Buscar

situação irregular à Proteção integral

Prévia do material em texto

1
DA DOUTRINA DA SITUAÇÃO IRREGULAR À DOUTRINA DA PROTEÇÃO 
INTEGRAL 
Etelma Tavares de Souza1 
 
Panorama histórico a partir do Código Mello Matos 
(Código de Menores) 
 
 A Doutrina da Proteção Integral, é expressa no Estatuto da Criança e do 
Adolescente (ECA), lei federal 8.069, promulgada a 13/07/1990. Antes do ECA, a 
legislação vigente, que tratava das questões relativas ao “menor" (pois os termos 
criança e adolescente só aparecem na Constituição Federal de 1988), era o Código 
de Menores (Código Mello Matos), datado de 1927 e atualizado em 1979. 
 Segmentos da sociedade brasileira envolveram-se numa luta aguerrida, a 
qual se intensificou nas décadas de 1960 e 70, resultando na conquista dos direitos 
da criança e do adolescente. É esse panorama histórico, de lutas e conquistas, 
abrangendo os contextos sócio-político e econômico do Brasil, que será descrito. 
 O Código de Menores, de 1927, foi a primeira intervenção legal, de caráter 
oficial e de forma devidamente sistematizada, na vida dos meninos excluídos. Tal 
legislação era caracterizada pelo poder arbitrário do juiz de menores e por sua 
prática intervencionista. A proposta de internação era de caráter corretivo e a 
intervenção era realizada sem vinculação com as causas geradoras das situações 
de abandono e delinqüência. 
 Em 1941, cria-se o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), cujo tratamento 
pautou-se pela violência contra os internos. 
 Em 1954, a lei 2.705, cria o Recolhimento Provisório de Menores (RPM), 
destinado aos infratores e submetido ao Poder Judiciário. Porém, lá dentro, quem 
mandava era a PM. 
 Em meados da década de 50, numa busca de soluções para o problema do 
menor, a Arquidiocese do Rio de Janeiro, elabora uma proposta, com o objetivo de 
um modelo conciliatório entre governo e setores da sociedade. Contudo, não foi 
efetivada. 
Em 1964, foi criado um modelo fundacional: FUNABEM (Fundação Nacional 
para o Bem-Estar do Menor), cujo objetivo era formular e implantar a Política 
Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM) e buscar soluções para o problema do 
 
1 Psicóloga e mestranda em Psicologia Social pela PUC/SP e educadora social 
 2
menor, insustentável para a época. A ideologia vigente visava a “proteção e amparo 
ao menor marginalizado, inclusive o infrator; preservá-lo do perigo que representa 
para si e para a sociedade, a manutenção de seu estado de carência afetiva e 
material” (Rodrigues, 2001). A FUNABEM possuía autonomia administrativa e 
financeira, personalidade jurídica própria e, em termos programáticos, estava 
vinculada ao Ministério de Previdência e Assistência Social, sendo seu Estatuto 
aprovado pelo presidente da República, Marechal Castelo Branco. Este, também 
nomeou o primeiro presidente da Fundação: o médico paulista Mário Altenfelder 
Silva. 
No âmbito estadual foi criada a FEBEM (Fundação para o Bem-Estar do 
Menor). 
Assim, a proposta inicial de diálogo, interlocução da sociedade com o 
governo, não foi possível, devido à conjuntura política do período: ditadura militar. 
São Paulo resistiu a este modelo de instituição, tanto que, apenas em 
1975/76, foi criada a FEBEM/SP. 
A Política Nacional do Bem-Estar do Menor troca a idéia do menor ameaça 
social para a de menor carente e abandonado. Mas, reafirmando a lógica carcerária, 
ampliando o controle e o poder de tutela do Estado. Em suma, reafirmando a 
Doutrina da Situação Irregular, onde os menores eram passíveis de intervenção do 
Estado. 
A PNBEM extingue o Serviço de Assistência ao Menor, colocando em seu 
lugar a FUNABEM, com a intenção de corrigir as irregularidades do SAM. 
Inicialmente, a proposta era atuar na prevenção, ou seja, atuar junto aos espaços 
familiares e comunitários, a fim de evitar a formação de “marginais". O discurso 
utilizado era no sentido de romper com as práticas repressivas. Como problema 
prioridade nacional, a questão do menor requeria um trabalho específico e também 
uma concepção unificada de ação. 
O Brasil, vivia a dura e autoritária repressão de governos pautados no 
desenvolvimentismo e na Doutrina da Segurança Nacional. Portanto, o menor era 
alvo de intervenções da ditadura pois, de acordo com a Ideologia de Segurança 
Nacional da época, por sua idade e condição social, os menores poderiam ser 
facilmente cooptados por subversivos. 
Os valores pelos quais se baseava a assistência, eram os de ordem social, 
disciplina, discrição e discriminação. Para os desvalidos ou delinqüentes, que eram 
internados, a ressocialização era por meios coercitivos. A partir de 1968, a 
 3
FUNABEM propunha meios para prevenir ou corrigir as causas do desajustamento, 
preocupando-se com pesquisa e inovação que “renovasse as mentes" dos menores 
(Passeti, 1982). O regime disciplinar não foi diferente das práticas violentas e 
desrespeitadoras do SAM. 
De acordo com a política da FUNABEM, os fatores responsáveis pela 
marginalização do menor eram a miséria econômica, o desemprego, a mancebia, 
segregação dos pais do convívio social. Tal política ainda atenta para a 
“irresponsabilidade e incapacidade de certos pais para manter e dirigir o lar com 
dignidade e autoridade” (Rodrigues, 2001). 
Os discursos oficiais da época, enfatizavam a pobreza como geradora de 
famílias desorganizadas, desintegradas e do menor carenciado, que estaria 
predisposto a tornar-se menor infrator. Assim, a proposta da PNBEM era 
reintegração através de adequação de valores. Porém, a sociedade queria, a 
qualquer custo, se proteger dos riscos que o menor em situação irregular oferecia. 
Ou seja, a situação irregular, numa lógica perversa, era uma inversão da questão 
social do menor. A miséria era questão jurídica, passível de policiamento da conduta 
e vida das famílias proletárias. Ao considerar a família como desclassificada para 
educar, e possibilitar o desenvolvimento de seus filhos, o juiz de menores os 
encaminhava para instâncias de tratamento, para prevenir ou reeducar os frutos 
dessas famílias desajustadas e do meio de origem inadequado ao seu 
desenvolvimento. 
 O juiz era autoridade máxima, absoluta, detentor do poder e da verdade 
inquestionável. 
Entretanto, por esse período, 1960/70, já havia uma preocupação com a 
participação popular na concepção e gestão da política de atendimento à criança e 
adolescente. 
Em meados dos anos 1970, a sociedade civil questionava o sistema de 
atendimento aos menores. Devido ao acirramento das desigualdades sócio-
econômicas, as famílias partem em busca de estratégias para lutar por sua 
sobrevivência. A rua é o espaço encontrado. Crescem os índices de abandono e 
violência contra essa população. Movimentos populares se organizam para trabalhar 
com ela. 
Nessa época, surgem os programas comunitários alternativos à política oficial 
(PNBEM). 
 4
Em São Paulo, o investimento em ações sociais era para o atendimento no 
interior dos equipamentos. Porém, o repasse da verba às entidades era 
condicionado à adequação das mesmas com a PNBEM. 
A partir de 1975, tem início experiências alternativas junto às comunidades. 
Ocorre, no movimento social, uma fase conhecida como denuncismo, propondo a 
idéia de defesa jurídica dos menores e denúncia do modelo oficial. 
No mesmo ano, é instalada a CPI do Menor Abandonado, que indica a 
falência da PNBEM e a urgente necessidade de atualização do Código Mello Matos. 
A proposta era de apenas “atualizar”, e não mudar. Alegava-se que o Brasil não 
estava preparado para mudanças. E, também, que os juízes não a autorizariam. 
Grupos de juristas e especialistas na área da infância de São Paulo e do Rio 
de Janeiro, apresentaram propostas.O grupo do Rio venceu, o que provocou revolta 
no de São Paulo. Isto porque, dentre outros fatores, os infratores poderiam ser 
presos sem flagrante e sem mandado judicial. Ou seja, houve um enrijecimento em 
relação ao Código anterior. Neste momento, tem início uma luta para mudar o 
Código de Menores. 
Em 10/10/1979, ano que foi escolhido para ser o “Ano Internacional da 
Criança”, foi promulgado o Novo “Velho” Código de Menores, cuja aprovação 
provocou a ampliação do debate sobre a infância. O Código pautava-se pelo direito 
assistencial e autoritário e por métodos e práticas coercitivos. 
No mesmo ano, é criado o Movimento de Defesa do Menor (MDM), que foi um 
aglutinador de forças para lutar pelos direitos da criança. O MDM denuncia qualquer 
instituição fechada, instituições totais, devido ao uso da violência nas mesmas, 
sendo a própria institucionalização, em si mesma, um ato de violência. Fizeram parte 
deste movimento, dentre outros, Mário Covas. A grande ironia é que, esse último, 
anos depois, governador de São Paulo, viria a desmantelar a rede de atendimento a 
crianças e adolescentes, fechando abrigos, mantendo a estrutura carcomida da 
FEBEM, enfim, não investindo no setor e descumprindo a legislação vigente durante 
seu mandato: o Estatuto da Criança e do Adolescente. O ECA propõe, em seu artigo 
259, um reordenamento institucional: 
 
Art. 259: A União, no prazo de noventa dias contados da publicação desse 
Estatuto, elaborará projeto de lei dispondo obre a criação ou adaptação de 
seus órgãos às diretrizes da política de atendimento fixadas no art. 88 e ao 
que estabelece o Título V do Livro II. 
 5
Parágrafo único. Compete aos estados e municípios promoverem a 
adaptação de seus órgãos e programas às diretrizes e princípios 
estabelecidos nesta lei. 
 
Decorridos 16 anos da promulgação do ECA, percebemos o quão distantes 
ainda estamos desse reordenamento. 
Retornando ao contexto histórico, a questão dos meninos de rua e da 
FEBEM, ganha destaque, devido às inúmeras denúncias de maus tratos e violência 
em suas unidades. 
Nesse período, a Igreja Católica atuou nos espaços de atendimento a criança 
e adolescente através das Comunidades Eclesiais de Base e Pastorais Sociais, 
sendo sua prática alternativa ao modelo formal, institucional. É criada a Pastoral do 
Menor. 
Ainda em 1979, é instalada a Comissão Especial de Inquérito da Assembléia 
Legislativa (CEI), para investigar as condições de vida dos menores abandonados. 
A CEI teve o apoio do MDM e do Movimento de Direitos Humanos. 
A partir da CPI e da CEI, o legislativo incorpora a luta da sociedade civil pelos 
direitos da criança, o que acabou resultando na Frente Nacional Parlamentar pela 
Criança, por ocasião da elaboração e aprovação do Estatuto. 
O movimento prossegue se organizando e reconhecendo a necessidade de 
nova concepção de infância, e não mais o menor objeto de intervenção do Estado, 
mas como alguém a ser protegido, tanto pelo Estado como pela sociedade. 
Aconteceram vários seminários, encontros, debates sobre a infância e 
adolescência, em torno da necessidade de mudança de paradigma: de menor caso 
de polícia para caso de política. 
Em 1982, devido às eleições diretas para governador, os candidatos 
começam a incluir a infância em seus programas. As principais propostas foram: fim 
das instituições totais, revisão das diretrizes dos órgãos responsáveis pelo 
atendimento e o envolvimento da sociedade civil. 
Em 1984, foi realizada uma Passeata-Ato Público, reivindicando o direito de 
criança ser criança e não menor. Quem promoveu o evento foi a Associação dos Ex-
alunos da FUNABEM (ASSEAF), criada no Rio de Janeiro, na década de 1980, em 
virtude da falta de acompanhamento àqueles que saíam da Fundação. Ao completar 
18 anos, o interno era colocado na rua, sem qualquer apoio ou programa de 
atendimento, passando da condição de menor assistido para a de maior responsável 
por sua subsistência. Lembremos que não havia nenhum trabalho com as famílias, 
 6
para recebê-los de volta. Muitos, já nem tinham contato com suas famílias ou 
vínculos com outras pessoas extramuros. Aos órfãos, a FUNABEM pagava uma 
pensão para morar, durante 3 meses. De acordo com os técnicos, este era o tempo 
suficiente para que encontrassem trabalho e pudessem se sustentar. A ASSEAF fez 
diversas denúncias aos jornais, sobre o assunto. Inicialmente, a preocupação era 
obter emprego para os ex-alunos. Com o tempo, passaram a fazer serviço jurídico 
de acompanhamento dos ex-alunos que eram presos no Sistema Prisional. Enfim, 
foram se aprofundando na questão do menor. Por essa época, também, ocorreram 
diversas denúncias sobre assassinatos de ex-internos. 
Em 1985, ocorreu o I Encontro Nacional de Grupos Locais, constituindo a 
Assembléia de criação do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. 
Em outubro desse ano, Paulo Freire refletiu e debateu com os educadores de 
rua, a prática e os princípios da proposta pedagógica que defendia a 
desinstitucionalização do menor. Em suas palavras: “o importante é saber por quem 
estamos fazendo a opção e aliança. É o oprimido e não o opressor. Estamos do lado 
do menino, do explorado, do oprimido. Há uma identificação com os interesses das 
classes populares” (Freire, 1991). Essa perspectiva pedagógica vai aonde o menino 
está: na rua. Com a proposta do exercício indispensável da prática, a fim de 
entender os mecanismos de funcionamento da sociedade, como ela produzia e 
distribuía a riqueza e como as idéias se formavam, enquanto expressão de grupos e 
classes sociais dominantes. Para Freire, através da reflexão da prática e da 
realidade, educador e educando poderiam descobrir “que há um mundo por trás 
desse contexto, que levava os meninos sobreviverem ao invés de viverem, mundo 
esse que gera certos valores, certas crenças, certos fazeres e a própria forma de 
sobreviverem". O autor destaca o respeito ao crescimento do outro e rechaça a idéia 
de conversão. 
O menino de rua era visto como o fruto mais cruel de um país que não se 
responsabiliza pelas suas próprias crianças. 
No período 1980/85, vários grupos se mobilizaram debatendo a Doutrina da 
Proteção Integral em contraposição a Doutrina da Situação Irregular. Expressões 
como crianças, adolescentes, direitos, cidadão, sujeitos de direitos, já eram usadas. 
O educador de rua, surge nesse contexto. 
Em 1986, aconteceu o Encontro Nacional do Movimento Nacional de Meninos 
e Meninas de Rua, onde os próprios meninos e meninas tiveram voz e decisão 
 7
sobre seus direitos. Eles decidiram o tema, metodologia, as proposições e 
estratégias de ação de suas proposições. 
Ainda em 86, em São Paulo, sob o governo de Franco Montoro, aconteceu o 
Encontro Menor e Constituinte, resultando na Carta de São Paulo, onde constavam 
quais direitos deveriam estar presentes na Constituição Federal do Brasil. 
A Comissão Nacional Criança e Constituinte, a Frente Nacional dos Direitos e 
o Fórum Nacional DCA, participaram do processo convocado pela Assembléia 
Nacional Criança e Constituinte, mobilizando a sociedade, encaminhando propostas 
e elaborando documentos sobre direitos da criança. 
Duas emendas populares “Criança e Constituinte” e “Criança Prioridade 
Nacional”, foram apresentadas à Assembléia Nacional Criança e Constituinte. Elas 
resultaram nos artigos 204 e 227 da Constituição Federal de 1988. Essa emenda foi 
subscrita por um milhão e quatrocentos mil crianças e adolescente e mais 200 mil 
adultos. 
O artigo 2042, assegura a participação popular, por meio de organizações 
representativas, na formulação de políticas e no controle das ações em todos os 
níveis. 
O 227, estabelece que criançae adolescente são sujeitos de direitos e 
prioridade absoluta. O artigo é baseado na Doutrina da Proteção Integral, 
fundamentada na Declaração Universal dos Direitos da Criança, da ONU. 
 
Art.227: É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança 
e adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à 
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à 
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, 
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, 
exploração, violência, crueldade e opressão. 
 
No II Encontro de Meninos e Meninas de Rua, em 1990, eles foram ao 
Congresso Nacional, e fizeram uma aprovação simbólica do ECA. Candidatos à 
presidência da República (Lula, Covas e Gabeira), participaram dessa votação. O 
 
2 Art. 204: As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da 
seguridade social, previstos no artigo 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: 
I. descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a 
coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estaduais e municipais, bem como a entidades 
beneficentes e de assistência social; 
II. participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no 
controle das ações em todos os níveis. 
 
 8
fato teve muita visibilidade na mídia, sendo um grande acontecimento político 
nacional, que repercutiu internacionalmente. 
O resultado dessa mobilização, foi a aprovação do Estatuto da Criança e do 
Adolescente no Congresso Nacional e sua sanção em 1990, pela presidência da 
República. 
 
O Termo Menor e a Doutrina da Situação Irregular 
 
 O movimento pela infância e adolescência rejeita o termo menor, desde os 
anos 1980. Isto, porque é carregado de preconceito, afinal, o menor era o filho do 
pobre, enquanto o das classes mais abastadas era a criança, o adolescente, o 
jovem. Conforme estabelecido pelo Código de Menores, de 1979, em seu artigo 1.o, 
inciso I, a menoridade é dividida em criança e menor em situação irregular, a partir 
da condição de classe. 
 A palavra menor começa a ser freqüente no vocabulário jurídico brasileiro, a 
partir de fins do século XIX e início do XX. "A partir de 1920, até hoje, a palavra 
passou a se referir e indicar a criança em situação de abandono e marginalidade, 
além de definir sua condição civil e jurídica e os direitos que lhes correspondem" 
(Lodoño, 1996). 
 Desde o século XIX, a preservação da integridade da criança era subordinada 
ao objetivo de proteção da sociedade contra "elementos potencialmente perigosos", 
como os comunistas. 
 Os "expostos", "desvalidos", "carentes", "menores", etc., eram passíveis de 
intervenção institucional caritativa, filantrópica. Assim, através da mídia, das 
publicações jurídicas, de discursos e conferências acadêmicas, foi se difundindo a 
imagem de menor enquanto criança pobre, desprotegida moral e materialmente 
pelos pais e a sociedade. A origem do abandono é relacionada às condições sociais 
e econômicas advindas com a modernização nos anos 20 e 30, do século XX. 
Porém, apontam a decomposição da família e a dissolução do poder paterno como 
os principais responsáveis por sua condição. 
 As duas categorias, menor e criança, são alvos de políticas diversas. Esta 
situação é mais nítida na Era Vargas, com a criação do SAM e Departamento 
Nacional da Criança, que inaugura a Política de Proteção à Infância, à Adolescência 
e à Maternidade. O menor permanece na esfera policial-jurídica, sob controle do 
 9
Ministério da Justiça e a criança é exclusividade da esfera médico-educacional cujas 
ações são coordenadas pelo Ministério da Educação e Saúde (Irma Rizzini, 1995). 
 A criança era aquela cuja família era considerada capaz de criar seus filhos, 
cujas relações socializadoras eram concernentes aos espaços familiares, escolares 
e médicos. 
 Quanto ao menor, a política mais representativa era a intervenção policial e 
jurídica. O juiz arbitrava sobre a permanência dos filhos nos espaços familiares ou 
suspensão do pátrio poder3 e internação. Isto porque suas famílias eram definidas 
como desclassificadas, irresponsáveis ou disfuncionais. Portanto, inadequadas para 
exercer seus papéis. Assim, a falta de condições materiais para prover o sustento 
dos filhos era motivo para a suspensão do pátrio poder, a fim de se “prevenir os 
males do abandono”. 
A lei e as instituições de assistência tratava a questão do menor, por vezes, 
com ambigüidade, ora intervindo de forma coercitiva, ora protegendo dos riscos 
apresentados devido a inserção precoce no mundo adulto na luta pela 
sobrevivência, das relações de conflito e violência com os adultos. Sempre decidiu-
se sobre suas vidas, ignorando suas necessidades infantis, afastando-os das 
relações familiares e comunitárias Segundo Rizzini, as trajetórias da Legislação 
caracterizadas por uma dualidade que, ao defender a sociedade ataca e aniquila a 
criança. E, ao defender a criança, teme estar expondo a sociedade à sua pretensa 
periculosidade. 
As crianças também mantêm uma relação ambígua com a instância jurídica: 
ora buscam a proteção das ações compensatórias prestadas por ela ou dela fogem 
com receio de perder a pseudo-liberdade conquistada. 
 De acordo com o Código de Menores, o menor estava em situação irregular 
quando privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução 
obrigatória. Esta é a base da Doutrina4 da Situação Irregular. 
A Doutrina da Situação Irregular tem raízes no contexto norte-americano de 
fins do séc. XIX e da Europa, no início do XX e está relacionada com a cultura da 
compaixão e repressão que se instalou e expandiu na América Latina. A ideologia 
da compaixão-repressão, aponta para uma cultura que não quis, não pôde ou não 
 
3 Poder familiar, de acordo com o Novo Código Civil 
4 De acordo com Garcia Mendes, “no mundo jurídico, entende-se como doutrina o conjunto de produção teórica 
elaborada por todos aqueles ligados, de uma forma ou de outra, ao tema, sob ótica do saber, da decisão ou 
educação”. 
 
 10
soube oferecer proteção aos setores mais vulneráveis da sociedade, a não ser 
declarando previamente algum tipo de segregação estigmatizante. 
 O Código de Menores dispunha sobre a assistência, proteção e vigilância aos 
menores. No artigo 2.o, definia como menor em situação irregular: 
 
 "Para efeitos deste código, considera-se em situação irregular 
o menor: 
 
I- privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e 
instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: 
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsáveis; 
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsáveis para 
provê-las; 
II- vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pêlos 
pais ou responsáveis; 
III- em perigo moral, devido a: 
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos 
maus costumes; 
b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; 
IV- privado de representação ou assistência legal; 
V- com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação 
familiar ou comunitária; 
VI- autor de ato infracional; 
 
Par. único: Entende-se por responsável aquele que, não sendo pai 
ou mãe, exerce, a qualquer título, vigilância, direção ou educação de 
menor, ou voluntariamente o traz em seu poder ou companhia, 
independente de ato judicial (Brasil, 1979). 
 
 Esse artigo evidencia a total responsabilização da família por sua condição. 
Quanto ao Estado,este, além de não figurar como responsável, também ignora a 
origem e as causas da pobreza. 
 Coerente com a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, os discursos 
oficiais enfatizavam a pobreza como geradora de famílias desorganizadas, 
desintegradas e do menor carenciado, que estaria predisposto a tornar-se menor 
infrator. Segundo Petry (1988): 
A institucionalização de medidas de segurança, a ação de polícias pelas 
ruas ou em delegacias, o recolhimento de menores por detrás de grades, 
podem ser encarados como formas adotadas com o intuito de proteger a 
vida e, sobretudo, a propriedade das classes dominantes que se vêem 
ameaçadas com a atual situação de um aumento contínuo e praticamente 
irrefreável de menores pelas ruas da cidade. 
 
 Destarte, a situação irregular era uma inversão no trato social da questão do 
menor. A miséria era questão jurídica, passível de policiamento da conduta e da vida 
das famílias empobrecidas. O juiz, ao estabelecer que a família era desclassificada 
para educar e possibilitar o desenvolvimento de seus filhos, encaminhava os 
 11
menores para internação, a fim de prevenir ou reeducar os frutos dessas famílias 
“desajustadas” e do meio de origem inadequado ao seu desenvolvimento. 
 
A Doutrina da Proteção Integral: Criança e Adolescente Sujeitos de Direitos e 
Prioridade Absoluta 
 
 A Doutrina da Proteção Integral5, com base na Declaração Universal dos 
Direitos da Criança (ONU, 1959; ratificada na Convenção Internacional dos Direitos 
da Criança, em 1989), tem como princípio fundamental o reconhecimento de que 
crianças e adolescentes são sujeitos de direitos. Assim, afirma o valor da criança 
como ser humano; a necessidade de respeito à sua condição peculiar de pessoa em 
desenvolvimento; a criança e o adolescente como continuidade de sua família, seu 
povo, assim como o reconhecimento de sua vulnerabilidade, o que os tornam 
merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado. 
Este, executor de políticas específicas para o atendimento, a promoção e defesa dos 
direitos. 
De acordo com a Doutrina da Proteção Integral, a irregularidade não está na 
criança ou no adolescente, tampouco nas famílias, e, sim, na condição de exclusão 
que lhes é, historicamente, imposta. 
 A partir da Constituição de 1988 e do ECA, é estabelecido um novo 
paradigma em relação à criança e ao adolescente. A partir dessas leis, eles são 
considerados: 
 
1) sujeitos de direitos: 
Artigo 227 da Constituição, transposto para o 4.o do ECA (já citado). Ou seja, a 
partir desse artigo, crianças e adolescentes, não mais menores, deixam de ser 
tratados como objetos passíveis de intervenção da família, sociedade e/ou 
Estado. Agora, são estes os responsáveis pela garantia de efetivação dos 
direitos. Assim, é possível e necessário exigir, por mecanismos concretos, as 
realizações dos direitos consagrados na Constituição e nas leis. 
O artigo 15 do ECA, estabelece que criança e adolescente são "... sujeitos de 
direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição...". 
 
5 Entendida como o conjunto de princípios e valores que concebem a criança e o adolescente como sujeitos 
especiais de direitos, por encontrarem-se em situação peculiar de desenvolvimento, cuja realização se dá por 
meio de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, que promova esses direitos no 
contexto familiar, social, cultural, econômico e político da criança e do adolescente. (NTC-PUC/SP). 
 12
Estamos no plano da promoção dos direitos que devem ser garantidos a todas as 
crianças e adolescentes, sem restrições. 
 
2) pessoas em condição peculiar de desenvolvimento: 
Além de todos os direitos que têm os adultos, crianças e adolescentes têm 
direitos especiais, por sua condição de pessoas em desenvolvimento físico, 
psíquico, emocional, cognitivo e sociocultural. Isto porque eles não conhecem 
plenamente seus direitos, não têm condições de exigir sua concretização e nem 
possibilidade de suprir, por si mesmos, suas necessidades básicas. 
 
3) prioridade absoluta. 
 Também garantida no art. 227 da Constituição, e 4.o do ECA: 
 Par. único: a garantia de prioridade compreende: 
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; 
b) precedência do atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; 
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; 
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a 
proteção à infância e juventude. 
 
Com o ECA, crianças e adolescentes são entendidos como cidadãos, sujeitos 
de direitos civis, sociais e humanos. Diferente do código de Menores, que 
diferenciava criança e menor, o estatuto é para todos, não faz nenhum tipo de 
discriminação e nem aceita o termo menor, de caráter estigmatizante e 
discriminatório A distinção de idades, corresponde às relações familiares, escolares, 
trabalhistas e penais. São crianças, aqueles com idade inferior a 12 anos; 
adolescentes, dos 12 aos 18 anos incompletos. 
O Estatuto é uma lei protetiva-responsabilizadora, ou seja, uma norma legal 
que estabelece direitos e responsabilidades, rompendo com a construção de leis 
autoritárias e distantes da realidade. Assim como, também o caráter punitivo é 
retirado, sendo enfatizada o trabalho sócio-educativo. 
Enquanto o Código de Menores responsabilizava a família pelas condições 
em que se encontrava e, até mesmo destituía o poder familiar em função de sua 
situação de miserabilidade, o Estatuto localiza e define instâncias concretas. Ou 
seja, reconhece família, sociedade e Estado como os violadores dos direitos da 
criança e do adolescente, sujeitando-os à penalizações quando do não cumprimento 
 13
de suas responsabilidades. No art. 23 do ECA, encontramos: “a falta ou carência de 
recursos materiais não constitui, motivo suficiente para a perda ou suspensão do 
pátrio poder” (Brasil, 1990) . 
A legislação, propõe uma nova estrutura política de promoção e defesa dos 
direitos das crianças e adolescentes, fundamentada na descentralização político-
administrativa e na participação da população, através de entidades representativas. 
A descentralização político-administrativa e a participação popular, são 
garantidas no art. 204 da Constituição Federal. Nas políticas públicas, é proposta a 
municipalização, sendo o município considerado a melhor instância para o 
atendimento dos direitos da criança e do adolescente. 
A participação da população, se faz por meio dos Conselhos dos Direitos, 
estabelecidos nos âmbitos nacional (CONANDA), estadual (CONDECA) e municipal 
(CMDCA). A União, os Estados, Municípios e a sociedade são co-responsáveis na 
formulação e controle da política de atendimento à criança e adolescente e no 
controle das ações em todos os níveis, o que é feito por meio desses Conselhos. 
São órgãos deliberativos, que formulam as diretrizes e planos para garantir os 
direitos fundamentais. No âmbito municipal, o CMDCA registra as entidades de 
atendimento e seus respectivos programas, sendo sua responsabilidade fiscalizar 
esses programas. Além disso, é o gestor do Fundo da Criança e do Adolescente 
(FUMCAD), que é composto por verba advinda de dotação orçamentária, multas em 
decorrência de infrações administrativas e de incentivo fiscal por meio do imposto de 
renda, de pessoas físicas (até 6%) e jurídicas (até 1%). 
Além dos Conselhos dos Direitos, também foram criados os Conselhos 
Tutelares, órgãos encarregados de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e 
do adolescente. Seus membros são eleitos pela comunidade. Dentre as atribuições 
do conselheiro tutelar,estão: 
- aplicar medidas de proteção; 
- incluir crianças e famílias em programas de apoio social, educativo; 
- requisitar serviços públicos necessários; 
- fiscalizar entidades de atendimento. 
 
Isso tudo representa a sociedade civil organizada na gestão de políticas 
públicas. 
Portanto, resta-nos que ocupemos nossos espaços nessa luta, fazendo valer 
o que nos é assegurado por lei, ou seja, que exerçamos e ampliemos a participação 
 14
popular, sendo atores sociais ativos nesse processo. E, sobretudo, conclamando as 
crianças e adolescentes do país, a fim de que sejam os protagonistas dessa outra 
história, escrita por milhares de mãos e, também com suor, lágrimas e sangue! Pois 
se, ao contrário, permanecermos como meros espectadores (passivos), corremos o 
risco de jamais vermos implementada, a lei 8.069. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 15
Referências Bibliográficas 
 
BRASIL. Lei n° 6.697, de 10 de outubro de 1979. Código de Menores. 
______. Lei Federal, de 05 de outubro de 1988. Constituição da República 
Federativa do Brasil, Brasília, DF. 
______. Lei Federal nº 8.069, de 13 de Julho de 1990. Estatuto da Criança e do 
Adolescente, Brasília, DF. 
- Freire, Paulo. (1987) Pedagogia do Oprimido, RJ: Paz e Terra 
LODOÑO, Fernando T. A Origem do Conceito Menor. In: PRIORE, Mary Del (org.) 
História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1992. 
PASSETTI, Edson. Política Nacional do Bem-Estar do Menor, dissertação de 
mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1982. 
PEREIRA, Rosemary S. S. Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do 
Adolescente: do Alternativo ao Alterativo, dissertação de mestrado, Pontifícia 
Universidade Católica da São Paulo, 1998. 
PETRY, Josiane R. O problema do menor: uma abordagem jurídico-política, 
dissertação de mestrado, Universidade Federal da Santa Catarina, 1988. 
RIZZINI, Irene. A criança no Brasil hoje: desafio para o terceiro milênio, Rio de 
Janeiro: Universidade Santa Úrsula, 1993 
_______. Crianças e menores – do pátrio poder ao pátrio dever: um histórico da 
legislação para a infância no Brasil. In: PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene (org.) A 
Arte de Governar Crianças: A História das Políticas Sociais, da Legislação e da 
Assistência à Infância no Brasil. Rio de Janeiro: INN: CESPI/USU: Amais, 1995 
RODRIGUES, Alexandre G. Os filhos do mundo: a face oculta da menoridade 
(1964-1979). São Paulo: IBCCRIM, 2001.

Continue navegando