incoerentes com a ideia de maior coesão da sociedade, a qual passa a enxergar o Estado mais como adversário do que como um possível aliado. Durkheim também reconhecia a existência dessas “tensões”; ao analisar os esta- dos patológicos da sociedade, ele irá utilizar-se da ideia de anomia, lembrando que anomia tem sido definida na Sociologia como: “[...] ausência de normas. Aplica-se tanto à sociedade quanto à pessoa: significa estado de desorganização social ou pessoal ocasionado pela ausência ou aparente ausência de normas. Pode significar desmoralização, falta de leis estabelecidas, anarquia” (PANSANI, 2018, p. 05). Destacamos duas ocasiões em que Durkheim aplica o conceito de anomia em seus trabalhos: naquilo que ele chamou de divisão social anômica do trabalho e no fenômeno do suicídio. No que se refere à divisão do trabalho, Durkheim a considera anômica, patológica, quando os resultados sejam diferentes de uma solidariedade social orgânica, podendo mesmo ser o seu oposto, segundo o sociólogo francês (Conf. DURKHEIM, 1999). Isso acontece em situações como “[...] crises industriais ou comerciais, pelas falên- cias, que são verdadeiras rupturas parciais da solidariedade orgânica; elas atestam, de fato, que em certos pontos do organismo, certas funções sociais não estão ajus- tadas umas às outras” (Idem, p. 368). Assim sendo, uma crise econômica sacode os vínculos de interdependência da solidariedade orgânica, uma vez que priva o indivíduo de se vincular ao sistema de trocas complementares desse tipo de solida- riedade, pois o mesmo pode se encontrar desempregado ou, ainda, e esse tem sido um fenômeno persistente mesmo nas crises econômicas do século XXI, o indivíduo assume de forma obrigada pelas circunstâncias funções que diferem muito daquelas que gostaria ou poderia exercer. Por exemplo, como tem acontecido em período re- cente, profissionais de formação superior que se veem desempenhado tarefas muito aquém da sua formação e por uma remuneração muito menor. 24 25 Essa distorção na estrutura da solidariedade orgânica contribui para o afrouxa- mento dos vínculos sociais, da conexão do indivíduo com a coletividade. O próprio Durkheim, por uma via um pouco diferente da marxista, reconhece que em determi- nadas circunstâncias “o indivíduo, debruçado em sua tarefa, isola-se em sua atividade especial; ele já não sente os colaboradores que trabalham a seu lado na mesma obra, já não tem sequer a noção dessa obra comum” (Idem, p. 372). Apesar dessa momentânea convergência, não é a “luta de classes” que move o racional durkheimiano, tanto que na sua preocupação com a anomia como uma expressão dessa perda de vínculos entre o indivíduo e a coletividade, o autor francês irá - como afirmamos há pouco – voltar-se para o estudo do suicídio. Durkheim entendeu o suicídio como um fato social cujas causas precisariam ser investigadas. Nesse processo investigativo, que resultou no livro “O suicídio”, publicado origi- nalmente em 1897, o autor francês chega a diferentes tipos de motivações principais que levariam o indivíduo a colocar fim à própria vida, são eles: • Suicídio egoísta: neste primeiro caso, o sentimento de abandono social seria o motivador da ação, pois o indivíduo estaria submetido a uma situação em que seus vínculos sociais estariam por demais fragilizados. “Se os sentimentos coletivos têm uma energia particular, é porque a força com que cada consci- ência individual os experimenta repercute sobre todas as outras, e vice-versa” (DURKHEIM, 2000, 248), ou seja, a ausência desse sentimento de pertenci- mento social, tanto em relação à família como à sociedade como um todo, deixa o indivíduo mais propenso à execução de um gesto extremo; • Suicídio altruísta: esse é um caso, em princípio, diametralmente oposto ao anterior, pois há não apenas um sentimento de pertencimento, mas vínculos sociais tão intensos, que o indivíduo, diante de uma situação extrema, se dispõe a sacrificar a própria vida para proteger a do grupo. Esses casos incluem com- batentes antigos e modernos que em situação de guerra se sacrificam em prol da nação ou do grupo; também há casos de figuras religiosas que colocaram a segurança de outras pessoas acima da suaprópria. Mesmo esses gestos sendo mais bem acolhidos do ponto de vista da consciência coletiva da sociedade, para Durkheim não deixa de ser um tipo de suicídio; • Suicídio anômico: aqui, novamente, Durkheim lança mão da ideia de anomia, desta vez aplicada ao fenômeno em questão: “Podemos atribuir à sociedade tudo o que há de social em nós, e não limitar nossos desejos; sem ser egoísta, pode-se viver no estado de anomia, e vice-versa” (Idem, p. 329). A origem dessa forma de suicídio estaria, então, na perda de sentidos ocasionada por bruscas transformações que são possíveis de acontecer em sociedades industriais com- plexas. O indivíduo pode ter uma brusca mudança na sua condição tanto de forma ascensional, daí o desregramento, como também por bruta queda na sua condição social; em ambos os casos, parece se formar um vazio tal de expecta- tivas que o indivíduo acaba abandonando a vida; 25 UNIDADE Sociologia como Ciência • Por fim, o suicídio fatalista: se a anomia, enquanto ausência de normas e de regras, pode levar o indivíduo a uma sensação de vazio e de distanciamento da sociedade, o excesso de regramento, social, jurídico ou de outra natureza, sobre alguém que não deseja aquela condição, e que esmague as esperanças de uma mudança, também pode ser bastante nociva. “A disciplina sem medida destrói o indivíduo” (IAMUNDO, 2013, p. 78). Em todos esses casos, há a discussão quanto à proximidade e quanto à distância do indivíduo em relação à coletividade. Em Síntese Finalmente, após apresentarmos essas reflexões acerca da sociedade moderna, outros autores se viram desafiados a tentar entender outras sociedades que não a europeia moderna, essa possibilidade fez surgir o que será objeto do nosso próximo tópico, que é a Antropologia. 26 27 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Programa de Sociologia Jurídica CAVALIERI FILHO, S. Programa de sociologia jurídica. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2019. (E-book) Fundamentos de Sociologia e Antropologia OLIVEIRA, C. B. F. Fundamentos de sociologia e antropologia. Porto Alegre: Sagah, 2018. (E-book) Sociologia Geral e Jurídica: Fundamentos e Fronteiras ROCHA, J. M. S. Sociologia geral e jurídica: fundamentos e fronteiras. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. (E-book) Sociologia Geral e Jurídica: a Era do Direito Cativo SCURO NETO, P. Sociologia geral e jurídica: a era do direito cativo. 8ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. (E-book) Manual de Sociologia Jurídica SILVA, F. G.; RODRIGUEZ, J. R. Manual de sociologia jurídica. 3ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. (E-book) 27 UNIDADE Sociologia como Ciência Referências DURKHEIM, É. Da divisão do trabalho social. Tradução de Eduardo Brandão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ________. As regras do método sociológico. Tradução de Paulo Neves; revisão da tradução de Eduardo Brandão. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. IAMUNDO, E. Sociologia e antropologia do direito. São Paulo: Saraiva, 2013. PANSANI, C. Pequeno dicionário de sociologia. Campinas: Autores Associados, 2018 [livro eletrônico]. REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: do Romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991. SELL, C. E. Sociologia clássica: Marx Durkheim e Weber. Petrópolis: Vozes, 2017. WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tra- dução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa; revisão técnica de Gabriel Cohn. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999. ________. Conceitos básicos de sociologia. Tradução de Rubens Eduardo Ferreira Frias e Gerard Georges Delaunnay. São Paulo: Centauro, 2002. 28