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Perspectivas sobre a História Ensinada Relatório Técnico‐Científico André Luiz Paulilo Relatório Científico do Projeto de Pesquisa “Discursos e Representações acerca da docência em História: perspectivas sobre o ensino de História no Ciclo II da Educação Fundamental”. Processo CNPq n.º 563733/2008-0 São Caetano do Sul 2011 2 Agradecimentos Desde que ingressei na Universidade Municipal de São Caetano do Sul estive imerso neste trabalho de pesquisa. Sou grato por todo o apoio obtido junto à Coordenadoria de Pesquisas Acadêmicas que na pessoa da prof.ª Maria do Carmo Romeiro viabilizou a execução do projeto na instituição. Gostaria de agradecer, de modo especial, à prof.ª Celia Maria Haas que, na gestão do curso de pedagogia, teve papel fundamental nos rumos que esse trabalho assumiu. Foi em discussões acerca da organização da Escola de Educação da universidade que propus a pesquisa e a partir das quais o trabalho se consolidou. Portanto, não sou menos grato aos colegas que me colocaram em contato com possibilidades fascinantes de estudar as metodologias de ensino. Assim, às professoras Silvia Regina Brandão, Maria de Fátima Ramos de Andrade, Ana Silva Moço Aparício, Celi de Paula e Eliane Martinof e aos professores Marcelo Dias Pereira, Ivo Ribeiro de Sá e Júlio Cesar Zozernon devo o reconhecimento do incentivo e de um apoio inestimável para o desenvolvimento da abordagem desta pesquisa. Nas oportunidades de discutir os resultados deste trabalho nos fóruns das áreas de ensino de história e do currículo, agradeço, sobretudo, a interlocução que as professoras Tânia Maria Figueiredo Braga Garcia, Flávia Eloísa Caimi e Helenice Ciampi permitiram, sem dúvida, fazendo deste texto algo mais inventivo do que ele era originalmente. Não poderia deixar de reconhecer que as minhas reflexões também se beneficiaram do contato com as alunas e os alunos que entre 2009 e 2010 cursaram a disciplina Metodologia e Prática do Ensino de História e Geografia na Universidade. Espero que reconheçam nos textos que resultaram deste relatório um pouco do percurso que me sugeriram nas aulas. Foi fundamental o apoio que recebi do CNPq na forma de auxilio a jovens pesquisadores. O financiamento dos custos da pesquisa que ele permitiu não só tornou possível viabilizar o projeto, mas assegurar a organização de um laboratório de pesquisa acerca do estudo e do ensino da História na Universidade de São Caetano do Sul. 3 Resumo Constituída a partir de um modelo interpretativo que privilegia a análise das práticas docentes e o estudo da história das disciplinas escolares, essa pesquisa põem em foco as representações que os manuais dos livros didáticos de história e as propostas de reorientação curricular do Estado de São Paulo e da cidade de São Paulo veiculam sobre o ensino de História. No decorrer dessa pesquisa, a atenção se cingiu ao inventário das estratégias empreendidas para impor aos docentes uma representação do “bom” ensino, para sugerir modelos de conduta, para desqualificar certos procedimentos. A investigação dos esquemas de percepção do trabalho docente e das atribuições do ensino de História nos manuais do professor dos livros didáticos e nos referenciais curriculares do Estado de São Paulo e da sua capital pretendeu entender as ações que se espera dos docentes desta disciplina. O principal problema então abordado foi o da demanda social junto aos professores de história. Em meio à extensão desmesurada dos campos que se lhes pede lavrar para seus alunos, a pesquisa tratou de algumas das principais maneiras pelas quais a docência de história costuma ser vista e representada. O dimensionamento que se tomou por tarefa realizar com essa proposta, por um lado, utilizou como fonte os manuais de uso que acompanham o exemplar do professor dos livros didáticos recomendados no Programa Nacional do Livro Didático de 2008 (PNLD-2008). Por outro lado, dedicou-se à análise das atuais propostas curriculares de História impressas e distribuídas pelas secretarias de educação do Estado de São Paulo e da Prefeitura da capital. Ao discutir exemplos concretos de configurações graças às quais o ensino de história é percebido, tentou-se inventariar os traços e indícios de práticas de controle doutrinário do trabalho educativo que ainda permanecem pouco conhecidas. Palavras-chaves: Ensino de História; Metodologia e Prática do Ensino de História; PNLD-2008, Referenciais Curriculares do Estado de São Paulo; Expectativas de Aprendizagem da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. 4 Sumário INTRODUÇÃO Os Discursos e as Representações acerca do Ensino de História .................................. 06 A metodologia empregada ................................................................................................. 08 Os objetivos alcançados ...................................................................................................... 10 Perspectivas do estudo ....................................................................................................... 14 PARTE I Os manuais do professor dos livros didáticos de História para as séries finais do ensino fundamental ......................................................................................................... 16 CAPÍTULO 01 Os manuais dos professores como fonte de pesquisa ................................................... 23 Uma tipificação ................................................................................................................ 26 Editoras, governo e professores .................................................................................... 30 O discurso competente sobre o ensino de História ................................................... 35 CAPÍTULO 02 A produção didática da História nos manuais de ensino para professores ................ 46 Inventário do instrumental metódico e teórico do ensino da História, dos critérios para seleção dos conteúdos e das orientações e atitudes ........................................ 47 As rotinas de trabalho, a prescrição da prática e os modelos de ensino nos suplementos para professores das coleções didáticas de História .......................... 60 CAPÍTULO 03 Os modos de enunciação nos manuais de ensino para professores de História ........ 69 O gênero didático ............................................................................................................ 71 Elaboração didática da História ..................................................................................... 77 Critérios para a seleção dos conteúdos pedagógicos e da disciplina ....................... 83 A docência em História nos manuais de ensino .......................................................... 87 As fórmulas esteriotipadas da interação didática no ensino de História ................ 92 5 PARTE II O Ensino de História nas Políticas de Reorientação Curricular do Governo do Estado de São Paulo e da Prefeitura da Capital ......................................................................... 97 CAPÍTULO 01 Propostas de Ensino da História e Expectativas de Aprendizagem da Reorientação Curricular em São Paulo .................................................................................................... 102 As políticas de currículo e o ensino de História ........................................................ 104 A elaboração didática da História nas Orientações Curriculares ............................ 110 O discursocompetente e autoridade ......................................................................... 112 A docência em História e as suas competências ....................................................... 117 A interação didática no ensino de História segundo as Orientações Curriculares .................................................................................................................... 123 CAPÍTULO 02 Expectativas de Aprendizagem como política de pessoal e atividades de ensino nos referenciais curriculares .................................................................................................... 127 As rotinas de trabalho e o repertório de estratégias ............................................... 129 A sistematização das práticas nos referenciais curriculares: modelos de ensino e prescrição ....................................................................................................................... 134 A carreira e as políticas do currículo ........................................................................... 139 CONSIDERAÇÕES FINAIS Sobre a Metodologia e a Prática do Ensino de História .............................................. 145 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................... 156 6 INTRODUÇÃO Os Discursos e as Representações acerca do Ensino da História 7 Constituída a partir de um modelo interpretativo que privilegia a análise das práticas docentes e o estudo da história das disciplinas escolares, essa pesquisa põem em foco as representações que os manuais dos livros didáticos de história e as propostas de reorientação curricular do Estado de São Paulo e da cidade de São Paulo veiculam sobre o ensino de História. No decorrer dessa pesquisa, a atenção se cingiu ao inventário das estratégias empreendidas para impor aos docentes uma representação do “bom” ensino, para sugerir modelos de conduta, para desqualificar certos procedimentos. A investigação dos esquemas de percepção do trabalho docente e das atribuições do ensino de História nos manuais do professor dos livros didáticos e nos referenciais curriculares do Estado de São Paulo e da sua capital pretendeu entender as ações que se espera dos docentes desta disciplina. O principal problema então abordado foi o da demanda social junto aos professores de história. Em meio à extensão desmesurada dos campos que se lhes pede lavrar para seus alunos, a pesquisa trata de algumas das principais maneiras pelas quais a docência de história costuma ser vista e representada. O dimensionamento que se toma por tarefa realizar com essa proposta, por um lado, utiliza como fonte os manuais de uso que acompanham o exemplar do professor dos livros didáticos recomendados no Programa Nacional do Livro Didático de 2008 (PNLD-2008). Por outro lado, dedica-se à análise das atuais propostas curriculares de História impressas e distribuídas pelas secretarias de educação do Estado de São Paulo e da Prefeitura da capital. Ao discutir exemplos concretos de configurações graças às quais o ensino de história é percebido, tentei inventariar os traços e indícios de práticas de controle doutrinário do trabalho educativo que ainda permanecem pouco conhecidas. Os manuais do professor e os referenciais curriculares que se têm em vista analisar não são apenas marcados pelo debate sobre o ensino de história surgido no período final da ditadura civil-militar. Eles testemunham também a presença de 8 correntes pedagógicas que visam teorizar as modalidades de aprendizagem. Desse modo, também repercutem as preocupações pedagógicas com a prática do ensino de História e preconizam o protagonismo do aluno nos processos de aprendizagem. Do ponto de vista da metodologia do ensino de História, as mudanças indicadas na maneira de ensinar também foram uma questão para a pesquisa. A metodologia empregada Os procedimentos desta pesquisa foram constituídos a partir do inventário dos manuais de uso que acompanham o exemplar do professor dos livros didáticos de história recomendados pelo PNLD-2008. Visando compreender como o ensino de história é percebido nesse tipo de impresso, a pesquisa principalmente enfatizou os dispositivos que Roger Chartier (2007) identifica quando relaciona o texto e a sua materialidade e a perspectiva que Mikhail Bakhtin (2006) propõe sobre os gêneros do discurso. Assim, não só interessou identificar os dispositivos por meio dos quais os manuais do professor consolidam uma dada representação (cf. CHARTIER, 1991, p. 184) do ensino e do professor de história e as estratégias simbólicas que determinam posições e relações capazes de atribuir uma espécie de identidade para esse grupo profissional. Também importou compreender as peculiaridades constitutivas do gênero textual, a concepção de destinatário e os modos de enunciação dos manuais de uso do professor (BAKHTIN, 2006). Noutro plano de preocupações, cabe explicitar a utilidade das posições que Ivor Goodson (1999; 2008) mantém em relação à história do currículo. Segundo Goodson (1999, p. 21), não só o currículo, mas qualquer roteiro oficial de ensino, “é um testemunho visível, público e sujeito a mudanças, uma lógica que se escolhe para, mediante sua retórica, legitimar uma escolarização”. Dessa perspectiva, as propostas oficiais de reorientação curricular podem ser vistas como indícios dos valores e objetivos promovidos junto às instituições escolares. Esse modo de proceder esta relacionado com a história social do currículo. Muito em razão disso, trata-se de uma compreensão que considera na luta para se definir um currículo, as sociopolíticas e o discurso de ordem intelectual então envolvidos. A série de publicações com que as secretarias de educação do Estado de São Paulo e da Prefeitura da sua capital têm 9 reorientado a proposta curricular de suas redes de ensino foi objeto de uma análise nesse sentido. A partir deste terreno de trabalho em que se enredam o texto e a sua materialidade, realizei o tratamento analítico dos manuais de uso do professor e dos referenciais curriculares editados pelo governo do Estado e pela Prefeitura da capital. A leitura de todo o material envolveu estratégias de levantamento de critérios de seleção dos conteúdos, metodologia, recursos didáticos e de linguagem e, principalmente, de atividades e procedimentos. Inicialmente, seguindo um padrão definido por Klaus Bergmann (1989), identifiquei os pressupostos, condições e metas da aprendizagem, os métodos e a possibilidade de estruturação dos conteúdos e as técnicas e materiais de ensino e as várias possibilidades da representação da História, seja no ensino ou nos ambientes fora da escola. A seguir, tracei os contornos dos dados e comparei os resultados. Após organizar os esquemas de percepção e a concepção de ensino das diferentes coleções recomendadas pelo PNLD-2008 na área de História optei por duas tópicas. A primeira diz respeito ao inventário do instrumental metódico e teórico da História, dos critérios para seleção dos conteúdos e das orientações e atitudes assumidas por tais obras. A segunda cinge-se ao cotejo das rotinas de trabalho sugeridas e que se solicita realizar. Principalmente, discuti o Manual do Professor como peça de prescrição de certezas metodológicas e controle técnico da prática de ensino. Repeti esse procedimento ao analisar as Propostas Curriculares publicadas entre 2006 e 2008 pelas secretarias deeducação do governo de São Paulo e da Prefeitura da capital. Assim, a partir do material que designa as propostas para o ensino de história nas séries finais do ensino fundamental, examinei esse material no encalço das estratégias e atividades que sistematizam. Debrucei-me sobre os referenciais curriculares e as expectativas de aprendizagem tendo em vista as suas relações com as recentes iniciativas de gratificação, promoção e contratação de professores na cidade e no Estado de São Paulo. Minha principal preocupação foi mostrar que hoje medidas de ordem administrativa seguem às orientações curriculares e prescrições acerca da intervenção e mediação do professorado objetivando garantir o êxito das propostas por meio da política de remuneração e dos critérios de arregimentação de novos professores. A compreensão de toda a série de manuais e orientações também envolveu a análise do Edital de convocação para inscrição no processo de avaliação e seleção de obras didáticas a serem incluídas no Guia de Livros Didáticos para os anos finais do 10 ensino fundamental, o Guia de Livros Didáticos PNLD 2008 - História, as Matrizes de referência para a avaliação, Ciências Humanas; Geografia e História; ensino fundamental e médio e a Resolução SEESP-80. Assim, tanto quanto o estudo da reorientação curricular, a abordagem dos manuais de uso dos livros didáticos de História procurou articular as recomendações de procedimentos às diretrizes governamentais que a regulamentam. Ao fundo desse esforço, as preocupações com os discursos para o professor de História completam a análise das representações sobre a docência dessa disciplina na escola. A partir das considerações de Bakhtin a respeito das condições de diálogo que também o ato de fala impresso cria entre o autor, seus pares e o leitor, procurei entender os vínculos concretos da comunicação verbal com a situação, o lugar de trabalho dos professores. Nessa tarefa, os estudos de José Luís Fiorin (2008a; 2008b), John Austin (1990; 1993), John Searle (1981; 1995), Greimas (1973) e Marilena Chauí (1989) foram auxílios significativos. A observação das categorias da enunciação na análise, a atenção à força elocutória dos atos de fala e a noção de discurso competente resultaram dessa opção por autores que estudaram as palavras como ações em um contexto político, social e intelectual. Sob esse ponto de vista, a investigação inventariou os modos de enunciação em termos das suas estratégias para conferir crença e crédito às formas institucionalizadas através das quais “representantes” encarnam uma autoridade competente. Sobretudo assim, ocupou-se das configurações graças às quais a prática do ensino de história é percebida. Os objetivos alcançados Conforme se esperava, a análise dos discursos de intelectuais, autoridades e autores de livros didáticos acerca do ensino de História percebe nos subsídios para o docente, práticas de controle doutrinário do trabalho educativo que ainda permanecem pouco conhecidas. Primeiramente, as operações de recorte e classificação que produzem as configurações graças às quais a realidade do ensino é representada e apresentada aos professores constituem os instrumentos de dominação simbólica mais usuais na série de publicações aqui estudadas. Envolvem os modos e as modalidades da enunciação do 11 que é requerido fazer, os protocolos considerados pertinentes para satisfazer as exigências da disciplina e a eficácia em fazê-los reconhecer como necessários. Nesse sentido, a prescrição, o uso dos modos imperativos do verbo ou o desejo de legitimar uma prática pela escrita sugerem a superioridade intrínseca do que pode ser regulado com antecedência sobre as providências decididas no momento da ação. Depois, o lugar e as circunstâncias em que esse discurso é instituído e pode ser proferido afirmam a competência daqueles a quem a burocracia ou organização reconhece como tendo o direito de falar e a autoridade sobre o saber-fazer. A noção de competência em que Marilena Chauí (1989) e Claude Lefort (1983) apoiam suas análises sobre o discurso e o saber especializado permite discutir os manuais de uso dos livros didáticos e os referenciais curriculares como um artifício mediador do conhecimento por meio do qual se procura submeter o professor à linguagem do especialista. Assim, os autores de livros didáticos e os responsáveis pela organização dos referenciais curriculares instauram o pensamento e se exprimem em discursos considerados verdadeiros no interior da disciplina. Seus currículos, as instituições em nome das quais atuam e o modo como se servem das regras, das definições e técnicas do ofício garantem tratar-se de um especialista. Segue que fazer reconhecer, exibir o que seria próprio da maneira de ensinar a História, implica explorar de maneira privilegiada os modos e as modalidades, os meios e os procedimentos pelos quais se pode dirigir ao docente para dizer-lhe a verdade sobre seu ofício. Conforme pensava Foucault (1996), o ato de escrever tal como está hoje institucionalizado no livro, no sistema de edição e no personagem do escritor coage pelo caráter intransitivo que o escritor empresta ao seu discurso, pelo regime de divulgação dos editores e pelas formas de apropriação que o livro encerra. O texto, como atualmente as videoconferências, os sítios eletrônicos e o cd-rom, envolve a autoridade daquele que escreve ou fala ao aparelho formal da enunciação. Invariavelmente, a produção dos referenciais curriculares e dos manuais de uso do livro didático confia aos teóricos a produção do conhecimento e aos que atuam na prática a tarefa de ser eficazes e, portanto, tem sido um meio importante de consagrar a oposição teoria-prática. A despeito de articular a oferta pedagógica de um autor e a oferta comercial de um editor (CHARTIER, 2007, p. 70) ou de investir de autoridade os grupos e indivíduos que “vendem” suas soluções no mercado político ou acadêmico (BALL, 1998) os referenciais e os manuais encerram escolhas compatíveis com a percepção que os especialistas têm das dinâmicas de aprendizagem. 12 Também a utilização de pequenas fórmulas correntes, sejam slogans (cf. SCHEFFLER, 1974) ou jargões, é um meio de reiterar regras. Os estereótipos no discurso para e sobre professores indicam o que há de habitual no ofício, as formas relativamente regularizadas de exercer a docência, reforçadas pelo uso e pelas circunstâncias. Segundo Barthes (2002, p. 52), trata-se de palavras repetidas como se fosse natural, sem entusiasmo: “a via atual da verdade, o traço palpável que faz transitar o ornamento inventado para a forma canonical, coercitiva, do significado”. Dessa perspectiva, a proclamação insistente da autonomia do professor, da interdisciplinaridade e do ensino voltado ao interesse do aluno e para a formação de cidadãos torna-os evidentes por si. A manobra tem servido para solidificar slogans e fórmulas correntes de pensar o ensino e espessá-los ao longo do discurso, ignorando sua própria insistência, pretendendo a consistência (BARTHES, 2002, p.53). Enfim, associar o salário dos professores a seu desempenho em termos de resultados de concurso sobre a proposta curricular ou segundo os resultados dos exames dos seus alunos fornece o incentivo legal para as escolas seguirem esses referenciais. Programas do tipo “Qualidade da Escola” e “+ Qualidade na Escola” fazem da promoção e da gratificação um meio de implantar a orientação curricular que as autoridades políticas desejam. Esses programas dispõem de medidas para fazer do currículo o instrumento de uma autêntica política de pessoal. De um modo geral, as políticas sobrea escola referentes à mudança, aos currículos e à avaliação sustentam toda uma legislação que premia a docilidade e obediência quanto à realização da proposta, desencorajando a inventividade e criatividade. A atual reorientação curricular do Estado de São Paulo faz da espécie de prestação de contas que são os processos avaliativos para promoção, gratificação e admissão uma estratégia de controle da ação educativa e liberdade do professor. Outro tipo de objetivo foi alcançado com a organização do Programa de Estudo e Ensino das Ciências Sociais na Universidade. O levantamento dos manuais do professor e análise das propostas curriculares do Estado de São Paulo e da prefeitura da capital envolveu a constituição de um grupo de pesquisa interessado no estudo e ensino da História, mas também da Geografia, da Filosofia e da Sociologia. De funcionamento ainda incipiente, as atividades do PROEECS consistem em organizar um acervo de fontes sobre o ensino de História, orientar a iniciação científica e os trabalhos de conclusão de curso interessados no estudo da metodologia e prática do ensino das ciências humanas e sociais aplicadas e, assim, consolidar uma linha de pesquisa sobre a 13 Metodologia do Ensino de História para o curso de Pedagogia da Universidade de São Caetano. O PROEECS funciona em espaço próprio na Universidade e contou com aparelhamento financiado por este projeto. Possui equipamento para digitalização e acondicionamento das fontes utilizadas para os trabalhos que vem desenvolvendo e uma importante bibliografia sobre a História e o seu ensino. É o espaço de reunião e sede de um grupo de alunos que pesquisam as questões de ensino das ciências sociais nas séries iniciais do ensino fundamental. Desde 2009 mantém parceria com a E. E. Visconde de Taunay para recuperação e organização do seu acervo documental, desenvolvendo também atividades com seus professores e alunos. Quanto ao acervo de fontes do próprio PROEECS, ele está constituído por 15 das 19 coleções de livros didáticos recomendadas pelo PNLD-2008 de História e com arquivos digitalizados das propostas de reorientação curricular do Governo do Estado e da Prefeitura da cidade de São Paulo. Há um espaço reservado para a organização de uma hemeroteca interessada em reunir material sobre prática de ensino, políticas públicas de educação e gestão escolar. Foram dois os trabalhos de iniciação científica orientados nesse Programa sobre o ensino de História. Monique de Lima concluiu o Projeto de Pesquisa “As Representações acerca da Docência nos Manuais do Professor das Coleções Didáticas de História”. Vinculado a esta pesquisa, esse projeto de Iniciação Científica procedeu ao levantamento dos manuais do professor que foi posto em circulação nas escolas paulistas do ciclo II do ensino fundamental no PNLD de 2008 na área de História. Sua contribuição para o desenvolvimento desta pesquisa foi o construção de um quadro compreensivo dos discursos dirigidos aos docentes de história nas coleções de História Temática recomendadas pelo PNLD-2008. Barbara Francischini está auxiliando nesta compreensão ao continuar o trabalho de Monique de Lima, tendo como objeto de suas atenções a análise dos Manuais do professor das coleções de História Intercalada recomendadas pelo PNLD-2008. Essas iniciativas têm feito que as preocupações a respeito do Ensino e da Teoria do Ensino de História se consolidem como uma linha de pesquisa para os alunos interessados no estudo da História principalmente. Em muitos sentidos, o PROEECS está atrelado às disciplinas Fundamentos e Conteúdos do Ensino de História e Geografia e Metodologia e Prática do Ensino de História e Geografia das quais sou professor e, portanto, além de acolher alunos de iniciação dispostos a estudar questões 14 relativas ao ensino da História e da Geografia, prepara os monitores para essas disciplinas. Perspectivas do Estudo À perspectiva de estudo que esta pesquisa pretendeu desenvolver não importou aprofundar a discussão da série de prioridades e hipóteses que estão no centro dos debates sobre as finalidades do ensino de História na escola atualmente. A sua principal tarefa foi compreender os dispositivos de controle doutrinário do professor que constituem os recentes referenciais propostos para se lecionar História. Por essa razão, o esforço de compreensão se concentrou nas representações elaboradas sobre os métodos de ensino de História nos manuais de uso dos livros didáticos recomendados pelo PNLD da área e nos referenciais curriculares do Estado de São Paulo e da Prefeitura da capital. Mais que das matrizes das práticas construtoras da docência em História a abordagem trata das indicações metodológicas acerca do ensino nessa área, das práticas de sala de aula recomendadas e da demanda da sociedade sobre o trabalho docente na área de História. Os resultados desse empreendimento estão organizados em duas partes. A primeira, dividida em três capítulos, teve o intuito de fazer do Manual do Professor uma pista para a investigação sobre o como se pensa a prática do ensino de história. Fundamentalmente, enfatiza que esse tipo de texto trata das estratégias de organização e método do ensino da matéria. Isso não significou dizer que ele efetivamente organiza e institui uma metodologia de ensino, mas sim que é parte das condições de sua emergência, inserção e funcionamento. Na segunda parte, separada em dois capítulos, debrucei-me sobre os esquemas de percepção atualmente formalizados nas propostas de reorientação curricular de São Paulo sobre o ensino de História. Com o intuito de compreender suas práticas e objetivos, a abordagem discute os regimes de legibilidade e intencionalidade dos enunciados organizados no interior das secretarias de educação do governo do Estado de São Paulo e da Prefeitura da capital, os processos que os produziram e as suas estratégias discursivas. Conforme adverte Goodson (1995, p. 27), se os especialistas em currículo, os historiadores e sociólogos da educação ignoram, em substância, a história e a construção 15 social do currículo, mais fáceis se tornam a mistificação e a reprodução das formas tradicionais de currículo. Talvez nesse sentido, o foco nas representações que especialistas e autoridades políticas fazem das práticas dos professores e dos processos que as constituem possa contribuir com uma perspectiva de análise. 16 PARTE I Os Manuais do Professor dos Livros Didáticos de História para as séries finais do Ensino Fundamental 17 Atualmente, os editais de seleção de obras a serem incluídas nos Guias do Plano Nacional do Livro Didático têm considerado que o livro didático “deve contribuir para que o professor organize sua prática, encontre sugestões de aprofundamento e proposições metodológicas coerentes com as concepções pedagógicas que postula e com o projeto político pedagógico desenvolvido pela escola” (BRASIL. MEC, 2005, p. 30). Nesse âmbito de preocupações, o Manual do Professor é um dos dispositivos avaliados nos livros didáticos inscritos nos Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 1999, 2002, 2005 e 2008. De acordo com o Guia de Livros Didáticos PNLD 2008, o Manual do Professor “precisa ser considerado um instrumento pedagógico auxiliar da prática docente”. Há mesmo quem entenda que o Manual do Professor seja um elemento da formação continuada dos professores (LUCA; BEZERRA, 2006, p. 37; BATISTA, 2001). O próprio edital de seleção dos livros didáticos para asséries finais do ensino fundamental do ano de 2008 assume esse propósito do Manual do Professor. Orienta sobre a necessidade da coleção didática oferecer “discussão sobre a proposta de avaliação da aprendizagem, leituras e informações adicionais ao livro do aluno, bibliografia, bem como sugestões de leituras que contribuam para a formação e atualização do professor” (BRASIL. MEC, 2005, p. 2). Desde a última década do século passado, o Ministério da Educação (MEC), por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), tem se valido da avaliação, seleção e distribuição dos livros didáticos para apurar os subsídios ao professor. Sobre o significado e o alcance dessa política, Miranda e Luca (2004, p. 127) consideram que o processo de aperfeiçoamento dos critérios e procedimentos de avaliação “teve efeitos incontestáveis na forma e no conteúdo do livro didático brasileiro”. Segundo as autoras, os indesejados efeitos financeiros trazidos pela não 18 inclusão de uma obra no Guia publicado pelo MEC fez com que autores e editores adotassem cuidados evidentes em relação aos critérios de exclusão de uma coleção didática (cf. LUCA; MIRANDA, 2004, p. 127). Assim, a insistência de sucessivos editais e Guias em rejeitar obras com erros de informação, conceituais ou desatualizações graves, com preconceitos de condição econômico-social, gênero ou etnia ou com qualquer forma de proselitismo religioso ou político parece de fato ter qualificado a oferta de livros didáticos1. Ocorre que, nesse âmbito, a intrincada relação entre políticas públicas, políticas privadas e avaliação não se restringe à normalização e gerenciamento do processo de decisão sobre a definição das políticas de produção do livro didático. A abordagem das relações entre produção e consumo de livros didáticos, das características formais e dos conteúdos pedagógicos desses livros e suas histórias, linguagens e matizes ideológicas, culturais e editoriais são aspectos fundamentais que de há algum tempo os estudos sobre os usos e significados desse tipo de literatura têm considerado2. Embora o acumulado das análises já tenha avançado importantes questões de pesquisa e compreendido o livro didático como um produto cultural dotado de grande complexidade, ainda é pouco o que se tem escrito sobre os manuais do professor que lhe acompanham. A abordagem e caracterização do chamado livro do professor, que anexo ao livro do aluno traz o Manual do Professor, é hoje principalmente feita pelos avaliadores do PNLD. Trata-se de um critério de julgamento e qualificação da coleção didática. Como parte dos quesitos que o edital de seleção das obras didáticas considera obrigatórios, a avaliação do Manual do Professor está prevista no processo de aquisição de livros pelo PNLD desde há duas décadas. Não obstante seu caráter de resenha, os Guias dos livros didáticos do PNLD publicados pelo FNDE constituem um primeiro referencial de análise desse instrumento de auxílio da prática docente. Um levantamento do que foi feito nesse campo de preocupação pouco avança além dos próprios Guias3. 1 Conforme, entre outros, Luca e Miranda (2004, p. 128) argumentam, “o fato de uma obra não estar presente no Guia publicado pelo MEC traz efeitos financeiros indesejáveis que, em alguns casos, culminam no desaparecimento de editoras e/ ou em fusões de grupos editoriais”. Nesse sentido, as autoras têm muita razão ao concluir que “a instituição de uma cultura avaliativa, num contexto político democrático, acabou por desencadear poderosos mecanismos de reajustamento e adaptação no mercado editorial”. 2 Entre os estudos internacionais sobre o livro didático destacam-se como referências de trabalho Apple (1995) Chopin (1980) e Gimeno Sacristán (s/data). Nessa área, a produção nacional é profícua de análises. Sobretudo aqui, Bittencourt (1993, 2008); Munakata (1997); Gatti Jr. (2004) e Luca (2004; 2006) serviram de fundamentação do pesquisa. 3 Há, entretanto, membros das comissões de avaliação do Programa Nacional do Livro Didático que começam a publicar suas reflexões sobre esse processo e, assim, têm subsidiado a compreensão do perfil 19 Isso mostra, no mínimo, que a compreensão do Manual do Professor como dispositivo de auxílio da prática docente e instrumento de formação e atualização do professor não conta com o amplo conjunto de perspectivas de análise já abertas pelos estudos sobre o livro do aluno. Entretanto, as relações entre produção e consumo, a história, a linguagem e as matizes e clivagens da edição, dos conteúdos e das ideologias também são questões pertinentes à discussão da forma, do referencial teórico e do conteúdo pedagógico do livro do professor. Ocorre que há questões específicas de análise. O Manual do Professor traz representações da prática de ensino. Com freqüência, os discursos que prescrevem, criticam ou excluem, exortando a “boa” prática, tem por origem tanto uma concepção das práticas ilegítimas quanto um referente dos bons métodos, dos bons gestos, das boas leituras. Ele se articula com as demandas previstas nos editais do PNLD, com as trajetórias profissionais de seus autores e com as estratégias editoriais de publicação dos livros didáticos no país. Desse modo, os manuais do professor correspondem à fidelidade sempre regulada das opções autorais e são comandados pelo projeto que conduz a coleção. Nesses textos, o ensino e as demais ações docentes aparecem como representação. As prescrições do livro do professor situam-se a meio caminho dos modelos de ensino consagrados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais ou propugnados pela pedagogia. Elas partilham as questões e as expectativas das utilizações metodológicas organizando-se, portanto, a partir das representações sobre os gestos do ensino. Da análise dessas especificidades pode-se extrair elementos que esclareçam parte do conjunto dos discursos sobre as práticas educativas, acerca das prioridades didáticas dos atuais métodos de ensino e a respeito do próprio magistério. Esta atenção às propriedades do Manual do Professor publicado junto ao exemplar do professor dos livros didáticos parece-me, sobretudo, útil para o entendimento das representações que se faz do (bom) método educativo. É essa a razão desta primeira parte da pesquisa investigar as práticas de ensino prescritas pelos manuais do professor dos livros didáticos de história indicados pelo PNLD 2008. A preocupação com a forma como os atuais livros do professor propõem a realização do ensino de história adverte sobre os artifícios mediadores e promotores de conhecimento que constrangem a prática da docência à linguagem de um especialista. A variedade dos estudos dos meios utilizados para a difusão das idéias já mostrou que a compreensão das coleções didáticas recomendadas. Esse é o caso dos estudos de Luca (2004; 2006) e de Oliveira (2009). 20 das instituições e formas pelas quais as idéias, as informações e as atitudes são transmitidas e recebidas é condição para interrogar os modos de reconhecimento e veracidade de qualquer série discursiva4. Conforme Roger Chartier (1991, p. 187) vem propondo em sucessivos estudos nessa área, uma análise desse tipo deve considerar “os discursos em seus próprios dispositivos, suas articulações retóricas ou narrativas, suas estratégias de persuasão ou de demonstração”. Ainda nos termos da proposta de Chartier (1991, p. 187), “os agenciamentos discursivos e as categorias que os fundam não se reduzem absolutamenteàs idéias que enunciam ou aos temas que contenham”. A lógica própria aos agenciamentos discursivos que os manuais do professor operam não só me pareceu suscetível de análise, foi um meio de pensar algo dos esquemas de percepção sobre o ensino de história formalizados pelos livros didáticos. Assim, pretendi aqui abordar os enunciados que esses textos dirigem ao professor. O objetivo inicial desta pesquisa é discutir os regimes de legibilidade e intencionalidade destes enunciados, os processos que os produziram e as suas estratégias discursivas. A idéia de compreender os manuais do professor por eles mesmos, neles mesmos, e não pelo que eles querem dizer retoma a proposta de análise dos impressos de Chartier naquilo que ela mais se aproxima das considerações de Foucault. Vistos por ambos os autores como atos, uma prática particular, os discursos não se definem como um instrumento transparente para se atingir a consciência do sujeito. Ao contrário, Foucault e Chartier (2002, p.119-120) insistiram que “os recursos que os discursos podem pôr em ação, os lugares de seu exercício, as regras que os limitam são histórica e socialmente diferenciados”. Advertido disso, resolvi levantar esses problemas de interpretação na análise dos manuais do professor recomendados pelo PNLD 2008. O intuito de fazer desse tipo de texto uma pista para a investigação sobre o como se pensa a prática do ensino de história fundamentalmente resultou da constatação de que as operações de sentido sobre o mundo social não podem ser dissociadas das condições e dos meios materiais que lhes fazem circular. Desse modo, primeiro procurei tipificar o Manual do Professor como objeto de pesquisa. As preocupações iniciais da abordagem têm a ver com a descrição desse tipo de impresso e a compreensão das relações que estabelece com os leitores. Trata-se de 4 Fundamentalmente, as referências utilizadas aqui para interrogar as séries discursivas organizadas nos manuais do professor que acompanham os livros didáticos recomendados pelo PNLD-História de 2008 seguem, de um lado, as perspectivas abertas pelos estudos históricos de Roger Chartier (1990; 1991; 2002), Michel Foucault (2008) e Michel de Certeau (1994) e, por outro, as ideias de Mikhail Bakhtin (1992; 2006), John Searle (1981; 1995) e José Fiorin (2008a; 2008b) sobre a análise da linguagem. 21 discernir, na materialidade dos manuais do professor que acompanham as coleções didáticas recomendadas pelo PNLD-2008, as marcas de sua produção, circulação e uso. Por um lado, o foco na relação entre as concepções pedagógicas e estratégias editoriais e o discurso normativo permitiu refletir sobre algumas das regras que regem o uso que o Programa Nacional do Livro Didático faz do Manual do Professor. Por outro, o estudo dos esquemas de percepção e de apreciação do magistério nesse material pretende identificar algo das maneiras pelas quais as obras didáticas articulam competências, normas, usos e performances num discurso para professores. Segue-se a isso um esforço de compreensão dos dispositivos por meio dos quais o livro do professor consolida uma dada representação (CHARTIER, 1991, p. 184) do ensino e do professor de História que tem início com o estudo da História na reflexão didática consumada na série de manuais analisados e se conclui numa abordagem dos enunciados então produzidos para orientar a prática docente. O segundo capítulo se propõe a realizar o inventário do instrumental metódico e teórico do ensino de história e das rotinas de trabalho prescritas nos manuais do professor. Com o levantamento dos principais tipos de referências metodológicas e de atividades e das técnicas para condução da aprendizagem que então foi realizado, a análise focou o conjunto de práticas que se define através dos modos de percepção e de apreciação constitutivos do que se entende ser o trabalho do professor de história. No terceiro capítulo, os manuais do professor são examinados no plano discursivo. O estudo do gênero desses textos e dos seus procedimentos composicionais, dos rastros do processo que os produziu e dos expedientes que visam fazer reconhecer uma maneira própria de lecionar adverte sobre as intrincadas operações de recorte e de classificação graças às quais uma realidade é percebida, construída, representada (cf. CHARTIER, 2002, p. 169). Sobretudo, as formas de que se valem os manuais do professor para expressar obrigações, finalidades e uma certa qualificação de alunos e professores constituem mecanismos de produção de sentido que então procurei demonstrar. O motivo de se realizar essa investigação é enfatizar que o Manual do Professor trata das estratégias de organização e método do ensino da matéria. Isso não significa dizer que ele efetivamente organiza e institui uma metodologia de ensino, mas que é parte das condições de sua emergência, inserção e funcionamento. O estudo dos manuais do professor que acompanham os livros didáticos de História pode apenas compreender uma modalidade das afirmações acerca do ensino dessa disciplina e não todo o seu conteúdo. No entanto, tem-se a matéria de apropriação nos fazeres cotidianos 22 da escola como objetos da pesquisa. E, assim, como bem notou Dominique Borne (1998, p. 136), um referente de uma prática que é indispensável para o exercício da docência e que ocupa uma parte importante do tempo escolar. 23 CAPÍTULO 01 Os Manuais do Professor como fonte de pesquisa Parte suplementar que acompanha o exemplar do professor do livro didático, o Manual do Professor oferece orientação teórico-metodológica específica ao docente para a utilização da obra na sala de aula. Trata-se de uma exigência do edital de inscrição no processo de avaliação para o PNLD, que reconhece nesse tipo de texto um recurso para o esclarecimento das propostas do livro didático. Nesse sentido, o Manual do Professor não é somente um aspecto da edição. Sobretudo, atende as prescrições do poder público quanto à acepção e organização dos dispositivos dos textos que lhe devem caracterizar. Indissociáveis uma da outra, as dimensões editorial e política desses manuais suscitam questões que, já bastante exploradas por estudos sobre os livros do aluno, enredam o texto, o livro e as suas estratégias simbólicas. As análises de Alain Choppin (2000) sobre os aspectos formais dos manuais didáticos, de Anne-Marie Chartier (2007) a respeito dos papéis prescritivos que os textos oficiais e o cotidiano da profissão docente exercem nesse âmbito e de Michael Apple (1995) acerca dos efeitos do atual estágio do consumo de material didático pelas escolas têm indicado caminhos fecundos de pesquisa. No que se refere aos livros didáticos de história do aluno, Bittencourt (1993), Munakata (1997) e Gatti Jr. (1998) já publicaram estudos bem sucedidos nesses âmbitos de análise. As perspectivas então abertas à abordagem dos aspectos formais, dos conteúdos e pedagogias e das políticas de aquisição, edição e distribuição desse tipo de obra mostram que há dispositivos textuais de produção e apresentação do conhecimento indissociáveis da forma como o livro circula e das práticas que ele enseja. 24 Algumas novas pesquisas têm reivindicado outras possibilidades de investigação. A recepção e o uso dos livros didáticos em sala de aula é atualmente bastante explorada. Matela (1994), Costa (1997), Araújo (2001), Cassiano (2003) e Bittencourt (2004) avaliam que as interferências de professores e alunos fazem parte da compreensão do livro didático. Principalmente, nessas pesquisaspergunta-se sobre como seu público-alvo utiliza os conteúdos, os instrumentos de aprendizagem, a ideologia e os valores neles contidos (cf. BITTENCOURT, 2004, p. 302). Os resultados acumulados por esses estudos permitem ter uma compreensão já bastante assentada a respeito dos processos de produção do livro didático de história e dos conhecimentos que ele veicula. Conforme o levantamento de Kênia Hilda Moreira (2006), existem análises sobre o discurso veiculado pelo livro didático, seus conteúdos expressos e os meios de sua edição, cujas principais conclusões testemunham a profusão de usos e problemáticas suscitados desse recurso de ensino. Principalmente as investigações acerca das práticas e dos significados que se operam a partir do uso do livro didático de história permitem interrogar a substância e o conteúdo da história ensinada. Seus resultados de pesquisa mostram-se úteis ao chamar a atenção para o fato da história local, do cotidiano e de outras populações que não as européias ganharem importância na crítica de uma disciplina escolar ainda em grande parte dominada pelo modelo histórico eurocêntrico, economicista e voltado para a formação do Estado- nação. Embora todas essas prevenções também sejam pertinentes para uma abordagem dos métodos de aprendizagem da disciplina que os livros didáticos incluem, as questões que os manuais do professor melhor possibilitam propor são outras. Dirigido ao docente, esse tipo de texto têm a finalidade de expor a concepção de aprendizagem que o livro do aluno contém. De onde, a ênfase dada às abordagens metodológicas, às instruções operacionais, aos meios e materiais do ensino de história que organizam representações, categorias intelectuais e formas retóricas em orientações de trabalho. Os manuais do professor não são apenas marcados por um protocolo de leitura, eles testemunham também a presença de uma importante discussão didática sobre o ensino de história, que visa teorizar as modalidades de aprendizagem, preconiza o trabalho com fontes e propõe uma nova cultura da participação. Assim, o Manual do Professor atualmente não é apenas uma referência pedagógica para o ensino, principalmente designa o lugar de um discurso sobre a prática do ensino. Nesse âmbito, parece razoável interrogar sua força ilocutória, as estratégias 25 que propõe e a ordem de representações que instaura, seja para discutir as escolhas de seus autores ou para inventariar as demandas dirigidas ao professor de história ultimamente. Mais que as opções didáticas e metodológicas expressas no Manual do Professor dos livros didáticos de história, as justificativas das quais se vale indicam as modalidades de aprendizagem, os recursos e a maneira de ensinar a matéria já socialmente compartilhada, considerada legítima. Trata-se de pistas para se compreender algo das relações que o Manual do Professor mantém com as práticas de aula. De circulação pouco vista fora dos percursos da sua distribuição nas escolas, os manuais respondem à idéia de que é necessário por em ação instrumentos que possam contribuir para a contínua atualização do professor. Nesses termos, atentar para os discursos que o Manual do Professor veicula me pareceu ser um recurso para pensar os atuais processos de construção da didática da história. No que se segue, a preocupação com as representações que esse tipo de publicação faz do ensino de história e da prática docente resultou num estudo dos dispositivos do seu agenciamento discursivo e de algumas das categorias que os fundam. Sobretudo porque os manuais do professor fornecem indícios sobre as práticas educativas que eles próprios prescrevem, achei que seria uma boa idéia abordar os modelos de ensino e aprendizagem da história a partir dos procedimentos recomendados nesse tipo de publicação. Por essa razão, em vez de interrogar os docentes sobre as suas práticas e as pressões a que são submetidos em sua vida profissional, importou-me analisar as estratégias de que esses manuais são o produto. Contra as formulações abruptas provenientes dos levantamentos estatísticos ou do inventário das aparelhagens mentais, o esforço de pesquisa seguiu outro caminho. Parti da análise do Manual do Professor dos livros didáticos de História recomendados no Guia do PNLD-2008 para identificar “com o quê” e “como” ele pretende instrumentalizar o professor para ensinar a matéria. Trata-se de dimensionar os discursos que põem em ação e as regras que limitam a sua produção. Assim, debrucei- me sobre as marcas dos usos prescritos e dos destinatários visados nesse tipo de impresso com vistas a apurar que práticas fomentam, quais denunciam e como interpelam o docente de história. Essa abordagem favorece a obtenção de indícios sobre os métodos pedagógicos usuais, sobre critérios de seleção de conteúdos, sobre os pressupostos teóricos que orientam as iniciativas de ensino e sobre as políticas de formação continuada de professores. No entanto, os resultados desse procedimento não deixam de ter limites e restrições. Por meio da atenção ao instituído pela escrita 26 consegue-se muito pouco sobre os usos que são feitos do Manual do Professor. Vem de Certeau (1994, p. 94) a advertência de que “diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta se posta uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como ‘consumo’, que tem como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas piratarias, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos". Portanto, não convém perder de vista que as pessoas adaptam o sistema de objetos e de significados às próprias necessidades. Por outro lado, antes de investigar os usos feitos pelo magistério do Manual do Professor penso que cumpre entender melhor esse tipo de material que lhe chega às mãos. Uma tipificação Quando em 1996 determinou-se que a aquisição de obras didáticas com verbas públicas para distribuição em território nacional estaria sujeita à inscrição e avaliação prévias, segundo regras estipuladas em edital próprio (MIRANDA; LUCA, 2004, p. 127), o setor editorial brasileiro estabeleceu fortes dependências em relação aos critérios de avaliação estipulados por meio do PNLD. Conforme os mecanismos que Miranda e Luca (2004) explicitam ao analisar os processos de avaliação dos livros de história destinados ao segmento de 5ª a 8ª série de 1999, 2002 e 2005, “o fato de uma obra não estar presente no Guia publicado pelo MEC traz efeitos financeiros indesejáveis que, em alguns casos, culminaram no desaparecimento de editoras e/ou em fusões de grupos editoriais”. Assim, não só os princípios gerais da área e os critérios eliminatórios publicados pelo Edital ditam as condições e as especificações para inscrição no processo de avaliação e seleção das coleções didáticas, como também indicam os critérios de qualificação da coleção e os objetivos da área no ensino fundamental. Entre todos esses ditames, há indicações específicas para a produção dos manuais do professor que, desse modo, importam destacar. Desde a implantação do atual sistema de avaliação das coleções didáticas pelo MEC/FNDE em 1999 é vedado que o exemplar do professor seja uma cópia do livro do aluno com exercícios resolvidos. No Edital do PNLD 2008 a exigência é que ele 27 “ofereça orientação teórico-metodológica e de articulação dos conteúdos do livro entre si e com outras áreas do conhecimento; ofereça, também, discussão sobre a proposta de avaliação da aprendizagem,leituras e informações adicionais ao livro do aluno, bibliografia, bem como sugestões de leitura que contribua para a formação e atualização do professor”. Insiste-se ainda que as orientações ao professor tenham coerência com a apresentação dos conteúdos e com as atividades propostas no livro do aluno. A concepção de meio de atualização e de auxiliar do uso do livro didático na sala de aula que aparece no edital tipifica o Manual do Professor como instrumento complementar do trabalho docente. Igualmente, o Guia de Livros Didáticos PNLD 2008: História concebe e avalia o Manual do Professor como um impresso de orientação e apoio ao magistério. A avaliação que traz publicada sob a forma de resenha dos livros então recomendados inclui comentários circunstanciados sobre o Manual do Professor de cada coleção. Em seu conjunto, mais que instituir os fundamentos e os objetivos desse impresso, o Guia qualifica os tipos de manuais e as discussões que sustentam. Trata-se da análise das 19 coleções recomendadas, agrupadas em quatro blocos, segundo a organização dos conteúdos: organização temática (a proposta da coleção é organizada por temas) Código Série Editora Autores Ano páginas Unidades 012 Série Link do tempo: história Escala Educacional Denise Mattos Marino Léo Stampacchio 154 4 módulos 061 História por eixos temáticos Editora FTD Antônio Pedro Lizânias de Souza Lima 2006 270 8 eixos 104 História temática Scipione Andréa R. Dias Montellato Conceição Aparecida Cabrini Roberto Catelli Jr. 238 4 eixos 105 Historiar – fazendo, contando e narrando a história Scipione Dora Schmidt 222 2 a 4 cap. organização integrada (História do Brasil, da América e Geral, seguindo ou não a ordem do estabelecimento das sociedades. Para a integração destas histórias, é imprescindível que se estabeleçam relações contextualizadas entre os conteúdos tratados, considerando a simultaneidade dos acontecimentos no tempo e no espaço) Código Série Editora Autores Ano páginas Unidades 013 Por dentro da História Escala Educacional Célia Regina Cerqueira Vicentino Maria Aparecida Cosomano Pedro Santiago 280 3 a 4 unid. 033 História em projetos Ática Andréa Paula Carla Miucci Ferraresi Conceição de Oliveira 2006 272 3 a 5 unid. 075 Projeto Araribá – História Moderna Editora Moderna 238 8 unidades 076 História: das cavernas ao terceiro milênio Moderna Myrian Becho Mota Patrícia Ramos Braick 298 4 unidades 088 Diálogos com a história Positivo Kátia Corrêia Peixoto Alves Regina Gomido Belisário 2006 220 4 unidades 140 Navegando pela história Quinteto Editorial Maria Luiza Vaz Silvia Panazzo 186 4 a 5 unid. 151 História: conceitos e procedimentos Saraiva Eliete Toledo Ricardo Dreguer 172 4 unidades 28 organização intercalada (ordena a história do brasil e da América junto com a Geral, normalmente em ordem cronológica crescente, mas os conteúdos não são relacionados entre estas histórias, apenas os assuntos são alternados nos espaços em que ocorreram, conforme a seqüência temporal) Código Série Editora Autores Ano Pág. Unidades 029 História e vida integrada Ática Claudino Piletti Nelson Piletti 242 21 a 24 cap. 032 História Hoje Ática Oldimar Pontes Cardoso 290 23 a 24 cap. 060 História em documento: imagem e texto FTD Joelza Ester Rodrigue 300 4 a 5 unid. 062 História, sociedade e cidadania FTD Alfredo Boulos Júnior 258 17 a 21 cap. 089 Encontros com a história Positivo Carla Maria Junho Anastasia Vanise Maria Ribeiro 260 3 a 4 unid. 103 Construindo consciências – história Scipione Leonel Itaussu de Almeida Mello 250 18 a 19 cap. 152 Saber e fazer história Saraiva Gilberto Cotrim 200 12 a 17 cap. organização convencional (A organização dos conteúdos é feita a partir da 5ª série em história do Brasil, Colônia e Império, e na 6ª série com a Primeira República até a redemocratização; na 7ª série, começa com História Geral, incluindo Pré História, Antigüidade e medieval, e, na 8ª série, estuda-se Moderna e Contemporânea) Código Série Editora Autores Ano Pág. Unidades 030 Descobrindo a história Ática Sônia Maria Mozer Vera Lúcia Pereira Telles Nunes 2006 288 21 a 32 cap. Como no Edital, no Guia de Livros Didáticos PNLD 2008: História insiste-se que o Manual do Professor precisa ser considerado um instrumento pedagógico auxiliar da prática docente, sugerir leituras e outros recursos para a atualização do professor. No entanto, é mais específico na maneira de fazê-lo indicando que avaliou as informações adicionais ao Livro do Aluno, a forma de orientar a execução das atividades e objetivos propostos e buscou identificar as propostas e discussões sobre avaliação da aprendizagem e sugestões de atividades e de leitura para os alunos. Uma conclusão geral expressada no Guia diz respeito à heterogeneidade dos elementos contemplados pelos manuais do professor das coleções então recomendadas. Bastante diversos entre si, nem sempre os manuais tratam todos os quesitos que a Comissão de Avaliação considerou necessários. Um simples levantamento panorâmico dos aspectos destacados nas considerações publicadas no Guia de Livros Didáticos PNLD 2008: História já mostra o que melhor qualifica o Manual do Professor. Invariavelmente, sugestões de procedimentos, propostas metodológicas, bibliografia atualizada, comentários adicionais de conteúdo e atividade, listas de livros e textos de apoio, orientações no uso de recursos didáticos e considerações sobre a metodologia de ensino quando aparecem são registrados e abordados. Na prática, o Guia constitui o Manual do Professor como o lugar da discussão em torno dos pressupostos históricos da coleção, da organização didática da aula que se propõe, das fontes, escritas, iconográficas ou orais, e da avaliação do processo de ensino e aprendizagem. 29 É possível constatar a irregularidade indicada pelo Guia de Livros Didáticos PNLD 2008: História quanto aos quesitos tratados nos manuais do professor das coleções didáticas na própria definição que os livros didáticos têm desse suplemento. Das 19 séries recomendadas pelo PNLD 2008, nove apresentam uma designação alternativa a de Manual do Professor. Nas coleções que evitam utilizar a expressão “manual”, os títulos dessa parte do exemplar do professor variam sob as fórmulas de Caderno de Orientações Pedagógicas, de Manual Pedagógico, de Livro do Professor, de Orientações ao Professor, de Assessoria Pedagógica, de Guia e Recursos Didáticos, Suplemento do Professor ou de Apoio Didático. Nesses casos, o domínio das ideias de orientação, assessoria, apoio didático e guia demonstra algo das pretensões didáticas da coleção. Em parte, tais ideias observam o propósito de fazer do Manual do Professor mais do que uma formalidade editorial. Por outro lado, afirma-se o valor de meio de atualização e de auxiliar do uso do livro didático na sala de aula que o Edital e o Guia do PNLD-2008 conferem a esse recurso. Também variam de uma coleção para outra os agenciamentos do texto, as suas formas tipográficas e diagramação. Com uma editoração invariavelmente feita em duas cores, as seções que organizam os textos dos manuais do professor das diversas coleções não são sempre as mesmas. A ênfase nos procedimentos didáticos em algumas das coleções, o foco na fundamentação histórica em outras e a insistência com que outra parte dos Manuais sublinha o perfil psicológico da faixa etária e da metodologia a ser desenvolvida para o desenvolvimento do conteúdo de história, confirmam a heterogeneidade das abordagens e dos dispositivos que propõem a leitura das instruções. As orientações para a resoluçãodos exercícios ou atividades propostas no livro do aluno estão em todas as séries. A despeito das diferenças de acento e enfoque, há outros protocolos de leitura que são observados por todas as coleções recomendadas pelo PNLD-2008. De partida são discutidos os pressupostos teóricos da coleção, sua fundamentação metodológica e linha historiográfica. Após, as orientações dos autores tratam dos procedimentos de trabalho propostos na coleção e da organização didática dos conteúdos, dos temas ou da ordem dos capítulos. Por um lado, expõe-se a metodologia de ensino desenvolvida pela coleção, os seus princípios pedagógicos, seu modo de trabalhar e de fazer trabalhar com as fontes e as estratégias explicativa e de investigação adotadas. De outro, ficam explícitas, por meio de considerações gerais sobre os propósitos da edição do livro didático, as questões de estruturação da coleção como objetivos, seqüência e 30 encadeamento das unidades e iconografia. Depois disso, uma proposta de avaliação é apresentada e justificada. Seguem-se seções com sugestões de material didático suplementar, geralmente filmes, músicas e sítios da internet, e de bibliografia complementar de ensino para o professor. Conforme solicitado em Edital, avaliado pelo Guia de Livros Didáticos PNLD 2008: História e assumido por seus autores, o Manual do Professor deve incentivar a autonomia do docente na prática educativa. É visto como um recurso tanto para explicitar a proposta pedagógica e a concepção de história que a coleção comporta quanto para sugerir atividades e procedimentos de avaliação. Tido como instrumento de apoio relevante no exercício do magistério porque coloca em cena a proposta de um trabalho educativo cotidiano, o Manual do Professor, sobretudo, é parte da oferta pedagógica de um autor e da oferta comercial de um editor de livros didáticos (cf. CHARTIER, 2007, p. 70). No entanto, para interrogar o valor de uso desse tipo de impresso talvez seja mais útil ter em conta a forma da escolha e a maneira como se faz a sua distribuição. A regulamentação estabelecida pelo edital e o processo de escolha do professor principalmente suscitam questões acerca das relações que docentes e governo mantêm com as prioridades didáticas dos atuais métodos do ensino de história. Em muitos sentidos, os vínculos entre o poder público e o mercado da edição escolar fazem pensar a conjuntura que age sobre os guias de trabalho dos livros didáticos quando se trata do valor de uso do Manual do Professor, das orientações dos seus autores ou mesmo da divulgação das editoras. Editoras, governo e professores Segundo o entendimento que Anne-Marie Chartier (2007, p. 148-149) tem dos livros didáticos, a sua elaboração é guiada pela combinação de pressões conjunturais e das orientações dos autores. Trata-se da edição de um material escolar que tanto apresenta um conjunto de saberes quanto ordena um repertório de exercícios de acordo com o público visado e as prescrições vigentes para o ensino. Assim, conforme argumenta Chartier (2007, p. 148-149), os autores de manuais não só devem levar em consideração os programas e textos oficiais como também o cotidiano da profissão docente. Essa argumentação acompanha as seguintes linhas. Os manuais didáticos 31 evoluem em função dos programas, mas não somente em decorrência desse fator. “A edição escolar forjou hábitos de trabalho, dispositivos didáticos, expectativas e exigências que os professores colocam em prática”. A conjuntura age tanto em favor das rupturas, como em favor das continuidades. Tanto a chegada de pesquisadores especialistas ao campo da edição escolar e a mudança dos objetivos do ensino fundamental “estão modificando o processo de criação dos livros didáticos” quanto as inquietações com uma eficácia imediata dos métodos de ensino fazem “os editores repetirem as fórmulas já experimentadas, que sabem que funcionam e nas quais os professores confiam”. As orientações dos autores participam do espaço da invenção ou da perpetuação das tradições. “Na criação de um livro didático, estão envolvidos a cultura da pesquisa científica do autor, seus valores pedagógicos e políticos, suas preferências culturais e estéticas, sua experiência com crianças e com a aprendizagem escolar, sua hierarquia das prioridades e urgências, quando se trata de textos para ler ou das escolhas de exercício”. No caso do Manual do Professor, esses aspectos estão ainda mais evidentes pois o autor, em alguma medida, escreve sobre eles. A referência aos PCNs e a historiografia citada nas coleções, as propostas de planejamento do curso, as indicações sobre material didático complementar e o discurso que o autor produz sobre o método empregado permitem abordar as respostas que se costumam dar às prescrições do programa e às pressões da realidade profissional da docência. Ao proporem estratégias de aula, princípios de legitimação dos objetos de estudo, normas de cientificidade e modos de avaliação, os autores dos manuais para professor decodificam os procedimentos metodológicos do ensino. Daí a pertinência de se perguntar como o fazem. Desde o tipo de organização e encaminhamento pedagógico que propõem para o ensino de História até o inventário de meios e recursos do trabalho em sala, o Manual do Professor opera escolhas, guia conteúdos, uma progressão, exercícios e modalidades de avaliação. Por essa razão, pensar os modos de articulação que esse tipo de texto mantém com as práticas sobre as quais orienta não só é uma maneira de considerar o sentido que produzem como também de compreender o “horizonte de expectativa” do público a que se dirige (cf. JAUSS, 1978, p. 21). A combinação de fatores da qual trata Chartier (2007, p. 149) adverte que os modelos de ensino se inscrevem nas formas institucionais da escola e do mercado quando pensados em função dos seus suportes materiais. O recurso às fórmulas já experimentadas, conferindo-se prioridade aquilo que já é clássico em um livro didático, 32 contribui não só para dar feição às antecipações do leitor em relação ao texto, mas para angariar novos públicos ou usos inéditos. Em tese, o docente dispõe do Manual do Professor como um suplemento em formato 205 mm x 275 mm editado em duas cores e cujo argumento invariavelmente compreende os pressupostos teóricos da coleção, a metodologia de ensino então desenvolvida, os objetivos, a seqüência e encadeamento das unidades, uma proposta de avaliação, sugestões de material didático complementar e orientações para a resolução dos exercícios ou atividades propostas no livro do aluno. Na prática, porém, sem se saber o perfil dos professores que utilizam o Manual, ou mesmo se de fato o lêem e usam no preparo das suas aulas, a análise do efeito produzido no ensino da matéria fica restrita a um inventário de possibilidades. Mais uma vez aqui, o acúmulo de pesquisa sobre o livro do aluno deve sinalizar as principais vias de abordagem. Neste terreno de trabalho em que se enredam texto e leitor, várias proposições já foram articuladas de maneira a mostrar os usos que os professores fazem do livro didático. Em comum, há o reconhecimento de que o conhecimento contido nos livros depende da forma pela qual o professor o faz chegar aos alunos. Nas atuais pesquisas sobre livro didático está assentado que ele pressupõe uma leitura que necessita da intermediação do professor. Ao tratar dessa questão, Circe Bittencourt (2004, 316-319) conclui que a utilização do livro didático pelos professores é muito diversa. Não obstante muitas das pesquisas ainda insistirem que toda a ideologia desse tipo de material é incorporada por alunos e professoressem mediação alguma, a autora adverte que a recepção feita pelos usuários é variada, “até porque o público escolar não é constituído por um grupo social homogêneo” (BITTENCOURT, 2004, p. 317). Nesse mesmo âmbito, Luciana Telles de Araújo (2001) mostrou que geralmente as obras didáticas para complementar as explicações dos professores e que um número considerável de professores apenas faz uso dos exercícios e atividades propostas pelo livro do aluno. Outro recurso amplamente utilizado, segundo Araújo (2001, p. 73), nas obras didáticas pelos professores são as imagens cuja compilação feita nos livros permite os alunos refletirem sobre as representações que lhes são “postas diante dos olhos”. Noutra perspectiva, Célia Cristina Cassiano (2004) apresenta dados de pesquisa que lhe permitiram entender como aspectos da materialidade dos livros didáticos interferem na prática pedagógica do professor. Sobretudo, ela mostra que muitas vezes esses livros atuam como “um constrangimento que obriga o professor a reelaborar o desenvolvimento de sua prática”, muito em função do material distribuído pelo PNLD, 33 e mesmo que chegam a alterar os saberes pedagógicos que circulam na sala de aula (CASSIANO, 2004, p. 47). O emprego de entrevistas e questionários nessas pesquisas tem permitido entender como se dão a escolha e o uso do livro didático entre os professores. Algumas das conclusões dos estudos de Araújo (2001) e Cassiano (2004) autorizam aproximações com os manuais do professor. Por um lado, a constatação de que é bastante comum o uso do livro didático na preparação das aulas e no planejamento escolar sugere que a leitura do Manual do Professor talvez seja também uma prática auxiliar efetiva. Em todo caso, parece-me útil ter em conta as ponderações de Araújo (2001) sobre a variabilidade do grau de dependência dos professores em relação ao material didático. De acordo com as suas conclusões, essa é uma questão associada à formação e às condições de trabalho do professor, sobretudo à quantidade de escolas e horas de aula semanais. Por outro lado, a distância que o professor mantém do uso prescrito pelos formuladores do material didático têm sido melhor qualificada. Cassiano (2003) mostrou que os professores da sua amostra ignoraram o Guia de Livros Didáticos porque preferem fazer suas escolhas com o livro na mão. Araújo (2001) trás o exemplo de um professor que dizia adotar o livro didático apenas para utilizar as ilustrações. Em muitas das entrevistas compiladas por Araújo e Cassiano o livro didático aparece como um ponto de apoio para a organização das aulas, servindo como matriz e como “meio de recordar” temas pouco vistos na licenciatura. Para Gimeno Sacristán (s/data, p. 110), a apropriação efetiva do livro pelos professores é tão criativa quanto capaz de acomodar o uso dos materiais didáticos a “um uso correto a partir de pressupostos da democracia cultural, atualização científica e pedagógica”. Nesse âmbito de considerações, a pertinência do Manual do Professor por vezes é discutida noutros termos. Nas recomendações que Antônio Augusto Gomes Batista (2001) fez ao MEC em estudo encomendado pela Secretaria de Educação Fundamental do Ministério, além de contribuir para a atualização do magistério, o Manual do Professor deveria ter a função de orientar uma utilização correta do livro didático. Em sentido absolutamente contrário às conclusões dos estudos sobre o uso que os docentes fazem dos livros didáticos, ver no Manual do Professor apenas um meio de referir o uso mais apropriado desse tipo de material escolar reduz as possibilidades de compreensão das estratégias de ordenamento das questões pedagógicas nas coleções didáticas. Superar essa perspectiva de análise implica considerar os esquemas geradores de classificação e de percepção articulados pelo suplemento de orientação didática. Roger 34 Chartier (2002, p. 119) postula pensar as relações que mantêm as produções discursivas e as práticas sociais para se inscrever “a compreensão dos diversos enunciados que modelam as realidades no seio das restrições objetivas que limitam e tornam possível, ao mesmo tempo, sua enunciação”. Sobretudo, trata-se de levar em conta não só as estratégias através das quais autores e editores tentam impor uma ortodoxia do texto, uma leitura forçosa, mas igualmente, a liberdade dos leitores. Sob a perspectiva das possibilidades de leitura, Kazumi Munakata (2007, p. 141- 143) mostrou haver no livro didático toda uma maquinaria singular que postula a desnecessidade do professor. A Munakata (2007, p. 143) parece que as reiteradas solicitações dirigidas ao leitor-aluno para formar grupos de discussão, procurar professores de outras disciplinas, realizar entrevistas com pessoas de um determinado período resultam de um modelo de ensino que pretende reduzir a possibilidade do professor escapar das orientações então propostas no livro didático. Segundo conclui o autor, quanto mais protocolos de leitura um livro contiver, mais desnecessária é a autonomia do professor. O Manual do Professor, no entanto, pressupõe o docente, mas, igualmente, apresenta dispositivos de condicionamento do uso do livro didático. Alguns deles, explícitos, recorrem ao discurso na forma de nota, carta ou apresentação. Outros dispositivos estão implícitos nos comentários sobre o trabalho desenvolvido em cada unidade do livro, nas indicações complementares de material e num conjunto de estratégias editoriais para impor uma justa compreensão do material como no caso dos títulos, das caixas de texto e dos ícones. Cotejar assim o Manual do Professor com o livro do aluno não só dá ensejo para uma verificação da coerência entre a proposta aplicada no texto didático e enunciada no suplemento docente, entre o conhecimento escolar posto à disposição para os alunos e as possibilidades pedagógicas sugeridas ao professor. Com essa aproximação abre-se uma via de análise que principalmente permite considerar as coleções didáticas como uma forma institucionalizada e objetivada em virtude da qual certos agentes dotam de eficácia uma disciplina, uma ordem ou representação do ensino. A questão posta pelo desencontro entre a estratégia dos autores, das editoras e do governo e a apropriação efetiva do livro pelos professores é a das posições e propriedades sociais objetivas, exteriores ao discurso, que caracterizam os diferentes grupos, comunidades ou classes que constituem o mundo social. Na dinâmica de análise elaborada por Roger Chartier (1991; 1993) para articular a construção discursiva do mundo social à construção social dos discursos, há uma importante contribuição para a 35 abordagem desse traço das atuais condutas e ações de ensino. Fundamentalmente, Chartier (2007, p. 65) tem mostrado que as apropriações concretas e as inventivas dos leitores dependem, em seu conjunto, dos efeitos de sentido das obras, dos usos e dos significados impostos pelas formas de sua publicação e circulação, e das competências e expectativas que regem a relação que cada grupo mantém com a cultura escrita. Nesses termos, os recursos materiais, a cultura científica, a experiência pedagógica de que dispõe os docentes e os autores de material escolar são tão constitutivos do social quanto os princípios que organizam os seus discursos. A ligação estabelecida por Chartier (1990; 1991; 1993) entre as construções discursivas e as propriedades sociais objetivas designa com alguma precisão a possibilidade de um trabalho sobre práticas que visam fazer reconhecer uma maneira específica de proceder. O discurso competente sobre o ensino de história Para a compreensão dos dispositivos do
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