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A CRIANÇA NA PERSPECTIVA DO ABUSADOR SEXUAL Andreína da Silva Moura Dissertação de Mestrado Porto Alegre/RS, 2007 A CRIANÇA NA PERSPECTIVA DO ABUSADOR SEXUAL Andreína da Silva Moura Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Psicologia Sob Orientação da Profª. Dr.ª. Silvia Helena Koller Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Psicologia Programa de Pós-Graduação em Psicologia Março, 2007 Dedico este trabalho, a todas as famílias que sofrem com as situações de abuso sexual.. a todos as crianças, mães, pais.. enfim todos aqueles que sofrem ou sofreram com esta experiência em algum momento de suas vida. AGRADECIMENTOS É madrugada, e está é a última parte importante dessa dissertação. Como não sou poeta, serei clara, não vou usar metáforas. Vou apenas agradecer a todas as pessoas que amo e que contribuíram direta ou indiretamente para que eu concluísse o mestrado. Ao pensar nisso, dou-me conta de que muita gente (mas, muita mesmo) esteve me acompanhando nessa caminhada que começou em São Paulo no ano de 2002, quando eu chorei ao ver uma palestra com os integrantes do CEP-RUA. Ter tantas pessoas como companheiras denota que tenho ao meu lado muitas pessoas importantes em minha vida. Isso me conforta e me deixa feliz. Primeiro, agradeço a minha família, pois eles são sim meu alicerce, minha força, meus primeiros e grades amores. Agradeço a minha mãe, Walda, por ter me ensinado a lutar pelo que desejo, ao meu pai (Matos) por ter me dado o conselho certo na hora certa, a minha avó Isabel pela sua doçura e apoio e ao meu irmão (Júnior) pelo carinho e companheirismo. E claro, a todos eles pelo GRANDE amor que sempre me dirigiram. Agradeço a vocês por terem me ensinado a amar, por terem me ensinado que na vida as pessoas são bem mais importantes que as coisas. Enfim; Família, amo vocês! E tenho muitas saudades de nossa convivência diária. Agradeço também aos meus tios, primos e Vó Maria pelo carinho. Ao meu avô que, não está mais entre nós, por ter sido um grande homem. Agradeço aos meus amigos. Tenho tantos! Amigos de verdade! Primeiro aos de Natal: A Karlinha, a Lara, a Júbis, a David, Carlão, Alyson, Tita, Rayanne, Débora, Maíra, João Felipe, Aninha, Karin. Kátya, Laali, Mateus, Felipe que foram meus melhores espelhos. Amo, de verdade, todos vocês! Muitos foram chamados pelos apelidos, pois é assim que os conheço... carinhosamente. Mesmo estando tão distantes fisicamente, vocês continuam em mim e continuarão pra sempre. Um agradecimento especial a Sol... Minha amiga brilhante, como seu apelido, com que divido minha vida em tudo! Te amo! Tu sabes que é irmã que não tive. Não poderia deixar de agradecer a Normanda, pois ela que me apresentou ao CEP. Mas, claro, os agradecimentos não são só por isso. Agradeço por ter sido uma companheira de casa tão amável e agradável, por me apoiar sempre, tanto nos assuntos acadêmicos quanto nos pessoais. Quero agradecer também aos amigos que fiz em terras gaúchas. Cris e Mel por terem sido sempre tão prestativas e tão amáveis mesmo quando éramos ilustres desconhecidas. Obrigada, gurias! Outros amigos feitos aqui nos pampas: Michele, Laíssa e Clarinha. A Michele, por ter sido uma boa amiga nessa fase final, a Laíssa por mesmo antes de me conhecer ter me orientado... ainda me lembro dela chegando com os livros pra me emprestar mesmo antes de eu pedir. A Clarinha pela sua meiguice e por ter me acompanhado em momento difícil a minha vida. Agradeço ao Vicente, pelas tardes de trabalho que passamos juntos. Ao Lucas, pelas piadas que me fizeram rir sempre. Agradeço a ele também pela lucidez das conversas. A Airi pela força que me deu em tantos momentos: Brigada, Riri! Meus agradecimentos vão também para Ana Paula e Samara, por dividir um momento profissional tão delicioso quanto aquele de Cruz Alta. A Camila, essa cearense tão carinhosa que entrou na minha vida, pela sua dedicação. A Luísa e Martha por terem me ensinado tanto sobre esse difícil tema que é o abuso sexual contra crianças. A Carmem, tão querida, que sempre esteve ao meu lado. Ao Jan, pelo seu carinho. Ao amigo William pelas horas de conversa. A minha querida orientadora Sílvia Koller, pelas suas orientações, correções e por acreditar em mim. Obrigada, Chefa! Terás para sempre minha admiração, apreço.. amor mesmo! Agradeço a minha equipe de pesquisa: Juliana, Marco, Renata e Carol, pelas reuniões tão produtivas e prazerosas. Um agradecimento especial para Juliana, pois começamos juntas na UFRGS, ela na graduação, eu no mestrado. Agradeço também as professores da banca: Cleonice Bosa, Vera Ramirez e Renato Flores pelas suas disponibilidades e contribuições tão relevantes ao meu trabalho. Um agradecimento especial para o Renato que abriu as portas do Ambulatório de Genética para que eu pudesse realizar a coleta. Agradeço também ao CNPq por ter me proporcionado a oportunidade material de cursar o mestrado. Agradeço também as minhas professoras Martha, Rosangela e Magda, pois afinal eles me iniciaram na vida acadêmica. Agradeço aos meus queridos sogros (Sérgio e Valquíria Duvoisin) pelo cuidado expresso de tantas maneiras nos últimos meses. Serei sempre grata a vocês. Agradeço a Deus por ter-me feito capaz de levar meus sonhos adiante. Finalmente, agradeço ao meu amor eterno Christian Duvoisin... meu companheiro, meu amado. Te agradeço por tudo: pelas conversas, pela paciência, pelo empréstimo do computador, pelas risadas, pelas nossas brincadeiras, pela nossa amizade, pelos nossos planos,por você sempre, sempre, e sempre acreditar em mim, por todo amor que me tens. Te amo, meu amor! Sempre! Todas essas palavras não são capazes de expressar o quão feliz e grata sou a você. Acabo por aqui com tantas lágrimas nos olhos... lágrimas de alegria por ter me dado conta que tenho pessoas admiráveis a minha volta! Obrigada, sempre! Muito obrigada! É preciso fé cega E pé atrás Olho vivo Faro fino E tanto faz (Engenheiros do Havaí) É preciso ainda Mudar de perspectiva Mudar de ângulo Olhar por trás E isso exige que a gente Mude De ponta cabeça E de frente pra trás SUMÁRIO CAPÍTULO I INTRODUÇÃO.................................................................................................. 10 1.1 Modos de Perceber a Infância: Analisando as Crenças sobre as Crianças no Contexto Social e a partir da Fala de Adultos .......................... 11 1.2 Abuso Sexual contra Crianças: Números, Conceitos e Definições.... 21 1.3 Abusadores Sexuais: Classificações e Características ....................... 29 1.4 Abusadores Sexuais e sua Visão sobre as Crianças........................... 33 1.5 A Bioecologia do Desenvolvimento dos Abusadores Sexuais ............ 41 CAPÍTULO II MÉTODO........................................................................................................... 45 2.1 Delineamento ...................................................................................... 45 2.2 Participantes ....................................................................................... 452.3 Instrumentos ....................................................................................... 49 2.4 Procedimentos..................................................................................... 49 CAPÍTULO III RESULTADOS E DISCUSSÃO........................................................................ 51 CAPÍTULO IV CONCLUSÕES................................................................................................ 126 ANEXOS ANEXO A: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ............................ 139 ANEXO B: Termo de Concordância para o Departamento de Genética ...... 142 ANEXO C: Ficha Bio-Sócio-Demográfica ...................................................... 143 ANEXO D: Entrevista Semi-Estruturada....................................................... 144 7 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Fases do Ciclo Vital dos Participantes 51 Tabela 2: Visão sobre as Crianças 54 Tabela 3: Caracterização das Vítimas 58 8 Resumo O objetivo deste estudo foi investigar as relações de abusadores sexuais com crianças ao longo de suas vidas, de modo a obter sua visão sobre as crianças. Estudos indicam que abusadores possuem distorções cognitivas sobre crianças. Realizou-se um estudo exploratório descritivo com 5 homens, de 37 a 73 anos, acusados de abuso sexual contra pessoas de até 13 anos, recrutados no Ambulatório do Departamento de Genética da UFRGS. Os instrumentos utilizados foram: uma Ficha Bio-sócio-demográfica e uma Entrevista Semi-Estruturada contendo questões sobre visão acerca das crianças, relações entre participantes e crianças, etc. As entrevistas foram realizadas individualmente, em sessão única. Os resultados indicam relações saudáveis entre participantes e crianças, e uma visão não- distorcida e positiva sobre crianças. Entretanto, essas respostas foram estereotipadas, pois eles demonstraram capacidade empática limitada em relação às crianças, depreciando suas vítimas infantis. Reflexões sobre a utilização de auto- relatos na pesquisa com abusadores sexuais são discutidas. Palavras-chave: abusadores sexuais; abuso infantil; visão sobre as crianças. 9 Abstract The aim of this research was to analyze child sexual abusers’ view about children, through their relationship with them along their life spam. Researches indicate that abusers have cognitive distortions about children. A descriptive exploratory study has been carried out with 5 subjects, aged from 37 to 73 years old, accused of sexual abuse against 13 year old children. A bio-social-demographic protocol and a semi-structuralized interview containing questions related to view about children, relationship between participants and children, etc. were applied to participants, who were recruited at an ambulatory of genetics studies at the university. The results indicated healthy relationships between the participants and children, and a non-distorted and positive view about children. However, those answers were stereotyped, as the participants demonstrated a limited emphatic capacity related to children, depreciating their child victims. Self-report measures used in sexual abusers research are discussed. Keywords: Sexual abusers; child sexual abuse; perceptions about children. 10 CAPÍTULO I INTRODUÇÃO O presente estudo teve como objetivo investigar as relações de abusadores sexuais com crianças ao longo de suas vidas, de modo a obter sua visão sobre as crianças. O abuso sexual infantil tem sido considerado um fenômeno que preocupa a saúde pública, devido à freqüência com que tem sido identificado. O dano psicológico que provoca pode perdurar ao longo da vida das vítimas (La Fond, 2005). Estima-se que a prevalência de abuso sexual na população brasileira seja de 30% (Picazio, 1998; Silva, 2002). No entanto, há uma importante lacuna em pesquisas sobre as vítimas, que é ainda maior, quando relaciona-se com dados sobre abusadores. A maioria dos estudos tem se concentrado nas vítimas, e uma das razões para isto é a dificuldade que os pesquisadores têm em acessar e manter vinculados os abusadores durante o processo de coleta de dados, sobretudo no âmbito nacional brasileiro. Temas como empatia, presença de vitimização dos próprios abusadores na infância e distorções cognitivas figuram em alguns estudos publicados. Investigar a visão de abusadores sobre as crianças poderá auxiliar na identificação de aspectos prévios ao abuso, que indicariam possíveis problemas futuros, já que crianças protagonizam os atos de abuso nos quais os perpetradores são importantes coadjuvantes (Abel, Becker, & Cunningham-Rathner, in Horley, 2000; Gannon, Polaschek, & Ward 2005). A visão que o abusador possui sobre as crianças está diretamente relacionada à que ele possui sobre ele mesmo (Horley, 2000). Este é um aspecto fundamental a ser investigado, porque ao longo da vida o ser humano relaciona-se com outras pessoas e nestas relações vai construindo uma visão de si mesmo. O próprio desenvolvimento ao longo do ciclo vital faz com que a pessoa, em suas interações apresente, mantenha e revise sua visão pessoal. No entanto, como vai agir com outras pessoas está sempre relacionado a como se percebe (Horley, 2000). Entretanto, além da focalização deste estudo sobre este aspecto individual dos abusadores, deve também ser reconhecida a possível influência dos aspectos contextuais para ocorrência do abuso. 11 1.1 Modos de Perceber a Infância: Analisando as Crenças sobre as Crianças no Contexto Social e a partir da Fala de Adultos Ariès (1975/1981), em seu livro “História Social da Criança e da Família”, descreve como as formas de conceber as crianças em uma determinada época ocasionaram também modos diferentes de lidar com elas. Este autor foi um dos primeiros a investigar as concepções de infância no mundo ocidental, através de obras de artes contendo figuras de crianças. A partir disto, descreveu, então, a visão que os ocidentais possuíam sobre as crianças e como esta modificou-se através da história. Tal análise sobre a visão social da criança ao longo da história, como afirma Finkelhor (in Phelan, 1995) traz à tona importantes variáveis sociais envolvidas no cuidado e no abuso. Antes do século XIII, “a arte medieval desconhecia ou não tentava representar a infância. É difícil crer que esta ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo” (Ariès, 1975/1981, p.50). Até o século XIII, crianças não eram concebidas como seres em desenvolvimento, pois eram retratadas como adultos em miniatura, com rostos, corpos e vestimentas típicas da fase adulta apenas em tamanho menor. Ariès salienta que as crianças da época eram vistas como possuidoras das mesmas capacidades dos adultos, diferenciando-se deles apenas pelo tamanho e força física. A partir de meados do século XIII, a criança começa a obter destaque no mundo das artes, sendo retratada com características típicas da fase infantil. Surgiram figuras de anjos que representavam crianças que eram educadas para ajudar na missa. Este tipo de figura mantém-se presente até o século XV e, entre os séculos XIV e XV, o Menino Jesus e a Virgem Maria Menina aparecem na arte, representando a infância santa e sagrada. Ariès (1975/1981) conclui que a infância retratada nas obras de artes desta época ainda não representava uma infância comum, mas uma infância pertencente apenas aos santos católicos. Nos séculos XV e XVI, crianças começam a ser retratadas em cenas cotidianas, geralmente em grupos de pessoas, que eram na maioria adultos. Para Ariès (1975/1981), este fato revela que avida diária das crianças estava misturada às das pessoas mais velhas. Ainda não havia separação cronológica entre os períodos da vida, não havendo também divisão entre as funções destinadas a adultos e crianças. As crianças participavam de todas as atividades, inclusive das de trabalho. Ariès relata ainda que os pintores davam a estes quadros de crianças um 12 certo “ar pitoresco”. Esta característica era conferida pela representação de crianças como seres “engraçadinhos” e graciosos. O gosto por tais cenas coincide com o surgimento do primeiro “sentimento” de infância, que Ariès denomina como “paparicação” (p. 67). Tal “sentimento” diz respeito à consciência sobre uma natureza particular da infância e é definido pela noção de que as crianças eram indivíduos pitorescos, que servem para o divertimento dos adultos. A “paparicação” foi identificada, por Ariès como um “sentimento” precoce, pois nesta época havia ainda o que ele chamou de “desperdício necessário”. Tal “desperdício” era a idéia de que muitas crianças deveriam ser geradas, pois apenas algumas poucas sobreviveriam devido à alta mortalidade infantil da época. A morte precoce de crianças, não era sentida como algo desolador, pois era um fato costumeiro. Esta concepção denunciava a pouca importância dada à criança, pois o fato de morrer muito cedo, não provocava importância e atenção devidas. Por conseguinte, dar atenção às crianças, mesmo que fosse para fins de diversão dos adultos, pode ser considerada uma atitude precoce. A partir do século XVII, as crianças passam a ser retratadas sozinhas nas obras de artes e é apenas no século seguinte que surge, o que Àries (1975/1981) chama de segundo “sentimento de infância”. Várias influências são apontadas como causa para o “nascimento” deste segundo “sentimento”. A introdução das idéias malthusianas de controle da natalidade na sociedade européia começava a modificar a idéia de “desperdício necessário”. Por conseguinte, a criança, a partir deste momento, poderia ser conservada e sobreviver. Desta forma, a maior parte destas crianças precisa de cuidados especiais o que fez com que os adultos prestassem mais atenção às necessidades delas. Outro aspecto que influenciou o pensamento da época sobre as crianças, a partir do século XVIII, foi a cristianização dos costumes, que consistia em propagar o catolicismo entre as pessoas leigas não ligadas diretamente ao clero. Um dos alvos deste movimento foi o modo de tratamento das crianças. Estas passam a ser percebidas, então, como seres que tinham “movimento de alma” (p. 69) e, por conseguinte, mereceriam apreço e consideração dos adultos e da sociedade. Além disso, por ocasião da cristianização dos costumes, a criança passou a ser vista como um ser inocente, pois era livre dos pecados do sexo. Algumas idéias moralistas e o surgimento das escolas para crianças também foram fortes influências para o surgimento de um segundo “sentimento de infância”. Os preceitos moralistas dos organizadores dos primeiros bancos escolares 13 tinham como alvo aqueles indivíduos que por estarem no início de suas vidas seriam mais propensos a serem educados. A idéia de que a criança é uma tábua rasa é oriunda dessa época. A partir destes preceitos, a criança seria o centro das atenções dos educadores e das famílias. Este é o germe tanto das idéias atuais sobre a infância quanto da necessidade de oferecer cuidados e educação à criança para que se torne um adulto sadio (Ariès, 1975/1981). O valor dado a educação nos dias atuais ainda está associado a questão do desenvolvimento sadio da criança, o que por sua vez, asseguraria uma adultez também saudável. A ênfase nesta revisão busca demonstrar a importância que o estudo de Ariès (1975/1981) dá aos modos de perceber as crianças ao longo da história ocidental e, conseqüentemente, de como a visão de infância foi se modificando através dos tempos. A análise de obras de arte revela que tais modos de perceber refletem-se diretamente em formas de tratamento que são dedicadas à criança. Esta, então, alcança mais e mais importância social e cultural através dos tempos e passa a ser reconhecida como um ser em desenvolvimento, que merece ser tratada de uma maneira específica. Contudo, tal abordagem da infância ao longo da história apresenta alguns aspectos que vem sendo contestados. Alguns autores criticam o presentismo de Ariès (Archad, 1993; Pollock, 1983; Santos, 1996), que definem como uma forma de conceber os fenômenos a partir de uma perspectiva do presente. Tais críticos alegam que analisar os “sentimentos de infância”, a partir de uma perspectiva do presente impossibilita a percepção de particularidades destes “sentimentos” nas épocas passadas. Segundo os críticos, quando Ariès não encontra atitudes que mostrem o moderno “sentimento” de infância, conclui que há ausência deste “sentimento” ou da consciência da natureza particular da infância. Os opositores de Ariès afirmam ainda que ele apenas constata esta ausência, sem, contudo, indicar como as crianças eram percebidas antes do século XVIII. Segundo Santos (1996), antes do século XVIII, as crianças eram vistas a partir de características de vulnerabilidade, potencialidade e pouca responsabilidade, tais como nos dias atuais. Contudo, afirma que não havia a idéia de uma ligação entre a mentalidade do adulto e da criança, sendo “a passagem entre os estágios de desenvolvimento concebida como um problema de iniciação e não de formação” (p. 82). Ou seja, não havia a idéia de que os acontecimentos ocorridos em uma determinada fase eram importantes para as posteriores. Desta forma, para os pais ou pessoas que estavam em contato com a criança, o importante era iniciá-la em certas atividades, não sendo tão essencial ajudá-la a se desenvolver nestas novas funções. 14 As fases da vida eram vistas como uma repetição de experiências, e não como uma etapa de preparação para a fase adulta. Como conseqüência desta crítica há outra, ainda mais contundente. Os críticos de Ariès alegam que ele exagerou ao afirmar que o sentimento de infância não existia antes do século XVIII. Santos (1996) destaca que a sociedade medieval já conhecia um sentimento de infância, que, contudo, era diferente daquele que se inaugurou na modernidade e que se faz presente nos dias de hoje. De qualquer forma, os estudos de Ariès foram importantes na medida em que impulsionaram várias outras pesquisas sobre a visão social de crianças ao longo da história ocidental. Além das idéias de cuidados e educação voltadas às crianças apontadas por Ariès (1975/1981), há ainda outras características, no âmbito social, associadas à fase infantil. Phelan (1995), por exemplo, salientou que há na sociedade ocidental a concepção de que a criança deve ser sempre obediente aos adultos. Este tipo de atitude perante as crianças pode ser um facilitador para as situações de abuso, já que elas dificilmente irão se opor com veemência às decisões tomadas pelos adultos, mesmo que estas sejam abusivas. As crianças também são comumente vistas como seres dependentes dos adultos em todos os sentidos (biologicamente, financeiramente e etc.). Ao conceber a criança desta maneira, não haveria, na sociedade ocidental, meios de a criança reivindicar os mais variados direitos (Kramer, 1999). Enfim, pode-se perceber que a visão atual que se tem acerca da criança se faz a partir de várias “marcas” que a colocam, ao mesmo tempo, como um indivíduo especial e como alguém que não é capaz de reivindicar os seus próprios direitos pela sua própria voz. As crianças têm este direito assegurado pela Convenção sobre os Direitos da Criança promovida pela Organização das Nações Unidas (United Nations Organization, UNO,1989). Há que se comentar ainda que os tratamentos diferenciadoscom os filhotes (no caso dos humanos, com as crianças), apesar de ser uma característica recente na história humana, já é percebida entre várias comunidades animais, inclusive entre os chimpanzés. Estes tratamentos, entre os chimpanzés são percebidos pela sucessão da época de acasalamento e de cuidado com a prole que raramente se misturam, atestando que as mães, quando seus filhos nascem, se dedicam ao cuidado integral de seus filhotes, pois estes dependem delas (Duhram, 2003). Analisar o cuidado com a prole em outras espécies é importante, pois esse aspecto atesta a ligação humana com os outros animais na cadeia evolutiva. 15 No Brasil, alguns estudos foram desenvolvidos avaliando concepções por trás das leis direcionadas para crianças (ver Londoño, 1999). Uma revisão destes aspectos também auxilia no entendimento da percepção que a sociedade tem das crianças e de como uma criança em desenvolvimento constrói a visão de si mesmo e das demais crianças ao longo de seu ciclo vital. Um levantamento no acervo bibliográfico da Faculdade de Direito na Universidade de São Paulo realizado por Londoño (1999) revelou que desde o fim do século XIX, o termo “criança” associa- se freqüentemente ao termo “menor”. Antes desse período “menor” não era comum na literatura jurídica e que a partir da década de 20, do século passado, tal termo aparece associado à criança em situação de abandono e marginalidade, além de indicar uma condição jurídica e civil e os direitos que lhe correspondiam. O surgimento desse termo representou o “nascimento” de uma nova categoria para a área jurídica (a figura do menor) e também de uma nova atitude perante algumas crianças. Antes do fim do século XIX, a palavra menor como sinônimo de criança, jovem ou adolescente era utilizada para definir os limites etários relativos à emancipação paterna ou às responsabilidades civis e criminais. Até fins da década de vinte do século passado, não havia legislação voltada mais especificamente para crianças e adolescentes no Brasil, sendo que quaisquer determinações legais estavam em outros conjuntos de leis. Nestes códigos, segundo Londoño, havia disparidade entre os critérios de idade para definir responsabilidades civis e penais. Alguns artigos poderiam definir que menores de 17 anos fossem mandados às prisões, já que era entendido, naquela época, que estes indivíduos possuíam discernimento sobre o ato criminoso. No entanto, apesar de já serem tidos como conscientes sobre seus atos criminais nesta idade, apenas aos 21 anos sairiam da tutela do pátrio poder. As diferenças atribuídas às questões de idade demarcavam que em determinados momentos as crianças podiam ser concebidas como adultas. A definição do que é ser criança, a partir da lei, era bastante indefinida. Em 1927, surge o Código de Menores baseado na Doutrina do Direito do Menor. Este código tanto definia quem eram os “menores”, bem como ditava os modos de tratamento jurídico a algumas crianças e os direitos delas, em geral as abandonadas ou infratoras, passou a ser dever da lei. Entretanto, as crianças que possuíam uma família continuavam a ter seus direitos regidos pelo código civil da época. Tais fatos revelam duas visões muito distintas sobre as crianças no Brasil: as “filhas de família” com seus direitos garantidos e os “menores”, que além da sua situação de risco, eram também vistos como perigos para a sociedade. Tal noção de 16 periculosidade associada à figura da criança baseava-se no entendimento que sem a tutela dos pais sua natureza seria descontrolada, o que acarretaria comportamentos inadequados. O Estado tinha, então, a tutela destas crianças e esta ameaça potencial exigia repressão. Em 1979, surge o segundo Código de Menores, agora, balizado pela Doutrina da Situação Irregular, distinguindo os abandonados daqueles que eram “criminosos” (Silva, 2004). Mesmo com esta distinção, estas crianças e adolescentes estavam sob a mesma insígnia da situação irregular. A imagem da criança associada a noções negativas de abandono e marginalidade pode ser um facilitador de abuso de todos os gêneros, já que elas não teriam um cuidador responsável que lutasse por seus direitos. Apenas na década de 80 do século XX, a visão sobre as crianças e os adolescentes no Brasil começou a ser modificada (pelo menos na forma da lei). Em 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA; Brasil, 1990) baseado na Doutrina da Proteção Integral, com base na Convenção sobre os Direitos da Criança (UNO, 1989), que tem direção oposta às duas anteriores (Doutrina do Direito do Menor e Doutrina da Situação Irregular), pois não preconiza a repressão ou o tratamento diferenciado entre as crianças. Para o ECA, todas as crianças são vistas como dever do Estado, da família e da sociedade, que devem zelar pelo bem estar destes indivíduos. Além disso, o ECA protege todos os direitos de todas as crianças sem distinção de raça, gênero, condição socioeconômica, etc. A criança é compreendida como um ser em desenvolvimento, sendo também um sujeito de direitos e deveres. Mesmo com o advento promissor do ECA (Brasil, 1990), como salienta Londoño (1999), o preconceito e a violência contra as crianças ainda existe. A visão sobre as crianças na sociedade brasileira tem uma história que certamente afeta o macrossistema social, as crenças e as ideologias compartilhadas pelos seus membros. A visão brasileira da criança partilha da visão ocidental, analisada na obra de Ariès (1975/1981) e outros autores (Kramer, 1999; Phelan, 1995) nas quais a criança é um ser que deve ser educado e controlado e, ao mesmo tempo, é inocente. Além disso, a criança também é vista como um indivíduo que possui direitos a serem zelados. A contextualização dos modos de ver a criança em indivíduo que possui direitos a serem zelados. A contextualização dos modos de ver a criança em nível macrossocial suscita um entendimento sobre o que é ser criança 17 e o modo de lidar com ela, mesmo levando em conta estudos que tem como fonte de dados leis e obras de arte. Algumas pesquisas que investigaram o modo como as pessoas definem o que é ser criança podem expandir a compreensão sobre a visão social da infância na sociedade, que influencia a visão pessoal, especialmente quando é abordada a violação de direitos da criança. Uma pesquisa realizada por Heilborn (1997) revelou que pais moradores de bairros periféricos do Rio de Janeiro concebiam seus filhos como indivíduos que precisam ajudar nos afazeres domésticos ou com trabalhos remunerados, como uma forma de recompensar seus cuidadores. A compensação seria uma troca tanto pelos bens materiais quanto pelos cuidados físico-emocionais fornecidos pelos pais. O trabalho doméstico no caso das meninas e o trabalho remunerado no caso dos meninos seria algo permitido e estimulado. Tal visão de que crianças precisam trabalhar para compensar os cuidados que lhe são dados é um fator importante, pois influencia tanto a entrada e a manutenção de crianças no mercado informal de trabalho quanto o tipo de parentagem que elas estão recebendo. O trabalho, enquanto atividade remunerada e aprendizado de um ofício reveste-se de uma identidade social legítima para as crianças. Os valores que embasam essa visão de mundo estão na base das escolhas que realizam em suas vidas (Heilborn, 2000). Em estudo com professores, sobre as representações sociais das fases do desenvolvimento humano revelou uma concepção de infância definida como fase de brincadeiras e dependência (Almeida & Cunha, 2003). A dependência foi explicada como um “elemento estruturante” para a representação que estes adultos possuíam sobre as crianças. Por conseguinte, a partir da “dependência”, viam as crianças como incapazes de cuidar de si mesmas e menos capazescognitivamente. A adultez apareceu como ponto ótimo do desenvolvimento para estes professores, e as demais fases como incompletas em relação a esta. A criança vista como um ser lúdico e pueril e o adulto como um ser completo pode gerar uma relação de poder e atitudes de um ser superior dirigidas a quem não tem capacidade de se responsabilizar por si mesmo, neste caso a criança. Em um outro estudo, Gaiva e Paiao (1999) investigaram qual a visão que estudantes do curso de graduação de Enfermagem possuíam sobre as crianças. O estudo foi realizado em dois momentos: antes e depois de uma disciplina sobre as concepções da criança na atualidade. A disciplina tinha como objetivo esclarecer que tais concepções seriam uma construção determinada pelas mudanças sociais e 18 históricas, mostrando também que na época as crianças são vistas como sujeitos de direitos. Os autores relatam que, no momento anterior a esta disciplina, as respostas das enfermeiras realçaram a imaturidade, e o conseqüente despreparo da criança para a vida. Seriam também seres “engraçados” e “bonitinhos”. A criança seria também um ser frágil que necessitaria da proteção e do cuidado dos adultos. A imagem da criança também foi associada à diversão e às brincadeiras, elementos estes que as distanciavam do mundo do trabalho. No segundo momento, após o término da disciplina, as características anteriores continuaram a ser relatadas. Entretanto, nessa segunda etapa, as participantes destacaram que as crianças são sujeitos de direito, que merecem um espaço no qual possam ser ouvidos. Os resultados dessa pesquisa sugerem que a concepção da criança na sociedade atual ainda é marcada por elementos da concepção da modernidade (imaturidade, etc.) e por noções mais novas que compreendem a criança como sujeitos de direitos. As diferenças entre meninos e meninas também são importantes para uma compreensão mais abrangente sobre a visão que as pessoas possuem sobre as crianças. Em uma pesquisa com pais de escolares, detectou-se que os meninos foram vistos como mais agressivos, duros, agitados, esportistas e as meninas foram vistas como mais educadas, calmas e quietas (Souza, 2000). A visão dos pais sobre as características de meninos e meninos foi estereotipada e esse tipo de visão é comum na sociedade. Esta idéia aparece no estudo de Bonamigo e Koller (1995), que comentam que em qualquer cultura, até nas primitivas, existem diferenças nas funções delegadas a homens e mulheres. Tais diferenças podem se basear em vários fatores, conforme pontuam Rosaldo e Lamphere (1979), inclusive no fato de as mulheres serem as responsáveis pelo nascimento e cuidado dos filhos. Elas dedicariam boa parte do seu tempo a essa função, exercendo funções mais passivas e domésticas. As funções femininas de cuidado com os filhos e com a casa foram tornando-se secundárias, enquanto as masculinas por serem mais dinâmicas foram conservadas. Certamente, funções adultas diferenciadas por gênero têm sua origem na infância e em como esta é percebida. A partir das funções executadas pelos dois sexos, foram se consolidando características determinadas a cada um deles. As meninas foram tidas, então, como dóceis, passivas, afetuosas, pacientes enquanto os meninos foram vistos como agressivos, fortes, competitivos e independentes (Biaggio, 1981). Há, ainda, a idéia de que a mulher por possuir todas essas características seria um ser frágil que necessitaria dos cuidados masculinos (Strey, 1998). Essas características foram se 19 constituindo como os papéis sexuais que seriam o conjunto de normas referentes às atitudes, comportamentos, valores que são concebidos como adequados para cada sexo, em uma determinada cultura, em um determinado momento (Graciano, 1978). Vinculados aos papéis sexuais estão os estereótipos sexuais, atuando como padrão fixo do que significa ser homem ou mulher. Esses estereótipos são essenciais para a sociedade, pois permitem a conservação, nesse caso, dos papéis sexuais, servindo como mediadores de um acordo implícito em um grupo social. Contudo, apesar de serem tão importantes, os estereótipos sexuais são um grupo de características fixas e pré-concebidas sobre como gêneros diferentes devem se comportar e que, muitas vezes, ditam o que é ou não permitido em seu comportamento. O que não é permitido nesse grupo de características pode ser visto como anormal, necessitando ser modificado. Os estereótipos sexuais podem ser considerados como aplicáveis a todas as idades, inclusive às crianças. É comum que esses estereótipos se associem também a questão da sexualidade: a virgindade seria valorizada para as mulheres e os comportamentos sexuais seriam mais permitidos para os homens (Giffin, 1994). Embora, a valorização da virgindade feminina esteja declinando (Taquette, 1997), tendo como reflexo a diminuição na taxa de adolescentes virgens (Heilborn & Bozon, 2001), a castidade feminina ainda é valorizada. Em contraposição, os comportamentos sexuais masculinos são mais permitidos, pos embora haja a noção de que o sexo é algo natural para a espécie humana, essa premissa se aplica mais aos homens (Giffin, 1994). O homem possuiria uma natureza sexual irrefreável o que faria com que ele tivesse dificuldade em controlar tais impulsos. Além disso, Essas diferenças na concepção sobre a sexualidade de homens e mulheres se baseiam nas formas patriarcais da organização da sociedade (Narvaz, 2005). Outras questões são relevantes para um melhor entendimento da visão sobre as crianças. A nova concepção da infância e subdivisão das idades do ciclo vital, antes inexistente na sociedade ocidental foram fatores importantes na “invenção” do mais novo período da vida: a adolescência (Salles, 2005). As crianças sendo concebidas como seres completamente distintos e dependentes dos adultos necessitariam de uma fase de preparação para a chegada a adultez. A adolescência surgiu, então, como esta fase de preparo para a vida adulta. Salles comenta que a idéia da fase adulta como meta é inerente a idéia de desenvolvimento humano, pois a infância a adolescência seriam etapas a serem ultrapassadas para que o desenvolvimento pleno (adultez) se estabeleça. A partir dessa separação, a definição da infância e da adolescência só seria possível pela contraposição às 20 características do mundo adulto, o que determina uma posição adultocêntrica em relação às outras fases do desenvolvimento. Uma importante discussão feita por Salles diz respeito às mudanças que têm ocasionado uma certa dificuldade em demarcar os limites entre os ciclos da vida, pois há uma “uma desconexão nas diferentes dimensões que definem a entrada na vida adulta” (Salles, 2005, p.38). Assim, o processo de ingresso na adultez agora é feito com outros parâmetros distintos daqueles originados na modernidade. Os critérios usados para a entrada na adultez a partir da era moderna se baseavam no modelo clássico de socialização. Este modelo fundamenta-se na idéia de desigualdade entre adultos, crianças e adolescentes, no qual o adulto possuía autoridade e sabedoria superiores as do público infanto-juvenil. O acesso a informação pelas crianças adolescentes que faz com que este público entre em contato com conteúdos de violência, sexo e conflitos íntimos, e a maior autonomia dada as crianças e adolescentes, por exemplo, questionam esse modelo de socialização. Se antes o acesso a informações e os comportamentos eram controlados pelos adultos de acordo com a faixa etária de crianças e jovens, na atualidade é dado a adolescentes e criança o direito de questionar se o comportamento ditado pelo adulto é o mais adequado. Além disso, o público infanto-juvenil entra em contato com conteúdos que não são mais de posse exclusiva dos adultos. A partir dessas e de outrasmudanças, a organização das idades da vida torna-se mais complexa, pois ela não se baseia mais na hierarquia entre as idades. Ou seja, agora não se pode mais afirmar que certos comportamentos são permitidos apenas na infância, apenas na adolescência ou apenas na adultez. Assim, os critérios cronológicos, apesar de ainda válidos, não seriam mais uma dimensão básica para delimitar os ciclos vitais. Essas modificações na sociedade, além de desordenar as idades da vida, questionam também o adultocentrismo (Salles, 2005). A infância não se caracterizaria apenas pela oposição a adultez, mas também à adolescência. Hall (in Newcombe, 1999) inaugurou, na ciência psicológica, a idéia de que a adolescência seria um momento de crise e de conflitos. Essa fase seria atravessada pela descoberta da sexualidade, pela perda dos referenciais paternos, entre outros. Assim, ao contrário da infância tida como um momento destinado às brincadeiras, felicidade, ausência de problemas, etc. a adolescência seria um período turbulento. Tais idéias de crise e estresse da adolescência a muito ultrapassaram os saberes da psicologia. Atualmente, tais concepções estão distribuídas pelo senso comum, sendo corriqueiro, portanto, que as pessoas definam 21 os adolescentes, por exemplo, a parir da rebeldia e da revolta que naturais dessa época da vida (César, 1998). Após rever os estudos descritos até aqui, pode-se notar que a visão de criança na sociedade atual, ainda guarda elementos da modernidade (inocência, imaturidade, etc.), mas também começa a ter outros contornos que impulsionam uma maior autonomia delas. Os modos de ver as crianças podem ser partilhados entre pessoas de uma dada sociedade, e dependem de contextos sociais e culturais. A visão sobre as crianças que é gerada tem forte influência sobre os hábitos, atitudes e crenças das pessoas no cotidiano e sobre a percepção de si mesmas. Como afirma Salles (2005): “Há uma correspondência entre a concepção de infância presente em uma sociedade, as trajetórias de desenvolvimento infantil, as estratégias dos pais para cuidar de seus filhos e a organização do ambiente familiar e escolar” (p. 33). Muitas dessas crenças podem ser adequadas, uma vez que revelam cuidados e proteção. Entretanto, outras podem ser fragilizadoras, por não respeitarem os limites e as potencialidades que crianças e adolescentes apresentam. 1.2 Abuso Sexual contra Crianças: Números, Conceitos e Definições Até 1997, não havia estatística sistematizada sobre o abuso sexual contra crianças e adolescente no Brasil (Safiotti, 1997). No entanto, esta dificuldade em ter estatísticas sobre os casos de abuso ocorre também em outros países. Nos Estados Unidos, Larson, Terman, Gomby, Quinn e Behrman (1994) relatam que os órgãos oficiais oferecem informações incompletas tanto sobre a incidência (número de casos relatados a cada ano) quanto sobre a prevalência (número de pessoas na população como um todo que já sofreu um determinado agravo de saúde, neste caso, o abuso sexual). Finkelhor (1994) examinou 19 artigos sobre abuso nos quais os números sobre a prevalência variavam de 3 a 62% entre as vítimas do sexo feminino e de 3 a 16% para as do sexo masculino. O alcance dos casos de violência tanto física como sexual é difícil de ser estimado, devido à subnotificação e à carência de amostras que representem a população de vítimas (Rich, Gidcyz, Warkentin, Loh, & Weiland, 2005). Por conseguinte, a falta de dados uniformes é obstáculo tanto para a realização de pesquisas que se aproximem da realidade quanto para formulação de políticas nacionais voltadas à resolução deste problema. Há, então, apenas estimativas para a prevalência dos casos de abuso. Finkelhor, por exemplo, estima que até 20% das mulheres, e entre cinco a 10% dos homens norte- americanos já tenham sofrido alguma espécie de abuso sexual. No Brasil, é 22 estimado que o abuso sexual contra crianças e adolescentes atinja mais de 30% da população (Picazio, 1998; Silva, 2002). Alguns números sobre as situações de abuso em geral são importantes para contextualização do estudo. Um levantamento realizado no Ambulatório de Maus Tratos de Caxias do Sul/RS, sobre abusos sexuais, entre 1998 e 1999, revelou o predomínio de casos em vítimas do sexo feminino (77%; na maioria em crianças de seis a nove anos de idade), sendo o pai responsável pela maioria dos abusos (De Lorenzi, Pontalti, & Flech, 2001). Em Porto Alegre, uma análise realizada em 71 processos jurídicos do Ministério Público do Rio Grande do Sul, no período entre 1992 e 1998, por violência sexual (Habigzang, Azevedo, Koller, & Machado, 2005) apontou a maioria das vítimas do sexo feminino (80,9%), com idades entre cinco e dez anos (36,2%). Os pais foram os agressores em 79% dos casos (40), seguidos pelos padrastos (16) das vítimas. A violência sexual foi denunciada pela mãe da vítima em 37,6% dos casos, pela própria vítima em 29% dos casos, por outros parentes, em 15,1%, e, por instituições, tais como, escola, hospital e departamento de polícia em 6,5% dos casos. Entretanto, em 61,7% dos casos, alguém informou que já sabia da situação abusiva e não denunciou. Estes dados chamam a atenção sobre a mobilização da sociedade contra a posse e o uso da criança por aqueles que devem ser unicamente os responsáveis por ela. Na atualidade, uma atitude contra estas idéias pode influenciar positivamente no desenvolvimento de uma criança (Koller & De Antoni, 2004). Para a compreensão do que é considerado abuso sexual será fornecida a definição usada pela Organização Mundial da Saúde (World Health Organization - WHO, 1999): Abuso sexual infantil é todo envolvimento de uma criança em uma atividade sexual na qual não compreende completamente, já que não está preparada em termos de seu desenvolvimento. Não entendendo a situação, a criança, por conseguinte, torna-se incapaz de informar seu consentimento. São também aqueles atos que violam leis ou tabus sociais em uma determinada sociedade. O abuso sexual infantil é evidenciado pela atividade entre uma criança com um adulto ou entre uma criança com outra criança ou adolescente que pela idade ou nível de desenvolvimento está em uma relação de responsabilidade, confiança ou poder com a criança abusada. É qualquer ato que pretende gratificar ou satisfazer as necessidades sexuais de outra pessoa, incluindo indução ou coerção de uma criança para engajar-se em qualquer atividade sexual ilegal. Pode incluir também práticas com caráter de exploração, como uso de crianças em prostituição, o uso de crianças em atividades e materiais pornográficos, assim como quaisquer outras práticas sexuais ilegais. 23 A definição fornecida pela WHO é ampla, já que não define que atos específicos (exibicionismo, toques ou intercurso sexual) podem ser considerados como abuso. A definição, não esclarece se todos estes atos, ou apenas alguns deles podem ser tidos como abuso sexual. Por conseguinte, para fins deste estudo serão considerados como abuso atos de exibicionismo, toques, assédio, exposição à pornografia, intercurso sexual, e toda e qualquer atividade sexual entre um adulto e uma criança. Neste estudo optou-se por esta definição, pois ela não limita que atos específicos possam ser abuso. Esta amplitude permite que se considere, como abuso sexual, mesmo aqueles atos tidos como menos graves, tal como a exibição sexual na presença de crianças. Qualquer ato sexual entre um adulto e uma criança reconhecido como abuso, mesmo que não haja intercurso sexual, é levar em conta que mesmo os menos graves podem acarretar uma carga de sofrimento para a criança, havendo graves danos psicológicos para a vítima. Koller e De Antoni (2004) chamam a atenção para os efeitos do abuso sobre o desenvolvimento, pontuando que questõesrelacionadas à freqüência, severidade, intensidade e duração dos episódios podem ter efeitos psicológicos variados de uma criança para outra, mas que certamente todos influenciam na construção da identidade exposta ao risco. O abuso sexual é considerado grave, em qualquer de suas nuances, porque como afirmam Amazarray e Koller (1998), não há nele só a violência sexual, mas também abuso físico e emocional. A definição de abuso sexual contra criança pode ser diferenciada de incesto ou pedofilia, embora estas palavras sejam comumente usadas como sinônimos. Nem todo ato de abuso sexual contra criança pode ser considerado incestuoso e nem todo indivíduo que comete tal ato pode ser diagnosticado como pedófilo. O incesto pode ser caracterizado como a união entre parentes com qualquer laço de parentesco podendo tal laço ser de consangüinidade ou adoção (Cohen, 1993). Por conseguinte, o incesto pode ocorrer entre parentes da mesma idade (entre irmãos, por exemplo) sem necessariamente envolver um adulto e uma criança ou um adolescente que mantenha uma relação de confiança, cuidado ou responsabilidade. Portanto, nem todos atos incestuosos podem ser considerados atos sexuais abusivos. A pedofilia é caracterizada como uma patologia sexual inserida no grupo das parafilias, que são patologias psiquiátricas caracterizadas por fantasias sexuais recorrentes e intensas com pessoas “não-autorizadas”, animais ou objetos. O indivíduo portador deste tipo de distúrbio experimenta fantasias intensas e excitantes e impulsos sexuais cíclicos envolvendo crianças. Além disso, o portador 24 de pedofilia pode chegar a manter atividades de caráter sexual com crianças pré- púberes (de zero aos nove anos). Para ser classificado como pedófilo, o indivíduo precisa ter pelo menos 16 anos e ter uma diferença de idade em relação à vítima de pelo menos cinco anos, critério esse estabelecido pelo Manual diagnóstico e Estatístico de Trantronos Mentais (American Psychiatric Association, 1994). Pessoas podem ter fantasias sexuais envolvendo crianças ou se sentirem excitados por elas, sem, entretanto, chegar a cometer o ato de abuso propriamente dito. As características atribuídas aos pedófilos dizem respeito tanto às tendências psicológicas quanto aos comportamentos sexuais propriamente ditos entre adultos e crianças. Assim, indivíduos portadores desse transtorno podem apresentar apenas os desejos e fantasias com crianças, sem se tornarem abusadores. O papel dos abusadores tem sido explicado por diversas teorias, que se ocupam, principalmente, em definir as motivações para tais atos (ver www.secasa.com.au). Uma breve compilação de diferentes teorias apresentadas neste site, embora de forma superficial, demonstra que estas abordagens podem fornecer um panorama das formas como o conhecimento nesta área tem sido produzido. Para teoria psicanalítica, por exemplo, algumas situações vivenciadas ainda na infância, tais como o Complexo de Édipo e a inabilidade para ultrapassar esta etapa, bem como outros eventos traumáticos podem explicar o comportamento abusivo. O conflito de Édipo se caracteriza pela saída de uma fase na qual o objeto da criança deixa de ser apenas a mãe, pois há percepção de que existe um terceiro (pai), que compete com ela pela atenção materna. Esse conflito ocorreria entre os três e os cinco anos e seria vital para a estruturação da vida psíquica do indivíduo, pois é nele que se originam o superego, com a interiorização de normas e valores (Gabel, 1997). A falha neste conflito ocorre quando os pais da criança não estão suficientemente amadurecidos, e satisfazem desejos dela, erotizando essa relação (Almeida, 2003). O comportamento sexualmente desviante poderia resultar desta relação erotizada entre pais e filhos, gerando ansiedade de castração, o que por sua vez, acarretaria sentimentos de inadequação sexual e necessidade de ser sexualmente dominante. Desta forma, os abusadores seriam, em geral, perturbados e perversos em conseqüência desse desenvolvimento psicossexual pobre (www.secasa.com.au). Uma limitação desta teoria é a sua focalização apenas nas dificuldades do desenvolvimento individual, principalmente nos aspectos psicopatológicos vinculados ao perpetrador do abuso, desconsiderando os fatores sociais e culturais. A partir da teoria da precipitação da vítima, com origem no 25 início do século XX, abusadores e vítimas agem segundo uma mesma intenção ou objetivo, ou seja, a vítima pode apresentar gestos, olhares, palavras que incentivam o agressor a cometer o ato abusivo. Portanto, tais comportamentos produzidos pelas vítimas seriam interpretados como formas de consentimento para o abuso. A atividade sexual entre adultos e crianças (na maioria das vezes entre uma criança do sexo feminino e um adulto do sexo masculino) é vista como um desejo inconsciente da criança. Seria um “desejo anormal da criança de obter satisfação sexual, e consequentemente de padecer de traumas sexuais” (Abrahan in Intebi, 1998). As crianças teriam um desejo semelhante aos das mulheres que sofrem violência física por parte de seus parceiros, pois possuem um intuito masoquista nessas relações sexuais com adultos (Intebi, 1998). Alguns estudos baseados nessa teoria, datados da segunda metade do século XX, separavam as vítimas de abuso em dois grupos: as acidentais e as participantes. As acidentais eram aquelas que eram abusadas apenas uma única vez por um adulto desconhecido. Já as participantes, eram aquelas que mantinham uma “relação” duradoura com um adulto conhecido. A manutenção dessa “relação” pressupunha, assim, uma participação da vítima, pois, a repetição dos episódios só seria possível mediante o constimento dela (Rogers in Intebi, 1998). Outros estudos, baseados nessa teoria, classificavam os abusadores como seres amáveis e inofensivos, enquanto as crianças eram vistas como perversas e manipuladores (Intebi). Apesar de essa teoria não ser usada atualmente, Intebi afirma que ainda em 1984 ainda havia estudos baseados nela. Esse tipo de teoria é perigosa, pois pode ser usado como justificativa para os atos de violência cometidos pelo abusadores. A responsabilização apenas da vítima é uma forte limitação desta teoria, pois propicia uma visão de igualdade de condições entre elas e os seus abusadores, embora o que ocorre seja uma situação clara de coação e violência. A família tem sido descrita pela teoria da disfunção da família, no caso de abuso, como disfuncional, pois revela um sintoma de desestruturação pela qual todos os membros são responsáveis. Baseada nas teorizações da área sistêmica, o foco de análise sobre a situação abusiva centra-se na dinâmica que se estabelece entre os membros do grupo familiar. Segundo esta teoria, em famílias abusivas sexualmente, as barreiras intergeracionais foram rompidas em algumas esferas das relações familiares, ocasionando uma inversão de papéis entre pais e filhos. Com esta inversão, filhos e filhas podem atuar ao mesmo tempo como parceiros de seus progenitores, e como filhos. Essa ambigüidade é gerada quando, ao procurar cuidados emocionais dos pais, as crianças recebem carinhos sexualizados, 26 caracterizando, portanto, a situação de abuso (Almeida, 2003). Devido a confusão entre carinhos emocionais e gestos sexuais, as vítimas do abuso podem apresentar, posteriormente, um comportamento sexualizado junto aos seus filhos, quando na realidade desejam expressar cuidado emocional. Esse fator seria importante na manutenção do abuso através das gerações de uma mesma família (Furniss, 1993). A mãe teria um papel central nestes casos, pois se considera que o abuso acontece por uma ausência dela no que diz respeito à satisfação de necessidades emocionais de seus filhos, tornando-os mais vulneráveis ao abuso. Disfunções sexuaise comportamentos depressivos da mãe podem desencadear comportamentos abusivos nos quais os filhos tentam satisfazer suas necessidades emocionais, buscando a figura do pai. O pai que não é satisfeito pela esposa vai, então em busca da filha, para satisfazer-se sexualmente. O abusador (geralmente o pai) é tido por essa teoria como alguém que está no mesmo nível de maturidade emocional da criança (Furniss, 1993). Os autores da teoria sistêmica consideram também que há fatores de personalidade individuais que contribuem para etiologia dos abusos sexuais nas famílias. Contudo, os motivos pessoais para início das situações abusivas não são os fatores mais importantes para esta teoria. O foco de análise recai sobre como estas motivações individuais atreladas a de outros membros da família interagem para criar as situações de abuso (Almeida, 2003). Esta teoria possui claras limitações, pois não aponta o pai como o principal responsável pelo abuso sexual, culpabilizando a mãe e todos os membros da família pelo início e manutenção dos atos de violência sexual contra crianças. O foco de teorias psicológicas desloca-se da vítima ou da família para a situação de abuso sexual propriamente dita. Na análise desta situação dois pontos são centrais: a identificação do perfil psicológico do agressor e o conhecimento das motivações para o abuso. Algumas tendências psicológicas do agressor são destacadas, tais como: introversão social, sentimentos de inadequação da masculinidade, necessidade de exercer graus elevados de dominação e controle nas relações familiares, além de responsabilizar a vítima pelo acontecimento do ato. Há, ainda, outros fatores importantes tais como tendências criminosas, doenças mentais, alcoolismo e baixo controle interno, citados como comuns em ocorrências de abuso. Pode-se afirmar que a maioria dos estudos sobre abusadores concentra-se neste tipo explicação, pois uma parcela significativa deles tem como objetivo investigar, por exemplo, a personalidade ou as patologias que estes indivíduos apresentam. Além disso, outros estudos se dirigem para a análise das variáveis desenvolvimentais (tais como um ambiente violento na infância) que 27 podem contribuir para o surgimento de problemas psicológicos associados ao cometimento de atos de abuso sexual contra crianças. Um exemplo de teoria psicológica é a cognitivo-comportamental. O trauma tem papel central nessa área. O trauma ocorreria, quando há a exposição a um evento avassalador que compromete as estratégias de coping e de defesa da pessoa. Quando esses eventos são percebidos como incontroláveis, eles podem ser uma fonte de trauma psíquico. Assim, as terapias derivadas desse pressuposto estariam preocupadas com a resolução desse trauma e dos efeitos negativos gerados no comportamento (Almeida, 2003). Vários estudos (ver Widon & Ames, 1994) analisam a prevalência de abuso de todos os tipos em abusadores sexuais, realçando que estes se configurariam como traumas que influenciariam o surgimento de estratégias comportamentais disfuncionais, entre elas o abuso sexual contra crianças. A teoria cognitivo-comportamental pode ser criticada na medida em que associada ao trauma, pode estar idéia de que as vítimas de abuso sexual são “danificadas” de maneira irrecuperável (Almeida, 2003). Esse tipo de prerrogativa pode dificultar a crença de que o tratamento pode ser realmente eficaz para a vítima. As teorias feministas ganharam destaque nos 80 e 90 após a constatação de que a maioria das vítimas de abuso sexual era de meninas e que a maioria dos agressores era de homens adultos (Almeida, 2003). Para esta teoria, o abuso sexual ocorre, sobretudo em um contexto social de desigualdades, no qual os homens (potenciais agressores) teriam direitos de explorar mulheres e crianças. As meninas (por serem do sexo feminino e crianças ao mesmo tempo) seriam as vítimas preferenciais para este tipo de violência (Almeida, 2003). Nesta abordagem não são considerados motivos psicológicos sendo citados apenas modelos sociais (ver www.secasa.com.br). As críticas a este modelo surgem a partir do momento em que houve um aumento nas denúncias de abuso sexual contra mulheres. Em decorrência disto, a prerrogativa fundamental de que a relação desigual entre homens e mulheres seria a variável mais importante para a ocorrência dos atos de abuso passa a ser questionada (Almeida, 2003). A teoria de quatro pré-circunstâncias baseia-se nas idéias psicológicas e sociológicas de Finkelhor (in Krivacska 1989). De acordo com esta teoria, haveria uma interação de fatores para que o abuso ocorra. Primeiro, o perpetrador precisaria ter motivações para cometer o ato de abuso. Segundo, ele precisaria superar inibições internas para executar o ato. Terceiro, o abusador necessitaria transpor as barreiras externas para chegar a abusar. Finalmente, ele deveria ultrapassar a 28 resistência da criança (quarta pré-circunstância). A motivação se relaciona aos fatores pessoais do abusador envolvidos no início dos atos de abuso. As inibições internas dizem respeito tanto à conscientização de que o contato sexual com crianças é inadequado quanto a habilidade de controlar tais impulsos sexuais dirigidos a elas. As inibições externas seriam as estratégias ambientais que impediriam os atos de abuso. A presença de outra pessoa que poderia testemunhar o ato e o pouco tempo privativo de um abusador com uma criança figuram como estratégias possíveis na inibição do abuso sexual infantil. Contudo, essas estratégias só são efetivas quando percebidas pelos abusadores como barreiras reais para o cometimento do ato. Em um número signitificativo de oportunidades, os abusadores racionalizam essas dificuldades, cometendo os abusos mesmo quando elas estão presentes. Assim, não é necessário apenas aumentar os impedimentos externos ao abuso, mas fazer com que os potenciais abusadores os percebam como ameaçadores aos seus intentos contra as crianças. Após ultrapassar esses fatores inibitórios, o abusador precisa vencer as resistências da criança. Estas resistências podem ser incrementadas, por exemplo, por fortes laços emocionais entre ela e a família que a deixam segura, estimulando-a revelar os atos ou as tentativas de abuso. Contudo, vale ressaltar que a resistência da criança não pode ser encarada como uma responsabilização dela, pois esse fator dependerá basicamente de como o entorno se organiza para lhe apoiar. Um aspecto importante da teoria de Finkelhor (in Krivacska) é que esses quatro aspectos ocorrem sequencialmente. Assim, se o primeiro não está disponível, os outros não ocorrerão. Esse modelo pode ser entendido como um continuum no qual de um lado está a motivação para o ato de abuso e do outro os três fatores restantes que representariam as inibições. Assim, para que o abuso ocorra, a motivação deveria ser mais intensa que a combinação das amplitudes dos fatores inibitórios. A teoria de Finkelhor não explica como ocorre o desenvolvimento das motivações sexuais desviantes do abusador (Krivacska, 1989). Esta pode ser vista como a principal crítica da teoria das quatro pré-circunstâncias, pois ela não explica os fatores primários nos quais se poderia concentrar a prevenção. Entretanto, a teoria de Finkelhor é positiva na medida em que fornece uma visão mais contextual sobre o abuso. Azevedo e Guerra (1989) acrescentam três teorias às já mencionadas, buscando o entendimento do fenômeno do abuso sexual impetrado por adultos contra crianças. A teoria psicodinâmica propõe que o comportamento sexual agressivo seja resultado de traços de personalidade patológicos do agressor. É 29 necessário, entretanto, atentar para o fato de que os casos que apresentam perturbações graves somam apenas 10% do total de registros dos casos de abuso sexual.A teoria da aprendizagem social que tem como base o pressuposto de que o comportamento violento é aprendido, socializado e, portanto, repassado. Já a teoria sócio-psicológica considera a violência contra criança como resultado de uma multiplicidade de fatores, tais como posição social, valores pessoais, traços de personalidade, problemas neurológicos, stress, uso de drogas, etc. (Azevedo & Guerra, 1999). Outras teorias, em sua tentativa de explicar a situação de abuso sexual, provocam o aparecimento de algumas explicações que podem legitimar preconceitos e mitos. Burt (1980) afirma que há algumas crenças quanto ao estupro que são apoiados socialmente, tais como “as mulheres podem resistir ao estupro, e se isso acontece é por que eles querem”, “mulheres pedem pelo estupro” (p.217), entre outras. Em sua análise, aponta que muitos casos de estupro nos Estados Unidos são julgados de acordo com tais idéias, ocasionando a responsabilização das vítimas e salvando seus algozes das penas legais. Um estudo com adolescentes na África do Sul revelaram que tanto os jovens do sexo masculino quanto os do sexo feminino entrevistados por eles afirmaram que os homens possuem impulsos sexuais incontroláveis e que cabe às mulheres o controle de tais impulsos (Petersen, Bhana, & MacKay, 2005). Como pondera Marques (2005), apesar de haver diversas explicações sobre as causas do abuso sexual, estas sempre esbarrarão em algumas limitações, já que o tema do abuso é complexo por sua multideterminação com as teorias explicando apenas parte das variáveis envolvidas. Além disso, cada situação de abuso é específica e as explicações que servem para um caso podem não ser úteis para outros. Portanto, entender os abusadores sexuais e alguns aspectos que os constituem pode ser um esforço válido na direção da compreensão do fenômeno, além de propiciar informações para ações interventivas. 1.3 Abusadores Sexuais: Classificações e Características Uma revisão de literatura, com consulta ao Index-Psi-Periódicos (www.bvs- psi.org.br) e ao PsycInfo (http://www.apa.org/psycinfo/), revela a escassez de estudos, especialmente os brasileiros, realizados sobre abusadores sexuais. Alguns autores têm tentado classificar abusadores em grupos segundo semelhanças psicológicas e comportamentais (Azevedo & Guerra, 1989; Gijseghem, 1980; 30 Marcet, 2005; Smith & Sounders 1995). Embora, como reiteram Cohen (1993) e Marques (2005), ainda seja também escassa a literatura sobre tais classificações. Classificar abusadores, a partir de algumas características, envolve uma questão ética conforme salientam Cohen e Gobetti (2002). O tema do abuso sexual de adultos contra crianças e adolescentes suscita opiniões indignadas, que rotulam os indivíduos que cometem os atos de abuso, geralmente como “seres irracionais” desprovidos de qualquer semelhança com outros seres humanos. É necessário ter clareza, contudo, que estes indivíduos são seres humanos que portam patologias e precisam de tratamento.) Dirigir um olhar de compreensão e empatia ao abusador não significa que se deseja isentá-lo de sua responsabilidade perante o ato de abuso. Os estudos apresentados a seguir, portanto, não buscam atribuir um rótulo ao abusador sexual. Ao contrário, procuram fornecer um olhar compreensivo aos abusadores (Furniss, 1993). Em um estudo, com base em mais de noventa casos de abuso sexual, Gijseghem (1980), um perito canadense e pesquisador com referencial na psicologia jurídica agrupou os abusadores em oito categorias. Seu estudo referencial viabilizou a verificação do tipo de comportamento do abusador, as possibilidades de recidiva e de tratamento. A classificação usada por este autor é pouco prática, baseada fundamentalmente em características internas do abusador (tais como seus conflitos internos, seu complexo narcísico, ou sua vontade de superioridade) sendo de difícil identificação e operacionalização em termos de pesquisa. Ainda relatando as características dos abusadores, Azevedo e Guerra (1999) diferenciam dois tipos de abusador sexual. O primeiro tipo é chamado agressor sexual situacional. Há quatro subtipos dentro desse primeiro. O primeiro subtipo é denominado regredido. Estes indivíduos possuem como característica comum dificuldades para enfrentar desafios e sua motivação para a prática do abuso se dá pela substituição de parceiros sexuais adultos por crianças. Além disso, o critério para escolha das vítimas é a disponibilidade e o método de abordagem das crianças geralmente é coercitivo. Possivelmente estes indivíduos colecionam pornografia infantil. Um segundo subtipo dos agressores sexuais situacionais é o moralmente indiscriminado. Este indivíduo abusa de pessoas em geral. Por conseguinte, ele abusa sexualmente de crianças, pois o abuso torna-se algo comum para ele. É oportunista na escolha de suas vítimas, aproveitando-se de sua vulnerabilidade. Age coagindo, manipulando ou tentando sua vítima. É ainda sadomasoquista e coleciona 31 revistas de detetive. O terceiro subtipo é o sexualmente indiscriminado. Possuem como característica básica uma ampla experimentação sexual. A motivação para o abuso sexual infantil é o tédio e ele escolhe vítimas mais jovens e de aparência diferente. É altamente provável que colecione pornografia de natureza variada. Além disso, aborda a vítima se relacionando com elas em outras atividades anteriores (brincadeiras, por exemplo). O inadequado é o quarto subtipo. Tal indivíduo possui como característica básica demonstrar-se inadequado socialmente. A insegurança e a curiosidade são os motivos para o abuso sexual infantil. Estes escolhem vítimas que não pareçam ameaçadoras, abordando-as, explorando as vantagens (tamanho, por exemplo) que possuem em relação a elas (Azevedo & Guerra, 1999). Um segundo tipo de abusador sexual infantil apontado por Azevedo e Guerra (1999) é o agressor sexual infantil preferencial. Os três subtipos inseridos nesta classificação compartilham as características de preferência sexual por crianças e coleção de pornografia infantil. O primeiro subtipo é o sedutor. A motivação para abusar de crianças é a identificação com as características infantis. Eles, geralmente, escolhem as vítimas tendo como critério idade e sexo, abordando- as através de um processo de sedução. O segundo subtipo é denominado introvertido. Eles se relacionam sexualmente com crianças por medo de comunicação com as pessoas de sua idade. Escolhem crianças jovens e estranhas e seu modo de operação para o abuso são contatos sexuais não-verbais. O terceiro e último subtipo é o sádico. Este indivíduo é motivado pela necessidade de infligir dor às suas vítimas. Operam com as vítimas através de várias tentativas ou força. Estes indivíduos escolhem suas vítimas por idade e sexo. A caracterização feita por Azevedo e Guerra é bastante útil para classificar abusadores, segundo suas práticas abusivas e não de acordo com características de personalidade internas e abstratas. Contudo, as classificações postas por estas autoras não podem ser vistas como definitivas, pois corre-se o risco de reduzir as características dos abusadores apenas a algumas categorias. Outros indivíduos podem agir de maneira distinta das descritas, entretanto, eles continuarão a ser abusadores pelo fato de terem cometido violência sexual contra crianças. Outros estudiosos, apesar de não classificarem os abusadores em grupos, identificaram uma série de patologias que podem estar associadas aos casos de abuso. Walsh, MacMillan e Jamieson (2001) investigaram a associação entre transtornos psiquiátricos de pais e o cometimento de vários tipos de abuso. Esta 32 investigação foi conduzida junto a 8548 homens e mulheres que responderam se haviam vivido algum tipo de abuso durante a infância.Os participantes também responderam se seus pais sofreram com algum tipo de transtorno mental durante suas vidas. Apesar de os dados não serem fornecidos pelos pais abusivos, os resultados apresentados são importantes, porque associam algumas doenças psiquiátricas a certos tipos de abuso. Foi encontrada uma alta correlação entre doenças como depressão, mania e esquizofrenia e abuso físico e sexual contra crianças. Esses três tipos de doenças apresentam índices semelhantes de correlação com as situações de abuso. Contudo, quando foram identificados comportamentos anti-sociais houve uma maior correlação com a ocorrência de abusos físicos e sexuais do que quando foi detectada a presença dos outros tipos de doenças citados. Portanto, a presença de comportamentos anti-sociais sugere um maior risco para estes tipos de abuso. Os autores fazem uma ressalva quanto a estes achados, já que nem em todos os questionários se pôde identificar quem foram os agressores. Ou seja, não ficou claro neste estudo se foram os pais dos participantes da pesquisa que cometeram os atos de abuso. A presença de transtorno, desta forma, não significa que os pais sejam abusivos. Contudo, os sintomas destas patologias podem acarretar alguns comportamentos negligentes por parte dos pais, o que pode deixar seus filhos mais vulneráveis à violência de outros adultos. Corroborando o estudo de Walsh et al. (2001), um estudo realizado com abusadores incestuosos notou que em um quarto dos participantes havia algum distúrbio de personalidade, com destaque para o Transtorno de Personalidade Anti- Social (Trepper, Niedner, Mika, & Barret, 1996). Um estudo realizado com pais incestuosos e mães não-abusivas procurou investigar particularidades entre abusadores foi o de Smith e Saunders (1995). Os abusadores foram definidos tanto pelas mães das crianças vítimas quanto pelos pais abusadores de um lado como dominantes, abusivos e autoritários e por outro lado como dependentes e passivos. Esta diferença pode ser explicada pela ausência de uniformidade entre as características dos abusadores evidenciada por vários estudos obtidos na literatura. Uma parcela significativa de abusadores sofre de patologias que são classificadas como parafilias (Becker, 1994). As parafilias são patologias psiquiátricas caracterizadas por fantasias sexuais recorrentes e intensas com pessoas “não-autorizadas”, animais ou objetos. Para que uma pessoa seja diagnosticada com parafilia, é necessário também que ele aja segundo as suas fantasias ou que estas tenham uma natureza intrusiva. No caso dos abusadores, reitera-se que a pedofilia é 33 o tipo de parafilia diagnosticada mais comumente. Contudo, outras doenças psiquiátricas do grupo deste mesmo grupo podem estar presentes. No estudo realizado com três abusadores sexuais incestuosos, Marques (2005) notou certas similaridades em seus funcionamentos. Entretanto, destaca que apesar destas semelhanças não é possível deixar de observar a singularidade com que cada um dos participantes agia, tanto em termos do abuso sexual como em outros aspectos de suas vidas. A falta de uniformidade entre classificações de abusadores pode, em parte, dificultar as pesquisas que busquem algum tipo de categorização, já que não há um critério único a ser seguido. No Brasil, o perfil do abusador será considerado o perfil fornecido, com base em 1565 denúncias feitas entre os anos de 2000 e 2003, pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA) disponíveis on-line no ano de 2003 (www.abrapia.org.br). As denúncias foram realizadas através de telefonemas e revelaram o seguinte perfil: 90% do abusadores são do sexo masculino; 58% estão na faixa etária que se estende desde os 18 aos 45 anos; e 21% tinham mais de 45 anos, 59% possuíam vínculo biológico ou de responsabilidade com a vítima, enquanto 41% não possuíam tal vínculo. Dados dos Estados Unidos que corroboram este perfil. Do total de abusos cometidos naquele país, 96% foi praticado por homens. Um outro dado importante mostrado no estudo americano é que em grande parte dos casos as vítimas conhecem seus agressores (La Fond, 2005). Esta informação também está de acordo com o perfil traçado pela ABRAPIA, já que na medida em que um pouco mais da metade dos agressores tem vínculo com a vítima, está claro que no Brasil parte expressiva destas vítimas também conhece seus agressores. Considerando este perfil do abusador sexual no Brasil, na próxima seção serão descritos alguns estudos que versam sobre a visão que eles possuem sobre crianças. Serão apresentadas também algumas teorias que tentam explicar o modo como os abusadores vêem as crianças. 1.4 Abusadores Sexuais e sua Visão sobre as Crianças As cognições sobre o abuso tem sido um tema de interesse entre os pesquisadores que se concentram em estudar os abusadores. Uma coletânea de estudos apresentada a seguir tangenciam tais cognições e a visão de infância, permitindo algumas inferências sobre características e crenças que abusadores possuem sobre as crianças. Ward e Keenan (1999) afirmam que investigar como os 34 abusadores pensam e percebem o mundo a sua volta é determinante para compreender o modo como eles agem. Os abusadores parecem organizar três tipos de teorias implícitas sobre o abuso. A primeira delas abrange as crenças sobre as pessoas e o mundo em geral. O segundo tipo de teoria diz respeito àquelas crenças intermediárias que categorizam os elementos em geral, como por exemplo, os significados atribuídos às crianças. O terceiro e último tipo de teoria implícita está ligado àquelas crenças que o abusador possui sobre objetos ou pessoas específicos. Neste nível estão inclusas as teorias implícitas sobre uma vítima em especial. Três modelos predominantes têm sido empregados para descrever o papel das cognições em abusadores sexuais (Murphy, in Geer, Estupinan, & Manguno- Mire, 2000). O primeiro modelo deriva-se da literatura clínica (Abel, Becker, & Cunningham-Rathner, in Geer et al., 2000), que considera que as distorções cognitivas dos abusadores são erros consistentes no pensamento que ocorrem automaticamente (Beck, 1997). Segundo este modelo, estas distorções não são causas dos atos de abuso, mas uma justificativa construída após os atos abusivos. Um segundo modelo sobre as distorções cognitivas é derivada da abordagem feminista. Descreve vários tipos de atitudes direcionadas às mulheres, aceitando o “mito do estupro” e atitudes relacionadas ao papel dos estereótipos (Malamuth, 1986). O terceiro e último modelo é proveniente da literatura criminal, que propõe que os padrões de percepções e pensamentos distorcidos são causas para a agressão sexual e para outros domínios de comportamento. Citando mais especificamente estudos que mostram como abusadores vêem as crianças, Swaffer, Hollin, Beech, Beckett e Fisher (2000) discutem que a percepção sobre características físicas e sobre tipo de relacionamento que o abusador pensa ter com a criança influenciam diretamente para a prática abusiva contra a criança. Por exemplo, se ele acredita que pode manipulá-la para conseguir o que deseja, tal crença será importante para a prática do abuso. Em acordo com o estudo de Swaffer et al. (2000), a investigação de Ward e Keenan (1999) revelou que os abusadores percebem as crianças como seres sexuais e que, portanto, este contato sexual apenas despertaria impulsos que já existiam antes do momento do abuso. Por conseguinte, segundo os abusadores, as crianças só teriam benefícios em ter contato sexual com adultos. Os resultados de outro estudo demonstram que abusadores justificam o abuso informando que as crianças querem o contato sexual tanto quanto eles, pois, elas não resistem e não contam a outros adultos. Por último, afirmam
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