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LICENCIATURA LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS José Genésio Fernandes Maria Emília Borges Daniel ead Coordenadoria de Educação Aberta e a Distância Universidade Federal de Mato Grosso do Sul PRESIDENTE DA REPÚBLICA Luiz Inácio Lula da Silva MINISTRO DA EDUCAÇÃO Fernando Haddad SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Carlos Eduardo Bielschowsky UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL REITOR Manoel Catarino Paes - Peró VICE-REITOR Amaury de Souza COORDENADOR DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA - UFMS COORDENADOR DA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL - UFMS Antonio Lino Rodrigues de Sá COORDENADOR ADJUNTO DA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL - UFMS Cristiano Costa Argemon Vieira COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS - PORTUGUÊS E ESPANHOL (MODALIDADE A DISTÂNCIA) Damaris Pereira Santana Lima CÂMARA EDITORIAL SÉRIE Antonio Lino Rodrigues de Sá Dario de Oliveira Lima Damaris Pereira Santana Lima Jacira Helena do Vale Pereira Magda Cristina Junqueira Godinho Mongelli APRESENTAÇÃO Prezados aprendentes: Bem vindos ao Curso de Graduação da Coordenadoria de Educação a Distância/UFMS! Vocês estão participando de um curso de graduação “a distância”, mas não estão sozinhos, por vários motivos. Primeiro, porque não são alunos confinados em espaço e tempo de sala de aula presencial, onde o professor tem posição privilegiada no espaço e comando absoluto do tempo. A sala agora é bem mais ampla e sem bordas: São Gabriel do Oeste, Água Clara, Rio Brilhante; Siqueira Campos, Nova Londrina, Paranavaí, Cruzeiro do Oeste, Cidade Gaúcha; Apiaí e Igarapava. Segundo, porque estão juntos, fazendo parte de um grande grupo de pessoas no qual só existem mesmo aprendentes. São aprendentes todos os envolvidos nas atividades desta disciplina, Leitura e Produção de Textos: aqueles que optaram por outros cursos como os de Letras Português- Espanhol, Matemática, Pedagogia e Pedagogia-Educação Especial; os coordenadores, os professores, os tutores à distância, os tutores presenciais e os bibliotecários. Todos desejosos da moeda mais cobiçada e nunca plenamente conquistada: o conhecimento imprescindível para viver e operar no mundo de hoje. Assim, no horizonte de expectativas dos aprendentes, não há lugar para aquela pedagogia da vigilância de gente sem aspiração – mas somente para atitudes de autodisciplina, de responsabilidade e de empenho para aprender sempre MAIS e COM os outros. Pois, como diz o poema de Antonio Machado: “Caminhante, são teus rastos o caminho, e nada mais./ caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar. / Ao andar faz-se o caminho, / E, ao olhar-se para trás, vê-se a senda que jamais se há de voltar a pisar. / Caminhante, não há caminho. Somente sulcos no mar”. Boa sorte. Professores: José Genésio Fernandes Maria Emília Borges Daniel Sobre os autores JOSÉ GENÉSIO FERNANDES é Professor de Semiótica e de Leitura e Produção de Textos no Departamento de Letras – Centro de Ciências Humanas e Sociais – da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua também no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da mesma universidade. É Mestre em Teoria da Literatura, pela Universidade Federal de Pernambuco, e Doutor em Semiótica e Lingüística Geral pela Universidade de São Paulo. É artista plástico e coordenador da revista Rabiscos de Primeira: caderno de publicação dos alunos de graduação em Letras da UFMS. E-mail: jfernand@nin.ufms.br MARIA EMÍLIA BORGES DANIEL é Professora de Língua Portuguesa e Lingüística no Departamento de Letras – Centro de Ciências Humanas e Sociais – da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua também nos programas de pós-graduação em Estudos de Linguagem e em Educação da mesma universidade. É Mestre em Lingüística Aplicada - Ensino e Aprendizagem de Língua Materna –, pela Universidade Estadual de Campinas, e Doutora em Semiótica e Lingüística Geral pela Universidade de São Paulo. Atualmente desenvolve pesquisa na área de Lingüística Textual. E-mail: mariaemi@nin.ufms.br Imagem de capa: Árvore de letras - óleo sobre cartão Genésio Fernandes tância Para começo de conversa 7 UNIDADE 1 Fundamentos e pressupostos conceituais sobre o texto 15 1 Considerações sobre algumas noções básicas 17 1.1 Considerações sobre a noção de linguagem, língua, texto e gênero 18 1.2 Considerações sobre a noção de leitura, de produção de sentidos e de práticas de leitura 26 UNIDADE 2 O texto e suas condições de produção e interpretação 33 2 Conhecimentos de que dependem a leitura e a escrita de textos 35 2.1 A produção de textos escritos: conhecimentos a serem considerados 37 2.2 O contexto nos processos de construção de sentidos na leitura e na escrita 43 2.3 Texto e intertextualidade 47 2.4 Texto e gêneros textuais 49 UNIDADE 3 O texto e suas estratégias de construção e interpretação 59 3 Referenciação e progressão referencial 61 3.1 Estratégias de referenciação 64 3.2 Formas de introdução de referentes no modelo textual 65 3.3 Retomada ou manutenção no modelo textual 65 Coerência textual: um princípio de interpretabilidade 71 SUMÁRIO 6 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura EM BRANCO VERSO DE PÁGINA 7Leitura e Produção de Textos Vamos lá! Esta é a disciplina intitulada “Leitura e produção de textos!”. Em nosso curso, vamos falar muito da atividade que os ho- mens realizam com a linguagem. É. Os homens agem uns sobre os outros, com e por meio da linguagem. Já reparou? Dia e noite, eles estão produzindo e lendo textos, com algum objetivo. Dessa imen- sa produção linguageira resultam as imagens desses homens, de suas comunidades, de seus países. Se um povo morre e deixa tex- tos, podemos saber dele por meio da leitura dos textos que deixou. Se não deixa textos, desaparece para sempre. Esta disciplina tem três unidades. Cada unidade está dividida em tópicos ou subunidades. A disciplina tem como objetivo apre- sentar e discutir pressupostos conceituais sobre o texto e compre- ender as estratégias exigidas para sua construção e interpretação. Primeiro, jogamos a peteca para você: • O que é linguagem? • O que é língua? • O que é texto? • O que é gênero? • O que é leitura? • Que tipos de conhecimento a leitura e a escrita mobilizam? 1 PARA COMEÇO DE CONVERSA Está vendo? Com essas perguntas, surgem respostas e outras perguntas na sua cabeça. Todo mundo sabe um pouco. Ajuntando esse pouco com o pouco que os outros sabem dá uma bolada grande... de sabedoria. Tente responder a essas questões e anote suas reflexões. Assim, no final da disciplina, você poderá verificar se o que já sabe cresceu com a contribuição das aulas, das leituras e dos colegas. 8 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Perguntando e respondendo, você vai fazer o seu caminho de “aprendente”. Seus colegas e nós, também. Aprendemos a vida inteira e aprendemos mais quando ninguém nos obriga a isso. É ou não é? Como diz o poema de Antonio Machado, o caminho se faz caminhando: Caminhante, são teus rastos o caminho, e nada mais. Caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar. Ao andar faz-se o caminho, E, ao olhar-se para trás, vê-se a senda que jamais se há de voltar a pisar. Caminhante, não há caminho. Somente sulcos no mar 1.1 Introduzindo a Disciplina A disciplina LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO é obrigatória para os alunos dos diferentes Cursos de Graduação. O objetivo dela é contribuir para que o aluno tenha bom desempenho em duas atividades de linguagem, indispensáveis em qualquer área do co- nhecimento. São essas mesmas em que você está pensando: atividades de leitura e de produção de textos. Como um aluno de matemática, de pedagogia ou de letras pode cumprir as atividades do curso sem aptidão para ler e escrever tex- tos? Como poderá interagir com o conhecimento produzido e ar-mazenado nos livros e nos sites da Internet? Como poderá interagir com os colegas do curso, lendo e redigindo textos para construir e expor suas idéias, para concordar ou discordar dos outros? Tudo passa pela linguagem. A questão da linguagem é, pois, uma questão central para to- dos os domínios do conhecimento, para todos os cursos, para to- das as disciplinas. Esta disciplina tem como objetivo oferecer opor- tunidade de você se tornar um bom leitor e produtor de textos. Entretanto, esse não é objetivo só desta disciplina, mas de todas as outras, durante todo o tempo que durar seu Curso de Gradua- ção. Trata-se de um aprendizado constante e da responsabilidade de todos os professores – não somente do professor de Língua Portuguesa. Saber ler e produzir textos com proficiência é o mais significativo sinal de bom desempenho lingüístico, como bem observa Fiorin (2003, p. 3). Quais são essas atividades que tanto o aluno de matemática quanto o aluno de psicologia é obrigado a realizar no Curso de Graduação? 9Leitura e Produção de Textos Mas o que é saber ler? Podemos afirmar que um aluno é bom leitor quando demons- tra ser capaz de interagir com o autor, por meio do texto, e de construir os significados inscritos no interior de um texto, rela- cionando tais significados com o conhecimento de mundo do seu tempo. Ler é, portanto, uma atividade complexa de cons- trução de um sentido para o texto, utilizando o conhecimento lingüístico, o conhecimento de mundo e o conhecimento ad- quirido nos livros. É ser capaz de realizar a ação que se tem em mente, por meio do texto. Um exemplo ajuda a entender isso. Se minha loja de eletrodoméstico está com o estoque baixo, preciso fazer o meu for- necedor saber disso, das minhas necessidades, do meu interesse de compra, da quantidade e das especificidades dos produtos de- sejados. Uma ação como essa se faz por meio da redação de um gênero específico de texto: o pedido de compra. Você pode me dizer que isso até o carregador da loja sabe fazer, sem muito estu- do. Ele pode dispor de informações sobre tudo o que a loja precisa e até mais do que o dono. Sabe, sim. O que ele não sabe é identifi- car o gênero de texto apropriado para fazer isso, hierarquizar as informações e estabelecer relações apropriadas entre elas, para ar- gumentar e defender pontos de vistas. Essa capacidade de realizar tais articulações no interior de um texto não é muito comum hoje em dia. Muita gente pensa que essa capacidade é resultado de bons co- nhecimentos gramaticais e de rigoroso treinamento em redação e análise de frases isoladas. Grande engano! É preciso muito mais do que isso, pois a construção de um determinado gênero de texto envolve atividades mais complexas do que a justaposição de uma frase ao lado de outra. Envolve conhecimento dos mecanismos de construção textual e capacidade de operar com eles para produzir os efeitos de sentido pretendidos. Esperamos que você vá fazendo o seu caminho de aprendente nessa teia de interações com os colegas, os professores e os tutores e que esta disciplina contribua para que tenha sucesso no curso escolhido. Esperamos que possamos nos tornar uma comunidade aprendente, isto é, todos nós nos colocando em atitude de ensinar e de aprender, abertos para o novo e capazes de socializar experi- ências e conhecimentos. Que a sua caminhada nesta disciplina seja prazerosamente enriquecedora! E o que é ser bom produtor de texto? 10 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura 1.2 Plano da Disciplina: Leitura e Produção de Texto Carga horária: 60 horas Professores: José Genésio Fernandes e Maria Emília Borges Daniel OBJETIVOS Geral: Possibilitar o desenvolvimento de competências, habilidades e es- tratégias essenciais para a leitura e a produção de textos, com vistas à conscientização sobre a natureza sociointerativa da linguagem no processo de formação integral do educador. Específicos: – dar condições para o aluno compreender o texto como um todo de sentido, um tecido cujo fim é a produção de efeitos de sentido; – possibilitar a compreensão do gênero de texto como forma de ação social e historicamente situada; – possibilitar a compreensão da leitura como um processo com- plexo de construção de sentido; – oferecer conhecimentos e exercícios para o aprimoramento da capacidade de leitura e de produção de diferentes gêneros de tex- tos, de maneira crítica. EXPERIÊNCIAS DE APRENDIZAGEM Ao longo de cada unidade serão propostas leituras e atividades a serem desenvolvidas individualmente, discutidas com o Tutor e socializadas, isto é, colocadas no FÓRUM para leitura e apreciação de todos os participantes de todas as cidades. Leituras: em cada unidade será apresentado um tema (Texto-base), a ser estudado e debatido e a indicação de Leituras Complementa- res (Saber mais). Para aprofundamento de subtemas, serão indicadas obras ou páginas na Internet (Referências). Interação: para discussão dos textos e das atividades, o aprendente contará com o apoio do tutor, recorrendo a diferentes ferramentas TEMAS Unidade II O texto e suas condições de produção e interpretação Unidade I Fundamentos e pressupostos conceituais sobre o texto Unidade III O texto e suas estratégias de construção e interpretação 11Leitura e Produção de Textos e meios de comunicação (tira-dúvidas, bate-papo, telefone, fax), e poderá trocar idéias com colegas de curso (Fórum, Webmail). Processo avaliativo As atividades de aprendizagem encontradas nas unidades ser- vem de auto-avaliação e são discutidas nos momentos do Fórum e do Bate-Papo. Ao final da disciplina, apoiado nas reflexões construídas ao lon- go das leituras, o aprendente produzirá texto sobre bases teórico- metodológicas do projeto pedagógico do curso a distância em que vai atuar. AMPLIANDO HORIZONTES Como você pode observar no Plano do curso, o objetivo central desta disciplina é colocar você em contato com um saber e um saber- fazer específicos: leitura e produção de diferentes gêneros de texto, ou seja, possibilitar-lhe o desenvolvimento de competências, habili- dades e estratégias essenciais para a leitura e a produção de textos de circulação geral e acadêmica, com vistas à conscientização so- bre a natureza sociointerativa da linguagem no processo de sua formação profissional integral. Por isso, organizamos o seu percurso em 3 unidades temáticas: Na unidade I – Fundamentos e pressupostos conceituais so- bre o texto: faremos estudos do texto em suas dimensões teórica e prática, enfocando seus aspectos constitutivos mais fundamentais, desde as condições externas de produção e interpretação até os elementos internos de configuração textual e enunciativa, demons- trando que a leitura e a produção de textos são atividades de cons- trução de sentido que pressupõem a interação autor-texto-leitor Na unidade II – O texto e suas condições de produção e in- terpretação: discutiremos que, além das pistas e sinalizações que o texto oferece, entram em jogo, na construção do sentido, os co- nhecimentos do leitor e do produtor. É desses conhecimentos que trataremos nessa unidade. Na unidade III – O texto e suas estratégias de construção e interpretação: enfatizaremos que a referenciação é uma atividade discursiva e que o processamento textual se dá numa oscilação entre vários movimentos: um para a frente (projetivo) e outro para trás (retrospec- tivo), representáveis parcialmente pela catáfora e pela anáfora, respectivamen- te, além dos movimentos abruptos, fu- sões, alusões, etc. Conforme Koch & Elias (2006, p. 135), “As- sim sendo, longe de se constituir como a soma de elementos novos com outros já postos em etapas posteriores, o texto é um universo de relações seqüenciadas, mas não lineares”. 12 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura PONTO DE ENCONTRO Esperamos que, aofinal das leituras e discussões feitas ao longo da Disciplina, você possa: • conhecer e discutir os fundamentos e pressupostos conceituais sobre texto e leitura, compreendendo a produção e a leitura de textos como atividades interativas de construção de sentido; • analisar o texto, considerando-o dentro de suas condições de produção e interpretação; • avaliar o texto, levando em consideração suas estratégias de construção e interpretação. Nos encontros a distância, a intenção é provocar sua reflexão sobre essa coisa que é como a água para o peixe: a linguagem, esse líquido, esse ar dentro do qual e a partir do qual os homens criam um mundo de significados. No bojo dessa questão, a compreensão do processo de produção de texto e de leitura é fundamental para o sucesso do aprendente em qualquer disciplina, de qualquer curso. Nos momentos de “encontro”, suas reflexões serão socializadas nos espaços que a plataforma disponibilizar e/ou presencialmente. GLOSSÁRIO A ser construído por todos ao longo das atividades do módulo. – Linguagem: é uma faculdade, uma capacidade humana. É essa capacidade que distingue os homens dos animais. – Língua: é um conjunto de convenções, para permitir o exercício da faculdade de linguagem – faculdade essa que, como vimos, preexiste como entidade abstrata a todo e qualquer ato de comunicação. Com a palavra língua, devemos entender o material, léxico, gramatical, estocado em competência. A Língua, o conjunto de convenções, é o que permite ao homem o exercício da linguagem como uma capacidade humana. A língua é um produto social da faculdade de linguagem. – Texto: é um todo organizado de sentido. Dizer que ele é um todo organizado de sentido implica afirmar que o texto é um conjunto formado de partes solidárias, ou seja, que o sentido de uma depende das outras. Desejamos a você boas leituras e ótimas reflexões. E que o caminhante, aqui e ali, tenha companhias na viagem de eterno aprendente. 13Leitura e Produção de Textos – Gênero: é uma forma de ação sócio-histórica. – Leitura: é um processo complexo de construção ou de atribuição de sentido, por meio da interação do leitor com o autor, mediada pelo texto. Ler não é pegar um sentido pronto, já presente no texto, diante dos nossos olhos. A atividade de ler é uma construção de sentido. Construção solitária? Não. Uma construção solidária em que eu construo o sentido numa relação que envolve o leitor com sua história de vida e de leitura; o texto como uma construção; o autor que o elaborou num tempo e num espaço determinados e com algum propósito. – Práticas de leitura; o que é isso? Melhor definir isso, primeiramente, por meio de exemplo: a prática do comer dos ribeirinhos do rio Acre não é a mesma de uma cidade do sul do Brasil. Uma moça do Acre foi um dia para um encontro em um hotel do sul. Depois de 4 dias, disse: não vejo a hora de voltar para casa para poder almoçar gostoso. Assustado, um dos participantes exclamou: nossa, mas você não almoçou nesses quatro dias que está aqui!? Sim, disse ela, mas isso aqui não é almoçar gostoso como na minha casa. Aqui tem muito talher, muita etiqueta do que pode e não pode fazer à mesa. Na minha casa temos outras maneiras de comer: sentamos juntos à mesa ou no chão para comer, pegamos os alimentos com as mãos para colocar na boca. Almoçar gostoso é isso, à maneira lá de casa. Se eu fizer isso aqui, vão estranhar e até ter nojo de mim. Assim, também existem PRÁTICAS DE LEITURA, maneiras diferentes de usar o livro. A leitura é uma prática encarnada em gestos, espaços e hábitos. Na leitura religiosa, recomenda-se beijar a bíblia etc. Você já leu aquele livro intitulado “livros que se lêem com uma mão só”? Existem lugares mais ou menos apropriados para a leitura de certas obras. Cada comunidade de leitores tem seus hábitos. Existe a prática da leitura do romance sentimental; a prática da leitura do romance policial; a prática da leitura acadêmica e tantas outras. Cada uma com seus gestos, seus espaços, suas competências, sua temática e seus objetivos específicos. – Etnocentrismo espontâneo da leitura: essa expressão denomina aquela atitude espontânea de pensar que a única prática de leitura existente na sociedade é aquela praticada pelos letrados, pelos chamados de gente culta. A expressão é do autor brasileiro João Hansen e mencionada por Roger Chartier em sua obra “Au bord de la falaise”. – Produção de texto: é o processo complexo de construção de sentidos por meio da interação do autor com o leitor mediado pelo texto. Ou seja, é um projeto de dizer, constituído em uma dada situação comunicativa, para alguém, com certa finalidade e de um determinado modo, dentre tantos outros possíveis. Se um dia tiver interesse em saber mais, leia a A ordem dos livros, de: Roger Chartier (Brasília: Editora UnB,1994). Saiba mais 14 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura REFERÊNCIAS: OBRAS A SEREM UTILIZADAS PELOS ALUNOS 1. KOCH, Ingedore G. Villaça. e ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006. 2. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Ângela P., MACHADO, Anna R. e BEZERRA, Maria A. (Orgs.) Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 18 a 36. 3. ______ Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In; KARVNOSKI, Acir Mário & GRYDECZKA (Orgs). Gêneros textuais: reflexões e ensino. Paraná: Haygangue, 2005. 4. SAVIOLI, Francisco Platão e FIORIN, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. 4. ed., São Paulo: Ática, 2003. REFERÊNCIAS: OBRAS CONSULTADAS ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. CARNEIRO, Agostinho Dias. Redação em construção: a escritura do texto. 2. ed., São Paulo: Moderna, 2001. CULIOLI, A. Pour une linguistique de l’énonciation. 3 vol. Paris: Opherys, 1990-1999. DELL’ISOLA, Regina Lúcia P. Retextualização de gêneros escritos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. DRUMMOND, Carlos Drummond de. O poder ultrajovem. São Paulo: Record, 1992, p. 49. ILARI, Rodolfo. Introdução à semântica: brincando com a gramática. 2. ed., São Paulo: Contexto, 2001. ————. Introdução ao léxico: brincando com as palavras. São Paulo: Contexto, 2002. KOCH, Ingedore V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2006. _______ Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002. LAKOFF, G. & JOHNSON, M. Metaphores we live by. Chicago: The Chicago University Press, 1980. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 6. ed., São Paulo: Cortez, 2005 NEVES, Maria Helena Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora da Unesp, 2000. 15Leitura e Produção de Textos UNIDADE 1 Fundamentos e pressupostos conceituais sobre o texto 16 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Esta é a primeira unidade do módulo. Mãos à obra. O objetivo central é que você possa conhecer e discutir alguns fundamentos e pressupostos conceituais sobre o texto e a leitura como atividades de produção de sentido na interação humana. Para tornar a leitura mais suave e as discussões focadas em aspectos específicos, dividimos esta primeira unidade em três subunidades. Pode começar a leitura. Mas, lembre-se: você não está em uma aula daquelas entre quatro paredes. Você é o caminhante, o aprendente. Você é que faz o seu mapa de viagem. Pode iniciar a leitura pelo tópico que mais lhe interessar. 1.1 Considerações sobre a noção de linguagem, língua, texto e gênero. 1.2 Considerações sobre a noção de leitura, de produção de sentidos e de práticas de leitura. 17Leitura e Produção de Textos O que é linguagem? O que é língua? O que é um texto? Como é produzido o sentido no texto? Uma carta íntima é um texto? O outdoor da sua rua é um texto? E uma fotodo álbum de família, uma escultura, uma partitura musical: são todos textos? O que é leitura? É pegar um sentido pronto no texto? É construir um sen- tido para o texto? Ler é uma atividade solitária ou não? O que se entende por prática de leitura? É correto discriminar tipos de leito- res e de leituras? Produção de texto e de leitura são atividades que realizamos com e por meio da linguagem, para produzir sentido, e dependem de muitos conhecimentos. Quais, por exemplo? 1 CONSIDERAÇÕES SOBRE ALGUMAS NOÇÕES BÁSICAS Não. Não precisa responder agora. Nem espere que a gente lhe dê a resposta. As perguntas são para começar a pensar no assunto. A gente sempre sabe alguma coisa. Vamos retomar essas questões ao final da leitura dessa unidade e conversar sobre isso. Certo? Você já sabe que, aqui, ninguém dá mapa do caminho para o caminhante. Assim, se o desejar, antes de ler o TEXTO-BASE deste tópico, leia o primeiro capítulo do livro-texto, intitulado Ler e compreender os sentidos do texto, de Ingedore V. Koch e Vanda Maria Elias. São Paulo: Contexto, 2006, p. 9-37. Leia, também, a lição número 1, intitulada Considerações sobre a noção de texto, no livro Lições de texto: leitura e redação, de José Luiz Fiorin e Francisco Platão. São Paulo: Con- texto, 2003, p. 11-24. Convite... 18 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura 1.1 Considerações sobre a noção de linguagem, língua, texto e gênero O homem está no mundo, na vida. Os animais também. Ho- mens e animais estão sempre agindo de alguma forma para atingir seus objetivos. A diferença é que os animais agem por instinto. Por instinto, o cão bravio ataca, mata e pronto. Nunca vimos um cão sofrendo de remorso. Os animais não lidam com um mundo de significação, produzido na e por meio da linguagem. Eles não sen- tem a necessidade de atribuir significação às coisas para realizar suas ações. O homem, sim. Ele pode até matar, como o cão bravio, mas sofrerá, depois, para harmonizar o significado de sua ação com o mundo de significação, de valores, no qual ele vive e se move como o peixe na água. O mundo dele é um mundo humano, significativo para ele. Para agir, o homem depende de dar uma significação às suas ações. Quando os espanhóis colonizaram o México, dominando os ín- dios, surgiram perguntas muito sérias para eles: o que é um índio, é bicho ou gente? Ele tem alma? Para facilitar a conquista, matan- do-os, era preciso responder a essas questões. Assim, houve longos debates sobre se os silvícolas eram animais ou homens, se tinham alma ou não. E os colonizadores mais ferozes bem que desejaram que os debates concluíssem pela definição dos índios como bichos, pois, assim, a empreitada colonizadora viraria uma alegre caçada, sem nenhum problema. Isso quer dizer que eles tiveram de lidar com algumas noções, afirmar um ponto de vista. Os homens agem sempre de um ponto de vista que faz sentido para eles. Na universidade, os acadêmicos realizam ações para conhecer o mundo da linguagem. Para isso, partem sempre do esclarecimen- to de algumas noções, definindo o ponto de vista mais adequado para a ação de conhecer. Há muitos pontos de vista teóricos: é pre- ciso escolher o mais adequado. Assim, vamos ter de começar nos- so estudo pelo esclarecimento de algumas noções importantes para quem se dedica ao estudo da linguagem no que diz respeito à leitu- ra e à produção de texto. Se vamos nos ocupar de linguagem, de língua, de sentido, de texto, de leitura e produção de textos, é pre- ciso, primeiramente, fazer algumas perguntas. O que é linguagem? o que é língua? O que é texto? O que é leitura e produção de texto e de sentido? É preciso um esforço para dar respostas mais apropriadas a es- sas questões. Podemos começar por pensar no assunto, por nós mesmos. Todo mundo sabe um pouco sobre o que seja a lingua- Um exemplo! 19Leitura e Produção de Textos A linguagem – a fala humana – é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e se- gue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento gra- ças ao qual o homem modela o seu pensamento, seus senti- mentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é tam- bém o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na medi- tação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida quotidiana aos momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pais para filho. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade. O desenvolvimento da linguagem está tão inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indi- víduo, da terra natal, da nação, da humanidade, da própria vida, que é possível indagar-se se ela não passa de um simples refle- xo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte do desenvolvimen- to dessas coisas. gem. Sabe, sim, pois todos nós nos movemos nela e por meio dela, como o peixe na água. A linguagem é uma faculdade humana, uma capacidade que o homem tem de se comunicar com seus semelhantes, é uma abs- tração. Há grandes estudiosos da linguagem. Um deles é Hjelmslev. Vejamos o que ele diz na obra, intitulada Prolegômenos a uma teo- ria da linguagem, Editora Perspectiva, pp. 1-5. É um dos mais be- los textos sobre o estudo da linguagem: A linguagem é, pois, uma faculdade, uma capacidade humana. Uma capacidade que os animais não possuem. Por isso o texto diz que ela é o título de nobreza do homem. É essa capacidade que distingue o homem dos outros animais. Não é bonito? 20 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Língua. O que devemos entender com esse conceito? A língua é um conjunto de convenções, para permitir o exer- cício da faculdade de linguagem – faculdade essa que, como vi- mos, preexiste como entidade abstrata a todo e qualquer ato de comunicação. Com a palavra língua, devemos entender o materi- al léxico e gramatical, estocado em competência. A Língua, o conjunto de convenções, é o que permite ao homem o exercício da linguagem como uma capacidade humana. Acrescentemos mais uma coisa: a língua é um produto social da faculdade de linguagem. O que isso quer dizer? Quer dizer que ninguém, sozinho, pode criar a língua ou modificá-la. Você deve ter visto aquela discussão na TV, no rádio ou em revistas e jornais, sobre uma antiga proposta de troca da palavra futebol pela palavra ludopédio. Viu? Pois é, de vez em quando aparece uma pessoa, como um tal de Antônio de Castro Lopes, querendo criar a língua sozi- nho. As pessoas acham graça e só. Por quê? Porque uma palavra entra no dicionário, somente quando a sociedade toda entra em acordo sobre sua adoção na forma e no conteúdo, quando passa a usá-la. A língua só existe em virtude de um contrato estabelecido entre os membros da comunidade. Por isso se diz que ela é supra- individual, na medida em que é um objeto convencional, fruto de um pacto social. O indivíduo tem de aprender a língua, para poder exercer bem a capacidade de linguagem que possui. Conforme afirma Culioli (1990, p.14), a “[...] atividade da linguagem remete a uma ativida- de de reprodução e de reconhecimento das formas, ora, essas for- mas não podemser estudadas independentemente dos textos, e os textos não podem ser independentes das línguas”. Está entendendo? Linguagem uma capacidade humana Língua conjunto de convenções e regras, para permitir o exercício da faculdade de linguagem Se você quiser ver a lista de palavras que o médico Antonio de Castro Lopes queria criar sozinho para a língua portuguesa, acesse o nome dele no Google. Muito bem. Tendo essa capacidade da linguagem e possuindo uma língua, a portuguesa, por exemplo, o homem produz textos na vida social. O que é texto? Uma carta íntima é um texto? Um romance é um texto? E um bilhetinho? Um convite de casamento, Saiba mais Não é demais repetir: veja o quadro: 21Leitura e Produção de Textos Observe os textos 1, 2 e 3, a seguir: Genésio Fernandes Desenho para a série Figuras da folia Nanquim sobre papel, 2007 12cm X 10cm Texto 1 Texto 2 Texto 3 uma conta de luz são textos? Se você pensou em afirmar que sim, acertou. São textos verbais. Mas e uma fotografia? É um texto? Uma escultura, um dese- nho, uma partitura musical? Certamente você pensou que sim. Pode até ter tido uma pequena dúvida, mas pensou que sim. São textos, sem dúvida alguma! Não são textos verbais, mas são textos visuais ou audiovisuais. E o outdoor, os programas de TV, as tirinhas de jornal, as propagandas? São também textos? Sem dúvida. São os chamados textos sincréticos, isto é, aqueles que utilizam várias formas de expressão: o verbal e o audiovisual. 22 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Veja bem. Os homens, possuindo a capacidade da linguagem, não param de produzir textos, utilizando as mais variadas formas de expressão. No bilhete, utilizam a expressão verbal, as palavras da língua e todos os recursos que ela possui. Na música, utilizam os sons e, na escultura, o volume. No desenho, usam a linha e, na pintura, as cores. Na propaganda, nos programas de TV e nos fil- mes, utilizam todos esses meios de expressão juntos, combinados. Na vida moderna, a cada batida do nosso coração, surgem bilhões de textos. Podemos dizer que nossa vida está envolvida numa textosfera. No dia 21/11/2007, a Folha de S. Paulo deu a notícia de que pesquisadores europeus encontraram a garra fossilizada de um escorpião do mar, de 2,5 metros de comprimento, em uma pedrei- ra, na Alemanha. A matéria apresentava um desenho do escorpião ao lado de um homem, para melhor indicar seu tamanho. Três dias depois, aparecia na Folha esta tirinha: Quer um exemplo? Folha de S. Paulo, 24 nov. 2007 Texto 4 Veja: o leitor que não acompanhou o noticiário da Folha nos dias anteriores terá mais dificuldade para compreender a tirinha. Hoje é assim: aparece um texto na imprensa e, poucos dias depois, apare- cem outros textos cuja leitura depende do conhecimento do primei- ro. É como se estivéssemos condenados a ler tudo para poder ler. Estamos rodeados de textos. E não tem querer ou não querer. Eles não pedem licença: simplesmente invadem nossa vida, por meio dos nossos cinco sentidos. Mas é preciso insistir: o que é mesmo um texto? Veja os textos 5 e 6, abaixo: Texto 5 23Leitura e Produção de Textos Texto 6 A escritura ele ficou brabo carro e mulher nada disso terra e enchente, pois a reza nem acabou e era chofer do ônibus quan- do a bíblia entra. Cachorro cachorro e o pneu nada vai dar cer- to na bíblia. Vendido foi debandou o boi tem carro novo é as- sim mesmo. Quando e o céu com o padre, chove as peças che- gam e tem enxada, nada de mais. Não vale. Macarrão nem deus ouve a oração peca. Falaram na dona e roça assombração o mato virou Texto vem do verbo tecer. Se digo que minha avó teceu uma toalha de mesa, o que está implícito no que digo? Que ela amon- toou um punhado de fios, de qualquer jeito? Não! Certamente, não. Se você está pensando que o certo é dizer que ela organizou os fios para formar a toalha, então acertou. Leia novamente os dois textos acima: qual deles parece mais um amontoado de palavras do que uma organização, com algum propósito determinado? O Texto 5 ou o Texto 6? Certamente o Texto 6. O Texto 6 é um amontoado de palavras, sem nexo. As partes não formam um todo de sentido. Esse amontoado de pala- vras é tão doido que não dá para perceber quem fala, o que fala, para quem e com que objetivo. Se você acha que isso é coisa de louco, acertou. Quem vai a uma roça chamada Barra, em um dos grotões de Minas, encontra um louco. Ele vai à janela do carro e fala assim. Os visitantes do lugar, por educação, fingem que entendem e dizem: sim, é... sim..., sim senhor!. Não deixa de ser uma cena de tentativa de comunicação, mas quem participa dela não consegue construir um sentido para o palavreado que ele vai amontoando na sua fala. Um texto é, portanto, um todo organizado de sentido. É um todo que faz sentido como um todo. Veja bem: não é uma soma de suas partes. Não se trata de soma de partes. Se lhe derem a ler somente o quadrinho da terceira parte do Texto 5, o máximo que você poderia ler é que se trata de uma briga de dois personagens que discordam da posição da frente de algu- ma coisa. Não saberíamos bem quem é a terceira personagem da Releia o Texto 5. Se alguém recortar a tira em quatro partes, embaralhá-las e for dando uma de cada vez para ler, você vai ver que cada uma delas tem um sentido particular e não o sentido do todo. 24 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura cena e nem por que a imagem dela está diluída, pois não disporía- mos das figuras que ela tem nos outros quadrinhos (primeiro e segundo). Além disso, a primeira coisa que o texto perde, se for recortado, é o contexto de produção. Nem mesmo saberíamos a que gênero de texto pertenceria. Ou seja, ninguém saberia mais se o terceiro quadrinho é uma tirinha de jornal ou uma ilustração isolada de um livro. Não saberia também da relação do texto com outro texto, o das histórias em quadrinhos da crítica Mafalda, cri- ada pelo argentino Quino. Lendo a parte, o leitor percebe um sentido que não é o mesmo do todo. No seu todo, lemos que Mafalda lança a pergunta aos colegas: “Para onde vocês acham que a humanidade está indo?” Para dar a resposta, os dois meninos entram numa disputa verbal. Eles discordam do sentido da palavra “frente”. Nenhum deles cede à possibilidade de a “frente” significar o que o outro quer. O que o todo do texto permite ler é que o entendimento entre as pessoas é sempre difícil, mesmo quando as posições parecem convergir. Todo mundo concorda que a humanidade tem de evoluir, de ir para a frente, mas não consegue fechar acordo sobre o sentido/direção da expressão “para frente”. Portanto, o sentido do texto não é a soma do sentido de cada parte isolada. O sentido do texto é o que resulta da construção do todo do texto, pela relação entre as partes que o compõem. Não dá para compreender o todo do texto, lendo somente partes isoladas. Guarde esta palavra: relação. Tudo no texto significa por meio de relações. Relação de muitas coisas. Você compreenderá isso cada vez mais à medida que for estudando. Falta ainda dizer que um texto é sempre uma resposta a um discurso anterior sobre qualquer coisa. Quer um exemplo disso? Por volta de 1970/1980, as rádios não paravam de tocar a música de um cantor popular chamado Odair José, considerado brega. Essa letra, Texto 7, convoca o povo a parar de tomar a pílula. Esse discurso não surgiu do nada e por nada. Ele surgiu em resposta a um outro discurso já existente na época. Primeiro, leia o texto da letra e depois responda: qual era esse outro discurso, o que ele recomendava ao povo? Acesse o site do cantor Odair José, no Google, se quiser ouvir a música. É considerada brega, mas não deixa de ser um documento do que aconteceu no Brasil, na época. Se tiver interesse por estudos da cultura e da história, por meio de letras como essa, veja o livro “Eu Não SouCachorro, Não” de Paulo César de Araújo, que é referência obrigatória no estudo da música popular brasileira. Veja: www.brasilcultura.com.br/ conteudo.php?id=480&menu=92&sub=518 – 29k. Saiba mais 25Leitura e Produção de Textos Texto 7: PARE DE TOMAR A PÍLULA Já nem sei há quanto tempo nossa vida é uma vida só e nada mais Nossos dias vão passando e você sempre deixando tudo pra depois Todo dia a gente ama mas você não quer deixar nascer o fruto desse amor Não entende que é preciso ter alguém em nossa vida seja como for Você diz que me adora que tudo nessa vida sou eu então eu quero ver você esperando um filho meu entao eu quero ver você esperando um filho meu (REFRÃO) Pare de tomar a pílula Pare de tomar a pílula Pare de tomar a pílula Porque ela não deixa o nosso filho nascer (3x) Você diz que me adora Que tudo nessa vida sou eu Entao eu quero ver você Esperando um filho meu Entao eu quero ver você Esperando um filho meu Pare de tomar a pílula Pare de tomar a pílula Pare de tomar a pílula Porque ela não deixa o nosso filho nascer (3x) Veja você que o texto repete sem cessar um refrão: “pare de tomar a pílula!”. O texto dessa música era uma resposta a um outro discurso cuja prática já estava em andamento: o discurso do Governo da ditadura militar, que pedia para a população tomar a pílula anticoncepcional. Os Estados Unidos exigiram do Brasil um programa de controle da natalidade como condição para liberar empréstimos. O Governo não teve saída: mesmo a contragosto da Igreja católica, adotou o programa. Odair José foi, então, a voz que repetia para os ouvidos da população o discurso da Igreja católica, contra o programa de controle da natalidade. Resumindo: • a linguagem é uma faculdade humana; • a língua é o conjunto de convenções e regras, para permitir o exercício da faculdade de linguagem; • tendo essa capacidade e sabendo a língua, o homem produz textos para se comunicar; • o texto é um todo organizado de sentido e não um aglomerado de partes; • os textos podem ser verbais e não-verbais; • o texto é produzido sempre como uma resposta a um discurso anterior; • atribuir sentido a um texto depende, portanto, de uma interação entre quem o produz e quem o recebe e da ativação de uma série de conhecimentos e habilidades por parte de ambos. Por essa razão é que falamos de UM sentido para o texto e não de O sentido. 26 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura 1.2 Considerações sobre a noção de leitura, de produção de sentidos e de práticas de leitura Muito bem. Coloque a mão no lado esquerdo do peito: imagine que a cada batida do coração, os homens produzem milhares de textos. Mas os homens não produzem textos indiferenciadamente, assim como Deus não criou os animais todos iguais. Nos estudos de Biologia, vemos que os animais são distribuídos em gêneros e espécies. No mundo da linguagem, os textos compreendem gêneros di- ferentes. Cada gênero de texto serve para os homens realizarem ações diferentes. Os gêneros são, portanto, formas de ação. Quem vai escrever um texto sabe que vai fazer uma ação específica, com um fim específico e sabe que gênero de texto deve escolher para realizar bem a ação pretendida. Por exemplo, para realizar a ação de fazer alguém querido saber de seus sentimentos íntimos, você sabe que tem de escolher o gê- nero certo para fazer isso: a carta íntima. A carta é um gênero de texto, a ferramenta certa para comunicar assuntos pessoais e ínti- mos entre amigos ou pessoas que se amam. Escolher um gênero de texto para realizar uma ação, como a de fazer um pedido de emprego, é como escolher a roupa certa para ir a uma festa de casamento, à noite, em uma igreja. Ninguém vai com a roupa que bem quer. Escolhe uma roupa considerada apropriada para aquela situação social. Quer dizer socialmente aceita, historicamente aceita. Ninguém vai a uma festa dessas usando biquini e nem uma roupa do século 17. A não ser que queira reali- zar outra ação: a de chocar. Quem não sabe escolher e produzir o gênero de texto apropria- do para fazer a ação de pedir um emprego, por exemplo, tem me- nor chance de exercer a cidadania. Porque na luta para conseguir o emprego, ele já sai perdedor. Lembremos ainda que, para atribuir sentido a um texto, preci- samos saber a que gênero ele pertence. Sabemos disso por meio do conhecimento cultural ou por meio do estudo. Na página 20, você viu o Texto 5, a tirinha da Mafalda. Vimos que a leitura de um só quadrinho não permitia construir o sentido do texto 5 como um todo. Agora, com essas considerações, você sabe por quê. Por- que, olhando um só quadrinho da tirinha, não é possível saber a ação que o texto pretende realizar. Não é possível saber a que gêne- ro pertence. Somente o conhecimento da tirinha como um gênero humorístico permite ao leitor construir o sentido global do texto, considerando essa instrução genérica. Ou seja, o leitor é instruído a produzir sentido de humor e não de tragédia, por exemplo. Que quer dizer apropriada? Por quê? 27Leitura e Produção de Textos Então fiquemos, por ora, sabendo do seguinte: • o gênero é uma forma de ação sócio-histórica, uma ferra- menta; • saber escolher o gênero de texto apropriado para realizar uma ação e saber escrevê-lo bem são habilidades importantes para o exercício da cidadania; • conhecer o gênero de um texto é condição necessária para uma adequada atribuição de sentido a esse texto, pois o gênero dá instrução a respeito da ação que se pratica por meio dele. O estudante brasileiro tem a capacidade da linguagem, ele co- nhece a língua portuguesa, ele sabe o que é um texto, ele sabe que o gênero é uma forma de ação, ele escolhe um gênero apropriado para realizar uma ação determinada. Assim, pode produzir milhões de textos. Como dissemos, estamos hoje envolvidos numa textosfera. Então falta falar de uma outra coisa: da leitura. O que é leitura? O que é ler? Aqui, é preciso um esclarecimento. A concepção de leitura varia conforme a concepção de língua adotada. Lembre-se do que fala- mos no início: para os colonizadores espanhóis, matar um índio poderia significar coisas bastante diferentes, conforme a concep- ção que se desse ao termo “índio”. Se “índio” fosse definido como o ser dotado de alma, matá-lo seria pecado mortal e crime; caso contrário, seria apenas uma cena de caçada como a de qualquer animal. Conforme Koch (2006, pp. 9 a 13), na concepção mais antiga, a língua é definida como representação ou espelho de pensamento. Dessa concepção vão derivar as concepções: de sujeito como um sujeito psicológico, individual, senhor de sua vontade e de suas ações; de leitura como uma atividade de captação das intenções e idéias do autor, sem considerar que, no ato de leitura, contam muito, para a produção de sentido, as experiências e os conhecimentos do leitor, bem como a interação que ele estabelece com o autor por meio do texto. Veja bem que o foco da preocupação é o autor e suas intenções, pois se considera que o sentido estaria centrado nele. Se assim fos- se, bastaria ao leitor, para dizer que lê bem, captar as intenções do autor. Isso é um problema. Por quê? Simplesmente porque, na leitura de um texto de Machado de Assis, por exemplo, não temos mais o autor, para perguntar-lhe se as intenções que vemos no seu texto correspondem, de fato, àquelas que ele teria tido ao escrever Resumindo... 28 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura o romance Dom Casmurro. Neste curso de EaD, você vai se relaci- onar com seus colegas, no Fórum, por meio de textos. Não é? Ora, não dá para seu colega que está longe, em outra cidade, ficar de- pendendo de saber das intenções que você teria tido ao escrever, para poder entender o seu texto ou mensagem. É muito comum, também, uma outra concepção de língua. Tra- ta-se de entendê-la como código, portanto, como mero instrumen- tode comunicação. Na vida, os homens criam metáforas para falar das coisas. Isso vai passando de boca em boca e vai ficando como verdade. Nem sempre são. Os homens vão vivendo conforme o esquema dessas metáforas, mas nem sempre elas correspondem à verdade. A metáfora da língua como instrumento ou código de comunicação é uma delas. Lakoff e Johnson (1980) criticam a con- cepção de língua como código de comunicação. Eles afirmam que, se concebemos assim a língua, fica pressuposto o seguinte: a) as idéias (ou significações) são objetos; b) as expressões lingüísticas são os continentes desse objetos; c) comunicar é passar qualquer objeto ou coisa. Se a atividade de comunicação fosse isso, um trabalho de colo- car idéias-coisas no código da língua, a leitura seria uma atividade de retirada das idéias-coisas desse código, utilizado nos textos/men- sagens. Você percebe que, conforme essa maneira de pensar, o foco é o texto. A leitura seria concebida como decodificação ou descodificação. Como você vê, aqui, ler seria retirar um sentido do código. Por isso, muita gente, inclusive professores, utiliza dois verbos para referir-se ao ato de comunicação e de leitura: eles fa- lam sempre em “passar” e em “retirar”. Por exemplo: “o texto pas- sa uma mensagem clara, mas os alunos não sabem retirar nada do que lêem”. Acontece que essa concepção de língua e de leitura não corresponde aos fatos. A metáfora da língua como código, entendi- do como canal de passagem de conteúdos, faz a gente viver pen- sando coisas erradas. Quem namora, por exemplo, sabe que isso não é verdade. Se fosse verdade, não haveria nunca mal entendi- dos entre as pessoas que se amam. Por isso devemos saber que: a) a língua NÃO é um canal, um veículo isento por onde transi- tam idéias; b) a leitura NÃO é apenas decodificação, ou seja, NÃO é ativida- de de retirar um sentido já pronto, posto no texto. Em resumo, até aqui, falamos de duas concepções de língua que não são mais aceitas, porque não permitem compreender o fenômeno da linguagem nas atividades de leitura e produção de texto. Certo? 29Leitura e Produção de Textos Depois dessas reflexões, procure lembrar como foram as suas aulas de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental e Médio. Tente lembrar-se do discurso dos professores, para ver que concepção de língua e de leitura eles adotavam no ensino da disciplina. Se adotavam a primeira concepção, certamente perguntavam, em algum momento de suas instruções de aula: o que o autor quis dizer? Qual foi intenção dele? Se adotavam a segunda concepção, perguntavam: o que o texto quer passar? Na concepção interacional (dialógica), tudo é compreendido numa rede de relações. É na interação que tomam forma a língua, os sujeitos, a atividade de produção de sentidos nos textos escritos e na leitura. Portanto, desse ponto de vista, o sentido a ser lido não se en- contra somente no texto para o leitor retirá-lo ou pegá-lo pronto. A leitura é, pois, uma atividade de produção ou de construção do sentido na interação do leitor com o autor mediada pelo texto. Veja você que a leitura não é, aqui, mera atividade de decodificação. Veja também que o sentido que o leitor lê no texto não é uma coisa que já estaria lá, à espera dele. O sentido é construído na relação e depende de muitos conhecimentos por parte do leitor. Vamos fa- lar desses conhecimentos mais à frente. Por ora, fiquemos com isso: a leitura é uma atividade interativa complexa de produção ou de construção de sentidos. Isso quer dizer que, na atividade de leitura, “a compreensão não requer que os conhecimentos do texto e os do leitor coinci- dam, mas que possam interagir dinamicamente” (ALLIENDE & CONDEMARÍN, citados por KOCH, 2006, p. 37). Você deve estar desconfiado do que estamos falando, não? Cor- rija-nos, se estivermos enganados, mas achamos que está pensan- do o seguinte: se o autor produziu um texto para alguém, deve ter construído nele algum sentido. É verdade. Ninguém escreve um texto sem algum propósito. Todo texto tem um objetivo. Tendo em mente esse objetivo, a imagem e os valores do leitor para quem se destina o texto, e de posse de diferentes tipos de conhecimento Então, como resolver essa questão? Que concepção de língua, de sujeito, de texto e de leitura é mais adequada para compreender a atividade linguageira do homem em sociedade? 30 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura (lingüísticos, enciclopédicos ou de mundo e interacionais), o autor constrói um espaço de significação e espera que o leitor ocupe esse espaço com sua capacidade de construir sentidos, ativando conhe- cimentos de diferentes tipos, inclusive aque- les da sua história de vida e de leituras. Ou seja, o autor pressupõe a participação do lei- tor na construção do sentido, considerando a (re)orientação que lhe é dada. Por isso, há sempre múltiplas leituras possíveis para um mesmo texto. Um exemplo ajuda sempre, para compreender que o autor constrói o tex- to numa relação contratual implícita com o leitor. Em toda banca de revista, existem os fa- mosos romances sentimentais de massa. No Brasil, são aqueles das séries Sabrina, Bianca e Júlia. São os romances que seguem a tradi- ção do chamado romance cor-de-rosa ou ro- mances do coração, cujas representações che- garam até nós por meio de imagens, dese- nhos e pinturas. Veja, à esquerda: uma mu- lher toda sentimento, lendo extasiada, com a mão no coração. Na produção desses romances, os autores precisam saber: que os leitores desse tipo de literatura são mulheres; que a maioria delas não possui um vocabulário muito sofisticado; que não tem habilidade de leitura de períodos muito extensos; que, nesse tipo de leitura, procura os valores do amor eterno e das paixões mais diversas; que utiliza esses textos para uma atividade de leitura lúdica. Portanto, como você observa, tanto a escrita como a leitura são processos complexos de construção de sentido, regidos por con- tratos: contrato de escrita e de leitura. No caso da produção de romances sentimentais, o autor e as leitoras seguem um contrato implícito. Tanto é verdade que, quando a editora publica algum romance que não tem os valores desejados pelas leitoras (amor eterno, paixões; personagens gentis, lugares românticos e final feliz), ou que apresenta vocabulário difícil ou enredo de romance policial, por exemplo, recebe delas cartas de protesto e até amea- ças de processo. Veja uma dessas cartas, tal como foi escrita pela leitora: 31Leitura e Produção de Textos São Pedro, 25 de dezembro de 1985 Janice Florido Editora Janice num dos livros que comprei nestas férias, li a sua mensagem para que nós disséssemos nossa opinião sobre as revistas, então ái vai a minha. Leio os romances de Júlia, Sabrina, Bianca e outra a muitos anos, qdo posso, compro, qdo não troco as minhas revistas em bancas de troca. E em todos esses anos, as únicas de quem eu não gostei, para ser sincera detestei, odiei, foram aquelas escritas, que se passam na grécia, onde o personagem é grego e arrogante, machista. Para você ter uma idéia melhor eu ganhei de uma amiga, uma revista com o título “As flechas de Cupido” número 176, Julia, novinha em folha, e eu não consegui ler, por favor não coloque muitos romances de grego nas bancas, a paisagem podem ser maravilhosa, o entardecer divino, as ruínas dos templos maravilhosas, mas os romances destes gregos são cansativos. Espero não tê-la deixado chateada, pois sei que você e toda sua equipe trabalha com afinco e carinho para que nós leitoras, possamos desfrutar de momentos maravilhosos e mágicos. É uma pena que eu não tenha condições de ir toda a semana na banca para comprar os livros, pois infelizmente, estão caros. Mas se eu tivesse condição financeira, também não iria comprar de romances de gregos. Talvez eu não goste desses romances, pois já vivo há 20 anos com um machão. Adoro finais felizes,principalmente daqueles em que no final eles acabam com bebezinhos. Mas fora isso, você está de parabéns pelos romances publicados, pois sei o quanto é difícil contentar a todos. Parabéns, felicidades de uma fã de romance: Marisa Plim de Jesus. Diante disso, você pode, ainda, estar perguntando: mas essas leitoras, ao ler esses romances, constroem leituras repetidas, iguais? Claro que não. Já dissemos acima e repetimos: “a compreensão não requer que os conhecimentos do texto e os do leitor coinci- dam, mas que possam interagir dinamicamente”. Isso quer dizer que cada leitora interage com o autor por meio do texto de manei- ra diferente, pois cada uma delas possui conhecimentos mais ou menos amplos e histórias de vida e de leitura também muito dife- rentes. Diferentes leitores fazem usos diferentes de um mesmo texto. Falta dizer-lhe o que você já sabe, por experiência própria: não existe no mundo somente uma prática de leitura, mas várias: a prática de leitura dos romances sentimentais, da bíblia, do jornal, 32 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura das revistas femininas, das leis, das obras acadêmicas, dos quadri- nhos – tanto impressos quanto na tela do computador. Essas práti- cas gozam de maior ou menor prestígio na vida social, mas todas elas possuem seus direitos e representam os seres humanos com seus gestos e maneiras de apropriação e de uso particular e cada vez único do que lhes cai na mão. Cada prática de leitura tem ob- jetivos diferentes e exige habilidades diferentes. Portanto, depois dessas considerações, não vá cair na mania de discriminação, no que chamam de etnocentrismo letrado. O que sig- nifica isso? É considerar que só existe uma boa prática de leitura: aquela das obras consagradas pela elite cultural e que as outras não contam ou merecem apenas a denominação de “porcaria” ou de “perda de tempo”. Para terminar esta parte, leia o artigo Como ensinar a ler a quem já sabe ler, de Marlene Carvalho e Maurício Silva, na revista Ciência Hoje, volume 21, número 21, de junho de 1996, e depois discuta dois pon- tos que considerar importantes com os cursistas no Fórum. O texto está disponível no site www.ead.ufms.br , no banco de textos da sua disciplina. Para saber mais 33Leitura e Produção de Textos UNIDADE 2 O texto e suas condições de produção e interpretação 34 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Ler e escrever textos na perspectiva da interação Esta é a segunda unidade do módulo. Mãos à obra. O objetivo central é que você possa conhecer e discutir alguns fundamentos e pressupostos conceituais sobre o texto e a leitura como atividades de produção de sentido na interação humana. Para tornar a leitura mais suave e as discussões focadas em aspectos específicos, dividimos esta segunda unidade em quatro subunidades. 2.1 A produção de textos escritos: conhecimentos a serem considerados. 2.2 O contexto nos processos de construção de sentidos na leitura e na escrita. 2.3 O texto e suas relações intertextuais. 2.4 Texto e gênero textual. Pode começar a leitura! Mas, lembre-se: você não está em uma aula daquelas entre quatro paredes. Você é o caminhante, o aprendente. Você é que faz o seu mapa de viagem. Pode iniciar a leitura pela subunidade que mais lhe interessar. 35Leitura e Produção de Textos TEXTO-BASE O texto como elemento de mediação entre os sujeitos envol- vidos na produção de sentidos. Ao iniciarmos esta seção, é necessário que comecemos a refletir sobre o papel dos textos, orais e/ou escritos, verbais e não verbais, sobre temas pertinentes às áreas de conhecimento a serem traba- lhadas no desenvolvimento do curso, na modalidade EaD, no qual você ingressou. São os textos que possibilitam a configuração do material didá- tico, impresso, audiovisual e multimídia, no qual são feitos os re- cortes das áreas de conhecimento trabalhadas no curso. Por meio dos textos, é possível garantir que sejam realmente trabalhados, no curso, os principais conceitos, definidos em cada área de conhecimento, ou disciplina, ou módulo, ou unidade. É também mediante os textos que, nas relações entre os sujeitos da prática educativa, são construídos conceitos, idéias e reflexões essenciais para a construção de sentidos que se pretende produzir no desenvolvimento das matérias constantes no currículo do curso. Evidencia-se, assim, no âmbito da universidade, a indiscutível utilidade dos textos, tanto por seu caráter interdisciplinar, configu- rado nas atividades de fala/escuta, escrita/leitura, quanto por ser um lugar no qual se pode refletir melhor sobre o funcionamento da linguagem e da língua na construção do(s) sentido(s) pretendido(s). Fora da universidade, a proficiência na leitura e na escrita “...tor- na o indivíduo capaz de compreender o significado das vozes que se manifestam no debate social e de pronunciar-se com sua pró- pria voz” (PLATÃO & FIORIN, 2003, p. 3) , o que torna tal aptidão essencial para o exercício da cidadania. No texto, a seguir, você poderá compreender melhor essa questão: 2 CONHECIMENTOS DE QUE DEPENDEM A LEITURA E A ESCRITA DE TEXTOS Acompanhe nossa reflexão a respeito. Ver Glossário Saiba mais 36 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Foi o texto escrito, mais que o desenho, a oralidade ou o gesto, que o mundo ocidental elegeu como linguagem que cimenta a cidadania, a sensibilidade, o imaginário. É ao texto escrito que se confiam as produções de ponta da ciência e da filosofia; é ele que regula os direitos de um cidadão para com os outros, de todos para com o Estado e vice-versa. Pois a cidadania plena, em sociedades como a nossa, só é possível — se e quando ela é possível — para leitores. Por isso, a escola é direito de todos e dever do Estado: uma escola competente, como precisam ser os leitores que ela precisa formar. (LAJOLO, Marisa. Folha de S. Paulo, 19/9/1993 (com adaptações). Entretanto, no nosso cotidiano, observamos que jornais fala- dos, mensagens gravadas em fita, telefonemas substituem tradici- onais meios de comunicação que se utilizavam da língua escrita. A língua falada parece ocupar um espaço de maior prestígio. Diante das circunstâncias atuais e considerando as modernas tecnologias de comunicação e informação, como é possível expli- car a manutenção do prestígio da escrita? Compare a sua resposta com a apresentada no texto que segue, Você já havia pensado nisso antes? A manutenção do prestígio da escrita se deve fundamentalmente à sua função de produção de conhecimento e, ainda que im- perfeita, é a ferramenta disponível para essa tarefa. De fato, ao escrevermos, não estamos expressando um pensamento já for- mado, mas o estamos formando à medida que escrevemos e, por isso mesmo, a língua escrita não deve mais ser vista como ‘espelho do pensamento´, mas como a responsável por sua estruturação. Os conhecimentos se vão formando simultanea- mente à sua expressão lingüística. Nesse terreno, é visível a su- perioridade da escrita sobre a fala: esta última, pela ausência de registro, possibilita desvios de raciocínio, incompletude, con- tradições etc — problemas mais facilmente controlados pela primeira. CARNEIRO, Agostinho Dias. Para que aprender a escrever? In:— Redação em construção: a escritura do texto. 2. ed. rev. e ampl., São Paulo: Moderna, 2001. p. 9. 37Leitura e Produção de Textos 2.1 A produção de textos escritos: conhecimentos a serem considerados Nas considerações anteriores, explicitamos uma concepção de texto correspondente à de Koch e Elias (2006, p. 214), ou seja, tex- to como “... um projeto de dizer constituído em uma dada situa- ção comunicativa, para alguém, com certa finalidade e de determi- nado modo, dentre tantos outros possíveis”. Como você já deve estar imaginando, esse projetode dizer, a par- tir do qual o produtor/locutor constitui os sentidos do texto, interagindo dinamicamente com o interlocutor/leitor pressupos- to, envolve uma série de estratégias sociocognitivas. Nesse caso, estratégia significa “....uma instrução global para cada escolha a ser feita no curso da ação” (KOCH, 2002, p. 50). Quando produzimos textos, utilizamos essas estratégias para mobilizar vários tipos de conhecimentos armazenados na nossa memória. Acompanhe nossa reflexão a respeito. Dizer que utilizamos estratégias, no processamento textual, sig- nifica que realizamos, ao mesmo tempo, vários procedimentos interpretativos orientados para os objetivos que pretendemos atin- gir num determinado texto. Tais procedimentos implicam três sis- temas de conhecimento (KOCH, 2002, p. 48): Você saberia dizer como isso ocorre e que conhecimentos são esses? conhecimento lingüístico conhecimento enciclopédico conhecimento interacional Conhecimento lingüístico Se você respondeu que diz respeito ao conhecimento gramati- cal e ao lexical, necessário para a adequada articulação som-senti- do, acertou. É esse conhecimento que acionamos, por exemplo, para organizar o material lingüístico na superfície textual, utilizan- do os recursos coesivos que a língua nos proporciona, selecionan- do as palavras adequadas ao tema e/ou aos modelos cognitivos ativados. Como exemplo, vejamos a relevância do conhecimento lingüístico para a compreensão do Texto 1, a seguir. Glossário Você saberia dizer o que significa um conhecimento propriamente lingüístico? 38 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Texto 1: As cobras. Luís Fernando Veríssimo. Disponível em: http://www.portalliteral.terra.com.br . Acesso em: 27/8/07. A compreensão dessa tirinha implica observar a relação entre a idéia 1 É o lucro que estimula o empreendimento [quadrinho 1], e a idéia 2 — o lucro deve sempre ser honesto [quadrinho 2], estabelecida pelo elemento coesivo – mas -, conjunção que expres- sa oposição relativamente ao esperado. No caso, como as Cobras tinham respondido Certo, Certo à afirmação de Queromeu, o corrupião corrupto, sobre o lucro, o esperado seria que elas concor- dassem com ele. Entretanto, o uso do mas expressa justamente a oposição à res- posta esperada. No terceiro quadrinho, que completa o sentido global do texto, é preciso saber o que significa dogmatismo para entender a reação irônica de Queromeu, personagem que represen- ta “... um assumido criminoso do colarinho branco. Ele até se orgulha disso, defen- dendo os direitos de seus pares: “Se todo mundo rouba no Bra- sil, por que corrupto não pode roubar?”. Para ver outros textos exemplificativos, consulte um dos nossos livros-texto, nas Referências indicadas para o Módulo I: Leitura e Produção de Textos. dogmatismo [4] [...] qualquer pensamento ou atitude que se norteia por uma adesão irrestrita a princípios tidos como incontestáveis. Dicionário Eletrônico Houaiss. KOCH, Ingedore G. V. & ELIAS, Vanda M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006 .p. 40-42. Conhecimento enciclopédico ou conhecimento de mundo Se a sua resposta levou em conta a palavra “mundo”, você está na pista certa. Trata-se de conhecimentos gerais sobre o mundo, assim como de conhecimentos relativos a experiências pessoais, a eventos situados no tempo e no espaço. São esses conhecimentos que possibilitam ao produtor/ autor inscrever sentidos no texto. Observe o Texto 2: E, agora, você saberia dizer que conhecimento é esse? Saiba mais Acesse o site http:// www.portalliteral.terra.com.br, para saber mais sobre as personagens de Luís Fernando Veríssimo. Saiba mais 39Leitura e Produção de Textos Texto 2: Níquel Náusea – Fernando Gonsales Disponível em: http://www2.uol.com.br/niquel/benedito.shtml. Acesso em: 28/8/07. Agora, REFLITA: o que precisamos saber para entender esse texto? O que devemos levar em conta na leitura dos enunciados mas por que diabos eles querem saber quantas patas tem uma aranha? Vendidos! [quadrinhos 2 e 3]? Para isso, devemos considerar as seguintes informações: • as personagens são criações do autor de tirinhas; • as tirinhas são, em geral, publicadas em jornais e revistas, ou disponibilizadas na internet; • criada pelo cartunista brasileiro Fernando Gonsales, a personagem da tirinha acima é Benedito Cujo, um vestibulando profissional; o sonho dele é passar no vestibular. Passar longe. Ao ativar essas informações, interagindo com o autor, por meio do texto, o leitor atribui um sentido aos enunciados em questão e a compreensão ocorre de modo satisfatório. Você se lembra do termo interação que já usamos na primeira parte deste texto? Tente conceituar esse termo em seu caderno de anotações, antes de acompanhar a nossa reflexão a respeito do conhecimento interacional. Consulte o Glossário Conhecimento interacional O conhecimento interacional diz respeito à dimensão interpessoal da linguagem, ou seja, às formas de interação por meio da linguagem, e envolve os conhecimentos: ilocucional, comunicacional, metacognitivo e superestrutural. Conhecimento ilocucional: possibilita, de modo direto ou indi- reto, o reconhecimento dos objetivos pretendidos pelo produtor do texto em uma determinada situação interacional. Veja o exem- plo, Texto 3. Para saber mais sobre Benedito Cujo e outros personagens de Fernando Gonsales, acesse o site: http://www2.uol.com.br/niquel/benedito.shtml Saiba mais 40 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Texto 3: Níquel Náusea – Fernando Gonsales Disponível em: http://www2.uol.com.br/niquel/benedito.shtml. Acesso em: 28/8/07. Desta vez, é preciso que observemos o que o autor da tirinha propõe que consideremos na produção de sentido do texto. Você sabe por quê? Vejamos: • no primeiro quadrinho, a personagem Níquel Náusea dispõe- se a dizer uma “frase feita” para Gatinha, a rata que vive tendo filhotinhos, e que ele acha uma “gata”; • no segundo quadrinho, ele diz: “o importante é conservar a criança que existe dentro de você”, em sentido figurado (“frase feita”); • no terceiro quadrinho, Gatinha, demonstra “falta” de conhe- cimento ilocucional, ao responder: Eu tento, mas elas acabam nascendo, em sentido literal, o que produz um efeito de sentido humorístico. Conhecimento comunicacional Se a sua resposta foi positiva, acertou, porque o conhecimento comunicacional também está relacionado aos objetivos desejados na produção de sentido do texto por meio de recursos adequados para atingir tais objetivos, como, por exemplo: • apresentar, numa situação concreta de comunicação, a quan- tidade de informação necessária para que o interlocutor seja ca- paz de reconstruir o objetivo da produção do texto; • selecionar a variante lingüística compatível com a situação de interação; • observar a adequação do gênero textual à situação de comuni- cação. Você observa algum tipo de relação entre esse conhecimento e o anterior? frase feita ou expressão idiomática: locução ou frase cristalizada numa determinada língua, cujo significado não é deduzível dos significados das palavras que a compõem e que geralmente não pode ser entendida ao pé da letra. [Dicionário Eletrônico Antônio Houaiss]. Saiba mais 41Leitura e Produção de Textos Para exemplificar esse tipo de conhecimento, vamos imaginar que você escreva um bilhete assim: Que informações estão faltando? Falta identificar: o remetente, o destinatário, o local e a data. Sem esses dados será impossível determinar o fato referido no bilhete. Conhecimento metacognitivo. O conhecimento metacognitivo possibilita ao produtor garantir a compreensão do texto e conseguir a adesão do interlocutor a res- peito dos objetivos pretendidos com esse texto, evitando distúrbi- os na comunicação. Utiliza, para isso, vários tipos deações lingüís- ticas, configurando-as no texto por meio de sinais de articulação ou apoio textuais, como, por exemplo, recursos gráficos, repeti- ções, paráfrases, parênteses de esclarecimento. Observe, na tirinha apresentada a seguir (Texto 4), os recursos lingüísticos e gráficos utilizados para marcar as falas das personagens de Laerte: Gato (branco) e Gata (preta). Texto 4: Piratas do Tietê – Laerte Estou aqui, agora. Pode vir. Qual a função desse conhecimento? Registre a sua resposta no caderno de anotações, antes de acompanhar a nossa reflexão a esse respeito. Disponível em: www.laerte.com.br . Acesso em 30/8/07. Eis os recursos utilizados pelo autor e fundamentados no conhecimento metacognitivo: • nas falas do Gato: a palavra LUTA sublinhada, retomada três vezes, e relacionada a três deferentes temas: “...luta contra a miséria?”; “... luta contra a opressão?”; “...luta por liberdade?”; • na fala da Gata: a palavra “ECOLOGIA”, negritada e entre aspas. 42 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Conhecimento superestrutural ou Conhecimento sobre gêneros textuais. Vejamos. O conhecimento superestrutural refere-se às superestruturas ou modelos textuais globais, ou seja, os gêneros textuais. É esse co- nhecimento que possibilita identificar textos como exemplares adequados aos diversos eventos da vida social, assim como a orde- nação ou seqüenciação textual de acordo com os objetivos preten- didos. Exemplos de gêneros textuais: bilhete, carta, resumo, rela- tório, horóscopo, fábula. Esperamos ter evidenciado que a construção de sentidos na leitura e na produção de textos, atividades altamente comple- xas, depende de vários tipos de conhecimentos socioculturalmente determinados e vivencialmente adquiridos e que constituem o contexto, conceito que estudaremos na pró- xima subnidade. ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM O que você pode dizer para atender o que é pedido nas três questões abaixo? Coloque seus comentários no FORUM. 1) Ao ingressar num curso superior, na modalidade Educação a Distância – EaD -, qual é a sua opinião sobre o papel dos textos, falados e escritos, verbais e não verbais, considerando os temas pertinentes às áreas de conhecimento a serem trabalhadas durante esse curso e depois dele? 2) Depois dessas reflexões, recorde como foram as suas aulas de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental e Médio. Tente lem- brar-se do discurso dos professores, para ver que concepção de língua e de leitura (rever unidade I) eles adotavam no ensino da disciplina. Se adotavam a primeira concepção, certamente pergun- tavam, em algum momento de suas instruções de aula: o que o autor quis dizer no texto? Se adotavam a segunda concepção, per- guntavam: o que o texto quer dizer? Ou adotavam as duas concep- ções, fazendo uma salada? 3) Suponhamos que você seja convidado a escrever um peque- no artigo sobre o que é e de que depende a leitura, para publicar Esse tipo de conhecimento refere-se a quê? Você saberia citar, como exemplos, os nomes de alguns gêneros textuais? 43Leitura e Produção de Textos BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana, 4. ed. São Paulo: Vozes, 1977. TODO PONTO DE VISTA É A VISTA DE UM PONTO Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus Olhos e qual a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer, como alguém vive; com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação. Ler o poema, intitulado “Todo ponto de vista é a vista de um ponto”, de Leonardo Boff. 2.2 O contexto nos processos de construção de sentidos na leitura e na escrita Nos processos de leitura e escrita, o texto corresponde a um projeto de dizer construído em uma dado con- texto, ou seja, em cada situação comunicativa. O que é isso: projeto de dizer? A gente faz projeto para dizer algu- ma coisa? Parece estranho, mas não é. Nós projetamos, sim, o que e como dizer as coisas, em cada contexto, considerando: quem fala, com quem, quando, onde, em que condições, com que propósito etc. E não é só na modalidade escrita, na falada também. Entendeu? no jornalzinho criado por uma turma do primeiro ano do seu cur- so. Para isso, consulte o texto-base e faça as leituras indicadas no “saber mais” Para saber mais 44 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Exemplo. Você é uma mulher. No ponto de ônibus, você preci- sa pedir uma informação para um homem. Você não o conhece. Num segundo, você planeja como se dirigir a ele para obter a in- formação que deseja. Desde o vocativo com que vai se dirigir a ele, até a entonação da voz, tudo é projetado. Você tem a possibilidade de dirigir-se a ele com as expressões vocativas: cara; homem, se- nhor; dito cujo, gostosão, lindo, moço etc. As possibilidades que a língua lhe oferece são inúmeras. Você escolhe o vocativo mais apro- priado, mais conveniente para a situação. E tem de fazer isso, pois se agir de qualquer jeito, pode não obter a informação desejada e até causar má impressão ou arrumar encrenca. Todo dizer é um projeto de dizer. Mais um exemplo? Lá vai um na modalidade es- crita: Texto 5. Texto 5: Menino cheio de coisa Vejam só: aos nove anos e três meses de idade, Serginho está deitado em baixo das cobertas com uma calça de veludo de duzentos e vinte reais, camiseta de quarenta e cinco, tênis que pisca quando encosta no solo, óculos de sol com lentes amarelas, taco de beisebol, jaqueta de náilon lilás, boné da Nike, bola de futebol de campo tamanho oficial, dois times de futebol e botão, CD dos Tribalistas, joystick, Gameboy, uma caixa de bombom de cereja ao licor, dois sacos de jujuba, um quebra-cabeça de mil e qui- nhentas peças, um modelo em escala do “F” cento e dezessete (desmontado), chocolate pra uma semana, três pacotes de batatinha frita (novidade, com orégano), dois litros de refrigerante com copo de canudinho combinando, quatro segmentos retos e quatro curvos de pista de autorama, dois trenzinhos (um de pilha e um de corda), controle remoto, duas raquetes de pingue-pongue, duas canecas do Mickey e nem adianta seu pai, do outro lado da porta trancada pelo menino emburrado, dizer que sua mãe já volta. Fonte: BONASSI, Fernando. Folha de S. Paulo, 12 mar. 2005. Folhinha. Na leitura e produção de sentido desse texto, você deve consi- derar: a) o contexto lingüístico, ou seja, o co-texto, que já orienta o nosso olhar na construção da imagem do menino, sugerida no próprio título: Menino cheio de coisa; b) o gênero textual miniconto e sua funcionalidade. Como vi- mos na Unidade I, cada gênero serve para realizar uma forma de ação. Que ação se faz por meio do miniconto? Certamente uma ação breve de comunicação de um conteúdo narrativo ficcional, com fins literários; c) a tematização proposta no título Menino cheio de coisa, que situa o protagonista da história nos tempos atuais, mais especifi- 45Leitura e Produção de Textos camente no contexto das relações familiares, exigindo do leitor uma compreensão não ingênua da situação. Isso porque não se trata de relato de uma cena familiar inocente, mas de uma críti- ca bem humorada à educação das crianças, sustentada nos valo- res do consumismo; d) a data da publicação, que situa o relato no tempo: a atual sociedade de consumo; e) o meio de veiculação: o jornal Folha de S. Paulo, mais precisa- mente o Caderno Folhinha, dirigido a crianças e a seus pais. Por isso, o conto é míni, para umaleitura rápida. O jornal não admi- te textos muito longos. Os exemplos acima nos ensinam que, tanto na fala como na escrita, os autores e os leitores fazem uso de uma multiplicidade de recursos para produzir sentidos. Portanto, consideram recursos que vão muito além das palavras que compõem o texto. Em outros termos, para ler e escrever, é preciso levantar os olhos do texto para o seu contexto. Desconfiamos que já entendeu tudo sobre o contexto, não é? Então confira: O que você entendeu, até aqui, constitui os diferentes tipos de contextos englobados por um contexto mais abrangente: o con- texto sociocognitivo, do qual trataremos mais adiante. É preciso entender que há uma diferença entre o contexto de pro- dução e o contexto de uso de um texto. No caso da interação face a face, o contexto de produção e o contexto de uso coincidem. Na interação por meio da escrita, não. No miniconto, Texto 5, o mais importante para a interpretação é o contexto de uso. Quando o leitor não considera ou ignora o contexto de produ- ção, no ato de leitura de um texto, pode produzir sentidos absur- dos e até cômicos. No romance A Rainha dos Cárceres da Grécia, de Osman Lins, há uma cena em que, por volta de 1970, personagens da periferia de Recife lêem a notícia da morte de Getúlio Vargas num pedaço de jornal antigo, tocado até eles pelo vento. Por falta do contexto de produção (nome e data da edição do jornal), bem como de conhecimento atualizado do cenário político nacional etc, Continuemos! 46 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura concluem: Getúlio suicidou-se hoje! Você pode rir, pois, como sabe, o suicídio ocorreu em 1954. Podemos concluir que os sentidos de um texto não dependem só da estrutura textual em si mesma, ou seja, do co-texto. Um lei- tor que considerasse apenas a estrutura, não faria um boa leitura. Por quê? Pelo fato de que os objetos-de-discurso a que o texto faz referência são apresentados de forma incompleta. Muita coisa fica implícita. Por isso, é comum, nos estudos de lingüística textual, a comparação do texto com um iceberg. O que é um iceberg? É um imenso pedaço de gelo que fica boiando no mar: uma pequena parte aparente à flor da água e a maior parte submersa. Assim também ocorre no texto: para entender o que está aparente, na superfície dele (o explícito), precisamos do conhecimento do que não está aparente (o implícito). A construção de um sentido para o texto depende da consideração do todo, da mesma forma que um comandante de navio só pode ter idéia precisa da dimen- são de um iceberg, se considerar tanto o que aparece quanto o que não aparece dessa montanha de gelo. Enfim, o contexto, como o iceberg, é tudo aquilo que, de alguma forma, contribui para ou determina a construção do sentido do texto. Falta dizer o seguinte: depois que o texto sai das mãos do seu autor, passa a ter uma existência independente. Como você viu acima, o personagem do romance de Osman Lins lia, nos anos 1970, uma notícia escrita em 1954, sobre um acontecimento tam- bém ocorrido nesse ano. Por falta de conhecimento e de traquejo na prática de leitura em geral e de jornal em particular, trocou o contexto de produção pelo de uso. Isso resultou num erro de leitu- ra com efeito de sentido cômico ou absurdo: um fato ocorrido muito antes foi compreendido como tendo acabado de ocorrer. Mas você, certamente, está pensando na fofoca, não é? Como surgem os efeitos de sentido desastrosos ou maldosos do gênero de texto chamado fofoca? Surgem justamente porque o fofoqueiro omi- te, falseia, altera, para mais ou para menos, o contexto do que diz. ATIVIDADE DE APRENDIZAGEM Agora, convidamos você a ampliar os seus conhecimentos so- bre o contexto, indispensável para a compreensão e para a cons- trução dos sentidos do texto. Leia as páginas 66 a 71, do livro Ler e compreender os sentidos do texto (KOCH & ELIAS, 2006). Em se- guida, escreva um pequeno tex- to, dizendo o que é preciso saber do contexto, para fazer uma lei- tura da tirinha, texto 6. Texto 6 Não precisa dizer mais. 47Leitura e Produção de Textos Parece coisa desconhecida, mas não é bem assim. Quantas ve- zes você mesmo já não recorreu a um outro texto para escrever o seu? Quantas vezes você não empacou na leitura de um texto por desconhecer a referência a um outro texto nele mencionado? Eu já tive esse problema. Muitas vezes! De duas eu não esqueço: uma quando vi, pela primeira vez, o círculo no sol lá na roça; a outra quando topei com um tal de Iago na leitura. Conto o caso do Iago; o do círculo no sol você pode ler. Estava lendo Dom Casmurro, de Machado de Assis. Lá pelo meio da leitura, encontrei a seguinte frase: “Escobar foi minha ponta de Iago”. Confesso que fiquei boiando. Não conseguia entender nada. Iago? Ponta de Iago? O que seria isso? O jeito foi ir desconfi- ando e procurando estabelecer relação dessa passagem com o resto do texto, mas não tinha nada disso no resto do romance. Então passei a procurar, fora do texto, um sentido para a passa- gem: no dicionário, na conversa com amigos e, por fim em outras obras literárias. Aí então encontrei a palavra Iago. Um nome pró- prio. Estava em um outro texto, na peça teatral, intitulada Otelo, de Shakespeare. Iago é o nome do personagem que destila o vene- no do ciúme em Otelo. Por isso, Otelo termina por matar a sua amada Desdêmona. Então entendi a passagem, ralacionando o tex- to de Machado de Assis ao de Shakespeare. Entendeu? Conhecer o texto-fonte é condição necessária para a construção do sentido na leitura. Conforme Koch & Elias (2006, pp. 85-6): O caso do círculo no sol está publicado na revista Rabiscos de Primeira: caderno dos alunos do Curso de Letras da UFMS, ano I, número I, outubro de 2001, páginas 80-87, sob o título “Da Taipa do fogão”. Ver o fragmento VII desse texto: O círculo no sol ou o leitor de um livro só. Você encontra esse fragmento no site da EaD, também. Meu nome é José Genésio Fernandes. “Vale reiterar que, para o processo de compreensão, além do co- nhecimento do texto-fonte, necessário se faz também considerar que a retomada de texto(s) em outro(s) texto(s) propicia a constru- ção de novos sentidos, uma vez que são inseridos em outra situa- ção de comunicação, com outras configurações e objetivos. Do que dissemos até o momento, podemos depreender que, stricto sensu, a intertextualidade ocorre quando, em um texto, está inseri- do outro texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da memória social de uma coletividade. Como vemos, a intertextualidade é elemento constituinte e constitutivo do processo de escrita/leitura e compreende as diver- sas maneiras pelas quais a produção/recepção de um dado texto depende de conhecimentos de outros textos por parte dos interlocutores, ou seja, dos diversos tipos de relações que um texto mantém com outros textos.” Saiba mais 2.3 Texto e intertextualidade Desde o começo, insistimos no fato de que a leitura depende de muitos conhecimentos relacionados ao texto e ao contexto. Vamos tratar agora de mais um desses conhecimentos: a intertextualidade. Para começar, o que é intertextualidade? 48 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura ATIVIDADE DE APRENDIZAGEM Nesta atividade, você vai ler o que está em “A” e em “B”, abaixo, e depois fazer o que se pede em “C”: A) Primeiro, leia o seguinte conto, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em O poder ultrajovem: O PODER ULTRAJOVEM – Que é que tem trazer uma flor para casa? – Veio do oculista e trouxe uma rosa. Acha direito? – Por que não? – Eu esperei, ela me disse que foi o oculista que deu a ela. Esta- va num vaso, ela achou bonita, ele deu. – E daí? – Então uma senhora casada vai ao oculista e o oculista lhe dá uma rosa? Que lhe parece? – Que ele é gentil, apenas. – Pois eu não vou nessa de gentileza de oculista. Não há rosas nos consultóriosde oftalmologia. E que houvesse. Tem pro- pósito uma coisa dessas? Ela acabou chorando, dizendo que eu sou um bruto, um rinoceronte. Engraçado. Minha mulher vem com uma rosa para casa, uma rosa dada por um ho- mem, e eu não devo achar ruim, eu tenho que achar muito natural. – Desde quando é proibido uma senhora ganhar flor de uma pessoa atenciosa? Que sentido erótico tem isso? – Tem muito. Principalmente se é rosa. Ora, não tente negar o significado das ofertas florais entre dois sexos. O oculista não podia dar essa flor, nem ela podia aceitar. O pior que não deve ter sido o oculista. – Quem foi, então? – Sei lá. Numa cidade do tamanho do Rio, posso saber quem deu uma rosa a minha mulher? – Vai ver que ela comprou na loja de flores da esquina, e disse aquilo só para fazer charminho. – Ela nunca fez isso. Se fez agora, foi para preparar terreno, quando chegar aqui uma corbelha de antúrios e hibiscos. – Não diga uma coisa dessas. – Digo o que penso. Estou inteiramente lúcido, só me conduzo pelo raciocínio. Repare no encadeamento: os vestidos moder- nos; os modos (só vendo a maneira dela sentar no sofá); a rosa, que ela foi correndo levar para a mesinha de cabeceira do quarto. Cada uma dessas coisas é um indício; reunidas, são a evidência. – Permita que eu discorde. – Discorda sem argumentos. A Elsa não é mais a Elsa. Demora mais tempo no espelho. Fica olhando um ponto no espaço, abstrata. Depois, sorri. Estou decidido 49Leitura e Produção de Textos – A quê? – Vou segui-la daqui por diante. Contrato um detetive. E logo que tenha a prova, me desquito. – Não vai ter prova nenhuma, juro. Ponho a mão no fogo por Dona Elsa. – Pensei que você fosse meu amigo. Fiz mal em me abrir. Va- mos mudar de assunto, que ela vem chegando. Mas repare só que olhos de Capitu que ela tem, eu nunca havia reparado nisso! Esquecia-me de dizer que meu amigo tem 82 anos, e Dona Elsa, 79. Carlos Drummond de Andrade B) Em segundo lugar, leia as páginas 75 a 96, do livro Ler e compre- ender os sentidos do texto (KOCH & ELIAS, 2006). C) Agora, depois dessas duas leituras, imagine uma jovem do inte- rior que lhe manda um e-mail, dizendo que não entendeu a parte sublinhada do conto acima. Com os conhecimentos que tem do que foi exposto aqui e do capítulo lido, o que lhe diria, por e-mail, para judá-la. Coloque sua resposta no FÓRUM. 2.4 Texto e gêneros textuais Gênero: você já conhece essa palavra. Já definimos gênero como formas de ação social das quais lançamos mão nas mais diferentes situações comunicativas. Vamos alargar esses conhecimentos. Veja o seguinte diálogo de duas colegas de escola no ponto de ônibus: – Minha amiga, acho que vou perder a prova hoje. Tô atrasada. O ônibus já passou? – Ainda não. Tá com a passagem aí ou esqueceu também? Isso que você tem na mão é conta de luz, não? – Nossa! Tô confusa hoje! Mas tá aqui a passagem. O que eu esqueci mesmo foi a carta para o meu namorado e o pedido de trancamento de uma disciplina na escola. Acordei um pou- co tarde e ainda tive de escrever um bilhete para meu pai que vai chegar do trabalho. – Você certamente não leu seus e-mails ontem, nem papeou no chat e muito menos leu a notícia do jornal? – Não, por quê? Aconteceu alguma coisa? – O professor já era: entregou pedido de demissão... nem sei se vai haver prova hoje. Sossegue. 50 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Prova, passagem, conta de luz, carta, pedido de trancamento de disciplina, bilhete, e-mails, notícias, chat, e pedido de demissão são gêneros de textos, formas por meio das quais realizamos ações so- cialmente reconhecidas. Veja que as duas amigas só mencionam o nome do gênero e nada mais precisam explicar, pois os gêneros apresentam alto poder preditivo e interpretativo das ações realiza- das. Como afirma Ingedore, (2006, p. 106), os gêneros “são consti- tuídos de um determinado modo, com uma certa função, em da- das esferas de atuação humana, o que nos possibilita (re)conhecê- los e produzi-los, sempre que necessário”. Note bem: o gênero é construído socialmente; não é uma construção individual. Se cada um, por si, fosse criar um gênero para se comunicar, o processo de leitura e compreensão seria muito complicado. Bakhtin (1992: 301- 302) afirma: “Na conversa mais desenvolta, moldamos nossa fala às formas precisas de gênero, às vezes padronizados e estereotipados, às vezes mais maleáveis, mais plásticos e mais criativos. [...] Apren- demos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras pala- vras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a exten- são aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêne- ros do discurso e não os dominássemos, se tivéssemos de criá- los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de cons- truir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal se- ria quase impossível” O gênero não é criado por um só pessoa. É fruto do trabalho coletivo e surge para estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia. Conforme Marcuschi (2002), “caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades socioculturais, bem como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação a so- ciedades anteriores à comunicação escrita”. Os meios tecnológicos modernos possibilitam o surgimento de uma enormidade de novos gêneros, os chamados gêneros emer- gentes. Já dissemos antes: estamos numa textosfera. Vamos percebendo, portanto, um pressuposto básico: é impos- sível se comunicar verbalmente sem o uso do gênero como uma 51Leitura e Produção de Textos ferramenta, assim como é impossível se comunicar verbalmente sem um texto. Essa visão segue a noção de língua como atividade social, histórica e cognitiva. Falamos disso. Assim, em um dado meio sociocultural e em um tempo históri- co determinado, as pessoas, pelo uso constante que fazem da lin- guagem, para realizar ações socialmente concebidas, criam os gê- neros, operam com eles e vão, assim, desenvolvendo uma compe- tência metagenérica. O que é isso? É a competência que possibilita ao leitor e produtor de texto interagir de forma conveniente nas mais diversas práticas sociais. O pai que faz três pedidos respeitosos para que o filho pare de jogar bola na sala, se quer, mesmo, realizar a ação de interromper a atividade imprópria do filho, não pode usar o gênero pedido respeito- so pela quarta vez, mas dar uma ordem. Insistir no pedido é adotar o gênero de texto impróprio para a situação. A mulher que já pediu para o marido não a agredir não pode utilizar o pedido, de novo, se ele insiste na agressão; a forma de ação adequada a ser realizada é a de- núncia com o lavramento de um BO na delegacia. Não proceder da maneira conveniente indica incompetência para agir socialmente por meio da linguagem – e isso, muitas vezes, tem conseqüências lamen- táveis e até trágicas. Observe, ainda, os textos “A”e “B”: Um exemplo! Folha de S. Paulo, 24 de setembro de 2005 Texto A: Texto B: Você se lembra? Pois não. 52 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Veja bem. É a competência metagenérica que orienta a produ- ção de nossas práticas comunicativas e que orienta nossa compre- ensão sobre os gêneros textuais. Ela é muito importante para a atri- buição de sentido ao texto, na hora da leitura. É essa competência metagenérica que permite afirmar que o texto “A” é um recado e que o texto “B” é uma tirinha, jogando com um outro gênero. Égraças a essa competência, observando a composição, o con- teúdo, o estilo, o propósito composicional e o modo de veiculação desses dois textos, que sabemos reconhecer o gênero a que perten- cem. Segundo Fiorin: (2006), isso comprova que os enunciados [...] são determinados pelas condições específicas e pelas finali- dades de cada esfera. Essas esferas de ação ocasionam o apare- cimento de certos tipos de enunciados, que se estabilizam preca- riamente e que mudam em função de alterações nessas esferas de atividades. Só se age na interação, só se diz no agir e o agir motiva certos tipos de enunciados, o que quer dizer que cada esfera de utilização da língua elabora tipos relativamente está- veis de enunciados. [...] Conteúdo temático, estilo e organiza- ção composicional constroem o todo que constitui o enuncia- do, que é marcado pela especificidade de uma esfera de ação (p. 61-62; ênfase acrescentada). Portanto, todo gênero tem uma forma, um conteúdo temático e um estilo; elementos indissociáveis na constituição do gênero. Estamos afirmando que produzimos o gênero de determinada for- ma, mas, note bem: como isso, não queremos dizer que os gêne- ros não variam (o e-mail é uma variação, um descendente da carta íntima) e nem que a forma seja o elemento definidor do gênero em detrimento da função. Voltemos ao texto “A” e “B” acima, para observá-los do ponto de vista da forma da composição, do conteúdo temático e do es- tilo? Observamos que o texto “A” pertence ao gênero recado. Trata- se de um texto cuja forma de expressão é bastante livre, pois pode conter elementos verbais e não verbais. Há a utilização de palavras, de desenhos e de cores e é escrito à mão. O suporte desse gênero de texto pode ser o bloco de recados ou qualquer papel disponível no momento em que surge a necessidade da comunicação. Trata- se de um espaço limitado, muito menor do que o da carta, por exemplo. Do ponto de vista do conteúdo temático, os recados tra- tam sempre da comunicação ligeira de assuntos da vida cotidiana entre parceiros geralmente conhecidos nas situações familiares ou de trabalho. É essa a função do recado. É essa a ação que realiza- 53Leitura e Produção de Textos mos por meio dele. Do ponto de vista do estilo, o autor do recado pode fazer muitas escolhas: pode ser mais ou menos subjetivo, mais ou menos formal na escolha do nível de linguagem adotado. No texto “A”, a relação entre os parceiros da comunicação é íntima, a linguagem é informal e existe até um tom poético com o desejo do raminho. Afirmamos que o autor de recados é bastante livre para compô- lo, mas quem é totalmente livre neste mundo? Ninguém. Na escri- ta de qualquer gênero de texto, oral ou escrito, há uma margem de liberdade para inovações, mas existem as prescrições sociais. Você sabe muito bem que o grau de intimidade ou o nível de linguagem adotados em um simples recado pode dar muito problema e até morte... Dizer que uma pessoa sabe de tudo isso é dizer que ela tem competência metagenérica, que ela tem capacidades para ler e escrever adequadamente um gênero de texto. O texto “B” pertence ao gênero tirinha. Do ponto de vista da forma de expressão, a tirinha é um texto verbal e não verbal. Inclui elementos da língua escrita e falada distribuídos em balões e do desenho (o traço e as cores característicos de cada autor na caracte- rização do espaço e dos personagens). Do ponto de vista do con- teúdo temático, as tirinhas apresentam sempre uma crítica bem- humorada de comportamentos, valores e sentimentos. Essa é sua função. Ninguém lê tirinha para chorar, mas para rir, para se descontrair. Por isso o jornal, que é seu suporte, as coloca lá na frente, depois das notícias sérias, gerenciando assim sua relação com o público leitor. Resta ainda dizer que, para ler bem a tirinha em questão, o lei- tor precisa saber que, muitas vezes, os gêneros são produzidos por meio de relações com outros gêneros. É o que se chama de hibridização ou de intertextualidade intergêneros. O texto “B” não é um recado, como o texto “A”, embora utilize esse gênero de texto como elemento de sua composição. Isso quer dizer que, como for- ma de ação, ele não faz uma comunicação ligeira. O texto “A” é uma tirinha: seu objetivo é fazer rir do menino que escreveu um recado para o pai em suporte impróprio. E, provavelmente, não faz todo mundo rir. Os habitantes da floresta amazônica, que não possuem casa com esse tipo de parede, nem sofá e nem telefone, provavelmente fariam outra leitura. Um texto pode ser reconhecido por nós como uma tirinha e pelos esquimós como um relato de uma cena comum do seu dia a dia. Veja o Texto C na página seguinte: Um exemplo! No filme O amor no tempo do cólera, há uma cena em que o chefe da empresa critica seu secretário porque ele escreve cartas formais como se estivesse escrevendo cartas íntimas, de amor. No filme Nenhum a menos, há uma cena em que um personagem critica o cartaz elaborado pela professora e diz o que um cartaz deve ter para cumprir sua função. Veja esses filmes. Comente as cenas indicadas e coloque seu comentário no Fórum. Saiba mais Pois não! 54 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Texto C Folha de S. Paulo. Wood e Stock são personagens dos anos 1960, tempo de apolo- gia à liberdade sexual. Na tira, já velhos, os dois recordam os bons tempos em que faziam sexo livremente, sem problemas, até com a noiva dos amigos. Deixando de lado outros aspectos do texto, per- guntamos: por quê você ri da tirinha? Certamente porque neste momento histórico, os valores de sua cultura não admitem essas liberdades. Mas se você assistir ao filme Nanuc, verá uma cena em que o esquimó oferece sua esposa a um hóspede como sinal de cordialidade. O vistante não aceita, é claro, e, por isso, o esquimó fica enfurecido com a desfeita do hóspede. Os valores da cultura esquimó são outros. Assim, eles certamente leriam a tirinha acima, sem rir, mas apenas como um relato de um dos acontecimentos comuns da vida familiar. Por isso dissemos: os gêneros textuais são fenômenos histó- ricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Mais um passo: vamos agora diferenciar tipo de texto de gêne- ro de texto. Você já sabe definir gênero, mas, pela sua experiência nos bancos da escola, deve estar se perguntando: descrição, narra- ção, dissertação são gêneros de texto? Seriam formas de ação soci- almente reconhecidas no mundo do trabalho, por exemplo? Al- gum empregador já lhe perguntou: o senhor sabe fazer uma des- crição, uma redação? Eu garanto que nunca. No mundo do traba- lho, perguntam, por exemplo, se você sabe redigir um relatório sobre o estado de uma repartição ou do depósito de compras da loja; um pedido de compra; uma carta formal etc. Esses, sim são gêneros de texto. E então? Se narração, descrição, dissertação não são gêneros de texto, o que são? Segundo Marcuschi (2005, 22): “a) Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de construção teórica definida pela natureza lingüística de sua com- posição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógi- cas). Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção. Está vendo? Um gênero aqui é outro ali. 55Leitura e Produção de Textos b) Usamos a expressão gênero textual como uma noção propo- sitalmente vaga para referir os textos materializados que encontra- mos em nossa vida diária e que apresentam características sócio- comunicativas definidas por conteúdos, propriamente funcionais, estilo e composição característica. Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros.” Com o objetivo de esclarecer as diferenças entre tipos e gêneros, Marcuschi (2005) compara as características de ambasas categori- as, resumindo-as conforme o seguinte quadro: TIPOS TEXTUAIS 1. constructos teóricos definidos por propriedades lingüísticas intrínsecas; 2. constituem seqüências lingüísticas ou seqüências de enunciados no interior dos gêneros e não são textos empíricos; 3. sua nomeação abrange um conjunto limitado de categorias teóricas determinadas por aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas, tempo verbal; GÊNEROS TEXTUAIS 1. realizações lingüísticas concretas definidas por propriedades sóciodiscursivas; 2. constituem textos empiricamente realizados cumprindo funções em situações comunicativas; 3. sua nomeação abrange um conjunto aberto e praticamente ilimitado de designações concretas determinadas pelo canal, estilo, conteúdo, composição e função; Você deve estar se lembrando do tempo de escola. Alguns profes- sores pediam para você escrever descrição, narração como se fos- sem gêneros de texto, com alguma função nas relações comunicati- vas, mas não são gêneros. São tipos de texto que se combinam no interior do gênero. Veja agora, abaixo, à esquerda, as designações teóricas dos tipos de texto e, à direita, exemplos de gêneros de texto: DESIGNAÇÕES TEÓRICAS DOS TIPOS (WERLICH, 1973): • descritivo (enunciado de estrutura simples, verbo estático no presente), • narrativo (enunciado de ação, verbo de mudança no passado, referência temporal e espacial), • expositivo (exposição sintética pelo processo de composição; exposição analítica pelo processo de recomposição, relação parte- todo), • argumentativo (enunciado de atribuição de qualidade, juízo de valor, verbo ser no presente), e • injuntivo (enunciado incitador de ação, verbo no imperativo, uso do modalizador deve, vocativo). EXEMPLOS DE GÊNEROS: Carta íntima, carta formal, relatório, conta de luz, conta de água, partitura,ata, resenha, propaganda, piada,cardápio, noticiário de TV, edital de concurso, romance, soneto, horóscopo, encíclica, nota fiscal, cordel, crônica, lista de compras, conto, chat, cupom de pedágio, instruções de uso, editorial, folder, boleto bancário, receita médica, receita de cosinha, e-mail, monografia, outdoor etc. 56 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Observando a definição de tipo de texto proposta por ele, percebe-se que ela está relacionada à constituição lingüística que ocorre no interior dos gêneros. O tipo seria delimitado por suas características lingüísticas constitutivas, ou seja, os tipos são defi- nidos por seus traços lingüísticos predominantes, por isso, nas palavras do autor, “um tipo textual é dado por um conjunto de traços que formam uma seqüência e não um texto”. Um texto é em geral tipologicamente variado ou, dito de outra forma, hetero- gêneo, portanto, “quando se nomeia um certo texto como ‘narra- tivo’, ‘descritivo’ ou ‘argumentativo’, não se está nomeando o gê- nero e sim o predomínio de um tipo de seqüência de base” (MARCUSCHI, 2005, p. 27). O tipo é uma categoria lingüística paradigmática, logo, todos os gêneros podem começar a ser anali- sados pela heterogeneidade tipológica que os constitui. No final do ano, o coordenador do pólo de EaD de Chapadão do Sul queria fazer a direção central da UFMS saber da situação do pólo. Para realizar essa ação (fazer saber sobre a situa- ção do pólo), ele escolheu o gênero mais adequado: o relatório. Veja-o no quadro abaixo, com seis partes enumeradas, correspon- dentes a seis tipos de texto que nele se combinam: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA – PÓLO DE CHAPADÃO DO SUL Relatório O pólo da EaD de Chapadão do Sul está situado na Rua Bom Futuro, 225, na área central da cidade. A sede é composta de sete salas: uma da coordenação, uma da secretária acadêmica, duas salas para tutoria presencial, uma sala de atividades presenciais, uma sala de biblioteca e uma sala de pedagogia. Todas as salas estão em bom estado de conservação e satisfazem as necessidades do módulo. Falta apenas uma sala para o laboratório de computação. Entretanto, o mesmo não ocorre com alguns equipamentos. Alguns computadores estão estragados. Um bando de formigas pretas entrou nos aparelhos e fez casa lá dentro. O técnico abriu os computadores, matou as formigas e limpou-os. Elas roeram os fios e danificaram o disco rígido e, depois disso, cinco aparelhos não funcionaram mais. Dizem que isso acontece aqui nesta região e que é preciso fazer dedetização do ambiente para evitar isso. Considerando esse problema, não poderemos funcionar normalmente, por falta de computador para os alunos. O argumento de que dois aparelhos são suficientes para atender parte dos alunos não procede, pois trata-se de dois aparelhos antigos e muito lentos. Pedimos encarecidamente as providências necessárias, para que possamos atender os alunos normalmente a partir do mês de fevereiro de 2008. Chapadão do Sul, 15 de dezembro de 2007 ________________________________ A coordenação 1 2 3 4 5 6 7 Um exemplo! Isso sempre ajuda. 57Leitura e Produção de Textos Você vai fazer as três tarefas abaixo e colocá-las no FÓRUM: 1) Dizer quais os tipos de texto (descritivo, narrativo, argumentativo, injuntivo, expositivo) correspondem às seis partes do relatório acima. Para isso, precisa ler o arti- go intitulado Gêneros textuais: definição e funcionalidade, de Luiz Antônio Marcuschi, no livro Gêneros textuais e ensino (DIONISIO, MACHADO & BEZERRA (Orgs), 2002, pp. 19 a 36). Nesse artigo, ele dá um exemplo de como fazer isso. Relendo o que disse- mos até aqui e lendo esse artigo, você consegue cumprir essa tarefa. 2) Faça um resumo das principais idéias contidas no capítulo intitulado Gêneros textuais no livro Ler e compreender os sentidos do texto (KOCH & ELIAS, 2006, pp. 101 a 122). 3) Faça uma relação de todos os gêneros de texto existentes dentro de sua casa e na sua rua. Ao final desta Unidade II, você está percebendo que a língua é usada por meio de textos e que os textos se realizam por meio de tipos e de gêneros. Mais do que isso, já percebeu que aprimorar a capacidade de expressão na língua portuguesa, por exemplo, é sa- ber manusear cada vez melhor as habilidades de ler, escrever, ou- vir e falar, utilizando a linguagem falada ou escrita para produzir novos textos. Se quiser, e somente se quiser aprender mais, leia a seguinte obra: Dell’Isola, Regina Lúcia Péret. Retextualização de gêneros escritos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. Repetimos: essa lei- tura não é obrigatória. Veja que o gênero relatório é composto pela ordenação de dife- rentes tipos de texto. Você certamente já deve estar perguntando: essas sete partes do relatório correspondem a que tipos de texto? Nós poderíamos responder-lhe, mas você é o aprendente e pode dar essa resposta, relendo o que foi dito atrás e fazendo o que é pedido no SABER MAIS abaixo. Para saber mais 58 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura EM BRANCO VERSO DE PÁGINA 59Leitura e Produção de Textos UNIDADE 3 O texto e suas estratégias de construção e interpretação 60 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Nesta Unidade, pretendemos evidenciar por que é necessário substituir a noção de referente pela noção de objeto-de-discurso, bem como a noção de referência pela noção de referenciação. Nessa perspectiva, enfatizaremos que a referenciação é uma atividade discursiva e que a construção textual se dá num jogo entre vários movimentos: um para frente (projetivo) e outro para trás (retrospectivo), representáveis em parte pela catáfora e pela anáfora, respectivamente, entre outros movimentos. Assim, o texto não se constitui como a soma de elementos novos com outros já postos em etapas posteriores, mas como um universo de relações seqüenciadas, mas não lineares. Há nele uma parte visível, ou seja, a sua materialidade lingüística (oexplícito), e outra parte invisível (o implícito). Diante do exposto, podemos inferir que o sentido não é preestabelecido no texto, mas construído na interação autor-texto- leitor. Portanto, cabe ao autor e ao leitor considerar os implícitos e preencher as lacunas do texto de acordo com as sinalizações nele propostas e com base nos conhecimentos que possuem. A Unidade III está dividida em duas subunidades: 3.1. Referenciação e progressão referencial; 3.2. Coerência textual: um princípio de interpretabilidade. 61Leitura e Produção de Textos Então, agora deu para entender por que os conceitos de referenciação e de progressão referencial são inter-relacionados? Um exemplo pode ajudá-lo. Veja esta notícia (Texto 1). Texto 1 Vamos iniciar a Unidade III, com o estudo da referenciação e da progressão textual. Por que estamos propondo o estudo conjunto desses dois con- ceitos? Observe a apresentação de cada um deles: 3 REFERENCIAÇÃO E PROGRESSÃO REFERENCIAL Denomina-se referenciação o processo de introduzir, no texto, “novas entidades ou referentes. Quando tais referentes são re- tomados mais adiante ou servem de base para a introdução de novos referentes, tem-se o que se denomina progressão referencial” (KOCH & ELIAS, 2006, p. 121). Sim ou não? Maria Lima de Jesus, 35, foi estuprada na Rua Catumbi, on- tem, às 22 horas, quando voltava do trabalho. A vítima sofreu todo tipo de violência e foi socorrida por um morador e fez um boletim de ocorrência na delegacia do bairro da Prata. A mulher trajava minissaia e blusa bastante decotada, o que chamou a atenção do pessoal de plantão. O delegado prometeu investigação, mas ponderou que a “dita cuja não trajava roupa adequada para quem vinha do trabalho”. Segundo ele, têm sido freqüentes ataques como esse a mulheres facilitadas. Adaptação: José Genésio Fernandes. Essa notícia é de um jornaleco machista, da pior espécie, e foi modificada para atender o nosso propósito aqui. Veja que o jorna- lista vai construindo um referente no seu texto. Como? Primeira- 62 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura mente, ele introduz um referente, Maria Lima de Jesus e, em se- guida, vai retomando esse referente, por meio de outras expres- sões: “a vítima”, “a mulher”, “a dita cuja” e, por fim, “mulheres facilitadas”. Assim, o autor introduz um referente no texto e o vai fazendo progredir, por meio da reconstrução dele com outras ex- pressões lexicais, segundo sua visão machista de mundo. O texto ficaria monótono se ele repetisse o nome da mulher no lugar de cada expressão pela qual ele a retoma. Se você concluiu que a referenciação consiste na construção de referentes e a progressão referencial na reconstrução desses refe- rentes, compreendeu que, na construção e na interpretação do tex- to, esses dois processos são inter-relacionados. Cabe, agora, esclarecer que, atualmente, os referentes são deno- minados objetos-de-discurso. Ou seja, os referentes de que fala- mos, nos textos, não correspondem diretamente aos objetos do mundo natural, não são meros rótulos para designar as coisas do mundo. Por isso, os referentes são os objetos que construímos e reconstruímos no interior do próprio discurso, de acordo com nos- sas crenças, atitudes e objetivos comunicativos. Daí a razão de subs- tituir a noção de referente pela noção de objeto-de-discurso, bem como a noção de referência pela noção de referenciação. Nele, como viu, não está em questão uma mulher real, mas uma mulher significada ou construída no texto, a partir do ponto de vista machista do autor. Primeiro passo: ele introduz a mulher no texto/discurso pelo seu nome próprio completo e respeitoso: Maria Lima de Jesus. Segundo passo: ele reconstrói esse referente pela expressão “a vítima” e, com isso, não se trata mais de apenas um nome, mas de uma pessoa em estado de sofrimento causado pela ação ilícita de outra pessoa. Terceiro passo: com a expressão “a mulher”, ele reto- ma o referente “a vítima”, de maneira definida, focando sua femi- nilidade, e ainda sem desmerecê-la. Quarto passo: pela expressão “dita cuja” e “mulheres facilitadas”, ele reconstrói os referentes anteriores de maneira depreciativa e de tal forma que Maria Lima de Jesus não é mais a vítima, mas a culpada. Veja que a reconstrução dos referentes vai sendo feita por graus: “dita cuja” a desmerece pelo nível de linguagem. Segundo o Dici- onário Eletrônico Houaiss, a expressão designa o “ser de que já se falou, quando não se deseja nomeá-lo”. E, “Mulher facilitada” a desmerece mais ainda, pois a transforma no pior, em mulher fácil sexualmente. A vítima virou culpada no discurso. Portanto, a referenciação e a progressão referencial consistem na construção e na reconstrução de objetos-de-discurso. Verifique como isso ocorre também no Texto 2. Nós apostamos que, pela leitura da notícia sobre a mulher, Texto 1, você já entendeu isso! 63Leitura e Produção de Textos Texto 2 Descoberta nova espécie de coruja em Pernambuco Pesquisadores brasileiros descobriram uma nova espécie de coruja, exclusiva de Pernambuco. A ave, que habita a Mata Atlântica, pesa cerca de 50 gramas e mede 14 centímetros, da ponta do bico à da cauda. O animal apenas é encontrado em dois fragmentos de floresta, ambos ao sul do Estado, e está ameaçado de extinção. A coruja, chamada de caburé-de-pernambuco, foi vista pela primeira vez em 1980. Rara, voltou a ser encontrada em no- vembro de 2001. Comparando com outras espécies de corujas, três cientistas chegaram à conclusão de que se tratava de uma ave desconhecida. Com a descoberta, sobe para 20 o número de corujas conheci- das no Brasil. A descrição da nova espécie foi publicada no últi- mo número da Revista Ararajuba, da Sociedade Brasileira de Ornitologia. Além de Cardoso, são autores do artigo, Arthur Galileu de Miranda Coelho, professor aposentado da Universi- dade Federal de Pernambuco (UFPE), e Luiz Pedreira Gonzaga, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fonte: Verônica Falcão. Jornal do Commercio - Recife, PE. Junho 2003. O referente principal — uma nova espécie de coruja — após ser introduzido, é retomado por meio de novos referentes: a ave, o animal, a coruja, caburé-de-pernambuco, rara, uma ave desconhe- cida. Esses movimentos caracterizam, portanto, as atividades discursivas de referenciação e de progressão referencial. Na atividade discursiva de referenciação, o produtor do texto, em interação com outros sujeitos, opera sobre o material lingüístico que tem à sua disposição e escolhe as formas de referenciação de acordo com um querer-dizer, para representar determinados esta- dos de coisas. “Os objetos-de-discurso não se confundem com a realidade extralingüística, eles a (re)constroem no próprio proces- so de interação” (KOCH & ELIAS, 2006, p. 124). Analise um exemplo do que acabamos de afirmar, lendo o Tex- to 3. Texto 3 O dia começa às cinco para a turma que serve o café da manhã — carregam os pães e grandes vasilhames com café em carri- nhos de ferro. Pelos guichês das celas trancadas surgem cane- cas e bules amassados, à medida que o grupo passa. Os inimi- gos da aurora deixam a vasilha de café no guichê da porta e penduram um saco plástico para receber o pãozinho com man- teiga e evitar o suplício de sair da cama. Fonte: Koch & Elias. Ler e compreender: os sentidos do texto. (2006, pp. 124-125). 64 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Você saberia dizer a que se refere a expressão os inimigos da au- rora? Acertou, se entendeu que tal expressão faz sentido apenas no interior desse texto, no qual ela se refere aos detentos que não gos- tam de acordar cedo. Fora desse contexto, seria muito difícil “desco- brir” o referenteda expressão: ele é construído textualmente. Você deve ter observado que, para chegar a reconhecer esse re- ferente, foi necessário utilizar o saber construído lingüisticamente pelo próprio texto e as inferências que podem ser calculadas por meio dos elementos nele presentes. E isso só foi possível porque você mobilizou conhecimentos lexicais, enciclopédicos e culturais e lugares-comuns de uma determinada sociedade, além de sabe- res, opiniões e juízos ativados no momento da interação autor – texto – leitor. 3.1 Estratégias de referenciação As estratégias de referenciação, utilizadas na construção dos re- ferentes textuais, são: • Introdução (construção): é o caso de: (a) Maria Lima de Jesus, no Texto 1; (b) uma nova espécie de coruja, no Texto 2: um objeto até então não citado no texto foi introduzido no texto, de modo que a expressão lingüística que o representa foi posta em foco, res- saltando esse “objeto” no modelo textual. • Retomada (manutenção): é o caso das expressões: (a) a vítima, a mulher, a dita cuja, mulheres facilitadas; no Texto 1; (b) a ave, o animal, a coruja, caburé-de-pernambuco, rara, uma ave desconhe- cida, a nova espécie, no Texto 2, formas referenciais que reativam um “objeto” já presente no texto, de modo que tal objeto-de-dis- curso se mantém em foco. • Desfocalização: quando acontece a introdução de um novo objeto-de-discurso que passa a ser o foco, mas o objeto retirado de foco mantém-se em estado de ativação parcial, para utilização ime- diata sempre que necessário. No Texto 2, no qual o foco é uma nova espécie de coruja, ocorre uma desfocalização, no trecho: Além de Cardoso, são autores do artigo, Arthur Galileu de Miranda Co- elho, professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e Luiz Pedreira Gonzaga, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Assim, podemos concluir que “referentes já existentes podem ser, a qualquer momento, modificados ou expandidos, de modo que, durante o processo de compreensão, vai-se criando na memória do leitor ou do ouvinte uma representação extrema- mente complexa, pelo acréscimo sucessivo de novas categorizações e/ou avaliações acerca do referente”. (KOCH & ELIAS, 2006, p. 126). Ou seja: conclusões, deduções, conseqüências lógicas. 65Leitura e Produção de Textos 3.2 Formas de introdução de referentes no modelo textual No Texto 1, vimos uma forma de introduzir um objeto-de-dis- curso novo no texto representado pela expressão uma nova espé- cie de coruja. Esse processo de introdução de referentes textuais é denominado ativação não-ancorada. Outra forma de introduzir um novo objeto-de-discurso no tex- to é a ativação ancorada. Ela ocorre quando o novo objeto-de-dis- curso “ancora-se”, ou seja, fundamenta-se em algum tipo de asso- ciação com elementos já presentes no co-texto ou no contexto sociocognitivo. Você pode encontrá-lo no Texto 3, no qual a expressão os inimi- gos da aurora refere-se aos detentos que não gostam de levantar cedo, o que só nos foi possível reconhecer, porque associamos tal expressão a enunciados presentes no co-texto, como “Pelos gui- chês das celas trancadas surgem canecas e bules amassados [...] Os inimigos da aurora deixam a vasilha de café no guichê da porta e penduram um saco plástico para receber o pãozinho com mantei- ga e evitar o suplício de sair da cama”. A partir desses enunciados, e ativando nossos conhecimentos sociocognitivos, reconhecemos na cena narrada, a rotina de indivíduos privados da liberdade. Entender o que vai ser explicado no próximo item, implica que antes você entenda os conceitos de anáfora e catáfora, apresenta- dos a seguir. Anáfora é o mecanismo por meio do qual se aponta ou remete para elementos presentes no texto ou que são inferíveis a partir deste. Comumente, reserva-se a denominação de anáfora à re- missão para trás (por ex., Paulo saiu; ele foi ao cinema) e de catáfora, à remissão para frente (por ex.: Só quero isto: que vocês me entendam). (KOCH & ELIAS, 2006, 127). 3.3 Retomada ou manutenção no modelo textual O uso de pronomes ou outras formas de valor pronominal cons- titui a principal estratégia de referenciação textual, utilizada para retomar ou manter em foco objetos previamente introduzidos, for- mando as cadeias referenciais ou coesivas, que promovem a pro- gressão referencial do texto. Tendo em vista o objeto já ativado no texto, a progressão referencial pode realizar-se por meio de recursos de natureza gra- matical, como pronomes, elipses, numerais, advérbios de lugar, ou de natureza lexical, como sinônimos, hiperônimos, expressões nominais entre outros. Consulte: KOCH, Ingedore V. O texto e a construção de sentidos. São Paulo: Contexto, 1997. Saiba mais Você quer ver um exemplo de ativação ancorada? 66 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Inicialmente, vamos tratar dos recursos de natureza gramatical para retomar ou manter em foco os objetos-de-discurso. Veja, no Texto 4, como as substituições pronominais foram ocor- rendo e promovendo a seqüência requisitada pela coerência: Texto 4 1 - O Imperador D. Pedro II sempre se empenhou em mudar a imagem externa do Brasil e em 2 - transmitir seu “verdadeiro” aspecto civilizado. Ele visitou pessoalmente a Exposição 3 - Universal da Filadélfia (1876). Lá teria conhecido Alexander Graham Bell, que lhe 4 - apresentou sua mais nova invenção, o telefone. Ao testá-lo, o imperador teria dito ao inventor 5 - americano que, estando disponível no mercado, o Brasil se- ria o seu primeiro comprador. Fonte: Folha de S. Paulo, 19/11/2000. Trecho citado por: ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005 p. 90-91. Quadro 1 Os nexos coesivos do Texto 4. Termo(s) referente(s) O Imperador D. Pedro II Brasil Exposição Universal da Filadélfia Alexander Graham Bell o telefone Termo(s) substituto(s) ...se, Ele, lhe. ...seu ...Lá ...que, sua ...-lo, seu Linha(s) 1, 2, 3. 1, 2. 2, 3. 3, 4. 4, 5. O Quadro 1 possibilita a você observar, de modo objetivo, os oito pronomes (se, Ele, lhe, seu, que, sua, -lo, seu) e o advérbio (Lá), todos substituindo um determinado termo antecedente, ao longo do Texto 4. Observe também que, para não se confundir na identificação do referente do pronome seu (linha 5) é o telefone (linha 4) você precisa fazer uma leitura cuidadosa do texto. Ao ler o Texto 4, você notou que a ligação entre o termo antece- dente e seu termo substituto forma um nexo —um nexo coesivo — e que a ocorrência de vários nexos forma uma cadeia — uma cadeia coesiva —, por exemplo:(ANTUNES, 2005, 91) O Imperador D. Pedro II se Ele lhe 67Leitura e Produção de Textos Sobre essa cadeia, observe que ela é a maior de todas e perpassa o texto todo. Isso indica que a expressão O Imperador D. Pedro II representa o elemento nuclear em torno do qual se desenvolve a notícia. Após a análise das substituições pronominais que foram consti- tuindo as cadeias coesivas no Texto 4, você notou que todos os pronomes, além do advérbio, configuram casos de anáforas, pois retomam termos situados antes deles na seqüência textual? Veja agora um exemplo de catáfora, ou seja: o pronome vem antes do nome que ele, antecipadamente, substitui: Sob um sol escaldante, ele chega impecável (...) ao acampamento dos guerrilheiros (...) no Camboja, território minado e onde nenhum diplomata havia pisado antes. Como prova de confi- ança, os guerrilheiros pedem que ele nade num rio. Sem titu- bear, ele entra na água. Era o ano de 1992. Negociava-se diplo- maticamente a intrincada e difícil tarefa de repatriar 370 cambojanos, muitos vivendo na vizinha Tailândia. A repatria- ção aconteceu sem uma única vítima. Esse é apenas um dos muitos méritos deSérgio Vieira de Mello, Comissário de Direi- tos Humanos da ONU, que morreu em 19 de agosto de 2003. Fonte: IstoÉ, 23/9/03. Trecho citado por: ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005 p. 88. Vamos passar agora a tratar dos recursos de natureza lexical usa- dos para retomar ou manter em foco objetos-de-discurso já ativados no texto. Retomar ou manter uma unidade lexical (substantivos, adjeti- vos, verbos e alguns advérbios), substituindo-a por outra, é, tam- bém, um recurso coesivo pelo qual ocorre a inter-relação de dois ou mais segmentos textuais. Tal mecanismo de substituição impli- ca, pois, o uso de uma palavra no lugar de uma outra que lhe seja textualmente equivalente. Isso pressupõe um ato de análise e interpretação para avaliar a adequação do termo substituidor quanto ao que se pretende con- seguir com a retomada ou a manutenção do foco de determinados objetos-de-discurso. Justifique sua resposta. Eis um exemplo que pode auxiliar você a verificar se a sua res- posta à pergunta acima foi adequada, quanto a reconhecer os re- cursos de natureza lexical usados para retomar ou manter em foco objetos-de-discurso já ativados no texto 5: Você percebeu essa ocorrência nos textos (Textos 1 a 4) já apresentados nesta Unidade? 68 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Texto 5 Saia de bolinhas, colete preto e cabelos presos, Madonna estava mais para a santa Evita que para a demoníaca material girl quan- do desembarcou em Buenos Aires, no sábado 20. A tática usada pela pop star era para aplacar um pouco os ânimos argentinos, mas não deu muito certo: escalada pelo diretor Alan Parker para viver no cinema o papel de Eva Perón (1919-1952), a estrela americana vem enfrentando a ira dos peronistas. Foi recebida com pichações e bombardeada pela imprensa. Tentando con- tornar a situação, Madonna foi logo dizendo que estava em mis- são de paz. Fonte: ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p. 97. Esperamos que você tenha observado que a substituição, ao longo do texto, do referente Madonna pela cadeia coesiva ou referencial — a demoníaca material girl, a pop star, a estrela americana, Madonna — possibilita acrescentar informações ou dados novos a respeito desse objeto-de-discurso. Por isso, o texto se torna mais informativo. Finalizando esta subunidade 3.1, esperamos que você tenha compreendido: 1) por que é necessário substituir a noção de referente pela no- ção de objeto-de-discurso, bem como a noção de referência pela noção de referenciação; 2) que a referenciação é uma atividade discursiva e que a cons- trução e a interpretação de um texto implicam um jogo entre vários movimentos: um para frente (projetivo) e outro para trás (retrospectivo), representáveis em parte pela catáfora e pela anáfora, respectivamente, entre outros movimentos; 3) que um texto não se constitui como a soma de elementos novos com outros já postos em etapas posteriores, mas como um universo de relações seqüenciadas, mas não lineares. Há nele uma parte visível, ou seja, a sua materialidade lingüística (o explícito), e outra parte invisível (o implícito); 4) que o sentido não é algo preestabelecido no texto, mas construído na interação autor-texto-leitor, o que implica con- siderar os implícitos e preencher as lacunas do texto de acor- do com as sinalizações nele propostas e com base em conhe- cimentos lingüísticos, enciclopédicos e interacionais, entre outros. 69Leitura e Produção de Textos Para completar o estudo feito na subunidade 3.1, faça um relatório de leitura dos capítulos 7 e 8 do livro Ler e compreen- der: os sentidos do texto (KOCH & ELIAS, 2006), especificados a seguir: Capítulo 7: Funções das expressões nominais referenciais (pp. 137-149). Capítulo 8: Seqüenciação textual (pp. 152-181). A seguir, encaminhe seu relatório ao FÓRUM e leia três rela- tórios dos colegas para compará-los com o seu. Se desejar, faça comentários sobre os relatórios lidos para discutir idéias ou su- gerir algo que julgar interessante. Observe que você não deve fazer um resumo dos capítulos lidos, mas um relatório desses dois capítulos que você irá ler para aprender mais sobre a construção e a interpretação de um texto, para confrontar idéias, para tirar conclusões. Ou seja, a leitura deve ser reflexiva e crítica. Para isso, você deve utilizar os conhecimentos adquiridos ao longo do Módulo Leitura e Produção de Textos, bem como outros adquiridos por meio de outras leituras ou de suas atividades sociocomunicativas. O que as autoras do texto (KOCH & ELIAS) dizem a você? O que você diz às autoras do texto? O texto tem alguma relação com alguma coisa que você já leu, ou conheceu de outra for- ma? Você formulou perguntas para as autoras antes de iniciar a leitura? Quais? Obteve respostas? Que dúvidas persistiram? Achou a tarefa fácil ou trabalhosa? Como resolveu as dificulda- des que surgiram? Outras perguntas devem surgir no decorrer da leitura e da elaboração do relatório. Consulte também a subunidade 2.4, na qual foi discutida a elaboração de um relatório (p. 54). Recorra ao seu TUTOR quan- do precisar. Para saber mais Com o objetivo de orientá-lo, sugerimos algumas perguntas-chave sobre o conteúdo e o modo de ler cada um dos dois capítulos que lhe indicamos: 70 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura EM BRANCO VERSO DE PÁGINA 71Leitura e Produção de Textos Vamos introduzir o estudo desta última parte com uma histó- ria. Não vamos dizer que é verdadeiríssima, porque você sabe, muito bem, que quem conta um conto aumenta um ponto. Mas que acon- teceu lá pelo interior de Mato Grosso do Sul, isso aconteceu. É vero!!! Uma professora levou para a sala um gênero de texto bem co- nhecido, a fábula da Raposa e as uvas. Leu-a com os alunos e pediu uma tarefa: na aula seguinte todos deveriam trazer-lhe um texto próprio, um reconto da fábula. No outro dia, cada um entre- gou-lhe a tarefa. Na hora dos comentários dos textos, ela notou que um dos meninos falava de um lobo. Ela estranhou: lobo? Não tem lobo na fábula lida, disse ela. Tem, sim, disse o menino, com toda a certeza do mundo. Está bem aqui, disse-lhe, apontando com o dedo a expressão “o matreiro animal”. O menino não sabia o significado de “matreiro” e trocou-o por “mateiro”, ajeitando as coisas lá na sua cabeça, comendo um erre da palavra, criando um outro referente para o texto lido. Você cer- tamente está perguntando: mas de onde ele tirou isso? E a resposta é: ele retirou isso do seu conhecimento de mundo, de sua história de vida. No seu mundo, lá nessa região, existe um tipo de lobo chamado lobo mateiro. Sua história de vida tem histórias de lobo, desse tipo de lobo. Não estamos dizendo que o menino foi um bom leitor da fábu- la, pois faltou a ele conhecimento suficiente para diferenciar o sen- tido de “matreiro” e “mateiro”. O que queremos demonstrar com esse caso é que cada um de nós faz das tripas coração para cons- truir a coerência do que ouve e do que lê. A construção mais apro- priada da coerência é aquela que resulta do processamento do maior número de conhecimentos: lingüísticos, enciclopédicos, tex- tuais e interacionais, conforme vimos atrás. Esse caso da raposa da fábula que virou lobo mateiro no reconto do menino é um bom exemplo para afirmar que a coerência do texto é sempre uma construção. Todos nós estamos no mundo e esse mundo só tem sentido para nós, quando produzimos um sen- COERÊNCIA TEXTUAL: UM PRINCÍPIO DE INTERPRETABILIDADE 72 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura tido para ele. Estamos sempre produzindo sentidos para aquilo que lemos ou ouvimos. Como? A resposta é: com nossos conheci- mentos sociocognitivos construídos na interação com os outros e guardados em nossa memória. Veja o texto 1, abaixo: Texto 1Folha de S. Paulo, 30 de agosto de 2007. Observe o texto 1. Você pode afirmar que a coerência está no texto? Pode mostrá-la para nós? Certamente que não. A coerência não é uma coisa material e visível à espera de nós no texto. Repeti- mos: ela é uma construção nossa. Uma construção que fazemos, interagindo com o autor e o texto, seguindo as pistas dadas e pro- cessando-as com a ajuda dos conhecimentos que possuímos. O leitor que ri ao ler o texto 1 comprova que construiu um sentido de humor para ele, a não ser que esteja fingindo, para evi- tar ser taxado de lento ou de leso. Se ri sinceramente, é porque soube acionar os conhecimentos que possui, para construir esse sentido. Quais conhecimentos? Conhecimento: a) do gênero de texto (a tirinha é um gênero cuja ação é a crítica de comportamentos, costumes, valores); b) conhecimento de mundo (sex-shop, padaria); c) conhecimento prag- mático (é absurdo confundir sex-shop com padaria). Assim com- preendemos o jogo que provoca o riso, nessa situação comu- nicativa. O filho, surpreendido pelo pai no sex-shop, finge ter co- metido um erro pragmático, dirigindo-se ao sex-shop pensando ser uma padaria. O pai, sacando a esperteza do filho, também finge não ter conhecimento de mundo suficiente para distinguir uma baguete de um pênis vibrador. Veja quantos conhecimentos o lei- tor precisa acionar para construir a coerência do texto, para poder rir. Dizem os manuais de ensino que um texto deve ter coerência e coesão. A coesão, como o próprio nome diz (coeso significa ligado), é a propriedade que determinados elementos textuais têm de esta- belecer relação entre si e com outros fatores do texto. Veja os textos 2 e 3: 73Leitura e Produção de Textos Texto 2 Amigão! Só, só, só. A mina lá. Este verão. Ricardão e mais ricardão... Noite de cão. Você nos braços de Morfeu. Fui ma- drugada alta. Adeus toda república! Betão. Texto 3 Amigão, me senti muito só essa noite, enquanto minha namo- rada está lá longe, neste verão cheio de ricardão. Por isso, passei uma noite de cão enquanto você dormia profundamente e re- solvi partir bem de madrugada. Dê um adeus para todos da república. Até logo: Betão. Veja que o texto 2 não é um texto coeso. Não possui elementos formais que servem para fazer a ligação, a relação, a conexão entre as palavras do texto, como o texto 3. Entretanto, o texto 2 é coeren- te, pois permite ao estudante, o “amigão”, construir o sentido do bilhete do Betão. Por outras palavras, permite ao amigão fazer o cálculo do seu sentido, considerando os elementos contextuais. A coesão facilita estabelecer a coerência, mas conforme Koch (2006, p. 186), “a coesão não é condição necessária nem suficiente da coerên- cia: as marcas de coesão encontram-se no texto (“tecem o teci- do do texto”), enquanto a coerência não se encontra no texto, mas constrói-se a partir dele, em dada situação comunicativa, com base em uma série da fatores de ordem semântica, cognitiva, pragmática e interacional” Estamos certos de que compreendeu bem o que foi exposto, mas é preciso saber que isso não é tudo. Você verá, com mais estudo, que conceituar coerência não é simples como parece. Por isso, é preciso estudar mais e sempre, recorrendo às obras mais atualizadas, pois muitas obras apresentam conceitos ultra- passados. Além disso, é preciso saber que existem vários tipos de coerência: sintática, semântica, temática, pragmática e estilística. Não vamos explicar e nem dar exemplo desses tipos de coerência: você é que vai fazer isso, com a ajuda do que apren- deu nas outras unidades e com a leitura do capítulo 9 da obra Ler e compreender os sentidos do texto. Veja o que é para fazer, no “saber mais”. 74 LETRAS (Português e Espanhol) – Licenciatura Para fazer as duas tarefas, você precisa de três textos: primeiro, o capítulo 9 da obra Ler e compreender os sentidos do texto (KOCH, 2006, pp. 183 a 211); segundo, a Lição 24 da obra Lição de texto: leitura e redação (FIORIN (2003, pp. 367 a 392); e em terceiro lugar, a Lição 25 da mesma obra (FIORIN (2003, pp. 393 a 411). Tarefa 1: Depois de ler o capitulo 9 da obra Ler e compreender os sentidos do texto, escreva uma carta para um dos colegas de EaD, conten- do: a) os objetivos do capítulo; b) uma definição de coerência e de coesão; c) uma explicação do que seja coerência sintática, se- mântica, temática, pragmática e estilística, apresentando exem- plos de cada tipo. Escreva de forma que ele compreenda sua ex- plicação. Coloque a carta no FÓRUM. Tarefa 2: A lição 25 da obra Lição de texto: leitura e redação apresenta o poema Infância na página 395 e o poema Paviloviana, na pági- na 409 e 410. Faça um comentário sobre os dois textos, do ponto de vista da coerência e coesão, e coloque no FÓRUM. O que se quer aqui é que leia a lição, pois o autor já faz isso. Para saber mais (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) LETRAS (PORTUGUÊS e ESPANHOL) Este é o Guia Didático da disciplina Leitura e Produção de Textos, obrigatória para os alunos dos diferentes Cursos de Graduação, na modalidade EaD, da UFMS. O objetivo dele é contribuir para que o aluno tenha bom desempenho em duas atividades de linguagem, indispensáveis em qualquer área do conhecimento: leitura e produção de textos. Em nosso curso, vamos falar muito da atividade que os homens realizam com a linguagem. É. Os homens agem uns sobre os outros, com e por meio da linguagem. Já reparou? Dia e noite, eles estão produzindo e lendo textos, com algum objetivo. Dessa imensa produção linguageira resultam as imagens desses homens, de suas comunidades, de seus países. Se um povo morre e deixa textos, podemos saber dele por meio da leitura dos textos que deixou. Se não deixa textos, desaparece para sempre. Você verá que a questão da linguagem é uma questão central para todos os domínios do conhecimento, para todos os cursos, para todas as disciplinas.