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104 Aulas Semana 5 [22 e 23 de outubro] 14 – Entidades administrativas privadas O critério de delimitação da Administração Pública baseado na personalidade de direito público revela-se, contudo, muito incompleto e redutor, fundando-se numa indicação de ordem formal, que não atende à verdadeira substância de muitas entidades que, apesar de não disporem do atributo da personalidade de direito público, “pertencem” à Administração Pública; referimo-nos às entidades administrativas privadas, que assumem um formato jurídico-privado, embora sejam criadas por um ato de iniciativa pública, para a realização de funções administrativas sob o controlo e orientação de pessoas públicas – o conjunto das entidades administrativas privadas forma assim um segundo grupo de sujeitos da Administração Pública (Administração Pública em forma privada). No que diz respeito à recondução dos dois grupos que acabámos de identificar ao universo da Administração Pública há um acordo generalizado na doutrina. O mesmo já não se pode dizer em relação a um terceiro grupo, constituído pelas entidades particulares com funções administrativas (Administração Pública delegada ou concessionada). Pois bem, na nossa interpretação, essas entidades, embora emergindo da Sociedade Civil, devem considerar-se sujeitos da Administração Pública num sentido funcional, na exata medida em que se responsabilizam pelo desenvolvimento de uma função administrativa. O conceito de entidades administrativas privadas conjuga as duas notas que, de forma peculiar, distinguem esta categoria de sujeitos da Administração Pública: trata-se, por um lado, de entidades administrativas e, por outro lado, de entidades privadas. Entidades administrativas, porque “pertencem” à Administração Pública, sendo criadas e participadas ou, pelo menos, participadas por entidades públicas, que as controlam ou dominam (detêm sobre elas uma influência dominante); a referência fornece, assim, uma indicação de carácter substancial, sobre “quem são” realmente essas entidades. Entidades privadas, porque se apresentam com vestes de direito privado; trata-se de agora de uma referência com relevo exclusivamente formal, que indica estar em causa 105 uma entidade com uma forma organizativa de direito privado (sociedade comercial, cooperativa, associação). Atualmente, com a Lei-Quadro das Fundações, as fundações privadas (de direito privado) não podem assumir a condição de entidades administrativas privadas. Isto, porque a participação de pessoas coletivas públicas em fundações privadas só é possível quando não conduza à detenção de uma influência dominante; se a participação pública envolver esta influência, então, a fundação passa a qualificar-se como fundação pública de direito privado, a qual, nos termos da Lei-Quadro, possui a natureza de pessoa coletiva de direito público – reconhecemos que se afiguram estranhos, até exóticos, os contornos da situação, mas a verdade é que a opção do legislador foi mesmo a de criar uma figura absolutamente única: a fundação pública de direito privado que é afinal uma pessoa coletiva de direito público. O grupo formado pelas entidades administrativas privadas corresponde à designada Administração Pública em forma privada. A Administração Pública em forma privada pode resultar de um processo de privatização orgânica formal, por via da conversão de anteriores entidades de direito público em entidades de direito privado (assim se passou, por ex., com a transformação das administrações portuárias em sociedades anónimas); mas as entidades administrativas privadas também podem ser criadas ex novo, com um originário estatuto de direito privado. Por outro lado, essas entidades podem ser criadas para a prossecução de tarefas públicas previamente assumidas e geridas por uma entidade pública (v.g., como modalidade de gestão de serviços públicos) ou para o desempenho de novas tarefas, anteriormente não exercidas por uma entidade pública (v.g., criação de uma sociedade comercial para a gestão da participação nacional numa exposição internacional). O facto de as entidades administrativas privadas se dedicarem, eventualmente, a atividades económicas de mercado (v.g., setor bancário) não as desqualifica como entidades administrativas. Do que se trata aqui é de considerar da Administração, e, portanto, administrativa, uma entidade em que uma pessoa de direito público detém uma participação dominante. É da conjugação das condições da participação e do domínio de uma pessoa coletiva de direito público que resulta a figura das entidades administrativas privadas. Só a participação ou só a influência dominante (determinante; estreita dependência) não se revelam suficientes para integrar uma entidade no grupo das entidades administrativas privadas. 106 i) Participação exclusiva de pessoas coletivas públicas O critério ou fator da participação de uma pessoa coletiva pública apresenta-se essencial na delimitação do conceito de entidades administrativas privadas: não se revela suficiente o facto de uma pessoa coletiva pública deter uma “influência determinante” sobre uma entidade privada para se considerar esta uma entidade “administrativa” privada (desenvolvendo este ponto, cf., infra, sobre o conceito de organismo de direito público). As entidades administrativas privadas podem ser criadas por um ato da exclusiva iniciativa pública e envolver a participação de apenas uma entidade pública: por exemplo, a constituição de uma sociedade comercial em que o Estado é o único acionista. As entidades administrativas privadas também podem envolver a participação de várias entidades públicas: por exemplo, uma sociedade comercial criada por dois municípios; ou uma associação de direito civil criada entre o Estado e uma universidade. Nas duas hipóteses consideradas, estamos perante entidades administrativas privadas de participação exclusivamente pública. ii) Participação com influência dominante de pessoas coletivas públicas Mas as entidades administrativas privadas também podem assumir uma feição mista, quando envolvem a participação simultânea de entidades públicas e de entidades particulares: eis o que sucede com as sociedades de capitais mistos (por vezes designadas parcerias público-privadas institucionalizadas: PPPI), com as associações de direito civil que juntam associados públicos e associados particulares. Temos agora entidades administrativas privadas de participação público-privada. Neste segundo caso, adquire um relevo decisivo a determinação em concreto do grau da participação das pessoas coletivas públicas, pois só estamos diante de uma entidade administrativa privada – um sujeito da Administração Pública – se a pessoa coletiva pública (isoladamente ou em conjunto com outras pessoas coletivas públicas) detiver uma participação que lhe confira o controlo e a influência dominante (direta ou indireta) sobre a entidade privada. A “mera participação” de uma pessoa de direito público não se revela suficiente para fazer da “entidade privada participada” por uma pessoa pública uma entidade administrativa privada. Assim, as sociedades comerciais 107 participadas por municípios ou pelo Estado em 49% do capital social não são entidades administrativas privadas, não pertencem à Administração. O modo de aferir a participação dominante (participação com influência dominante) depende do tipo de entidade. Assim, o Regime Jurídico do Setor Empresarial do Estado, para identificar as sociedades comerciais que assumem a condição de empresas públicas, exige a influência dominante de entidades estaduais, que resulta dealguma das seguintes circunstâncias: a) detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto; b) direito de designar ou de destituir a maioria dos membros dos órgãos de administração ou de fiscalização. Por seu lado, a Lei da Atividade Empresarial Local considera empresas locais as sociedades constituídas ou participadas nos termos da lei comercial, nas quais as entidades públicas participantes possam exercer, de forma direta ou indireta, uma influência dominante em razão da verificação de um dos seguintes requisitos: a) detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto; b) direito de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de gestão, de administração ou de fiscalização; c) qualquer outra forma de controlo de gestão. No caso das associações de direito civil, embora não haja indicação legal, a participação dominante resultará da “maioria dos votos” na assembleia geral ou, porventura, no direito de designar a maioria dos titulares do órgão de administração da associação. Estamos agora em condições de perceber uma ideia já exposta: o conjunto das entidades administrativas privadas referencia um grupo de sujeitos da Administração Pública que “derivam” e nos quais tem necessariamente uma participação dominante um sujeito da Administração Pública do primeiro grupo (pessoas coletivas de direito público). iii) Notas finais sobre o universo da Administração Pública em forma privada As entidades administrativas privadas são sujeitos da Administração Pública. Como já se observou, a criação destas entidades surge, por vezes, no contexto de um processo de privatização orgânica formal (conversão de pessoas públicas em pessoas privadas). Mas, independentemente disso, a criação de entidades administrativas privadas representa constitui, em todos os casos, uma forma de 108 utilização do direito privado pelas pessoas coletivas de direito público, neste caso como “processo de organização” (cf., infra). As entidades administrativas privadas, porque apenas formalmente privadas, integram a Administração Pública em sentido orgânico-institucional. São abrangidas, entre outras entidades, as empresas públicas do Estado, as empresas locais e associações de direito privado participadas por instituições públicas de ensino superior. Podem existir em todos os setores da Administração Pública em sentido orgânico- institucional, na Administração estadual, como na Administração. As pessoas coletivas públicas com participação dominante nessas entidades podem ser o Estado ou municípios, mas também institutos públicos e associações públicas. 109 15 – Entidades particulares com funções administrativas Os dois grupos de “sujeitos da Administração Pública” que acabámos de analisar – pessoas coletivas de direito público e entidades administrativas privadas – pertencem à Administração Pública em sentido orgânico-institucional, surgindo nela integrados enquanto seus membros ou elementos. Ora, já o vimos, os cidadãos e, de um modo geral, as entidades particulares qua tale estão “fora” da Administração Pública, não lhe pertencem, nem a integram (cf. supra). Contudo, em certas circunstâncias, os cidadãos e as entidades particulares podem ser chamados a, em seu próprio nome e sob sua responsabilidade, desenvolverem tarefas e funções administrativas – não se trata de a entidade particular assumir a posição de trabalhador ou de titular de um órgão administrativo, mas de, enquanto particular e sem perder esta qualidade, assumir a responsabilidade direta pelo exercício de uma função administrativa; por outro lado, a entidade particular não se limita a colaborar com a Administração no exercício da sua atividade própria (como sucede com os “contratantes da Administração”, que prestam serviços na qualidade de entidades particulares), assumindo antes uma função de “colaboração de grau mais avançado”, que envolve a substituição da Administração. Nesse cenário, as entidades particulares surgem, em sentido funcional, como sujeitos da Administração Pública: exercem, em nome próprio, a função administrativa. Podemos falar, agora, de uma Administração Pública concessionada ou delegada. Diversamente do que sucede com a criação de entidades administrativas privadas, o fenómeno a que nos reportamos ultrapassa a dimensão puramente organizativa, visto que envolve a entrega de funções públicas a verdadeiras entidades particulares: cidadãos ou pessoas coletivas da esfera privada que oferecem a sua colaboração, o seu saber, as suas competências, mas que não deixam simultaneamente de serem particulares e de agirem segundo “motivações privadas” de variada ordem. Podem colaborar com o Estado, mas pertencem à Sociedade Civil, à esfera privada. O estatuto duplo inerente à figura da entidade particular com funções administrativas impede uma construção exclusivamente organizativa do processo de concessão ou delegação. A contradição institucional que caracteriza a figura não tem paralelo nas entidades privadas do setor público, pelo menos as que são integralmente detidas por entidades públicas. Não existe, neste caso, a situação ostensiva de “confluência de 110 interesses opostos” presente no cenário em que uma entidade da esfera privada, que prossegue interesses privados, assume a responsabilidade por exercer uma atividade de realização de interesses públicos. A delimitação do universo das entidades particulares com funções administrativas, ou, se quisermos, a delimitação do instituto do “exercício de funções administrativas por particulares”, reclama a verificação dos seguintes requisitos cumulativos: i) Entidade particular – entidade particular, entidade privada ou cidadão é qualquer pessoa que não pertença à esfera pública, quer dizer, que não seja uma pessoa coletiva de direito público, nem uma entidade administrativa privada, e, por outro lado, que não seja trabalhador, funcionário ou titular de órgão da Administração Pública ou órgão público; ii) Responsável pelo exercício (de uma função administrativa) – a entidade particular tem de assumir em nome próprio o exercício de uma função administrativa; não basta que colabore com a Administração, mas reclama-se que exerça em nome próprio, como um “sujeito de imputação final”, uma função que pertence à Administração Pública; iii) Função administrativa – o recorte do âmbito da figura fica ainda dependente da presença de uma função administrativa; impõe-se, nesta circunstância, sublinhar sobretudo o carácter público (“não privado”) das tarefas abrangidas pela função administrativa; a conclusão de que um particular exerce uma função administrativa pressupõe que a tarefa concreta a que ele se dedica tenha sido objeto de uma “apropriação pública”, isto é, de um ato pelo qual o Estado ou outra entidade pública assumem uma responsabilidade originária por essa tarefa; sem este momento prévio, de “apropriação pública”, não existe uma tarefa pública, mas antes e apenas uma tarefa privada (uma tarefa cuja execução, com ou sem exclusivo, não é assumida pelos Poderes Públicos); neste caso, por ausência de uma tarefa pública, não pode falar-se de exercício da função administrativa (1) . A necessária presença de prévia apropriação pública da tarefa envolvida permite perceber o “carácter translativo” do título conferido ao particular para o exercício da função administrativa. Quer dizer, a função (administrativa) que a entidade particular exerce é- lhe “confiada”, “delegada” ou “concedida” através de um ato público, que opera a transferência do exercício dessa função. 1 Para mais desenvolvimentos,cf. Entidades Privadas, cit., p. 467 e segs. 111 Entidades particulares com funções administrativas são, por exemplo, as empresas concessionárias de serviços públicos (v.g., concessões municipais de abastecimento de água ou de recolha de resíduos; concessões de movimentação de cargas em portos; concessão da gestão de um hospital do Estado), concessionárias de obras públicas (v.g., concessão de exploração de uma autoestrada), concessionárias de exploração do domínio público (v.g., concessão de exploração de jazigos minerais) e concessionárias de outras responsabilidades públicas (v.g., concessão de jogos de fortuna ou azar); as federações desportivas com utilidade pública desportiva (que se ocupam da regulação pública, oficial, de modalidades desportivas); as entidades certificadoras de produtos vitivinícolas (comissões vitivinícolas regionais); organizações de inspeção, vistoria e certificação de navios; guardas florestais; comandantes de aeronaves; comandantes de navios mercantes, portageiros de autoestradas. As situações de exercício de funções administrativas por particulares apresentam uma grande variedade: i) incluem casos de exercício de funções administrativas por pessoas coletivas e por pessoas singulares; ii) incluem o exercício de funções que envolvem o exercício de poderes públicos de autoridade e de decisão, mas podem abranger apenas atividades materiais; iii) o título para o exercício de funções administrativas, sempre com um carácter translativo, é, nos casos mais relevantes, um contrato, mas também pode ser um ato unilateral da Administração ou até a própria lei. [nota sobre os designados organismos de direito público] Por influência do direito da União Europeia, a legislação portuguesa identifica uma categoria de entidades que preenchem os três requisitos cumulativos do conceito de organismo de direito público (cf. artigo 4.º, n.º 2, da LADA, e artigo 2.º, n.º 2, do CCP): a) Possuírem personalidade jurídica, que pode ser de direito público ou de direito privado; b) Terem sido criadas para satisfazer de um modo específico necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial; c) Em relação às quais se verifique uma das seguintes circunstâncias: i) A respetiva atividade ser financiada maioritariamente por pessoas coletivas de direito público ou por outros organismos de direito público; ii) A respetiva gestão estar sujeita a um controlo por pessoas coletivas de direito público ou outros organismos de direito público; 112 iii) Os respetivos órgãos de administração, de direção ou de fiscalização são compostos, em mais de metade, por pessoas coletivas de direito público ou outros organismos de direito público . Quando revistam natureza jurídica privada, as entidades que preenchem estes requisitos apresentam-se próximas das entidades administrativas privadas. Contudo, não há necessariamente uma identificação, devendo distinguir-se a “participação com influência dominante” da “influência determinante”. Assim, a participação de uma pessoa pública (participação dominante ou com influência dominante) numa entidade privada é um elemento essencial do conceito de entidade administrativa privada e conduz à integração desta na categoria de sujeito da Administração Pública). Já os organismos de direito público podem ser quaisquer verdadeiras entidades privadas (= entidades particulares) que se situem numa “estreita dependência” em face de pessoas coletivas de direito público [estreita dependência aferida em função de um dos fatores a que se refere a alínea c)], haja ou não uma participação destas, com ou sem influência dominante. O relevo jurídico do critério da participação (em associações) é visível no artigo 2.º do CCP: assim, por exemplo, uma associação civil que se dedique à promoção do desenvolvimento local maioritariamente financiada por um município é uma entidade sujeita ao CCP nos termos do n.º 1 ou do n.º 2 do artigo 2.º, consoante o município faça parte da mesma (enquanto associado) ou não. 113 CAPÍTULO 3 Setores da Administração Pública A Administração Pública não constitui “uma” organização, nem corresponde a uma entidade com personalidade jurídica; trata-se, pelo contrário, de uma sistema de organizações ou de sujeitos, caracterizado, pois, pela pluralidade subjetiva. A arquitetura plural da Administração Pública recomenda uma exposição que nos elucide sobre o modo como esse sistema de sujeitos se organiza e dispõe no terreno. No fundo, pretende-se perceber agora como se encontra arrumada ou organizada a miríade de entidades que consubstanciam o universo da Administração. Para a correta compreensão do modelo organizativo português, importa começar por perceber que na sua base se deteta uma dicotomia essencial entre o setor da Administração Pública do Estado e a Administração Pública autónoma (setor da Administração Pública que se apresenta “autónoma” em relação ao Estado). Hoje, parece-nos justificar-se a autonomização de um terceiro setor, composto pela Administração Pública delegada ou concessionada (entidades particulares com funções administrativas). Secção I Administração Pública estadual A Administração Pública do Estado (estadual) identifica o setor da organização administrativa dedicado à satisfação dos interesses públicos cuja prossecução é da responsabilidade do Estado: interesses públicos nacionais ou estaduais. A realização e a prossecução de interesses públicos nacionais concretizam-se em fins ou atribuições do Estado-Administração. A multiplicidade daqueles interesses – relacionados com finalidades a prosseguir em matérias tão variadas entre si como a preservação da ordem pública ou o fomento do desporto, a proteção da saúde ou a regulação do mercado, a defesa do ambiente ou o apoio à terceira idade – exige uma especial arquitetura organizativa, a envolver a instituição de inúmeras autoridades e centros de decisão, com estatutos jurídicos muito diferenciados e, não raro, com diferentes áreas geográficas de intervenção. Nuns casos, os organismos, serviços e autoridades instituídos para a realização dos fins do Estado não detêm personalidade jurídica: assim sucede com serviços como a Direção-Geral da Saúde ou a Polícia de Segurança Pública. Mas a realização dos fins do 114 Estado encontra-se confiada, com frequência, a organismos dotados de personalidade jurídica: eis o que ocorre, por exemplo, com a Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., ou com a ANACOM. Estas duas situações permitem distinguir entre a Administração estadual direta e a Administração estadual indireta: a primeira refere-se à realização dos fins do Estado pelo próprio Estado, diretamente através dos seus órgãos e serviços; a segunda reporta-se à realização dos fins estaduais por entidades com personalidade jurídica distinta do Estado. Com uma posição de claro destaque no interior do Estado Administrativo, surge o Governo, constitucionalmente consagrado como “órgão superior da Administração Pública”, e que, em termos efetivos, assume um protagonismo decisivo no âmbito da Administração estadual. Em grande extensão, o setor da Administração Pública estadual encontra-se sob a influência – dependência – do Governo: nos termos constitucionais, o Governo dirige e orienta a Administração Pública estadual. Sem prejuízo do exposto, importa, contudo, ter presente o facto de, atualmente, uma parte importante da Administração estadual se mostrar independente do Governo. Este fenómeno, a que já aludimos, exprime a instituição, dentro da máquina do Estado, de entidades investidas de funções administrativas e da realização de finsdo Estado que beneficiam de uma garantia de desgovernamentalização no desempenho das suas missões principais. Quer isto dizer que a realização dos interesses públicos de cariz estadual não se processa sempre por intermediação de entidades, órgãos e serviços dependentes do Governo, colocados na sua área de influência e intervenção. Subsiste, pois, uma cópia de interesses públicos a realizar pelo Estado, mas fora do âmbito da influência ou ingerência governamental. Em função do exposto, conclui-se que a Administração estadual se reparte por duas áreas fundamentais: a Administração estadual direta e a Administração estadual indireta; esta, a administração estadual indireta, inclui entidades que prosseguem fins do Estado sob influência e na dependência do Governo e entidades que se revelam imunes a essa influência ou dependência (entidades administrativas independentes). 115 Subsecção I Administração estadual direta 16 – Estado-Administração A Administração estadual direta abrange o conjunto de órgãos administrativos e de serviços administrativos pertencentes ao Estado e que se encontram sujeitos ao poder de direção do Governo, no contexto de uma relação de hierarquia. Fala-se em administração direta do Estado porque, neste caso, a realização dos fins públicos estaduais é protagonizada diretamente pelo próprio Estado, por si mesmo, diretamente, através dos seus órgãos e serviços (“Estado-Administração”). Nos termos do artigo 2.º do Regime Jurídico da Administração Direta do Estado, integram esta os “serviços centrais e periféricos que, pela natureza das suas competências e funções, devam estar sujeitos ao poder de direção do respetivo membro do Governo”. Embora a associação se faça normalmente, importa sublinhar que não há uma correspondência absoluta entre Administração direta e hierarquia (direção). De facto, há órgãos e serviços do Estado, integrados na Administração direta, que não se encontram sob a dependência hierárquica do Governo: eis o que sucede, por exemplo, com as escolas do ensino básico e secundário que têm órgãos próprios, como o conselho geral, cujos membros representam o pessoal docente e não docente, os pais, os alunos, o município e a comunidade local. Ao conselho geral cabe, além do mais, eleger o diretor da escola. Estes órgãos, integrando a Administração direta, não dependem hierarquicamente do Governo. Os termos da composição dos órgãos de administração e gestão das escolas respondem à orientação constitucional no sentido da “participação democrática no ensino” (artigo 77.º da CRP). O setor da Administração estadual direta subdivide-se, assim, em Administração central (órgãos e serviços centrais) e em Administração periférica (órgãos e serviços periféricos). 16.1 – Administração central do Estado Este setor da Administração do Estado inclui o Governo, na sua condição de órgão administrativo, bem como os órgãos e serviços dele diretamente dependentes que exercem uma competência extensiva a todo o território nacional (continental) – órgãos e serviços centrais. Nos termos do artigo 183.º da CRP, o Governo é constituído pelo Primeiro- Ministro, pelos Ministros (que se responsabilizam pelos ministérios, departamentos ou 116 serviços que prosseguem fins materialmente delimitados), e por Secretários de Estado e Subsecretários de Estado. De acordo com o artigo 4.º do Regime Jurídico da Administração Direta do Estado cabe à lei orgânica de cada ministério definir as respetivas atribuições, bem como a estrutura necessária ao seu funcionamento: atualmente, a estrutura do Governo encontra-se prevista na Lei Orgânica do XIX Governo Constitucional, sendo cada um dos ministérios dotado de uma lei orgânica própria (v.g., lei orgânica do Ministério da Economia, que consta do Decreto-Lei n.º 11/2014, de 22 de janeiro). Na Administração do Estado, o ministério (ou departamento ministerial) é uma unidade administrativa referencial em termos de organização. Tendencialmente, todos os órgãos e serviços do Estado são integrados em ministérios, seja ao nível central, seja ao nível periférico. Cada ministério é objeto de desconcentração funcional (os órgãos que o integram exercem funções diferentes) e de desconcentração geográfica (comporta órgãos centrais e órgãos periféricos). Ao setor da Administração central do Estado pertencem os serviços centrais, como as direções-gerais (v.g., Direção-Geral do Ensino Superior ou Direção-Geral das Autarquias Locais), as inspeções-gerais (v.g., a Inspeção-Geral de Finanças) e outros serviços, com diversas designações (v.g., Centro de Gestão da Rede Informática do Governo, Biblioteca Nacional de Portugal, ASAE, Autoridade Nacional de Proteção Civil, Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária). Os serviços centrais podem dispor de unidades orgânicas geograficamente desconcentradas (por exemplo, a ASAE tem cinco direções-regionais). Pertencem ao setor da Administração central os serviços e forças de segurança, como a Polícia de Segurança Pública (Lei n.º 53/2007, de 31 de agosto), a Guarda Nacional Republicana (Lei 63/2007, de 6 de novembro), o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (Decreto-Lei n.º 252/2000, de 16 de outubro) – todos estes serviços e forças de segurança integram o Ministério da Administração Interna, dependem diretamente do Ministro da Administração Interna e contam com unidades desconcentradas (divisões policiais e esquadras da PSP e os comandos territoriais da GNR). 117 16.2 – Administração periférica do Estado Os órgãos e serviços da Administração central do Estado têm “jurisdição” em todo o território nacional. Mas o Estado detém ainda órgãos e serviços subordinados ao Governo e integrados em ministérios, mas com poderes restritos a determinada porção do território nacional ou circunscrição administrativa (esta é a designação da parcela territorial que resulta da divisão do território nacional para efeitos administrativos) – cf. artigo 11.º, n.º 4, do Regime Jurídico da Administração Direta do Estado que define os serviços periféricos como sendo aqueles que “dispõem de competência limitada a uma área territorial restrita” Existe assim uma Administração periférica ou local do Estado. Encontram-se aqui incluídos, por exemplo, os serviços periféricos de finanças, as direções-regionais dos vários ministérios (v.g., direções regionais da agricultura e pescas, da educação, da cultura) ou as comissões de coordenação e desenvolvimento regional. As áreas de competência territorial dos serviços periféricos – circunscrições administrativas – não são sempre coincidentes. Em certos casos, subsiste uma divisão distrital (v.g., centros distritais de segurança social; comandos distritais da PSP), mas, nos últimos anos, tem sido visível o esforço no sentido da criação uma circunscrição “regional”, correspondente às designadas NUTS II (unidades territoriais de nível 2): Norte, Centro, Lisboa, Alentejo, Algarve. De resto, é este o sentido do Regime Jurídico da Administração Direta do Estado, quando alude às direções regionais e às inspeções regionais como serviços periféricos. Refiram-se ainda os serviços periféricos externos, que exercem poderes fora do território nacional (cf. artigo 11.º, n.º 5, do Regime Jurídico da Administração Direta do Estado), como sucede com as embaixadas, as representações permanentes ou os postos consulares. Subsecção II Administração estadual indireta A Administração estadual indireta é um resultado ou efeito dos processos de desconcentração intersubjetiva. Esta consubstancia-se, em primeira linha, na instituiçãolegal de organismos com o atributo da personalidade de direito público para a realização de fins do Estado, sob a superintendência e tutela do Governo: os institutos públicos. 118 À Administração estadual indireta, enquanto universo de entidades com personalidade jurídica própria que prosseguem finalidades originariamente assumidas e pertencentes ao Estado, reconduzem-se ainda as empresas públicas, bem como outros organismos que o Estado constitui ou em que participa e aos quais confia a execução de tarefas da sua responsabilidade. Há um elemento comum aos organismos referidos, que se integram no setor da Administração estadual indireta: a sua dependência em relação ao Governo, o qual dispõe do poder de os supervisionar, quer mediante a emissão de diretrizes e instruções, quer através de outras formas de controlo da gestão, como a emanação de orientações e a designação dos respetivos dirigentes. Ao conjunto composto pelos institutos públicos e empresas públicas, podemos atribui a designação de Administração estadual indireta dependente do Governo. Tendo presente que o conceito de Administração estadual indireta se refere à realização de fins estaduais por entidades com personalidade jurídica própria, parece de reconduzir a esse setor da Administração Pública as seguintes situações, que, contudo, apresentam contornos particulares: i) as instituições de ensino superior, que desfrutam de um estatuto qualificado de autonomia, dispõem de órgãos de autogoverno e, por isso, revelam uma legitimidade própria que as retira da esfera de influência do Governo; estamos aqui em face de uma Administração estadual indireta autónoma; ii) as entidades administrativas independentes, colocadas fora da esfera de influência do Governo; aludimos, neste caso, a uma Administração estadual independente. 17 – Administração estadual indireta dependente do Governo A Administração estadual indireta dependente do Governo compreende duas figuras principais: os institutos públicos e as empresas públicas. 17.1 – Institutos públicos Os institutos públicos são pessoas coletivas públicas de natureza institucional ou fundacional, destinadas a prosseguir, em nome próprio e com autonomia administrativa (e, em regra, com autonomia financeira), determinados fins públicos do Estado. O regime jurídico dos institutos públicos encontra-se previsto na LQIP – aqui se estabelece que “os institutos públicos integram a administração indireta do Estado (e das Regiões Autónomas)”. 119 São criados por lei. A criação de institutos públicos apenas se revela viável para o desenvolvimento de atribuições que recomendem, face à especificidade técnica da atividade desenvolvida, designadamente no domínio da produção de bens e da prestação de serviços, a necessidade de uma gestão não submetida à direção do Governo, estando impedida a constituição de institutos públicos para o desempenho de atividades que, nos termos constitucionais, devam ser desempenhadas por organismos da Administração estadual direta ou para personificar serviços de estudo e conceção, coordenação, apoio e controlo de outros serviços administrativos. 17.1.1 – Tipos de institutos públicos Nos termos da LQIP, os institutos públicos podem assumir a forma de “serviços personalizados” ou de “fundos”, ou seja, de fundações públicas. O conceito de “estabelecimento” surge na LQIP, não para indicar um tipo de instituto público, mas antes os estabelecimentos que um instituto público pode deter; cf. artigo 3.º, n.º 2, e 52.º. Fora do âmbito da LQIP, a referência a “estabelecimentos” aparece na Lei da Gestão Hospitalar (Lei n.º 27/2002, de 8 de novembro), mas não necessariamente associada ao conceito de instituto público: nos termos dessa lei, estabelecimentos públicos são os hospitais com personalidade de direito público, que podem assumir a forma de entidades públicas empresariais. Por seu lado, o RJIES também emprega o conceito de estabelecimento (de ensino superior), mas identifica as universidades e os institutos politécnicos pela designação genérica de “instituições de ensino superior públicas” (que, nos termos da lei, podem ser pessoas coletivas de direito público ou assumir natureza fundacional). A categoria dos serviços personalizados apresenta hoje carácter residual, pelo que assim se devem qualificar todos os institutos públicos que não se reconduzem ao tipo fundacional, ao conceito de fundações públicos. Da conjugação do disposto no artigo 51.º da LQIP com o disposto no artigo 49.º, n.º 2, da Lei-Quadro das Fundações, conclui-se que se reconduzem à categoria das fundações públicas os institutos públicos que tenham por fim a promoção de quaisquer interesses públicos de natureza social, cultural, artística ou outra semelhante e sejam dotados de um património cujos rendimentos constituam uma parte considerável das suas receitas. A Lei-Quadro das Fundações criou uma situação com contornos um pouco estranhos. Começa por distinguir entre as fundações privadas e as fundações públicas. As primeiras pertencem ao setor privado; as fundações públicas pertencem ao setor público: são criadas exclusivamente por pessoas coletivas públicas ou encontram-se sob influência dominante destas. Até este ponto, nenhum problema se assinala. Todavia, a seguir, a Lei 120 distingue as fundações públicas em fundações públicas de direito público e fundações públicas de direito privado e acaba a qualificar todas as fundações públicas como pessoas coletivas de direito público. O resultado conduz a uma situação de total non sense: entidades que a lei designa “fundações públicas de direito privado” são afinal “pessoas coletivas de direito público” – assim, por exemplo, a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, criada pelo Decreto-Lei n.º 369/2007, de 5 de novembro, com a natureza de fundação de direito privado (com utilidade pública) é uma pessoa coletiva de direito público. Nos termos da Lei-Quadro das Fundações, todas as fundações públicas (de direito público ou de direito privado) se qualificam como institutos públicos e estão sujeitas ao regime previsto na LQIP nos domínios da gestão económico-financeira e patrimonial, da organização e dos serviços de que dispõem e da sujeição aos poderes de superintendência e de tutela. 17.1.2 – Organização territorial Em regra, os institutos públicos têm um âmbito nacional (ressalvada a esfera própria da administração das regiões autónomas): artigo 15.º, n.º 1, da LQIP. Mas há institutos públicos com um outro âmbito geográfico de atuação: eis o que sucede com as “administrações regionais de saúde”, que são institutos públicos de âmbito regional (v.g., Administração Regional de Saúde do Centro, I.P.). Os institutos públicos de âmbito podem dispor de serviços territorialmente desconcentrados: por exemplo, o Instituto Nacional de Emergência Médica, I.P., ou o Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P., dispõem de “delegações regionais”. Nos termos da LQIP, a circunscrição territorial dos serviços desconcentrados dos institutos públicos deverá corresponder à circunscrição dos serviços periféricos do ministério da tutela. 17.1.3 – Regime jurídico aplicável A LQIP define um regime comum nas matérias relativas à organização, à gestão económico-financeira e patrimonial, bem como quanto à tutela, superintendência e responsabilidade. Trata-se de um regime que consente desvios ditados na lei de criação de cada organismo. Como sabemos já, a LQIP estabelece ainda que certos institutos gozam de um regime especial, em derrogação do regime comum, na estrita medida necessária à sua especificidade. Na sequência da exposição,teremos oportunidade de analisar o regime de dois “institutos públicos de regime especial”: as instituições de ensino superior, ainda 121 no âmbito da Administração indireta do Estado, e os institutos públicos com natureza de entidades administrativas independentes, no contexto da Administração independente. 17.1.4 – Integração dos institutos públicos em ministérios Cada instituto público está adstrito e prossegue as atribuições de um ministério, designado “ministério da tutela”; as leis orgânicas dos ministérios devem mencionar os institutos públicos que prosseguem as respetivas atribuições: artigo 7.º da LQIP. Assim, v.g., nos termos da respetiva lei orgânica, prosseguem atribuições do Ministério do Emprego os seguintes institutos públicos: IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, I.P.; Instituto do Turismo de Portugal, I.P.; Instituto Português da Qualidade, I.P.; Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P.; Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P.; Laboratório Nacional de Engenharia Civil, I.P.; Instituto Português de Acreditação, I.P. Frequentemente, nas leis, na prática administrativa e até na linguagem comum, utiliza-se a fórmula “ministro (ou ministério) da tutela”. Em geral, trata-se de uma indicação que pretende sobretudo referenciar a ligação entre um certo organismo e um departamento ministerial. O citado artigo 7.º da LQIP, sobre o “ministério da tutela”, estabelece que “cada instituto está adstrito a um departamento ministerial, abreviadamente designado como ministério da tutela”. Quer aqui, quer noutros contextos, a fórmula não pretende indicar a subsistência de uma mera relação de tutela – pode, de facto, aludir a uma relação de superintendência ou de outra natureza (porventura, até de hierarquia). 17.1.5 – Organização Os institutos públicos de regime comum adotam para órgão de direção o modelo de conselho diretivo. Detendo autonomia administrativa e financeira, a organização do instituto público contempla o fiscal único. Pode ainda existir um conselho consultivo. Os membros do conselho diretivo são designados por despacho do membro do Governo da tutela, na sequência de procedimento concursal, ao qual se aplicam, com as necessárias adaptações, as regras de recrutamento, seleção e provimento nos cargos de direção superior da Administração Pública previstos no Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública. 17.1.6 – Superintendência e tutela governamental Os institutos públicos estão sujeitos ao poder de superintendência e de tutela do Governo. Mais tarde veremos em que consistem estes poderes. 122 17.2 – Empresas públicas Nos termos do Regime Jurídico do Setor Público Empresarial, empresas públicas do Estado são as sociedades comerciais sob influência dominante do Estado ou entidades estaduais, bem como as entidades públicas empresariais. As empresas públicas dedicam-se, em regra, ao desenvolvimento de atividades de carácter económico ou, pelo menos, suscetíveis de exploração segundo uma racionalidade empresarial: gestão de hospitais, administração e gestão de infraestruturas (portos, estradas, rede ferroviária), exploração de serviços públicos (correios, sistemas multimunicipais de água, serviços de transporte rodoviário e ferroviário), gestão de equipamentos (teatros, museus, escolas), intervenção no mercado (bancos, comunicação social)., na prestação de serviços e fornecimento de bens. Tendo em consideração a respetiva área de intervenção, as empresas públicas dividem-se em empresas financeiras (v.g., Caixa Geral de Depósitos) e empresas não financeiras. Estas últimas dedicam-se à gestão de serviços públicos ou de serviços de interesse económico geral (por exemplo, CP, RTP, REFER, Correios). a) Tipos de empresas públicas Considerando apenas a Administração estadual, da ótica das formas, o Regime Jurídico do Setor Público Empresarial contempla dois tipos de empresas públicas (cf. artigo 13.º): i) As organizações empresariais constituídas sob a forma de sociedade de responsabilidade limitada nos termos da lei comercial, nas quais o Estado ou outras entidades públicas possam exercer, isolada ou conjuntamente, de forma direta ou indireta, influência dominante estadual ii) As entidades públicas empresariais. As primeiras são sociedades comerciais (constituídas nos termos e condições da lei comercial) que se encontram sob a influência dominante do Estado ou de entidades públicas estaduais. Esta influência dominante pode resultar de qualquer das seguintes situações: a) o Estado deter uma participação superior à maioria do capital; b) o Estado dispor da maioria dos direitos de voto; c) o Estado ter a possibilidade de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de administração ou do órgão de fiscalização; d) o Estado dispor de participações qualificadas ou direitos especiais que lhe permitam influenciar de forma determinante os processos decisórios ou as opções estratégicas 123 adotadas pela empresa ou entidade participada (cf. artigo 9.º do Regime Jurídico do Setor Público Empresarial). As entidades públicas empresariais são pessoas coletivas de direito público, com natureza empresarial, criadas por decreto-lei, o qual aprova também os respetivos estatutos. A denominação das entidades públicas empresariais integra a expressão “entidade pública empresarial” ou as iniciais “E. P. E.”. Exemplos: Parque Escolar. E.P.E.; Teatro Nacional de S. João, E.P.E.; Comboios de Portugal, E.P.E., Metropolitano de Lisboa, E.P.E.; vários hospitais, designados, em geral, Hospitais, E.P.E. (note-se que também há hospitais públicos com a natureza jurídica de institutos públicos). Como o nome indica, as entidades públicas empresariais constituem empresas; trata-se de empresas públicas, que se distinguem das empresas públicas em formato de sociedade comercial precisamente por deterem personalidade jurídica pública. Por comparação com estas, as entidades empresariais públicas encontram-se submetidas a um regime mais publicizado do ponto de vista organizativo. b) Orientação do Estado As empresas públicas prosseguem atribuições estaduais, são dirigidas por gestores designados pelo Estado (gestores públicos) e a sua atuação encontra-se sujeita às diretrizes que o Governo emana no exercício da função acionista e do poder legal de emissão de orientações estratégicas. 17.3 – Outros organismos no âmbito da administração estadual indireta Além dos institutos públicos e das empresas públicas, o Estado serve-se ainda de organismos de outro tipo, em que participa e que controla, para desenvolver tarefas da sua responsabilidade. Eis o que sucede, por exemplo, com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), entidade a quem se encontra concedido o direito (reservado ao Estado) de promover concursos de apostas mútuas: Decreto-Lei n.º 84/85, de 28 de março. Ainda que num formato particular, a SCML é uma entidade privada cuja gestão se encontra sob controlo do Estado; integra, por isso, a chamada Administração Pública em forma privada. De acordo com os respetivos estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, adiante designada por SCML, é uma pessoa coletiva de direito privado e utilidade pública administrativa. 124 18 – Administração estadual indireta autónoma: o caso das instituições de ensino superior Nos termos do RJIES, o ensino superior articula-se segundo um sistema binário: o ensino universitário e o ensino politécnico. A este sistema correspondem dois tipos de instituições de ensino superior:as universidades e os institutos politécnicos. Trata-se, nos dois casos, de institutos públicos, que integram o sistema público de ensino criado pelo Estado [cf. artigo 74.º, n.º 2, alínea b) da CRP] e realizam fins do Estado no domínio do ensino: cf. artigo 9.º, alínea f), da CRP. Por isso mesmo, o RJIES estabelece que as instituições de ensino superior públicas se sujeitam ao regime aplicável às demais pessoas coletivas públicas, designadamente à LQIP, que vale como direito subsidiário, em tudo o que não contrariar o próprio RJIES (artigo 9.º n.º 2). Todavia, o n.º 2 do artigo 76.º da Constituição confere às universidades, nos termos da lei e sem prejuízo de adequada avaliação da qualidade de ensino, autonomia estatutária, científica, pedagógica, administrativa e financeira. Além disso, nos termos do artigo 76.º do RJIES as instituições de ensino superior públicas dispõem de órgãos de governo próprio, num quadro de autogoverno, em que os titulares dos órgãos dirigentes são escolhidos pelos membros da respetiva comunidade (universitária ou do instituto politécnico). As instituições de ensino superior encontram-se, pois, numa situação híbrida, que se situa a meio caminho entre a administração indireta do Estado (designadamente porque prosseguem interesses do Estado) e a administração autónoma (sobretudo por força dos componentes de autonomia e de autogoverno). Revela-se porventura correto qualifica-las como instituições integradas num setor de “administração estadual indireta autónoma”. Nos termos do respetivo regime jurídico, as instituições do ensino superior estão sujeitas à tutela do Estado. O artigo 11.º, n.º 5, desse regime indica precisamente que a autonomia das instituições do ensino superior não preclude a tutela governamental. O poder de tutela administrativa é exercido pelo departamento governamental com responsabilidade pelo sector do ensino superior, tendo em vista, fundamentalmente, “o cumprimento da lei e a defesa do interesse público”. Entre outros, a lei confere ao ministro da tutela os seguintes poderes: i) autorização da criação, transformação, cisão, 125 fusão e extinção de escolas de instituições de ensino superior; ii) homologação dos estatutos das instituições e suas alterações; iii) homologação da eleição do reitor ou presidente das instituições de ensino superior públicas (a recusar de homologação tem de se basear em inelegibilidade, em ilegalidade do processo de eleição ou em violação de regras e princípios gerais do CPA); iv) iniciativa do procedimento de eleição do reitor ou presidente, se os órgãos competentes o não fizerem em devido tempo; v) autorização das instalações de ensino de ciclos de estudos conducentes à atribuição de graus académicos; vi) autorização (conjunta com o Ministro das Finanças) da alienação, permuta e oneração de património ou cedência do direito de superfície, do recurso ao crédito por parte das instituições; vii) designação do fiscal único; viii) informação sobre os relatórios de auditorias e sobre os instrumentos de gestão previsional e de prestação de contas; ix) apreciação e decisão dos recursos cuja interposição esteja prevista em disposição legal expressa; x) fiscalização do cumprimento da lei (ações inspetivas através da Inspeção-Geral de Finanças) e aplicação das sanções nela previstas em caso de infração. Nota – poderes de intervenção do Estado sobre as instituições de ensino superior não reconduzíveis à tutela administrativa Os poderes do Estado sobre as instituições do ensino superior não se esgotam na tutela. A lei confere ao ministro da tutela poderes de outra natureza, como os seguintes: i) registo da denominação da instituição de ensino superior; ii) convocação de eleições para os órgãos; iii) determinação unilateral no sentido da articulação entre instituições e da criação de consórcios de instituições; iv) modificação, fusão, cisão e extinção de instituições de ensino superior públicas; v) intervenção no processo de fixação do número máximo de novas admissões e de inscrições: estes são fixados anualmente pelas instituições de ensino superior, mas essa fixação está subordinada, além do mais, às orientações gerais estabelecidas pelo ministro da tutela; em caso de ausência de fundamentação expressa e suficiente dos valores fixados, de infração das normas legais aplicáveis ou de não cumprimento das orientações gerais estabelecidas, o ministro pode alterar os números fixados pelas instituições: vi) fixação, com base em critérios legais, do número máximo de docentes, investigadores e outro pessoal, qualquer que seja o regime legal aplicável, que cada instituição de ensino superior pública pode nomear ou contratar, bem como fixação do número de unidades dos quadros de pessoal docente, de investigação e outro de cada instituição de ensino superior pública. 126 19 – Administração estadual independente do Governo 19.1 – Noção A noção de Administração independente identifica um setor da Administração Pública que prossegue finalidades do Estado mas que, no exercício das suas funções específicas, se revela imune à interferência governamental: em ordenamentos jurídicos estrangeiros, designa-se esta como uma Administração Pública “livre de ministro” ou “imune ao ministro”. Tendo em consideração a centralidade do Governo na Administração estadual, expressa no artigo 182.º da CRP, pode dizer-se que a criação destas estruturas obedece a um propósito de deslocar elementos da Administração do Estado da esfera de influência (e também de responsabilidade) do Governo. A Administração estadual independente encontra consagração genérica ou, pelo menos, previsão constitucional no n.º 3 do artigo 267.º, que confere ao legislador o poder de criação de “entidades administrativas independentes” – a Constituição alude ainda a este conceito no artigo 39.º, para estabelecer que a função de regulação da comunicação social cabe a uma entidade administrativa independente. 19.2 – Dimensões ou planos da independência Abstraindo do respetivo fundamento, a independência típica das entidades que analisamos manifesta-se no plano orgânico e no plano funcional. No plano orgânico, a independência projeta-se na configuração do estatuto pessoal dos titulares dos órgãos, quando ao respetivo modo de designação e ao regime jurídico dos respetivos mandatos: por vezes, os membros são designados por instâncias exteriores ao Governo, sobretudo, pela Assembleia da República. Mas o facto de a designação competir ao Governo (e assim sucede em muitos casos, v.g., quanto às entidades reguladoras abrangidas pela LQIP: artigo 17.º, n.º 3) não exclui o atributo da independência orgânica, que pode resultar do próprio procedimento de designação (com exigência de audição parlamentar dos indigitados), bem como do estabelecimento de garantias pessoais da independência: afastamento do poder governamental de demissão dos titulares dos órgãos, proibição de renovação de mandatos e não coincidência entre os mandatos do Governo e os dos titulares dos órgãos constituem as garantias mais comuns. 127 Na dimensão funcional, a independência consubstancia-se na não subordinação do exercício de funções a qualquer poder de direção ou de orientação do Governo; quer a definição das prioridades do exercício das suas missões, quer a definição do modo de as implementar integram a esfera da independência administrativa. Esta exclui ainda qualquer poder governamental de controlo ou de fiscalização sobre o modo como a Administração independente exerce as suas funções. Uma dimensão importante da independência administrativa materializa-se no planofinanceiro (autossuficiência financeira). Embora as situações possam variar, em relação a certos organismos independentes, a atribuição legal de poderes para a cobrança de receitas próprias constitui um fator decisivo de reforço da independência. Em certos casos, a independência deve também projetar-se em face do conjunto dos destinatários da ação da entidade; está em causa a prevenção do risco da captura da Administração por interesses privados: em regra, este risco previne-se com a fixação de períodos de quarentena, isto é, períodos de tempo após o fim do mandato dentro dos quais os dirigentes das entidades administrativas não podem ser contratados ou prestar serviços a entidades que tenham tido a incumbência de regular. Embora se ofereça evidente, não é desadequado sublinhar que o que aqui está em jogo é uma independência administrativa, perante o Governo e toda a Administração Pública, mas não em face da lei, nem em face dos tribunais. Assim, como toda a restante Administração Pública, as instâncias das Administração independente estão subordinadas ao Direito Administrativo e, por conseguinte, aos princípios da legalidade e da submissão aos tribunais. 19.3 – Localização da administração independente no sistema administrativo Acabámos de perceber que a independência das entidades administrativas independentes se projeta perante o Governo e a restante Administração Pública. Todavia, em certos domínios, a lei pode localizar as entidades independentes num determinado setor da Administração. Eis o que sucede, nos termos previstos na LQER, com as entidades administrativas independentes com funções de regulação da economia: o artigo 9.º, n.º 1, estabelece que, “sem prejuízo da sua independência, cada entidade reguladora está adstrita a um ministério, abreviadamente designado como ministério responsável, em cuja lei orgânica deve ser referida”. De resto, como haverá ocasião de ver, a LQER prevê, de forma limitada e marginal, poderes de intervenção 128 tutelar do Governo sobre estas entidades; esta solução está em linha com a adstrição das mesmas a um ministério. O mesmo já não se verifica com outras entidades administrativas independentes, como a Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Agora, a lei não prevê qualquer espécie de adstrição da entidade ao Governo. Trata-se de um setor da Administração Pública que se pode considerar localizado “junto da Assembleia da República”. 19.5 – Em especial, as entidades administrativas independentes com funções de regulação da economia Desde agosto de 2013, com a LQER, passou a existir uma lei-quadro que disciplina o modelo institucional das designadas “entidades reguladoras” – o conceito surge aí com o sentido de se aplicar às entidades reguladoras reconhecidas como tal na lei que aprova a LQER (a saber: Instituto de Seguros de Portugal; Comissão de Mercado de Valores Mobiliários; Autoridade da Concorrência; Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos; Autoridade Nacional de Comunicações; Instituto Nacional da Aviação Civil; Instituto da Mobilidade e dos Transportes; Entidade Reguladora dos Serviços das Águas e dos Resíduos; Entidade Reguladora da Saúde), bem como às que venham a ser criadas e preencham as condições previstas no artigo 3.º da LQER (quanto à natureza e atribuições, por um lado, e quanto a determinados requisitos, por outro lado). Obs. – Fora do âmbito de aplicação da LQER ficam algumas entidades reguladoras: o Banco de Portugal (regula o setor bancário), a Entidade Reguladora da Comunicação Social (regula a comunicação social e designa-se Entidade Reguladora). Exclusões que se compreendem por, no primeiro caso, se tratar de uma entidade que, hoje, se encontra, direta e/ou primariamente, sujeita ao direito europeu e, no segundo, por gozar de um regime constitucional próprio ou específico em função da matéria objeto de regulação, conforme resulta do artigo 39.º da CRP (os meios de comunicação social, as liberdades de imprensa e de informação, etc.). O elenco legal de entidades independentes com função de regulação económica não esgota as entidades incumbidas de funções de regulação económica: assim, por exemplo, o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I.P., exerce funções de regulação do mercado dos contratos públicos e da atividade de empreiteiro e não integra o catálogo das entidades administrativas independentes. 129 Numa análise breve da LQER, atente-se, em primeiro lugar, aos pressupostos legalmente necessários para a existência e/ou criação de uma entidade deste género 2 . Embora a letra da lei possa sugerir que estamos apenas em face de garantias de independência, a verdade é que, na decorrência do que se vem dizendo, os requisitos estabelecidos no n.º 2 do artigo 3.º surgem como elementos que devem estar universalmente presentes aquando da decisão (legislativa) de criação de uma qualquer entidade reguladora, na noção que é dada a esta categoria de entidades pela própria Lei- Quadro. Trata-se, diremos, de requisitos estatutários de qualificação e, portanto, de constituição/criação de entidades deste tipo, cuja observância deve, consequentemente, ser assegurada em cada um dos diplomas legais instituidores. Referimo-nos em concreto: i) à autonomia administrativa e financeira; ii) à autonomia de gestão; iii) à independência orgânica, funcional e técnica; iv) à existência de órgãos, serviços, pessoal e património próprio; v) à titularidade poderes de regulação, de regulamentação, de supervisão, de fiscalização e de sancionamento de infrações; vi) à garantia da proteção dos direitos e interesses dos consumidores (n.º 2 do artigo 3.º). Aliás, convirá dizer-se que, no plano científico, estes elementos são tidos, na sua generalidade, como elementos constitutivos do próprio conceito de entidade administrativa independente (e de regulação independente). E a Lei-Quadro reitera esta ilação no n.º 3 do artigo 6.º, ao determinar que a criação de entidades reguladoras obedece cumulativamente à verificação dos mencionados requisitos do n.º 2 do artigo 3.º e dos ali previstos: a necessidade efetiva e interesse público na criação de uma nova pessoa coletiva para prossecução dos objetivos visados; a necessidade de independência para a prossecução das atribuições em causa; e a capacidade de assegurar condições financeiras de autossuficiência. E é neste contexto que o legislador estabelece limites à criação de entidades reguladoras, não podendo estas assumir uma função substitutiva da prossecução de tarefas ou atividades que devam ser desempenhadas por serviços e organismos da administração direta ou indireta do Estado [alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º]. E é ainda no mesmo contexto que o legislador estabelece para estas entidades o que em termos gerais poderia considerar-se desnecessário: o princípio da especialidade do fim, pretendendo 2 O texto que segue corresponde, com pequenas adaptações, ao seguinte artigo: Pedro Costa Gonçalves/Licínio Lopes Martins, “Nótulas sobre o novo regime das entidades independentes de regulação da atividade económica”, Textos de Regulação da Saúde, Entidade Reguladora da Saúde, 2014, p. 9 e segs. 130 com isso delimitar em termos mais rigorosos a respetiva capacidade jurídica, quer de direito público, quer de direito privado, assinalando limites expressos a ambas (artigo 12.º e também o n.º 4 do artigo 4.º). A Lei-Quadro disciplina entidades reguladoras independentes, quer dizer, entidades que dispõem de independência. De resto, acabámos de ver que, além do mais, a independência orgânica, funcionale técnica representam elementos constitutivos da qualificação de uma entidade como reguladora independente, pelo menos no âmbito da disciplina traçada pela Lei-Quadro. Pois bem, importa agora procurar perceber os fatores constitutivos da referida independência. Embora sem prestar esclarecimentos suplementares, a Lei alude a três qualificações da independência: orgânica, funcional e técnica. Na nossa interpretação, a independência orgânica relaciona-se com o estatuto jurídico dos cargos dos dirigentes das entidades reguladoras e é garantida através de um regime específico que assegure a independência pessoal dos dirigentes das entidades reguladoras, quer perante o poder político, quer perante o mercado que regulam. Por seu lado, a independência funcional conhece já um sentido institucional e liga-se às opções e decisões sobre os critérios, as prioridades e os modos de desenvolvimento das missões e responsabilidades (“funções”) das entidades reguladores; a independência traduz-se, aqui, na ausência de submissão a orientações ou instruções do poder político. Por fim, a independência técnica tem o sentido de “autonomia técnica” no exercício das funções específicas de regulação e refere-se às decisões e opções de carácter técnico e operativo a tomar em face das circunstâncias particulares da execução de tarefas, por exemplo, de supervisão ou de inspeção. A Lei-Quadro não empresa o conceito de independência financeira (mas apenas de “autonomia financeira”, que é coisa diversa), mas afigura-se claro que a independência nesse plano também está contemplada, designadamente na referência à “capacidade de assegurar condições financeiras de autossuficiência” [cf. artigo 6.º, n.º 3, alínea c)]. Em todos ou em alguns dos sentidos acabados de identificar, a independência das entidades reguladoras projeta-se e afirma-se em várias direções. As mais relevantes são a da independência em relação ao poder político (Governo) – “independência para cima” – e em relação às entidades reguladas – “independência para baixo”. Estas formas de independência vertical, mais notadas, não devem fazer esquecer a independência horizontal, que se projeta, por exemplo, na relação com outras entidades independentes, designadamente, mas não só, a Autoridade da Concorrência (sobre a “cooperação” que 131 se deve processar neste âmbito, cf. artigo 11.º da Lei-Quadro). Uma nota ainda, para salientar que, em certos setores (v.g., reguladores da energia e das comunicações eletrónicas, mas não no da saúde), a independência dos reguladores tem uma projeção nacional, mas já não europeia: veja-se, por exemplo, a ANACOM, que, não podendo receber instruções, nem recomendações do Governo Português, está adstrita ao dever de considerar “na máxima conta” recomendações e orientações da Comissão Europeia. Escusado será dizer que a independência das entidades reguladoras não se afirma em relação à lei, nem em relação aos tribunais. No que se refere ao tópico da independência das entidades em relação ao poder político e ao Governo – que se projeta nos planos funcional, orgânico, técnico e financeiro –, cumpre sublinhar que a Lei não adotou uma solução absoluta. E, diga-se, nem teria de o fazer para que o requisito da independência – que é simultaneamente um requisito de criação das entidades e uma garantia do seu funcionamento independente – se considere assegurado. A independência das entidades administrativas independentes da Lei-Quadro é, pois, relativa e não absoluta. Diga-se, a propósito, que a Lei-Quadro contém, neste domínio, algumas soluções que podem ser consideradas sensíveis. Com efeito, embora se reafirme, de forma aliás enfática, no n.º 1 do artigo 45.º, o princípio da independência, a parte final desse mesmo número ressalva o “disposto nos números seguintes”. E, com exceção do n.º 2 (3), todos os restantes números do artigo 45.º representam episódios, mais ou menos acentuados, de intervenção governamental em esferas de ação própria das entidades reguladoras. De resto, já antes, o artigo 9.º deixava a indicação de que, “sem prejuízo da sua independência”, as entidades reguladoras estão adstritas a um ministério, abreviadamente designado como “ministério responsável”, em cuja lei orgânica aquelas devem ser referidas. Compreende-se a necessidade política e prática, decorrente de um princípio geral de organização administrativa e financeira do Estado, dessa “afetação” de cada entidade a um Ministério específico. Em todo caso, neste contexto, e ainda que havidos como excecionais no regime da Lei e eventualmente motivados por uma occasio legis marcada por um ciclo de crise económico-financeira, não deixam de se revelar marcantes os poderes de aprovação e 3 Numa linha de confirmação da independência e em coerência com este princípio, o n.º 2 do artigo 45.º prescreve: “Os membros do Governo não podem dirigir recomendações ou emitir diretivas aos órgãos dirigentes das entidades reguladoras sobre a sua atividade reguladora nem sobre as prioridades a adotar na respetiva prossecução” 132 de autorização governamental previstos nos n.ºs 4, 5 e 8 do artigo 45.º. É certo que, designadamente, a aprovação dos orçamentos e dos planos (plurianuais) apenas pode ser recusada pelo Governo com fundamento nos motivos previsto no n.º 6 do mesmo artigo (em ilegalidade ou em prejuízo para os fins da entidade reguladora ou para o interesse público ou ainda em parecer desfavorável do conselho consultivo, quando exista), mas, dada a indeterminação normativa estrutural dos conceitos legais – “prejuízo para os fins da entidade reguladora ou para o interesse público” –, sempre existirá o risco de o Governo, a pretexto ou a coberto da sua utilização, substituir os planos financeiros e de atividade das entidades reguladoras pelo seu juízo político, eventualmente formado em função de fatores circunstanciais ou contingenciais, passando o Governo a “marcar a agenda” das entidades reguladoras, por via do exercício de uma genuína tutela de mérito. Essa é uma possibilidade que a Lei-Quadro não exclui, não se percecionando sequer qualquer exigência específica no sentido de uma leitura cautelosa e ponderada daquelas cláusulas, que, por exemplo, limite a recusa de aprovação governamental quando seja manifesto ou patente que, por exemplo, o orçamento proposto, ainda que legal, seja irrealista ou que o plano de atividades contenha visíveis desvios em relação às orientações de política geral para o sector económico ou para a área de atividade em que a entidade reguladora atue. Num sentido que aponta para uma certa contenção da independência dos reguladores, aponta a alínea e) do n.º 3 do artigo 5.º da Lei-Quadro, ao estabelecer um princípio de equiparação das entidades reguladoras a toda a Administração Pública, para efeitos de sujeição ao regime de inspeção e auditoria dos serviços do Estado. Ainda, neste contexto, é de assinalar o princípio da equiparação em matéria financeira das entidades reguladoras aos serviços e fundos autónomos, ainda que só na parte das verbas que provenham da utilização de bens do domínio público e de dotações do Orçamento do Estado (n.º 3 do artigo 33.º e a primeira parte do n.º 5 do artigo 38.º). Mas, considerando que a independência financeira – autossuficiência financeira - daquelas entidades constitui um dos requisitos constitutivos da sua criação e uma garantia do seu funcionamento independente, o mencionado princípio de equiparação acabará necessariamente por ter uma aplicação residual ou substancialmente atenuada, sob pena, caso contrário, de estar em risco a própria subsistência jurídica da pessoa coletiva(artigo 8.º, n.ºs 2 e 3). 133 Particularmente importante na perspetiva da independência orgânica e funcional é o processo de designação dos membros do conselho de administração. Embora este poder se mantenha na órbita governamental, é, no entanto, sujeito a uma prévia intervenção da Assembleia da República, que elabora um relatório sobre cada uma das audições aí realizadas (artigo 17.º). Sobre este relatório a Lei apenas prevê que dele seja dado conhecimento ao Governo (n.º 4 do artigo 17.º), não tendo, pois, qualquer efeito jurídico vinculativo quando desfavorável, o mesmo sucedendo com o parecer da Comissão de Recrutamento e Seleção da Administração Pública, que é meramente obrigatório (n.º 3 do artigo 17.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 98.º do Código do Procedimento Administrativos). Contudo, se assim suceder (emissão de um relatório desfavorável pela Assembleia da República), deverá o Governo extrair daí consequências políticas, tendo em conta o quadro das relações interorgânicas que o processo de designação coenvolve, sob pena de a intervenção da Assembleia da República ser reduzida a uma mera formalidade procedimental, que apenas teria o efeito positivo de transparência e de publicidade. A previsão de mandatos de seis anos (não renováveis) para os membros do conselho de administração surge como outra garantia fundamental de independência orgânica – e também de continuidade e de estabilidade funcional das entidades – em face da alternância política inerente ao período das legislaturas governamentais (artigo 20.º). A esta garantia acresce a da inamovibilidade e a de uma tendencial irrevogabilidade administrativa dos mandatos, que só podem cessar por decisão governamental em casos excecionais. Embora o regime seja meramente exemplificativo quanto às causas que podem ser subsumíveis aos conceitos de “motivo justificado”, “falta grave” e de “responsabilidade individual ou coletiva” (n.ºs 4 e 5 do artigo 20.º), o certo é que uma qualificada formalização do procedimento de dissolução do conselho de administração ou de destituição dos seus membros minora o risco de aquelas cláusulas serem objeto de interpretações mais favoráveis a intervenções administrativas deste género (4) . Mas, como sabemos, a independência tem ainda uma outra vertente não menos significativa. Referimo-nos à independência ante os sectores e interesses regulados, na medida em que, justamente, um dos maiores perigos da regulação consiste na 4 Existe motivo justificado de dissolução ou de destituição “sempre que se verifique falta grave, responsabilidade individual ou coletiva, apurada em inquérito devidamente instruído, por entidade independente do Governo, e precedendo parecer do conselho consultivo, quando exista, da entidade reguladora em causa, e da audição da comissão parlamentar competente“ (n.ºs 4 e 5 do artigo 20.º). 134 possibilidade de o regulador ser “capturado” pelos regulados, de modo a transformar-se numa forma de autorregulação por meio de entreposto regulador. Também neste âmbito, a Lei procura fornecer garantias particularmente apertadas, seja estabelecendo proibições de natureza institucional, que se traduzem em verdadeiras incapacidades jurídicas – p. ex., a proibição de toda e qualquer entidade reguladora participar, direta ou indiretamente, como operador, nas atividades reguladas ou estabelecer quaisquer parcerias com destinatários da respetiva atividade [alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º] e de delegar ou concessionar a qualquer entidade (pública ou privada) a prossecução de quaisquer atribuições e o exercício de poderes regulatórios e sancionatórios (n.º 5 do artigo 40.º) –, seja prevendo uma extensa panóplia de incompatibilidades e impedimentos, durante e após o exercício dos mandatos (artigo 19.º), cuja inobservância pode, inclusivamente, determinar a sua cessação administrativa [alínea b) do n.º 5 do artigo 20.º]. Relativamente aos poderes genericamente previstos para as entidades reguladoras, a Lei-Quadro limita-se, no essencial, a compilar e a sistematizar os que já se encontravam dispersos pelos diversos estatutos de cada uma das entidades existentes (artigos 40.º a 43.º e também o artigo 47.º, relativo à proteção do consumidor). Mas há alguns aspetos que convirá salientar. Em primeiro lugar, a previsão de um procedimento comum de elaboração de regulamentos, devendo os que tenham eficácia externa ser devidamente publicitados, o que seguramente sucederá com a generalidade deles, designadamente com os que tenham por objeto algumas das matérias enunciadas no artigo 40.º (regulamentos sobre taxas, tarifas, preços, acesso às atividades, garantia de cumprimento de obrigações de serviço público, etc.). Em segundo lugar, a sujeição, no âmbito do exercício dos respetivos poderes, das entidades reguladoras a três ordens de jurisdição: i) ao Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão relativamente às questões relativas a recurso, revisão e execução das decisões, despachos e demais medidas em processo de contraordenação legalmente suscetíveis de impugnação (artigo 112.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto – Lei da Organização do Sistema Judiciário); ii) aos tribunais administrativos quando estejam em causa atos praticados no exercício de funções públicas de autoridade e contratos de natureza administrativa [alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º]; iii) aos tribunais comuns em matéria de litígios laborais, considerando o regime regra do contrato individual de trabalho para as entidades reguladoras [artigo 32.º, conjugado com a 135 alínea d) do n.º 3 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais], bem como para outros litígios emergentes de atos e contratos regidos pelo direito privado. Em terceiro lugar, o limite ao poder previsto na alínea e) do n.º 3 do artigo 47.º, nos termos do qual cabe às entidades reguladoras emitir recomendações ou, na sequência do tratamento das reclamações, ordenar aos operadores sujeitos à sua regulação a adoção das providências necessárias à reparação justa dos direitos dos consumidores. O exercício deste poder pelas entidades reguladoras – que, ao que parece, pode passar, p. ex., pela fixação de indemnizações –, não poderá ser interpretado no sentido de limitar a reserva da função jurisdicional, caso os destinatários das ordens entendam impugná-las. Ainda neste âmbito, continua sob reserva do presidente do conselho de administração a titularidade de um poder já previsto em diversos estatutos de entidades reguladoras: o poder de veto das deliberações do órgão colegial. Para além de emergir como um poder manifestamente anómalo no contexto da colegialidade e suscetível de provocar fraturas insanáveis no funcionamento das entidades reguladoras, a sua previsão afigura-se ainda desnecessária, por o atual regime do contencioso assegurar medidas cautelares apropriadas para assegurar os efeitos pretendidos com a previsão e o exercício daquele poder.
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