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LENCIONI (2012) - Acumulacao primitiva - um processo atuante na sociedade contemporanea

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01/09/2015 Acumulação primitiva: um processo atuante na sociedade contemporânea
http://confins.revues.org/7424 1/8
Confins
Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia
14 | 2012 :
Numéro 14
Acumulação primitiva: um processo atuante
na sociedade contemporânea
Accumulation primitive : un processus actif dans la societé contemporaine
Primitive accumulation: a process active in contemporary society
SANDRA LENCIONI
Résumés
Português Français English
Com a hegemonia da reprodução social capitalista, a acumulação primitiv a é interpretada ora como sendo um fato do
passado, ora como um processo que perdura até hoje. Nosso ponto de v ista é de que a acumulação primitiv a
historicamente não desapareceu, sendo, inclusiv e, um importante componente da sociedade contemporânea. Nela, os
processos capitalistas de acumulação primitiv a e de reprodução do capital coexistem e se complementam de forma
contraditória e dialética. O primeiro, o processo de acumulação primitiv a está relacionado à espoliação e à produção de
um capital nov o, enquanto que o segundo, o de reprodução do capital está relacionado à exploração e tem como ponto de
partida um capital já constituído. A diferença entre os termos espoliação e exploração é apresentada, bem como a
posição de Harv ey sob essa polêmica, se constituindo nas discussões que constituindo a primeira parte do texto. Na
segunda parte se discute que a acumulação primitiv a dos dias atuais repete a fraude, o roubo e a v iolência que
estiv eram presentes no momento da gênese do capitalismo. Embora o mundo pareça ter mudado, com tanto av anço
técnico e tantas leis acerca dos direitos humanos, não mudou muito, pois persistem práticas de fraude, roubo e
v iolência como expedientes de produção de capital. Vários exemplos de rapinagem dos recursos naturais são dados,
incluindo-se aí a biopirataria. Também é destacada a escrav idão por dív ida, como uma forma v iolenta de espoliação,
uma forma de acumulação primitiv a de capital em que o trabalhador liv re, pelos mecanismos de sujeição ao qual está
submetido, perde sua liberdade. O roubo de terras se constitui num outro exemplo de acumulação primitiv a dessa
sociedade contemporânea. Afirma-se que todas as formas de espoliação são produtoras de dinheiro e produtoras de
capital em potencial e que o capital financeiro é que constrói, em especial, o elo entre acumulação primitiv a e
reprodução do capital na sociedade contemporânea.
Dans le contexte d'hégémonie de la reproduction sociale capitaliste, l'accumulation primitiv e est interprétée soit
comme un processus du passé, soit comme un processus qui se fait présent jusqu’aujourd’hui. Notre point de v ue est que
l'accumulation primitiv e historique n'a pas disparu. Au contraire, elle est encore une importante composante de la
société contemporaine. En ce cas, les deux processus capitalistes, d'accumulation primitiv e et de reproduction du
capital, coexistent et s’accomplissent de façon contradictoire et dialectique. Le premier processus est attaché à la
spoliation et à la production d'un capital nouv eau, alors que le second est attaché à l'exploration d’un capital déjà
constitué qui, en même temps, fait partie de celui-là. La différence entre les deux termes, spoliation et exploration, est
examinée dans la première partie du texte, et en considérant la position de Harv ey à propos de cette controv erse. Dans
la deuxième partie on discute l'accumulation primitiv e qui se manifeste aujourd’hui, comme la fraude, le v ol et la
v iolence, tels qu’ils se présentaient lors de la genèse du capitalisme. Bien que le monde ait changé, à cause du progrès
technique, et malgré l’existence de lois de protection des droits de l'homme, il y a encore des actions semblables à celles
de cette époque-là. Ces actions se manifestent v raiment comme expédientes de la production du capital à la façon
primitiv e, à sav oir: le v ol de terres; la rapine des ressources naturelles y inclus la biopiraterie; l'esclav age pour dette,
une forme v iolente de spoliation où le trav ailleur libre, par les mécanismes de domination auxquels il est soumis, perd
sa liberté. Par conséquent, on propose la thèse suiv ante : toutes les formes de spoliation sont productrices d'argent et de
capital en potentiel et le capital financier, à son tour, construit particulièrement le lien entre l’accumulation primitiv e
et la reproduction du capital dans la société contemporaine.
With the hegemony of the social accumulation reproduction, the primitiv e accumulation is interpreted sometimes like
a fact of the past and sometimes like a process that continues until today . Our point of v iew is that the historical
primitiv e accumulation has not disappeared, including being one of the important components of contemporary
society . In this society , the capitalist processes of primitiv e accumulation and the reproduction of capital coexist and
complement each other in a contradictory and dialectical way . The first, the process of primitiv e accumulation is
related to spoliation and to the production of new capital, while the second, the reproduction of capital is related to the
exploration and it is a part of a capital already existing. The difference between the names 'spoliation' and 'exploitation'
is confronted and the Harv ey 's opinion about accumulation by dispossession is discussed in the first part of the text. The
second part discusses about the primitiv e accumulation of today , repeating the fraud, the theft and the v iolence, that
were presents in the moment of the genesis of capitalism. Although the world seems to hav e changed, with both
technical adv ancement and a v ariety of laws about human rights, it has not changed that much. Acts of fraud, theft
and v iolence as expedients to generate capital still continues. Sev eral examples of robbery of the natural resources are
giv en, including the bio-piracy . Also, the debt slav ery is emphasized as a v iolent form of spoliation, a form of primitiv e
accumulation of capital in which the free worker, by mechanisms of subjection which he is subjugated, loses his
freedom. The theft of land constitutes another example of primitiv e accumulation of the contemporary society . It is
stated that all forms of dispossession are producing money and producing potential capital. Particularly , the financial
capital is the one that especially establishes the link between primitiv e accumulation and reproduction of capital in
contemporary society .
01/09/2015 Acumulação primitiva: um processo atuante na sociedade contemporânea
http://confins.revues.org/7424 2/8
Entrées d’index
Index de mots-clés : accumulation primitiv e, exploitation, société contemporaine, spoliation
Index by keywords : contemporary society , exploration, Primitiv e accumulation, spoliation
Índice de palavras-chaves : acumulação primitiv a, espoliação. exploração, sociedade contemporânea
Texte intégral
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Crédits : frutosdocerrado
A afirmação de que a acumulação primitiva se constituiu num processo que abriu as portas para a expansão
do processo de reprodução do capital é geral. Todavia, a interpretação de que tal processo não tenha
desaparecido com a hegemonia da reprodução social capitalista é bastante polêmica. A falta de consenso
indica a complexidade do real que afasta qualquer simplismo interpretativo e motiva a reflexão sobre a
questão. 
1
A discussão a seguir é mais um adendo a essa polêmica. Nosso ponto de vista é de que a acumulação
primitiva historicamente não desapareceu, sendo, inclusive, um importante componente da sociedade
contemporânea. Tanto a acumulação primitiva como a reprodução do capital constituem, portanto, processos
imanentes à sociedade contemporânea. Nesse sentido, questionamos a interpretação na qual se formula uma
visão linear do tempo, em que se desenvolve primeiro a chamada acumulaçãoprimitiva do capital que
ocorreria apenas antes da reprodução capitalista. Bem como a interpretação que coloca em dúvida a
compreensão de que há uma sucessão progressiva no tempo, que ao afirmar a segunda – a reprodução do
capital - faz desaparecer a primeira, que historicamente lhe deu origem. Tomando-se os dias atuais, o que se vê
é o contrário. Observamos um recrudescimento da acumulação primitiva, considerada, conforme veremos,
como um processo primitivo no sentido de contraposto a moderno. Na contemporaneidade se desenvolvem
processos capitalistas de acumulação primitiva e de reprodução do capital que coexistem historicamente e se
complementam de forma contraditória e dialética. Surpreendentemente, cresce a importância da acumulação
primitiva que muitos supunham ser historicamente superada pelo avanço da reprodução do capital. 
2
Essa afirmação, de que acumulação primitiva historicamente não desapareceu, requer, a princípio, a
distinção entre acumulação primitiva do capital e reprodução do capital.
3
Fundamentalmente, o processo de acumulação primitiva está relacionado à espoliação, enquanto que o de
reprodução do capital está associado à exploração. Espoliação significa privar alguém de algo, por meios
ilícitos, ilegítimos ou violentos. É esse o sentido dos mecanismos espoliativos, como aquele que nega o direito
à posse. Por exemplo, sob o selo da propriedade privada capitalista se arranca da terra, os que vêm nela vem
trabalhando há várias gerações. Já a exploração se vincula aos diversos procedimentos que buscam se apossar
do lucro, por meio da sujeição da posse e do domínio da propriedade privada.
4
A diferença entre espoliação e exploração é de suma importância e mais adiante trataremos dela. Trata-se de
uma diferença ao mesmo tempo analítica e teórica que nos permite compreender melhor o real. Muitas vezes a
dinâmica do real evidencia, em especial, o processo de reprodução do capital; outras vezes, o de acumulação
primitiva. Mas, a apresentação apenas de um desses processos é mais exceção do que a regra, pois o que se
afigura, frequentemente, é a presença combinada da reprodução do capital com a acumulação primitiva do
capital. Para simplificar, no fundo, o que distingue a acumulação primitiva do capital da reprodução do capital
é o fato da acumulação primitiva ser um processo que se resume na produção de um capital novo, enquanto
que o processo de reprodução do capital parte de um capital já constituído e o incrementa ainda mais, por
meio de agregação de novo valor procedente do processo de exploração do trabalho. 
5
Em suma, podemos falar que estamos diante de um processo de reprodução do capital quando o processo, a
dinâmica econômica é produtora de mais valor originário do trabalho que tem como base, como princípio da
produção, um capital já constituído. Em outros termos, estamos diante de um processo de reprodução do
capital quando o valor em processo não é só produtor de mais valor, mas especificamente é produtor da
substância valor originária do trabalho abstrato.
6
A reprodução do capital pode se desenvolver a partir de formas e relações de produção tipicamente
capitalista, como é o caso do trabalho assalariado, bem como pode se desenvolver por meio de relações sociais
de produção não especificamente capitalistas.
7
Inúmeros exemplos podem ser pinçados na história que mostram o desenvolvimento da reprodução do
capital assentado nos processos de exploração cujas relações sociais de produção não eram especificamente
capitalistas. Um exemplo, já clássico, diz respeito à industrialização brasileira, em que o desenvolvimento do
capital cafeeiro, que desempenhou o papel de condição prévia para a industrialização, se assentou em relações
não capitalistas de produção.
8
Como é sabido, em São Paulo a economia cafeeira, nos momentos iniciais da industrialização, combinou a
produção da mercadoria café com trabalhadores livres produtores dos seus meios de vida do trabalhador. Eles
plantavam gêneros alimentícios para o próprio consumo, comercializavam o excedente e recebiam em
dinheiro o trabalho efetuado no cafezal. Moravam no interior das fazendas, nas “colônias”. Sob o regime de
trabalho, denominado de colonato, precisamente assentado em relações sociais de produção não
especificamente capitalista, foi que, em especial, se desenvolveu o capital cafeeiro. Seu desenvolvimento não
se fundou em relações sociais de produção especificamente capitalistas, nas quais os trabalhadores vendiam
sua força de trabalho num mercado de trabalho constituído (trabalho versus salário). Se fundou na exploração
do trabalho do colono por meio da instituição de uma relação social de produção específica, não capitalista, o
colonato.
9
Em relação à formação do capital por meio de processos espoliativos, nos quais, cabe chamar a atenção para10
01/09/2015 Acumulação primitiva: um processo atuante na sociedade contemporânea
http://confins.revues.org/7424 3/8
Desapossamento, espoliação: o fundamento da
acumulação primitiva
a violência, talvez o exemplo mais ilustrativo da história moderna seja a escravidão moderna. Escravidão essa
que inquestionavelmente não tem nada a ver com relações capitalista de produção. Não há venda de força de
trabalho e nem constituição de um mercado de trabalho. O que é vendido no mercado é a pessoa, o escravo. É
nítido que o escravo não tem nada que possa trocar; pois ele é expropriado de tudo, inclusive do domínio de
seu próprio corpo. Esse corpo não lhe pertence e é comercializado, por outros, como mercadoria. É seu corpo
e não sua capacidade de trabalho que é mercadejado, que é objeto de transações. Desenvolve-se, assim, o
capital, utilizando-se de forma espoliativa, de usurpação do sujeito do seu próprio corpo.
O que surpreende é que em pleno século XXI, no auge do desenvolvimento capitalista desenvolvem-se
relações sociais fundadas na espoliação, como mecanismo de produzir capital. Embora moralmente
inadmissível, faz parte, sim, da contemporaneidade, a escravidão. Não em termos da escravidão moderna dos
nossos tempos coloniais, mas revestida de algo novo: a dívida.
11
Essa se apresenta em vários setores da produção e em várias atividades, podendo, inclusive, estar ligada aos
circuitos da globalização, como é o caso, por exemplo, do circuito mundial de exploração sexual, onde a
coerção e a exploração são as regras. A escravidão por dívida é diferente da escravidão moderna ou, ainda, da
escravidão da antiguidade clássica, mas uma coisa é comum a todas elas: a liberdade do corpo é alienada do
sujeito. Esse aspecto, a perda da liberdade, da possibilidade de ir e vir e a sujeição e a coerção da pessoa
associadas à exploração revelam traços de uma dinâmica econômica na qual se faz presente a acumulação
primitiva. 
12
Isso posto, o que se busca afirmar é que para se compreender a sociedade contemporânea é preciso atentar
para o seguinte fato: não é porque o trabalho assalariado se generalizou e nem porque o capital domina todas
as esferas da vida que impera absoluta a reprodução capitalista. Se pensarmos na formação dessa sociedade
veremos que ela é resultado de uma produção de capital que não se baseou apenas em formas e relações sociais
de produção especificamente capitalista e nem se expandiu mundialmente apenas a partir do processo de
reprodução do capital. Ela se constituiu na conjugação da acumulação primitiva com a reprodução do capital.
Sua dinâmica revela que essa conjunção não ficou no passado, mas faz parte, também, do presente.
13
A sociedade contemporânea se formou e vem se desenvolvendo, também por meio da acumulação
primitiva, que se constitui num processo que se funda na expropriação e na fraude, onde a violência é mais a
regra que a exceção. Esse é o nosso ponto de vista.O que estamos chamando de acumulação primitiva, é, de
fato, expropriação. Dessa forma, temos acumulação primitiva por espoliação e reprodução do capital por
exploração. Em geral, o termo acumulação primitiva ou originária é empregado apenas para se referir a
processo que abriu as portas para o processo de reprodução do capital. Entendemos que a acumulação
primitivahistoricamentenãodesapareceu apresentando infinitas maneiras e combinações com o próprio
processo de reprodução do capital dos dias atuais.
14
A gênese do capitalismo corresponde a um período histórico determinado e, no dizer de Marx, esse período
nada mais é do que “pré-história do capital e do modo de produção correspondente ao mesmo”.1
15
Nessa “pré-história do capitalismo”, ou seja, nesse período histórico onde se origina o capitalismo, o
processo de acumulação foi denominado por Marx, de acumulação primitiva ou, ainda, de acumulação
originária. Esse processo tirou do trabalhador a terra, os instrumentos de trabalho; enfim, suas condições de
trabalho e a possibilidade de prover seus meios de subsistência. Esse processo significou nada mais,nada
menos, do que a constituição da propriedade privada capitalista e aos poucos a propriedade feudal e o mundo
feudal foi se esvaindo enquanto eram tecidas as tramas de um mundo burguês.
16
Marx também discute outras transformações havidas nesse período de transição da sociedade feudal para a
sociedade capitalista. Mas, sem dúvida, é a constituição da propriedade privada capitalista que guarda o
segredo do desenvolvimento das relações sociais capitalista. Dentre as transformações apontadas por Marx,
cabe destacar a aplicação tecnológica consciente da ciência na produção, o desenvolvimento da divisão do
trabalho e a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho que só poderiam ser utilizados se o
fossem coletivamente, como a maquinaria. Marx ainda enfatiza o caráter internacional do regime capitalista e
destaca a expropriação do próprio capitalista por meio do processo de centralização do capital.2
17
Nessa transição, nessa “pré-história do capitalismo” se deu a acumulação primitiva, a acumulação originária
(primitiva no sentido de primeira a existir e originária por ter o sentido de origem, de gênese) que se foi
condição do desenvolvimento capitalista. Hoje em dia a acumulação primitiva, que se funda na expropriação, é
bom lembrar, não é originária e nem primitiva, porque não estamos na «pré-história” do capitalismo. Podemos
muito bem manter a palavra “primitiva” se essa palavra for compreendida no seu sentido figurado: o de brutal
e primário. 3 Não estamos na pré-história do capitalismo, não porque se passaram séculos, mas porque o
caráter especificamente capitalista está plenamente desenvolvimento, mesmo que no seu seio se combinem
formas e relações sociais de produção capitalista com formas e relações sociais de produção não capitalista,
bem como formas de espoliação.
18
Harvey, no livro New Imperialism concorda com a interpretação de Mandel, de que a acumulação primitiva
continua existindo e que essa não se situa apenas na gênese do capitalismo. Harvey atribui ao adjetivo
“primitiva” um obstáculo à compreensão de que a acumulação primitiva ainda continue existindo. Para
superar o obstáculo presente na palavra “primitiva”, que acabou induzindo à interpretação que essa forma de
acumulação só teria se desenvolvido na “pré-história” do capitalismo, Harvey cunha o termo accumulation by
dispossession. Traduzindo: acumulação por desapossamento. Como formas dessa acumulação por
desapossamento aponta, dentre outras, a biopirataria, a violação dos direitos de propriedade intelectual, a
privatização dos serviços públicos e a destruição dos recursos ambientais globais.
19
Antes de discutir a colocação de Harvey, cabem algumas observações em relação ao termo acumulação por
desapossamento. A tradução de accumulation by dispossession, como acumulação por desapossamento foi
proposital, achamos que valia a pena, iniciando essa discussão, fazer uma tradução literal, que, como verão,
será abandonada, mas que, por ora, é importante para situar duas ordens da questão sobre acumulação, que
permitirão avançar com mais clareza na discussão proposta.
20
01/09/2015 Acumulação primitiva: um processo atuante na sociedade contemporânea
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“a acumulação primitiv a que abre caminho à reprodução expandida é bem diferente da acumulação por
espoliação, que faz ruir e destrói um caminho já aberto”. (Harv ey , 2004, p.1 35).
A acumulação primitiva: uma face bestial da
A primeira ordem diz respeito à distinção necessária entre posse, propriedade e apropriação. A posse
sempre se refere à posse de um objeto e, portanto, para que a posse exista é necessária uma relação entre o
sujeito e o objeto. A propriedade, por outro lado, se inscreve no domínio do direito, da outorga e precisa ser
reconhecida socialmente. E, a apropriação diz respeito à posse e à propriedade, sendo, portanto, uma síntese
de ambas.4 Essas diferenças são importantes porque permitem perceber que é a propriedade que necessita de
reconhecimento social por meio do direito legal.
21
A segunda ordem de questão refere-se ao sentido da palavra “desapossar”, presente na ideia de acumulação
por desapossamento. A palavra “desapossar” permite perceber claramente a ideia de negação da posse. Por
isso, quisemos ser tão literais, para revelar o conteúdo da ideia de desapossamento. Melhor dizendo, a palavra
des-apossamento revela com transparência ofuscante o prefixo des que significa negação; no caso, negação da
posse. Outras palavras usam esse prefixo como negação, tais como: desamor, desilusão, desterrar, desatenção,
desacreditar...
22
Traduzimos do original em inglês, accumulation by dispossession, por acumulação por desapossamento
para deixar bem claro a ideia de negação da posse. No entanto, na tradução francesa do livro de Harvey, bem
como na espanhola e na portuguesa o termo accumulation by dispossession não é traduzido como
acumulação por desapossamento, mas por acumulação por expropriação. Na tradução brasileira é utilizado o
termo acumulação por espoliação.
23
Que termo é mais adequado? Desapossamento, expropriação ou espoliação? Se virmos que explorar tem
mais o sentido de extrair lucro ou compensação material e que espoliar guarda o sentido de desapossar, não
resta dúvida que a melhor tradução de accumulation by dispossession é a de acumulação por espoliação,
como figura na tradução brasileira. Foi usada a palavra “espoliação' porque ela guarda o mesmo sentido de
desapossamento, sendo que tem a vantagem, ainda, de quando assume o sentido jurídico, de expressar “ato de
privar alguém de algo que lhe pertence ou a que tem direito por meio de fraude ou violência; esbulho”. (grifo
nosso).5
24
Dizendo de outra maneira, acumulação por espoliação é a melhor tradução, ainda mais porque a palavra
“espoliar”, repetindo, tem o sentido jurídico de “ato de privar alguém de algo que lhe pertence ou a que tem
direito por meio de fraude ou violência”. 6 Com o uso da palavra “espoliação”, a ideia de fraude e violência tão
presente nos relatos sobre a acumulação primitiva e em todo transcurso do desenvolvimento da sociedade
capitalista até os dias atuais fica muito mais transparente.
25
O termo acumulação por espoliação é consagrado, mas nem por isso vamos deixar de fazer uma última
observação. Como dissemos, Marx utiliza o termo “acumulação primitiva ou originária” porque está tratando
da acumulação que é prévia e é condição do desenvolvimento do capitalismo. Situa-se, a acumulação
primitiva na pré-história do capitalismo e é, eminentemente, um processo espoliativo.
26
Já a acumulação por espoliação, nos termos de Harvey, não é primitiva, no sentido de originária,porque
não se refere ao momento da gênese do capitalismo, mas diz respeito à história do desenvolvimento capitalista
como um todo. Mas, convenhamos, em ambos os casos, ou seja, tanto na acumulação primitiva (originária),
própria da pré-história do capitalismo, ou na acumulação por espoliação, o que de fato há é acumulação
primitiva entendida como um processo que se funda na espoliação e na produção de um capital novo que não
parte de um capital já constituído.
27
Em outros termos, há um processo de acumulação primitiva, um processo que se desenvolve junto ao
processo de reprodução no transcurso da história do capitalismo. Ou seja, tanto a acumulação primitiva do
capital como a reprodução do capital são imanentes ao processo de desenvolvimento da sociedade capitalista.
Compõem dois movimentos que veem se combinando e se retroalimentando, sendo movimentos constitutivos
do capitalismo. Há uma dialética entre acumulação primitiva e reprodução do capital, na qual a primeira tem
como fundamento a espoliação (não importando o tempo histórico, sempre se trata de espoliação,
expropriação, desapossamento) e, a segunda, a reprodução, que tem como fundamento a exploração, quer
fundada em formas e relações sociais de produção especificamente capitalista ou não.
28
Por exemplo, no século XVIII, na Inglaterra, a reprodução do capital por meio da exploração do trabalho
fabril se combinou com a acumulação primitiva proveniente da espoliação colonial. Hoje, em pleno século
XXI, o processo de acumulação, quer pela usurpação de bens comuns, como a água ou o espaço público, ou,
ainda, por meio da escravidão por dívida, dentre tantos casos a citar, se combina com as formas mais
avançadas de reprodução do capital.
29
Uma última colocação a respeito das formulações de Harvey refere-se à sua afirmação de que:30
De fato, é a acumulação primitiva que abre caminho à reprodução. No entanto, não consideramos que a
acumulação primitiva (a originária) seja tão diferente (nos termos de Harvey, “bem diferente”) da acumulação
por espoliação que se desenvolve nos dias atuais. No fundamento, na ideia de desapossamento, ambas não são
diferentes, são iguais. Além do mais, a chamada acumulação por espoliação não destrói um caminho já aberto,
como salienta o autor, ou seja, não destrói um caminho aberto para que a reprodução do capital possa se
expandir. Muito pelo contrário, a chamada acumulação por espoliação cria novos caminhos, novas
possibilidades que se compõem com o movimento de reprodução do capital, dando, portanto novo fôlego ao
capital.
31
Como uma bola de neve que ao rolar acrescenta mais neve à bola e a faz crescer, a acumulação primitiva de
capital em sua relação com a reprodução do capital garante a continuidade do capitalismo. Como disse Harvey,
o processo de acumulação pela espoliação se constitui num mecanismo de superar as crises de
sobreacumulação capitalista. Garante-se, assim, pelos movimentos do capital, tanto com a acumulação, como
com a reprodução, o desenvolvimento da sociedade capitalista. Esses dois movimentos afiançam a
sobrevivência da sociedade burguesa. Como diz Lefebvre, a “sociedade burguesa ou subsiste, ou se
desmorona”. (Léfebvre, 197 7 , p. 221). Na combinação dialética entre acumulação primitiva e reprodução do
capital reside o segredo da persistência da sociedade burguesa; nessa combinação, entre acumulação primitiva
e reprodução ela se mantém e se desenvolve.
32
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sociedade contemporânea
Figura 1 - Denúncias de Trabalho Escravo
A acumulação primitiva na sociedade contemporânea repete a fraude, o roubo e a violência que estiveram
presentes no momento da acumulação originária. Uma simples leitura do capítulo sobre acumulação primitiva,
no “O Capital”, de Marx, nos faz pensar em quão ultrajante foi esse tempo histórico do passado. O mundo
parece ter mudado; evoluiu. Muitos creem que hoje já não se permite a escravidão, o mercado de pessoas, a
expropriação violenta da terra de quem nela trabalha e nem se criam leis contra os pobres. Infelizmente, isso
não é verdade. Apesar do avanço técnico e de tantasleis acerca dos direitos humanos, persiste a violência, a
fraude e o roubo como chaves da acumulação primitiva de capital. E isso questiona a ideia de progresso?
33
A rapinagem dos nossos recursos naturais, um bem de toda sociedade brasileira, persiste. Ela vai desde a
exploração desses recursos até a curiosidade pela comunidade internacional pelo potencial genético de nossa
biodiversidade. Para se ter a dimensão desse potencial, só a Amazônia, sem se considerar os biomas da
caatinga, do pantanal, da mata atlântica e dos campos e dos manguezais, possui 30% de todas as sequencias de
DNA do nosso planeta. Um tesouro que está sendo violado, até mesmo por empresas estrangeiras. Por meio da
biopirataria o roubo se processa, os biomas são violados, além do roubo de nossas madeiras, de nossas plantas
medicinais ou de nossa fauna, cabendo lembrar ainda, da pilhagem dos conhecimentos e saberes das
comunidades tradicionais locais.
34
Alguns exemplos podem ser elucidativos. O nosso popular quebra-pedras, uma planta da família das
euforbiáceas, utilizada com fins terapêuticos para problemas renais está patenteado pelos Estados Unidos. Do
veneno da jararaca pesquisadores brasileiros descobriram o princípio ativo capotren, que foi patenteado nos
Estados Unidos pela Bristol-Myers Squibb, que vende o medicamento Capoten, usado no mundo inteiro para
hipertensão. Ironia da história, no Brasil, o Capoten está entre os 100 remédios que os brasileiros mais
consomem e o Brasil paga royaltys pelo seu uso.
35
O pau-rosa, árvore nativa da Amazônia, foi patenteado pela França nos idos dos anos 20 para a produção do
perfume Chanel, n05. A patente do pau-brasil é do Canadá, a do nosso sapo Kampô, maior sapo verde do Brasil
que é originário do Vale do Juruá, de cuja costas se extrai uma substância farmacológica para tratamento da
isquemia, é dos Estados Unidos. Do jaborandi se extrai a molécula pilocarpina que éfundamental para o
combate do glaucoma, cujo produto farmacêutico é fabricado pela americana Merk e patenteado lá fora. A
esses exemplos se somam inúmeros outros bens expropriados, como a andiroba, a copaíba e o cipó ayuasca ou
o santo-daime.
36
O cupuaçu, fruto da Amazônia, com sementes semelhantes ao cacau, teve pedido de patente pela empresa
japonesa Asahi Foods. Além de patentear o fruto, a empresa registrou a marca çupulate’, um tipo de chocolate
feito a partir de amêndoas do cupuaçu, que havia sido desenvolvido no Brasil. Com isso, qualquer exportação
brasileira não poderia usar o nome cupuaçu, mesmo se dissesse respeito ao nosso tradicional doce de cupuaçu,
salvo, é verdade, se pagasse uma taxa à Asahi Foods. Por meio da atuação da EMBRAPA (Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária) e doGrupo de Trabalho da Amazônia (GTA) que congrega várias entidades amazônicas,
bem como de outras instituições, o pedido de patente do “cupulate” não se efetivou.
37
Esses casos são apenas alguns casos de biopirataria. Eles expressam a expropriação de nossos recursos
naturais; a expropriação de bens comuns que passaram a ser privatizados e, assim, passaram a se inserirem no
movimento de acumulação primitiva de capital. O mesmo sentido tem a destruição dos recursos ambientais
globais, uma vez que se trata de um bem comum que está sendo aniquilado e com sua destruição o que acaba
sendo expropriado é a humanidade.
38
No Brasil, desde 1888, a escravidão, o direito de propriedade sobre uma pessoa, foi banido. Desde então, não
existe a outorga ou direito de propriedade sobre um ser humano. No entanto, persistem situações em que o
trabalhador estápreso ao seu patrão, sem possibilidade de se libertar dele. Esse é o caso da escravidão por
dívida, como comentamos no início desse texto, uma forma de aprisionamento e posse de uma pessoa.
39
No caso da escravidão por dívida, das três distinções anteriormente apresentadas: posse, propriedade e
apropriação, a escravidão por dívida se situa no âmbito da posse, por meio do exercício da posse da liberdade
do outro. A escravidão por dívida é diferente da escravidão moderna do nosso período colonial porque nesse
último caso, a compra e venda de escravos significavam a propriedade de outrem e gozavam de
reconhecimento social e de leis.
40
A escravidão por dívida se constitui numa forma violenta de espoliação, numa forma de acumulação
primitiva de capital em que o trabalhador livre, pelos mecanismos de sujeição ao qual está submetido, perde
sua liberdade. A Organização Internacional do Trabalho define o trabalho escravo como sendo, sem exceção
alguma, degradante. Diz que “toda forma de trabalho escravo é degradante, mas o recíproco nem sempre é
verdadeiro”, ou seja, nem todo trabalho degradante é trabalho escravo. 7 O trabalho escravo avilta a
humanidade do homem.
41
Em 2005, a Organização Internacional do Trabalho publicou um relatório sobre trabalho escravo no mundo
intitulado: “Uma aliança global contra o trabalho escravo” , que teve dentre todos os méritos, o de não
permitir mais que o tema fosse abafado e nem considerado tabu. Naquela ocasião estimou que, no mundo,
havia 12,3 milhões de pessoas submetidas à escravidão por dívida e que desse total, 2, 4 milhões haviam sido
vitimas do tráfico de seres humanos. 8
42
Tanto na escravidão por dívida ou na escravidão que envolve a propriedade do outro, como no passado, a
violência – quer física como psicológica por meio da coerção, das ameaças e das punições, está presente. Se na
escravidão moderna, dos tempos do Brasil Colonial, havia dependência do tráfico negreiro, na escravidão por
dívida não há essa dependência, constituindo-se numa vantagem econômica para quem submete o outro. Se a
cor da pessoa era significativa na escravidão, onde os negros eram escravizados, na escravidão por dívida
qualquer cor de pele é suscetível da sujeição por dívida.
43
Em 2010, no Brasil, houve 204 denúncias sobre a prática de trabalho escravo (escravidão por dívida)
relativas a 4.163 trabalhadores. 9 O mapa sobre denúncias de trabalho escravo no Brasil mostra, claramente,
que o trabalho escravo ocorre em todas as regiões brasileiras.
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Mapa de Théry, H. ; Mello Théry, N. A. ; Girardi, E. P. ; Hato, J. Geograf ias do trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Revista Nera,
Presidente Prudente, nº .17, p. 12, 2010.
“Eu fui v endida por um grupo de mafiosos da Chechênia. Vieram de Odessa mostrando ser ricos homens
de negócios... Ofereceram um trabalho como assistente de compras em uma butique de Moscou, inclusiv e
me mostraram uma fotografia da loja... Fui comprada e v endida v árias v ezes no mercado de Arizona por
muitos comerciantes: russos, europeus e inclusiv e árabes. Me conv erti em uma mercadoria; sim, isto é o
que somos, produtos de uma aldeia global”. (Napoleoni, 2008, p. 25)
“Quando v árias famílias ocupando pequenas propriedades... ao longo de um rio ou de uma estrada, o
grileiro compra todas as posses, ou apenas algumas delas, incluindo aquelas localizadas nas extremidades.
Depois, ele marca uma grande área com ‘piques’ (trilhas abertas na floresta), muitas v ezes reiv indicando
 a propriedade de toda a terra comunitária. Aqueles que não aceitam a reiv indicação do grileiro são
frequentemente expulsos da área pelo uso de v iolência”. (Greenpeace, 2009, p. 22)
Segundo análise presente em “Geografias do trabalho escravo contemporâneo no Brasil”, a partir dos dados
dos Cadernos de Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra (desde 1986) e dos registros de
trabalhadores libertados pelo Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (desde 1995)
o “trabalho escravo ocorre, sobretudo, nas seguintes atividades econômicas: companhias siderúrgicas,
carvoarias, mineradoras, madeireiras, usinas de álcool e açúcar, destilarias, empresas de colonização,
garimpos, fazendas, empresas de reflorestamento/celulose, agropecuárias, empresas relacionadas à produção
de estanho, empresas de citros, olarias, cultura de café, produtoras de sementes de capim e seringais. De fato,
as atividades econômicas que se desenvolvem nas microrregiões de maior concentração de trabalho escravo
são a produção de carvão (Santa Maria da Vitória, por exemplo), a pecuária (São Felix do Xingu), mineração
(Parauapebas), exploração de madeira (Paragominas, Tomé Açu). Há, portanto, aparecimento do trabalho
escravo mesmo em segmentos bastante capitalizados e tecnologizados. (Théry; Mello Théry; Girardi; Hato,
2010, p. 14).
45
O relatório da Organização Internacional do Trabalho sobre trabalho escravo no Brasil do século XXI mostra
que é por meio da caderneta de dívidas – prática que remonta ao século XIX - que o trabalhador é mantido em
situação de escravidão. Os trabalhadores começam a trabalhar devendo transporte, roupas, alimentação e
material de trabalho. Similar situação ocorre em relação ao tráfico de mulheres e à exploração sexual.
46
No noroeste da Sérvia, num lugar denominado de mercado Arizona, porque é como uma cidade americana
típica da época da corrida do ouro, se concentram os traficantes de mulheres subjugadas pela condição de
escravidão por dívida. O relato de uma ex-prostituta é muito esclarecedor. A respeito dos traficantes diz:
47
O roubo de terras também se constitui num exemplo de acumulação primitiva de capital. Documentos falsos
de registro de propriedades são forjados. Usurpa-se, assim, a terra de quem nela trabalha ou da União, quando
se trata de terras devolutas. A ocupação ilegal de terras, conhecida no Brasil como grilagem, incide, sobretudo,
sobre as terras públicas. Para isso, os grileiros contam com a ajuda de cartórios, praticam a violência
expulsando, quando é o caso, posseiros e comunidades indígenas.
48
Ao se apossar de uma terra os grileiros utilizam várias estratégias para garantir a apropriação (posse e
propriedade). Dentre alguns expedientes, tomando-se como referência os madeireiros do Pará, está o uso de
concessões inválidas de seringais, as quais foram emitidas há 40 ou 50 anos atrás com validade por um ano
para exploração da borracha. Essas concessões podem até terem alteradas seus limites, permitindo acrescer a
extensão da apropriação da terra. Outro mecanismo bastante utilizado é a apresentação nos cartórios de
concessões inválidas denominadas de “cartas de sesmarias”, as quais perderam efeito por ocasião da
independência do país. Outro expediente diz respeito, simplesmente, às ocupações de área de floresta que
passam a ser guardadas por jagunços.
49
Em terras ocupadas pelos trabalhadores que cultivam sua terra, os grileiros forjam papéis de arrendamento
ou de aquisição.
50
Os grileiros, com a cumplicidade de funcionários de cartórios, falsificam documentos e, com isso, é possível
registrar a propriedade nos institutos de terra do governo (estadual e federal) que emitem certidão de registro
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Considerações Finais
Bibliographie
da propriedade declarando que a propriedade da terra está em processo de análise. Essa pluralidade de
registros em andamento acaba conferindo um caráter legal ao documento. 
A Medida Provisória de n.º 458, aprovada pelo Senado e sancionada pelo presidente Lula em 2009 teve
como objetivo regularizar os ocupantesde uma área de 67 ,4 milhões de hectares de terras da Amazônia, área
maior que a Itália e a Alemanha juntas, e avaliados em 7 0 bilhões de reais. Essa Medida Provisória permite que
o governo federal venda as terras, sem licitação, a posseiros, mas também a grileiros que em 2004 já
ocupavam essas terras. As áreas podem ter até 1.500 hectares, o que nos leva a indagar: que posseiro tem
capacidade econômica para explorar economicamente uma área desse tamanho? Não é à toa que apareceu na
mídia se afigurou, muitas vezes, o termo de “Medida Provisória da Grilagem”.
52
Com a discussão sobre acumulação primitiva e reprodução quisemos enfatizar que o roubo, a fraude e a
violência se apresentam na acumulação por desapossamento (acumulação por espoliação), não só no passado,
mas no presente. Quer em relação à rapinagem dos recursos naturais, da biopirataria, do comprometimento
dos recursos naturais globais, quer por meio da extrema sujeição das pessoas submetidas à escravidão por
dívida ou quer pelo roubo de terras, o movimento de acumulação primitiva se conjuga com as formas mais
avançadas do movimento de reprodução do capital. 
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Poderíamos dizer, se fossemos tão irônicos quanto Marx, que o roubo, a fraude e a violência são também
alguns dos fatores idílicos da acumulação primitiva nos dias atuais. Reinventam-se mecanismos que permitem
a espoliação, os quais em nada diferem das práticas do roubo, da fraude e da violência, tão bem descritas por
Marx no capítulo do O Capital, já referido, que é intitulado “A chamada acumulação primitiva”. Como bem
alertou Marx, sua proposta era discorrer sobre o processo de acumulação na Inglaterra, devido ao fato da
Inglaterra se revestir da forma clássica da acumulação. Diz que a história da expropriação, que despoja da
terra o trabalhador, adota diferentes tonalidades em distintos países e percorre, numa sucessão diferente, as
diversas fases. (Marx, 1984, p. 895). Nosso desafio foi o de pensar as tonalidades que revestem nosso
desenvolvimento.
54
Por último, queremos destacar que o processo de acumulação primitiva de capital nos dias atuais encontra
elo com o processo de reprodução do capital por meio do capital financeiro. O processo de espoliação, ou seja,
a produção de riqueza pelo desapossamento se metamorfoseia facilmente em dinheiro. Se esse dinheiro se
constituir apenas como um meio de troca pelas transações de compra e venda que ele possibilita, ou se servir
apenas para medir o que está se trocando, esse dinheiro não tem a potencialidade de se colocar como capital.
Todavia, quando se insere no processo de produção ele se coloca como capital. É como se estivéssemos duas
engrenagem que se combinam num movimento.
55
As diversas formas de espoliação são produtoras de dinheiro e produtoras de capital em potencial. Para que
o dinheiro funcione como capital tem que ser empregado no processo produtivo, seja de qualquer capitalista
que for, quer diretamente investido na produção, quer indiretamente funcionando na condição de capital
financeiro. Consagra-se, assim, por meio do capital financeiro o elo entre acumulação primitiva do capital e
reprodução do capital.
56
É nessa condição de capital – de dinheiro que se transforma em capital – que se garante a sobrevivência da
sociedade contemporânea, nos moldes em que ela se desenvolve. E as estratégias de acumulação primitiva faz
parte, sem dúvida alguma, dessa sobrevida.
57
Se o dinheiro procedente da escravidão por dívida, até mesmo do tráfico de mulheres ou da biopirataria, por
exemplo, não desenvolver a função de capital produtivo o movimento de acumulação primitiva não se
constitui como um movimento de acumulação de capital, mas apenas como acumulação de dinheiro. São as
praças financeiras, com os bancos e os fundos de investimento, por exemplo, bem como os paraísos fiscais,
locais esses por excelência de lavagem de dinheiro, que ao “não deixarem o dinheiro parado, como se estivesse
debaixo de um colchão” dão alma ao dinheiro transformando-o em capital.
58
A história do capitalismo é a história da combinação da reprodução do capital fundada em relações sociais
de produção especificamente capitalista – compra e venda da força de trabalho – e em relações sociais de
produção não especificamente capitalista. Mas, é também, a combinação de movimentos, o da reprodução do
capital e o da acumulação. Em outros termos, é a história da combinação da reprodução do capital com formas
de acumulação primitiva, onde o sentido de primitiva toma o sentido de brutal, relacionado a processos de
espoliação.
59
Esse é o sentido de se dizer que a acumulação primitiva não se constitui como uma fase historicamente
datada do capitalismo. Não se constitui como fase, mas como processo que faz crescer e dá novo fôlego ao
capital.
60
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, Trabalho escrav o: expansão no Sul e Sudeste”, (Release),
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01/09/2015 Acumulação primitiva: um processo atuante na sociedade contemporânea
http://confins.revues.org/7424 8/8
Notes
1 A esse respeito v er o capítulo XXIV, intitulado “A chamada acumulação originária”. Em O Capital (Marx, 1 984: 891 -
954). 
2 Idem.
3 . O termo ‘primitiv a’ assume o sentido deriv ado: impulsiv o, bárbaro, brutal e instintiv o.
4 A respeito da distinção entre posse, propriedade e apropriação v er o interessante trabalho de DUSSEL, em especial o
capítulo sobre “Digresionses sobre el Modo de Apropriación”. (Dussel, 1 998; 226 a 243).
5 Conforme Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
6 Idem.
7 A esse respeito, v er o documento da Organização Internacional do Trabalho intitulado “Trabalho Escrav o no Brasil
do Século XXI”, 2000.
8 Organização Internacional do trabalho. Uma aliança global contra o trabalho escrav o, 2005. Em 2009 a
Organização Internacional do Trabalho lançou um outro relatório global, denominado “O custo da coersão. Relatório
Global no seguimento da Declaração da OIT sobre os Direitos e Princípios Fundamentais do Trabalho”. Nesse relatório
considerou prematuro elaborar uma nov a estimativ a mundial, preferindo abordar as tendências básicas do trabalho
forçado.
9 Fonte dos dados: Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no campo Brasil 201 0. Essa Comissão se constitui numa
 entidade ligada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Table des illustrations
Titre Figura 1 - Denúncias de Trabalho Escravo
Crédits
Mapa de Théry, H. ; Mello Théry, N. A. ; Girardi, E. P. ; Hato, J. Geografias do trabalho escravo
contemporâneo no Brasil. Revista Nera, Presidente Prudente, nº.17, p. 12, 2010.
URL http://confins.revues.org/docannexe/image/7424/img-1.png
Fichier image/png, 52k
Pour citer cet article
Référence électronique
Sandra Lencioni,« Acumulação primitiva: um processo atuante na sociedade contemporânea », Confins [En ligne], 14 | 2012,
mis en ligne le 19 mars 2012, consulté le 01 septembre 2015. URL : http://confins.revues.org/7424 ; DOI :
10.4000/confins.7424
Auteur
Sandra Lencioni
Professora Titular do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo , slencion@usp.br
Droits d’auteur
© Confins
MARX K., Elementos fundamentales para la crítica de la economía política, Borrador, México, Siglo XXI, 1 6ª ed, 1 989,
p. 1 857 -1 858.
NAPOLEONI L., Economía canalla. La nueva realidad del capitalismo, Barcelona, Buenos Aires, México, Paidós, 297 p., 2008.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, “Trabalho escrav o no Brasil do Século 21 ”,
<http://www.oitbrasil.org.br/download/sakamoto_final.pdf>.Disponív el em 4 de junho de 2009>.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, Uma aliança global contra o trabalho escrav o”,
<http://www.oit.org.br/sites/default/files/topic/forced_labour/pub/relatorio_global_2005_alianca_contra_trabalho_forcado_31 6.pdf>.
Disponív el em 4 de junho de 2009.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO O CUSTO DA COERSÃO, Relatório Global no seguimento da Declaração da OIT sobre os
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http://www.reporterbrasil.org.br/documentos/relatorio_oit_2009.pdf>. Disponív el em 9 de janeiro de 201 0>.
THÉRY H., MELLOTHÉRY N. A., GIRARDI E. P., HATO, J., Geografias do trabalho escrav o contemporâneo no Brasil,Revista Nera,
Presidente Prudente, nº.1 7 , p. 7 -28, 201 0.

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