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ESPAÇO E TEMPO ap re se nt aç ão 1 0 3 pr es en ta tio n APRESENTAÇÃO O dossiê Espaço & Tempo reúne artigos que tratam de aspectos diversos dessa complexa relação. São oito artigos de acadêmicos de todo o país. A coletânea inicia com o trabalho de Carla Monteiro de Souza sobre a imigração de gaúchos em Roraima. Em seguida, Christian Nunes da Silva discute questões relativas à identidade cabocla e à cultura regional na Amazônia. Cristina Maria da Silva trata da imagem do corpo feminino no cenário cultural e político brasileiro. O artigo seguinte, de Estevão Martins Palitot, analisa como a delimitação de um território indígena contribui para a redefinição identitária desses povos. Gilmara Benevides Costa discute a revitalização de um engenho do século XVII e a produção da “memória”. José Francisco analisa como o processo de produção do espaço social é alienante e, por isso, é necessária sua “desconstrução” analítica para promover a justiça social. Na mesma linha temática, porém com abordagem diferente, Luana Cruz aborda a complexa relação entre patrimônio arquitetônico, cultura e desenvolvimento econômico. Por fim, William Seba Mallmann Bittar analisa, utilizando de referenciais da antropologia e do urbanismo, o ato do sepultar e a produção de cemitérios na sociedade contemporânea. Márcio Moraes Valença Organizador 1 0 4 Carla Monteiro de Souza Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Roraima (UFRR); doutora em História pela PUCRS. Resumo O presente trabalho tem como objetivo examinar o papel do migrante gaúcho na ocupação humana do estado Roraima, focalizando processos de inserção social, estratégias de adaptação à realidade roraimense e de (re)territorialização. Palavras-chave: migrantes; (re)territorialização; inserção social. Abstract The aim of this study is to characterize the role of the Gaucho settlement in the occupation of the Roraima State, focusing on social insertion processes, adaptation strategies to the local reality and geographic relocation. Keywords: migrants; geographic relocation; social insertion. MIGRAÇÃO E MEMÓRIA: (re)territorialização e inserção social entre gaúchos residentes em Roraima ar tig os 1 0 5 pa pe rs 105-120n. 33 2008 p. Ao olharmos um mapa do Brasil, é fácil constatarmos a sua dimensão continental. Essa característica espetacular remete à questão da diversidade - de paisagens, de climas e, logicamente, de pessoas. Pessoas e grupos muito diferentes entre si habitam diferentes lugares, ocupam, vivem e sentem de forma diferenciada essa grande extensão. Mas, ao olharmos o mapa, é possível também pensarmos na forma como essas pessoas estão espalhadas por esse imenso território. É possível ampliar essa percepção quando incorporamos dados e informações quantitativas. Nota- se, contudo, que informações censitárias, numéricas e estatísticas sobre a distribuição populacional vigente no Brasil, se tomadas de forma absoluta, afobada ou superficial, podem levar a conclusões falseadas ou, pior ainda, deterministas. Essa, com certeza, é a faceta traiçoeira dos números. Não obstante, são os mapas e os números que permitem afirmar que a população brasileira está espalhada de forma desigual e descontínua, fato que define outro aspecto incontestável da realidade nacional: as diferenças regionais. Se, à leitura dos mapas e números forem agregadas outras leituras, um pouco mais satisfeitos, constataremos a possibilidade de lançar-se um olhar mais fecundo sobre o imenso Brasil – menos parcial, mais crítico, mais plural. A realidade em torno de nós ganha novas cores e novos significados se, além de todos os recursos mencionados, tivermos a possibilidade de andar um pouco pelo Brasil, de conversar com outras pessoas, de conhecer lugares, de morar em lugares distantes e diferentes daquele em que nascemos e fomos criados. Sem exagero, um mundo novo de formas e significados se apresenta e estes, processados, podem engendrar questões instigantes e apaixonantes. Nesse contexto, o objetivo deste artigo é apresentar alguns aspectos da migração de gaúchos para o estado de Roraima nas últimas três décadas, particularizando as categorias cotidiano, saudade, família e lugar na compreensão do processo de inserção social e (re)territorialização. Buscando formas diversas de constituição de fontes e de abordagens, e a par da riqueza dos movimentos migratórios internos ocorridos a partir dos anos de 1940 e intensificados nos anos de 1960-1970, o recorte foi profundamente influenciado pela natureza desse deslocamento, ocorrido entre os extremos geográficos do país. 1Este texto é parte de um estudo realizado entre os anos de 1995 e 2004 , que teve como ponto de partida as seguintes perguntas: O que fez com que indivíduos e famílias deixassem sua terra natal, o meio físico e social no qual foram formados e estavam inseridos, para se lançarem em uma terra e uma situação em muitos sentidos desconhecidas? Como foi esse percurso migratório? Como vivem na terra de adoção e como sentem a sua terra natal? A consciência de que a questão das migrações esteve durante muito tempo condicionada por abordagens economicistas e deterministas, a complexidade que reveste essas perguntas, aponta para as fecundas possibilidades oferecidas pela história oral. Junto a isso, a constatação da carência de literatura e de fontes tradicionais sobre o tema transformou a oralidade em principal ferramenta metodológica na constituição das fontes. O lugar da oralidade e da memória Parte expressiva da pesquisa citada acima foi realizada através das 2memórias narradas de gaúchos migrantes . Cabe aqui, portanto, um parêntese a fim de que se tenha a justa medida do papel fundamental que a história oral desempenhou nesta investigação. 1 0 6 105-120n. 33 2008 p. Muito já se disse sobre a história oral, e não nos cabe repetir. Deve-se ressaltar, no entanto, que a sua faceta mais interessante reside no fato de que sua utilização introduz na abordagem elementos inusitados e a possibilidade de se acessarem novas e insuspeitas dimensões do objeto. Portelli (2000, p.67) resume muito bem isso quando diz que se deve tratar a “memória não apenas como o lugar onde se 'recorda' a história, mas memória como história”. Nesse sentido, foi através da narração das experiências guardadas na memória dos migrantes entrevistados que tivemos acesso a visões particulares e individuais, ao mesmo tempo impregnadas de elementos sociais, culturais, ideológicos. Nelas estão expostas as “dores” e as “delícias” de viver em outro lugar, de reestruturar relações humanas, espaciais e temporais, processo sabidamente difícil e complexo. Através delas, o intrincado processo de (re)espacialização e (re)territorialização ganhou cores vivas, possibilitando a exposição do seu caráter fundamental, isto é, de ser basicamente humano. Ao contar o que viveu e vive, o migrante gaúcho requisitou a memória e os instrumentos narrativos necessários e desejáveis para ser o mais fidedigno possível, buscando atender a si mesmo e ao ouvinte. De modo geral, existe uma objetividade presumida no seu texto, aquela permitida pelas astúcias da memória e da fala, fato que em muitos momentos instigou incursões teóricas mais criativas e aprofundadas. Ao produzir uma narrativa sobre a sua vida, o migrante é, a um só tempo, um produtor e um decodificador de narrativas, começando pelas suas próprias. Afinal, como afirma José Luiz Jobim (2003, p.149-150), toda narrativa “pertence a uma cultura, inscreve-se em uma história social, insere-se em um sistema de convenções”. Entender e produzir uma narrativa envolve essencialmente o desenvolvimento de uma habilidade que possibilite a manipulação de códigos, valores, crenças, normas, algunsaté pouco familiares. Para narrar o que viveu e vive, é necessário dominar certos “quadros de referência” (Halbwachs, 1990), e o migrante recorre principalmente àqueles relacionados ao lugar de origem e ao de adoção. Narrar é ato que implica um repertório de capacidades profundamente alicerçadas em referências sociais, espaciais e territoriais. Contar uma história acerca do passado, a partir daquilo que se considera ser seu começo, suas origens e elementos constituintes, pressupõe certos fundamentos que, ainda que intencionalmente colocados no passado, articulam- se com o presente, justificando aquela mensagem que se deseja transmitir e dando-lhe consistência. Articula-se também com o meio, pois narrar é sempre ir além da suposta individualidade do autor e do ouvinte, “é fazer uso da herança cultural em que se enraíza a própria exitência da narrativa, como uma forma possível de dar sentido ao real” (Jobim, 2003, p.149-150). Ao narrar a sua experiência migratória e a sua vivência como “estrangeiro”, o migrante se movimenta em um tempo próprio, entre o passado e o presente, e entre espaços mais ou menos definidos: o “de lá” e o “daqui”. Para os narradores, os “quadros de referências” a que recorrem guardam sentida distância, não só do ponto de vista geográfico mas também do sociocultural. Separam esses dois pontos extremos do país diferenças de ordem fisiográfica, climática e ambiental. Essas diferenças, somadas às diferenças nas suas formações sócio-históricas e culturais, são percebidas de forma muito peculiar pelo migrante, produzindo um acento especial nas suas narrativas, que ressalta a distância, o longo percurso, a grandiosidade do empreendimento. Junto a essa percepção, digamos, subjetiva, os estudos sobre as migrações internas no Brasil tradicionalmente se alicerçam na análise das 1 0 7 105-120n. 33 2008 p. desigualdades entre as regiões, aqui personificadas no Rio Grande do Sul e em Roraima. As motivações de ordem econômica são as primeiras a serem arroladas, deixando-se pouco espaço para as facetas inerentes à subjetividade, ao fato único, traduzidas principalmente na escolha entre migrar e ficar, já que as situações de exclusão ou de expulsão são, via de regra, englobantes. No entanto não é possível abordar uma migração sem caracterizar sua origem e seu destino. RS e RR: origem e destino O estudo da migração de gaúchos para Roraima, realizado nos últimos anos, comprovou que, além das motivações para migrar, devem-se buscar elucidar outras tantas características desse processo, tais como os recursos materiais, o nível de escolaridade, de conhecimentos técnicos, as peculiaridades da bagagem cultural dos migrantes, despertando o interesse também pelos processos e estratégias de inserção e de recolocação social e individual. Por outro lado, o estudo mostrou também que há uma relação dialética entre as duas áreas enfocadas, uma situação de complementaridade e de interação, que extrapola as caracterizações bem demarcadas acerca das chamadas áreas de “expulsão” e de “atração”. Constante em muitos estudos sobre migrações, acreditamos que essa caracterização não dá conta da complexidade intrínseca aos processos migratórios, já que, antes de tudo, o movimento “de ir” decorre de uma decisão individual, apesar de constatada a existência de variadas pressões decorrentes de situações-limite. Na necessária contextualização histórica da migração de gaúchos para Roraima, alguns elementos de ordem econômica, política e social foram definidos. Ganhou relevo o processo de modernização das relações de produção e de integração aos novos parâmetros econômicos nacionais que, a partir dos anos de 1950-1960, configurou simultânea e complementarmente uma potencial situação de “expulsão” no Sul e de “atração” no Norte. O exame desse processo e de seus efeitos em nível social e econômico no Rio Grande do Sul e em Roraima permitiu a construção de um “cenário”, que tornou possível entender as várias facetas dessa migração. Permitiu também visualizar, para cada uma das duas áreas, temporalidades diferentes, porém contemporâneas. Contudo cabe destacar como efeitos comuns do processo de modernização nas duas regiões a progressiva valorização da terra e a mudança nas possibilidades de absorção da força de trabalho. Enquanto no Rio Grande do Sul se afunilavam as possibilidades de absorção de mão-de-obra, em Roraima operava-se a expansão da fronteira agrícola. Esse processo produziu também alterações demográficas: no RS, se intensificava a migração para fora do estado; em RR, se observava um crescimento populacional espetacular, decorrente da entrada de população migrante procedente das mais variadas regiões brasileiras. 3No Rio Grande do Sul , observou-se que a perda de população foi mais sentida no interior do estado, onde o processo de modernização gerou basicamente duas situações: a expropriação dos pequenos e médios proprietário, através da concentração fundiária, e a subordinação destes ao capital, através da apropriação da renda da terra. No processo de avanço das relações capitalistas no Rio Grande do Sul, as possibilidades de geração de renda e aproveitamento da força de trabalho bem como de manutenção e reprodução de um modo de vida alicerçado no trabalho familiar ficaram cada vez mais difíceis: a sobrevivência norteada e mediada por laços tradicionais e afetivos se tornava cada dia menos viável. 1 0 8 105-120n. 33 2008 p. Uma das saídas para essa situação foi a busca de oportunidades em outras regiões. Junto a isso, há que se considerar também a própria dinâmica social gaúcha, tendo em vista que o deslocamento do indivíduo ou da família – primeiramente migrando para áreas virgens dentro do estado e depois para fora dele – é estratégia recorrente na história do Rio Grande do Sul. A migração, para os gaúchos, portanto, expressaria não só a procura de realização econômica, mas também de realização pessoal e cultural. A adoção dessa estratégia demonstraria o intento de recriar as condições de sobrevivência em outro espaço. Sinalizaria, também, a existência de toda uma carga cultural expressa através do apego a um modo de vida, que deve ser preservado em detrimento das relações impostas pelos novos padrões socioeconômicos. Cabe destacar que, em termos socioculturais, os gaúchos constituem um dos grupos regionais mais bem definidos no conjunto da sociedade brasileira. Sua identidade regional, bastante bem demarcada e introjetada no imaginário nacional, está alicerçada em imagens e representações construídas a partir de elementos vinculados a um processo histórico de longa duração (Oliven, 1992). No âmbito desta pesquisa, apontamos que a identidade regional sulina é constiuída historicamente a partir da interação de duas vertentes básicas – uma pecuarista- luso-brasileira e outra colonial-imigrante, chamadas aqui respectivamente de “pampa” e de “serra” –, que caracterizam na atualidade os gaúchos como um todo e os migrantes em especial. A filiação regional, traduzida na configuração de elementos que conformam um perfil, relacionado à definição de certas características físicas, de personalidade e de caráter, a comportamentos, práticas individuais e sociais, está alicerçada na hegemonia imagética do “pampa” e no chamado “amálgama étnico”, ligado à imigração européia (Kaiser, 1999). Essa imagem que o gaúcho tem de si, que é mais do que uma definição pessoal e personalística, que o antecede aonde quer que vá, é que define, em boa parte, o seu processo de apropriação e de recolocação em um outro lugar. É essa bagagem cultural muito bem definida externamente ao estado e profundamente introjetada pelos naturais do Rio Grande do Sul que medeia cotidianamente a sua presença em Roraima, espaço considerado tão distinto e estranho. A distância geográfica, por si só, já é eloqüente.O estado de Roraima, criado em outubro de 1988, localiza-se no extremo norte da fronteira nacional e ainda é uma das áreas mais desconhecidas do território nacional. É dotado de grandes riquezas naturais: minerais – ouro, diamante, cassiterita –, grandes fontes de água potável e uma biodiversidade distribuída entre as áreas de floresta, de campos naturais (lavrados) e de serras. No seu território habitam cerca de sete grupos indígenas, em diferentes estágios de relacionamento com a sociedade envolvente, incluindo os internacionalmente famosos Yanomami. 4Apesar de sua ocupação humana remontar às primeiras décadas do século XVIII, a região permaneceu despovoada até meados do século XX, quando foi criado o Território Federal do Rio Branco (1943), renomeado de “Roraima” em 1962. A partir daí, ações no sentido do povoamento e do incremento econômico começaram a se tornar mais freqüentes, obtendo resultados realmente expressivos somente a partir dos anos 1970. No contexto amazônico, Roraima pode ser definida como uma das áreas secundarizadas no processo de ocupação recente. Até a década de 1940, era uma área de povoamento rarefeito e desigualmente distribuído. Sua economia, incipiente e frágil, estava assentada na atividade pecuária, no extrativismo vegetal e mineral (garimpos). Em termos fundiários, predominavam as áreas indígenas, oficiais ou não, as terras devolutas e o latifúndio pecuarista. 1 0 9 105-120n. 33 2008 p. A criação do território federal enseja as primeiras iniciativas objetivando incrementar o povoamento da região. A exemplo do restante da Amazônia, pretendia-se implementar uma colonização de pequenos proprietários, direcionada à produção de gêneros alimentícios. Essas experiências, na maioria das vezes descontinuadas, só começam a lograr êxitos significativos no final da década de 1970, início de 1980, quando o isolamento em que vivia a região começou a ser atacado, com a abertura da BR 174 (rodovia Manaus-Boa Vista-fronteira venezuelana) e da BR 210 (Perimetral Norte). Inscrita no processo de modernização da Amazônia, a implantação desses eixos rodoviários, por um lado, incentivou a vinda de migrantes – principalmente da região Nordeste, mas também de outras áreas do país –, mas, por outro, não foi capaz de incrementar e diversificar as suas atividades produtivas. É também nesse período mais recente que se inicia a implantação de programas de assentamento de pequenos proprietários, visando conter a posse ilegal e ocupar amplas áreas de floresta, já que as áreas de campo (lavrados) tradicionalmente estavam reservadas à pecuária. Ao longo da década de 1980, a grande quantidade de terras livres ou consideradas livres, como as terras devolutas e as indígenas, ganham destaque através da ação decisiva de lideranças políticas locais, que passam a atuar no sentido de carrear recursos federais para a região, com vistas também à transformação desta em estado. Intensificam-se os fluxos migratórios para Roraima, com caráter marcadamente espontâneo. Pode-se dizer que, nos anos 1980, ocorre uma verdadeira corrida para Roraima, ocasionada basicamente pelos estímulos à ocupação das terras e pelos inúmeros garimpos de ouro surgidos na área yanomami. No obstante o declínio dos números e taxas excepcionais registrados no período,e o seu progressivo declínio, Roraima segue atraindo significativos contingentes migratórios até os dias de hoje. As migrações, portanto, desempenham papel fundamental na constituição socioeconômica de Roraima. O movimento de entrada de migrantes é constante, variando para mais nos momentos de surto econômico, como, por exemplo, o do garimpo de ouro mencionado acima. Além disso, as práticas políticas de caráter assistencialista e clientelístico difundiram a idéia enganosa de que as coisas em Roraima estão mais disponíveis e podem ser mais fáceis. A atuação do poder público nas ações de ocupação sempre foi decisiva, tanto na esfera federal como na local. Apesar de não haver uma pressão expressiva exercida por qualquer tipo de movimento organizado nos moldes do MST, verifica-se que, na atualidade, projetos de assentamento continuam sendo criados e instalados. Uma das justificativas recorrentes para a sua implantação é a necessidade de absorção da população migrante que chega ao estado diariamente. A distribuição ou o financiamento facilitado de lotes é uma prática comum em todo o estado de Roraima. Na área rural, abrem-se novas frentes de ocupação; na área urbana, primordialmente em Boa Vista, criam-se novos bairros ou conjuntos habitacionais. Cabe dizer que, apesar de o fato de a disponibilidade presumida de terras constituir-se em principal atrativo, a maioria expressiva dos habitantes vive na capital – cerca de 65% da população, segundo o IBGE. Não obstante, é bom que se diga que o estado não está livre dos conflitos em torno da terra. Os principais conflitos e contendas fundiárias continuam os mesmos do início do século XX, ou seja, aqueles ligados à posse das terras indígenas, como o recente e rumoroso processo de homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol. A procedência dos migrantes que acorrem a Roraima é a mais variada: segundo o IBGE, predominam os nordestinos e os nortistas. A forma de entrada no estado, assim como o caminho percorrido, os meios utilizados e as motivações 1 1 0 105-120n. 33 2008 p. desses grupos vinculam-se fundamentalmente à situação de total exclusão na área de origem. A caracterização dos movimentos migratórios procedentes de outras regiões brasileiras é mais complexo, na medida em que se apresentam situações variadas e peculiares em relação à área de origem. Infere-se, então, que Roriama é uma sociedade em formação. O seu processo de ocupação humana está em franco desenrolar e é profundamente influenciado pelo movimento dinâmico e incessante decorrente das migrações. Isso faz com que as espacialidades e as territorialidades também estejam em constante movimento, ainda que se constate a prevalência de algumas influências culturais relacionadas aos grupos que podem ser chamados de pioneiros – de origem essencialmente nordestina – e nativos – representados pelas várias etnias indígenas que ancestralmente habitam a região. O senso comum e, provavelmente, a preocupação mais recente – notadamente após a transformação em estado – de definir uma cultura regional roraimense ajudam a compor um quadro em que a hegemonia nordestina e o apagamento da contribuição indígena são componentes incontestáveis, ainda que os últimos se constituam na parcela mais organizada e mobilizada do movimento social local. Não obstante, ainda que muitos afirmem que Roraima é um estado “nordestinizado” (Freitas, 1998), acreditamos que as características da formação e ocupação socioeconômica da região e a importância das migrações historicamente configuram inúmeras brechas, utilizadas por diferentes grupos vindos “de fora” em seus processos de territorialização e de recolocação social. Entendido como derradeira frente de expansão da fronteira, Roraima é o espaço no qual indígenas, garimpeiros, aventureiros, militares, empresários, colonos e migrantes vindos de várias regiões brasileiras interagem, convivem e buscam oportunidade e realizações. Gaúchos em Roraima: uma caracterização necessária Durante muito tempo, os argumentos fundamentados no plano econômico foram os predominantes nas explicações acerca do que Kaiser (1999) chama “diáspora gaúcha”, ou seja, do intenso movimento de saída do Rio Grande do Sul e espraiamento dos gaúchos pelas mais diversas partes do país, destacando-se aqui a Amazônia. Contudo trabalhos como o de Tavares dos Santos, Haesbaert e Kaiser abriram perspectivas para uma abordagem mais aprofundada e criativa do assunto, que aponta para a multiplicidade e a pluralidade de fatores e elementos e paraa multivocalidade dos sujeitos. Alguns dados coletados junto ao IBGE e ao Centro de Estudos Migratórios podem ser bem ilustrativos da chamada “diáspora”: em 1980, o Rio Grande do Sul tinha cerca de 11% de sua população vivendo em outros estados; em 1985, os gaúchos representavam cerca de 1% da população migrante estabelecida em Rondônia; em 1970, representavam 0,3% da população residente em Roraima, passando a 0,7% em 1991 (Souza, 1997). Em quase dez anos de pesquisas, foi possível delinear uma espécie de perfil para o gaúcho que migrou. No geral, ele é oriundo de áreas do interior, tanto rurais quanto urbanas, mais especificamente das áreas centro-norte do Rio Grande do Sul. Chamadas genericamente de áreas coloniais, nas últimas décadas do século XIX e primeiras do XX essas áreas receberam grandes contingentes de imigrantes não-lusitanos. Em função do tipo de ocupação humana e econômica historicamente empreendida, essas áreas têm como característica o grande número de pequenas e médias propriedades e uma tradição muito bem sedimentada em torno da organização familiar da produção. 1 1 1 105-120n. 33 2008 p. O movimento de saída do Rio Grande Sul tem como marco os anos de 1940. Indo em direção a Santa Catarina e ao Paraná, muitos descendentes de colonos, principalmente alemães e italianos, buscavam alternativa para a escassez e o alto preço das terras. Como nos primeiros tempos, os que partem do Rio Grande do Sul são, geralmente: chefes de família preocupados com o futuro dos filhos; novos chefes de família buscando reproduzir o seu modo de vida tradicional; agricultores ambicionando uma propriedade maior; trabalhadores buscando melhores condições de produção e meios de trabalho mais modernos. Aderindo a programas e projetos de colonização, são também meeiros, arrendatários, posseiros que ambicionam ser donos da terra e do produto dela; profissionais recém-formados, buscando oportunidades, 5independência e segurança . Esses elementos, reunidos às entrevistas realizadas em Roraima, permitiram o esboço de um perfil dos migrantes gaúchos, possibilitando uma caracterização englobante do gaúcho que migra para Roraima: ele quer oportunidades profissionais; quer largar o trabalho manual e de baixo nível tecnológico; ele não é um “despossuído”, ou seja, chega com alguns recursos – materiais, intelectuais e profissionais –, tem perspectivas e/ou planos; ele age por conta própria, não se registrando a ação de empresas, cooperativas ou a ação direta de agentes públicos, o que possibilita caracterizar essa migração como basicamente espontânea; ele é portador de uma “bagagem cultural” muito bem constiuída, que o distingue e o antecede. Como em outros casos, aqui também muitos desses migrantes articularam-se em redes de informação sobre as oportunidades profissionais e a disponibilidade de terras. Essas informações possibilitaram a constituição de impressões e de representações positivas acerca de Roraima, o que levou muitos a considerarem a região como o novo El Dorado. Nas narrativas orais, o migrante gaúcho “conta” a sua vida e o seu percurso migratório. Fala sempre sobre quem é, por que lugares passou, que lugares ocupa no espaço, a que temporalidade se vincula. Fala de tempos longos e curtos, do geral e do particular, do familiar e do estranho, do eu e do outro, da origem e do destino. Nas suas falas, as referências espaciais e sociais ao lugar de origem e ao lugar de adoção se cruzam a todo momento, mostrando que o processo de inserção social do migrante envolve não só o investimento no domínio do meio físico e social que se apresenta, mas, como afirma Zilá Mesquita (1995, p.83), envolve “conhecer de novo, mapear-se a si mesmo”, a partir de uma variedade de “impulsos (raízes)” e de “estímulos (antenas)”. Através das narrativas orais, percebe-se que esse é um processo dinâmico e relacional, no qual o indivíduo busca explicar-se coerentemente, busca dizer “quem é” naquele tempo e naquele espaço que adotou como seu. Isso implica que o espaço seja concebido de uma forma bastante amplificada, fugindo bastante das tradicionais concepções sobre “origem” e “destino”. Milton Santos (1997, p.71) lança luz sobre a questão intrincada da caracterização de espaço, quando diz que o espaço “é o resultado da soma e da síntese, sempre refeita, da paisagem com a sociedade através da espacialidade”, que é um momento da inserção social. O espaço é um dado do processo social, é a sociedade encaixada na paisagem; é, a um só tempo, vida e materialidade (Santos, 1997, p.71). O espaço contém movimento e é a realidade material a partir da qual se manifesta toda ação, intencional ou não, do sujeito. O espaço fornece elementos e marcadores concretos, fundamentais na (re)construção de representações, de relações e de práticas a partir das quais se estrutura a vida cotidiana do migrante. 1 1 2 105-120n. 33 2008 p. Com freqüência, a noção de espaço se confunde com a de território. Pode-se dizer que, antes, uma liga-se à outra. Zilá Mesquita (1995) afirma que o território é gerado a partir do espaço, como resultado de uma ação orientada por um programa e conduzida por um sujeito. Territorializar seria, então, o processo de apropriação, concreta ou abstrata, de um espaço por um sujeito. Com propriedade, a autora lembra as analogias de Rasffetin que explicam o espaço como “a prisão original” e o território como “a prisão que os homens se dão” (Mesquita, 1995, p.82). Em se tratando de migrantes, pode-se dizer que espaço e território são concebidos como categorias ao mesmo tempo condicionantes dos processos de inserção social e de apropriação espaço-territorial e condicionadas por eles. Nesse campo, Busto Cara (1995) afirma que o território pode ser concebido como uma apropriação social, objetiva e multidimensional do espaço, e a territorialidade como a subjetivação do processo vivida pelo grupo social ou pelo indivíduo. É através da territorialidade que indivíduos e grupos tomam consciência de seu espaço de vida (Cara, 1995, p.67), com base em imagens, representações e projetos. A territorialidade, por um lado, sofre influência condicionante e definidora do global; por outro, do local e do cotidiano. O território, portanto, é o que está mais próximo possível de nós. O espaço tem significação social e individual e se estende até onde vai a territorialidade, entendida como projeção da identidade sobre o território (Mesquita, 1995, p.83). Espaço e território se condicionam e se transformam mutuamente mediante a ação dos sujeitos. Na abordagem de uma situação de migração, essa relação complexa entre o espaço e o território adquire importância capital, pois é ela que permite ao indivíduo encontrar-se no mundo. Viver em um outro lugar, apropriar-se concreta e simbolicamente de um outro espaço, vincula-se à experiência individual vivida no coletivo. (Re)territorializar, como forma de apropriação, implica recorrer a uma memória reflexiva, vinculada ao vivenciado, e a uma memória projetiva, ligada as aspirações, projetos e programas (Cara, 1995, p.68). Em uma situação de migração, ocorre uma ruptura de uma territorialidade estabelecida, o que conduz o indivíduo a uma tomada de consciência, a direcionar pensamentos e ações no sentido de (re)conhecer-se, individual e coletivamente (Mesquita, 1995, p.85). Esse processo de apropriação e de recolocação social e espacial se constrói cotidianamente de forma dinâmica e relacional, situando o indivíduo e dando-lhe a capacidade de sentir e dizer “quem é” naquele espaço e naquele tempo. O cotidiano é importante elemento não só na busca de sentido de pertencimento e de identidade, mas na necessidade de construção constante de nossos espaços de referência. Na complexidade da memória narrada do migrante, o cotidiano situa-se em um tempo e um espaço próprios,onde o ontem e o hoje, o aqui e o lá se entrecruzam e se complementam na busca de inteligibilidade. Cotidiano, saudade, família e lugar Pode-se dizer que o cotidiano é “como um ponto de partida, como a experiência básica elementar e permanente que alimenta a geração de nossas representações, produtor de sociabilidades e de indentidade de base” (Cara, 1995, p.71). É a globalidade mas é também o local, na porção de espaço ocupada e vivenciada em que se engendram permanências e transformações. O cotidiano é, ao mesmo tempo, o interior perceptivo e a informação externa. Permeado por diferentes “raízes' e “antenas”, pode ser diferente para cada indivíduo – portanto diferenciado segundo o sexo, a idade, classe social, etnia, 1 1 3 105-120n. 33 2008 p. filiação regional – ou, ao contrário, o mesmo para todos. Pode-se dizer que significa o permanente diferenciado no tempo e no espaço. A noção de cotidiano vincula-se ao local, ao ponto de onde o sistema de relações se faz visível, nas relações mínimas de sustento da cotidianeidade, como, por exemplo, a família. Essas relações elementares e a tomada de consciência de uma temporalidade e espacialidade básica são a trama, o continente, a substância que dá sentido à cotidianidade. Território e cotidiano são os pontos de referência, o lugar a partir do qual nos inserimos, os pontos que permitem receber e aportar, que permitem definições (Cara, 1995, p.71-72). Uma migração e seus desdobramentos envolvem a recomposição dos pontos de referência. Requerem que a trama relacional que articula indivíduo(s) e espaço(s) seja recomposta e recolocada em termos da cotidianidade e da territorialidade. Através de uma série de ações e práticas, no nível do concreto e do abstrato, o indivíduo que migra recompõe o seu cotidiano, reconstruindo a cada dia as relações com aquele novo espaço que não é o seu, mas que, por escolha ou contingência, a ele deve integrar-se. Esse processo se reveste de uma temporalidade muito particular: envolve o passado – a bagagem sociocultural do indivíduo, assim como sentimentos, saudades, carências e perdas; o presente – o imediato que impele o indivíduo a agir e lhe fornece informações e estímulos; e o futuro – os objetivos, os desejos e as aspirações que suscitaram o deslocamento e todo o processo em si, e que vão ganhando novo sentido a cada dia. O estabelecimento de uma outra relação espaço-territorial, se, por um lado, contém uma faceta generalizadora, que pode sugerir um certo nivelamento de práticas e de estratégias bem como de certos padrões de comportamento diante do novo, do estranho, do desconhecido, por outro é extremamente particularizada e individuada. Cada indivíduo reage a esse processo à sua maneira, ainda que, em algumas situações, possam ser observados comportamentos, atribuições de sentido e constituição de representações bastante homogeneizadas. A construção de uma outra territorialidade é mediação entre uma situação que está dada, um “vir- a-ser” – que, muitas vezes, existe mais no sonho que na realidade – e por algo que foi, mas que ainda está muito vívido e nítido em tudo que o indivíduo é e faz. Acreditamos que, na migração de gaúchos para Roraima, a individuação desempenha papel muito importante, não só pela constatação de que não existe 6uma comunidade solidamente constituída – elemento que facilita a geração e a disseminação de idéias e práticas mais homogeneizadas – mas, e principalmente, pela forma como foram estruturadas as narrativas abordadas. Nelas se destaca o que está mais próximo, o contíguo, ou seja, a família e as experiências relacionadas aos contatos e ao desempenho individual, como aquelas ligadas ao trabalho. Excetuando-se o CTG Nova Querência – situado em Boa Vista –, não há referências concretas a formação e instituição de grupos ou associações que denotem qualquer forma de organização que ultrapasse o informal. O principal núcleo de sociabilidade é a família nuclear ou estendida e as relações sociais no geral, como as de vizinhança e os contatos decorrentes das atividades profissionais. Nesse sentido, não se pode dizer que os gaúchos entrevistados são pessoas com vivência restrita e restritiva. Talvez influenciados pelo tempo em que estão em Roraima – em média 20 anos –, quando falam de si prórios e de suas famílias, demonstram que a integração foi e é uma conquista cotidiana. Deixam transparecer que integrar-se e viver bem em Roraima e continuar sendo “quem se é” são coisas que não se excluem, antes se completam. O que se observou nas narrativas é que há uma preocupação de explicar esse fato, de lhe conferir valor positivo, de caracterizá-lo como um desafio diário. 1 1 4 105-120n. 33 2008 p. Na incorporação do passado gaúcho ao presente roraimense, algumas manifestações podem ser consideradas como simples nostalgia, outras não. Como afirmam Feldman-Bianco e Huse (s/d, p.26-27), a saudade é algo palpável: compõe-se de múltiplas camadas de tempo e espaço, que superpõem significados e valores culturais que estão, muitas vezes, em conflito. A saudade é a representação dinâmica da forma como os migrantes percebem, confrontam e expressam as mudanças em suas vidas. Na construção de uma nova terriorialidade, alguns comportamentos, hábitos e práticas são, de certa forma, ritualizados no cotidiano. Assim, os “rituais” cotidianos e domésticos narrados pelos gaúchos não só apontam para a nostalgia da terra natal, mas demonstram um desejo consciente de valorizar e reafirmar as suas referências culturais frente aos estímulos e informações recebidos em seu presente. É interessante destacar que, em quase todas as falas, foi mencionada de forma expressiva a manutenção de hábitos alimentares, tanto no cotidiano quanto em momentos especiais e comemorações. Observa-se que as referências a determinados pratos são recorrentes: é o carreteiro, o churrasco, a galinhada, a polenta, as massas. Eles explicam que o cardápio diário em suas casa é bem “típico”, afirmando que isso diz muito sobre a sua origem. Como em outros grupos que buscam uma nova territorialização, os costumes, notadamente os hábitos alimentares, são importantes referenciais identitários. Acreditamos que a manutenção de certos itens no cardápio diário demonstra a preocupação – inconsciente, por certo – de preservar as memórias do lugar de origem naquilo que elas têm de mais básico e necessário. Torna-se, assim, referência direta e cotidiana aquilo que não pode ser esquecido, aquilo que deve ser confirmado no âmbito familiar ou extensivo, aquilo sem o que não é possível viver. Observa-se que, face à exigüidade de outras manifestações regionalistas e folclóricas, excetuando-se a Semana Farroupilha, que é comemorada no CTG Nova Querência, em Boa Vista, esses rituais domésticos adquirem função importante como marcadores no jogo relacional estabelecido entre os gaúchos e a sociedade roraimense, no qual é preciso ceder e confirmar diuturnamente. Acreditamos que a fundação do CTG Nova Querência também se encaixa nesse contexto de saudade. Buscaria satisfazer necessidades básicas, “naturais”, como dizem alguns narradores, em um duplo aspecto. Por um lado, a sua criação se relacionaria à carência e à nostalgia das coisas da terra, intentando reconstituir parcialmente o lugar de origem, resgatando um sentido de lar, do que é familiar ou, como diz um dos narradores, do “torrão”, da “querência”. O ambiente do CTG, ainda que não fizesse parte do cotidiano de alguns dos entrevistados no passado sulino, adquiriu um novo significado no presente roraimense, pois é emblema, síntese regionalista e cultural que deve ser cultuada e vivida como condição mesma da existência ou, ainda, do ser gaúcho. Mesmo que não seja freqüentado e vivido cotidianamente, o CTG está lá, integra a paisagem, demarca espacialmente, colocando sempreà mão a possibilidade de resgatar algo do lugar de origem, cumprindo, portanto, importante função instrumental no processo de (re)territorialização. Podemos dizer, ainda, que a criação do CTG, na primeira metade da década de 1980, significa também a expressão de um sentimento de afirmação como grupo social regionalmente identificado, levando-se em conta que nesse período os fluxos migratórios para Roraima se intensificavam. Além de congregar os gaúchos, que, naquele momento, experimentavam um sentido acréscimo numérico, lhes dava visibilidade social, na medida em que outros grupos regionais também cresciam. 1 1 5 105-120n. 33 2008 p. Como explicam Feldman-Bianco e Huse (s/d), a saudade é parte constitutiva do “eu” ou da pessoa. É experiência localizada entre as memórias do passado e o desejo do futuro, estando associada às camadas de tempo e espaço anteriores ao deslocamento, ou seja, ao que chamam ”saudade da terra” (Feldman-Bianco e Huse, s/d, p.27). Essa “saudade da terra”, em maior ou menor grau, povoa o cotidiano do migrante e faz parte da memória constitutiva na reconstrução da identidade no nível do “eu” ou da pessoa. Essa nostalgia do lugar de origem adquire várias formas e pode ser representada pelas mais diversas imagens, fundamentadas no cotidiano anterior ao deslocamento. Observamos que as saudades relatadas pelos gaúchos dizem muito sobre a decisão de migrar, buscando justificar e explicar, para si mesmos e para o ouvinte, o afastamento da família e o apartamento do lugar de origem. O círculo familiar é colocado como o grande pilar que alicerça e dá sentido ao que cada um é. Através do reforço positivo – o apoio e o incentivo da família, por exemplo – ou negativo – quando são relatados incompreensões e rompimentos –, o abandono do círculo familiar foi e ainda é um “divisor de águas” na vida desses indivíduos. As menções ao lugar de origem relacionam-se ao que se pode chamar de costumes, a toda uma gama de práticas que territorializam e identificam, e a aspectos mais objetivos, como o clima e a paisagem na qual o indivíduo se reconhece e se insere. Essas imagens, associadas à família e ao lugar, dizem respeito à saudade da terra, localizada em um tempo atemporal da infância ou da juventude. Em algumas das narrativas, o expediente de utilizar o passado, “os bons tempos de outrora”, como elemento para lidar com o presente é bem consciente. Em outras, é utilizado para falar das conquistas do presente, que são associadas à vivência dos costumes regionais no seio da família lá no sul. Verificamos que essas lembranças do passado podem caminhar em dois sentidos no processo memória/narração. Por um lado, diante da situação de estar em um outro lugar, se re-significam no presente, inserindo-se em uma idéia de vida como continuidade e totalidade. Por outro, as lembranças insistem em contrastar com o presente, expressando rupturas, descontinuidades, traduzidas em perdas e na retroalimentação da saudade, influindo positiva ou negativamente na constituição da nova territorialidade. Vale ressaltar que, no geral, a narração das lembranças da família e do lugar tem um tom prazeroso, pontuado de expressões que denotam carinho, apreço, apego, carência e, por vezes, humor. Nas narrativas, a infância e a juventude junto à família são contadas com riqueza de detalhes pelos narradores. Nota-se que o movimento constante que associa passado e presente vem, algumas vezes, acompanhado de comentários sobre as incertezas inerentes à distância. Não poder vivenciar o cotidiano familiar não angustia mais, no entanto episódios excepcionais, ligados a doenças, ao envelhecimento e à morte dos entes queridos, a situações aflitivas que podem acontecer lá ou aqui, são colocados como preocupações constantes. Pode-se dizer que a “saudade da terra”, personificada na família e no lugar de origem, romanticamente engendra significado para as vidas marcadas por mudanças abruptas. Em uma migração, representa uma estratégia para resistir à imersão total em uma outra realidade, em um outro espaço. Fornece as base para a reconstrução do eu, propiciando a constituição de uma nova territorialidade, de uma outra articulação entre o indivíduo e o espaço, entre o eu e o outro. A “saudade da terra”, a rememoração de um outro tempo, ao lado de outras pessoas e em um outro lugar, medeia também a narrativa do futuro. Tanto o 1 1 6 105-120n. 33 2008 p. futuro contido no momento da migração, que hoje é presente vivido e re- significado, quanto o futuro contido no presente vivido no ato da entrevista. Assim as lembranças do lugar de origem se projetam também para além do presente e do vivido, engendrando planos e expectativas para o futuro. Nas narrativas dos gaúchos, a fronteira, no caso Roraima, é considerada como o lugar portador de oportunidades. Antes da migração era uma promessa para o futuro, uma realidade ainda não vivenciada mas muito desejada. No momento em que se efetiva a narração, esses indivíduos, que já estão há algum tempo em Roraima, tentam reinventar a utopia vivida cotidianamente, através da narração de sucessos, de conquistas, de obstáculos que foram superados. Carlos Rodrigues Brandão (s/d, p.65), inspirado em Guimarães Rosa, diz que o indivíduo, ao recorrer às suas lembranças, busca ”sobretudo, o fio invisível, que deveria tudo unir e dar sentido a tudo que se reconhece que foi vivido e agora se memoriza“. Rememorar, mais que construir uma autobiografia, é a busca, pelo narrador, de sentido para si e para os outros. É a busca, pela pessoa, de uma identidade intelegível, plausível e coerente, que seja capaz de dar sentido ao real vivido no plano individual e social. É utilizada para explicar e justificar comportamentos, práticas e idéias, para identificá-lo e situá-lo no espaço. Considerações finais Em suma, com a breve configuração histórica dos dois espaços, Roraima e Rio Grande do Sul, buscamos dar forma a uma abordagem centrada no indivíduo, inscrita no cotidiano, norteada pelas visões desse indivíduo e explicitada em suas narrativas. Dando voz aos migrantes gaúchos, ampliamos a percepção da realidade e os registros que dela se fazem, ampliando também, portanto, as possibilidades de fazer história. Os dois espaços enfocados, ainda que integrantes da mesma entidade nacional, guardam expressivas diferenças entre si, aqui brevemente evidenciadas. A escolha é um importante componente desse processo migratório, e o gaúcho que se dirige a Roraima, antes de acreditar nas virtuais possibilidades oferecidas, acredita no seu potencial e na sua capacidade de articular-se com sucesso em um outro lugar. Ele se considera um indivíduo dotado de instrumental cultural diferenciado, o que lhe proporcionaria certas vantagens, no plano individual e social. A articulação em torno da família – baseada em princípios, tradições, práticas e relações afetivas, disciplinares e de autoridade – é importante elemento na composição dessa bagagem cultural autoconcebida e auto-explicativa. A família, nuclear ou estendida, configurada por relações consangüíneas e/ou de afinidade, é o espaço primeiro de construção e de afirmação da nova territorialidade que precisa tomar corpo em Roraima. Nos relatos, fica claro que recompor cotidianamente essa situação de “estar junto dos seus” é estratégia essencial de inserção. Ao re-significar e atualizar a “saudade da terra” no âmbito doméstico e no tempo indefinido do cotidiano, o migrante adapta aqueles elementos tão caros que enformam a sua identidade, no plano individual e social, e dá-lhes novo sentido. Então, pode-se inferir que a luta pela apropriação de espaços coletivos não é o mais importante. Acreditamos que, a exemplo de outros grupos migrantes, os gaúchos também concebem Roraima como um ambiente cultural fluido, aberto a novas influências, noqual não se coloca a necessidade imperiosa da constituição de nichos sociais de expressão e de poder. E isso fica claro nas palavras de uma das gaúchas entrevistadas quando diz que Roraima é um estado feito por 1 1 7 105-120n. 33 2008 p. brasileiros, ou seja, onde acredita haver “espaço” para todos os que chegam, onde a “mesclagem” pode ser e é o recurso mais eficiente para o bem viver e na constituição de um regionalismo roraimense. É, portanto, na manutenção do espaço de referência privado, traduzido na tentativa de reproduzir o cotidiano familiar e doméstico atual, e também adaptá- lo àquele anterior a migração, que está o cerne do entendimento da presença gaúcha em Roraima. É no cotidiano vivido no privado que se processam as apropriações, as mediações e as sínteses necessárias ao bom andamento da vida em um outro lugar. Situadas na temporalidade fluida e complexa da memória e da narrativa, é na casa do gaúcho em Roraima, no lar e na família que se dão as manifestações mais expressivas de seu pertencimento regional. As outras instâncias nas quais o gaúcho se move em Roraima – trabalho, vida social, relações de vizinhança –, segundo as suas próprias visões e palavras, requerem mais “jogo de cintura”. A abertura e a flexibilidade em relação à sociedade de adoção são amplamente aprovadas pelos narradores e encaradas como algo “saudável”, prática inerente e necessária quando se está em um lugar que não é o seu. Considerando-se indivíduos dotados de uma carga cultural muito consistente, eles entendem que essa flexibilidade não se constitui em elemento suficientemente forte a ponto de descaracterizá-los. Ainda que boa parte dos narradores afirme que hoje esse processo seja vivenciado de maneira quase “natural”, e que em certos aspectos seja agradável e estimulante, eles expõem com bastante nitidez seu caráter instrumental, isto é, como estratégia importante para a concretização de seus objetivos e anseios, necessária e fundamental ao processo de deitar raízes no lugar que escolheram para viver. NOTAS 1 As pesquisas desenvolvidas nesse período estão registradas na dissertação intitulada Do Chuí ao Oiapoque: migrações de gaúchos para Roraima e em na tese História, memória e migração: processos de territorialização e estratégias de inserção entre migrantes gaúchos radicados em Roraima (Souza, 1997 e 2004, respectivamente) Ver também o livro Gaúchos em Roraima (Souza, 2001). 2 Foram realizadas 14 entrevistas, com indivíduos que residiam em Roraima havia mais de dez anos, com o objetivo central de abordar as suas trajetórias migrantes. Em 1996, foram realizadas sete entrevistas, com quatro homens e três mulheres, em três municípios de Roraima, Boa Vista, Alto Alegre e São João da Baliza. Em 2001, foram realizadas outras sete, todas em Boa Vista, capital do estado de Roraima, com cinco homens e duas mulheres, todos descendentes de italianos. Em ambos os períodos, realizou-se entrevista aberta, com duração média de duas horas. Essa coletânea de narrativas é abordada de forma mais detida no item Cotidiano, saudade, família e lugar. 3 A respeito disso, ver Fee (1990); Haesbaert (1997); Tavares dos Santos (1993) e Tedesco (1999). 4 Sobre a ocupação humana de Roraima, ver Barbosa (1993); Barros (1995) e Vale (2005). 5 A leitura de Haesbaert (1997); Kaiser (1999); Tavares dos Santos (1993); Oliven (1992) e Tedesco (1999) permitiram o esboço desse perfil. 6 Nesse sentido, buscamos Constantino (1991), quando define comunidade como o grupo social que detém algumas características específicas, tais como um projeto comum, laços ideológicos, estabilidade e normas de coexistência. Os indivíduos unem-se também através de laços afetivos, por necessidade ou por conveniência. Buscam legitimação e afirmação através de princípios ideológicos, recorrendo a elementos como origem comum e tradições que diferenciem, valorizem e dêem credibilidade. Em muitos casos – como no de grupos étnicos –, se utilizam de símbolos, organizam entidades e associações e/ou demarcam o espaço em que estão estabelecidos, identificando-o de forma inequívoca (Constantino, 1991, p.42-46). 1 1 8 105-120n. 33 2008 p. REFERÊNCIAS BARBOSA, Reinaldo Imbrozio. Ocupação humana em Roraima II: uma revisão do equívoco da recente política de desenvolvimento e crescimento desordenado. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, v.9, n.2, 177-197, 1993. BARROS, Nilson C. Crocia de. Roraima: paisagens e tempo na Amazônia setentrional. Recife: Editora Universitária (UFPE), 1995. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O sentimento do mundo: memória, destino e cenários da vida entre errantes mineiros. In: As faces da memória. (Coleção Seminários 2). Campinas: CMU/Unicamp, [s/d]. BURKE, Peter. Desafios de uma história polifônica. Folha de São Paulo, São Paulo, 15-10-2000. CARA, Roberto Bustos. Territorio de lo cotidiano: puntos de partida para la refexión. 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