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FICHAMENTO - LEACH - O nascimento virgem (Antropologia II - UFRGS)

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O NASCIMENTO VIRGEM - EDMUND LEACH 
Povos primitivos não eram ignorantes sobre a paternidade fisiológica, embora os antropólogos demonstrem resistência para isso. Doutrinas sobre concepção sem inseminação não se baseiam na inocência dos povos, sendo consistentes com argumentos teológicos. 
Geertz afirma, como um insulto, que Leach é um positivista vulgar em suas atitudes relacionadas com questões religiosas. Leach aceita o insulto como elogio, afirmando que o positivismo defende que uma investigação cientifica séria não deve procurar as causas últimas que se originam de uma fonte exterior, deve concentrar-se no estudo de relações que existem entre fatos que são acessíveis à observação. Por essa limitação, os positivistas tendem a demonstrar conhecimento sobre o que falam, diferentemente dos teólogos. 
Quando um etnógrafo relata que os homens de uma tribo acreditam em determinada coisa, esse etnógrafo está fornecendo a descrição de um dogma ou de uma ortodoxia – a qual é verdadeira para a cultura da tribo como um todo, mas nem por isso supera esse significado de dogma, porque o ritual não tem que corresponder às atitudes psicológicas interiores dos atores que estão envolvidos em sua prática. Essa correspondência é esperada pelos neotyloristas e pelo Professor Spiro, mas podem ser quebradas se examinamos nossa própria cultura: os simbolismos de um ritual não correspondem necessariamente às atitudes psicológicas dos que participam dele. 
Como exemplo, pode ser citado o ritual do casamento, em que o buquê da noiva é jogado para trás, é jogado arroz nos recém-casados, etc. Esses símbolos não dizem nada sobre o estado psicológico interno dos noivos em questão. Não se pode deduzir, pelo ritual, o que eles pensam ou sentem. Eles podem até ser ateus. E, talvez, sua ignorância dos detalhes precisos da fisiologia do sexo seja a mesma que a de qualquer aborígene australiano. 
Pode-se supor que os negros do rio Tully não ignoravam os fatos da paternidade fisiológica, na medida em que os aborígenes admitiram a Roth que a causa da gravidez em animais, que não o homem, era o ato sexual. Também, Hartland reuniu vários contos mitológicos (de todas as partes do mundo) sobre a concepção mágica de heróis ancestrais e de divindades heróicas, e pensou que essas estórias fossem sobrevivências de um estado de ignorância primitiva. Só que se a existência de contos europeus que falam da paternidade baseados em mitos não implica que se afirme que os europeus são ou que eram ignorantes dos fatos da paternidade fisiológica, não faz sentido que essas estórias tenham essa implicação no caso dos negros do rio Tully. Igualmente, cabe assinalar que, segundo Meggitt, as respostas dadas por um Walbiri às perguntas sobre concepção dependem da pessoa a quem se pergunta e das circunstâncias nas quais se pergunta.
Kaberry fez um trabalho de campo em um local distante mais ou menos 1.300 km dos negros do rio Tully, e os nativos afirmavam que consideravam a relação sexual uma causa necessária, mas não suficiente da gravidez. Os nativos admitiam que a relação sexual preparava o caminho para a entrada da criança-espírito, e asseveravam que uma garota não poderia ter filhos. 
Eles diziam que as relações sexuais eram um pré-requisito para a gravidez, e diziam que o embrião fetal tinha uma alma (como a maioria dos europeus). Também afirmavam que o parceiro sexual da mulher, legalmente reconhecido, tinha o status exclusivo de pai da criança. Não tem fundamento a afirmação de que os entrevistados eram completos ignorantes sobre a paternidade fisiológica. 
O professor Spiro quer acreditar na ignorância dos aborígenes, e a toma como fato, sem investigar nenhuma evidência, ao mesmo tempo em que não quer aceitar que o produto do pensamento aborígene possa ser estruturado de maneira lógica. Isso é uma tradição muito antiga. Dizer que um nativo é ignorante é chamá-lo de infantil, supersticioso, estúpido. A ignorância é o oposto da racionalidade lógica, e é o que distingue o selvagem do antropólogo. Quando o professor escreve que “a religião persiste porque é causada pela expectativa, por parte dos homens, de que desejos sejam satisfeitos”, ele afirma que religião e magia persistem em um contexto de ignorância. O interessante em tal argumento é que ele se aplica só a contextos “primitivos”. 
Se uma aborígene australiana anuncia sua gravidez trazendo ao acampamento uma rã de uma espécie particular, ou vomitando depois de ingerir comida dada pelo seu marido, não se pode concluir que ela acredite que essas ações sejam a causa de sua gravidez num sentido físico. Elas são sinais, e não causas. Uma prece de ação de graças “diz” que a refeição já vai começar ou que acabou (e não pelo significado das palavras ditas, mas pelo significado do “ritual”). Por que, então, só se faz suposições quanto aos nativos “ignorantes” que se ocupam de “rituais sem sentido”? As ações rituais descritas por Roth servem para informar sobre a situação e a condição social das partes envolvidas, mas não expressam a soma do conhecimento aborígene. 
O que é interessante não é tanto a ignorância dos aborígenes, mas a ingenuidade dos antropólogos. Os sábios europeus estão muito predispostos a crer que outros povos devem acreditar em versões do mito do Nascimento Virgem. Se nós cremos em tal coisa é porque somos devotos, se outros o crêem é porque são idiotas. 
Se certos grupos, como os Trobriand, persuadiram seus etnógrafos de que ignoravam os fatos da vida, é porque essa ignorância era um dogma para eles. (verdadeira para a cultura da tribo como um todo, mas que nem por isso supera esse significado). E se o etnógrafo acreditou no que foi dito, é porque tal crença correspondia à sua própria fantasia particular sobre a ignorância natural de selvagens infantis. Essa “ignorância” é tida como marca de “primitivismo”. Contrastando com isso, o nascimento miraculoso de um herói divino é uma característica das “mais altas” civilizações. Também, no seu contexto cristão o mito do Nascimento Virgem não implica ignorância dos fatos da paternidade fisiológica. O mito, como rito, não distingue o conhecimento da ignorância. Ele estabelece categorias e afirma relações. 
A fantasia que McLennan fazia do começo da civilização era de uma sociedade promíscua. Segundo a doutrina evolucionista, o parentesco matrilinear era mais óbvio do que o patrilinear e, portanto, de caráter menos evoluído na sociedade humana. Essas idéias predispuseram os etnógrafos que procuravam povos “muito primitivos” a pensar que eles poderiam descobrir matrilinearidade e ignorância da paternidade fisiológica estreitamente associadas. 
Além disso, mesmo quando a matrilinearidade não era confirmada, esse tipo particular de ignorância poderia ser tomado como a marca final do primitivismo e, assim, confirmaria a esperança do antropólogo de ter encontrado um espécime vivo e fossilizado do homem primordial – que é exatamente o que os etnógrafos dos aborígenes australianos pensaram ter descoberto. 
A busca pelo primitivo definitivo, que seria “inteiramente diferente” do homem civilizado, atrai muitos antropólogos. Leach vai à direção oposta. Ele não só se interessa pelas diferenças entre europeus e Trobriand, mas por suas semelhanças (um preceito de Malinowski). 
Leach também se importa com a questão metodológica, acerca de como devemos interpretar afirmações etnográficas sobre inverdades palpáveis. Os tylorianos aceitam as crenças pelo que elas afirmam literalmente. Se não somos tylorianos, podemos afirmar o que os próprios informantes Trobriand de Powell disseram. Existem diferentes tipos de verdade.
Juntando os vários fios da argumentação de Leach: de muitas fontes ouvimos falar de lendas, rituais e tradições que parecem implicar a crença de que as mulheres, às vezes, podem ser engravidadas sem que haja a inseminação masculina. O meio mais simples de explicar essas crenças é dizer que se devem à ignorância daqueles que nelas acreditam. Porém, um modo alternativo de explicar as crenças, que de fato são falsas, é o de dizerque ela é um tipo de dogma religioso, que a verdade que ela expressa não está relacionada com o mundo real das coisas cotidianas, mas sim com a metafísica. O selvagem infantil de Frazer deve ser eliminado do debate antropológico, no seu lugar, deveríamos colocar um teólogo meio confuso, mas não menos engenhoso que um bispo ou que o mais inteligente dos antropólogos.
 Esse teólogo confuso lida com o problema que constitui o cerne da filosofia especulativa. Qual a diferença entre o físico e o metafísico? Uma das maneiras de encarar a questão é equiparar o não agora (ascendência e descendentes) com o outro mundo. A relação entre o aqui e agora e o outro mundo também pode ser representada em uma relação de status de classe e poder: os deuses são perfeitos e poderosos e os homens são imperfeitos e impotentes. Ou, então, como uma relação entre normalidade e anormalidade: daí o nascimento sobrenatural e a imortalidade dos seres divinos. Entrecortando a idéia de que os homens impotentes são os descendentes de deuses potentes há o dogma incestuoso de que os deuses e os homens podem ter uma ligação sexual. Dogmas sobre o Nascimento Virgem e sobre a irrelevância da sexualidade masculina entre os seres humanos surgem como subproduto desta teologia. 
O estruturalismo (como denominou Strauss), nesse sentido, requer que se arranjem as peças para se formar um padrão. As peças de cada padrão precisam vir de um só contexto, não se podendo, assim, aceitar a técnica do método comparativo de Frazer (de buscar fragmentos de evidência em várias partes diferentes do mundo). Por outro lado, o objetivo ainda é comparativo: de distinguir a variedade de formas pelas quais um único padrão etnográfico pode se manifestar, e depois examinar a natureza dessas variações. São comparações diferentes. É importante ver esses padrões não como uma soma de elementos soltos, mas como um todo. 
CONCLUSÃO
Freqüentemente as teorias antropológicas falam mais sobre os antropólogos do que sobre a antropologia. Devemos continuar céticos e positivistas, tentando ver as conexões entre os fatos na forma como eles se apresentam, e sem injetar de fora explicações causais mágicas. Deve-se abandonar a distinção tradicional entre a estupidez dos selvagens e a teologia de homens civilizados. As estórias sobre ignorância da paternidade entre povos primitivos são do mesmo tipo que as estórias sobre o Nascimento Virgem de deuses nas religiões chamadas de superiores. Em nenhum dos dois casos os contadores da estória são estúpidos. Se quisermos entender tais estórias, precisamos considerá-las em conjunto como variações sobre um mesmo tema estrutural.

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