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não BRINQUEDOS 2022 Anna Carolina Ferreira Camila Daniel Georgia de Almeida Malavolta Marcelo Oliveira da Silva BRINQUEDOS brincando com Como citar este livro (ABNT) FERREIRA, Anna; DANIEL, Camila; MALAVOLTA, Georgia; SILVA, Marcelo. Brincando com brinquedos não brinquedos. Porto Alegre: Bestiário / Class, 2022. Todas as imagens apresentadas neste livro foram produzidas pelxs autorxs e pertencem a seus acervos pessoais. Editora Bestiário Rua Marquês do Pombal, 788/204 CEP 90540-000 Porto Alegre, RS, Brasil Fones: (51) 3779.5784 - 99491.3223 www.bestiario.com.br Todos os direitos desta edição reservados. Copyright © 2022: Anna Carolina Ferreira Camila Daniel Georgia de Almeida Malavolta Marcelo Oliveira da Silva Coordenação editorial Roberto Schmitt-Prym Conselho editorial Antonio David Cattani Claudio Vescia Zanini Daniela Pinheiro Machado Kern Demetrius Ricco Ávila Elaine Barros Indrusiak Jéferson Assumção Karina de Castilhos Lucena Luciana Wrege Rassier Pedro Demenech Revisão Marina Castro de Freitas Sommer Projeto gráfico e capa Andrei Cunha Ficha catalográfica não BRINQUEDOS BRINQUEDOS brincando com Dedicamos esta obra a todas as professoras e professores da Educação Infantil que deixam suas marcas nas crianças e valorizam a infância. Nosso respeito e admiração a vocês. Dedicamos este livro também a todas as crianças com as quais convivemos e que nos auxiliam a compreender um pouco mais sobre o que significa ser criança e sobre as descobertas da infância. Anna Carolina, Camila, Georgia e Marcelo O LIVRO-BRINQUEDO PARA COMEÇAR A BRINCADEIRA O que são brinquedos não brinquedos? O que podemos esperar? Brincar tem regras? PERGUNTAS E RESPOSTAS Como nasceu a ideia deste livro? Em quais fontes fomos beber? O que é o brincar heurístico? O que é o brincar livre? Como formamos nossa própria coleção de brinquedos não brinquedos? Qual é o contrário de brinquedos não brinquedos? Podemos misturar brinquedos com brinquedos não brinquedos? Há brinquedos não brinquedos para meninas e meninos? Quem são as crianças? Quem são os adultos? Qual o papel do adulto? O que o adulto não deve fazer? O que o adulto pode fazer? Por que brincar com brinquedos não brinquedos? Há uma idade específica? Sempre há um propósito em cada brincadeira? Brinquedos com sucata são brinquedos não brinquedos? Devemos evitar o plástico? Podemos usar materiais como EVA? S U M Á R I O 001 002 003 004 005 006 007 008 009 010 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 NA CRECHE Atenção, bebês brincando! O primeiro brinquedo O que podemos sugerir como brinquedos para bebês? O cesto dos tesouros? O que incluir no cesto? Coleções de brinquedos não brinquedos Territórios naturais Territórios de luz e sombra Territórios de luz e objetos Territórios de materialidades Tabuleiro investigativo Brincando com objetos do cotidiano NA PRÉ-ESCOLA E a partir dos quatro anos? Brincando com partes soltas BRINCAR NA NATUREZA Nós também somos do mato como o pato e o leão Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração Amanhacerá tomate anoitecerá mamão Jardim de desenho zen Brincar de abastecer Chocando ovos de dinossauro BELEZA, BONITEZA E MARAVILHAMENTO A disposição estética Como podemos fazer a disposição dos brinquedos não brinquedos? O círculo A espiral O ninho 006 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 A linha o caminho O labirinto A casa A montanha A selva Ainda sobre composição Como podemos combinar os brinquedos não brinquedos? Assemblage ensemblagem PARA ENCERRAR A BRINCADEIRA E começar outras tantas brincadeiras Recomendamos REFERÊNCIAS QUEM SOMOS? 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 009 O L I V RO - B R I N Q U E D O Altino José Martins Filho Prefaciar uma obra de um conjunto de professoras e um professor que colocam em principal evidência o brincar “com”, “para” e “das” crianças é um convite um tanto emocionante. Me vejo preenchido de uma amorosidade, alegria e alma plena de esperançar. O brincar é ainda uma temática que necessita de muitos diálogos e afirmação de sua essência no universo das crianças e na produção das suas culturas infantis. O brincar é a força das culturas infantis. No campo da Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica brasileira, ainda temos muito para avançar na garantia do brincar e das interações entre pares como eixos fundantes do currículo, como propõem as Diretrizes Curriculares Nacionais (2009) e a Base Nacional Comum Curricular (2017). Neste sentido, o presente livro ganha uma importância gigantesca, o que de início, já o coloca como um material de primeira grandeza para os professores e as professoras. Uma obra escrita por muitas mãos, com pensamentos de respeito à criança, ao seu brincar, ao que é primordial na sua vida! As autoras e o autor, em um gesto brincante com as palavras e em um espírito brincalhão (espírito que está muitas vezes adormecido nos adultos), já no início do livro procuram situar o leitor, lançando algumas perguntas com pistas de respostas abertas. A primeira pergunta — “Como nasceu a ideia deste livro?” — nos informa que a obra irá explorar as brincadeiras em contextos brincantes com materiais não estruturados (brinquedos não brinquedos) e que irá reunir alternativas 10 11 e aprofundamentos, um convite às professoras e aos professores de expandir um conhecimento ainda recente no nosso campo de exercício da docência. Um livro inteirinho direcionado a promover brincadeiras com brinquedos não brinquedos. Todo o texto em si já nos aguça a pensar no livro como brinquedo, algo que para a Educação Infantil precisa ganhar força e vigor. O livro-brinquedo no contexto das crianças desde bebês não remete mais a uma adjetivação para a literatura infantil, mas procura retratar com destaque a dimensão da brincadeira, mesmo quando estamos envolvidos com a literatura. Assim deveria ser também para os adultos leitores. Eu senti essa possibilidade de envolvimento na leitura d0 livro. Ele oferece essa oportunidade em sua composição — as autoras e o autor, ao brincarem com as palavras quando escrevem sobre a brincadeira, despertam em nós um olhar sensível e reflexivo acerca dos efeitos positivos quando estamos planejando uma Educação Infantil mais brincante com o grupo social da primeira infância. Este livro tem por intenção constituir-se fundamentalmente como uma leitura que acena para o valor do brincar e suas implicações educativas e pedagógicas em uma perspectiva crítica. Uma abordagem pedagógica ensopada por uma desobediência crítica que diz não aos livros didáticos e as atividades mecanicistas, utilitaristas e reprodutivistas — às atividades quase sempre realizadas em folhas A4. De mãos dadas às autoras e ao autor desta obra, em um encontro fortuito e afortunado, me desperto na feliz posição de afirmar que as experiências das crianças não cabem em uma folha A4 — proposição educativa e pedagógica que tenho veementemente difundido no Brasil com a síntese da tese que a “docência na Educação Infantil vai além da A4”. A minha reflexividade crítica se encontra com as proposições pedagógicas brilhantemente presentes e explicitadas neste texto, que passo a chamar carinhosamente de livro-brinquedo. Uma união repleta de mobilização coletiva, a qual afirma a necessidade de lançarmos ideias poderosas e fortes para uma escola da infância que corresponda àquilo que as crianças desde bebês querem porque precisam aprender, vivenciar, experimentar e, especificamente dizendo, querem porque precisam brincar! Diante de tantos desafios postos à Pedagogia da Infância atualmente, essa obra destaca inúmeras possibilidades que nos fazem refletir: Para quais experiências convidaremos as crianças desde bebês nos contextos de educação coletiva? Para escolas mais abertas, mais brincantes, alegres e divertidas, organizadas para alémdas salas fechadas entre quatro paredes, que perpetuam o emparedamento das crianças? Para um contato mais efetivo com a natureza, com materiais não estruturados e com o propósito de que crianças e adultos cuidem do planeta em que habitam de forma mais sustentável e amigável? Para a construção de propostas pedagógicas que rompam com o ciclo do consumo, do descarte, das datas comemorativas e de atividades mecanicistas em folhas A4? Estamos argumentando faz tempo que as crianças, desde bebês, já nascem como sujeitos sociais e culturais, que portam a novidade a qual permite fazer continuar e fazer renascer o mundo. Faz tempo que temos abordado com efeito potencializador o protagonismo infantil, faz tempo que temos acenado para o brincar como ponto fulcral do fazer-fazendo da docência em educação infantil 12 13 (Martins Filho, 2020). Defendemos o brincar como a cidadania da infância, como uma prática que representa a expressão da ação humana das crianças. Este também é o ponto nodal dos argumentos do livro. Cabe ressaltar que todos os dias há nascimentos e chegadas de meninas e de meninos ao nosso planeta. Contudo, cada dia mais as crianças estão sendo acolhidas nas instituições educativas, e assim grande parte de seu viver a infância atualmente acontece em espaços coletivos. O mundo é apresentado para as crianças nas instituições de Educação Infantil. Essa situação está afetando e ocasionando reconfiguração na produção e reprodução das culturas infantis. Com esse intento, como professores e professoras nessa etapa da educação, temos que saber de nosso comprometimento ético, político, pedagógico e humano com as novas gerações. A leitura desta obra nos faz pensar sobre a possibilidade de traçarmos no campo da Pedagogia da Infância uma pedagogia brincante, uma pedagogia poética, uma pedagogia transgressora e que seja também uma pedagogia autoral — porque educar é criar a novidade, deixar ser mais, não fabricar ou produzir, instrumentalizar e ensinar mais do mesmo. Precisamos romper com uma visão de sociedade que encara as instituições educacionais como fabricação do outro, isto é, como uma tarefa instrumental de torná-lo competente para funções que correspondam às expectativas adultocêntricas. Nos escritos desta obra, encontramos aprofundamentos metodológicos, epistemológicos e práticas educativas e pedagógicas que nos fazem entender que seria necessário — e urgente — proporcionar um espaço educativo brincante. As autoras e o autor colocam a dimensão da brincadeira como ponto de conexão entre passado e futuro, possibilitando às crianças, no seu presente, no seu aqui e agora, afetos alegres, práticas divertidamente brincantes, contato com elementos da natureza, materiais diversificados, denominados de materiais não estruturados — brinquedos não brinquedos — , os quais possam aumentar e acionar a potência de agir, em uma radical subjetividade das crianças desde bebês. Nesta obra, as autoras e o autor trazem indicativos, os quais acredito, podem incidir reconstruções necessárias aos currículos da Educação Infantil, que também em minha ótica, poderiam focalizar a formação humana das crianças, desde a tenra idade, em seus começos, com plena oportunidade de experienciar o viver pelas interações e brincadeiras, para que possam continuar a viver nesse mundo de forma mais brincante e brilhante — tornando o brincar o brilho das nossas crianças! Finalizo a recomendação desta obra e o significativo trabalho das autoras e do autor com as palavras de Hannah 14 15 Arendt (2011), quando nos lembra que a Educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda das crianças. A Educação é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não as expulsarmos de nosso mundo e abandoná- las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum. Além de poética em relação ao brincar de nossas crianças, esta obra apresenta também muitas possibilidades para pensarmos e agirmos em favor de escolas infantis mais brincantes. Essas escolas teriam ambientes mais acolhedores, menos emparedados, e se ocupariam e se envolveriam afetivamente com as potencialidades das crianças, com os seus contextos familiares e culturais, com as condições da docência desescolarizante e com a natureza e o planeta do qual fazemos parte. Por fim, propõe uma escola que se preocupe e se responsabilize com todos esses aspectos, tendo como premissa fundamental a brincadeira para, das e com as próprias crianças. Uma escola mais “tribrinque”, para fazer jus ao espírito gaúcho das autoras e do autor. Esse é o mérito desta obra! Ao incluir a racionalidade infantil, considerando suas manifestações, expressões e seus pontos de vistas, concebendo as crianças como seres sociais plenos, com especificidades próprias deste momento da vida, desafiaremos nosso poder adulto e também o rigor e a imaginação metodológicos, para a criação de mecanismos para a efetiva participação das crianças, vencendo práticas adultocêntricas e o histórico percurso de quem detém o poder sobre o espaço ser apenas o adulto, no sentido de juntos se somarem e construir um espaço chamado “lugar” para todos se sentirem mais felizes e amigáveis. Uma escola “tribrinque”, uma escola brincante, uma escola com brinquedos não brinquedos, uma escola que proporcione enfrentar o desafio de colocar nossa cultura adulta em diálogo com a cultura infantil, requerendo uma produção de conhecimento coletiva, interativa, intersubjetiva, num encontro profundamente potencial de informantes sobre as infâncias. Anna Carolina, Camila, Georgia e Marcelo: parabenizo vocês pela ousada tarefa, em poder dizer de outro modo, como as escolas podem e devem ser para nossas crianças brasileiras. Mil vivas, minhas queridezas e meu queridezo!!! Vamos juntos, avante, com uma pedagogia revolucionária na afirmação do brincar!!! Altino José Martins Filho Professor Criancista Inverno de 2022 REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. MARTINS FILHO, Altino José. Minúcias da vida cotidiana no fazer-fazendo da docência em Educação Infantil: docência além da A4. 2. ed. Florianópolis: Insular, 2020. 1 PARA COMEÇAR A BRINCADEIRA quem não pode viajar o mundo dentro de embarcações deve imediatamente contemplar a ideia de virar sereia Angélica Freitas (2020) 18 19 Brinquedos não brinquedos encontrados em lojas de festas e em armarinhos — limpadores de cachimbo, barbantes, serpentina, fitas, palitos de picolé, pompons coloridos, argolas de cortina e balões — permitem criar, compor, esculpir, decorar e desenhar com partes soltas. Utilizamos a nomenclatura “espaço propositor” para nos referirmos a uma composição de brinquedos não brinquedos pensada, planejada e organizada pela professora para a exploração, pesquisa e brincadeira das crianças. Um espaço propositor deve levar em conta os materiais e suas combinações, a quantidade desses materiais e a sua apresentação. O Q U E S Ã O B R I N Q U E D O S N Ã O B R I N Q U E D O S ? Os brinquedos não brinquedos são objetos cotidianos que colocamos à disposição da criança para que ela invente a sua própria brincadeira: palitos, botões, rolos de papel higiênico, rolhas, barbante, caixas, embalagens, dentre muitos outros. O brinquedo não brinquedo — também chamado de recurso, elemento ou material não estruturado ou de longo alcance — não foi pensado para ser um brinquedo e não está à venda em lojas especializadas de brinquedos. Podemos encontrar brinquedos não brinquedos em lojas de festas, de materiais diversos, de utilidades domésticas, de construção,em ferragens, supermercados e, principalmente, no reaproveitamento de possíveis descartes. A não estrutura desses materiais significa que podem assumir os mais variados usos: um pedacinho de madeira pode ser um carro, uma nave espacial, um barco, um bebê, o pai ou a mãe, uma montanha ou uma peça importante que faltava em uma construção. Em um mundo onde impera a lógica da produtividade e do trabalho, brincar pode ser um ato revolucionário. O brincar emerge como um refúgio, um espaço de novas possibilidades, invenções, descobertas e produções de sentido. É nesse contexto que surge este livro, produzido por três professoras e um professor que percebem no brincar um lugar de resistência. Temos assistido a tantos retrocessos na forma de perceber as infâncias que sentimos 20 21 Espaço propositor “castelo” (lona branca, caixas de papelão, tecidos diversos e tubos de papelão). necessidade de expor os princípios que fundamentam nossas práticas com as crianças. Endereçamos nossas reflexões, principalmente, às nossas colegas professoras da creche e da pré-escola1. O livro também é destinado às pessoas adultas que são entusiastas do brincar, que entendem o papel central da brincadeira na infância e que buscam conhecer um pouco mais sobre brinquedos que não são brinquedos. Entre 2020 e 2022, com muitas escolas fechadas durante a pandemia de COVID-19, a casa passou a ser um lugar ocupado pelo brincar. Nesse sentido, enquanto criávamos o livro, pensamos muito nas famílias e como os familiares 1 Como atuamos no Rio Grande do Sul, optamos por utilizar a nomenclatura “escola” para nos referirmos às Instituições de Educação Infantil. Utilizamos a separação em faixas etárias proposta pela Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017) apenas como uma referência para pensar as propostas para as crianças. Partimos da ideia de que as crianças continuam sendo crianças depois de saírem da Educação Infantil, fato desconsiderado por nosso sistema educacional, que as transforma em “alunas” e “alunos” ao ingressarem no Ensino Fundamental. poderiam ter acesso às brincadeiras com brinquedos não brinquedos para ampliar o repertório oferecido às crianças. Embora tenhamos estabelecido um diálogo mais direto com as professoras da Educação Infantil, acreditamos na potência do brincar com brinquedos não brinquedos também em outros espaços. Acreditamos que as crianças aprendem sobre o mundo nas relações que estabelecem com as outras crianças, com as pessoas adultas e com as coisas. Acreditamos na centralidade das diversas relações estabelecidas com e pelas crianças. No texto buscamos ser diretas e objetivas2, na intenção de facilitar as práticas das professoras. Apresentamos algumas possibilidades de adaptação das propostas para as famílias fazerem em casa. Vamos sempre ressaltar que o 2 Como há maioria de mulheres na equipe autoral, escolhemos nos referirmos a nós mesmas no feminino, como “professoras”. 22 23 Obras realizadas pelo Rafael (cinco anos) com partes soltas a partir de kit brincante enviado para as famílias durante o período de atividades remotas de 2020 (bolas de gude, feijões de vidro, borboletas de papel e tabuleiro de jogo da velha). que trazemos aqui está baseado nos nossos modos de fazer — portanto, não são receitas, nem métodos infalíveis! Há inúmeras possibilidades a partir das nossas propostas. Desenvolvemos uma série de fotos para ilustrar os materiais e selecionamos outras fotos de nossos arquivos para servirem de inspiração. Reúso de isopor: bandejas de alimentos, caixa e chips (permitem guardar, riscar, marcar, quebrar e simbolizar). 24 25 O Q U E P O D E M O S E S P E R A R ? Neste livro, vocês vão encontrar sugestões e propostas de utilização de brinquedos não brinquedos nas brincadeiras em casa com a família ou na escola com as professoras. Buscamos trazer de forma simplificada e adaptada algumas possibilidades que já foram teorizadas por grandes pensadoras da Educação do campo das infâncias. Simplificamos as propostas para poderem ser feitas em diversos contextos, com diferentes turmas Espaço propositor com utensílios de cozinha (colheres, pegadores, potes, formas de gelo e copinhos). de crianças e em distintos espaços — ou até mesmo em casa. Nesse sentido, temos a intenção pedagógica de aproximar o brincar com brinquedos não brinquedos das pessoas — crianças, professoras, adultos. Muitas vezes, percebemos que o excesso de regras, materiais específicos e desconhecimento se tornam fatores que afastam as possibilidades de experimentação com essa forma de brincar. Escolhemos materiais que fossem fáceis de serem REDUZIR = diminuir o consumo REAPROVEITAR = usar o que já temos RECICLAR = usar o que já temos com outro propósito REPENSAR = encontrar novas soluções RECUSAR = dizer não ao consumismo encontrados em casa, conseguidos por meio de descarte e doação ou comprados a um preço acessível. Brincar com brinquedos não brinquedos deve ser sustentável, economicamente viável e seguir os cinco erres: reduzir, reaproveitar, reciclar, repensar e recusar. Lembre-se de dar o destino correto aos descartes depois da brincadeira. Na maioria das vezes, são as professoras as responsáveis pelos materiais a serem utilizados com as turmas e é sobre elas que recaem esses gastos. Assim, trouxemos 26 27 Reúso de caixas e bandejas de ovos e protetor de papelão para móveis (permitem empilhar, acomodar pequenos objetos, construir e simbolizar). muitos materiais oriundos de descarte, que podem ser coletados, solicitados às famílias, recebidos como doação, encontrados nas casas das pessoas a custo zero... e outros tantos que podem ser adquiridos a baixo custo, se comparados ao valor de brinquedos tradicionais. Desta forma, buscamos pensar na realidade brasileira para nortear nossa escrita e propor adaptações para algumas abordagens e pedagogias que vêm sendo importadas de contextos distantes ao longo dos anos. Temos plena consciência de que nossa realidade é ampla, complexa e repleta de contrastes. Ao conversarmos com Nenhuma das propostas apresentadas aqui é uma prescrição, uma receita que deve ser seguida à risca. Pelo contrário: o que buscamos propor são pontos de partida. As brincadeiras com brinquedos não brinquedos surgem naturalmente — portanto, não há uma fórmula. colegas de diferentes redes e escolas aqui da região, percebemos universos muito distintos. Podemos citar algumas variáveis que demonstram as diferenças entre as escolas: o número de adultos responsáveis pelas crianças, o espaço físico, as práticas pedagógicas assumidas pela escola, o envolvimento da direção e equipe gestora com as pedagogias ali praticadas, as propostas de formação continuada, dentre outras tantas. Acreditamos nas brincadeiras feitas no chão — no chão da sala de referência, na caixa de areia, no pátio, no chão da sala de estar ou do quarto das casas das crianças. Elas passarão o resto das suas vidas estudando em cadeiras e mesas e depois trabalhando em cadeiras e mesas em suas vidas adultas. Vamos explorar o chão, vamos brincar com as crianças no chão! Salas de referência cheias de mesas e cadeiras não são para nós. As crianças e as professoras precisam de espaços abertos para construírem seus ambientes junto com as crianças. Acreditamos também na valorização dos saberes, dos 28 29 Obra feita pelo Theo (cinco anos) com partes soltas a partir de kit brincante enviado para as famílias durante o período de atividades remotas em 2020 (folhas secas, cipó, pedrinhas e concha). fazeres e dos princípios que norteiam as ações pedagógicas das professoras e professores. Como docentes da Educação Infantil, devemos valorizar nossa própria profissão. Não somos apenas cuidadoras e cuidadores de crianças. Há muito estudo, preparação e trabalho árduo para estar com nossos grupos de crianças diariamente. É importante discutir com as crianças sobre o que colecionar,que materiais são interessantes para elas, a seleção dos objetos que fazem parte da coleção de brinquedos não brinquedos da sala, como armazenar e onde armazenar, o que expor e como expor. Compartilhe com as crianças as escolhas. Converse com elas sobre as coleções de brinquedos não brinquedos. Espaço propositor “Adoramos caixas”: caixas de plástico e de papelão, tubos de papelão, habitáculo (cubo de PVC) decorado com plástico bolha, cortina de tampinhas e papel celofane. 30 B R I N C A R T E M R E G R A S ? Em nossas conversas sobre o tema, criamos um decálogo do brincar com brinquedos não brinquedos. Um decálogo é um conjunto de dez leis, normas, conselhos ou princípios. A palavra “decálogo” tem origem grega e refere- se aos Dez Mandamentos enviados por Deus a Moisés no Monte Sinai. Não buscamos um significado religioso, mas uma brincadeira séria que facilite a organização do brincar e do fazer pedagógico. Reúso de potes plásticos variados (permite abrir, tampar, guardar, empilhar). 32 33 Mais do que regras, leis e mandamentos, o nosso decálogo é composto de provocações. A seguir, explicitamos nosso decálogo: 1 Não siga as regras (nem estas!): a ideia de termos regras para a brincadeira livre nos parece estranha. Afinal, a brincadeira não é livre? Quando pensamos em criar regras para não ter regras, queremos subverter as prescrições que são estabelecidas por alguém com a intenção de pedagogizar e determinar o trabalho e a atuação das professoras. 2 Não imponha regras às colegas professoras: muitas vezes, nas escolas, as colegas professoras buscam impor seu modo de fazer como uma receita infalível que foi tirada de um livro, abordagem ou formação. Nos parece que o melhor caminho seja o de contar como você costuma trabalhar com brinquedos não brinquedos e falar sobre alguns resultados obtidos com a turma. Devemos sempre lembrar que tanto o modo de apresentar os brinquedos não brinquedos, quanto as brincadeiras que surgem e as habilidades desenvolvidas pelas crianças vão depender de uma série de variáveis que estão quase que completamente fora de nosso controle. 3 Só porque é importado não significa que é melhor: claro que é importante conhecer como as escolas de educação infantil que são referência no mundo trabalham, mas muitas vezes essas traduções e importações não são adequadas à realidade das nossas escolas. Aposte em um processo decolonial. Conheça pedagogias feitas no Brasil e na América Latina. 4 Não diga às crianças nem às colegas o que fazer, como fazer e como brincar: cada contexto, cada turma, cada criança é única. As crianças irão encontrar seus modos de brincar, fantasiar, simbolizar. Não precisam das nossas instruções. Isso vale também para as colegas professoras. Cada uma de nós conduz o seu trabalho a partir de princípios, experiências e conhecimentos distintos. 5 Cinco erres (recicle, reuse, recuse, reaproveite e repense): mesmo que já tenhamos nos referido a eles anteriormente, vale lembrar esses princípios, pois eles devem constituir a nossa prática. Muitos brinquedos não brinquedos são oriundos de descarte, encontrados na natureza e frutos de campanhas de arrecadação. Observe os descartes da sua casa, veja o que pode dar uma boa brincadeira. Converse com amigos e família sobre possíveis descartes. Visite lojas de não brinquedos. Treinar o olhar é fundamental. 6 Depende do contexto (não há uma melhor forma de fazer algo que se aplique a todas as situações): insistiremos muito nessa concepção. Cada contexto, cada turma vai demandar tipos diferentes de brinquedos não brinquedos, postura da professora, inícios, encaminhamentos e encerramentos. Uma das regras mais comuns do brincar com elementos não estruturados é propiciar um espaço livre de distrações, como os brinquedos estruturados, para manter o foco das crianças nos não estruturados. Entretanto, bonecas podem ser alimentadas, caminhões podem ser abastecidos e utensílios de cozinha podem auxiliar no jogo simbólico com brinquedos não brinquedos. Tudo dependerá da sua intenção, das necessidades das crianças e do momento. 34 35 7 Tente de um jeito, tente novamente, tente de outro jeito... Muitas vezes, nós planejamos uma sessão com brinquedos não brinquedos e, por mais que tenhamos clara nossa concepção, nem sempre dará certo. Pode ser que nesse dia as crianças estejam com o interesse em outra coisa. Nosso cotidiano com as crianças é atravessado por diversas variáveis: uma novidade, uma inquietação, uma descoberta, um bicho que apareceu e tantas outras. Se não deu certo hoje, tente outro dia. Se não deu certo assim, faça de outro jeito. Converse com as crianças. Entenda as necessidades delas. Faça o exercício de deixar de lado a sua posição de adulta para conhecer as crianças. Pode estar aí a chave para brincadeiras prazerosas e significativas. 8 Seja específica (conheça a sua turma de crianças para saber o que funciona melhor com esse grupo): seguindo o mandamento anterior, esse é o caminho para práticas pedagógicas bem-sucedidas — conhecer as crianças individualmente e como elas funcionam em grupo. A partir desse conhecimento, proponha! 9 Siga o seu instinto pedagógico e confie nas suas intuições pedagógicas: lembre-se que você tem conhecimento pedagógico, confie nesses conhecimentos. Você conhece mais as suas crianças do que qualquer teórico, teoria, abordagem ou formador de professores. Jamais busque enquadrar a turma. Fuja das generalizações. 10 “A teoria diz assim” não é justificativa para nada nunca (a teoria só é útil se ela leva a pessoa a pensar; se ela não faz isso, nem é teoria): trazemos esse mandamento em função de percebermos que muitas pessoas repetem teorias e princípios teóricos sem refletir e outras tantas que ficam paralisadas frente a teorias, abordagens e realidades muito distantes das nossas. 11 Faça do seu jeito (sabendo o que quer fazer e com segurança): conhecer a teoria, estudar, ler relatos de experiências de outras professoras, participar de formações continuadas são ações que auxiliam no nosso cotidiano com as crianças. Misture tudo isso com a sua experiência e seu conhecimento da turma, das crianças e das infâncias e faça do seu jeito. Cabana esconderijo (mesa vestida com cortina de tiras de pano). 2 PERGUNTAS E RESPOSTAS Mapa de anatomia: o Olho O Olho é uma espécie de globo, é um pequeno planeta com pinturas do lado de fora. Mas por dentro há outras pinturas, que não se veem: umas são imagens do mundo, outras são inventadas. Cecília Meireles (1974) 38 39 C O M O N A S C E U A I D E I A D E S T E L I V RO ? Tivemos ideia de criar este livro a partir de um convite para elaborar um guia para as famílias e para as colegas professoras proporem brincadeiras com materiais não estruturados. Tal convite partiu da Secretaria de Educação do Município ao qual estávamos vinculadas. Ao desenvolver esse material, uma semente foi plantada e ficamos com vontade de aprofundar, expandir e criar sobre um tema que é apaixonante e pelo qual somos apaixonadas. Atendendo ao convite, nos propusemos a pensar e desenvolver um material que fosse de fácil entendimento para qualquer pessoa que tiver interesse em promover brincadeiras com brinquedos não brinquedos. No curto espaço de quinze dias, criamos a primeira Coleção de rolhas (permite guardar, delimitar espaços e criar). versão do material. Nos concentramos em conseguir um resultado acessível, rico em informações, inédito, visualmente atraente e com muitas ilustrações. O que iniciou com um desejo de organizar nossos princípios, leituras, influências e propostas para brincar com brinquedos não brinquedos cresceu para tomar a forma deste livro. Portanto, agora com mais tempo para a revisão e ampliação, resolvemos disponibilizar o material que havíamos preparado na íntegra para acesso a todas, todos e todes que tenham interesse na forma como acreditamos que ele deva ser veiculado.Nossa intenção é de que as ideias, propostas e concepções que buscamos pôr em prática cotidianamente com as nossas turmas pudessem circular e, talvez, inspirar outras pessoas. O que trazemos nesta obra pode (e deve) ser repensando para cada contexto. Esperamos que seja um passo para a popularização dos brinquedos não brinquedos. O profissional da Educação infantil deve “garantir experiências que incentivem a curiosidade, a exploração, o encantamento, o questionamento, a indagação e o conhecimento das crianças em relação ao mundo físico e social, ao tempo e à natureza.” Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009) 40 41 E M Q UA I S F O N T E S F O M O S B E B E R ? Nos inspiramos em várias obras para compormos as propostas que escolhemos transpor para o livro. Ao fim na seção Recomendamos, trazemos fontes inspiradoras e que servem para quem desejar maior aprofundamento nessa perspectiva. Algumas dessas obras tratam do brincar de bebês e crianças bem pequenas (até três anos). Buscamos também obras que falam sobre a brincadeira na e com a natureza. Também fomos beber das possibilidades infinitas trazidas pela arte. Embora não abordemos a arte como um elemento essencial da Educação Infantil e das infâncias, estamos sempre envolvidas com a criação artística das Contas coloridas (permitem enfeitar, passar fio ou linha, guardar, desenhar e simbolizar). crianças. Brincar com brinquedos não brinquedos é também brincar com arte, com desenho, com escultura, com arquitetura... Alguns desses escritos consideramos como fundamentais para o nosso trabalho cotidiano com as crianças. Eles servem para aprofundar nossos conhecimentos sobre esse universo. A profissão de professora implica em muito estudo, leitura e atualização. Confira nossas recomendações ao final do livro. O Q U E É O B R I N C A R H E U R Í S T I C O ? “Heurístico” vem da palavra grega eureka, que significa ”descobri!”. O brincar heurístico é a brincadeira da descoberta e da exploração. É a arte da descoberta. O brincar heurístico é fundamentado pelas pesquisas e teorias de Elinor Goldschmied e Sonia Jackson (2012) e de suas seguidoras. Em uma perspectiva heurística, o brincar é organizado em três diferentes possibilidades de acordo com a idade das crianças: cesto dos tesouros, bandejas de experimentação e jogo heurístico. A brincadeira heurística propõe que, a partir de uma seleção de objetos, a criança possa descobrir as suas propriedades, suas formas, suas texturas, suas semelhanças e suas diferenças. Assim, ela pode explorar, descobrir, construir, separar, agrupar, combinar, escolher, descartar, mover, empilhar, manipular, controlar, emprestar novos sentidos, desenhar e redesenhar, em infinitas possibilidades. Quando a brincadeira heurística acontece de 42 43 forma coletiva as crianças desenvolvem habilidades relacionadas ao trabalho em grupo, à colaboração e ao coletivo, fortalecendo a noção de pertencimento ao grupo. Individualmente, a criança soluciona problemas relacionados às áreas da matemática, física e arquitetura, desenvolve seu senso estético e faz escolhas — habilidades importantes para a vida adulta. Nos inspiramos livremente na Teoria do Brincar Heurístico. Acreditamos que a brincadeira em seu sentido mais amplo não deva servir a este ou aquele propósito. A brincadeira deve ser livre e as regras devem ser criadas pelas crianças. O início da brincadeira, seus limites, seu fim, os papéis e as possibilidades devem ser pensados, criadas e negociadas pelas crianças. O Q U E É O B R I N C A R L I V R E ? O brincar livre tem suas origens na abordagem desenvolvida por Emmi Pikler. A autora defende a importância de se deixar a brincadeira das crianças fluir com um mínimo indispensável de interferência dos adultos. O adulto seleciona os materiais e pensa no espaço físico destinado ao brincar. Esse espaço, para ela, deve constituir um ambiente calmo, com pouco ruído, sem interferências (televisão, celular...), confortável, iluminado e acolhedor. A ideia do brincar livre se fundamenta na possibilidade de a criança escolher e descobrir suas brincadeiras com a menor interferência possível. Não afirmamos sem interferência, pois os adultos escolhem os objetos, criam o contexto físico e resguardam a segurança da criança. Queremos ressaltar que não se demonstra ao bebê ou às crianças como se deve brincar: elas descobrem por si sós. Emmi Pikler acreditava que ensinar a uma criança algo que ela pode descobrir sozinha é, ao mesmo tempo, inútil e prejudicial. Para alguns, o brincar jamais será livre. O brincar será sempre restringido às experiências culturais, à classe social, ao gênero, ao espaço, ao que está disponível ou foi organizado pela professora e, até mesmo, às regras que as próprias crianças criam. Não queremos chegar nesse lugar de discussão. O brincar livre aqui é entendido em oposição a uma brincadeira dirigida, na qual todos devem seguir uma série de regras criadas pela professora ou pelos adultos. Coleção organizada em vidros de café reutilizados contendo elementos da natureza. 44 45 C O M O F O R M A M O S N O S S A P R Ó P R I A C O L E Ç Ã O D E B R I N Q U E D O S N Ã O B R I N Q U E D O S ? É interessante que cada sala de referência, turma ou família tenha a sua coleção de brinquedos não brinquedos. Essa coleção pode ser formada reaproveitando embalagens (caixas de ovos, bandejas, potes, rolos, bobinas, latas), elementos da natureza (pedras, folhas, flores, gravetos, conchas), coisas que temos em casa (formas e forminhas, colheres de metal e madeira, potes para guardar alimentos, batedores de ovos, cabides, panelas, tampas), coisas compradas (contas, lantejoulas, fitas, barbantes, pompons), tecnologias obsoletas (fitas K7 “Quando a criança não está rodeada de brinquedos ‘inoportunos’ que se movem ou produzem ruídos a cada gesto involuntário, e quando está confortável em seu corpo, livre em seus movimentos, então, sua atenção e seu interesse se organizam no ritmo exato de sua maturidade.” Tardos e Szanto (2021, p. 50-51) ou de VHS, CDs e DVDs, disquetes, discos de vinil). Procure manter, com o auxílio das crianças, esses materiais organizados, separados por famílias (coisas que são iguais ou parecidas). Podemos usar caixas de papelão, caixas plásticas, cestos, sacolas de tecido ou de plástico para auxiliar na organização. Descarte o que está inutilizado e impróprio para o brincar. Os brinquedos não brinquedos ganham novos significados a cada brincadeira. Iniciar a brincadeira só depende da interação da criança com eles. Quanto mais se brinca com materiais não estruturados, mais se desenvolve o potencial inventivo da criança. As crianças criam e descobrem coisas novas a cada combinação de materiais e a cada novo momento de brincadeira. Muitas professoras e pesquisadoras chamam esses momentos de brincadeira de “sessão”. Reúso de tampas de plástico (permitem separar por cor e tamanho, desenhar, empilhar, simbolizar). 46 47 Q UA L É O C O N T R Á R I O D E B R I N Q U E D O S N Ã O B R I N Q U E D O S ? O contrário de um brinquedo não brinquedo é o brinquedo comprado pronto que possui uma única função. Esse tipo de brinquedo, além de custoso, não estimula tanto a imaginação das crianças, pois um carrinho será sempre um carrinho, uma boneca será sempre aquela boneca com determinadas características, um super-herói será sempre esse mesmo super-herói, e assim por diante. Em muitos casos, a brincadeira com brinquedos sofisticados comprados prontos não dura muito tempo. Esses brinquedos logo são esquecidos ou viram decoração Reúso de tecnologias obsoletas (fitas de VHS presas a um ventilador). do quarto das crianças. Não estamos criticando quem investe na compra desses brinquedos, mas queremos propor outras possibilidades. Observe como as crianças ficam fascinadas com os objetos de verdadedo nosso dia a dia. Brincar com panelas, colheres, ferramentas, potes, embalagens, prendedores de roupa, tecidos, pedaços de madeira e outros materiais ocupa o tempo das crianças de uma forma diferente, incentivando novas descobertas e possibilidades. Os brinquedos e jogos comprados prontos, como têm apenas uma função, não permitem essas descobertas, invenções, criações e possibilidades. Quando brincamos com um quebra-cabeças, não há outra possibilidade de montar. A figura final será sempre a mesma: aquela que foi determinada pela empresa comercial que criou o quebra- cabeças. Espaço propositor (cones, bobinas, carros, dinossauros e bonecos). 48 49 Alguns brinquedos ou jogos comprados prontos são interessantes para ampliar o repertório da criança. Eles contêm possibilidades de uso como brinquedos não estruturados, assumindo outras formas e outras aplicações. Exemplos: • massa de modelar (comprada ou caseira) • jogos de encaixar • dominó • “jenga” (peças de madeira que formam uma torre) • “tangram” (jogo de formas geométricas coloridas que montam imagens, quebra-cabeça japonês) • conjunto construtor ou engenheiro • dados • peças de jogos de tabuleiro Encontramos nessa categoria os brinquedos de encaixar, construir, empilhar, criar ou montar. Eles também são uma ótima opção para incentivar a criatividade e promover o desenvolvimento das crianças. Seus preços não são tão altos, valendo o investimento, pois têm grande durabilidade. 50 51 Desenhos de barco e flor com sol e nuvens feitos pelo Bernardo (cinco anos) em 2021. As tampinhas podem ser movidas para criar muitas figuras. P O D E M O S M I S T U R A R B R I N Q U E D O S C O M B R I N Q U E D O S N Ã O B R I N Q U E D O S ? Podemos, sim. A mistura de brinquedos tradicionais com materiais não estruturados permite a ampliação do repertório dos brinquedos comprados prontos. Bobinas, rolos, pedaços de madeira e outros materiais de formato semelhante podem construir uma casa para uma boneca famosa ou a miniatura licenciada de um super-herói. Animais de brinquedo podem viver em um zoológico construído com peças soltas. As crianças podem construir um vale para os dinossauros de plástico habitarem. Assim, essa mistura é bem-vinda! H Á B R I N Q U E D O S N Ã O B R I N Q U E D O S PA R A M E N I N A S E PA R A M E N I N O S ? Não! Todos os brinquedos não brinquedos são para todas as crianças. Assim também deveriam ser os brinquedos manufaturados. Somos totalmente contra a generificação dos brinquedos. A brincadeira, a fantasia, as descobertas devem ser livres também quanto ao gênero. 52 53 Q U E M S Ã O A S C R I A N Ç A S ? As crianças, geralmente, podem ingressar nas creches e nas escolas de Educação Infantil a partir dos quatr0 meses e lá permanecem até os cinco anos e onze meses. Para as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (Brasil, 2009, p. 12), documento que regulamenta a Educação Infantil em todo o território nacional, a criança é “sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura”. Esse conceito orienta como nós, professoras e professores, devemos conceber cada uma das crianças com quem con- vivemos na nossa turma. As crianças, primeiro, devem ser entendidas como pessoas, como su- jeitos que vivem em de- terminada sociedade e que possuem sua história pessoal. Elas também são fruto da família, da so- ciedade, do local, da es- cola em que crescem e se desenvolvem. Portanto, Brincadeira com retroprojetor e objetos plásticos. as crianças são resultado das várias interações sociais co- tidianas em determinada geografia e momento histórico. As crianças possuem sua própria cultura, produzem cul- tura no convívio com as outras crianças e adultos e modifi- cam essas mesmas culturas pela sua ação. As crianças são agentes sociais. Cada uma delas possui sua própria perso- nalidade e temperamento. 54 55 Q U E M S Ã O O S A D U LT O S ? Os adultos aos quais nos referimos são muitos: mães, pais, irmãs, irmãos, tias, tios, avós, avôs, madrinhas, padrinhos, cuidadoras, cuidadores, professoras e professores e todo o pessoal da escola. Os adultos são a figura de referência da criança durante o tempo da brincadeira. Escultura com massa de modelar e palitos de picolé feita pela Livia, cinco anos, em 2020. Q UA L O PA P E L D O A D U LT O ? O papel do adulto na brincadeira com brinquedos não brinquedos é selecionar e higienizar os materiais; descartar aqueles que não podem mais ser utilizados; criar contextos (dispor os materiais de forma esteticamente interessante e desafiadora); pensar em combinações de materiais; observar para conhecer as crianças, filhas e filhos, percebendo seus interesses, apoiando suas descobertas, maravilhando-se com a sua imaginação. O adulto também deve registrar os momentos de brincadeiras das crianças por diversos meios — foto, vídeo, anotações... Os registros servem para criar memórias afetivas para as crianças e para as professoras os registros podem ser subsídios importantes para a criação de documentação pedagógica. O Q U E O A D U LT O N Ã O D E V E FA Z E R ? A pessoa adulta que está com a criança ou grupo de crianças na escola ou em casa jamais deve: • demonstrar como se brinca — mostrar como o material faz barulho ou que uma peça se encaixa na outra... a criança pode descobrir sozinha; • guiar, torcer, concordar ou discordar; • brincar pela criança; • interagir de forma vazia e evasiva; • usar elogios vazios (“muito bem”, “parabéns”). 56 57 A partir da proposta realizada na cidade italiana de Reggio Emilia, Dalila Lino (2007) lista três funções da documentação pedagógica: 1. criar memórias afetivas das experiências realizadas; 2. proporcionar perspectiva às professoras sobre o processo de aprendizagem das crianças; 3. fornecer informações para as famílias e público em geral sobre o que acontece nas escolas. Se você é professora ou professor, vale a pena se informar sobre o tema da documentação pedagógica. Verifique nossas recomendações ao final do livro. O Q U E O A D U LT O P O D E FA Z E R ? Além de pensar os materiais e o ambiente e de estar presente, emprestando sua segurança à brincadeira, o adulto pode: • fazer perguntas inteligentes: “O que você construiu?”; “Será que dá para fazer maior?”; “Do que mais você precisa?”; • elogiar coisas específicas, como o uso da cor, do espaço, a solução de problemas, a criatividade; • procurar descrever o que a criança descobriu — principalmente, para aquelas que ainda não falam: “Ah, se sacudir a lata faz um barulho legal!”. As professoras podem propor que uma turma ou grupo escolha os brinquedos não brinquedos, ou ainda que prepare e organize o espaço para outra turma ou grupo. A proposta pode ser entre turmas de idades diferentes. P O R Q U E B R I N C A R C O M B R I N Q U E D O S N Ã O B R I N Q U E D O S ? Em meio a tantos estímulos — celular, tablet, televisão, brinquedos comprados etc. —, o brincar com brinquedos não brinquedos cria novas oportunidades para que a criança: • explore os materiais — sinta a textura, o cheiro, o peso, produza barulho; • se concentre na brincadeira; 58 59 • faça escolhas, decida o que a interessa e o que não interessa — habilidade que será fundamental durante a vida toda; • explore possibilidades de combinações — o que cabe dentro, o que é maior ou menor, o que encaixa; • construa e derrube; • crie desenhos, artes, instalações; • brinque com partes soltas que podem ser movimentadas para criar infinitas possibilidades; • entre em contato com a natureza, tanto pelo brincar com elementos naturais ou na natureza, quanto pela possibilidade de reúso de materiais queseriam descartados ou são facilmente encontrados nas casas; • desenvolva a sua motricidade fina e fortaleça movimentos de preensão (pinça), que serão fundamentais para a escrita futuramente. Caixas organizadoras tipo colmeia postas no chão deixam os brinquedos não brinquedos ao alcance dos bebês e das crianças. H Á U M A I DA D E E S P E C Í F I C A PA R A C A DA T I P O D E B R I N C A D E I R A ? A literatura especializada sugere um tipo de brincadeira para cada faixa etária (idade). Sabemos que o desenvolvimento individual de cada bebê e criança é muito particular, depende do entorno, da personalidade da criança, da família, etc. — ou seja, de uma série de fatores que são impossíveis de serem previstos e que são únicos para cada indivíduo. Entendemos que, embora as propostas de brincadeiras aqui apre- sentadas tenham um vínculo com a idade cro- nológica das crianças, elas podem acontecer antes ou depois da idade estabelecida pela teoria. A relação das crianças com a brincadeira vai depender, essencial- mente, da maturidade física, do interesse e das ofertas feitas pelos adul- tos. Não podemos propor uma brincadeira que force o bebê a ficar sen- Brincadeira na natureza, com elementos naturais e utensílios de cozinha. 60 61 tado, se ele ainda não se senta por uma questão de desen- volvimento físico. Igualmente, não propomos uma brinca- deira que implique em andar, se o bebê ainda não anda. Forçar um bebê ou uma criança a fazer algo que seu corpo ainda não consegue é uma violência. Podemos entender que, mesmo que tenhamos pensado nos materiais, na disposição deles no espaço, que tenhamos feito um convite, se as crianças não se interessarem pela proposta, teremos que pensar em outro modo de fazer. Pode acontecer também de termos uma intenção com uma proposta de brincadeira e as crianças trazerem outras brincadeiras que não havíamos pensado. O importante é abraçar o inusitado. Quanto à oferta, podemos dizer que apresentar uma proposta normalmente associada a uma faixa etária “xis” (por exemplo, um “cesto dos tesouros”) para crianças mais Construções como trabalho colaborativo (crianças de três anos descobrindo como construir uma torre). Cesto dos tesouros pensado para uma turma de crianças de quatro anos (cilindros de madeira e papelão, cone, pena de arara, pinha, bucha vegetal, bucha de pano, milho seco e outros elementos menores que estão no fundo do cesto, como sementes, pedacinhos de tecido e toquinhos de madeira). 62 63 velhas pode ser uma prática que desperte o interesse. As crianças maiores irão explorar os mesmos objetos de uma forma diferente. O importante é que essa forma seja igualmente satisfatória. O mesmo pode acontecer com a oferta de exploração de materiais nas caixas de descobertas para crianças de quatro e cinco anos. Elas vão fazer as suas descobertas de acordo com seus interesses, seus conhecimentos prévios. O que queremos deixar claro é que, mesmo que muitos livros determinem que há uma idade “certa” para apresentar as brincadeiras não estruturadas ou heurísticas às crianças, acreditamos que elas podem também ser apresentadas para crianças mais velhas. Para as crianças mais novas, conforme já mencionado, vai depender das capacidades físicas já desenvolvidas. S E M P R E H Á U M P RO P Ó S I T O PA R A C A DA B R I N C A D E I R A ? Indicamos neste texto alguns benefícios que as brincadeiras com brinquedos não brinquedos podem trazer, mas na verdade esse não é o nosso foco. Se pedagogizarmos todas as brincadeiras e buscarmos para elas propósitos, objetivos a serem alcançados e conhecimentos a serem adquiridos, caímos na armadilha de não estarmos brincando e sim ensinando por meio de uma brincadeira ou mesmo ensinando a brincar. A brincadeira livre pode parecer que diminui nosso papel como professoras. Só deixar as crianças soltas brincando e podermos nos sentar um pouco para conferir nossas mensagens no celular. Entretanto, essa não deveria ser a verdade. A professora propõe os contextos, pensa nos materiais, coleta, organiza e apresenta esses mesmos materiais. Além disso, a professora é responsável pela mediação entre as crianças e os conhecimentos durante a brincadeira. Ela sustenta as aprendizagens das crianças. A brincadeira livre é um momento muito importante para conhecer as culturas das crianças, seus desejos, seus conhecimentos e suas necessidades. Essa também é uma oportunidade para fazer registros (fotos, vídeos, anotações) para compor a documentação pedagógica. Entendemos que as práticas inspiradas no brincar livre demonstram a intencionalidade pedagógica das Construções como trabalho colaborativo (crianças de quatro anos descobrindo como construir um castelo). 64 65 professoras. Assim, se você é professora, esteja certa de que possui conhecimento pedagógico para saber o que está propondo, sem didatizar ou pedagogizar a brincadeira. Esse nos parece ser o caminho. Muitas vezes pensamos uma proposta, escolhemos os materiais, montamos o espaço e as crianças criam outra possibilidade guiada pelo interesse e vontade. Se isso acontecer, pode ser que gere um sentimento de frustração e uma vontade quase que incontrolável de mostrar como brincar. Segure essa vontade, não se frustre! Se as crianças têm vontade de levar a brincadeira para uma possibilidade que você não pensou, aproveite para aprender com elas. Experimente sem medo. Dará certo! Deixe a criança livre para explorar, descobrir, pesquisar e brincar. B R I N Q U E D O S C O M S U C ATA S Ã O B R I N Q U E D O S N Ã O B R I N Q U E D O S ? Infelizmente, não! O brincar com brinquedos não brinquedos é uma prática alinhada ao brincar livre. Construir brinquedos estruturados a partir de sucata é uma prática de uso de materiais que em sua essência podem ser reaproveitados (papelão, plástico, vidro, metal). A ideia de criar brinquedos a partir de materiais recicláveis é muito interessante para as crianças, que podem criar seus próprios brinquedos. Há uma infinidade de tutoriais disponíveis de como fazer os brinquedos com sucatas. É S E G U RO A C R I A N Ç A B R I N C A R C O M V I D RO ? É, sim! Escolha vidros mais grossos que são mais difíceis de quebrar. Com os bebês, esteja atenta para a exploração. Com as crianças, explique que quebra e peça para terem cuidado. Quebrou? Faça uma limpeza cuidadosa no local. Temos assistido uma revolução nos refeitórios. Algumas escolas têm oferecido o uso de copos de vidro e pratos de louça para as crianças comerem. Ao substituírem aqueles feitos de plástico, estão proporcionando para as crianças experiências mais perto da realidade dos adultos, menor segregação em função do critério idade e, ainda, diminuindo o contato das crianças com plásticos. Construindo uma torre com rolos de papelão (Nina, três anos). 66 67 Em outros contextos, as crianças brincam com materiais que consideramos perigosos, mas que fazem parte do nosso cotidiano, como agulhas de tapeçaria e seguranças (joaninhas), cola-quente específica para crianças, pregos, martelos e outras ferramentas e objetos de carpintaria e de consertos. Claro que temos que levar em conta a idade, a familiaridade que as crianças têm com esses objetos e a supervisão do adulto. Aqui só tem uma regra: se você não se sente segura, não ofereça! D E V E M O S E V I TA R O P L Á S T I C O ? Sim e não! O plástico oferece poucas diferenças de sensações para o bebê. Quando propomos o cesto dos tesouros, temos que pensar nas diferentes texturas ao toque, conforme veremos no capítulo 3. Para as crianças mais velhas, o plástico pode ser utilizado em maior quantidade, pois outros atributos estão em jogo. Aqui não estamos falando de brinquedos de plástico, mas de brinquedos não brinquedos que são feitos de plástico e derivados: embalagens, tubos, canos, conduítes, potes, tampinhas de garrafa, garrafas pet, dentre outros. Já o excesso deuso de plásticos na fabricação de brinquedos e de suas embalagens é bastante questionável, pois impacta na baixa reciclagem dos brinquedos, no aumento do lixo e possível contaminação das crianças. Vale conferir a pesquisa “Infância Plastificada”, realizada pelo programa Criança e Consumo (2020; vide Referências). P O D E M O S U S A R M AT E R I A I S C O M O E VA ? Melhor não! O EVA — ou Etileno Acetato de Vinila — está em vários lugares: nos tatames que forram o chão das salas de referência, nos sapatos e chinelos, nos brinquedos e na decoração de ambientes infantis... Há um movimento forte na educação para a diminuição do uso de materiais industrializados e potencialmente tóxicos — os principais são o EVA e o plástico. Quando o EVA é utilizado na decoração, não significa muito para a criança, pois são desenhos prontos. Uma obra de arte feita pela criança faz mais sentido para ela e pode ser admirada por todos. Reúso de plásticos (separador de talheres, vasos de plantas, copos promocionais). 3 NA CRECHE Coisas que fazem o coração bater mais forte A mamãe pardal e seus filhotes. Acender um bom incenso e ir me deitar sozinha. Descobrir que o espelho chinês está ficando escurecido. Lavar os cabelos, maquiar-me e vestir um quimono cheiroso. Passar por um lugar onde crianças pequenas estão brincando. Sei Shônagon (século X)