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1 conhecimento como resultado da interação entre o organismo e o meio o objetivo primordial de Piaget era o de solucionar a questão do conhecimento: "Como é possível alcançar o conhecimento?". Formu- lada a pergunta, surge, de outra: "Conhecimento de quê?" A resposta para a segunda pergunta é simples: "Conhecimento do em que vivemos, do meio que nos circunda". Todavia, a palavra "meio" não se limita a designar os objetos (animados e que nos rodeiam: Piaget a entende por via diversa, abrange tudo - natureza, objetos construídos pelo Homem, valores, relações humanas, em suma, História e Cultura. Fica, desse modo, caracterizado o objeto do conhecimento, na acepção de Piaget. Que significa, porém, "conhecimento"? Para Piaget, a palavra tem o significado que o senso comum lhe empresta. Para ele, o "conhecer" tem sentído claro: organizar, estruturar e explicar, a partir do vivido (do experienciado). Aí está um dos pontos fundamentais da teoria piagetiana. Conhecer não é somente explicar; e não é somente viver: conhecer algo que se dá a partir da (ou seja, da ação sobre o objeto do conhecimento) para que este objeto seja imerso em um sistema No entender de Piaget, vivência não é sinônimo de conhecimento. pessoa pode passar a vida nas montanhas e desconhecer relevo da Terra, ignorando, pois, o conceito de "montanha". A 3humanidade atravessou alguns milênios sem perceber a relação entre Vida e calor do Sol; conhecer algo a respeito do calor solar seria inserir o calor sentido na pele num sistema de relações para notá-lo como condição de existência da Vida. Examinando vivência e conhecimento percebe-se que uma coisa não exclui nem substitui a Insistamos: um grego pode subir diariamente à Acrópole sem entender o que representam Partenon ou as obras de Fídias para a História de seu pode caminhar pelas mesmas ruas percorridas por Sócrates ou Platão sem ter noção de onde pisa. De acordo com Piaget, não há conhecimento sem conceitos. Significa isso que conhecimento parte da ação de uma pessoa sobre meio em que vive, mas não ocorre sem a estruturação do vivido. Coisas e fatos adquirem significação para o ser humano quando inseridos em uma estrutura é isso que Piaget denomina "assimilação". Para o ser humano, ato de sugar é o primeiro ato significador e é, também, a primeira assimilação. (Segundo veremos adiante, também é a mais elementar forma de predicação.) Segundo Piaget, a significação resultado da possibilidade de assimilação - e não inverso, Merleau Ponty afirma que um objeto é percebido e tem um sentido quando é passível de ser assimilado por uma Assim, conhecimento implica sis- temas de significação. Aqueles dizem respeito à forma do conhe- cimento; estes ao conteúdo organizado (ou estruturado, mas sem alcançar necessariamente a estruturação lógico-matemática). Se o objeto do conhecimento é o meio, abrangendo os aspectos físicos e os culturais, qual o sujeito desse conhecimento? Não é o indivíduo, nem o "eu" psicológico. sujeito do conhecimento, para Piaget, é o sujeito epistêmico - um sujeito ideal, universal, que não corresponde a ninguém em particular, embora sintetize as possi- bilidades de cada uma das pessoas e de todas as pessoas no mesmo tempo. sujeito epistêmico de Piaget compara-se ao sujeito da Biologia ou da Medicina, Ao afirmar que o aparelho auditivo do ser humano tem tal ou qual estrutura, não se faz alusão a um indivíduo específico, seja A, seja B, que vive e ouve em determinadas circunstâncias; alude-se, ao contrário, a uma pessoa ideal que a ninguém se identifica, equiparando-se todas elas independentemente das particularidades do organismo de cada uma ou do ambiente físico e social em que se 4As peculiaridades individuais não devem ser ignoradas. Ao lidar com Sr. Fulano, essas particularidades ganham importância, embora sempre devam ser encaradas em função do que se descobriu e do que se concluiu relativamente ao ser humano abstrato. Aliás, sem conhecer o que é comum a todos os seres humanos, seria impossível estabelecer o que cada um tem de específico; sem identificar que é comum à espécie, seria difícil conceituar o que fosse cultural; sem considerar a forma, seria impraticável falar em conteúdo Para Piaget, sujeito epistêmico é então sujeito do o sujeito de sua epistemologia. Mas que é epistemologia? Classica- mente se diz que é o estudo crítico do conhecimento Em qual a relação entre epistemologia, psicologia e o problema do conhecimento que aparece como centro de sua obra? Na história das idéias, as teorias sobre ato de conhecer chama- ram-se, em geral, gnosiologia. Por que então teria Piaget chamado sua teoria de epistemologia se, como já dissemos, essa palavra signi- fica especialmente um estudo crítico do conhecimento Vejamos um pouco mais de perto essa justificativa. Observando o comportamento da criança e refletindo, em termos genéricos, a respeito do conhecimento e, em termos particulares, a respeito do conhecimento alcançado na Física, Piaget concluiu que a criança e o cientista conhecem mundo da mesma forma. A idéia básica de que conhecer significa inserir o objeto do conhecimento em um sistema de relações, partindo de uma ação executada sobre esse objeto, é válida tanto para a criança que organiza seu mundo quanto para o cientista que descobre e explica o campo magnético. Piaget entende que há uma analogia entre a forma pela qual a criança constrói sua realidade, estruturando sua experiência vivida, e a forma pela qual o cientista a As diferenças entre um tipo de conhecimento e outro expressariam níveis diferentes da capacidade humana de Em suma, de acordo com Piaget, explicar como é possível o conhecimento, de maneira geral, é mesmo que explicar como é o conhecimento Aí está a razão pela qual Piaget chama de "epistemologia" a sua teoria do conhecimento embora a palavra, classicamente falando, designe reflexão a respeito do conhecimento A teoria do conhecimento elaborada por Piaget tem sido divulgada com rótulo de "epistemologia genética". Já ficou explícito porquê de epistemologia; mas por que genética? 5A razão está em que Piaget não se limita a explicar como possível o conhecimento de um adulto; discute, ainda, as condições necessárias para que a criança (na verdade, o bebê) chegue, na vida adulta, ao conhecimento possível para ele. E por que "conhecimento possível"? Explica-se: porque a capacidade de conhecer é fruto de trocas entre o organismo e o meio. Essas trocas são responsáveis pela construção da própria capacidade de conhecer; sem elas, essa capacidade não se Para compreender melhor que ficou dito, examinemos o exemplo de Helen Keller - cega, surda e muda. Antes de sua reeducação, aos três anos de idade, realizada pela professora Anne Sullivan, ela não havia conseguido estabelecer, em razão de seu déficit, trocas significativas com o meio: não organizou seu mundo, não construiu suas estruturas mentais, não teve possibilidade de conhecer. Até o momento da reeducação, Helen apresentava retardo mental. Quando sua professora conseguiu fazer com que entrasse em contato com o ambiente (usando o tato), iniciou-se o fenômeno a que Piaget deno- mina troca organismo com o meio que permitiu a construção da capacidade de conhecer. Adulta, Helen Keller transformou-se em mulher inteligente, escritora e Este exemplo se presta para esclarecer a noção de "déficit" à luz da teoria piagetiana (desde que estejam ausentes as lesões orgânicas). Antes da reeducação, Helen apresentava um "déficit", ou seja, um retardo mental, determinado pela falta de troca entre seu organismo e o meio fator responsável pela construção da capacidade de Como não havia lesão orgânica, assim que se estabeleceu o contato do organismo com o meio abriu-se a possibilidade da troca entre eles e, assim, as estruturas mentais. Assim, qualquer criança cujas trocas com o meio tenham sido prejudicadas, não importa por que fator, pode apresentar "déficits". que não quer dizer que este não seja passível de ser superado. (Isto significa que a criança não é inferior, mas está inferior.) A noção de "déficit", de envolve necessariamente as noções de "inferioridade" e de "superioridade", que têm claro matiz social e Entretanto, a teoria de Piaget é biológica, de modo que os dois conceitos ("superior" e "inferior") não devem ser enca- rados pelo prisma No contexto de sua teoria, o "inferior" e "superior" correspondem a etapas da construção da capacidade de conhecer do ser humano, que vai do nível mais elementar das trocas bioquímicas entre o organismo e o meio até 6nível das trocas simbólicas que, por sua vez, se estabelecem a nível consciente ou não. Assim, há um caminho, um creodos, como diz Piaget, de um nível mais elementar, mais simples, mais primitivo, onde as trocas não implicam distinção entre significado e signifi- cante, até o nível das trocas simbólicas que, por sua vez, se esta- belecem a nível inconsciente ou consciente sendo este último nível mais evoluído do que o primeiro. Assim, Piaget fala de patamar inferior (menos evoluído, menos complexo) e de patamar superior (mais evoluído, mais complexo). As noções de inferior e superior, nesse contexto, não são ideológicas, mas biológicas. E não se trata de biologizar a ideologia, mas de identificar a própria natureza humana. Aqui, o inferior e o superior dizem respeito ao grau de atualização das possibilidades da própria natureza humana. A teoria de Piaget, segundo ele mesmo, não é uma forma de explicação imposta à natureza humana, ao contrário, é uma teoria que revela esta natureza. Assim, se uma criança de baixa renda não é capaz de contar histórias de sua própria vida tão bem quanto uma criança da classe média ou alta, nós dizemos que, no que diz respeito à capacidade de estruturar discurso, a primeira inferiorizada em relação à segunda. Da mesma forma, quando uma criança da classe média ou alta não sabe cozinhar e nem tomar conta do como uma criança de baixa renda, dizemos que, no que diz respeito à solução dos problemas da vida cotidiana, a primeira inferio- rizada em relação à segunda. Então, uma criança sem lesão orgânica nunca é inferior à outra mas, sim, está inferior, pois pode aprender que a outra já aprendeu se for solicitada pelo meio. Assim, o "déficit" cognitivo (quando não há lesão orgânica) pode ser superado. Se admitirmos isso, podemos fazer com que a criança de baixa renda aprenda a falar como nós e a se sair bem na escola como nossos filhos. Se acharmos que ela é apenas "diferente" ou que apenas tem um "código diferente" do nosso, devemos deixá-la continuar assim para amanhã não poder competir com nossos filhos? Quanta hipocrisia subjacente à "teoria" da Diferença real, diferença que devemos preservar é aquela que há entre culturas diferentes. Então preservemos a cultura indígena; mas as idéias de preservação da ignorância das classes menos favorecidas que moram nas periferias são demagógicas e inaceitáveis. Temos, isto sim, que descobrir a forma certa para fazer a criança passar do conhecimento 7empírico para o conhecimento Temos que partir da sua realidade, da sua vida, para trazê-la aos conceitos, como fez Francis Bacon (1561-1626) já dizia que o conhecimento se alcança depois de superar alguns obstáculos, ou como os denominou, entre eles figurando hábito, a adesão sem crítica aos padrões vigentes, oriundos do passado os do teatro". Ao procurar entender as idéias de Piaget, a tradição também atua e o hábito induz a colocar o "vinho novo" em "odres velhos": a informação se vê decodificada em termos tradicionais. Examinemos este ponto com mais vagar. Muitos aceitam a teoria piagetiana de troca entre o organismo e o meio, ou seja, a noção de interação, sem entenderem o seu verda- deiro Daí não perceberem que noções como "déficit" cogni- tivo ou de diferença na capacidade de conhecer entre indivíduos de classes sociais diferentes estão necessariamente, no conceito piagetiano de interação. A explicitação dada para o caso de Helen Keller, por exemplo, não é pessoal, não é "interpretação" nossa; é fruto da aplicação da teoria de Piaget a um caso particular de interação organismo-x-meio. Teorias não são elaboradas para explanar apenas fatos que as originaram. Se Piaget pretende explicar a capacidade de conhecer como fruto da interação meio-x-organismo, qualquer caso particular de capacidade de conhecer deve ser explicável com recursos dessa teoria, Se o caso particular não for abrangido, a teoria será rejeitada ou modificada. Por isso é tão importante notar que o sistema de Piaget se apresenta como teoria e compreender o alcance da noção de interação meio-x-organismo como responsável pela capacidade de conhecer, ou seja, pela própria construção das estruturas A noção de interação em Piaget é mais revolucionória do que se poderia imaginar. Sem muito alarde, traz consigo uma nova concepção de organismo. De acordo com Piaget, há três tipos de estruturas no organismo Em primeiro lugar, as estruturas totalmente programadas, como as do aparelho reprodutor que nos capacitam a prever determinados comportamentos, tornados manifestos em determinadas épocas (exemplos: a fase de maturação sexual e a possibilidade de reprodução da espécie). Em segundo lugar, as estruturas parcialmente 8programadas, como as do sistema nervoso, cujo desenvolvimento e construção dependem já em grande parte do meio. Em terceiro lugar, teríamos que Piaget chama de estruturas nada programadas e que seriam as assim chamadas estruturas mentais, específicas para ato de conhecer. Temos, aqui, uma noção nova, trazida pela teoria de Piaget: a de estrutura orgânica nada programada. Que entender por "nada programada"? A espécie humana traria, no genoma, possibilidades que poderiam ou não atualizar-se, em função da solicitação do meio. claro que as possibilidades genéticas do ser humano, com respeito às estruturas mentais específicas para o ato de conhecer, estão deter- minadas pela espécie; mas sua atualização vai depender do meio. Voltemos ao caso de Helen Enquanto não se pôde relacionar com o meio, ela permaneceu mentalmente retardada. As possibili- dades de todos os seres humanos são, teoricamente, as mesmas; diferenças, caso se apresentem, dever-se-ão ao meio solicitador. Difi- cilmente um jovem índio de uma tribo do Xingu chegará a refletir acerca de hipóteses; talvez se torne capaz de fazê-lo, caso venha a viver em um meio urbano onde solicitações do gênero são muito mais comuns do que na mata (Não se conclua, porém, que basta viver na cidade para raciocinar a propósito de Reci- procamente, se uma de nossas crianças passar a viver entre os índios, terá aumentadas as possibilidades de distinguir os gorjeios de vários tipos de pássaros ou de reconhecer, pelo olfato, a presença de certas plantas ou de determinados Insistindo, as possibilidades dos seres humanos são as mesmas; sua concretização é que depen- derá das solicitações do A sociedade não leva a criança a estabelecer relações entre relações, razão pela qual esse tipo de raciocínio, a nível de consciência, pouco se apresenta entre os Piaget acredita, portanto, que existem estruturas específicas para o ato de conhecer as estruturas mentais que sendo orgânicas, não estão programadas no sua "construção" vai depender das solicitações do Essa posição supera a dicotomia meio-x-organismo. De fato, as estruturas mentais, sendo orgânicas, aparecem como fruto da inte- ração entre os dois colocando, assim, uma terceira possibilidade que sobrepuja a presente na idéia de organismo como algo oposto ao Aparece aqui uma noção nova de organismo, pois no que se refere às estruturas mentais, o orgânico já pressupõe o Posição análoga tem sido defendida pelos neurologistas, como 9o professor Dr. Daniele Riva, da Faculdade de Medicina da Univer- sidade de São Paulo, que nos diz que as categorias neuronais foram selecionadas dentro da cultura. Isso quer dizer que nem mesmo a nível de sistema nervoso é viável falar em construções puramente orgânicas: o "meio" está presente no "orgânico". Segundo Riva, quando a criança nasce, existem "pré-direções" em seu sistema ner- voso. Se as mesmas não são usadas, se atrofiam. Todavia, não há correspondente diminuição neuronal e isso mostra que, neurônios previamente encaminhados para uma dada função que, entretanto, não se concretiza, acabam transferidos para outras funções. Esse tipo de transferência, aliás, seria irreversível. Insistamos, todo orga- nismo vivo funciona da mesma forma, quer se trate de uma planta ou do cérebro humano, Entre um e outro a diferença é apenas de nível de complexidade e riqueza de possibilidades. A interação organismo-x-meio, ou seja, a troca à qual nos refe- rimos, acontece através do processo de adaptação com seus dois pólos: assimilação e acomodação. Ela acontece em diferentes níveis, desde os mais elementares, como o encontrado ao nível das amebas, até aquele das trocas ao nível das artes e da Filosofia, conceito de adaptação sofre, na obra de uma evolução facilmente identificada. Em um primeiro momento, a palavra "adap- tação" recebe sentido que lhe é próprio na Biologia clássica, lembrando um fluxo Em um segundo momento, no entanto, explica-se em termos de equilíbrio progressivo que Piaget denomina "equilibração Em um terceiro momento, expli- ca-se em termos de uma "abstração reflexiva" que encarna processo dialético, através do qual o ser humano cresce, se socializa, conhece e se A adaptação do ser humano ao meio, segundo Piaget, se realiza por meio da ação. A ação é um elemento nuclear da teoria piagetiana, já que responsável pela interação meio-x-organismo - que se realiza através da adaptação. Como é possível a ação? De acordo com Piaget, graças à cons- trução, pela criança, de esquemas A criança, ao nascer, traz uma bagagem hereditária em que figuram nervos, músculos, reflexos, assim por diante, Uma vez no mundo, passa a exercitar os reflexos que são A partir deles, constrói o que Piaget denomina esquema motor. Essa noção é básica na teoria piagetiana: sem ela, nada mais se entende. esquema, diz Piaget, é aquilo que é generalizável numa Para ilustrar, considere-se 10D esquema "pegar", derivado do reflexo de preensão. Quem "pega", pega algo. A porém, não importa "ser capaz de pegar este ou aquele importa o próprio "pegar", o "saber pegar" (seja lá o que for). Digamos que a Piaget não interessa o "conteúdo" de ato particular de pegar (algo), mas a forma do pegar. De um lado, os esquemas motores são a condição da ação do indivíduo no meio; é graças a eles que a criança organiza ou estru- tura sua experiência, atribuindo-lhe significado. De outro lado, os esquemas motores, além de serem responsáveis pela ação exógena, também o são pela construção endógena, ou seja, pela organização a nível neurológico. De acordo com a piagetiana, a criança age "no mundo", organizando-o e estruturando-o e, conco- mitantemente, ocorre a construção (interna) das estruturas mentais graças, justamente, a essa atividade motora. 11