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Mirian Rinaldi em cena de “Apocalipse 1.11” (1999). Disponível em: www.teatrodavertigem.com.br panda panda 2 Um dos mais respeitados grupos do Brasil, o Teatro da Vertigem foi formado por alunos da ECA e da EAD (USP) e por atores de outras formações no começo dos anos 1990. O grupo se reunia para desenvolver estudos prático-teóricos sobre a aplicação de princípios da mecânica clássica para o movimento expressivo do ator. A abordagem cênica do grupo privilegia a representação em espaços não-teatrais, tendo desenvolvido desde seu início procedimentos que se apropriam dos depoimentos dos atores para a criação do texto, escolhendo os espaços não convencionais a partir do que cada espetáculo reclama como espaço de representação. “O Paraíso Perdido”(1992). Disponível em: http://www.muito.com.br/arquivo/fit-2003/200703-paraiso.htm “O Paraíso Perdido”(1992). Disponível em: http://f.i.uol.com.br/folha/ilustrada/images/0703782.jpg 3 Nos primeiros dez anos de trabalho o Teatro da Vertigem traz a cena brasileira a Trilogia Bíblica, composta pelos espetáculos “O Paraíso Perdido (1992)”, “O Livro de Jô (1995)” e “Apocalipse 1.11 (1999)”, montagens criadas para espaços não teatrais como igrejas, hospitais e presídios, respectivamente. Seu ultimo trabalho, “BR 3”, é uma incursão do grupo pelas identidades brasileiras, cuja representação tinha como palco o rio Tietê. “O Livro de Jó” (1995). Disponível em: http://www.muito.com.br/arquivo/fit-2003/180703-ensaiojo.htm Em “O Paraíso Perdido” o grupo alcança grande projeção na mídia com uma obra criada para o espaço de Igrejas. A montagem, baseada na obra homônima de John Milton, estreou com quatro horas de atraso sob protestos de fiéis que só deixaram as portas da Igreja Santa Efigênia à meia noite – horário de fechamento do metrô de São Paulo. A temporada do grupo seguiu com grande polêmica, atenção da mídia, intervenção policial, ameaças de bombas no espaço de cena, ameaças de morte ao diretor, intervenções políticas e religiosas num trabalho que tornou o grupo visível já em seu début. A queda de Adão, o jardim do Éden, e a idéia de paraíso na atualidade numa montagem encenada em espaço sagrado dá início ao que o grupo viria a chamar de Trilogia Bíblica, dando continuidade a esta primeira intervenção em espaços institucionais. 4 Em 1995, o grupo estréia “O Livro de Jó”, abordando em primeiro plano a questão da Aids e explorando temas religiosos em paralelo. A exposição do corpo nu ensangüentado e atores que “performam” cadáveres são alguns dos elementos deste espetáculo que propunha um percurso por um hospital desativado gerando uma atmosfera inquietante e desconfortável para a platéia, que circulava por alas hospitalares desativadas: um ambiente cênico bastante hostil neste segundo trabalho da trilogia. Cenas de “O Livro de Jó” (1995). Disponíveis em: www.teatrodavertigem.com.br Apocalipse 1.11, terceira parte da Trilogia Bíblica, foi concebido e encenado em presídios brasileiros. O processo de criação foi desenvolvido a partir de oficinas realizadas com detentos do Presídio Carandiru, num diálogo entre atores e não-atores sobre uma obra que abordava o fim dos tempos, e um retrato cruel sobre a realidade brasileira. Com esta obra o grupo traz referências de violência e sexo mais contundentes que nos outros trabalhos como podemos perceber a seguir. Antônio Araújo amplia o caráter processual de suas montagens anteriores, ao confinar o público a uma área de supressão como um presídio. O espectador não apenas caminha por uma arquitetura degradada pelo uso e abandono, como se submete a experiência dramática de percorrer corredores escuros, celas que parecem gavetas mortuárias, e 5 sentir o cheiro de mofo e umidade, criando uma relação física imperativa. A sensação física, no entanto, não se esgota, na impressão de histórias vividas nesse cenário, mas é um apoio decisivo para que as impressionantes cenas construam a memória de um apocalipse que estamos vivendo. Assistir a uma cena de sexo explícito, realizada por um casal que vive profissionalmente dessa atividade, ou participar do corredor polonês na representação de um massacre, e ainda se confrontar com a ameaça de tortura com um rato, ou ficar frente a frente, com um homem degradando uma mulher ao urinar em seu corpo, adquire um sentido agressivo, mas em nenhum momento gratuito ou banalizador da violência" (LUÍS, Macksen, apud. ENCÍCLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL) Imegens de “Apocalipse 1.11” (1999). Disponíveis em www.teatrodavertigem.com.br O uso do casal de atores pornôs no espetáculo foi alvo de grande polêmica. O pesquisador Yiftah Peled, estudou recentemente a presença de ready-mades performáticos no trabalho do Teatro da Vertigem. O conceito ready-made performático “refere-se a uma unidade performática inserida e incorporada em outra instância de performance e pode ser definido como a inclusão de um feixe de comportamentos performáticos em outro fenômeno performático” (PELED: 2006). O autor analisa a presença do casal pornô de Apocalipse 1:11 como um ready made performático. A seguir ele descreve a estrutura em que se insere esta cena de sexo: Os personagens Lílian e Reginaldo, que performam o ato sexual no palco, formam o casal RMP [ready-made performático] do Apocalipse 1,11. Eles foram transferidos do 6 contexto performático de um clube de show noturno para mostrar cenas de sexo ao vivo na peça. (...) O trabalho do texto da peça Apocalipse 1,11 foi elaborado por Fernando Bonassi, dentro de um processo de criação coletiva com o grupo do Teatro da Vertigem. Esse processo tem fonte de criação no ator que serve como uma espécie de testemunha da condição humana dentro da grande cidade. Além de testemunhas, o Teatro da Vertigem estimula os atores a serem pesquisadores do espaço urbano. (...) O grupo optou por inserir o casal que faz sexo explícito, após as visitas à boca-do-lixo de São Paulo, espaço no centro da cidade, caracterizado pela presença de áreas de prostituição, clubes e cinemas pornôs. Após essas visitas, aconteceram encontros com o dramaturgo, Fernando Bonassi, que trabalhou em forma de diálogo aberto a partir do conteúdo trazido pelos atores. (...) Na cena da boate, a relação entre o texto falado pelos atores e a presença muda do casal RMP, no palco, parece ter importância e cria um interessante contraste. Primeiro a Besta apresenta a dupla, citando um trecho bíblico sobre a multiplicação do ser humano. Com tal apresentação, o personagem suscita um olhar sobre o fenômeno do RMP, concentrando na função biológica, determinada pela reprodução e pela divindade. Além disso, a apresentação do casal RMP, enfeitado com adornos indígenas, é acompanhada do tema das vitórias de Ayrton Senna, som que, para muitos brasileiros, reafirma o orgulho nacional associado ao desempenho, à velocidade, à eficiência, à precisão e à capacidade de vencer os limites. Porém, a cena do casal que se apresenta não reforça o efeito da música da TV - a eficiência ‘mecânica’ na performance do casal. O som de competição automobilística cria uma outra condição, diversa da atuação do casal no clube. O casal, ao mesmo tempo em que conserva a ação original do clube pornô, diferencia sua presença no palco teatral, através do seu relacionamento com os demais elementos teatrais: a fantasia, o som, a fala da Besta, as ações da Babilônia e a presença do carteiro no palco. Essas relações têm o intuito de complexificar o efeito da ação do casal. A partir das interações com os demais elementos teatrais, essa ação pode adquirir novas, ou outras conotações que abrem um leque de associações que a performanceno clube pornô não inclui. (...) Ao se observar o uso do casal RMP pelo Teatro da Vertigem, percebe-se que a cena que mostra a cópula do casal é congelada de repente para que o movimento do carteiro que entra seja o novo foco da cena. Dessa forma, o texto cria movimento. É possível considerar o contexto da entrada do texto na cena do casal RMP como um elemento brechtiano de distanciamento. Rizzo (1994), ao dissertar sobre Brecht e o efeito do distanciamento, sugere que o diretor alemão pretendia despertar a consciência crítica do espectador e retirá-lo da sua passividade (PELED: 2006). Podemos perceber aqui a inserção do ato sexual não apenas como um elemento de impacto visual, ou tampouco pelo uso do “diferente pelo diferente”, mas como uma estratégia discursiva de impacto crítico. Busca-se por meio de dados de impacto cotidiano uma forma cênica ainda mais teatral, o que justifica a idéia de hiper- teatralidade comumente associada ao trabalho do Teatro da Vertigem. 7 Vanderlei Bernardino e Sergio Siviero em Apocalipse 1.11: cena de afogamento em vaso sanitário. Disponível em: www.teatrodavertigem.com.br. Peled analisa ainda a polêmica sobre o uso de atores pornôs em Apocalipse 1:11, a partir de dois artigos publicados na revista The Drama Review, no Reino Unido pelos pesquisadores André Carreira e William Stanton, que analisam o espetáculo do Teatro da Vertigem, de forma bastante contraditória entre si: Segundo Carreira o uso do casal cria um efeito meta-teatral, pelo fato de serem performers de palco e fazerem sexo real ao mesmo tempo. O elemento de meta- teatralidade na peça refere-se à “dupla sensação de realidade”, característica referendada por Carreira que consiste no fato de os atores estarem, ao mesmo tempo, representando 8 e fazendo sexo. Segundo o diretor, para que a meta-teatralidade possa aparecer, é preciso “intensificar o real” (idem) Carreira refere-se ao fenômeno como uma “viva representação da vida”, enquanto Stanton refere-se à participação do casal na peça como uma incorporação “demolidora da representação”. (...) Para Stanton, o efeito do corpo nu era real demais, enquanto para Carreira, era apenas sexo ao vivo. Cada autor apresentou a noção da realidade do casal chamando atenção para as diferentes visões culturais sobre o corpo (idem). Para Peled o uso de um casal nestas condições é possivelmente expor o próprio público a um ato sexual, pratica que culturalmente é definida como íntima e privada. A recepção ao uso deste ready-made foi bastante contraditória neste trabalho do Teatro da Vertigem, evidenciando um procedimento performático que desestabiliza valores sociais. Tal polêmica leva a pensar sobre o papel do real na representação teatral, e sobre a dimensão política e social do trabalho do grupo. Contundente em todas as suas montagens, o Teatro da Vertigem deixa uma marca considerável no teatro contemporâneo brasileiro também nos modelos de autoria cênica, em trabalhos de escrita que se utilizam de depoimentos de todo elenco como material de cena. Trata-se de um processo em que atores manifestam seus pontos de vista na construção de um texto de autoria compartilhada. Podemos dizer que esta prática com forte, apelo não-hierárquico, parece fundamentar esta escrita tão provocativa, que toca em temas de tamanho impacto social e político. Jesus Cristo e João fumam um cigarro em cena final de “Apocalipse 1.11” (1999). Disponível em: www.teatrodavertigem.com.br 9 Através da busca por temas como o sagrado e profano em O Paraíso Perdido, a contaminação da humanidade no mundo pós HIV no ambiente hospitalar do espetáculo O Livro de Jó, ou mesmo o fim do mundo de Apocalipse 1.11 e o encontro com os Brasis de BR 3 inserindo o público no coração de São Paulo: o Rio Tietê, ambiente degradado e que se pretende esquecer no cotidiano. O Teatro da Vertigem insere o público em ambientes de pura degradação. Do altar das igrejas paulistas às margens do Tietê – ou da Baía de Guanabara, onde BR 3 foi posteriormente encenada – o grupo propõe o percurso por espaços desarmônicos, desconfortáveis para público e atores, contraponto marcante em relação as encenações teatrais de caixa cênicas. Temas inquietantes, tratados de formas hiperteatrais e desarmônicas, em espaços de degradação: em quinze anos de trabalho com apenas quatro montagens o Teatro da Vertigem tem sido um grupo de constante presença nas discussões sobre o teatro contemporâneo e seus novos pressupostos. Cena de “BR 3”, montagem mais recente do grupo encenada no Rio Tietê em São Paulo. Disponível em: www.teatrodavertigem.com.br 10 Referências: ARAUJO, Antônio. As Margens do Brasil. Entrevista concedida à Leca Perrechil e Daniela Landin. In: Website da Faculdade Cásper Libero. Visitado em 10/08/2007. Disponível em: www.facasper.com.br/cultura/site/entrevistas.php?tabela=dialogoentrevista&id=117 _______________ ; GARCIA, Silvana; GUEDES, Antônio; SAADI, Fátima. O Teatro da Vertigem e o Radical Brasil. In: Folhetim – Revista do Teatro do Pequeno Gesto. Rio de Janeiro: 2004; CARREIRA, A. Risk as a material path to explore theatricality and Brazilian contradictions. The Drama Review. 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Dramaturgia em processo colaborativo e sua relação com a criação coletiva e o dramaturgismo. In: Anais do II Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós Graduação em Artes Cênicas. Florianópolis: 2003 11 PELED, Yiftah. Ready-made performático: incorporação de performances no Teatro da Vertigem. Visitado em 21/11/2007. In: Revista Polêmica Imagem. Disponível em http://www.polemica.uerj.br/pol20/cimagem/p20_yiftah.htm ; Rio de Janeiro: 2006; RINALDI, Miriam. E existe ator que não seja criador? Artigo. In: Jornal ‘O Sarrafo’. http://www.jornalsarrafo.com.br/edicao02/mat07.htm. São Paulo: Abril de 2003 SILVEIRA, André. O Dramaturgo no Processo de Criação do Espetáculo Teatral: O Trabalho Solitário e o Trabalho Solidário. Trabalho de Conclusão de Curso da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, 2004. STANTON, W. Apocalipse, 1,11 in Sao Paulo - Aesthetic Vertigo or Exploitation. The Drama Review, T176, Winter 2002. p 86-100. TEATRO DA VERTIGEM. Trilogia Bíblica. 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