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UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA 
 
 
 
 
 
 
 
 
Apostila de 
Bases Filosóficas e Epistemológicas das Humanidades 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ronie Alexsandro Teles da Silveira 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
(confira também os vídeos complementares no Youtube intitulados “Teoria do 
Conhecimento”) 
 
 
 
 
 
 
 
2025/1 
 
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1. Introdução 
 
1.1 Relação entre Filosofia e Teoria do Conhecimento 
 
A Filosofia é tradicionalmente dividida em uma série de disciplinas filosóficas como a 
metafísica, a ética, a antropologia filosófica, a filosofia da natureza, a filosofia da educação, a 
teoria do conhecimento ou epistemologia etc. Dentre essas disciplinas filosóficas a mais 
central é certamente a teoria do conhecimento. Sua importância deriva do fato de que, a partir 
dela, se estruturam teorias particulares nos demais domínios disciplinares da Filosofia. Ou 
seja, a teoria do conhecimento funciona como uma espécie de centro da roda de onde partem 
os raios que irão constituir as teorias particulares éticas, antropológicas, políticas etc. 
Portanto, podemos estabelecer relações de dependência entre uma teoria do conhecimento e 
uma teoria filosófica ética. Assim, é de uma teoria do conhecimento que emergem as demais 
concepções filosóficas sobre a ética, a política, a antropologia etc. 
Além desse caráter central da teoria do conhecimento no panorama das disciplinas 
filosóficas, ela também é importante para as discussões em filosofia da ciência. Isso ocorre 
porque os problemas da filosofia da ciência são originários da teoria do conhecimento. Isso 
pode ser explicado por razões históricas. A ciência é uma atividade cultural relativamente 
recente, na medida em que suas origens se remetem ao século XVII. 
Entretanto, a filosofia já discutia, desde as suas origens, as dificuldades ligadas à 
possibilidade de conhecer. O que ocorre com o advento da ciência é que os problemas da 
teoria do conhecimento passam a ser aplicados também a ela, gerando uma teoria do 
conhecimento científico ou uma filosofia da ciência. Portanto, o nascimento da ciência 
produziu a necessidade de adaptar a teoria do conhecimento clássica e não exatamente o 
surgimento de uma disciplina filosófica inteiramente nova. 
Mesmo se considerarmos que a filosofia da ciência constitui uma disciplina filosófica 
específica e independente, é certo que a compreensão dos problemas que ela tenta resolver 
será mais adequada se enquadrada pela história das discussões epistemológicas que a 
precederam historicamente. Esse contexto histórico permitirá que as discussões da filosofia da 
ciência sejam compreendidas a partir de um pano de fundo mais amplo. Sendo assim, 
podemos considerar que a filosofia da ciência é um capítulo da teoria do conhecimento. 
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Escalando a montanha do conhecimento 
 
1.2 A História da Filosofia 
 
Uma das peculiaridades da história da filosofia é o fato de que ela não se apresenta 
como um elenco de problemas ultrapassados. Como um contraponto a essa situação, podemos 
notar que nenhum físico dos nossos dias se proporia sensatamente a se declarar aristotélico, 
adotando os princípios da “Física” de Aristóteles. Isso porque a comunidade dos físicos 
entende a história da sua disciplina como um conjunto de tentativas que foram sendo 
abandonadas à medida que teorias melhores foram surgindo. Portanto, essa história não nos 
oferece as diversas alternativas como teorias que podem ser objeto de crença atual, mas antes 
como um conjunto de tentativas precárias que, hoje, não são mais dignas de confiança. Elas só 
possuem valor histórico porque foram as bases das teorias atuais. 
Na história da filosofia ocorre algo diferente. Os filósofos estudam Platão não como 
uma teoria ingênua, ultrapassada ou indigna de confiança e sim como uma possível expressão 
da verdade. Para os filósofos a visão da história da filosofia é a perspectiva de várias teorias 
paralelas que se apresentam como propostas para a obtenção da crença dos homens em 
qualquer época. Isso é bastante perceptível quando constatamos, por exemplo, a existência de 
uma “Sociedade Brasileira de Platonistas”, embora não exista uma “Sociedade Brasileira de 
Física Ptolomaica”. Dessa forma, a filosofia vive a estranha situação de ter uma enorme 
quantidade de propostas filosóficas paralelas que definem, cada uma a seu modo, não apenas 
as respostas mas, inclusive, que tipo de problemas se julga mais importante resolver. Por isso, 
a diversidade de teorias alternativas na filosofia é enorme. A criatividade humana é algo 
surpreendente e até me arriscaria a dizer que não há uma ideia bizarra que ainda não tenha 
 4 
 
sido defendida por algum filósofo. Mas sempre é possível sermos criativos e colaborar nesse 
processo. 
 
 
As ideias bizarras da Filosofia 
 
As comunidades científicas particulares (físicos, biólogos, sociólogos) se caracterizam 
por um grande grau de acordo interno sobre o que é um problema, sobre qual é o problema 
que, em um momento específico, merece atenção, sobre a metodologia a ser empregada para 
resolvê-lo etc. A comunidade filosófica não possui essa unidade temática e metodológica. O 
trabalho filosófico consiste em uma permanente revisão dos fundamentos, de tal forma que há 
sempre algumas opções teóricas à disposição, mas nunca uma só. Não há um acordo nem 
sobre o que é um problema ao longo da história da filosofia. 
 
1.3 O Princípio Ocidental da Teoria do Conhecimento 
 
O ponto de partida da teoria do conhecimento é o reconhecimento da existência de 
uma diferença entre o sujeito que quer conhecer e o objeto que deverá ser conhecido. Do 
ponto de vista da história da cultura, essa diferença pode ser identificada com a perda do 
Paraíso descrita na Bíblia, no livro “Gênesis”. Com efeito, o Paraíso bíblico é apresentado 
como uma situação em que havia uma identificação entre o homem e a natureza. Ali, o 
homem se sentia integrado ao mundo exterior e em estado de completude. Só após o pecado 
original e a perda dessa identidade original é que o homem adquire uma consciência de si 
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como um ser separado e diferente dos demais seres naturais. O fato de Adão e Eva se 
envergonharem, após o pecado, por estarem nus é a expressão de se perceberem como seres 
não integrados ao restante da natureza. Seja como for, considerando a diferença entre sujeito e 
objeto como uma perda história ou mítica, o importante é que partimos dela na teoria do 
conhecimento. 
 
 
Adão e Eva: os primeiros ET’s 
 
Consideramos que a filosofia nasceu com Tales de Mileto em aproximadamente 
550aC. Há um motivo especial para tomarmos esse filósofo em particular como sendo o 
primeiro a pensar filosoficamente. Existe uma diferença fundamental entre o que podemos 
chamar de “Religiões Orientais” e a Filosofia Ocidental. Essa diferença está ligada a duas 
perspectivas distintas através das quais se entende a relação entre sujeito e objeto. 
Nas Religiões Orientais, a diferença entre sujeito e objeto é reconhecida, porém ela é 
revestida de um valor negativo. O esforço de um budista ou de um hindu é por escapar dessa 
oposição na medida em que a vida nesse mundo é entendida como um padecimento. O 
apagamento do eu, a negação da individualidade e da diferença que constitui cada ser é uma 
forma de eliminação da oposição entre sujeito e objeto – justamente porque ela é entendida 
como fonte de sofrimento, como algo que deve ser evitado em função de suas consequências. 
Quando um indivíduo obtém a iluminação, ele deixa de ser um ser único entre outros e se 
identifica com a totalidade. Sendo um só com a totalidade, se revela o caráter unívoco da 
realidade e se elimina o aspecto da dualidade e da oposição entre meu eu e um objeto diante 
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de mim. Nesse sentido, a realidade é a unidade subjacente a tudo o que aparece, para a 
perspectiva do erro, como multiplicidade. A libertação,do 
ponto de vista do conhecimento ou da ação. O filósofo quando conhece ou quando age tem 
como referência a verdade. Portanto, sua alma já está livre (no sentido epistemológico) de 
tudo o que é sensível. O filósofo está morto em vida e a própria morte, entendida como a 
liberação de todos os vínculos corporais com o devir, não lhe atinge. Ele já se libertou por 
meio do pensamento e só tem em vista a própria realidade e é ali que vive efetivamente – na 
eternidade. Um aspecto importante a ser considerado é que para Platão todas as almas 
possuem condições de chegar ao conhecimento verdadeiro na medida em que todos já 
contemplaram a verdade antes de serem enviadas para esse mundo. Dessa forma, todos 
podemos ser filósofos e não apenas aqueles que se formaram em um curso de filosofia. 
 
 36 
 
 
Aqui jaz um filósofo 
 
O filósofo é incapaz de agir imoralmente porque o conhecimento implica 
compulsivamente a ação correta. Para Platão só age mal quem é ignorante. Há uma perfeita 
identidade entre o conhecimento e a virtude - a posse do primeiro garante a segunda. Só há 
imoralidade se a alma ainda não chegou à verdade plena. Para Platão, o filósofo tem a 
obrigação moral de se empenhar na educação das almas que ainda não chegaram à 
contemplação do Mundo das Ideias. Assim, ele tem de permanecer inserido no mundo 
humano, no seio da sociedade, mesmo não se orientando mais pelas regras de comportamento 
vigentes nela. Afinal, a referência moral autêntica é sempre o Mundo das Ideias. 
Não é ocasional que Sócrates seja representado por Platão como o filósofo que 
terminou se confrontando com o Estado Grego. Com isso, ele explicitou a diferença entre a 
moralidade pública e a moralidade filosófica derivada diretamente da verdade. Sócrates 
manteve-se fiel à verdade e, por isso, foi condenado à morte na medida em que seu 
comportamento era a afirmação da imoralidade da vida pública dos atenienses. A acusação de 
que Sócrates “corrompia” a juventude tem todo o sentido do ponto de vista da moralidade 
convencional vigente na época. De fato, o trabalho do filósofo platônico é convencer as almas 
de que elas ainda não estão de posse da verdade e, portanto, de posse da moralidade. Nesse 
sentido, um confronto do filósofo com o poder público é inevitável. O que a verdade diz que é 
certo fazer nem sempre equivale ao que nós, em sociedade, convencionamos que é certo fazer. 
Como o filósofo não pode agir imoralmente, ele é o governante perfeito para a cidade 
idealizada por Platão. Somente assim, se poderia assegurar que um Estado seja sempre justo. 
Se no âmbito da alma é a parte mais nobre que deve comandar, na cidade é a pessoa mais 
nobre que deve estar no poder. Trata-se de algo natural e justo: quem é superior e possui a 
virtude tem de estar no comando. A princípio, qualquer um pode comandar, desde que seja 
filósofo. Se a parte sensível domina a alma e se os imorais comandam a cidade, isso é 
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claramente uma injustiça, uma inversão de como as coisas deveriam ser, uma ruptura da 
ordem adequada do mundo. Somente a obtenção da virtude e do conhecimento pelo filósofo 
pode conduzir à justiça na cidade. Ser filósofo para Platão é ter contemplado o Mundo das 
Ideias e ter a obrigação de agir sempre com justiça e moralidade. Por isso, o filósofo deve ser 
o rei da cidade. 
 
O Filósofo Rei 
 
Há uma questão que precisa ser destacada em função dos equívocos que ela gera: a 
existência de um dualismo na teoria do conhecimento de Platão. É comum se afirmar que 
Platão separa a alma do corpo (ou a parte racional da alma de sua parte sensível) e que isso é 
uma decorrência da distinção entre o Mundo das Ideias e o devir. Essas distinções entre dois 
âmbitos do mundo consistiriam no dualismo de Platão. 
Entretanto, essa é uma afirmação equivocada. O equívoco todo é gerado por uma má 
interpretação sobre o significado do devir. Se ele não é algo substancial, se nele só há 
passagem e nunca algo seguro e permanente, como dizia Heráclito, não há como afirmar que 
ele se opõe a outra coisa que seria fixa e eterna – o Mundo das Ideias. Ora, só pode haver 
oposição entre duas coisas. Mas certamente não há oposição entre uma coisa e sua 
manifestação, entre um objeto e sua sombra. Talvez o que se apresente nesse problema seja a 
nossa tendência em representar erradamente que o Mundo das Ideias e o devir se opõem como 
duas coisas. Não é isso certamente o que Platão quer dizer. 
Para ele, os dois mundos não são dois. Eles são imanentes, um é a projeção do outro e 
o ponto de vista adequado consiste justamente na percepção da transparência do devir. 
Estritamente falando, não há um mundo de cima e um mundo de baixo, não há o superior e o 
inferior porque só há um mundo. As sombras só são visíveis como projeções dos objetos dos 
quais são sombras, elas não existem por si, como algo separado, como uma coisa à parte. Se 
pensarmos que há uma oposição e um dualismo entre o Mundo das Ideias e o devir, estaremos 
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reproduzindo um entendimento não platônico do platonismo. Platão não duplicou o mundo. 
Ele apenas articulou o caráter mutável com o imutável do mundo. E o mutável, devido a seu 
caráter peculiar, não é outra coisa ao lado do mundo imutável. Assim, o devir é a aparência do 
Mundo das Ideias, o corpo é a aparência da alma. Nessa relação só há um mundo e não dois. 
Portanto, não há um dualismo em Platão, nem mesmo entre corpo e alma. 
Platão é o primeiro pensador a oferecer uma resposta ao problema das representações 
que consiste em uma articulação efetiva entre a percepção e a razão. Isso se reconhecermos, 
em primeiro lugar, que Heráclito afirma a mutabilidade do objeto da percepção sensível, mas 
não o articula com um conhecimento racional, afirmando a falsidade desse último. E, em 
segundo, que Zenão e Parmênides condenavam a percepção como uma forma de acesso ao 
conhecimento verdadeiro. 
Em Platão vimos que a percepção funciona como um instrumento de recordação de 
verdades superiores, embora não seja o instrumento adequado para a apreensão da própria 
verdade. Somente a razão é a responsável por essa última função. Assim, a percepção nos 
informa algo sobre a verdade, mas não na sua dimensão plena. Ela não nos fornece algo falso 
ou algo que deve ser negado. O que é falso é a perspectiva enviesada da alma que toma as 
informações sensíveis como informações definitivas sobre o mundo real. A razão, por sua 
vez, é a única responsável pelo conhecimento verdadeiro – embora ela não exclua 
definitivamente a percepção desse processo, já que ela só pode se recordar daquilo de que tem 
uma cópia sensível disponível. Cada uma das nossas habilidades (percepção e razão) 
desempenha uma função epistemológica diferente, de acordo com a capacidade de cada alma 
para chegar ao conhecimento verdadeiro. 
Há aqui uma articulação entre percepção e razão porque há uma articulação entre a 
parte sensível e a parte racional da alma, entre o devir e o Mundo das Ideias. Entretanto, 
Platão não está afirmando que podemos inferir o Mundo das Ideias a partir do mundo sensível 
e sim que há um processo que nos leva do abandono de um à adoção do outro. Isso é, a 
articulação não é uma derivação racional e sim uma experiência que exige a preparação da 
alma, uma experiência em que se perde uma perspectiva e se adquire outra. Para a obtenção 
de uma nova e superior, a velha tem de ser experimentada e abandonada. Sem a primeira não 
chegamos à segunda, mas a posse da primeira não garante a posse da segunda. Com essa 
articulação, Platão mantém a constatação da mutabilidade do mundo sensível expressa por 
Heráclito e também a crítica à percepção como forma de acesso ao conhecimento elaborada 
por Zenão. Entretanto, ele admite um valor relativo para a percepção tendo em vista o fato de 
que o devir é a aparência do Mundo das Ideias. 
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Embora possamos julgar que essa relação não está descrita de maneira explícitaem 
Platão, ela está presente no seu pensamento como algo necessário. Com efeito, ele descreve a 
relação entre o devir e o Mundo das Ideias como uma “participação”. Essa noção, embora 
meio obscura, reflete bem o modo como o devir diz algo sobre o Mundo das Ideias. A 
articulação se faz notar claramente se observarmos que sem o devir não há conhecimento, 
porque a recordação não se torna possível. Além disso, se nos restringirmos ao devir não 
haverá conhecimento verdadeiro, apenas opinião. 
Dada a correta orientação da alma, a percepção é uma excelente modalidade de 
conhecimento – aquela que remete a alma para além de si mesma, em direção a 
conhecimentos mais elevados. O que está errado é apenas o modo equivocado como a alma 
considera o mundo: como um objeto de conhecimento válido por si mesmo, como algo fixo e 
acabado, como uma realidade opaca. Do ponto de vista platônico, o mundo sensível é um 
mundo transparente se a alma o olha da maneira acertada. Através dele, se vê o Mundo das 
Ideias. Sem ele, nada se vê. Uma disposição epistemológica inadequada por parte da alma 
conduz ao erro de ver o devir como algo opaco, algo que é por si mesmo. 
 
 
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2.4 A resposta de Aristóteles 
 
 
Aristóteles 
 
Aristóteles afirma que os objetos sensíveis, aqueles que percebemos com os sentidos, 
possuem dois componentes: matéria e forma. Entretanto, embora existam nesses objetos dois 
elementos, eles não podem ser entendidos como constituindo uma dualidade. Trata-se na 
verdade de uma articulação entre aquilo que é mutável e aquilo que é permanente nas coisas 
sensíveis. A matéria é o aspecto mutável e a forma é o elemento permanente. Vamos 
considerar uma mesa como exemplo. Ela é feita de madeira e essa é sua matéria. A madeira 
existia antes e a sua transformação em mesa deu-se porque ela foi organizada de determinada 
maneira a se tornar útil para a leitura, a alimentação etc. Portanto, a madeira possui a 
capacidade de adotar diferentes formas. Também posso pensar na possibilidade de quebrar a 
mesa e produzir lenha para fogo. Nesse caso, a madeira perderia sua forma de mesa e 
adquiriria a de lenha. Ou seja, trata-se de um objeto sensível que, sendo mutável, pode ser 
transformado em outro. 
Além dessa capacidade de ser transformado, um objeto físico possui uma forma. Essa 
forma é aquilo que ele é em determinado momento. Por mais que algo se altere, temos sempre 
a possibilidade de identificá-lo, de afirmar que ele é algo específico. Isto é, nada que existe é 
indeterminado ou sem identidade. É a forma que garante a identidade e a determinação que 
possui cada ser sensível. No nosso exemplo, podemos identificar três formas: madeira (antes 
da fabricação), mesa (após a fabricação) e lenha (depois da destruição). Se os objetos 
sensíveis possuem a matéria e a capacidade de sofrer mudanças, eles possuem a cada 
momento certa modalidade de existência na medida em que, no nosso exemplo, tínhamos em 
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cada caso e sucessivamente a madeira, a mesa e a lenha. Com isso, Aristóteles articula a 
mutabilidade com a permanência das coisas sensíveis, sua capacidade de sofrer alterações 
com sua identidade. 
Até agora, tudo leva a crer que a forma é outro tipo de entidade que a matéria. Mas 
não é exatamente isso o que ocorre. Vimos que a matéria possui a capacidade de ser 
transformada. Aristóteles denomina isso de potência. Tudo o que é sensível pode ser 
transformado, logo tudo que existe possui potência. Mas também é verdade que tudo o que é 
sensível exibe certa configuração específica em cada momento. Isto é, cada coisa, 
independentemente do instante em que ela se encontra, será ou madeira, ou mesa, ou lenha, ou 
pássaro, ou rocha etc. Isto é, tudo o que existe possui uma forma. E a forma é aquilo que a 
matéria é nesse instante específico. A potência é a capacidade que a matéria tem de se alterar 
e a forma é o que a matéria é em um dado momento. Então a forma é apenas a feição atual da 
matéria e não um outro elemento agregado a ela. A forma não é uma característica oculta ou 
de caráter mítico que se encontra na matéria – como uma aura ou algo do tipo - ela é a sua 
expressão ou sua determinação atual. A forma é aquilo que torna a matéria um ser 
determinado e não algo que se agregue a ela como um elemento estranho. A forma é a 
existência atual da matéria, o arranjo que ela exibe como ser sensível em cada instante. 
Um ser sensível possui então a capacidade de mudança – sua matéria – e um ser 
determinado, algo que ele é agora ou, para usar a linguagem de Aristóteles, o que ele é em ato 
– sua forma atual. Tudo o que existe possui matéria e forma. Tudo o que está no espaço e no 
tempo possui a potência de ser alterado e uma configuração atual, um ser particular em ato. 
Para entendermos melhor a descrição que Aristóteles faz do mundo, vamos supor que a 
existência espacial e temporal seja somente parte de um processo mais amplo. Isso não 
equivale ao que Aristóteles diz, mas facilita a nossa compreensão. 
 
 
Os três estágios hipotéticos da existência 
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 Em um extremo teríamos a capacidade máxima de a matéria ser alterada, sem que ela 
possuísse uma forma determinada. Evidentemente essa não é uma condição natural, sensível e 
perceptível da matéria, trata-se somente de um recurso pedagógico que estou utilizando aqui. 
Todos os seres da natureza encontram-se determinados ou possuem uma forma atual. A 
matéria sem determinação alguma não é uma possibilidade existente no espaço e no tempo. 
Não podemos sequer pensar com clareza no que seria uma matéria sem nenhuma forma, algo 
que é pura potência. Esse estágio fictício funciona apenas como uma referência estratégica 
para facilitar a compreensão do esquema geral. 
Em seguida, notamos que no plano da existência todos os seres possuem alguma 
proporção de matéria e forma. No terceiro estágio verificamos que há forma sem matéria. Isto 
é, um ser que não possui nenhuma capacidade de sofrer mudanças porque é pura atualidade. 
Podemos afirmar que esse ser se realizou plenamente porque ele não tem potência, é puro ato. 
Ele é apenas ato ou pura forma sem matéria. Ele não muda, porque já é plenamente tudo o que 
poderia ser. Nesse caso, trata-se do ato puro: uma causa que causa todo o restante sem ser 
causado por nada. 
 Aristóteles chamou esse ser de motor imóvel, porque ele é o que move todas as demais 
coisas, sem ter a necessidade de alterar a si mesmo. Ele é o princípio de toda transformação, 
embora já seja tudo o que pode ser. Sendo assim a própria matéria sem forma teria de ser algo 
gerado por um ato desse motor imóvel, porque só ele pode produzir movimento. Todos os 
demais seres possuem movimento secundário e sua capacidade de se transformar é originária 
de outro. E esse outro adquire movimento de outro até que tudo se concentre no único ser que 
não depende de outro: o motor imóvel. Ele é a causa de todas as coisas, porque somente ele 
possui a capacidade de mover a si mesmo e transferir movimento para os demais seres. 
 Nesse contexto, a tarefa do conhecimento é tornar evidente as relações de causalidade 
na cadeia que transfere movimento do motor imóvel até os demais seres. E movimento aqui 
pode ser entendido como vida ou como um princípio que fornece atividade a cada ser. 
Aristóteles está afirmando que o conhecimento consiste na identificação do princípio 
causador de determinado ser. Com efeito, para ele, conhecer é determinar as causas. E para 
que exista conhecimento, a cadeia de causas não pode se perder no infinito. Ela tem de poder 
ser percorrida para que o conhecimento se torne possível. A determinação da causa particular 
de cada fenômeno é justamente o que Aristóteles entende como a tarefa específica do 
conhecimento. 
 43 
 
Se, em última instância, todo o movimento é oriundo do motor imóvel, então ele é a 
causa de todas as causas. Ele é o princípio básico do conhecimento na medida em queconsiste no ser do qual todos os demais retiram existência. Explicar cada ser particular 
significa ser capaz de articulá-lo a uma cadeia causal que termina no motor imóvel. Há 
explicações que incorporam apenas causas secundárias e há explicações que se estendem até 
as causas primárias. As explicações secundárias caracterizam as ciências subordinadas e as 
explicações primárias definem as ciências arquitetônicas. A mais elevada de todas as ciências 
é a Filosofia Primeira, aquela que trata da causa de todas as causas, do motor imóvel ou do ser 
enquanto ser, o ser que é ato puro. Ela articula todas as demais, porque consiste no 
conhecimento do princípio de tudo o que constitui a existência. Esse princípio causador de 
tudo é também o único que permite unificar as diferentes formas de conhecimento particulares 
na medida em que os subordina a si e os articula em um único sistema. 
 
A cúpula dá unidade ao edifício 
 
 Observe que, pela primeira vez na história do pensamento humano, se apresenta a 
ideia de um sistema do conhecimento humano. Com efeito, para Aristóteles existem várias 
ciências que estão articuladas por uma cadeia de causalidades. As mais elevadas tratam das 
causas primeiras e as secundárias das causas subalternas. Entretanto, elas se constituem como 
diferentes formas de conhecimento. O que varia é o lugar na hierarquia das causas que uma 
ciência particular ocupa. Uma ciência que se ocupa de causas subalternas terá sempre que 
considerar a natureza do objeto de que trata, porque ele exigirá um procedimento subalterno 
específico. 
Aristóteles afirmava que um homem educado deve exigir de uma ciência apenas o 
grau de precisão relativo à natureza de seu objeto. Ou seja, uma ciência se ocupa com causas 
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específicas do objeto de que trata e, por isso mesmo, não pode ter o mesmo tipo de 
procedimento e de exigências com relação a todos os objetos. Cada forma de conhecimento 
exige uma maneira de conhecer ligado à posição hierárquica do seu objeto. 
Aristóteles está afirmando que cada objeto exige um método diferente e que cada 
ciência possui, portanto, direito à existência. Essa é a noção de método no pensamento de 
Aristóteles. Sua escolha depende sempre da natureza e da posição na hierarquia do mundo que 
o objeto ocupa. 
 A tabela abaixo apresenta uma ilustração do que seria parte da arquitetura aristotélica 
das formas de conhecimento. Ela deixa claro que diferentes ciências são derivadas de objetos 
que ocupam diferentes instâncias do mundo. É a hierarquia do mundo que produz a hierarquia 
epistemológica do sistema das ciências. Essas, por sua vez, ao obedecerem ao princípio da 
proporção metodológica, devem se caracterizar por exigências ligadas a seus respectivos 
objetos. 
 
Mais 
Elevado 
Cosmos (ontológico) Conhecimento 
(epistemológico) 
Proposições (lingüístico) 
Ser Filosofia Primeira Grau máximo de 
universalidade e 
necessidade 
 Números e suas 
relações 
 
Matemática Grau intermediário de 
universalidade e 
necessidade 
 Seres vivos Biologia (História Natural) Grau médio de 
particularidade e 
contingência 
Menos 
Elevado 
Seres humanos e seu 
comportamento 
 
Ética Particulares e 
contingentes 
Tabela 1: Hierarquia das formas de conhecimento segundo Aristóteles 
 
O edifício do conhecimento possui vários andares, mas é a sua cúpula que nos fornece 
um conhecimento definitivo, porque ela é o conhecimento da causa de todas as causas. É a 
Filosofia Primeira que ocupa o topo do edifício do conhecimento e é nela que toda 
investigação radical termina. Radical no sentido de se constituir como a busca pelas últimas 
causas. Isso não significa que as ciências subordinadas não possuam o estatuto de 
conhecimento. Enquanto ciências particulares, todas elas têm direito de existirem. A busca 
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pelas últimas causas é apenas um valor que pode ou não ser acrescentado a uma investigação 
e não um caráter que faça parte da própria definição de conhecimento. A cúpula fornece um 
princípio unificador e uma perspectiva superior, mas não fornece, ela mesma, as causas 
subalternas. Assim, para Aristóteles, existe uma função epistemológica para as ciências 
particulares – o que não acontece em Platão. 
A identificação das causas subalternas só pode ser produzida pelas ciências 
subalternas e não pela Filosofia Primeira. Isso significa que o conhecimento último e mais 
elevado, o conhecimento da causa de todas as causas, permite unificar o edifício na sua 
diversidade, mas a Filosofia Primeira não substitui as ciências subalternas. Elas investigam 
com legitimidade cada um dos objetos sensíveis de que tratam. Ou seja, o conhecimento do 
mundo natural é epistemologicamente legítimo. É por esse motivo que a Metafísica ficou 
conhecida na tradição filosófica como a “rainha das ciências”. Como ela ocupa o cume de 
onde a unidade do edifício se torna visível, ela ocupa o lugar central para quem busca as 
explicações definitivas sobre todas as coisas. 
 
 
A Rainha das Ciências 
 
Um requisito para que a Filosofia Primeira ocupe o topo do edifício do conhecimento 
e forneça a unidade para todo o sistema é a impossibilidade de que a procura pelas causas se 
perca em uma série infinita. Para Aristóteles, o conhecimento é a apreensão da causa e, 
portanto, a busca deve ter um fim em uma causa que é causa de si mesma e que fornece a base 
para todo o restante: o ser enquanto ser ou o ato puro. Assim, toda investigação é 
teoricamente finita e possui um ponto de chegada. Embora não seja necessário que toda 
investigação termine com a busca pela causa de todas as causas, é certo que toda investigação 
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completa só pode terminar assim. Há uma tendência de que toda investigação se aprofunde na 
busca de seus fundamentos últimos, mas isso não é uma necessidade. Investigações 
horizontais, por exemplo, explicações físicas de fenômenos físicos, são legítimas – embora 
possam ser consideradas superficiais se se detiverem apenas a isso. 
O interessante é notar como de Platão a Aristóteles ocorre uma mudança em termos de 
possibilidades do conhecimento. Para Platão só havia duas formas de conhecimento: a 
Filosofia e a opinião. Para Aristóteles, a Filosofia já não equivale ao conhecimento completo, 
embora preserve o estatuto de ciência mais elevada entre todas. Para ele, há ciências 
intermediárias responsáveis pelo conhecimento de partes subalternas da realidade. Existe um 
sistema de conhecimento composto por diferentes formas de ciência que é unificado pela 
Metafísica. 
Podemos dizer que no pensamento de Aristóteles a relação entre a unidade e a 
diversidade, seja das esferas da realidade seja das instâncias do conhecimento, está mais 
explícita e mais desenvolvida que em Platão. Isso porque o conhecimento se torna mais 
complexo e permite um grande número de variações, sem perder a perspectiva unitária e 
hierárquica típicas do mundo grego. Entretanto, observe como a posição que a Filosofia 
detém em ambos é muito semelhante. Ela é a forma de conhecimento mais elevada e também 
é a responsável pela orientação geral ou pela elaboração das estruturas básicas que dão 
sentido a todo o conhecimento humano. Ela tem a palavra exclusiva – no caso de Platão – e a 
última palavra – no caso de Aristóteles. 
Essa caracterização da Filosofia marcou profundamente a definição do trabalho do 
filósofo e seu sentimento de superioridade com relação a outras profissões, particularmente 
aquelas ligadas ao ambiente intelectual. Na verdade, poderíamos dizer que esse é o motivo 
principal que permite compreender o nascimento do sentimento de superioridade e da 
arrogância de muitos filósofos – vivos e mortos. 
Vamos verificar como a concepção aristotélica sobre a existência dos seres sensíveis 
impacta o processo de percepção. Vimos que os nossos sentidos captam as qualidades 
sensíveis dos objetos. Mas nos termos de Aristóteles isso diria respeito somente à matéria dosobjetos. Mas então como Aristóteles explica que podemos chegar ao conhecimento da forma 
já que não temos um sentido especial para captar o que é a atualidade de um ser sensível? Em 
primeiro lugar, devemos notar que, embora cada objeto sensível seja único, sua forma é 
idêntica a de vários outros objetos. O que há de idêntico entre três cadeiras é que elas são 
“cadeiras”, isto é a forma delas é a mesma. Então esse elemento atual que é constituinte de 
todo ser sensível não é particular, ele é universal. 
 47 
 
Portanto, o aspecto universal presente no conhecimento humano não é originário da 
própria atividade da mente humana. Ele é captado do mundo exterior na medida em que 
compõe os objetos sensíveis. Então, o aspecto universal que caracteriza o conhecimento não é 
produzido pela razão, mas captado do exterior. Existe uma dimensão universal nos objetos 
particulares do mundo exterior. A dificuldade que permanece é a de explicar como essa 
característica universal das coisas sensíveis chega à razão. Se a forma é universal, ela não 
pode ser captada pela nossa percepção, porque essa é de natureza particular e só recebe 
informações sensoriais - também particulares. Caímos então no seguinte dilema: como ter 
acesso a um componente universal da realidade se a nossa percepção somente nos fornece 
informações particulares? Será que nossa razão possui poderes mediúnicos que captam o 
elemento universal das próprias coisas? Certamente não é essa a resposta. 
Aristóteles responde da seguinte maneira: embora a forma seja um elemento universal, 
ela nos chega através dos sentidos mesmo sem ser o objeto específico de nenhum de nossos 
órgãos dos sentidos. Para ele, não há outra maneira da forma chegar a nós que não seja por 
meio dos sentidos, porém como ela é universal, não pode ser uma informação específica de 
nenhum dos sentidos, como o aroma ou a cor. Ela nos chega por meio dos sentidos, porém o 
responsável por recebê-la é o intelecto ou a razão. Nesse caso, a percepção funciona como 
uma espécie de fio transmissor que transporta a forma, mas não a decodifica. 
Um fio de telefone não ouve os sons que transmite, embora os sons passem através 
dele para chegarem aos nossos ouvidos – que são quem os ouve de fato. Nessa metáfora que 
estou usando, o decodificador seria o intelecto e a forma só se tornaria presente para ele e não 
para os transmissores – que seriam os sentidos. É importante destacar que o intelecto não cria 
a forma, mas apenas a capta por meio dos sentidos da realidade exterior. Poderíamos dizer 
que o intelecto é o órgão das formas, na medida em que ele é o único que possui a 
característica requerida para apreendê-las: a universalidade. Como esse órgão não possui 
nenhum componente exterior, ele se utiliza dos nossos cinco sentidos para fazer com que as 
formas cheguem até ele. 
 Um aspecto importante que merece ser destacado é a possibilidade de apreendermos 
formas sem contato sensível com os objetos naturais. Se o conhecimento consiste na 
apreensão de uma forma, não há nenhum impedimento para que alguém possa ter acesso a 
uma forma sem a presença do seu respectivo objeto sensível. Isso pode ocorrer, por exemplo, 
por meio da comunicação quando outra pessoa nos explica o que é um ornitorrinco – mesmo 
sem nunca termos visto um animal desses ao vivo ou por imagens. Nesse caso, haveria uma 
espécie de transmissão de uma forma sem a intermediação do seu respectivo objeto sensível. 
 48 
 
Não seria apropriado dizer, portanto, que para Aristóteles todo o meu conhecimento tem de 
passar pelos meus sentidos – entendendo com isso que o conhecimento só surge quando 
experimento algo. Mas é verdade que o conhecimento precisa passar pelos sentidos de alguém 
para que a forma seja captada. Caso contrário, ela simplesmente não pode ser percebida pela 
razão humana. 
 
 
A linguagem: acesso à forma sem a matéria 
 
Aristóteles reconhece aquele caráter fracionário da percepção que já salientamos 
quando apresentamos o problema das representações. Ele tenta contornar essa fragmentação 
do conteúdo da percepção através da noção de um sexto sentido: o sentido único. Esse sentido 
seria o responsável por unificar as informações captadas por cada um dos sentidos 
particulares. Na verdade, os sentidos particulares seriam apenas modalidades desse sentido 
único. Esse último teria sua sede no coração. O sangue conduziria as informações particulares 
ao sentido único e ali elas seriam sintetizadas em objetos dotados de múltiplas qualidades 
sensíveis. 
Esse mesmo artifício permitiu a Aristóteles explicar o que ocorre a nós durante o 
sonho. No sonho, os sentidos se encontram como que desligados. Assim, as qualidades 
sensíveis percebidas no estado de vigília, que estão latentes no sangue, voltam a acionar o 
sentido único na ausência de qualidades sensíveis oriundas do mundo exterior. Assim, o 
sentido único, com sede no coração, volta a perceber essas qualidades, porém destituídas de 
sua ordem e força natural que são impostas do exterior quando estamos despertos. Por isso, 
sonhar é um processo tão semelhante à percepção e é mesmo possível que um sonho muito 
vivaz possa nos impressionar quase como se estivéssemos acordados. 
 49 
 
O que é de fato importante nessa explicação aristotélica do processo de percepção é a 
constatação do caráter interrupto e fracionário das qualidades sensíveis. Esse caráter marcado 
pela fragmentação exige algum processo de síntese por parte do sujeito de maneira a 
possibilitar a percepção integral de um objeto – o que equivale à obtenção de uma unidade 
para a multiplicidade sensível. A necessidade de dar unidade à dispersão dos dados sensíveis, 
reconhecida por Aristóteles, será um problema determinante na sequência do 
desenvolvimento dos problemas epistemológicos. 
Voltemos ao problema das representações. Como os objetos do mundo sensível são 
compostos de matéria e forma, não há nenhum abismo a ser superado para que a razão 
obtenha os conceitos, que são seus objetos específicos. Isso ocorre porque os conceitos não 
têm de ser elaborados ou derivados da base sensível – seguindo o esquema em que 
apresentamos antes o problema das representações. Aristóteles não apresenta a questão dessa 
maneira em função do seu entendimento do caráter dos objetos sensíveis. Assim, a matéria é o 
objeto da percepção e a forma é o objeto da razão. 
Entretanto, ressalto que não se tratam de dois elementos distintos e conjugados em um 
ser particular existente. Eles são, antes, dois aspectos da mesma coisa apreendidos por duas 
habilidades humanas: a de perceber e a de pensar. A partir do duplo aspecto da realidade se 
pode justificar tanto o funcionamento da percepção quanto o da razão, sem que tenhamos que 
nos ocupar com a derivação de conceitos a partir dos dados sensíveis. Os objetos da razão são 
as formas e essas existem na realidade. Por isso, dizemos que Aristóteles, assim como Platão, 
é um realista. 
 50 
 
 
 3. A Teoria do Conhecimento Moderna 
 
 Daremos um salto sobre o período histórico conhecido como “Filosofia Medieval”. A 
Filosofia Medieval se caracteriza por uma tentativa de articular a Filosofia Antiga, 
principalmente o pensamento de Platão e Aristóteles, ao Cristianismo. Os dois maiores 
expoentes desse período, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, tentaram 
respectivamente fornecer versões cristãs do platonismo e do aristotelicismo. 
 Embora se tenham produzido importantes formas de pensamento ao final desse 
período, principalmente no que diz respeito à interpretação cristã de Aristóteles, suas 
consequências podem ser mais bem compreendidas através de alguns expoentes da Filosofia 
Moderna. Com efeito, nesse último período encontramos filosofias que representam mais 
adequadamente aquilo que desejo ilustrar em termos de teoria do conhecimento. Em função 
disso, e para evitar exposições que, embora pudessem ser historicamente mais corretas,agregariam poucas informações à presente narrativa sobre a teoria do conhecimento, vamos 
passar diretamente para a Filosofia Moderna. Nesta última estarão presentes de maneira mais 
direta alguns componentes teóricos que foram elaborados durante a Idade Média. Lembro 
apenas que o objetivo dessa narrativa é o de fornecer um panorama geral da Teoria do 
Conhecimento. Nesse sentido, julgo legítimo não nos ocuparmos aqui diretamente com a 
Filosofia Medieval. 
 
3.1 Descartes 
 Descartes (1596-1650) é conhecido como o filósofo fundador do modo de pensar 
moderno. Uma das peculiaridades de alguns de seus textos filosóficos é terem um caráter 
autobiográfico. Através de seus comentários pessoais, é possível entender como Descartes 
percebia sua época e a missão do seu próprio trabalho filosófico. Em um de seus textos mais 
importantes, o “Discurso do Método”, ele expressa sua perplexidade pelo fato de não ser 
capaz de discernir da educação que recebera o que poderia efetivamente ser verdadeiro ou 
falso. Assim, mesmo tendo sido educado nos colégios dos Jesuítas - o que havia de melhor em 
termos de educação na sua época - Descartes se sentia inseguro com relação ao que poderia 
ser um conhecimento seguro e confiável. 
 Notamos, através dessa observação pessoal, que a marca fundamental da Filosofia 
Moderna é a constatação da fragilidade da razão humana. O seu uso natural teria levado, na 
percepção de Descartes, a uma expansão sem regras, a um desenvolvimento que não garantia 
 51 
 
progressos – já que tudo era feito sem a segurança de uma base sólida. A melhor imagem para 
representar essa expansão sem ordem é a da própria cidade medieval. 
 
 
Cidade medieval 
 
 Essa cidade cresceu sem planejamento como uma junção de complementos e artifícios 
de toda ordem. Ela se expandiu para além dos muros construídos originalmente para defesa, 
suas casas foram erguidas sem plano, sem linhas retas e sem a delimitação do que era ou não 
era possível fazer – sem um plano diretor, diríamos hoje. Cada um construiu da forma que lhe 
pareceu mais conveniente, segundo seu interesse particular, e a expansão se deu mais por 
acomodação de iniciativas individuais do que por um planejamento válido para o ambiente 
coletivo. Esses improvisos agregados uns aos outros não demonstram a existência de uma 
ordem ou de um padrão que organize a vida de toda a cidade. 
É exatamente esse o retrato do conhecimento herdado da tradição à época de 
Descartes: um amontoado de informações desconectadas ou conectadas somente por 
justaposição. Um conjunto de elementos apresentados de maneira aleatória, de tal forma que 
mesmo o que poderia parecer verdadeiro à primeira vista, pode afinal não sê-lo – dada a 
ausência de critérios gerais que permitissem obter uma chancela definitiva com relação à 
validade do conhecimento. 
Como disse acima, o ponto de partida da Filosofia Moderna é a constatação de que a 
razão humana, quando deixada ao seu livre exercício, produz confusão e falta de segurança 
com relação ao conhecimento. Ela falha quando abandonada ao seu uso natural. A razão pode 
e deve ser o instrumento do conhecimento, mas o resultado de seu longo uso demonstrado 
pela tradição resulta em um amontoado de informações em desordem, um conjunto de 
elementos que fornecem poucas condições de se mostrar confiável. 
 52 
 
Por contornar essa dificuldade, o uso da razão deve ser precedido por uma crítica. Essa 
crítica tem por objetivo tornar evidente que quando utilizamos a razão sem qualquer preparo 
ou dispositivo de segurança não obtemos um conhecimento seguro. É esse reconhecimento 
inicial, esse movimento de modéstia e de autocrítica, que será o marco inicial da Filosofia 
Moderna e da sua respectiva Teoria do Conhecimento. 
 
 
A crítica da razão feita por ela mesma 
 
A razão deve ser usada para se obter conhecimento, mas de acordo com determinados 
procedimentos de precaução, segundo cuidados que devem permear sua atividade para evitar 
os erros. Esses procedimentos constituem o método moderno. Ele deve ser o responsável por 
garantir um uso adequado da razão humana e somente ele pode gerar certezas confiáveis e 
seguras. Descartes vê na Geometria uma forma de usar a razão com absoluta segurança e sua 
proposta é a de expandir esse procedimento para a Filosofia e para todo o conhecimento 
humano. No “Discurso do Método”, ele diz o seguinte: 
 
“As longas cadeias de raciocínio tão simples e fáceis, de que os geômetras costumam servir-se para 
chegar às suas mais difíceis demonstrações, proporcionaram-me o ensejo de imaginar que todas as 
coisas de que o homem pode ter conhecimento se seguem do mesmo modo e que, desde que se abstenha 
de aceitar por verdadeira uma coisa que não o seja e que respeite sempre a ordem necessária para 
deduzir uma coisa da outra, nada haverá tão distante que não se chegue a alcançar por fim nem tão 
oculto que não se possa descobrir.” 
 
 
Ou seja, o método deve garantir que uma verdade seja inferida da outra e que nenhum 
elemento seja introduzido na cadeia de raciocínio sem uma plena justificativa. O 
conhecimento é entendido como a conexão sólida de uma parte a outra e a segurança do 
conjunto depende de não se admitir a introdução de nenhum elemento a cadeia de inferências 
 53 
 
sem a sua correta dedução do que já se assume como verdadeiro. Podemos entender, então, 
que o método funciona como uma regra de precaução no uso da razão. Poderíamos traduzi-lo 
dizendo: “vá devagar, não se precipite e não inclua nada no conhecimento sem um bom 
motivo”. Sendo assim, o método deve colocar sob suspeita tudo o que a tradição nos 
transmitiu, tudo o que em geral admitimos como verdadeiro sem uma verificação e que foi 
gerado pelo uso natural da razão. Para a metodologia cartesiana, nada pode ser admitido ao 
conhecimento sem que tenha sido cuidadosamente analisado e verificado. Logo, nada pode 
ser considerado verdadeiro por obra de qualquer autoridade ou tradição de forma 
independente dessa análise. 
Descartes crê, como deixa claro o final da citação anterior, que esse método conduzirá 
às descobertas das coisas mais ocultas, por mais difíceis e distantes que elas possam parecer 
no início. Ou seja, é possível descobrir tudo, desde que procedamos com a devida cautela no 
uso da razão, respeitando as conexões entre as ideias e progredindo apenas por meio dessas 
últimas. 
O reconhecimento da falibilidade da razão humana, que poderia levar a algum 
ceticismo ou a uma dúvida profunda com relação à racionalidade gera, na perspectiva de 
Descartes, outra necessidade. De fato, para ele, embora a falibilidade seja um problema, ela 
não é um impeditivo definitivo para a produção de conhecimento verdadeiro. O método é 
justamente o corretivo e o medicamento para a falibilidade da razão. Trata-se de usar a razão 
com certas precauções, eliminando as distorções que seu emprego natural geram. Poderíamos 
dizer que o método de Descartes é uma espécie de “tecnologia racional” no sentido de que ele 
funciona como um apoio racional à própria razão, um processo de monitoramento racional da 
razão ou de autocrítica. Ele é artificial porque foi elaborado com a pretensão de ajustar o uso 
natural da razão, daí sua semelhança com a tecnologia: um acréscimo artificial que otimiza o 
funcionamento de um sistema. O que se acrescenta à razão é um aparato racional, portanto se 
trata de uma razão racionalizada, uma razão cujos procedimentos são vigiados e corrigidos 
por uma segunda razão vigilante e monitorada. O método consiste na atividade racional 
monitorando a razão ou em uma razão crítica, uma razão que observa a si mesma quando ela 
se ocupa com o conhecimento. A razão moderna é o primeiro ciborgue de que se tem notícia, 
a primeira combinação de elementos naturais e artificiais. 
 Se a adoção do método requer o abandono inicial das verdades da tradição, então o 
processo de fundação criteriosa do conhecimentotem de começar sem nenhum pressuposto, 
do nada, do grau zero do saber. Isto é, ao começarmos nenhum conhecimento deve ser 
admitido como verdadeiro e tudo deve poder ser derivado de uma primeira certeza ainda não 
 54 
 
encontrada. Essa certeza tem de ser inquestionavelmente segura e inabalável, caso queiramos 
efetivamente construir um edifício seguro. A metáfora da construção civil não é ocasional 
aqui. O projeto de Descartes requer uma fundação sólida, um princípio que seja evidente por 
si mesmo e que viabilize o escoramento dos demais andares do prédio do conhecimento a ser 
erguido. Tudo terá que ser derivado de uma única base, de um princípio definitivamente 
seguro, de tal forma que o edifício não corra riscos de vir abaixo por ocasião de uma dúvida 
ou de uma grande infiltração de umidade. 
 Para obter esse ponto fixo, Descartes afirma nas “Meditações Metafísicas” que 
qualquer coisa que possa produzir dúvida tem de ser abandonado por não se mostrar dotado 
da segurança requerida pelo fundamento definitivo. Assim, em primeiro lugar Descartes 
afasta a certeza sensível produzida pelos sentidos, já que ela produz erros com freqüência. Por 
exemplo, nos enganamos quando identificamos erradamente uma pessoa que se aproxima ou 
quando vemos um objeto reto tornando-se torto quando é mergulhado na água etc. 
Embora isso seja correto, não parece que possa haver erro quando afirmamos que 
2+2=4. As verdades matemáticas parecem bastante robustas para funcionarem como o 
fundamento de todo o conhecimento. Entretanto, Descartes pretende obter um ponto de apoio 
realmente inquestionável. E para tornar a dúvida ainda mais intensa e geral, ele cria a ficção 
do gênio maligno. Esse hipotético ser do mal estaria imbuído do propósito de nos enganar 
sempre, mesmo quando julgássemos estar certos. Assim, mesmo em um raciocínio 
aparentemente seguro como na operação 2+2=4, haveria a possibilidade de erro introduzida 
por esse demônio das trevas epistemológicas. Com a criação dessa ficção metodológica, 
Descartes torna a dúvida geral e profunda, já que podemos estar sendo enganados a todo o 
momento sobre coisas que julgamos mais simples e muito seguras. A função dessa ficção 
perversa é justamente estender a dúvida a um nível máximo, de tal forma que se há uma 
certeza absoluta que pode funcionar como fundamento do edifício do conhecimento, ela 
deverá sobreviver a tal gênio do mal. Será justamente a radicalidade dessa ficção que poderá 
gerar um fundamento não atingido pela dúvida – a essa altura uma dúvida que se tornou 
desumana. 
Descartes dirá então que mesmo que esse gênio do mal nos engane sempre, ele não 
pode nos enganar sobre o fato de que pensamos. Porque se somos enganados quando 
pensamos é porque pensamos e se há pensamento é porque há uma coisa que pensa: o meu eu. 
Daqui surge a primeira certeza na busca cartesiana pela fundamentação do conhecimento: 
“penso, logo existo” – que se tornou famosa também na sua forma latina: “cogito ergo sum”. 
O sentido desse argumento é o de inferir a existência do eu a partir da constatação da presença 
 55 
 
da atividade do pensamento. Com efeito, para Descartes, se há pensamento é porque há algo 
que pensa e esse ser é o “eu”. Assim, mesmo que exista um gênio maligno que passe a vida a 
me induzir ao erro nas coisas mais simples, ele não pode me enganar sobre isso, porque se ele 
me engana é porque eu existo. Sempre que penso, sei que existo. 
 
 
Penso, logo existo 
 
Essa é a primeira certeza da qual Descartes irá partir. Será ela que, na sequência das 
“Meditações”, fornecerá a base para as demais verdades: a prova da existência de Deus e do 
mundo físico. Observe que quando Descartes colocou sob suspeita a certeza dos sentidos, 
também colocou sob suspeita o fato de ter um corpo, de haver um mundo exterior etc. – 
verdades derivadas da sensibilidade. Portanto, a primeira certeza é ainda apenas a evidência 
da minha existência solitária como um ser que pensa. Ainda não sabemos nesse ponto da 
dedução se existe um mundo, se temos um corpo, se há outras pessoas. Essas verdades só 
serão demonstradas depois na sequência das investigações cartesianas. 
Um aspecto importante a ser destacado é que a primeira certeza é justamente uma 
certeza sobre a minha própria existência – a existência do meu eu. Isso significa que do ponto 
de vista de investigação que visa um conhecimento seguro, o sujeito ocupa o primeiro lugar 
da cena. É a partir dele que as demais verdades poderão ser inferidas. Embora ele não seja o 
ser mais elevado na ordem do mundo, ele é o primeiro na ordem do conhecimento – já que 
consiste na primeira certeza e no apoio inicial para todo o edifício da ciência. O sujeito passa 
a ser o fundamento do qual se poderá derivar todo o conhecimento possível, tudo o mais 
deverá passar por ele. 
Isso é extremamente importante se considerarmos que se trata da afirmação de 
independência e de autonomia do sujeito diante das supostas verdades da tradição. Inclusive a 
demonstração da existência de Deus só poderá ocorrer a partir da base fornecida pela certeza 
da existência do eu. Essa é uma reordenação de conceitos importante, porque refletiu e 
 56 
 
ampliou a valorização cultural do indivíduo e sua capacidade de avaliação independente a 
partir dos seus próprios recursos. O sujeito passa a valer como uma instância de avaliação 
autônoma que não deve satisfação a nenhuma verdade prévia e a nenhum valor instituído por 
força da tradição. Pelo contrário, toda verdade e todo valor só adquirem plena validade 
quando são racionalmente derivados da certeza do cogito e do exercício do pensamento 
autônomo. Se há verdades, elas devem surgir da verdade inicial relativa à existência do 
próprio sujeito. A tradição, entendida como uma fonte de verdades humanas permanentes, 
passa a ser vista como desconfiança. O eu passa a ser o princípio absoluto do conhecimento e 
das verdades possíveis. Aquilo que não puder passar pelo crivo do eu, não poderá mais ser 
considerado como verdadeiro. 
O projeto crítico que Descartes propôs possui um sentido claro: sem uma análise 
prévia de nossas capacidades intelectuais não podemos começar o processo de descoberta do 
conhecimento. Antes do conhecimento propriamente dito, é necessário incluir uma etapa que 
garante o uso produtivo e adequado da razão. Ninguém se propõe a saltar sobre um prédio de 
oito andares, porque sabe que não possui uma capacidade muscular suficiente para essa ação. 
Parece razoável analisarmos também nossa capacidade de conhecimento para sabermos o que 
ela pode realizar e o que não pode. Assim, não tentaremos saltar obstáculos epistemológicos 
acima de nossas capacidades cognitivas. 
Esse projeto crítico é derivado do reconhecimento da falibilidade da razão humana e 
da necessidade de corrigi-la através do método. A partir de Descartes, a necessidade de uma 
análise prévia de nossa capacidade de conhecer irá se intensificar e se tornar mais clara nas 
discussões epistemológicas. Todavia, a necessidade da crítica é originária da constatação de 
que o uso natural da razão leva ao erro e à proliferação caótica do (falso) conhecimento – uma 
constatação cartesiana com relação à situação do conhecimento na sua época. 
Observe que o impulso inicial da modernidade é um gesto de humildade ao se 
reconhecer que a razão natural pode gerar erros, de tal forma que se torna necessário o 
desenvolvimento de um sistema de monitoramento sobre suas atividades. A modernidade alça 
voo a partir desse reconhecimento das fragilidades racionais e isso não deve ser esquecido sob 
pena de enveredarmos por uma falsa sensação de segurança no uso dos dispositivos do 
conhecimento. 
A crença que viabiliza o projeto cartesiano é o de que a razão, sob a estrita vigilância 
propiciada pelo método, pode chegar ao conhecimento verdadeiro. Como a razão é o 
instrumento privilegiado para a obtenção do conhecimento verdadeiro,a escola filosófica de 
Descartes ficou conhecida pelo nome de “racionalismo”. 
 57 
 
 
 
3.2 Locke (1632-1704) 
 
Tanto Platão e Aristóteles quanto Descartes são considerados filósofos que 
defenderam posições realistas. Para todos eles, aquilo que se deseja conhecer existe de 
maneira independente da mente humana. Embora Descartes entenda que o modo adequado de 
conhecer é guiar-se pela razão, seguindo os padrões da Geometria, ele não nega que a 
realidade exterior seja o verdadeiro objeto do conhecimento humano. O racionalismo 
cartesiano é somente uma opção metodológica dentro dos parâmetros do realismo 
epistemológico. Ele é um realista com relação ao objeto do conhecimento e um racionalista 
com relação ao método ou à forma de se obter o conhecimento: como vimos antes, a razão é o 
único instrumento adequado para isso. 
A posição de Locke marca um abandono das posições realistas, embora isso possa soar 
estranho pelo fato dele ser considerado um empirista. O seu empirismo, como o racionalismo 
de Descartes, diz respeito às questões metodológicas. A posição epistemológica de Locke é 
conhecida como conceitualismo. 
Vamos retomar nesse ponto o esquema que ilustra o problema das representações e 
verificar a solução proposta por Locke. Lembre-se que a dificuldade é a disparidade entre o 
conteúdo da percepção (as qualidades sensíveis particulares) e o conteúdo da razão (os 
conceitos universais). 
 A particularidade das qualidades sensíveis se caracterizava pela sua condição espacial: 
informações sensoriais, embora possam ser muito semelhantes, são diferentes se 
considerarmos que elas ocorrem em diferentes lugares: o branco da parede a minha frente é 
diferente do branco da minha xícara – embora ambas sejam “brancas”. Além disso, a 
particularidade pode ser notada se considerarmos a condição temporal dessas informações – o 
branco da minha xícara de alguns instantes atrás é diferente do branco de agora, embora 
minha memória possa garantir que eles são muito semelhantes. Agregadas essas duas 
condições, verificamos que as qualidades sensíveis são extremamente variadas e interruptas 
compondo um conjunto de elementos fragmentários em permanente mudança. Essa condição 
particular da existência espacial e temporal é o que torna os conceitos tão inadequados quando 
pensamos que sua função seja a de representar o conteúdo da percepção. 
Para Locke, os conceitos não correspondem a uma realidade exterior à mente humana. 
Eles são entidades tipicamente mentais e, como conceitos, não possuem correspondentes 
 58 
 
externos que lhe sejam plenamente correspondentes. Essa ruptura entre um suposto conteúdo 
exterior da realidade e nossos conceitos pode provocar uma estranha situação: a de que 
efetivamente nosso pensamento – e, portanto, todo o conhecimento - não esteja ligado à 
realidade. 
Entretanto, há uma maneira pela qual os conceitos podem ser justificados ou tornados 
epistemologicamente legítimos: o estabelecimento de alguma ligação entre eles e as 
qualidades sensíveis. Essa ligação nos permitiria chegar aos conceitos a partir do conteúdo da 
percepção, estabelecendo uma ligação entre eles – mesmo que isso não implique afirmar que 
exista entre eles uma correspondência exata. Dessa forma, a legitimação do caráter universal 
dos objetos da razão não se daria por correspondência com a realidade externa e sim através 
de sua origem empírica. 
Observe a semelhança entre esse processo de crítica da razão proposto por Locke e o 
funcionamento de um tribunal na esfera jurídica: ambos visam analisar um fenômeno já 
existente e então obter uma validação ou uma decisão com respeito à sua legitimidade. A 
perspectiva crítica da Filosofia Moderna possui esse caráter em comum com o sistema 
jurídico, na medida em que busca avaliar capacidades humanas já existentes, como a razão e a 
percepção. Locke não está explicando como se produz conhecimento, mas apenas verificando 
que parte do uso de nossa capacidade racional pode ser epistemologicamente válida. Trata-se 
de passar de uma questão de fato (o uso efetivo que fazemos da razão) para uma questão de 
direito (avaliar se esse uso é legítimo). 
Desse ponto de vista, podemos dizer que Locke compartilha com Descartes aquela 
crença básica moderna na falibilidade da razão humana, porque somente uma capacidade 
julgada falível pode ser submetida a uma crítica ou a um tribunal com o objetivo de investigar 
a legitimidade do seu uso. 
 
O tribunal da razão 
 59 
 
 
É importante ressaltar nesse ponto a diferença nas estratégias de legitimação dos 
objetos da razão, os conceitos. Em Aristóteles as operações do pensamento se tornam 
justificadas porque o seu conteúdo corresponde a um aspecto da própria realidade. Para ele, 
aquilo que é objeto da razão é a própria realidade (formal) transferida para o nível do 
intelecto. Para Locke, a justificação do uso dos conceitos ocorre em função deles poderem ser 
derivados do conteúdo da percepção – como veremos em seguida. No primeiro caso, há uma 
correspondência perfeita entre o aspecto formal da realidade e a sua apreensão intelectual 
enquanto que no segundo só se apresenta uma conexão na base: aquilo que conhecemos se 
origina no plano sensível, mas não corresponde inteiramente a ele. 
Com efeito, para Locke só haverá conhecimento verdadeiro quando pudermos 
identificar sua origem no âmbito da percepção, traçando o percurso de sua gênese intelectual. 
Locke utiliza o termo “experiência” para se referir ao que tenho denominado de percepção, 
mas acrescenta uma nova dimensão a ela. Trata-se da percepção que temos de nós mesmos, 
isto é, da consciência que adquirimos quando nos analisamos introspectivamente. 
Seguramente posso atentar para o que está ocorrendo nesse momento comigo mesmo: percebo 
que sou um ser que está lendo e pensando em tais e tais ideias. Estou me sentindo bem e 
confortável ou um pouco confuso em função da leitura desse texto etc. Assim, o conceito de 
experiência para Locke inclui tanto o conteúdo dos cinco sentidos da percepção quanto a 
auto-percepção que temos de nós – se preferirmos, ela envolve o conjunto da percepção 
exterior e da percepção interior. 
O processo de justificação do conhecimento consistirá então na possibilidade de 
conectar o conteúdo da razão com o conteúdo da experiência, os conceitos com os dados 
sensíveis. Se os primeiros puderem ser inferidos dos segundos, seu uso estará legitimado e se 
assegurará que a razão pode operar com seus conceitos de maneira significativa. Caso não 
encontremos uma base empírica para algum de nossos conceitos, isso significa que eles não 
têm nenhum sentido e são apenas ficções geradas por algum tipo de delírio da razão. Note 
que, novamente aqui, se apresenta aquela atitude de reconhecimento de que a razão humana, 
pode sim criar fantasmas e ilusões e confundi-los com o conhecimento autêntico. Por isso, o 
tribunal epistemológico deve separar aquilo que é legítimo do que é ilegítimo no uso natural 
da razão. Para Locke, um dos primeiros conceitos a ser objeto de verificação de sua origem 
sensível é o de espaço porque dele depende toda a Geometria. 
No âmbito da experiência sabemos que todas as qualidades sensíveis espaciais têm de 
ser finitas por definição. Ou seja, no caso específico da espacialidade, nenhum ser humano é 
 60 
 
capaz de ter a experiência de um espaço ilimitado. De fato, todas as nossas percepções 
envolvem um espaço finito. Por outro lado, sabemos que um dos requisitos da Geometria 
euclidiana é o conceito de espaço infinito e tridimensional. Todo o conhecimento geométrico 
tradicional é derivado desse único ponto de partida conceitual. Assim podemos verificar a 
importância do trabalho epistemológico de justificação proposto por Locke. Se acaso esse 
conceito fundamental da Geometria não puder ser derivado das qualidades sensíveis presentes 
na experiência não apenas o conceito de espaço, mas toda a ciênciaque depende dele, se torna 
ilegítima. Ou seja, todo o conhecimento pode ser comprometido na medida em que 
eventualmente perder sua fundamentação e passar a ser apenas uma fantasmagoria, um 
discurso racional sobre nada, um delírio da razão solitária. 
Locke argumenta que a mente humana de posse de qualquer qualidade sensível, e em 
função de seu caráter ativo, opera uma diversidade de processos como a duplicação, a 
separação ou a abstração. Por meio deles, ela pode legitimamente gerar novos objetos – 
embora todos tenham que ter por base as qualidades obtidas na experiência para serem 
utilizados no conhecimento. Assim, de posse de uma qualidade sensível espacial (finita, por 
definição), a mente opera uma duplicação e transforma, por exemplo, os 4 metros percebidos 
de uma experiência presente atual em 8, depois 8 em 16, 16 em 32, 32 em 64, 128, 256, 512, 
1024.... até chegar à noção de um espaço infinito. Dessa forma, segundo Locke, a noção de 
um espaço infinito estaria justificada na medida em que podemos verificar sua origem a partir 
da experiência, mediada pelas operações de duplicação da mente. No caso particular do 
exemplo do conceito de espaço, que segue o padrão de todo conceito ligado à noção de 
infinito, as operações da mente consistem na duplicação repetida do conteúdo de uma 
qualidade sensível original. 
O mesmo ocorre com o conceito de qualquer objeto comum, como caneta. O conceito 
“caneta” não se refere apenas às canetas que estiveram presentes em minha experiência. Ele 
inclui todas as canetas, sejam elas canetas que não existem mais ou aquelas que ainda não 
existem. A universalidade desse conceito extrapola as dimensões do tempo por abarcar todos 
os elementos possíveis referidos por essa classe de objetos. Na perspectiva de Locke, minha 
mente constrói o conceito de caneta a partir da experiência, embora seu conteúdo extrapole as 
qualidades sensíveis disponíveis nas experiências de qualquer ser humano. Se não houver 
uma experiência, não pode haver o conceito correspondente. Um cego de nascença não pode 
entender a ideia da cor vermelha, porque não dispõe de uma qualidade sensível a partir da 
qual pudesse chegar a tal conceito. A ideia de cor vermelha poderá certamente ser 
comunicada a ele através da linguagem, mas não terá na sua base um dado sensível que lhe 
 61 
 
forneça um fundamento legítimo. Ele não terá elementos para suprir essa ideia de conteúdo 
sensível, de modo a dar a ela uma densidade típica daquilo que é originário da experiência. 
Embora a eficiência da linguagem possa ser demonstrada pela capacidade de fazer o ouvinte 
ter as mesmas ideias que o falante, este não pode fornecer àquele o conteúdo da experiência 
que dá sentido pleno e legitimidade epistemológica aos conceitos. 
Note que não há uma relação de correspondência entre experiência e razão. O 
conteúdo legítimo de cada conceito extrapola o conteúdo de qualquer qualidade sensível, mas 
pode ser reduzido a ele através de uma crítica cuidadosa. Generalizando, o conteúdo legítimo 
da razão extrapola o conteúdo da experiência, mas algumas partes daquele podem ser 
reduzidas a este. A razão não pode operar sem a base sensível e nem pode criar conceitos 
legítimos a partir do nada ou de si mesma. Caso as operações da razão resultem em conteúdos 
não redutíveis à experiência, trata-se de uma ilusão e não de um conceito justificado. 
Sinteticamente dizemos que os conceitos redutíveis ao conteúdo da experiência são legítimos 
e os que não podem sê-lo, consistem em entidades vazias e sem sentido. Os verdadeiros 
objetos do conhecimento são os conceitos legítimos. 
 
 
Um cego não pode ter ideias legítimas de cores 
 
É uma implicação natural do pensamento conceitualista afirmar que o que nós 
conhecemos é, em último caso, nossas próprias ideias e não a realidade. Ou seja, a realidade 
não é a referência imediata para o conhecimento, na medida em que este não pretende retratá-
la de maneira fiel. O que o conhecimento efetivamente visa são os conceitos construídos pela 
mente a partir da experiência. E esses conceitos são entidades mentais que não possuem 
correspondentes externos. Conhecemos conceitos que são originários da experiência, mas que 
não correspondem integralmente ao conteúdo dela. 
 62 
 
Uma das dificuldades que o conceitualismo de Locke enfrenta é a constatação de que 
todos os seres imaginários, como um Minotauro ou um Centauro, também se tornam objetos 
legítimos de conhecimento, na medida em que cada um deles pode ser reduzido a elementos 
da experiência. Com efeito, como vimos acima na explicação do conceito de imaginação, um 
Minotauro é apenas uma combinação de qualidades sensíveis – algumas ligadas a um homem 
e outras ligadas a um touro. Dessa forma, pelo mesmo tipo de estratégia que permitiu tornar 
justificado o conceito de espaço infinito, também podemos tornar legítimos os seres 
imaginários já que eles também são redutíveis a alguns elementos de origem sensível. 
A constatação dessa legitimidade epistemológica dos seres imaginários provavelmente 
foi uma inspiração para a obra literária de Jorge Luis Borges. Curiosamente, o pensamento 
empirista e conceitualista de Locke pode ser entendido na perspectiva de haver tornado 
epistemologicamente legítimas todas as fantasias da imaginação – entendendo com isso todas 
as nossas ideias supostamente fictícias, mas que podem estabelecer alguma conexão com uma 
base sensível. Seguindo essa maneira de pensar a Geometria estaria epistemologicamente tão 
justificada quando a Quiromancia (arte de ler o futuro a partir das linhas das mãos). O 
processo de justificação epistemológico é idêntico em ambos os casos. 
 
 
 3.3 Hume (1711-1776) 
 
 A filosofia de Hume é uma resposta ao pensamento de Locke e, por isso, está ligada 
diretamente a ela. Se retomarmos uma vez mais nosso esquema do problema das 
representações, poderemos visualizar facilmente a diferença entre esses dois filósofos. Do 
ponto de vista terminológico, Hume chama de impressões o conteúdo dos sentidos e de ideias 
os conceitos. 
 
 
David Hume 
 63 
 
Ela afirma o caráter fracionário das impressões, isto é, o fato de que elas não nos 
fornecem um objeto unificado e sim um conjunto de características isoladas. Dessa forma, 
constatamos, uma vez mais, que a cor não está ligada ao peso ou ao som que percebemos com 
os nossos sentidos. Essas impressões também são interruptas, pois não duram mais que aquele 
exato instante em que são percebidas. No instante seguinte, já são outras as impressões que se 
apresentam à nossa sensibilidade, gerando um fluxo permanente de novas informações 
sensoriais, uma cascata contínua de impressões. 
A diferença marcante entre Locke e Hume é que este último avalia negativamente a 
relação entre as impressões e as ideias. Para ele, quando nos lembramos de um evento 
doloroso do passado não recuperamos sua intensidade original. Então, se me lembro de um 
tombo de bicicleta da infância, não revivo a dor do joelho ferido, apenas revejo uma cópia 
muito inferior desse evento doloroso na minha memória. Há uma diferença muito evidente 
entre a intensidade da dor original e sua lembrança posterior. Essa é a mesma diferença que 
existe entre uma impressão e sua respectiva ideia. Aquela é vivaz e forte e essa é apagada e 
fraca. Isso ocorre porque as ideias são somente cópias das impressões. Simulacros são sempre 
mais pobres em conteúdo do que os seus originais. Não estamos obviamente falando de 
cópias digitais e sim de cópias atômicas – aquelas em que parte da nitidez e da clareza 
original se perde gradativamente na mesma proporção em que são copiadas. Assim, para 
Hume, ideias são sempre mais tênues e pálidas do que as suas respectivas impressões 
originais. Se há essa diferença de vivacidade, não faz sentido tentar derivar uma cópia de 
maneira legítima de um original sensível. Isto é, não faz sentido tentar encontrar uma maneira 
epistemologicamenteválida de fazer cópias porque, mesmo se as fizéssemos, elas ainda 
seriam somente cópias de originais. 
Estabelecida essa diferença inicial entre impressões e ideias, a questão de Hume torna-
se diferente da de Locke: dadas essas duas entidades, qual delas pode ser a expressão do 
conhecimento verdadeiro? Parece óbvio que a resposta indique que são as impressões que 
constituem a forma de conhecimento autêntica, já que são elas que contêm a força e a 
vivacidade originais. As ideias, enquanto cópias, são secundárias e não podem consistir senão 
em reminiscências apagadas do conhecimento verdadeiro. 
O que Hume está propondo é a identificação do conhecimento verdadeiro com o 
conteúdo das impressões. A razão só seria responsável por lidar com cópias sem vida, como 
se fosse um burocrata lidando com papéis velhos e já amarelados sem qualquer conexão 
perceptível com os afetos da vida. Essas cópias são tão distantes dos originais sensíveis que 
ninguém mais sabe exatamente o que significam. 
 64 
 
Entretanto, note que a identificação do conhecimento com as impressões provoca uma 
enorme redução naquilo que, em geral, consideramos como sendo legitimamente válido. Com 
efeito, se apenas as impressões constituem um conhecimento autêntico, então devemos limitar 
a elas o que consideramos ser a verdade. Ou seja, o conhecimento equivale ao estrito 
conteúdo das impressões. Toda e qualquer transformação posterior das impressões, como 
aquelas propostas por Locke, não são verdades legítimas. Ou seja, são as operações racionais 
na sua totalidade que estão excluídas da possibilidade de se tornarem uma apreensão do 
conhecimento epistemologicamente válido. 
A crítica de Hume aos processos de transformação racional do conteúdo das 
impressões está baseada no que ele entende ser um defeito insuperável produzido pela 
indução. Quando inferimos certo comportamento da natureza em função de nossas 
experiências passadas, estamos supondo algo que nossos sentidos jamais poderão nos 
fornecer. Por exemplo, quando afirmamos que “Todos os homens são mortais” temos que no 
remeter à base empírica para verificar se essa regra possui validade. Nossa experiência nos 
informa que “João é mortal”, que “Pedro é mortal” etc. porque os vimos morrer. Entretanto, 
mesmo supondo que confiemos no testemunho de outras pessoas que constataram que “Maria 
é mortal” e que “Reinaldo é mortal”, não temos como afirmar que “Gilson morrerá” porque 
ele ainda está vivo. Isto é, a regra universal, a lei, diz que os homens do presente, do passado 
e do futuro são mortais, mas a experiência só pode me informar, na melhor das hipóteses, 
sobre o presente e o passado. Portanto, todas as operações mentais baseadas na indução não 
são inferências inválidas, porque concluímos mais conteúdo do que aquilo que a experiência 
efetivamente nos informa. 
Portanto, Hume nega que seja possível atingir o conceito de espaço infinito a partir do 
conteúdo das impressões – sempre alguma dimensão finita – como queria Locke. Isso ocorre 
porque os processos mentais não podem se repetir ao infinito e sua repetição permanente não 
permite concluir nada, pois são repetições sempre aquém da própria infinitude contida no 
conceito. Assim, há um problema com aquelas reticências expressas acima no nosso 
argumento à la Locke de que “a mente opera uma duplicação e transforma 4 metros em 8, 
depois 8 em 16, 16 em 32, 32 em 64, 128, 256, 512, 1024.... até chegar à noção de um espaço 
infinito”. Qualquer operação de soma de um espaço finito com outro espaço finito só pode 
redundar em um espaço finito, ainda que maior. Não há nenhuma forma de saltarmos sobre as 
reticências e nem como percorrê-las inteiramente. A mente não pode gerar legitimamente a 
ideia de um espaço infinito a partir da base do conteúdo das impressões porque não pode 
saltar sobre o infinito das reticências. Portanto, o processo que é utilizado por Locke para unir 
 65 
 
as duas pontas (a ponta dos conceitos universais e a ponta do conteúdo da experiência) não é 
logicamente válido para Hume. Por isso, todo o conhecimento humano válido tem de se 
limitar ao ponto de partida que é efetivamente dado: o conteúdo das impressões. 
Esse mesmo argumento vale para toda e qualquer ideia da razão. Por exemplo, se 
considero o conceito de “homem” verifico que seu conteúdo implica em todos os homens: os 
do passado, os do presente e os do futuro. Ele envolve mais conteúdo do que as impressões 
podem me fornecer e, portanto, não possui um fundamento epistemológico seguro. O único 
conhecimento seguro nesse e nos demais casos é restringir-se ao que é efetivamente dado no 
âmbito das impressões. Só há conhecimento do que é particular. Essa é a expressão da postura 
mais radicalmente empírica com relação ao conhecimento. 
Ao contrário do que defendia Locke, para Hume não há fundamento empírico para as 
ideias. Entre o conteúdo das impressões e as ideias há um espaço que é impossível transpor 
através de qualquer recurso lógico e racional. O que se requer, portanto, é que reconheçamos 
a impossibilidade de fundamentar ou justificar o uso dos conceitos ou, se quisermos, não há 
motivos para usar a razão como um instrumento legítimo de conhecimento. Essa ideia foi 
retomada mais tarde pelo escritor inglês H. G. Wells que, a partir de um espírito empirista 
semelhante ao de Hume, afirmou que a razão seria um instrumento tão adequado para a busca 
da verdade quanto o focinho de uma porca. Isso porque ela nada nos informa acerca daquilo 
que constitui a base potencial de todo conhecimento válido: as impressões. 
A restrição do conhecimento nesses estreitos limites empíricos implica em dotá-lo do 
caráter fracionário e interrupto típicos das impressões. Além disso, essa restrição caracteriza a 
versão empirista e não-realista do pensamento de Hume. Ele é empirista porque a forma de 
acesso ao conhecimento verdadeiro é fornecida pelos sentidos e consiste em uma versão não-
realista porque o objeto de conhecimento são as próprias impressões e não a realidade 
exterior. Esse último talvez seja um dos aspectos mais mal compreendidos do pensamento de 
Hume. Entretanto, ele se torna bastante saliente se considerarmos que não há nada nas 
impressões que sugira que elas sejam decorrências de coisas exteriores reais, como se fossem 
algum tipo de projeção do mundo real sobre nossa sensibilidade. 
Tudo o que recebemos são apenas as impressões e não há nenhum tipo de recurso 
justificado que nos permita conectá-las a uma suposta realidade da qual elas seriam uma 
manifestação. As impressões são os dados e todo o conhecimento deve limitar-se a eles. Não 
há como saber se há algo atrás das impressões das quais elas pudessem ser as manifestações. 
Também não há como utilizá-las como tijolos para construir conhecimentos derivados, como 
 66 
 
pretendeu Locke Portanto, não há como saber se há uma realidade exterior da qual as 
impressões seriam algum tipo de manifestação afetando nossos sentidos. 
Como as ideias não possuem uma base no plano da experiência, elas resumem-se a 
meros nomes. Por isso, caracterizamos o pensamento de Hume como uma versão do 
nominalismo. Isso significa que as ideias não exprimem qualquer substancialidade ou 
possuem qualquer conexão válida com a realidade ou mesmo com a base empírica. Elas são 
meras etiquetas que não possuem uma justificativa epistemológica, seja a partir do conteúdo 
dos sentidos, seja em qualquer processo racional que implicasse em necessidade. Elas são 
somente palavras inventadas para facilitar a comunicação, sons aleatórios que nada dizem 
sobre o mundo, o mero sopro da voz humana. 
Restringir o conhecimento disponível aos estreitos limites das impressões significaria 
restringir muito o conjunto daquilo que nós em geral julgamos verdadeiro. Isso significaria 
reconhecer que só há conhecimento do que é percebido aqui e agora – incluindo nisso o 
aspecto fragmentário e não realista dasimpressões. Entretanto, verificamos que mesmo sendo 
esses limites tão estreitos, nos lançamos sempre para além deles em qualquer inferência 
simples que fazemos. Por exemplo, quando me movimento não verifico a cada instante se o 
local em que pisarei continua lá. Desenvolvemos a crença de que a matéria permanece mais 
ou menos estável ao longo do tempo e isso me permite fazer coisas básicas como caminhar 
sem olhar sempre para o chão, tomar água e me alimentar sem ter que verificar se a água 
continua no copo ou se o alimento ainda tem o mesmo sabor de antes ou não se tornou 
repentinamente venenoso. 
Também acredito que tenho uma família, mas quando estou distante dela perco a base 
empírica para continuar acreditando nisso, na medida em que já não tenho mais as impressões 
correspondentes presentes. Posso obviamente lançar mão de minha memória, mas as ideias 
disponíveis dessa forma são apenas cópias das impressões originais e não justificam a crença 
na existência da minha família. De fato, essas ideias acumuladas me informam sobre o 
passado, mas não sobre o presente. Não posso me basear nas informações da memória para ter 
certeza de que tenho uma família. Muito menos posso chegar a tal crença através de algum 
tipo de raciocínio que implique em conectar impressões presentes a supostos seres ausentes. 
Percebemos que nossas crenças em coisas muito simples são baseadas em inferências 
não legítimas que realizamos. De fato, nós possuímos uma espécie de tendência a desenvolver 
crenças que, mesmo sem fundamento racional, seguramente tornam a vida possível. Ninguém 
que suspeite seriamente do caráter permanente da matéria ou do fato de ter uma família 
conseguiria dar dois passos fora de sua casa ou ter uma vida útil e relativamente sã. 
 67 
 
A redução do conhecimento ao conteúdo das impressões envolve reconhecer não 
apenas que não sabemos se há objetos externos como o fato de que não sabemos se há um 
sujeito. Hume argumenta que as impressões que cada um de nós tem de si mesmo são sempre 
particulares, fragmentárias e interruptas, como todas as impressões externas. Não detectamos 
nessas impressões algo de permanente e fixo. O conteúdo de nossas impressões internas é um 
fluxo permanentemente mutável de ideias e sentimentos. Não há aí nenhum sujeito no sentido 
substancial da palavra: algo estável que é afetado. O que há, são ideias e sentimentos que se 
sucedem. Ou seja, não há um “eu” fixo que possa servir como substrato para essas ideias e 
sentimentos – assim como não há um objeto estável que seja a base para as qualidades 
sensíveis. A análise empírica do “eu” termina por não encontrar nada que não sejam 
impressões passageiras. Assim, podemos dizer que Hume postula um empirismo que termina 
por afirmar que não há base racional para crermos em um sujeito e um objeto do 
conhecimento. 
Vimos acima que possuímos uma disposição natural – ou uma compulsão - para 
adotar crenças sobre a existência de objetos e sujeitos, embora elas não sejam nem 
empiricamente nem racionalmente justificáveis. Para Hume, a causa dessa disposição é um 
hábito ligado à natureza humana. Ele exprime nossa necessidade compulsiva por ordem e por 
regularidade. É ele, por exemplo, que nos conduz a conectar uma causa a um efeito – sem que 
haja, de fato, nenhuma forma de inferir racionalmente uma coisa da outra. Nenhuma análise 
de uma impressão particular permite conectá-la com qualquer outra que ocorre antes ou 
depois. Sucessões no tempo não implicam em nenhum tipo de conexão necessária e 
permanente, como a que é estabelecida pela causalidade. Esse tipo de conexão exprime 
apenas a expectativa subjetiva que possuímos de que as coisas estejam conectadas e possuam 
uma relação específica. 
Tudo o que denominamos de “racional” - e que constitui o lado esquerdo de nosso 
esquema do problema das representações – revela-se aqui como a mera expressão de nossas 
expectativas subjetivas. Curiosamente, nossa racionalidade é apenas expressão de nossa 
subjetividade, de uma necessidade de ordem e não de processos justificados 
epistemologicamente que seriam dotados de alguma forma de superioridade epistemológica. 
A razão expressa apenas nossa necessidade subjetiva por ordem e regularidade e não uma 
conexão necessária e justificada entre as próprias coisas. Nesse sentido, não podemos afirmar 
que ela seja superior em nenhum sentido válido, pois ela apenas exprime características 
humanas e muito semelhantes a de tantos outros animais. 
 68 
 
Do ponto de vista estritamente epistemológico, o conhecimento humano deve se 
restringir ao conteúdo das impressões. Entretanto, Hume reconhece que os processos 
racionais (conceituais) não são apenas erros congênitos. Eles expressam uma necessidade da 
natureza humana, embora sem qualquer base epistemológica válida, e por isso são legítimas – 
embora apenas subjetivamente legítimas. Para Hume a racionalidade perde o caráter de 
elemento típico de nossa especificidade humana. Ela torna-se somente a expressão de uma 
necessidade subjetiva mais básica e é entendida como um instrumento para podermos obter 
ordem. O que é fundamental aqui não é a própria razão e sim a expectativa subjetiva humana 
por ordem e por constância da qual aquela é uma expressão. 
Nossa confiança no comportamento regular das coisas naturais está baseada na nossa 
própria necessidade de estabilidade e não em uma análise racional das próprias impressões. 
Uma investigação epistemológica revela o caráter arbitrário das operações racionais já que 
elas, por si mesmas, não podem ser justificadas por algum procedimento objetivo. Isso 
significa que as operações racionais não possuem um fundamento legítimo e se constituem, 
pelo contrário, como uma expressão de necessidades subjetivas. 
É como se o tribunal tivesse decretado a falta de legitimidade do próprio tribunal, mas 
reconhecesse o fato de que ele expressa uma característica da natureza humana. O 
pensamento de Hume implica em reconhecer que a racionalidade não é algo que caracteriza 
de maneira especial os seres humanos. Ela é apenas uma manifestação muito específica de 
necessidades que talvez sejam compartilhadas com vários outros seres – supondo que 
qualquer forma de vida também deve possuir necessidades de ordem e de estabilidade. Esse 
sentimento é que estaria na base da humanidade e igualmente na base de todas as demais 
formas de vida. 
Pode-se notar que nem sempre posições metodológicas empiristas conduzem a uma 
defesa de alguma forma de realismo. No caso de Hume isso é patente: só podemos conhecer 
por meio dos sentidos, porém esses não me fornecem uma experiência composta de objetos 
exteriores. Portanto, temos aqui uma forma de pensar empirista e não realista. 
 
 3.4 Kant (1724-1804) 
 
 Do ponto de vista da justificação do conhecimento humano, o pensamento de Hume 
havia levado a uma resposta negativa já que nenhuma operação racional se mostrava legítima 
porque não podia ser derivada do conteúdo dos sentidos. Seu pensamento era uma resposta 
direta à possibilidade sugerida por Locke a esse respeito. Essa resposta negativa resultou em 
 69 
 
uma postura extremamente cética com relação àquilo que nós podemos conhecer de maneira 
justificada. Mas se o problema fosse entendido de outra maneira, talvez outras soluções se 
mostrassem viáveis. E é exatamente isso que Kant fez. 
 
 
Immanuel Kant 
 
 Um dos parâmetros dos problemas que Locke e, por conseqüência Hume, tentaram 
responder consiste em pensar que espaço e tempo são conceitos. Isto é, que eles são entidades 
mentais que deveriam ser passíveis ou não de justificação por algum tipo de recurso aos 
sentidos. Kant negará justamente essa premissa básica do modo de pensar empirista de Locke 
e Hume. 
 Através de uma análise introspectiva, podemos verificar que é possível pensarmos no 
espaço sem nenhum objeto presente, mas que é impossível pensar em um objeto sem que ele 
esteja no espaço.por sua vez, é buscada através da 
anulação da falsidade – no caso, a individualidade do ego e sua consequência imediata: a 
separação entre eu e o mundo. Quando trilho o caminho do erro e afirmo minha 
individualidade através do desejo (eu quero) e da ação (eu faço), afirmo um mundo ilusório, 
um mundo de aparências e de dualidades que me afastam da realidade. Por isso, a distinção 
entre sujeito e objeto deve ser revertida e ceder lugar à unidade subjacente que é a própria 
realidade em si mesma. Todo o esforço das Religiões Orientais é no sentido de obter essa 
identidade última por meio da recusa da diferença entre sujeito e objeto. 
 
 
O pensamento ocidental e o pensamento oriental 
 
A separação entre sujeito e objeto é um ponto de partida que deve ser anulada em 
benefício da pura identidade, da unidade sem diferenças. Assim, não se construiu no 
pensamento oriental uma tentativa de superação dessa diferença e sim um projeto para seu 
cancelamento, já que ele é entendido como uma fonte permanente de sofrimento 
desnecessário. Como a nossa existência individual é um fato, o pensamento oriental se debate 
sempre com o mesmo problema: o cancelamento de uma oposição que renasce 
permanentemente ao longo do tempo, assim que nos percebemos partes desse mundo. 
Na verdade, o tempo no oriente não se configura como um processo que possui uma 
tensão a ser desembaraçada de forma gradativa e sim como uma repetição permanente da 
mesma situação: estamos no plano falso da diferença e ele precisa ser dissolvido, preciso 
eliminar meu eu para me salvar do reino da ilusão onde fui lançado pelo nascimento e pelas 
 7 
 
falsas crenças centradas do ego. Essa estrutura se repete sempre, com outros seres humanos de 
gerações distintas, mas com o mesmo roteiro. Por isso, parece correto afirmar que não há 
“história” no pensamento oriental, porque o tempo se apresenta como a repetição de um 
drama igual: a eliminação da diferença, a necessidade de cancelamento do ego. 
Na Filosofia Ocidental também reconhecemos a diferença entre sujeito e objeto, 
porém ela se reveste de um caráter positivo. Ou seja, ela é assumida como uma dificuldade a 
ser ultrapassada através da afirmação da própria diferença: há um sujeito e um objeto e o 
conhecimento é a tentativa de apreensão da verdade do objeto por parte do sujeito. Em função 
dessa disposição inicial, a diferença é reconhecida como legítima e se iniciam as tentativas de 
superá-la. Nesse sentido, há um conjunto de iniciativas que irão compor uma história - e não 
uma repetição de tentativas de libertação - que se iniciam sempre com o nascimento de um 
indivíduo. Há aqui uma ideia de tempo diferente da circularidade que sempre retorna: o tempo 
no pensamento ocidental é compreendido como uma linha em que vários ensaios de 
superação da diferença entre o eu e o objeto vão se produzindo. No ocidente há várias formas 
de conhecimento relativas a essas tentativas de desembaraçar aquela diferença inicial entre o 
sujeito e o objeto. Observe que “desembaraçar” significa resolver e não cancelar. 
Quando Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo ocidental, se pergunta sobre 
o princípio de todas as coisas, ele tenta reunir a diversidade aparente dos fenômenos naturais 
visíveis sob um mesmo fundamento. Essa perspectiva é uma tentativa de apreensão racional 
do mundo através da redução da diversidade a um único princípio. Portanto, pela primeira vez 
na história da humanidade há claramente a afirmação da possibilidade de conhecimento por 
parte do sujeito do objeto na sua totalidade. A diferença entre os elementos do mundo natural, 
a multiplicidade da natureza, é assumida não como um dado intransponível, algo que deve ser 
levado em consideração. Porém, trata-se de um ponto de partida que iniciará uma história com 
o propósito de chegar à apreensão completa do objeto. No oriente se quer viver a unidade por 
meio da negação da diferença. No ocidente se quer obter a unidade por meio da afirmação da 
diferença. Lá há uma recusa da diferença e aqui uma aposta na possibilidade de sua 
superação. 
Em termos míticos, se poderia dizer que a aventura proposta por Tales ao fazer a 
pergunta “qual é o princípio de todas as coisas?” é uma tentativa de recuperação do Paraíso 
bíblico. Com isso, sugiro que a finalidade da busca pelo conhecimento é a busca da restituição 
de uma vida em que o sujeito está plenamente identificado com o objeto, uma vida em que o 
homem recuperou seu lugar na natureza e se tornou integrado ao mundo. Mas isso é apenas 
uma perspectiva mítica de entendermos o processo envolvido na tarefa do conhecimento e 
 8 
 
certamente podemos compreender a questão sem ela. O que é essencial é observar que no 
ocidente a diferença entre sujeito e objeto foi tomada como se constituindo em um problema a 
ser superado e não em uma diferença a ser recusada. O conhecimento é responsável por tentar 
transpor a diferença entre sujeito e objeto ou por propiciar a apreensão do objeto pelo sujeito. 
Se essa é uma aposta boa ou não, cada um deve decidir por si mesmo. 
 
 
1.4 O que é o conhecimento? 
 
Se tomarmos o ponto de partida da Filosofia Ocidental, temos o seguinte problema: 
como o sujeito se apropria do objeto? Há uma forma que utilizamos sempre para nos 
apropriarmos de objetos, mesmo sem nos darmos conta disso. Trata-se da alimentação. O ato 
de comer, nada mais é do que uma tentativa de absorver o objeto que está diante de nós. 
 
 
Fome de conhecimento 
 
E se comer é uma forma do sujeito assimilar um objeto exterior, esse ato pode 
efetivamente ser entendido como um ato de conhecimento. Quando comemos nos 
apropriamos do que é comido, pois ele passa a nos constituir e se transforma em nós. Há 
inúmeras crenças de povos antigos ligados à noção de assimilação pelo sujeito de alguma 
característica do alimento. 
A antropofagia ritualística de muitos povos indígenas brasileiros acreditava que comer 
um inimigo consistia em assimilar sua bravura. Hans Staden quase foi assimilado pelo 
cacique Tupinambá Cunhambebe, famoso pelos repastos de inimigos de que participava. Isso 
aparentemente só não ocorreu porque Staden não sabia se comportar adequadamente como 
 9 
 
um prato digno e se lamentava covardemente de sua morte iminente. O guerreiro mais 
poderoso era aquele que já havia incorporado um maior número de inimigos vencidos, na 
medida em que a força deles se integrava ao vencedor e permitia novas incursões com o 
objetivo de promover a vingança. 
Parece razoável pensar que a alimentação é mesmo uma forma de apropriação do 
objeto e podemos estender essa ideia aproximando-a da noção de conhecimento. Há uma 
evidente vantagem nessa identificação: além de ser um processo que gera prazer, na 
alimentação nos apropriamos do objeto na sua integridade. De fato, se trata de uma 
apropriação material e nela o objeto é assimilado pelo sujeito. 
Entretanto, nem tudo pode ser comido. Na natureza há uma série de objetos que não 
são passíveis de apropriação integral. Sugiro que ninguém tente comer uma árvore, uma pedra 
ou um automóvel na tentativa de conhecê-los. Embora o processo de alimentação possa ser 
similar ao do conhecimento, eles não são idênticos, porque a alimentação é restrita e não faz 
muito sentido conhecermos apenas o que pode ser digerido pelo nosso corpo. O interesse do 
conhecimento parece ser muito mais geral do que o interesse pela nutrição. Assim como nem 
todo objeto é comestível, nem todos podem ser conhecidos ao serem assimilados pelo ato de 
comer. Vamos considerar então que a expressão “ter fome de conhecimento” é somente uma 
metáfora e não expressa integralmente a tarefa do conhecimento, embora possa nos dar uma 
noção do significado dessa última. 
A ideia de que conhecer se assemelha ao processo de alimentação pode, entretanto, 
nos sugerir outra possibilidade. Consideramos que o órgão responsável pelo conhecimento é o 
cérebro eIsso levou Kant a afirmar que o espaço e o tempo não são conceitos. Na 
verdade, eles são disposições de nossa capacidade de representar e perceber os objetos. Em 
outras palavras, eles existem antes de qualquer sensação ou representação de um objeto. E se 
eles existem antes, só podem ser partes constitutivas do próprio sujeito e não da realidade. 
Mais especificamente, eles são constitutivos da capacidade epistemológica do sujeito e não 
propriedades dos próprios objetos. 
 O que Kant quer dizer é que aquilo que nós chamamos de experiência – a percepção 
de pelo menos um objeto com suas qualidades sensíveis – já é o produto de uma atividade 
epistemológica não consciente do sujeito. Espaço e tempo são a forma (subjetiva) aos quais se 
acrescenta a matéria (objetiva) da experiência. Portanto, a experiência é um composto das 
 70 
 
disposições do sujeito e da matéria da realidade exterior. Ele denominou espaço e tempo de 
“formas a priori da intuição sensível” já que elas são disposições que preexistem a qualquer 
experiência. 
 Isso não significa que nossa experiência possui um componente variável de acordo 
com cada um de nós, porque nossas disposições epistemológicas são iguais para todos os 
homens. Tratam-se, na verdade, de componentes cognitivos da natureza humana sem os quais 
não poderia ocorrer a experiência. Assim, há uma identidade perfeita entre todos os seres 
humanos no que concerne às disposições subjetivas para o conhecimento. Como há essa 
identidade, essas disposições adquirem validade universal e são, portanto, objetivas. Nesse 
sentido, espaço e tempo são condições de possibilidade de toda experiência que qualquer ser 
humano pode ter. A distinção entre a forma a e matéria da experiência foi o que permitiu a 
Kant escapar da maneira como os empiristas haviam colocado o problema do conhecimento. 
Observe que essa distinção nada possui em comum com aquela distinção aristotélica entre 
forma e matéria. As palavras utilizadas são as mesmas, mas o conteúdo é diferente. No caso 
de Kant, a forma é parte das capacidades humanas de conhecer o mundo e não um elemento 
existente na realidade (exterior). 
 Se for assim, uma importante constatação a que chega Kant é a de que não 
conhecemos as coisas como elas são em si mesmas, mas somente de acordo com o modo 
como elas se apresentam a nós. Ou seja, o que podemos conhecer são apenas os objetos da 
experiência e não as coisas em si mesmas – algo que se aproxima do empirismo de Locke e 
Hume. Nessa perspectiva, certamente há uma coisa exterior que é responsável por fazer 
chegar a matéria até a experiência. Porém, não há como ter acesso a ela, justamente porque 
ela está além de toda experiência humana possível. Ela está além do espaço e do tempo e, 
como tal, não pode se apresentar à nossa sensibilidade – que é espacial e temporal. 
Curiosamente, o modo como estamos constituídos e que nos permite estabelecer contato com 
as coisas é exatamente o que torna impossível nosso acesso direto a elas. Não nos é possível 
sequer cogitar na relação existente entre os objetos da experiência e a coisa em si, porque isso 
significaria tentar levar a experiência além dos limites em que ela se torna possível para nós. 
Se só posso ter experiências espacio-temporais não posso conhecer coisas fora do espaço e do 
tempo. Para Kant, não me é permitido saltar fora dessa condição humana para ter alguma 
modalidade de contato direto com a realidade tal como ela é. 
 Se espaço e tempo são condições de possibilidade de toda experiência, as categorias 
do entendimento são as condições de possibilidade de qualquer pensamento válido. Também 
do ponto de vista do entendimento – e não apenas da sensação – há disposições do sujeito 
 71 
 
para o conhecimento. Por exemplo, pensamos sob a forma da unidade e da multiplicidade ou 
articulamos os eventos da experiência a partir do princípio da causalidade. O conjunto de 
todos os elementos que constituem a forma de toda experiência e de todo o conhecimento 
possível é denominado de sujeito transcendental. Uma exposição do que é o sujeito 
transcendental implica em evidenciar o que é a contribuição da natureza do sujeito para o 
conhecimento, seja empírico, seja racional. Conhecê-lo significa explicitar o que constitui 
todas as nossas disposições epistemológicas inatas. Kant promove essa exposição na “Crítica 
da Razão Pura”. 
 De certa forma, Kant concorda com Hume ao afirmar que os conceitos não são 
redutíveis ao conteúdo da sensação. Porém, eles também não são apenas nomes como esse 
último defendia. Para Kant, eles são as disposições subjetivas da experiência e do 
conhecimento possível para nós, seres humanos. 
 
 
 
 É importante ressaltar que Kant usa o termo “transcendental” para se referir aos 
componentes subjetivos do conhecimento, aquilo que compõem as condições de possibilidade 
de todo conhecimento possível. Ao contrário, “transcendente” significa toda tentativa de levar 
o conhecimento além do que é legítimo – quer dizer, para fora dos limites da experiência 
humana. Quando nos referimos a Deus, por exemplo, estamos fazendo um uso transcendente 
de nossas disposições epistemológicas, já que ele não é objeto de nenhuma experiência 
(sensível). Isso significa que não podemos conhecer a Deus, embora ele seja uma ideia que 
possui um poder regulatório para os homens ao nos servir de referência para nossas ações. 
Sujeito 
Transcendental 
(Unidade) 
Coisa em si 
Forma 
Matéria 
Experiência 
Categorias do 
entendimento 
Objeto 
Conhecimento 
? 
 72 
 
Digamos que a ideia de Deus possui um valor moral, mas não um valor epistemológico. 
Muitos fazem o bem por medo da vingança divina posterior, por julgar conveniente agir como 
se Deus nos estivesse observando ou simplesmente porque acreditam que Ele nos ama. Ou 
seja, embora seja somente uma ideia, ela possui poder regulador sobre as ações humanas. 
 O sujeito intervém no processo do conhecimento duas vezes: uma quando introduz 
espaço e tempo como condições da experiência e outra quando introduz as categorias do 
entendimento como condições do conhecimento possível. Assim, poderíamos dizer que o 
sujeito interpreta a realidade duas vezes nesse processo e o resultado expressa, de alguma 
forma, a constituição epistemológica particular desse sujeito transcendental. 
 Encontramos em Kant a solução para um problema que a análise da sensibilidade 
havia nos demonstrado: o caráter fracionário do conteúdo dos sentidos. Vimos como os 
objetos da experiência já são o resultado de uma atividade epistemológica do sujeito que 
introduz as formas espaço e tempo como sua condição. Além disso, o sujeito também fornece 
aos objetos da experiência um princípio unificador que permite reunir o múltiplo da sensação. 
Esse princípio unificador não é um conteúdo da sensação e nem pode se originar dela. Ele 
também é uma contribuição do sujeito transcendental para a constituição dos objetos da 
experiência. É ele que permite que tenhamos objetos unificados, em que pese a enorme 
quantidade de dados sensíveis diferentes. Essa unidade é derivada da autoconsciência do 
sujeito ou daquela autopercepção que o sujeito possui sobre si mesmo – de que ele é um eu. 
Portanto, é a autoconsciência que permite reunir o múltiplo disperso da sensação em objetos 
da experiência dotados de unidade. 
Mais uma vez notamos que são as disposições ou a constituição epistemológica do 
sujeito que fornece as características dos objetos da experiência – excetuando-se a própria 
matéria que os constitui. O sujeito transcendental funciona como uma espécie de esqueleto do 
conhecimento humano, se pensarmos que a carne é dada pela coisa em si. A carne tem de se 
adequar e adquirir a forma do esqueleto para poder se tornar parte da experiência e do 
conhecimento humanos. 
É certo que nem sempre nossa vontade de conhecer obedece aos limites de nossa 
constituição epistemológica. Ou seja, com frequêncianos lançamos em um uso transcendente 
da razão. Embora Kant reconheça isso, ele atribui esse fato ao desconhecimento dos nossos 
limites epistemológicos em função da inexistência de uma crítica pertinente que ele julga 
finalmente haver produzido. Feita essa crítica, o esperado é que a razão humana só se ocupe 
com objetos da experiência, na medida em que esse é todo o conhecimento que é possível 
 73 
 
obtermos de forma legítima. Quando a razão se lança para fora desses limites, produz fantasia 
e erro. 
Há uma clara indicação dos limites do conhecimento humano na filosofia de Kant, 
porque sempre conhecemos de acordo com o modo pelo qual as coisas aparecem para nós e 
não as coisas como elas realmente são. Embora a realidade exterior esteja presente como um 
componente que fornece a matéria da sensação, ela não desempenha nenhum papel 
epistemológico relevante na medida em que não pode sequer ser tematizada pela crítica. Tudo 
o que a realidade faz é nos dar a matéria. Com relação a ela somos passivos na medida em que 
adquirimos os dados brutos da sensação. Com isso, temos que reconhecer que a realidade 
última sempre nos escapará por mais que nosso conhecimento possa avançar. Aliás, nesse 
sentido, não há como postular um avanço do conhecimento no sentido de promover um 
desvelamento gradativo da realidade porque ignoraremos sempre o que ela é em si mesma. 
Kant afirma que nós, seres humanos, possuímos predisposições cognitivas que nos 
conduzem a sintetizar os objetos da experiência. Logo, para ele o mundo em que vivo é o 
mesmo em que vive qualquer ser humano, porque ele é um resultado da interação entre essas 
disposições humanas e a matéria. 
Entretanto, uma dúvida pode surgir quando pensamos na existência de outros tipos de 
disposições cognitivas que não conduzam à mesma experiência. Talvez pudessem existir seres 
humanos, provavelmente em situações de isolamento cultural, como em uma cultura indígena 
remota por exemplo, que pudessem exibir outras disposições cognitivas. É teoricamente 
possível conceber que exista uma cultura que não postule uma diferença entre existência e não 
existência ou que viva uma dimensão temporal que não seja sucessiva, mas circular. Esse é 
um problema que exige uma resposta da Psicologia empírica e da antropologia: haveria seres 
humanos com outras formas a priori da intuição sensível ou com outras categorias do 
entendimento? Na perspectiva de Kant, a estrutura cognitiva dos seres humanos é a mesma e 
isso leva à constituição de uma experiência que é compartilhada por todos nós. 
A demonstração da variação cultural ou mesmo histórica das disposições cognitivas, 
implicaria em uma necessidade de reavaliar a filosofia de Kant. Isso porque o que sua crítica 
poderia ter tornando explícito não seria algo relativo à própria natureza humana, mas apenas 
algo derivado de uma contingência histórica e social específica. Entretanto, somente algum 
tempo depois de Kant a filosofia adotou uma linha de investigação que começou a considerar 
a variabilidade cultural e a historicidade como fatores epistemológicos importantes. Assim, a 
consideração dessa possibilidade só terá sentido um pouco mais tarde. 
 74 
 
Uma observação importante é notarmos que Kant assegura um ponto de apoio para o 
conhecimento científico. Por exemplo, temos certeza de que as relações geométricas 
puramente derivadas do uso da razão valem para o mundo natural porque o espaço é uma 
condição de nossa capacidade de pensar e também uma condição de nossa capacidade de ter 
uma experiência do mundo. Logo, o mundo e a razão possuem a mesma estrutura comum: o 
espaço. Na verdade, isso assegura que exista uma correspondência entre o sujeito 
transcendental e a experiência e garante que o conhecimento se refira efetivamente àquilo que 
se encontra nela. Se lembrarmos que a dúvida sobre a correspondência entre o mundo e o 
conhecimento havia surgido quando expusemos o problema das representações, veremos 
como Kant consegue eliminá-la inteiramente. Há uma correspondência entre experiência e 
conhecimento porque a base de ambos é a mesma: o sujeito transcendental. Assim, sabemos 
por que o conhecimento se aplica plenamente ao mundo, mesmo não sendo derivado dele por 
algum processo justificado – como pretendia Locke. 
 
 3.5 Esclarecimentos e observações 
 Para evitar confusões com a terminologia que caracteriza cada forma de pensamento, é 
importante esclarecer alguns conceitos que foram utilizados até aqui. O Realismo designa 
filosofias que postulam que o conhecimento é relativo a coisas exteriores - sejam elas 
pertencentes à outra dimensão da realidade, como as Ideias de Platão ou à natureza, como as 
substâncias sensíveis de Aristóteles. O que importa para o realismo é que os objetos de 
conhecimentos são reais. 
Para o Conceitualismo, os objetos de conhecimento só existem sob a forma de 
conceitos, portanto sob a forma mental. Um exemplo disso são os conceitos de Locke que são 
os efetivos objetos de conhecimentos, embora não tenham correspondência com nenhum 
objeto da sensação. Lembremo-nos apenas que, para Locke, os conceitos são derivados do 
conteúdo dos sentidos e não idênticos a eles. O Nominalismo afirmará que os conceitos são 
apenas nomes ou o que os medievais chamavam de o “sopro da voz”. Não há neles nenhuma 
realidade, nem mesmo aquela que poderia ser transmitida dos sentidos. Um conceito é apenas 
um nome, uma etiqueta, uma convenção sem nenhum conteúdo específico. Para o 
Nominalismo de Hume o conhecimento humano deve se reduzir ao conteúdo das impressões. 
 Essa tripla distinção está ligada ao que é considerado o objeto de conhecimento para 
cada uma dessas posições filosóficas. Entretanto, há outra distinção que fizemos, mas que 
pode se sobrepor a essa gerando confusão. Trata-se de uma distinção ligada ao método ou ao 
instrumento que é julgado apropriado para o conhecimento. Assim, falamos que Descartes é 
 75 
 
um racionalista porque ele afirma que chegaremos ao conhecimento por meio do exercício 
cuidadoso da razão – mesmo considerando que ela possui defeitos. O método é um aparato 
cognitivo artificial que visa justamente corrigir os eventuais desvios da razão, sem que isso 
implique em seu comprometimento integral. O método é apenas uma gambiarra feita pela 
razão, um corretivo racional da própria razão. Mas dissemos que Locke é empirista porque 
para ele o conhecimento tem como base o conteúdo dos sentidos. A razão é uma espécie de 
resultado dos sentidos e tem de se reportar permanentemente a eles se não quiser perder o 
chão. 
 Note, então, que não há nenhum impedimento de princípio que proíba a combinação 
desses dois tipos de distinções. Podemos cruzar os três tipos de posições filosóficas clássicas 
com relação ao objeto do conhecimento (realismo, conceitualismo e nominalismo) com as 
outras duas ligadas ao método (racionalismo e empirismo). Observe também que essas 
distinções não permitem separar claramente todas as possíveis variações existentes na 
filosofia. 
A filosofia de Kant possui claros contornos empiristas. Mas se é verdade que o 
conhecimento começa com a experiência, também é certo que essa experiência já é resultado 
da interação das disposições cognitivas do sujeito com a matéria oriunda da realidade exterior. 
Ela também é realista, embora o objeto do conhecimento seja aquele que se apresenta à 
experiência e não a coisa em si. Ou seja, o papel desempenhado pela realidade no âmbito do 
conhecimento é irrelevante já que é impossível comparar o que conhecemos com o que as 
coisas são em si mesmas. Embora possa ser pouco esclarecedor, em função da filosofia 
moderna ser, toda ela, tipicamente crítica, a filosofia de Kant é conhecida como “criticismo”. 
As distinções que fizemos podem facilitar a compreensão das diferenças e identidades 
entre as várias filosofias, mas não devem ser consideradas válidas para todos os filósofos de 
maneira automáticasob pena de perdermos em variedade e especificidade. Simplificações são 
boas quando as categorias não nos obrigam a perder a especificidade do que classificamos. 
 Um dos aspectos mais importantes dessas duas distinções é a inovação introduzida 
pelo Conceitualismo. Embora se trate de uma forma de pensar empirista, ela não possui um 
compromisso realista. Tanto é assim que para Locke o que conhecemos em última instância 
são os conceitos produzidos pela mente humana. Ou seja, o que nós investigamos não é algo 
que esteja lá fora e sim algo que foi gerado pela própria razão humana. Assim, embora 
conheçamos os conceitos, eles não desempenham uma função de representação, na medida 
em que não estão substituindo a realidade no plano mental. Como se poderá notar depois, essa 
é uma mudança de rota muito importante na história do pensamento. O curioso é verificar que 
 76 
 
essa vertente não representacionalista do conhecimento foi inaugurada por um pensador 
empirista, aquele que utiliza a experiência como guia principal para o conhecimento. 
 Uma das características mais marcantes dos filósofos modernos foi a de terem partido 
de uma situação de fato – o exercício da razão e da sensibilidade humanas – e, a partir disso, 
investigarem a sua legitimidade. É por isso que a melhor imagem dessa época do pensamento 
filosófico é a de um tribunal que investiga a legitimidade do uso de nossas capacidades de 
conhecimento: se parte de um uso de fato e se investiga se ele consiste em um uso de direito. 
É isso que constitui o espírito de toda crítica.não o estômago ou o intestino. Mas como nosso cérebro pode se apropriar do 
objeto? 
 
O aparelho digestivo do conhecimento 
No caso da alimentação vimos que essa apropriação era integral e implicava a própria 
materialidade do objeto. No caso do cérebro, fica claro que essa modalidade de apropriação 
 10 
 
integral não pode funcionar. Ela redundaria em introduzir no corpo das pessoas os objetos de 
conhecimento na sua materialidade integral. Isso significa que para conhecer um tijolo 
teríamos que introduzi-lo no cérebro de alguém, para conhecer um elefante, uma casa, uma 
caneta etc., teríamos que fazer a mesma coisa. Como isso é materialmente impossível, temos 
que apelar para outra estratégia que não comprometa a sobrevivência dos filósofos e dos 
demais interessados. 
 
 
Como colocar um tijolo na cabeça de um homem? 
 
 
Dado que o problema é o da impossibilidade de apropriação material dos objetos pelo 
sujeito, esse último tem de lançar mão de substitutos que permitam alguma aproximação. 
Chamamos esses substitutos de “representações”. No sentido político do termo, um 
representante é alguém que está no nosso lugar, alguém que nos substitui na medida em que 
não podemos estar no Congresso Nacional em Brasília, ocupados com o árduo trabalho, 
realizado entre terças e quintas-feiras, de deliberar sobre as leis a serem criadas no país. No 
mesmo sentido, as representações funcionam como substitutos dos objetos no nosso cérebro. 
A diferença é que o papel dos representantes dos objetos não se limita ao período entre terças 
a quintas, mas deve ser permanente. Sendo impossível que nos apropriemos diretamente dos 
objetos, podemos nos apropriar deles por meio das representações, seus substitutos em nós. 
 
 
O objeto, a representação e o sujeito 
 11 
 
 
É importante notar que agora temos três tipos de entidades envolvidas no processo de 
conhecimento: o sujeito, o objeto e a representação – a santíssima trindade da teoria do 
conhecimento. 
O conhecimento pode ser então definido como a apropriação que o sujeito faz do 
objeto através das representações – aparentemente o único meio pelo qual podemos chegar até 
os objetos. Essa é uma estrutura básica que nos permite obter uma compreensão de grande 
número das posições epistemológicas elaboradas ao longo da história do conhecimento. 
Entretanto, vale ressaltar que essa não é a única maneira de postular a problemática do 
conhecimento, embora seja a forma mais frequente e a mais discutida na teoria do 
conhecimento. Há alternativas que surgiram como críticas a essa noção representacional do 
conhecimento. De qualquer forma, a própria possibilidade dessas variações depende 
justamente de críticas a essa posição inicial na qual iremos nos concentrar aqui. 
 
1.5 Habilidades Humanas e Representações 
 
As representações são produzidas pelo sujeito. Portanto, para serem corretas devemos 
esperar que elas preservem, em alguma medida, as condições de existência dos objetos. É 
comum que representemos errado alguma coisa. Por exemplo, certa vez tentei comer um bolo 
em um casamento sem perceber que se tratava de um bolo decorativo. Julguei que o objeto era 
algo que ele, na realidade, não era. Portanto, criei do bolo decorativo uma representação que 
não correspondia ao objeto e agi desastradamente de acordo com ela. Isso implica que há 
tipos diferentes de representação e, inclusive, tipos errados de representação. E se o erro se 
infiltrar no momento em que geramos as representações, é certo que todo o restante do 
processo de conhecimento estará contaminado. Dessa forma, notamos que as representações 
não são todas iguais e os seus tipos devem variar em função das habilidades de que os seres 
humanos dispõem para gerá-las. Vamos estabelecer um panorama geral de nossas habilidades 
orientadas para o conhecimento e verificar que tipo de representações é gerado por cada uma 
delas e que tipo de erro pode contaminá-las. 
As condições de existência do objeto impedem que ele possa ser assimilado 
integralmente – isto é, materialmente - pelo sujeito. Essas condições da existência são o 
espaço e o tempo. Dizemos que tudo o que existe ocupa um lugar no espaço e um instante no 
tempo. Isso significa que tudo o que existe é particular no sentido de não haverem duas coisas 
idênticas. Por esse princípio, mesmo coisas extremamente semelhantes como duas folhas 
 12 
 
verdes de um gramado ou duas canetas da mesma marca e modelo não são coisas idênticas. 
Em último caso, pelo menos o lugar específico do espaço que cada uma delas ocupa as torna 
diferentes uma da outra. Estritamente falando, não há nenhuma identidade no plano da 
existência, isto é, naquilo que se encontra no espaço/tempo. Tudo o que existe é único e 
exclusivo. O aspecto positivo disso é que não há nenhum motivo para que alguém fique 
entediado, mesmo vivendo sob uma aparente rotina. Tudo o que nos cerca tem sempre essa 
característica de exclusividade, é sempre diferente e novo, já que não pode se repetir jamais. 
A existência consiste em uma sucessão permanente de novidades! Nossos olhos viciados em 
rotina é que nem sempre são capazes de perceber isso. 
Vamos fazer um exercício de imaginação e supor que entramos em contato com a 
realidade exterior pela primeira vez exatamente nesse momento. Assim, não deverá intervir na 
análise que faremos nenhum tipo de preconceito sobre o mundo exterior ou sobre o 
conhecimento que já temos dele. Vamos tentar nos colocar em uma espécie de grau zero de 
conhecimento sobre o mundo: o momento em que entramos em contato com ele pela primeira 
vez. Para facilitar, você pode imaginar que foi transportado para a superfície de Saturno. 
Nosso objetivo é verificar como as representações são produzidas a partir da particularidade 
que caracteriza a existência. 
 
a) A Sensibilidade 
 
Para reconhecermos o que está lá fora entra em cena, de maneira automática, a nossa 
sensibilidade. O que entendemos por sensibilidade é nossa capacidade de sermos afetados 
pelas coisas externas, de sermos receptivos a elas. A sensibilidade é composta por nossos 
cinco sentidos: visão, audição, tato, paladar e olfato. Com eles recebemos formas e cores, 
sons, sensações táteis, sabores e odores. Isso é tudo o que efetivamente percebemos. Se você 
acha que, além disso, percebe também a utilidade de um objeto, na verdade está se referindo a 
algo que não é percebido pelos nossos cinco sentidos. A noção de utilidade é derivada do seu 
conhecimento prévio sobre o uso desse objeto e não de uma informação fornecida pelos 
nossos sentidos. Nesse caso, você está projetando um conhecimento que já possui sobre 
aquilo que é efetivamente perceptível a partir do grau zero que assumimos nessa análise. 
Portanto, esqueça esse tipo de informação e volte para Saturno. 
 
 13 
 
 
Na superfície de outro planeta 
 
Note, todavia, que cada uma das sensações que recebemos por meio dos sentidos 
também é particular. Ou seja, cada uma delas é única por que 
1) acontecem em locais distintos - nos movemos sempre, mesmo que seja por milímetros, 
alterando nossa perspectiva sensorial; 
2) ocorrem em diferentes instantes de tempo – mesmo que a variação ocorra em uma 
ínfima fração temporal, como um milésimo de segundo. 
Isso significa que a sensação de cor “x” que tenho agora é diferente da sensação de cor 
“y” que tenho no instante seguinte – mesmo que eu continue olhando para o mesmo ponto e 
sob as mesmas condições de observação. O que denominamos de “cor branca” em nossa 
linguagem ordinária é algo muito genérico que não corresponde a cada uma de nossas 
sensações efetivamente recebidas. Isso porque “branco” é uma designação genérica que 
ignora o caráter particular de cada uma de minhas sensações. Uma linguagem que 
representasse adequadamente a particularidade de todas as nossas sensações deveria ter um 
nome para cada uma delas – embora comprometesse sua utilidade, na medida emque cada 
nome significaria apenas “aquela minha sensação particular” e nunca também uma outra de 
minhas sensações ocorrida em outro momento ou lugar. 
Além do caráter particular das sensações que nossos sentidos nos oferecem, há outra 
característica importante ligada à sensibilidade. A nossa análise nos diz que tenho, por 
exemplo, a sensação “x” de uma cor, a sensação “w” de um som e a sensação “z” de um odor. 
Entretanto, ela não nos fornece a unidade que nós em geral atribuímos aos objetos reais 
exteriores. O que chamamos de “um objeto” é, da perspectiva da sensibilidade, um conjunto 
de fragmentos que não estão unidos, já que uma cor nada tem a ver com um som ou com um 
 14 
 
odor. De fato, não há nenhuma conexão entre um som e uma cor – você ouve o primeiro e 
enxerga a segunda. Essa é a condição comum da sensibilidade dos seres humanos, embora se 
conheçam casos de pessoas excepcionais que percebem de forma integral, sem separar as 
sensações. Com efeito, há pessoas que possuem a capacidade da sinestesia: a percepção da 
sensação tátil “x” ocorre em unidade com a sensação visual “w”. Nesse caso, a cor percebida 
também tem um som e um sabor, por exemplo. As sensações estão misturadas umas às outras. 
Na prática, isso significa que elas possuem outro tipo de sensibilidade não fragmentada como 
a nossa. Mas isso é uma exceção que apenas confirma a regra geral. 
O que nos interessa nesse momento é reconhecer que a análise da sensibilidade da 
grande maioria dos seres humanos nos demonstra que a unidade que atribuímos aos objetos 
externos não é algo perceptível pelos próprios sentidos. Assim, ao contrário do que seria de se 
esperar, a sensibilidade não nos fornece um mundo composto de objetos, mas uma realidade 
fragmentada, como se fosse um espelho quebrado: só há pequenos fragmentos que se 
sucedem continuamente, sem constituir objetos com unidade. 
Aristóteles chegou a formular a hipótese de que as sensações fragmentadas eram 
conduzidas através do sangue até o coração e lá adquiririam unidade na medida em que esse 
órgão era considerado um “sentido comum”. Esse sentido comum funcionava como uma 
espécie de unificador da diversidade dos demais sentidos ou um tradutor que permitia que as 
diferentes sensações fossem sintetizadas em objetos dotados de unidade. Para postular a 
existência de um sentido comum localizado no coração, ele partia justamente desse caráter 
fragmentário da sensibilidade a que nos referimos acima. 
Podemos concluir da análise da sensibilidade que as sensações são particulares e 
fragmentárias. Vamos chamar essas sensações particulares de “dados sensíveis” porque não 
escolhemos ter essa ou aquela sensação e nem o momento em que as temos. Elas se impõem a 
nós. Enquanto somos seres sensíveis, somos passivos: os dados sensíveis se apresentam a nós 
desde que estejamos acordados, queiramos ou não. 
Se considerarmos que os dados sensíveis estão no lugar dos próprios objetos – 
enquanto são percebidos pelo sujeito – veremos que eles são um tipo de representações. 
Podemos chamá-los de representações sensíveis. Essas representações já nos sugerem alguns 
problemas em função de não corresponderem àquilo que em geral julgamos ser uma das 
propriedades da realidade. Elas são fragmentárias, mas acreditamos que a realidade é 
composta por objetos unitários. Sob esse aspecto, chama a atenção o fato de que as 
representações sensíveis não são entidades com as mesmas características daquilo que 
supomos ser a realidade. Sendo fragmentárias, elas parecem nos comunicar algo diferente 
 15 
 
daquilo que os objetos reais são. A partir disso, observe o problema que se cria: elas têm de 
ser diferentes dos objetos para poderem ser apreendidas por nós, mas têm de ser iguais a eles, 
na medida em que devem representar bem a realidade. 
 
b) A Imaginação 
 
Além de receber os dados sensíveis de forma passiva, também somos capazes de 
realizar operações espontâneas com eles. Por exemplo, posso fazer vir à minha mente a noção 
de uma girafa verde. Certamente jamais percebi uma girafa verde, porque girafas verdes não 
existem – pelo menos até o momento em que escrevo esse texto. Mas posso seguramente 
formar essa noção na minha mente. Isso ocorre porque sou capaz de sintetizar representações 
que não foram percebidas em conjunto ou próximas no espaço e no tempo. É certo que essa 
síntese ocorre sempre a partir dos elementos da percepção, os dados sensíveis. Não posso 
criar novos dados sensíveis justamente porque eles são “dados”, mas posso dispor deles de 
uma maneira diferente da maneira como eles foram originalmente percebidos. Assim, 
acrescento à figura de uma girafa a cor verde. Essa é a típica operação de nossa imaginação. 
Ela pode dar uma nova unidade a diferentes dados sensíveis, mas não pode criar novos dados 
sensíveis. 
Portanto, seu funcionamento se assemelha muito a um jogo de lego: as peças já estão 
prontas, podemos fazer várias combinações possíveis com elas, mas nunca criar novas peças. 
Diferentemente da percepção, a imaginação é ativa em função da liberdade criativa que 
possui. Note, entretanto, que essa atividade é sempre limitada àquilo que foi alguma vez 
percebido. Todos os seres mitológicos e fantásticos que podemos produzir, por mais estranhos 
que sejam, sempre se resumem a certa combinação de elementos básicos oriundos da 
sensibilidade. Os seres que imaginamos também podem ser muito semelhantes àquilo que é 
percebido. Por exemplo, posso imaginar uma girafa com as cores que as girafas percebidas 
possuem. Em ambos os casos de operação da imaginação, produzimos imagens. Elas são 
diferentes dos dados sensíveis porque posso deliberadamente fazer com que se apresentem a 
mim – coisa que não posso fazer com aqueles. Por outro lado, as imagens são semelhantes aos 
dados sensíveis na medida em que também são particulares. Com efeito, não posso imaginar 
algo que não tenha uma figura determinada, um tamanho, uma cor etc., especificidades típicas 
daquilo que é particular. 
 
 16 
 
 
A “Girafoleta” 
 
O fato de que toda imagem possui uma dimensão específica, indica que ela possui um 
forte caráter espacial. Por isso mesmo ela é sempre particular já que possui dimensões. Não 
há imagens que não estejam dispostas no espaço. Qualquer figura geométrica que possamos 
imaginar, por mais complexa que seja, será sempre uma combinação específica de linhas, 
curvas e ângulos. Isto é, ela sempre possui uma base espacial e, por isso, tem um caráter 
particular. 
 
c) A Razão 
 
Quando penso “girafa” realizo uma operação muito diferente de quando imagino uma 
girafa. A diferença consiste em que o conceito utilizado pela razão é sempre genérico. Então, 
quando penso “girafa” não estou me referindo a nenhum ser em particular: não estou visando 
essa ou aquela girafa, nem a grande, nem a pequena, nem a verde, nem a azul. Estou me 
referindo a todos os elementos de uma classe de coisas que caem sob essa designação. Posso 
discutir se há girafas azuis ou verdes, tornando meu conceito mais específico, mas não posso 
evitar que “girafa” designe todos os seres que caem dentro da classe designada. 
Um conceito funciona como um corte na totalidade do mundo. Esse corte separa a 
totalidade em duas partes: uma em que estão todas as coisas indicadas no conceito (tudo o que 
é uma girafa) e todo o mais que não é visado pelo conceito (elefantes, sapatos, água, 
antropólogos etc.). 
A diferença entre pensar, imaginar e perceber é que no primeiro estamos no plano da 
universalidade e nos dois últimos estamos no plano da particularidade. Não há pensamento 
que não seja universal. Mesmo quando tentamos usar a linguagem em um sentido 
 17 
 
demonstrativo e particularizado, ela sempre será universal. Vou usar como exemplo o artigo 
demonstrativo “este”. Podemos empregá-lo na expressão “este homem”, na “este relógio”, na 
“este panorama” etc. O conceito “este” pode ser aplicadoindistintamente a qualquer coisa e 
nisso consiste seu caráter universal. Sempre podemos fazer esse tipo de uso demonstrativo 
dos conceitos embora todos eles, enquanto conceitos, sejam universais. Só há pensamento do 
universal. 
 
 
O escaninho da razão 
 
Além disso, nossa razão é ativa em um sentido diferente da imaginação na medida em 
que ela própria produz os seus conceitos. Não há nenhuma limitação epistemológica de que os 
conceitos que usamos sejam iguais aos que outras pessoas usam e é comum que diferentes 
pessoas, diante dos mesmos objetos, produzam conceitos diferentes. Além dessa capacidade 
de produzir novos conceitos, a razão também pode combiná-los de maneiras muito diferentes. 
Posso fazer de “girafa” e “verde” frases como “as girafas são verdes”, “há uma girafa que não 
é verde”, “todas as girafas não são verdes” etc. Portanto, a razão é uma capacidade que se 
caracteriza por uma atividade mais livre do que a imaginação. A razão julga, ou seja, ela 
estabelece relações entre conceitos. Ao julgar, ela não se limita a situações que se 
caracterizam como espaciais e temporais, mas se move no mundo da universalidade. 
 
d) A Memória 
 
A memória é uma habilidade humana intermediária que implica tanto imagens quanto 
conceitos. Tanto posso me lembrar de como você estava vestido ontem, recordando o traje e a 
 18 
 
cor que você vestia, quanto posso me lembrar do que significa o conceito de “justiça” que li 
em um manual de Filosofia Política. Portanto, ela tanto pode desempenhar atividades ligadas 
a imagens como a conceitos, se aproximando ora da imaginação, ora da razão. Em alguns 
casos excepcionais, a memória pode fornecer a experiência originária da sensibilidade, como 
no caso do paciente do psicólogo soviético Luria, provavelmente fonte de inspiração para o 
personagem Funes, criado por Jorge Luis Borges. Entretanto, isso é uma exceção. 
 
 
1.6 O Problema das Representações 
 
A análise que fizemos sobre as nossas habilidades ligadas ao conhecimento nos 
permite chegar à formulação do principal problema histórico ligado à epistemologia no 
ocidente. Entretanto, deve ficar claro que a escolha que fiz das habilidades humanas 
responsáveis pelo conhecimento já consiste em um tipo de orientação para a identificação 
desse problema. 
Quero dizer com isso que alguém que entenda que o verdadeiro conhecimento é obtido 
por meio de uma experiência individual e subjetiva do objeto, certamente deverá listar a 
capacidade de ter tal experiência como a habilidade mais importante do sujeito – e não a 
sensibilidade ou a razão, como fiz acima. Alguém que defenda que o conhecimento adequado 
é um conhecimento não discursivo ou não racional deverá postular outras habilidades 
humanas como fundamentais e diferentes da razão. Assim, a escolha das habilidades descritas 
acima já foi feita em função do problema que enunciarei abaixo. O único critério que me 
permite listar as quatro habilidades acima (percepção, imaginação, razão e memória) é o fato 
de que foram elas que levaram ao principal problema histórico da epistemologia no ocidente. 
Dessa maneira, mesmo que existam outras formas de se entender o conhecimento e 
outras habilidades hipotéticas responsáveis por ele, minha exposição acompanha o fio 
condutor histórico majoritário da epistemologia. Não discordo da possibilidade de que alguém 
venha a conhecer algo por “intuição”, como um acesso direto e sem mediações e 
representações de um objeto. Isso nos levaria a discutir o que é a intuição e como ela 
funciona. Não é esse o ponto de vista da linha principal da epistemologia ocidental que adoto 
aqui. 
Verificamos que as representações devem representar, isto é, elas devem possuir 
alguma qualidade que as torne substitutas adequadas dos objetos no âmbito do sujeito. Elas 
devem se aproximar o máximo possível da realidade dos objetos para se constituírem como 
 19 
 
boas representações. Por outro lado, elas não podem ser idênticas aos objetos na medida em 
que esses não podem ser apreendidos pelo sujeito na sua integralidade material. É por isso que 
não devemos comer tijolos na tentativa de apreendê-los (não tentem fazer isso em casa!). 
Vimos como a percepção não nos apresenta um conteúdo que seja próximo da nossa 
concepção habitual do que é um objeto. Com efeito, ela nos fornece apenas sensações 
transitórias e fragmentárias – enquanto entendemos os objetos como relativamente estáveis e 
dotados de unidade. Entretanto, ainda não discutimos nada sobre nossa concepção usual de 
realidade e pode ser que ela esteja totalmente errada. Se for assim, talvez a diferença entre ela 
e o conteúdo da sensibilidade não seja um problema. 
Por outro lado, se considerarmos somente a diferença existente entre o conteúdo da 
sensibilidade e o conteúdo da razão, veremos que há diferenças bastante significativas. O 
conteúdo da sensibilidade são sensações particulares e únicas, mas o conteúdo da razão são 
conceitos universais que nunca se referem a um único ser. As sensações são transitórias em 
função de serem instantâneas, mas os conceitos são permanentes e relativamente fixos por se 
referirem a classes permanentes de coisas. Certamente mudanças conceituais ocorrem menos 
do que as inconstantes alterações que notamos no âmbito das sensações. Enfim, a dificuldade 
pode ser expressa assim: como pode ser possível um conhecimento universal e fixo de algo 
particular e transitório? Se não encontrarmos uma maneira de unir esses extremos, pode 
ocorrer que nosso conhecimento racional nada nos diga sobre as sensações e, portanto, nada 
nos diga sobre os objetos exteriores – o que seria algo realmente surpreendente. 
Além disso, isso nos obrigaria a rever as relações entre as nossas habilidades 
cognitivas na medida em que elas parecem visar conteúdos tão diferentes e terem, ao final das 
contas, poucas conexões entre si ou mesmo nenhuma. O fato de pensarmos o mundo sob a 
modalidade da racionalidade está ligado a uma característica que parece ser própria dos seres 
humanos, portanto, nesse momento, não parece que temos razões para abrir mão dela: não 
seria razoável deixar de ser razoável. 
Mas o fato de percebermos os objetos por meio de sensações também parece algo que 
não pode ser alterado em nosso modo de ser. Então, o problema das representações termina 
sendo uma espécie de falta de articulação entre as habilidades humanas responsáveis pelo 
conhecimento: a razão e a percepção. Cada uma delas parece estar envolvida com um tipo de 
apropriação diferente: a sensibilidade se ocupando com a apropriação do que é particular e a 
razão sendo responsável pela apropriação do que é universal. Mas se cada uma delas olha para 
uma direção, elas não olham para a mesma coisa e provavelmente uma delas não deve estar 
olhando para a realidade exterior. Talvez uma análise mais cuidadosa das condições da 
 20 
 
existência possa nos ajudar a resolver essa aparente incompatibilidade entre percepção e 
razão. 
 
 
O estrabismo humano: um olho sensível e um olho racional 
 21 
 
2. A Teoria do Conhecimento Antiga 
 
2.1 A mutabilidade do mundo 
 
Todos nós reconhecemos o caráter mutável da realidade. Ninguém no seu juízo pleno 
acredita que as coisas sempre foram como são ou que elas jamais se alteraram. Faz parte de 
nossas crenças mais cotidianas e difundidas afirmar que todas as coisas mudam com o passar 
do tempo. Entretanto, a ideia de que uma das condições da realidade é o tempo nem sempre é 
levada às últimas consequências. O filósofo Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.) pensou a 
relação do tempo com a realidade de uma maneira radical. 
Para dizer que duas coisas são idênticas é necessário que elas tenham todas as 
características sensíveis em comum. Se apenas algumas dessas características forem iguais, 
não teremos uma identidade e sim uma semelhança. Dessa forma, o que evidencia a 
identidade é uma correspondência de cada característicade um ser com as características de 
outro ser. O esquema que representa a identidade é o seguinte: 
 
 
Identidade entre A e B 
 
Chamamos essa relação de biunívoca porque para cada característica de A, há uma 
correspondente em B e para cada característica de B, há uma correspondente em A. Acima foi 
dito que nós acreditamos que as coisas são mutáveis, mas certamente também sabemos que 
elas têm algum grau de estabilidade. Essa estabilidade é justamente aquilo que fornece a 
identidade. É ela que garante que, apesar das mutações que estão ocorrendo todo o tempo, há 
alguma coisa imutável e sempre idêntica que resiste nas coisas. Aqui surge a questão mais 
 22 
 
importante sobre a identidade: será que há nas coisas e em nós algo que seja efetivamente 
sempre idêntico e permanente? 
Se considerarmos que estamos falando de seres temporais (uma casa, um livro, você, 
seus familiares e amigos etc.), teremos que verificar o que ocorre com relação à identidade 
nessa circunstância. Algo que possui identidade e está no tempo deve possuir algo que 
permanece através da passagem de seus instantes – sejam, séculos, horas ou segundos. 
Se A está no instante 1 (t1), com a passagem do tempo, A estará em t2 e depois em t3 
e assim sucessivamente. Agora vamos fundir os dois esquemas, o da identidade e o do tempo 
e veremos que não há uma relação biunívoca entre A1 e A2. 
 
 
Não há identidade no tempo 
 
Isso ocorre porque existe em A1 uma característica que não existe em A2 (A1 ocupa 
t1) e existe uma característica de A2 que não se encontra em A1 (A2 ocupa o t2). Ou seja, 
uma coisa que está no tempo não pode ser idêntica a si mesma, ela está permanentemente em 
estado de mudança, tornando-se diferente do que era antes. Heráclito dizia que “tudo flui” ou 
que “um homem não entra duas vezes em um mesmo rio” – provavelmente porque o rio passa 
e nunca é o mesmo, mas também porque o homem é sempre outro, diferente de si mesmo: os 
dois são passageiros. Na verdade, nenhum homem se encontra consigo mesmo no tempo. 
A constatação a que chegou Heráclito é que o mundo não é permanente e que todas as 
coisas estão em mutação. A metáfora que Heráclito utilizou para descrever esse estado de 
coisas fluido foi o fogo. O fogo queima e dissolve tudo, ele representa a negatividade interna 
das coisas e a indicação de que elas estão em estado de desagregação permanente. A 
negatividade do fogo está dentro das coisas porque elas se tornam outras a cada instante. É 
você quem deixa de ser você e se torna outro a cada minuto, a cada segundo – tanto porque 
 23 
 
perde e ganha partículas corporais como porque suas ideias e sentimentos se alteram sempre. 
Então não há nada de fixo e estável no mundo, tudo muda sempre, todas as coisas deixam de 
ser o que são porque estão no tempo. 
 
Cronos: o fogo interior que devora todas as coisas 
 
Heráclito afirma que não existe um mundo da estabilidade que pudesse ser a referência 
para o conhecimento conceitual. Para ele, só há o mundo da mudança e essa é a única 
realidade. Somos nós que falseamos o mundo da mutabilidade ao projetarmos sobre ele uma 
estabilidade inexistente. Para Heráclito, o conhecimento verdadeiro reconhece no fogo 
interior e na mutação a essência do mundo. O problema é que essa essência, essa natureza 
íntima do mundo, é pura mudança. Se aceitarmos isso, veremos que nossa maneira habitual de 
pensar conceitualmente (universalmente) é incapaz de representar claramente um mundo que 
se altera sempre. Isso ocorre porque nossa maneira de pensar é baseada na estabilidade do 
mundo e na crença de que há um princípio de identidade nas coisas. Quando perdemos essa 
noção, perdemos também a capacidade de pensar o mundo, de descrevê-lo claramente, porque 
onde tudo muda o tempo todo, não resta nada que possa ser a referência para o pensamento 
universal, não há um ponto fixo onde possamos ancorar o navio da razão. 
O fogo queima também a possibilidade do conhecimento e da ciência. Se tudo flui, o 
conhecimento também deveria fluir e deixar de ser o que é, para se tornar apropriado ao 
mundo que tenta apreender. O conhecimento que diz, antes, o que uma coisa é, deve dizer de 
outra forma, agora, porque ela não é mais o que era etc. Ou seja, ele teria que ser inconstante 
como o mundo e, assim, não poderíamos entendê-lo como conhecimento no sentido que nós 
entendemos o termo. A ciência ou o conhecimento verdadeiro deveriam se alterar junto com 
as coisas das quais são a representação. Logo, deveriam deixar de ser ciência ou 
 24 
 
conhecimento universais e se anularem a cada momento. O conhecimento apenas deveria 
refletir o estado de negação imanente das coisas do mundo e se consumir do mesmo modo 
que elas: uma verdade que sempre deixa de ser verdadeira, uma ciência que sempre é negada. 
Um conhecimento assim, não seria o vazio, o silêncio, mas um pensamento que afirma e, ao 
afirmar, já foi negado – uma sabedoria que se queima continuamente, a sabedoria do fogo. 
Note que todo o nosso comportamento diário funciona como se houvesse a 
permanência e a referência fixa. Se estendo o meu braço para alcançar uma xícara de café, 
estendo-o para alcançar o mesmo objeto que estava aqui há poucos instantes. Se caminho até 
a porta para sair, suponho que a porta e a saída ainda estão ali e dão acesso aos mesmos 
lugares de antes. Se ando com um passo firme é porque suponho que a matéria sob meus pés é 
permanente e não deixará de existir subitamente. Ou seja, meu comportamento é baseado na 
minha confiança acerca da identidade e da permanência das coisas. Heráclito deixa claro que 
essas crenças não podem ser derivadas da própria realidade, pois essa não é constante. 
Portanto, quando agimos assim estamos nos agarrando a algo que não existe, estamos no 
plano das crenças falsas sobre o estado do mundo. 
Para ele, há uma enorme diferença entre as crenças que nós possuímos sobre o que as 
coisas são e a sabedoria autêntica – aquela que é capaz de reconhecer na guerra, na discórdia 
permanente de todas as coisas e na negatividade interna, a sua natureza verdadeira. Ele não 
conseguiu formular o que seria um conhecimento da mutabilidade permanente de todas as 
coisas, porém deixou claro que um conhecimento que não incluísse a mudança não poderia 
ser uma ciência verdadeira. Heráclito se manteve no limiar entre a negação de um 
conhecimento fixo e a formulação de um conhecimento da mutabilidade permanente das 
coisas. 
Se assumirmos o que diz Heráclito e retomarmos nosso problema das representações, 
veremos que ele propõe que reformulemos o conhecimento conceitual em função da 
temporalidade da realidade. Ou seja, o conhecimento de características universais deveria dar 
lugar a um conhecimento da mutabilidade, porque afinal as coisas são mutáveis. Nesse 
sentido, Heráclito nos diria que o que está errado com aquele conhecimento é que os 
conceitos não representam adequadamente o mundo, porque não fazem justiça à 
temporalidade. De fato, o conhecimento por meio da razão visa algo fixo, algo que, na 
perspectiva de Heráclito, não se encontra na realidade. Sendo assim, o pensamento de 
Heráclito sugere que a estabilidade é um componente que foi introduzido indevidamente 
como uma característica do conhecimento, sem que isso seja uma qualidade da própria 
realidade. 
 25 
 
 
2.2 A falsidade da percepção 
Além do caráter mutável dos objetos exteriores, outra constatação tornou-se um 
problema difícil e, ao mesmo tempo, impossível de ser desconsiderado quando pensamos na 
elaboração de um conhecimento verdadeiro no ocidente. Essa constatação afirma que toda 
percepção sensível conduz ao erro. O responsável por ela foi Zenão de Eléia. 
Zenão elaborou os famosos “Paradoxos contra o Movimento” como uma forma de 
demonstrar que todos aqueles que usam os sentidos para obter conhecimento se enganam. 
Com esses paradoxos Zenão tentava defender a teoria de Parmênides que afirmavaque 
somente o Ser podia ser objeto autêntico de conhecimento. O Ser, nesse caso, é o ser 
indeterminado, não um homem, uma árvore ou uma rocha, o ser como tal. 
A estrutura dos argumentos de Zenão chama-se redução ao absurdo (reductio ad 
absurdum em latim). Trata-se de conceder ao seu oponente, em uma discussão, aquilo que ele 
pretende provar e demonstrar que se isso fosse verdadeiro, levaria a uma conclusão 
inaceitável. 
Apresento agora um dos “Paradoxos” de Zenão. Todos nós acreditamos que vemos 
um objeto qualquer se deslocar de um ponto a outro no espaço. Isso faz parte de nossas 
crenças sobre o movimento, na medida em que consideramos esse fato uma verdade 
incontestável. Se alguém me mostra uma bola de borracha e a atira até o outro extremo da 
sala, estarei disposto a admitir que ela se deslocou de onde estava até onde está agora. Essa é 
uma verdade demonstrada pelos meus sentidos, na medida em que vejo o movimento 
acontecer. Meu cão também acredita nisso, pois sai em disparada atrás dela. Vamos supor que 
ele esteja certo. Então, essa bola deslocou-se do (que vamos chamar de) ponto A, a sua 
origem, até o ponto B, a sua chegada. Então ela percorreu uns 5 metros em 1,5 segundos. Isso 
tudo parece muito correto e o máximo que poderíamos fazer seria, por exemplo, calcular a 
velocidade do deslocamento da bola a partir desses dados iniciais. Essa situação, é bom frisar, 
constitui um conhecimento derivado da evidência fornecida pela nossa percepção acerca dos 
objetos exteriores. Por isso, vamos chamá-la de evidência empírica ou evidência sensível. 
Zenão argumentaria, a partir dessas informações originárias da evidência sensível que 
consideramos verdadeiras, que se a bola saiu de A e foi até B, ela passou por um ponto C, 
equidistante entre A e B. Esse é o ponto médio C ou o meio do caminho. E se ela passou por 
C, ela também passou pelo ponto médio D, equidistante entre A e C. Também será verdade 
que ela passou pelo ponto médio E, entre A e D e assim sucessivamente quantas vezes forem 
 26 
 
necessárias para nos levar ao mais completo cansaço mental de fracionar o espaço em 
dimensões cada vez menores até o infinito. 
 
Há infinitos pontos entre a e b 
 
O que Zenão está dizendo é que há infinitos pontos médios entre A e B. Sendo assim, 
nenhum móvel pode percorrer esse espaço, porque não é possível percorrer o espaço infinito. 
Entretanto, alguém poderia argumentar que o infinito pode ser percorrido em um tempo 
infinito. O problema é que o tempo em que vivemos é finito e o que foi fornecido pela 
evidência empírica era de 1,5 segundos. Nesse tempo finito não é mesmo possível percorrer 
uma distância infinita. Mesmo se tivéssemos um tempo infinito a nosso dispor, isso apenas 
significaria que a bola ainda não chegou a B e que o movimento também não se realizou - o 
que é diferente daquilo que nos diz a evidência sensível. 
Note que o que Zenão visa com o seu paradoxo é a conclusão de que o movimento é 
impossível do ponto de vista racional. Sendo assim, aquilo que nossa evidência sensível nos 
oferece como verdade acerca do mundo deve estar errado – porque ela nos mostra 
movimentos ocorrendo todo o tempo. Ou seja, tudo o que nossos sentidos nos oferecem e que 
tem a aparência de algo verdadeiro e seguro não passa de um erro. Portanto, toda tentativa de 
se obter uma ciência verdadeira não pode ter como base a evidência sensível. Meu cão tem 
crenças falsas sobre o mundo e corre atrás de suas próprias ilusões quando corre atrás daquela 
bola de borracha. 
Mas o que nos restaria para nos levar ao conhecimento verdadeiro e que não é 
derivado da evidência sensível? A evidência puramente racional e as suas demonstrações 
lógicas. Por exemplo, sabemos que a soma dos ângulos internos de um triângulo equilátero é 
180º. Isso é verdade, mesmo que não existam mais o planeta terra ou o gênero humano. 
Também sabemos que uma coisa é igual a ela mesma (A=A). Isso não é uma verdade 
derivada de nenhum tipo de evidência que provenha dos sentidos e reside somente em um 
exercício puramente lógico. 
 27 
 
O que Zenão está propondo é que substituamos o instrumento pelo qual chegamos ao 
conhecimento: devemos desistir de utilizar a percepção e colocar a razão no seu lugar. Não 
que houvesse na Grécia no tempo de Zenão uma tendência ao uso exclusivo dos sentidos para 
se chegar ao conhecimento. Mas há nessa forma de pensar uma clara necessidade de fazer 
uma opção pela razão e abandonar o uso dos sentidos em função de sua fragilidade. Nesse 
sentido, tudo o que for originário da evidência sensível não pode ser objeto de um 
conhecimento verdadeiro. Note que isso não implica em nenhum tipo de negação dos sentidos 
que possa levar à mortificação do corpo ou a algo parecido. Apenas se nega o valor 
epistemológico da sensibilidade, ou seja, sua função como geradora de conhecimento 
verdadeiro. Não se está condenando o mundo, se está criticando a possibilidade de conhecê-lo 
através da sensibilidade. 
Podemos identificar no pensamento de Zenão uma solução para o problema das 
representações que formulamos acima. Com efeito, na medida em que a evidência sensível é 
descartada, o problema se resolve com certa facilidade porque se elimina um dos extremos 
que o caracterizavam. Entretanto, observe que essa solução nos deixa na estranha situação de 
defender um tipo de conhecimento que, pela sua gênese, não está ligado a nada do mundo 
exterior sensível. Ou seja, o conhecimento verdadeiro e racional é independente do mundo 
físico e nada deve a ele. Isso significa que seria necessário descartar de todo o saber que 
temos aquela parte que se originou de um contato de nossa sensibilidade com o mundo 
exterior. Somente assim preservaríamos o conhecimento verdadeiro, aquele que não foi 
gerado a partir do instrumento falseador da percepção. 
Certamente alguém poderia dizer que essa não é uma boa solução na medida em que 
teríamos que sacrificar grande parte de tudo aquilo que consideramos como conhecimento, 
mas ainda assim, se trata claramente de uma solução. Essa solução para o problema das 
representações consiste, na verdade, no sacrifício da metade do que era entendido como 
problemático. Ela dissolve a dificuldade devido à maneira como entende o que é o 
conhecimento. 
A proposta de Zenão pode ser entendida como uma reação à extrema mutabilidade do 
mundo físico. Supondo que Heráclito tenha razão, ainda assim parte do conhecimento de que 
dispomos pode ser salvo da fúria devoradora de Cronos (o tempo). Isto é, se anuncia a 
possibilidade de que a mudança permanente das coisas físicas não inviabiliza de maneira 
definitiva todo o conhecimento humano e de que parte dele pode resistir à devastação 
temporal. Assim, o que Zenão e Parmênides propuseram foi que existe uma referência para o 
conhecimento que não padece da dificuldade introduzida com a temporalidade. Há algo que 
 28 
 
escapa ao tempo e que pode ser a referência básica para o conhecimento autêntico e que 
Parmênides chamava de Ser. 
Essa característica do conhecimento verdadeiro, o fato de ser estritamente racional, 
não elimina a possibilidade de sua aplicação prática, como poderia parecer. Por exemplo, 
conhecimentos matemáticos que foram elaborados a partir do uso exclusivo da razão podem 
se tornar úteis e aplicáveis ao mundo exterior. A característica focada pelas críticas de Zenão 
é a da origem sensível do conhecimento. Para ele, qualquer raciocínio feito a partir dos dados 
da sensibilidade já parte de uma base errada. Porém isso não impede a aplicabilidade do 
conhecimento racional autêntico nem incapacita a realidade exterior de receber sua 
incorporação material – algo que poderia ser descrito como “racionalização do mundo” e que 
nós chamamos costumeiramente de tecnologia. 
 
 
2.3 A resposta de Platão 
 
Platão 
 
Numa de suas obras, chamada “Ménon”, Platão apresenta uma dificuldade ligada à 
busca pelo conhecimentoautêntico. Segundo ele, parece haver apenas duas possibilidades 
para quem procura a verdade: ou não a conhecemos ou a conhecemos. 1) Se não a 
conhecemos, como poderemos reconhecê-la quando a encontrarmos? Pode ocorrer inclusive 
que nós, não sabendo o que ela é, passemos por ela sem a notar. De fato, parece impossível 
obter o conhecimento verdadeiro se não sabemos o que é a verdade. 2) Por outro lado, se já 
conhecemos a verdade não faz nenhum sentido continuar procurando. Ninguém procura 
encontrar o que já possui. Então, pelo argumento de Platão, a busca da verdade parece 
contraditória tanto no caso de já a conhecermos quanto no caso de ainda não a conhecermos. 
 29 
 
Para que a busca pela verdade tenha algum sentido parece ser necessário ao mesmo tempo 
conhecê-la e não conhecê-la. O conhecimento que deveríamos ter dela inicialmente, nos 
permitiria identificá-la e o desconhecimento acerca do que ela é nos impulsionaria a persegui-
la. Assim, essa busca precisa ser uma mistura de conhecimento e de falta de conhecimento 
sobre a verdade, uma mistura de ignorância e sabedoria. 
 
 
“- Olá Dona Verdade!” 
 
Platão vai desatar esse nó apelando para a ideia de anamnese ou recordação. Para ele o 
conhecimento é somente a lembrança de uma verdade já conhecida. Como não o possuímos 
esse conhecimento da verdade, ele só pode ter acontecido em um momento anterior de nossa 
existência. Assim, ele afirma que a alma é imortal e que ela já manteve contato direto com a 
verdade em um momento anterior de nossa existência passada. Ao nascer, a alma se esquece 
desse contato, porém está inteiramente apta a reconhecê-la quando a encontrar, em função de 
manter dela uma reminiscência em função daquele contato anterior. 
É apenas nessa circunstância que a busca pela verdade tem sentido: a alma sabe o que 
é a verdade, mas ainda não desenvolveu o conhecimento ou a posse efetiva dela. Somente ao 
se lembrar totalmente da verdade é que o conhecimento será pleno, embora já exista na alma 
uma modalidade de saber relativo à verdade: uma reminiscência. Há no homem um 
conhecimento latente que precisa ser plenamente recordado para se desenvolver e se tornar 
consciente. Portanto, o processo de conhecimento é na verdade um processo de recordação 
dessa verdade latente que se encontra em todos nós. A carência existente no conhecimento 
persiste, porque ainda não estamos em sua posse plena, mas sentimos a tensão de sua falta em 
função de um valor que está em nós sob a forma de um saber implícito – uma lembrança a ser 
plenamente recuperada. 
Nessa solução daquela contradição existente no processo de busca pela verdade, 
Platão enuncia a estrutura básica de sua filosofia. Há um mundo verdadeiro que foi 
 30 
 
contemplado por todas as almas – o que ele chama de Mundo das Formas ou Mundo das 
Ideias. Mas nessa vida terrena, que vivemos agora, nos encontramos em um mundo inferior 
em termos de verdade. Esse mundo é inferior justamente porque, como defendeu Heráclito, 
ele não se mantém igual a si mesmo, ele está em permanente mutação. Platão chamou a esse 
mundo de “devir” para tornar evidente a ideia de que ele torna-se sempre outro – ele devém, 
mas não é. 
O devir não é objeto de conhecimento porque é instável, como queria Heráclito. 
Somente o Mundo das Ideias é, de fato, um objeto de conhecimento verdadeiro. Ele só pode 
ser conhecido por meio da razão, como queria Zenão e Parmênides. Assim, temos uma 
distinção entre dois planos do mundo que se articula com uma distinção entre duas 
habilidades da alma. Há uma correspondência entre o Mundo das Ideias e o instrumento 
adequado para conhecê-lo – a razão – e entre o devir e o instrumento ligado a ele – a 
sensibilidade. Não há, estritamente falando, conhecimento do devir. Sobre ele só há opinião. 
Conhecimento é um termo destinado à experiência racional do objeto verdadeiro: as Ideias. 
Devemos notar, entretanto, que todo processo de recordação começa a partir de algum 
elemento disponível no plano sensível. Por exemplo, lembramo-nos de um determinado 
evento passado que tem um significado importante para nós através da percepção de um odor 
que estava presente naquela ocasião original. Assim, podemos notar que a função do devir é 
extremamente importante, porque é a partir dele que o gatilho da recordação será disparado. É 
com ele que o conhecimento começa. A percepção tem como objetivo fornecer elementos 
para que a alma recupere o conhecimento superior latente e não para nos fornecer a própria 
verdade. A função do devir é a de servir como um trampolim para que a alma se eleve até o 
conhecimento pleno da realidade. 
 
O trampolim da alma 
 
 31 
 
Nos termos de Platão, não parece correto afirmar que o devir é uma fonte de ilusões 
ou que o corpo está ligado ao erro. O que ocorre é que a alma, em função de uma 
predisposição psicológica equivocada, considera o que é secundário e que serve como base 
para a recordação como algo que é o próprio objeto de conhecimento. Ou seja, a dificuldade 
toda reside na orientação que as almas assumem quando tentam conhecer o devir como se 
fosse um objeto com um valor epistemológico em si mesmo, o Ser. Com essa atitude, elas 
tentam conhecer o que não pode ser conhecido e alteram a função autêntica que o devir 
deveria ter: servir como motivo para a recordação do Mundo das Ideias. De fato, o devir é um 
mundo secundário, um mundo transitório caracterizado pelo espaço e pelo tempo. Porém, ele 
é causado pelo Mundo das Ideias e como toda consequência, ele possui algo que nos lembra 
sua causa. Então, ele deve ser entendido como um elemento que impulsiona a lembrança do 
mundo verdadeiro e não como o próprio mundo verdadeiro. Quando nos relacionamos de 
maneira epistemologicamente adequada com o devir, percebemos que sua função é tornar-se o 
motivo que nos permite chegar ao Mundo das Ideias. 
A metáfora que Platão utiliza para explicar a relação do mundo sensível com o Mundo 
das Ideias é perfeita para evidenciar a diferença e a dependência entre ambos. Ele usa a 
imagem da produção das sombras. Nessa imagem, o Mundo das Ideias é a realidade e projeta 
sua sombra - que é o devir. Essa sombra obviamente não corresponde à verdade do objeto 
real, embora seja causada por ele e nos informe algo sobre ele. Ao estabelecer contato com a 
sombra, somos levados a concluir que ela não é toda a realidade e que há coisas mais elevadas 
que são a origem daquilo que vemos. Então, a sombra indica algo de que ela é a projeção, 
uma realidade mais verdadeira do que ela mesma e que é eterna e imutável. Portanto, a 
sombra tanto é produzida pelos objetos reais e quanto nos serve como motivo para a 
recordação deles. 
Se pensarmos em termos de causa da existência, veremos que o Mundo das Ideias 
projeta o devir. Se pensarmos do ponto de vista do conhecimento, percebemos que a alma 
deve fazer o caminho ao inverso, indo das consequências às causas. Se o conhecimento é uma 
recordação, então o devir funciona como a ocasião da recuperação, como um traço de 
memória que remete para outro conteúdo: uma realidade superior. Conhecer é recuperar a 
verdade a partir da opinião, o objeto real através de sua sombra. 
 
 32 
 
 
As sombras remetem aos objetos de que são sombras 
 
Toda a dificuldade ligada ao conhecimento surge quando uma alma mal orientada 
considera a sombra como o verdadeiro objeto e, a partir dessa atitude, se perde aquela relação 
de dependência com o objeto real. O erro dessa alma é considerar como autônomo um objeto 
que não possui autonomia, como real o que é apenas devir, como eterno o que é temporal. 
Fica patente que as dificuldades que impedem a alma de conhecer são internas a ela própria e 
estão ligadas ao seu ponto de vista – ao modo como ela se relaciona com o devir. Não há 
nenhuma dificuldade existencial ligada seja ao Mundo das Ideias seja ao devir. Eles são o que 
são e nada pode ser feito com relação a isso.O que a alma deve fazer é obter a perspectiva 
adequada que pode levá-la ao conhecimento verdadeiro a partir dessa situação dada de 
encontrar-se imersa no devir. 
Podemos dizer que toda a filosofia de Platão é uma tentativa de corrigir a perspectiva 
das almas mal orientadas. Trata-se de uma espécie de terapia epistemológica porque o 
problema que impede o conhecimento verdadeiro é uma questão de viés do olhar que a alma 
lança sobre o devir. Assim, Platão não visa na sua obra filosófica fazer uma exposição do 
conhecimento verdadeiro, porque reconhece que uma alma mal preparada não poderá 
reconhecer a verdade, nem mesmo se cruzar com ela na esquina mais próxima à sua casa. 
Portanto, no processo do conhecimento tudo depende da alma estar ou não em condições de 
olhar para o devir com a perspectiva adequada: como elemento que conduz à verdade, como 
uma escada que tem de ser escalada passo a passo, como algo em que a verdade se manifesta, 
mas não ainda como a verdade em si mesma, a verdade propriamente dita. 
Sendo assim, não é difícil entender que Platão tenha usado a forma do diálogo em suas 
obras. No diálogo platônico, Sócrates quase sempre desempenha o papel de um filósofo. O 
filósofo para Platão é aquele que já obteve o conhecimento verdadeiro, que já chegou à posse 
completa do Mundo das Ideias, uma alma que já fez toda a escalada em direção ao 
conhecimento superior. Sendo assim, ele está apto a avaliar o estágio e a perspectiva de cada 
 33 
 
alma com quem dialoga com relação à verdade. O objetivo do filósofo nesse contexto não é o 
de arrastar a alma e mostrar-lhe a verdade e sim convencê-la e prepará-la gradativamente para 
que ela abandone suas opiniões, excessivamente ligadas ao devir, e se habitue lentamente ao 
conhecimento verdadeiro. 
O diálogo serve para que a alma confronte suas próprias opiniões iniciais e reconheça 
que o que se encontra nelas ainda é uma sombra e não o próprio objeto real. Nos diálogos 
platônicos a verdade definitiva nunca é apresentada, porque o objetivo de Platão é preparar a 
alma para chegar à posse da verdade e não expô-la. E isso não se consegue senão por meio de 
uma preparação e de uma disposição interna específica das almas. O núcleo do esforço 
filosófico de Platão é sempre a disposição interna das almas para a obtenção do conhecimento 
verdadeiro – o que denominamos acima de terapia epistemológica. 
O importante é observar que Platão não está acusando o mundo sensível de ser algo 
ruim ou de conter algum tipo de defeito intrínseco. O mundo é o que é: devir. A questão toda 
gira em torno de como a alma se orienta em relação a ele. Toda a filosofia platônica tem como 
prioridade tentar orientar adequadamente a alma, fazer com que ela adquira um ponto de vista 
adequado ao conhecimento verdadeiro, partindo da sensibilidade obviamente. 
Platão afirma que o discurso escrito, ao se dirigir indistintamente a qualquer leitor, 
ignora o estágio em que cada alma se encontra e, por isso, não é o melhor recurso pedagógico 
para a obtenção de um ponto de vista filosófico, quer dizer verdadeiro. Se o fundamental é 
reorientar a alma, é preciso partir do estado concreto em que ela se encontra. E esse estado é 
específico de cada alma. Não há, portanto, um único discurso verdadeiro que possa ter o 
efeito retórico que é necessário para que a filosofia de Platão cumpra seu objetivo de 
converter todas as almas. Por isso, a forma do diálogo surge da necessidade de demover cada 
alma do seu estado epistemológico atual para outro superior – uma espécie de conversão. Nos 
diálogos vão se expressando vários pontos de vista e, com os questionamentos de Sócrates, 
seu interlocutor vai sendo convencido a abandonar esses pontos de vista em benefício de 
outros que são superiores – porque mais próximos do ponto de vista filosófico. 
O que o discurso filosófico de Platão visa não é a verdade sobre um objeto de 
conhecimento propriamente falando e sim o estágio em que a alma do interlocutor se 
encontra, o tipo de opinião que ela possui sobre determinado assunto. E, para fazer justiça a 
cada alma, esse discurso não pode ser igual para todos. 
Por esse mesmo motivo, não há em Platão a expressão do que é o conteúdo do Mundo 
das Ideias. Para ele, o Bem é a Ideia mais nobre, mas não há uma exposição do seu conteúdo 
em nenhum diálogo, assim como não há a exposição do que é a Beleza, a Justiça ou a 
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Verdade, outras das Ideias. O Mundo das Ideias só pode ser apreendido por meio de uma 
experiência da alma, uma contemplação pessoal que não pode ser comunicada aos demais 
porque isso nada significaria para quem ainda não pode realizar essa experiência. A terapia 
epistemológica cura a cegueira da alma, mas não comunica a verdade. Ela apenas prepara a 
alma para essa experiência pessoal. O conhecimento verdadeiro, embora pretenda ser 
objetivo, não é público porque requer uma preparação e, a partir dessa, uma experiência 
individual. 
Podemos mesmo dizer que a obra de Platão consiste em uma introdução à filosofia e 
não em uma filosofia propriamente dita, já que nela o que está em questão é tornar a alma 
pronta para o conhecimento e não a exposição do próprio conhecimento. A partir de 
determinado ponto, após estar familiarizada com conhecimentos superiores, só resta à alma a 
própria experiência do que é o mundo real. A filosofia de Platão se ocupa dessa preparação da 
alma para o conhecimento da verdade, mas nunca com a expressão desse conhecimento. Ela 
tem seu fim no momento em que a alma está em condições de contemplar o Mundo das Ideias 
e o papel do filósofo termina exatamente aí. O restante é um processo pessoal. É como se ela 
fosse uma introdução ao conhecimento verdadeiro, uma iniciação que retira tudo o que pode 
servir de empecilho e fornece o ponto de vista adequado para a filosofia. 
 
 
A escada da verdade 
 
As almas devem ir renunciando às suas opiniões e adotando um ponto de vista que se 
aproxima mais e mais de uma condição ideal para a percepção da verdade. Como a parte da 
alma responsável pelo conhecimento verdadeiro é a razão, esse processo pode ser entendido 
como uma crescente racionalização da própria alma. O sentido de tal processo é que a parte 
racional vai tomando a direção e substituindo os sentidos no controle da alma. Uma alma 
racional está preparada para um conhecimento racional, uma alma dominada pelo sensível não 
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se libertou ainda do devir e toma-o como exclusivo objeto de conhecimento. Platão utiliza a 
metáfora do peso e da leveza para descrever esse processo. Para ele, uma alma que vive tendo 
como referência o mundo sensível está carregada de chumbo e quando começa a se libertar é 
como se penas nascessem, dando a ela a possibilidade de alçar vôo para as regiões superiores. 
Ele também afirma que a alma é como uma parelha de cavalos: um é dócil e o outro é 
irritadiço e precisa ser controlado – fazendo referência ao fato de a alma possuir duas 
tendências: uma que é racional e sensata e outra que é impulsiva e sensível. 
Observe que essa libertação é sempre um processo interior. Assim, o filósofo como já 
chegou à posse do Mundo das Ideias não tem mais o devir como referência – embora continue 
a viver nesse mundo sensível. Platão não defende o martírio do corpo ou mesmo o suicídio 
como formas de vida superiores ou desapegadas. O que importa é o processo interior de 
libertação: o fato de uma alma não ter mais o devir como referência é determinante para o 
conhecimento e para a ação. Ele reconhece no devir uma sombra da realidade e o que ele vê, 
de fato, é o objeto superior refletido nessa instância inferior. O filósofo vê o devir como uma 
transparência, como aquilo que sugere um outro mundo, melhor embora não independente 
deste. 
No sentido platônico, isso significa que o filósofo já está morto para todos os vínculos 
sensíveis típicos do devir. Esse último não representa mais um papel preponderante – seja

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