Prévia do material em texto
Uma decisão jurídica até pode ser correta, mas será justa?
(A argumentação jurídica)
Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2. HERMENÊUTICA e
CONHECIMENTO: o estudo jurídico entre fundamentação
(compreensão), justificação (entendimento) e aplicação. 3. A
ORGANIZAÇÃO DO DIREITO COMO SISTEMA
RACIONAL. (A) Da Rejeição do Método Próprio ao Direito
(irracionalismo). (B) Do método compartilhado com outras ciências
(sistema externo). (C) Da autonomia metodológica do direito
(sistema interno). (D) Crítica às formulações apresentadas. 3.1 O
uso da norma jurídica: a sintática, a semântica e a pragmática. 4.
TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: Entre formas
da lógica dedutiva, razões da lógica indutiva e princípios da lógica
abdutiva. 4.1 Sintática e o método lógico-dedutivo. 4.2 Semântica e
o método lógico-indutivo. 4.3 Pragmática e o método lógico-
abdutivo. 5 SÍNTESE FINAL.
1 INTRODUÇÃO
Sabe-se que a relação jurídica consiste em situação da vida social
mediada pelo direito. Então, um “caso jurídico” é resolvido com a
aplicação das normas do direito. Nessa via, o estudo científico das
normas em geral, e do direito em especial, alcança distintas situações:
a.- o estudo da teoria do direito trata do que comumente se
identifica com o objeto da “ciência básica”, ou seja, a formação de
conhecimento de modo abstrato, neutro e imparcial. De modo que, a
subjetividade do cientista não interfira no resultado da atividade de
compreensão do objeto, sob perspectiva de fundamentação com caráter
objetivo. Nessa linha se insere a investigação dos conceitos de “contrato”,
de “família”, de “trabalho”, de “sanção”, ..., SEM a imediata vinculação ao
que foi estatuído no direito positivo.
b.- o estudo da hermenêutica trata do que comumente se identifica
com o objeto da “ciência aplicada”, a qual expressa pretensão de
conhecimento intelectual estabelecido de modo concreto ou referencial.
Nessa linha, o entendimento do objeto supõe o esclarecimento dos fatores
que influenciam a afirmação da verdade encontrada, sob perspectiva de
justificação com caráter substantivo (subjetivo). Por conseguinte, investiga
os conceitos de “contrato”, de “família”, de “trabalho”, de “sanção”, ...,
COM a imediata vinculação ao que foi estatuído no direito positivo, tal
como aplicado pelos tribunais.
Então, à vista de que, a aplicação da “norma” é o elemento
central do trabalho jurídico, o estudo da ciência do direito aplicada, a
teoria geral do direito, revela o desenvolvimento de três distintos temas:
o tema da existência válida e exigível da norma jurídica (estudados pela
teoria do direito) e o tema da sua aplicação correta (objeto da
hermenêutica).
O primeiro e segundo temas objetiva esclarecer o
reconhecimento da norma como parte integrante do direito e tal passa
pela compreensão que advém do estudo da origem ou modo de sua
produção, a qual é identificada ou em fontes “materiais” (ontológicas),
ou em “formais” (epistemológicas). A partir do esclarecimento da
“validade” sob termos formais, passa-se para a reflexão da coerção
inerente ao caráter impositivo das normas jurídicas.
O terceiro tema da teoria geral do direito é desenvolvido pela
“ciência do direito” aplicada, ou HERMENÊUTICA jurídica,
desenvolve o entendimento da atividade de interpretação das normas a
fim de se chegar a correta aplicação do direito. Partindo desta, a ciência
do direito volta-se ao entendimento da norma, para a justificação racional
dos julgamentos desenvolvidos pelo poder judiciário com a participação
das partes e dos juízes atuando nas lides na solução dos conflitos jurídicos
e para o estabelecimento da crítica social frente aos julgamentos
desenvolvidos.
Vale observar que, para simplificar suas lições, muitas vezes, os
cursos universitários separam o estudo da “teoria das fontes”, da
“dogmática” (evidenciando a dimensão denotativa própria à sintática) e
a “hermenêutica” (elucidando a dimensão conotativa própria à
semântica, à história daquela comunidade) como disciplinas autônomas,
o que pode levar a perda da visão geral sobre o fenômeno jurídico.
Porém, como se pretende desenvolver aqui, a hermenêutica
considera que as normas são expressas por meio da comunicação social
e seu estudo pode aproveitar as três dimensões da linguagem: a formal
(sintática), a material (semântica) e a pragmática. Se antes o “estado de
direito” reduzia as discussões sobre a interpretação do direito aos temas
da teoria do direito, com a consolidação do “estado de democrático de
direito” (o reconhecido “estado constitucional”), o incremento da
hermenêutica (pela assimilação dos direitos fundamentais) estabeleceu
nova vertente de estudos, a chamada “teoria da argumentação
jurídica”.
A teoria da argumentação jurídica ganhou destaque sob
considerações de que o “Estado Democrático de Direito” foi formado sob
o contexto da sociedade complexa e plural. Ou seja, grupos humanos que
não são homogêneos posto que se fragmentam sob distintas concepções
de “vida boa”. Afinal, vários conceitos de felicidade, dezenas desses, são
igualmente possíveis.
Nesse passo, sob o horizonte de que vários conceitos de
felicidade se apresentam como igualmente “bons”, assim, qual(is)
conceito(s) de direito atende(m) aos reclamos da vida nas sociedades
organizadas? Como afirmar a legitimidade da atuação estatal se não se
encontram disponíveis teorias gerais (uma religião predominante, uma
ética que prepondera sobre as demais ...) aptas a justificá-la?
Ainda que seja possível, pensar a aplicação do direito como puro
ato de poder, (desprovido de justificação racional e feito obedecer em
decorrência do medo da consequência por descumprimento), nosso curso
parte da premissa de que a aplicação do direito é desenvolvida de modo
“argumentativo” e, assim, os direitos humanos aparecem como
elemento de aperfeiçoamento da prática jurídica, vez que sua aplicação é
justificada pelo projeto político de bem comum expresso pelas normas
jurídicas favorecendo a compreensão “pragmática” do estudo do direito.
Em síntese: nosso curso estuda a hermenêutica como como
prática argumentativa. Isso porque a proposta deste curso é trabalhar
competências e habilidades pessoais inerentes à chamada “sociedade
4.0”. Esta ainda se encontra em formação. Mas, seus efeitos já se fazem
sentir.
Nós, por exemplo, quando da adoção de medidas de
enfrentamento da pandemia de COVID-19, vimos o emprego da
tecnologia para a realização de aulas remotas. Este é um pequeno
exemplo de como a rede mundial de computadores (“internet”) alterou o
modo das pessoas se relacionarem.
Era esperado que o uso da tecnologia inspirasse as pessoas como
algo positivo e, até que, servisse para melhorar a qualidade da
convivência. Todavia, não foi o que se observou de modo geral. No
momento pandêmico, o sentimento mais frequente era de apreensão e de
expectativa pelo retorno ao modo de convivência de antes.
Não foi a primeira vez que a humanidade lidou com os impactos
de mudanças tecnológicas, vale ilustrar que, quando lá atrás, no início do
uso da energia elétrica, também não se verificou de imediato os ganhos
subjacentes à sua incorporação. Para que o uso da eletricidade se
consolidasse e exercesse grande impacto sobre a produtividade, foram
necessárias várias décadas.
Por quê?
Porque não é suficiente instalar motores elétricos e se desfazer
da tecnologia antiga (aposentar as máquinas a vapor). Foi preciso
reconfigurar o “esquema” de fabricação inteiro: foi necessário mudar o
projeto arquitetônico das fábricas, treinar novos gerentes, escrever novos
livros...
Foi só a partir da formação de uma massa crítica de arquitetos,
engenheiros, advogados capazes de entender as relações de
complementariedade entre a nova tecnologia e o modo de trabalho que a
adoção da eletricidade efetivamente resultou em ganho para a capacidade
de produção.
Então, acredito que vivemos período similar, que
experimentamos a 4ª. Revolução Industrial e, por isso, faz-se necessário
reconstruir nossasa aplicação do método sob termos da lógica-dedutiva,
da análise indutiva ou da argumentação abdutiva.
4.1 A Sintática e o método lógico
A justificação sintática do direito, desenvolvida com recurso à
lógica formal, é definida como o procedimento interpretativo pelo qual
se afirma o sentido da norma jurídica comumente desenvolvido mediante
esquemas das regras do raciocínio correto.
Tendo tal em mente, Canaris assim caracterizou a interpretação
lógica:
Segundo os nossos atuais hábitos de pensamento, ela traduz: a
concatenação de todas as proposições jurídicas, obtidas por
análise, de tal modo que elas formem, entre si, um sistema de
regras logicamente claro, em si logicamente livre de contradições
e, sobretudo e principalmente, sem lacunas, o que requer: que
todos os fatos possam logicamente subsumir-se numa das suas
normas, ou caso contrário, a sua ordem abdica da garantia
essencial20.
A dedução parte da premissa, para realizar uma inferência, como
encadeamento de proposições, a partir da qual, em um argumento
dedutivamente válido, se as premissas são verdadeiras, também o será a
conclusão21. Ao aplicador, basta realizar o exercício de subsunção do
20 apud CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do
direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 29.
21 ATIENZA, Manuel. Interpretación constitucional. Bogotá: Universidad Libre: 2016, p. 30.
plano fático à norma. Desse modo, o texto legal, geral e abstrato, é
percebido como moldura, na qual os fatos hão de se subsumir.
Na busca do sentido da frase através da sintática, essa conforma
um padrão de “reiteração”, a frase confirma entendimentos anteriormente
desenvolvidos, a sintática volta-se para a construção do enunciado, como
esse é estruturado. De sorte que o significado decorre da função exercida
na frase por cada palavra (ex. o verbo indica ação, o adjetivo uma
qualidade...). Ou mais exatamente, cuida do sentido expresso no próprio
objeto.
Ordinariamente, o raciocínio dedutivo mostra-se como sendo
perfeitamente adequado, pelo fato de a maioria dos casos não
apresentarem maiores dificuldades. Exemplificando: a Constituição
Federal, em seu Art. 12, § 3º, I, aduz que são privativos de brasileiros
natos os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República.22 Esse é
um caso em que o método silogístico é suficiente, bastando ao operador
do direito subsumir o acontecimento social (o fato) à moldura normativa,
revelando-se desnecessário o emprego de um processo argumentativo
vigoroso. Resumindo: se deve perquirir se o sujeito eleito para alguns dos
cargos supracitados, preenche os requisitos fático-normativos23.
Veja o exemplo: Considere que um juiz “J” deve resolver se “A”
deve ou não pagar para “B” pelos gastos com o deslocamento de ida e
volta até o local de prestação do serviço contratado por “A”. De acordo
com o raciocínio lógico, o esquema de raciocínio de “J” há de
desenvolver o “silogismo judicial”24:
PREMISSA MAIOR Para todo “x”, aquele
que dá Causa ao
^(x) CGx -> OGx
22 vd. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: texto
constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas
constitucionais nºs 1/1992 a 88/2015, pelo Decreto legislativo nº 186/2008 e pelas Emendas
constitucionais de revisão nºs 1 a 6/1994. – 47. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições
Câmara, 2015.
23 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica, Perelman,
Toulmin, MacCormick, Alexy e outros. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. 2ª ed. São
Paulo: Landy, 2002. p. 19.
24 LOZADA PRADO, Alí. Manual de argumentación constitucional: propuesta de un método.
Quito: Corte Constitucional del Ecuador, 2015, p. 34.
(proposição
normativa e geral)
Gasto (CG) deve
arcar com a
Obrigação dos custos
desse Gasto (OG).
PREMISSA
MENOR (proposição
fática e particular)
“A” contratou o
serviço que requer o
deslocamento de “B”
para o desempenho
da atividade
CGa
CONCLUSÃO
(proposição
normativa e
particular)
“A” tem a Obrigação
de pagar para “B” os
Gastos razoáveis de
ida e volta.
OGa
O método lógico pela via de DEDUÇÃO confere destaque à
atividade legislativa tendo em conta que valoriza a “igualdade formal”
de todos perante à lei. Um caso é resolvido pela premissa maior
antecedente que vincula a decisão de modo a que a mesma situação tipo
venha a receber o mesmo tratamento que os demais de mesma categoria.
A explicação positivista da estrutura lógica das regras jurídicas tem
o seu antecedente na distinção kantiana sobre os imperativos25. Para o
filósofo alemão, o imperativo categórico, próprio dos preceitos morais,
obriga de maneira incondicional, pois a conduta é sempre necessária.
Exemplo: deves honrar os teus pais. O imperativo hipotético, relativo às
normas jurídicas, técnicas, políticas, impõe-se de acordo com as condições
especificadas na própria norma, como meio para alcançar alguma outra coisa
25 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 17 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 100.
Nas palavras de Gusmão: “O kantismo (§197) define a norma jurídica como juízo hipotético. Em
Kant encontramos a origem da distinção entre imperativo categórico e imperativo hipotético. O
primeiro impõe dever sem qualquer condição (norma moral), enquanto o hipotético é condicional.
O categórico ordena por ser necessário, enquanto no hipotético a conduta imposta é meio para atingir
uma finalidade. Assim, no imperativo hipotético é ela prescrita como condição para a produção de
determinado efeito. Kelsen (§§ 197 e 200) retomou essa distinção, considerando como juízo
hipotético a norma jurídica por depender a sua consequência (pena, reparação de dano, etc.) da
ocorrência de uma condição, que, se ocorrer, deve ser aplicada uma sanção. Daí, Kelsen ter dito que
a estrutura da norma jurídica é a seguinte: ‘em determinadas circunstâncias, determinado sujeito
deve observar determinada conduta; se não a observar, outro sujeito, órgão do Estado, deve aplicar
ao infrator uma sanção’” (GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. p. 79).
que se pretende. Exemplo: se um pai deseja emancipar o filho, deve assinar
uma escritura pública. No aspecto da lógica (estrutura do raciocínio) pode-
se esclarecer que a regra desempenha as funções de: a) proibir; b) permitir;
c) obrigar26.
Norberto Bobbio explica que o método dedutivo mediante o
emprego de regras preestabelecidas encontra postulados tidos por
corretos. O método indutivo, por sua vez, reúne os dados fornecidos pela
experiência, com base nas semelhanças, para formar conceitos sempre
mais gerais até alcançar aqueles conceitos generalíssimos que permitem
unificar todo o material dado27.
Enquanto juízo que relaciona premissas de modo abstrato, pode
se exemplificar a concepção lógico-formal, com o “radar de trânsito”.
Esse atua controlando o trânsito sem considerar quem está dirigindo, qual
veículo ou em qual momento. Identifica, conforme a programação, o
respeito ou desrespeito à norma de velocidade...
Uma relação lógica pelo caminho da dedução será sempre uma
relação formal, no sentido de que o quê garante o caminho das premissas
à conclusão são regras de caráter formal, no sentido de que sua aplicação
não considera o conteúdo de verdade ou de correção das premissas.
Daí se dizer que, a lógica não se centra na atividade de
argumentar, no processo de argumentação, mas na relação entre
argumentos, no resultado da atividade. O que oferece são esquemas de
argumentação, que cabe usar para controlar a adequação do uso dos
argumentos. Mas a lógica não trata do como, de fato, se argumenta.
A “legalidade”, o “império da lei” e a “divisão de competência
(poderes)” são os elementos definidores do estado de direito e a
“segurança jurídica” é a orientação do sistema jurídico. O enfoque
“legalista” é encontrado em autores positivista que, a exemplo de Hans
Kelsen, entendem queo dado marcante do direito é ser composto por
proposições reconhecidas socialmente (normas) derivadas de um
princípio epistemológico, a “norma fundamental”, um procedimento
racional de origem e validade. Por proposição se entende o significado
26 Essa ideia será mais bem desenvolvida quando do estudo das antinomias (contradições) do
ordenamento jurídico.
27 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. Rev.
Cláudio De Cicco. 6 ed. Brasília: UnB, 1995, p. 77-9.
do juízo realizado a partir de um conjunto de palavras. Desse modo o
positivismo pôde distinguir proposição de enunciado. Um enunciado é a
forma gramatical e linguística pela qual um determinado significado é
expresso28.
Nesses moldes, o sistema do direito de Weber e de Hans Kelsen
possibilita a especialização da criação e da aplicação do direito. É
constituído por de determinações gerais integradas pelas normas de
direito aplicadas pela determinação do seu conteúdo por meio da
subsunção aos fatos concretos29. Hans Kelsen, de sua parte, sugere que a
validade da norma jurídica explicada pelos seus próprios elementos, sem
referência à moral ou ética, supõe a presença de um encadeamento lógico
entre as diversas normas presentes no ordenamento.
Vale esclarecer, lembra-se do exemplo do assaltante? A ação do
assaltante difere da ação estatal, na linha de que, o assaltante atua
segundo sua própria vontade, enquanto o Estado expressa a vontade
social contida na norma. A norma singular: “pague tributo”, só vale
porque refere-se à determinação constitucional que autoriza aos agentes
públicos lançar e cobrar tributos e a Constituição é percebida como
expressão da vontade da sociedade que deve encontrar-se disposta a
seguir as determinações oriundas das suas escolhas. O sistema
constitucional de Kelsen estabelece que a Constituição determinará a
distribuição de competências e instituirá os procedimentos
(administrativo, legislativo e jurisdicional) que orientarão o trabalho
jurídico.
Ciente de que, a doutrina jurídica coloca em dúvida a
possibilidade da objetividade da construção do conhecimento, existe
quem não assuma que o método lógico-dedutivo seja suficiente para
esclarecer o trabalho de aplicação do direito. Sendo mais frequente a
afirmação de que, a unidade de sentido do direito deriva de considerações
de ordem subjetiva definidas de modo lógico indutivo.
As dúvidas instauradas sobre a adequação da argumentação
jurídica desenvolvida em termos lógico dedutivo instauraram para a
28 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma ..., p. 73.
29 WEBER, Max. Sociología del derecho. Edição e estudo preliminar de José Luis Monereo Pérez.
Granada: Comares, 2001, p. 18.
ciência do direito o objetivo de ir além dos limites estabelecidos pela
lógica formal. Deve-se advertir que o uso da lógica formal ainda se
mostra útil no tratamento de dois problemas: a).- análise da estrutura das
normas e do ordenamento jurídico; e, b).- identificação dos diversos
raciocínios ou argumentações desenvolvidos pelos juristas teóricos ou
práticos30. Ou mais exatamente, por desconsiderar o aspecto subjetivo,
os métodos da lógica formal podem ser úteis para descrever a estrutura
ou estágio da existência das normas e do ordenamento jurídico, todavia
não consegue esgotar o estudo da hermenêutica jurídica.
Peter Häberle argumenta que em sentido estrito a interpretação
pode fazer uso dos métodos da lógica para a definição do sentido
atribuído a norma, enquanto a interpretação em sentido amplo tratará da
justificação material, tendo sido habitualmente ignorada ou desprezada
pelos preconceitos do jurista tradicional, de visão formalista31. Em apoio
ao entendimento do jurista alemão, o constitucionalista brasileiro Paulo
Bonavides, por sua vez, afirma que a visão formalista, que se limita a
aparência da norma, acaba absorvendo a concepção material ou
“dissolvendo a normatividade e eficácia jurídica da norma
constitucional”32.
Os defensores da objetividade dos julgamentos buscaram novos
caminhos para afirmá-la, desta sorte, houve o destaque aos métodos
“analíticos” que utilizam a INDUÇÃO para o entendimento da norma
jurídica.
4.2 Semântica e o método indutivo
A lógica formal opera pelo princípio da identidade, o qual
associa o objeto a uma representação reconhecida por todos e é dominada
por duas espécies de raciocínio: dedutivo e indutivo. Como visto,
30 Atienza adverte que esses dois campos de estudo não podem ser separados de maneira taxativa;
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: Teorias da argumentação jurídica, Perelman, Toulmin,
MacCormick, Alexy e outros. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2000,
p. 52.
31 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1997.
32 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7 ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 466.
através do raciocínio dedutivo, um dado ordenamento é coerente quando
todas as suas normas são deriváveis de alguns (ou de algum) princípios
gerais. Como será desenvolvido, pelo raciocínio indutivo parte-se do
conteúdo das simples normas encontradas no caso concreto com a
finalidade de construir conceitos sempre mais gerais, e classificações ou
divisões da matéria inteira, como ordenamento.
A concepção semântica do direito pode desenvolver a
interpretação tradicional ou histórica das normas jurídicas e, nesta via, de
modo INDUTIVO. Assim, se o ponto de vista formal, os argumentos
eram tratados como relações entre proposições objetivamente
apreendidas, agora são relações entre “razões” justificadoras, as quais
podem consistir em crenças (razão teórica), ou atitudes
(comportamentos), ou ações (razão prática)33.
Saí o destaque conferido para o legislador e entra em cena o
julgador, vez que, o exercício da aplicação do direito conforme a
perspectiva semântica favorece à compreensão por INDUÇÃO.
Para esclarecer o método indutivo, leia o texto a seguir34:
Não são poucos os exemplos na matemática em que a soma 1+1
não resulta 2. É claro que, quando dizemos que essa soma é
diferente de 2, ou estamos levando em consideração que o
número 1 envolvido na operação não é um número inteiro
propriamente dito ou que o significado do símbolo “+” não é o
mesmo que usamos normalmente para a adição.
Vejamos abaixo alguns exemplos em que 1+1 pode resultar algo
diferente de 2:
É sabido que dois pedreiros trabalhando juntos, em geral,
realizam um mesmo serviço em menos tempo do que um só
pedreiro trabalhando em turno dobrado. Nesse exemplo, se
chamarmos de 1 o trabalho realizado por um pedreiro em uma
hora e de 2 o trabalho de um pedreiro em duas horas, teremos
que 1+1 > 2.
33 ATIENZA, Manuel. Interpretación constitucional. Bogotá: Universidad Libre: 2016, p. 31.
34 MELLO, José Luiz Pastore. Quem disse que 1+1 sempre será igual a 2? Folha de São Paulo.
São Paulo, 23-05-2002, Fovest, p. 6.
Digamos que eu tenha um só livro de Machado de Assis e que 1
represente o número de títulos diferentes que possuo desse autor.
Se me presentearem com uma cópia do mesmo título que já
possuo, em minha contabilidade de títulos inéditos do autor, terei
que 1+1=1, ou seja, a soma de um título repetido nada
acrescentou ao total de títulos inéditos. Esses exemplos são
frequentes ao trabalharmos a ideia de conjunto.
Mais um exemplo: admita que o número 1 represente um número
natural qualquer cuja divisão por 2 deixa resto 1. Por exemplo,
os números 1, 3, 5, 7 etc. podem ser entendidos nesse caso como
número 1 porque deixam resto 1 na divisão por 2.
Pergunto ao leitor qual o resultado da conta 1+1 nesse contexto.
Para resolvê-la, temos de somar dois números quaisquer do
conjunto {1,3,5,7,9,...} e verificar qual o resto da divisão do
resultado da soma pelo número 2. Escolhendo, por exemplo, 3 e
7, temos que 3+7=10. Como 10 deixa resto 0 na divisão por 2,
podemos então dizer que 1+1=0, ou seja, somar dois números
quaisquer quedeixem resto 1 na divisão por 2 resulta em um
número que deixa resto 0 na divisão por 2.
Desdobramentos dessa ideia foram fundamentais para o
desenvolvimento histórico da álgebra e suas aplicações na
ciência.
A leitura do texto supra ilustra a atividade de
INTERPRETAÇÃO em termos semânticos, ou seja, a atividade
mental de associar sentido, conteúdo, a um dado objeto do conhecimento
considerando sua matéria ou substância. Se, por um lado, não há grande
dificuldade em se afirmar o acerto da operação 1 + 1 = 2 em termos
sintáticos, por outro lado, a questão do “se” e “como” podemos provar
que 1 + 1 = 2 em termos substanciais, oscila entre a ciência matemática
e a filosofia. Desta sorte, o conceito de interpretação semântico (ou
analítico) demanda maiores desenvolvimentos.
A inclusão de considerações de ordem econômica fomentaria
que, o julgamento, em vez de replicar o entendimento jurisprudencial
confirmando o entendimento técnico-jurídico do direito, poderia ser
estabelecido sob considerações de que o a decisão é percebida como a
eleição de um sentido em detrimento de outro. Para ilustrar veja a
imagem a seguir:
O acerto (ou o desacerto) de se vestir roupas pode ser afirmado
por referência ao contexto cultural e, ciente de que, o direito regula a vida
social e, portanto, não basta ao Estado-juiz, representado pelo
magistrado, explicar o porquê de sua decisão, sendo também imperativo
que ele a justifique, que estabeleça os fundamentos ou motivos de sua
decisão.35
Por conseguinte, a interpretação pode se desenvolver por meio
de identificação da norma com o direito natural, ou, por outra via, pela
aparência que expressa o sentido compartilhado pelo grupo. Então, o ato
de interpretar corresponde a uma atividade de conhecimento, na qual o
sujeito participa do fenômeno jurídico, desentranhando o sentido da
norma jurídica, visando sua aplicação de modo adequado à sua
compreensão dos acontecimentos.
Importante considerar que, à vista da divisão da razão em teórica
e prática, no momento da análise do trabalho jurídico, pode se considerar
a presença de pelo menos duas ABORDAGENS DE ESTUDO: de um
35 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. 2ª ed. São Paulo:
Landy, 2002, p. 22.
lado, tem-se a perspectiva de um “observador” própria ao estudioso que
pretende fundamentar a existência do direito e de outro tem-se a
perspectiva do “participante”, que trata dos conceitos jurídicos por
referência à subjetividade humana que estabelece relações, sua
justificativa. Assim, a objetividade em estado puro é algo desejável,
porém dificilmente alcançável no contexto das vivências36.
Desta sorte, na perspectiva do observador o estudo da
interpretação modifica sua compreensão do trabalho jurídico conforme a
sucessão das escolas jurídicas (modelos de interpretação). Vale destacar,
sob o contexto do jusnaturalismo o intérprete descobre (revela) o sentido
das coisas; no âmbito do positivismo o intérprete almeja conhecer a
vontade inserta na norma; e as teorias críticas consideram o intérprete
como sujeito que deve concretizar a norma. Na perspectiva do
participante o intérprete busca o significado que realiza seus fins em dada
sociedade, situada no tempo e no espaço.
Definido que a interpretação semântica visa a determinação da
norma contida na regra sob os termos da vivência social. Pode-se
exemplificar os vários modelos interpretativos a partir de casos de
aplicação da norma. Enquanto a perspectiva lógica favorece o estudo
sintático, a perspectiva semântica (voltada à compreensão contextual do
sentido da norma) e contempla a interpretação sistemática orientada de modo
histórico ou cultural.
(...) aquela forma de interpretação que tira os seus argumentos do
pressuposto de que as normas de um ordenamento, ou, mais
exatamente, de uma parte do ordenamento (como o direito
privado, o direito penal) constituam uma totalidade ordenada
(mesmo que depois se deixe um pouco no vazio o que se deva
entender com essa expressão), e, portanto, seja lícito esclarecer
uma norma obscura ou diretamente integrar uma norma
deficiente recorrendo ao chamado ‘espírito do sistema’, mesmo
36 Como será desenvolvido na próxima seção, Jürgen Habermas, em crítica revisora à dualidade das
posições expressa pelo observador e participante, sugere a presença do “contexto de fala”. Então, a
argumentação jurídica assume a estrutura dialética e transcende ao formalismo tradicional. Nesse
passo, instaura a “intersubjetividade” ao lado da objetividade e da subjetividade.
indo contra aquilo que resultaria de uma interpretação
meramente literal (...)37.
Freitas, de sua parte, conceitua:
(...) a interpretação sistemática deve ser definida como uma
operação que consiste em pretender atribuir a melhor
significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às normas e
aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto,
fixando-lhes o alcance e superando as antinomias a partir da
concatenação teleológica dos mesmos, tendo como escopo a
solução de casos concretos38.
Se a interpretação lógica dedutiva define a verdade da proposição
com referência ao sentido próprio da palavra, a teoria semântico-analítica
possibilita que se relacione a verdade do conceito a dado sistema-
referencial, como o econômico ou cultural. Isso porque, conforme
evidenciado pela semântica, com o uso técnico da linguagem se
produzem significados que ultrapassam o valor convencional das frases.
Estes novos significados são objeto de estudo da “análise” da linguagem,
a qual revigorou muitas discussões da teoria geral do direito por meio da
incorporação dos métodos da filosofia analítica, inclusive pela
incorporação de dados do “sistema” sociológico ou do “sistema”
econômico.
Para entender o argumento da semântica é ilustrativa a seguinte
questão: se alguém bate na porta e diz “abre, sou eu” deve-se reconhecer
a voz para decidir se se abre ou não a porta, já que a palavra “eu” não
remete a nenhuma pessoa específica, mas que meramente assinala ao que
fala. Eu e outras expressões similares deixam de referir-se ao mundo
quando se lhes tira do contexto: sem um falante em seu lugar e tempo,
dotado de intenção comunicativa, resultam vazias39.
37 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Apres. Tercio Sampaio Ferraz Jr. Trad.
Maria Celeste C. J. Santos. Rev. Cláudio De Cicco. 6 ed. Brasília: UnB, 1995, p. 76.
38 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 175.
39 REYES, Graciela. El abecé de la pragmática. 3 ed., Madrid: Arco Libros, 1998, p. 9-10.
Por exemplo:
A semântica esclarece que o sentido da expressão “nada” deveria
ter sido buscado no contexto “o pinguim está ao mar”, logo, “nada” se
refere à ação de “nadar”. Outra ilustração exemplifica o dilema
semântico-analítico, agora experimentado por um linguista:
O assento no qual as pessoas se sentam é escrito com “ss” e não
com “c”, mas o som das duas palavras é similar, daí a confusão...
Os quadros ilustram que a perspectiva semântica incorpora à
comunicação em geral, as discussões quanto à verdade objetiva inerente
aos conceitos fixados concretamente pela comunicação. Assim, a
compreensão do direito exige muito mais que repetir significados pré-
estabelecidos de modo sintático, fazendo com que o momento da
aplicação da norma tenha que considerar o contexto de proferimento ou
de aplicação.
Estabelecidos os contornos da perspectiva semântica, vale
destacar que, um dos expoentes da teoria analítica do direito, Herbert
Hart ao tempo em que define a norma jurídica sem referência a este ou
aquele conteúdo, simultaneamente, a vincula a dada estrutura linguística
concretamente compartilhada. Embora essa possa ser preenchida com os
mais diversos conteúdos, a “regra de reconhecimento” de Hart estabelece
que a norma jurídica é identificada na prática social (no FATO
culturalmente registrado) que revela a convicção do acerto e
obrigatoriedade de dada conduta.Em síntese, o que caracteriza uma norma jurídica conforme a
perspectiva semântica, de qualquer espécie, é o fato dessa resultar de uma
estrutura enunciativa de uma forma de organização ou de conduta, que
deve ser seguida de maneira obrigatória repercutindo a perspectiva
externa. Todavia, enquanto estrutura enunciativa, essa pode frustrar
quando a aplicação do direito demandar a aplicação de seus postulados
para casos que demonstrem novas exigências frente àquilo que foi
anteriormente identificado. Nesse passo, com o propósito de esclarecer o
exercício da subjetividade no contexto da afirmação do conteúdo das
normas jurídicas, na próxima seção, se desenvolverá o tema da
hermenêutica sob a perspectiva da pragmática jurídica.
4.3 Pragmática e o método lógico abdutivo
Já se esclareceu que a hermenêutica, enquanto teoria do
conhecimento, assume contornos do estudo da “metodologia jurídica”
com objeto de identificar a estruturação dos argumentos que expressam
fins, que devem ser utilizados para que a interpretação seja realizada de
modo adequado. Consoante a tal, a metodologia do direito estuda os
“esquemas mentais” próprios ao exercício do trabalho jurídico: da
criação (processo legislativo) e da aplicação (processo jurisdicional) e os
organiza em “modelos” ou “escolas de pensamento”.
Como já desenvolvido, a expressão “hermenêutica”
frequentemente se confunde com a própria atividade da interpretação.
Porém, hermenêutica e interpretação são conceitos distintos. A
interpretação é atividade mental de conhecimento que descobre,
identifica ou revela o sentido do objeto enquanto hermenêutica é o estudo
sobre a interpretação “correta” por referência aos procedimentos
empregados pela interpretação.
De um lado, o enfoque lógico dedutivo (próprio à perspectiva
sintática) estabelece inferências a partir de premissas, mas lhe falta
elementos para a busca de boas razões a favor de uma solução. De outra
sorte, o enfoque lógico indutivo (próprio à perspectiva semântica)
trabalha boas razões, mas falha em não estabelecer um critério para a
eleição da melhor razão, quando boas razões se coloquem em conflito
entre si.
A semântica trata, ou afirma, a interpretação correta por
referência a história, o contexto, ou valores que orientam o ordenamento
e, nesse passo, se aproximam da análise ou da argumentação. Uma
possível distinção da hermenêutica semântica para a pragmática é seu
caráter teleológico (finalístico). Ou seja, a teoria semântica encontra-se
vinculada a determinados fins registrados de modo histórico ou cultural,
enquanto a teoria da argumentação (com caráter pragmático) pretende
esclarecer a presença ou uso dos “princípios” como orientação para
obtenção da melhor decisão.
Na via da hermenêutica, se identifica que a aplicação do direito
é essencialmente atividade persuasiva sobre algo, destinada a defender
ou atacar uma tese (a convencer alguém). A ênfase desse estudo não está
no resultado (na noção de inferência, nas premissas ou conclusão), mas
nos caminhos empregados quando da argumentação. A distinção entre a
concepção retórica e dialética depende essencialmente de que na
atividade social da argumentação, uma das partes da relação (ou ambas)
se põe na posição de interessado na produção de algum resultado (de
modo ativo).
A argumentação pragmática, nessa linha, não é uma inferência
regida por regras formais, mas procedimento para resolver conflito entre
razões (ou preferências) que sejam igualmente válidas e que justificam
decisões em sentido diverso. Daí se trata do “processo da argumentação”
enquanto meio de validação da melhor solução para o caso jurídico. A
teoria da argumentação jurídica se consolida com a emergência do estado
democrático de direito e se apresenta como o método próprio ao trabalho
de aplicação do direito sob o estado constitucional, (assim como o
silogismo dedutivo era afirmado para o estado de direito legislador).
O aspecto pragmático da linguagem se torna relevante para a
compreensão da hermenêutica (da atividade de descoberta do
significado), à medida em que o “estado de direito julgador” evidencia a
diferença entre a descrição do conteúdo normativo e a afirmação deste
conteúdo. A perspectiva dedutiva tem pretensão declaratória, a indução
assume função propositiva. A perspectiva descritiva (própria da dedução)
é desenvolvida de modo experimental e pretende alcançar a explicação
causal verdadeira de um fenômeno empírico e, portanto, também sua
descrição correta. A perspectiva propositiva (própria da indução) prevê
o futuro com base em suas experiências. Este raciocínio está relacionado
ao viés da confiança daquilo é interpretado sob a referência do que já se
vivenciou. O raciocínio abdutivo desenvolve atividade mental que revela
processo constante de aperfeiçoamento contínuo que busca balancear
esses dois lados e tem como objetivo mostrar a melhor explicação de
algo.
O exemplo dos feijões dado por Charles Sanders Peirce, ajuda a
compreender melhor essa questão:
1 – Todos os feijões daquela saca são brancos. Esses feijões são
daquela saca. Logo, esses feijões são brancos (dedução).
2 – Esses feijões são daquela saca. Esses feijões são brancos.
Logo, todos os feijões daquela saca são brancos (indução).
3 – Todos os feijões daquela saca são brancos. Esses feijões são
brancos. Logo, esses feijões são daquela saca (abdução).
Um possível exemplo da aplicação deste raciocínio para a prática
jurídica pode ser extraído do caso da “lei seca”: Segundo a legislação
anterior, dirigir embriagado era considerado infração administrativa
reprimida por meio de multa administrativa ou suspensões do direito de
dirigir. Pois bem, com a edição do novo Código de Trânsito brasileiro, a
legislação em vigor criminalizou a conduta, de sorte que, o que antes era
sancionado a partir da lavratura de termo de autuação pelo agente
administrativo com presunção de veracidade sem maiores
questionamentos, passou a ser regido pelos “princípios garantistas” do
direito penal clássico.
Os órgãos da imprensa após a edição da legislação que visou
enfrentar a violência no trânsito a festejaram por entender que essa
coibiria tal conduta com o aumento da severidade das sanções. Ocorre
que passada a euforia inicial houve a percepção de que a legislação
resultou concretamente na diminuição da aplicação das sanções, vez que
com o aumento da severidade da pena, o poder judiciário passou a exigir
a produção de provas mais rigorosas para a aplicação da pena.
Em outras palavras, o indivíduo era considerado culpado, exceto
se desconstituísse o termo lavrado por oficial público. Agora, com a
normatização instaurada pelo código de 1998, aplicando os princípios do
direito penal, por oposição, ninguém pode ser considerado culpado sem
antes passar pelo julgamento desenvolvido conforme o “devido processo
legal”. Se tem que, conforme os fundamentos do direito - que definem
que no direito administrativo o cidadão é culpado até que se prove
inocente (e tal se justifica por que a pena é branda); enquanto, no direito
penal ninguém deve ser considerado culpado até que seja condenado no
devido processo legal.
Veja o paradoxo, ao se criminalizar a direção de quem houvesse
ingerido bebida alcoólica, ao tempo em que houve o aumento da
severidade da pena, houve por igual a adição de maiores formalidades
para sua aplicação. Concretamente, a imprensa denunciou a diminuição
na punição de supostos infratores. E houve quem dissesse “tal se deu pelo
modo como a legislação foi redigida”40.
Por conseguinte, é possível outra aplicação da norma para o caso
da lei seca. Considerando o contexto de violência no trânsito o
Departamento de Trânsito (Detran) expediu regulamento tornando
obrigatório o uso do bafômetro (aparelho que mede o teor de álcool no
organismo) pelo motorista, sempre que a autoridade de trânsito entender
necessário. Pergunta-se: partindo do regulamento como avaliar a norma
(qual seu significado)? Para se responder,primeiro deve-se buscar quais
são os princípios que podem ser relacionados com a interpretação do
regulamento. A título de exemplo, destaque-se o art. 5, X, CF/1988,
dispõe: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação” e ainda o direito de permanecer calado
que o direito penal assegura aos acusados pela prática de crime.
Se a explicação prévia a 1998 trazia que não era possível obrigar
à alguém que produza uma prova contra si, a prevalência de outros
princípios podem interferir nessa interpretação.
Considere que, segundo a teoria política justifica-se a existência
do Estado na busca do bem comum. Qual é a realidade do trânsito
brasileiro? Conforme as estatísticas trazidas pelo jornal, morrem
cinquenta mil pessoas no trânsito todos os anos (isso equivale a todos os
soldados americanos mortos durante os cinco anos de guerra no Vietnã).
Surge o impasse, qual dos dois princípios deve ser aplicado? Por força
da realidade social a resposta recai na preservação das vidas humanas
face ao grande número de acidentes. Ou seja, não é possível afirmar que
não é inconstitucional se constranger à alguém a se submeter ao teste do
bafômetro. Entretanto, esclareça-se que, ao se alterar a realidade social,
mesmo que não haja mudança legislativa, o significado da norma
fatalmente será alterado41.
40 Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1302861-5598,00-
DOS+QUE+SE+RECUSAM+A+FAZER+BAFOMETRO+SAO+ABSOLVIDOS+DIZ+ADVOG
ADO.html
41 Em sentido contrário, o Tribunal Regional Federal da 5a. Região – segundo notícia veiculada pela
Folha de São Paulo em 10 mar. 2004 – declarou a inconstitucionalidade do art. 277 do Código de
Outra ideia importante, é a reflexão sobre o intérprete, daquele
que faz uso do sinal alterando-o a fim de adequá-lo ao contexto ou
interpretá-lo de forma diferente à luz de contextos diferentes42. Então, há
na pragmática a preocupação com o sentido das palavras e a reflexão
sobre o contexto do proferimento, de fala43.
Conforme a pretensão descritiva, se valoriza algum dado
objetivo quando da análise do objeto. Nessa linha, toda proposição pode
ter um significado. Porém, essa análise de verdade ou falsidade, refere-
se a um juízo de adequação da proposição com o contexto de
proferimento e não um juízo de se o que foi dito representa um fato ou
objeto. Exemplo, na linguagem descritiva quando se diz “banana”, quer
se representar uma fruta.
Mas, em outra via, a subjetiva, se observa que em linguagem
prescritiva quando se diz “fique quieto” pretende-se provocar um
comportamento, o que pode ou não ser adequado ao contexto. Assim, a
partir da afirmação de que toda proposição normativa (prescritiva)
implica em determinado tipo de certo ou errado e uma proposição
descritiva implica em descrição da realidade, resta esclarecer como esse
significado (seu conteúdo) será traduzido (interpretado), tal pode se dar
de modo objetivo (descritivo) ou subjetivo (expressivo ou prescritivo).
A pragmática ou dialética considera a argumentação como um
tipo de ação – ou interação linguística. A argumentação não é um tipo de
relação que lugar entre proposições ou entre razões e crenças e atitudes
práticas, mas entre dois ou mais sujeitos. Argumentar é um ato de
linguagem complexo que tem lugar em situações determinadas; em geral,
se pode dizer que no contexto de um diálogo, quando aparece uma dúvida
ou se põe em questão um enunciado e se aceita que o problema há de se
resolver por meios linguísticos (por tanto, sem recorrer á força física ou
a outro tipo de pressão: psicológica ou econômica etc.). A argumentação
é, pois, vista aqui basicamente como uma atividade, como um processo,
cujo desenvolvimento está regido por determinadas regras de
Trânsito Brasileiro (o qual trata da obrigatoriedade do teste do bafômetro) essa decisão só tem
aplicação no Estado do Ceará.
42 ALONSO, Loar Chein. Erro pragmático? Que bicho é esse? Letras de Hoje, v. 18, n. 4, p. 63
[s.d.]
43 vd. REYES, Graciela. El abecé de la pragmática. 3 ed., Madrid: Arco Libros, 1998, p. 9.
comportamento (ou de comportamento linguístico) para os sujeitos que
interagem44.
Por exemplo, quando alguém levanta o braço numa assembleia
de professores, isso pode indicar o desejo de iniciar uma greve por
reajuste salarial, mais do que relatando algo esse alguém realiza uma
ação: a ação de votar. Esses atos de linguagem são chamados por Austin
de performativos. São performativos porque além de comunicar algo
(conteúdo locucionário), esses também realizam uma ação diferente da
mera comunicação (conteúdo ilocucionário)45.
Vale lembrar que, no Século XVIII a razão prática, que era
explicada inicialmente em termos de valores, assumiu contornos da
lógica. No Século XX a intensa crítica social que seguiu à Segunda
Guerra Mundial fez com que a razão prática fosse entendida como uma
linguagem formalizada46. Para o esclarecimento do sentido comunicativo
expresso pela norma jurídica faz-se necessário tratar das “pretensões de
validade” dos discursos.
Por pretensão de validade da linguagem deve-se entender a
relação que a mensagem estabelece entre o objeto e o que é representado.
Nesse passo, racionalidade é um predicado da ação que, de algum modo,
pode ser entendida pelos outros. São os outros que julgam uma dada ação
como racional e esse julgamento se dá a partir de critérios aptos a
justificá-la. A semântica se depara com esse nexo interno na medida em
que eleva a possibilidade de tomar um proferimento por verdadeiro de
certo modo a padrão de sua interpretação. Um intérprete só pode ter
entendido a norma se ele puder fornecer as razões que poderiam motivar
a afirmação do significado verdadeiro.
Veja-se, considerando que o ato de fala produz efeitos sociais
conforme o contexto de proferimento, dizer “sim” numa cerimônia de
44 ATIENZA, Manuel. Interpretación constitucional. Bogotá: Universidad Libre: 2016, p. 32.
45 AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer: Palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas,
1990, p. 77; GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir
do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 111; HABERMAS, Jürgen.
Pensamento Pós-Metafísico. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1990, p. 111.
46 Uma linguagem pode ser ordinária ou artificial. Uma linguagem artificial é estruturada a partir de
um princípio da identidade, por meio dos métodos da indução ou dedução. A linguagem ordinária
assume outro pressuposto, um princípio do movimento.
casamento pode significar a alteração do estado jurídico da pessoa, em
outro contexto o mesmo “sim” pode significar uma demonstração de
disponibilidade, como o “pois não” dito pelo prestador de serviço. É
possível considerar que o sentido emprestado ao sim (ou ao não) nos
exemplos citados, não se trata de uma questão intersubjetiva, mas de algo
determinado pela lei (de modo objetivo) ou mesmo da percepção de um
sentido próprio da fala (pelo sujeito, de modo subjetivo). Mas não se pode
ignorar que a linguagem (e suas mensagens) confere significado aos
objetos e as ações.
Então, é possível falar da compreensão do sistema jurídico com
recurso à princípios ou um elemento exterior à regra, tal o conhecimento
linguístico ou econômico por exemplo. O mais significativo não é o
referencial, mas que da afirmação da interpretação analítica decorre que
os momentos da descoberta do sentido da norma refletem fases de amplo
processo cognitivo. Um processo construtivo e relacional que deve ser
passível de controle.
No momento da comunicação, as normas, atos de fala que
prescrevem comportamentos (ilocucionários) contêm três espécies de
pretensões de validade: verdade, retidão e veracidade. Cada qual, ligada
a espécies de relações havidas entre os sujeitos: relação objetiva, relação
subjetiva e relação intersubjetiva47.Sabe-se que os enunciados voltados
para a determinação do comportamento (da vontade humana) podem ser
feitos obedecer por meio de variadas estratégias, porém pode-se
identificar diversas pretensões de validade. Consoante a isso, os
postulados da ciência possuem natureza objetiva, pretendem ser a
descrição de algum fenômeno observável, e pode servir para indicar uma
ação em detrimento de outra. Por exemplo, se alguém deseja água
fervente é informado pela ciência de que isso ocorre quando essa é levada
ao fogo. Tal informação expressa uma noção de verdade e se o afirmado
não corresponder ao real sua validade é negada.
Na perspectiva objetiva acredita-se que a norma contenha todos
os elementos necessários à sua aplicação. A perspectiva objetiva destaca
que a vinculação do sentido ao enunciado possibilita a previsibilidade de
47 GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do
pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p.118.
algum fenômeno. O aspecto mais relevante dessa modalidade de
comunicação é a noção de determinação, de segurança sobre a
informação enunciada, uma vez que, de antemão todos sabem qual é o
seu espaço de ação e não demanda interferência exterior. As relações de
cunho objetivo podem ser exemplificadas pelas afirmações da ciência. A
linguagem quando relacionada com o mundo objetivo, tem uma
“pretensão descritiva”, perante a qual seus postulados ou serão
verdadeiros ou falsos, posto que se referem à adequação da descrição
com a realidade fática.
Na perspectiva subjetiva, há a compreensão de que os enunciados
expressam valores na forma de princípios, que devem ser realizados
pelos indivíduos de modo geral. Nesta perspectiva, a linguagem tem
como pretensão de validade a veracidade ou correção. Refere-se à
adequação do que é expresso com o que é percebido. Ao intérprete do
enunciado interessa a determinação do seu significado à luz de um
contexto cultural ou histórico compatível com os conceitos vagos
expressos em princípios.
Assim, os enunciados subjetivos e intersubjetivos não expressam
pretensão de verdade ou de falsidade. Isso porque essas modalidades de
expressão, só podem ser avaliadas como uma ação pretendida em um
dado contexto que será avaliado pelo intérprete. Melhor dizendo, um
enunciado subjetivo revela uma avaliação pessoal, marcada pela
personalidade individual de quem a expressou. Enquanto uma afirmação
intersubjetiva só pode ser compreendida pela associação à sua origem
social, compatível com um dado conjunto de valores ou princípios. Vale
ilustrar, um tratado de física constitui exemplo característico da
linguagem descritiva, com pretensão de verdade objetiva, uma música
constitui exemplo da linguagem expressiva, com pretensão de veracidade
subjetiva (sinceridade) e um conjunto de regulamentos constitui exemplo
da função prescritiva, com pretensão de correção intersubjetiva.
O juízo subjetivo opera um raciocínio de adequação da
proposição com o contexto de proferimento; e, não um juízo de se o que
foi dito representa um fato ou objeto. Por conseguinte, os enunciados
prescritivos se diferenciam dos enunciados descritivos, uma vez que,
uma descrição é própria da afirmação que identifica um objeto real,
enquanto uma prescrição volta-se a determinação da vontade.
A pretensão de validade expressa pelos enunciados objetivos é
descritiva e confrontará o critério de “verdade” ou de “falsidade”.
Quando relativa ao mundo subjetivo, do ser, a linguagem possui
“pretensão expressiva”; toda vez que o enunciado se refere a “estado
interno” há pretensão de validade expressiva. Esta terá como critério a
“sinceridade” ou de “não sinceridade”.
Por fim, o mundo social contempla a “pretensão normativa” da
linguagem; a qual enuncia parâmetros de “correção” ou de “não
correção”. Tais explicações permitem a elaboração do seguinte quadro:
Estrutura da Pretensão
relação de Validade
[correção epistêmica]
Objetiva verdadeiro x falso
(descritiva)
[veracidade subjetiva]
Subjetivo sinceridade x não sincero
(perspectiva de quem fala)
[correção normativa]
Subjetivo retidão x não retidão
(perspectiva de quem ouve)
[entendimento]
retidão (sistêmica) x não retidão
Intersubjetivo correção x incorreção (legitimidade)
Estabelecido o direito como meio intersubjetivo cujas normas
possuem dupla pretensão de validade: retidão e correção, pode-se
conceituar a norma jurídica como: A proposição enunciada numa forma
reconhecida pela sociedade e imposta pelo poder competente de acordo
com o procedimento previsto e destinada a ser fundamento de uma
relação socialmente exigível com considerações de igual espaço e
respeito.
Nessa esteira, a crítica ao positivismo jurídico levou a afirmação
da existência de princípios jurídico enquanto elementos que podem
esclarecer a aplicação das regras jurídicas. As regras, por si só, não
esclarecem sua hipótese de aplicação e os princípios auxiliam no bom
entendimento da regra, da determinação do melhor sentido a ser aplicado.
Sem embargo, a jurisdição existe nos limites das disposições
normativas do regime jurídico. Isto é, por um conjunto de regras e
princípios específicos da argumentação jurídica. Nessa ordem de ideias,
Konrad Hesse propõe que através da interpretação deve-se:
(...) encontrar o resultado constitucionalmente “correto” através
de um procedimento racional e controlável, ou/e fundamentar
este resultado, de modo igualmente racional e controlável,
criando, deste modo, certeza e previsibilidade jurídicas, e não,
incerteza, o da simples decisão pela decisão48.
Então, para possibilitar que a interpretação cumpra essa missão,
é necessário fixar seus contornos. Tome-se a advertência de Konrad
Hesse de que quando se busca o mero cumprimento das normas
constitucionais, sem a consciência dos resultados almejados no ato de
execução, não se vislumbra interpretação, mas sim “atualização”. Gomes
Canotilho acrescenta que:
(...) realizar a constituição significa tornar juridicamente eficazes
as normas constitucionais. Qualquer constituição só é
juridicamente eficaz (pretensão de eficácia) através de sua
realização. Esta realização é uma tarefa de todos os órgãos
constitucionais que, na atividade legiferante, administrativa e
48 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha. Trad.
Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 35.
judicial, aplicam as normas da constituição. Nesta "tarefa
realizadora" participam ainda todos os cidadãos "pluralismo de
intérpretes" que fundamentam na constituição, de forma direta e
imediata, os seus direitos e deveres49.
Assim, se os gregos inventaram a ideia ocidental de razão como
um ajuste entre o pensamento e os princípios e regras de valor universal.
Pode-se afirmar que a identificação da racionalidade do grupo serve para
desnudar como opera o trabalho interpretativo. A racionalidade é o traço
distintivo da condição humana, juntamente com a capacidade de
acumular conhecimento e transmiti-lo pela linguagem.
5 SÍNTESE FINAL
Em síntese, este momento do curso trouxe que os estudos da
linguagem contribuíram para o aprimoramento da ciência do direito,
pois, com os desenvolvimentos da linguística se incorporou à teoria do
direito que a interpretação da norma possui diferentes níveis: o primeiro
é a sintática (como é construído um enunciado, como é estruturado); o
segundo é da semântica; o terceiro é a da pragmática linguística. Nessa
linha, são três níveis da interpretação:
a) Lógico-Sintático: construção de signos e estruturas
morfológicas (verdade consigo própria) – estabelecida a partir
das formas de pensamento em geral (da dedução); a verdade
é afirmada com recurso ao sentido próprio das palavras, tal o
definido em dicionário;
b) Analítico-Semântico: sentido originário das palavras
(Verdade junto com o objeto) – estabelecida pela análise do
“sistema” que a informa, ou seja, a semântica demonstra a
49 CANOTILHO,José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6a. ed. Coimbra: Almedina, 1993,
p. 1164.
verdade do que afirma com sua história ou uso habitual (de
modo indutivo);
c) Argumentativo-Dialético: trata o sentido das palavras na
linguagem considerando o contexto de proferimento e os fins
buscados – a correção é estabelecida pela argumentação que
justifica o que foi afirmado com o propósito almejado ou
projeto a ser implementado (verdade do entendimento de
modo abdutivo).
As críticas ao modelo “legalista” (lógico-indutivo) estabelecidas
pelos desenvolvimentos das perspectivas semântica e pragmática,
apareceram com a reflexão a respeito da origem e repercussões da
aplicação do direito. Essas repercutem que se deve ter sob o horizonte a
existência de pelo menos duas funções a serem exercidas pelo direito,
duas grandes explicações sobre sua utilidade social: a) que o comando
expresso pelo direito represente a conduta facticamente observada
socialmente; e b) na hipótese de sua não observância, que
institucionalize meios para sua imposição ainda que forçada; e, então,
deve ser possível avaliar a correção daquilo que é imposto50.
O centro de uma concepção material, tal expressa pela semântica,
qual pela pragmática, se situa na elaboração de teoria jurídica que venha
ao encontro das legítimas aspirações sociais. De um lado, a semântica
contempla o contexto sociocultural, por outro lado, a pragmática se
50 Por exemplo: o judiciário brasileiro já se deparou com o problema do excesso de subjetividade em
etapas finais de concursos públicos, como ocorreu no julgamento do seguinte mandado de segurança
referente à admissão na carreira da diplomacia, que foi decidido pelo antigo Tribunal Federal de
Recursos para o efeito de declarar a nulidade exclusão de candidato com fundamento em entrevista
puramente subjetiva: “ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. APTIDÃO PARA
INGRESSO NA CARREIRA DIPLOMÁTICA. Aferição através de entrevista de natureza subjetiva,
determinada em portaria ministerial sem respaldo em norma legal, e realizada após a aprovação do
candidato nas provas intelectuais a que se submeteu. Entrevista a que não se pode emprestar validade
como fato quando, ao seu término, aqueles que a realizaram se limitaram a afirmar, sem qualquer
justificativa, de maneira dogmática, não considerar o candidato como possuidor de aptidão
necessária ao exercício da carreira diplomática (fls. 77 e 78). A afirmação assim feita torna
insuscetíveis de exame, quer pelos próprios candidatos, como pelo Judiciário, os reais motivos
que determinaram, tanto podendo possibilitar a prática do arbítrio ou de odiosa
discriminação, a ensejar se torne letra morta o disposto no art. 153, par. 4o. e 15, da Lei
Fundamental. Mandado de Segurança que se concede. (TRF, MS, n. 101.898 – DF, Rel. Min. Leitão
Krieger, DJ 22.5.1986)”.
propõe a elucidar a argumentação jurídica (o uso dos discursos) que guia
e fundamenta o uso dos métodos ou cânones da interpretação e que,
portanto, traça de uma certa forma os limites da interpretação e os
critérios de correção da mesma.
As perspectivas críticas ao método descritivo expressam que
para se obter o reconhecimento da legitimidade do direito, não parece ser
suficiente o emprego de métodos lógicos (ainda que com o emprego de
alguns critérios formais de correção dos argumentos – a referência à
universalidade e à coerência), faz-se necessário também considerar o
aspecto da “integridade” ou “consistência”.
Nestes termos, a perspectiva da pragmática se esforça para
elucidar o raciocínio de decisão do julgador por meio do esclarecimento
dos princípios da argumentação enquanto elemento da consistência da
aplicação do direito.
Sob esses contornos, a ciência do direito, de modo
epistemológico, pode ser desenvolvida sob diferentes métodos: o
primeiro é o da LÓGICA (método que estabelece a síntese de premissas
por meio da dedução); o segundo é da SEMÂNTICA (método que
estabelece sentido/significado das palavras referido ao sentido originário
do contexto do proferimento - ao “sistema” inclusive pela via “analítica”
sob termos da dedução); o terceiro é a da PRAGMÁTICA (método que
estabelece o significado de modo abdutivo).
Em reconstrução crítica a esses conceitos, Jürgen Habermas
identifica que o estudo da perspectiva pragmática permite a
compatibilização dos modelos objetivo e subjetivo. Afirma que a adoção
do método dialético pela teoria jurídica, possibilita que o enunciado
jurídico assuma simultaneamente duas pretensões de validade: correção
ou não correção formal e legitimidade e ilegitimidade substancial.
De sorte que, aceita a possibilidade do estudo discursivo do
direito, também o ideal de justiça passa a ser socialmente compartilhado
por meio da comunicação social. Isso corrobora a intuição de que o
entendimento que informa a comunicação pode também moldar o
conceito de justo. O paradigma comunicativo pressupõe que a linguagem
tem um caráter de entendimento e compreensão. Além do sujeito que
conhece, deve ser percebido, que a situação da compreensão pressupõe a
atuação de mais de um sujeito, os sujeitos fazendo uso da linguagem
(discurso) assumem compromissos (coordenação da ação) que podem ser
justificados no entendimento.
Consoante ao exposto, acredita-se que esta aula nos levou a
peculiar compreensão da(s) ideia(s) subjacentes à atuação do estado
democrático direito. Pois, o desenvolvimento do nosso estudo considerou
que o estado democrático direito se vincula com a necessidade de que as
decisões dos órgãos públicos estejam discursivamente justificadas. Isto é
assim porque o controle dos atos administrativos é corolário da ideia de
que os agentes públicos não agem de modo arbitrário, a justificação das
decisões não depende só da autoridade que as impõe, mas também da
qualidade do procedimento que as.
Nesse sentido, a compreensão da ideia regulatória do estado
democrático de direito é a sua submissão aos princípios que justificam
sua existência. Daí porque, a partir desta aula, iremos tratar do “estado
democrático de direito”, enquanto figura política que explica a atuação
estatal em termos da pragmática argumentativa. Porque acreditamos que
esse oferece maiores possibilidades para a incorporação dos projetos
sociais à prática jurídica. Daí se verificar a importância crescente da
motivação dos atos públicos.
OBSERVAÇÃO: Ciente da existência de distintos modos de aprender (e
de estudar) se sugere que, após o estudo da aula, o estudante produza
uma síntese com suas próprias palavras e escreva: - quais são os
principais tópicos desenvolvidos? – qual a ideia central de cada tópico?
É desejável que o resultado da síntese pessoal fique escrito em seu
caderno de anotações para consulta futura.
À luz do apresentado, responda:
QUESTÃO 1 – Estudamos que “razão” é imagem, que pode conter
o fundamento interno (DE MODO FORMAL-OBJETIVO) ou a
justificação externa (DE MODO SEMÂNTICO-SUBJETIVO), que
confere significado a norma jurídica, então responda:
1.a – Explique o que caracteriza (e distingue) as abordagens de
fundamentação (descritivas), das abordagens de justificação (prescritiva-
normativa, de ordem ou comando) enquanto caminhos (perspectivas)
para se interpretar as normas.
1.b - Interprete a imagem abaixo e resolva a questão a seguir:
À vista da imagem supra explique: o sentido de completo e acabado aparece
de modo literal no mesmo contexto semântico? Se não estão no mesmo
contexto semântico (DENOTATIVO ou CONOTATIVO): como você
situaria a divergência de perspectivas entre esses contextos?
QUESTÃO 2 - Sabendo que o conceito de CIÊNCIA, dentre outros
atributos, é caracterizado pela presença de método próprio voltado
a dado objeto com objetivo de se afirmar alguma utilidade, e que
dado modo de organizar seus postulados permite a afirmação da
existência de um SISTEMA, , estudamos que a dogmática jurídica
questiona se o direito possui autonomia científica (ou não); se as
fontes do direito são suficientespara de modo formal-objetivo se
estabelecer o sentido das normas, ou se o conhecimento das fontes do
direito somente é possível a partir do conhecimento da política ou da
economia, nesse sentido pergunta-se:
2.a – Sob a perspectiva do IRRACIONALISMO: Qual (ou quais)
argumento(s) apoiam a afirmação da rejeição a existência de método
próprio ao pensamento jurídico. É o direito conjunto de normas
estabelecidas com o objetivo de dominação? É explicado como fundado
no uso da força?
2.b – Sob a perspectiva do RACIONALISMO INTERNO: Qual (ou
quais) argumento(s) apoiam a afirmação da autonomia científica do
direito. É o direito um conjunto de normas que expressa a autoridade e,
enquanto tal, é expressão de um poder organizado com vista à segurança
social sem referência ao contexto social?
2.c – Sob a perspectiva do RACIONALISMO EXTERNO: Qual (ou
quais) argumento(s) apoiam a afirmação de que o direito compartilha
seus métodos com outras ciências. É o direito um instrumento da vontade
social que reflete o conhecimento científico?percepções sobre a arquitetura de nossas instituições
(do próprio curso).
Consoante a estas definições preliminares, hermenêutica trata
das formas e dos “procedimentos” que estabelecem decisão jurídica
válida. Tais “teorias decisórias” podem (e devem) alcançar
simultaneamente estudo de cunho descritivo (metodologia de
fundamentação) e estudo de caráter prescritivo (metodologia de
justificação), sob a perspectiva crítica da pragmática. De um lado,
enquanto teoria de fundamentação, valoriza a identificação da norma
concretamente aplicada, de modo objetivo, de outra sorte, enquanto
metodologia de justificação, reflete o entendimento que expressa a
aplicação do direito conforme seu conceito, ou finalidade, orientado para
a realização de valores ou de princípios.
Nesse passo, a pretensão da “boa aplicação” das normas
demanda a reflexão sobre: (a) a orientação que organiza o conjunto
normativo, a “racionalidade jurídica”; (b) sobre os efeitos para a
aplicação das normas da tensão experimentada entre os distintos grupos
sociais e (c) sobre as possibilidades da composição pacífica (legítima)
dos interesses.
Feitos esses destaques, a hermenêutica tem, ao menos, três
facetas, e essas estruturam a sequência do texto: a hermenêutica como
teoria do conhecimento (2) voltada para esclarecer o contexto do estudo
do direito que resulta na formulação das escolas ou correntes jurídicas
(jusnaturalismo, positivismo, ...); a hermenêutica jurídica clássica a qual
estuda a organização do direito como sistema racional (3), ou seja,
reflete a respeito dos problemas do ordenamento e abrange questões
como completude (existência de lacunas), coerência (existência de
antinomias), amplitude e consistência (a realização da justiça); a
chamada nova hermenêutica constitucional, que lida com a discussão
sobre a aplicabilidade das normas em termos valorativos (3.1) ou sob
os postulados da Teoria da Argumentação Jurídica (4).
Bom estudo.
2. HERMÊNEUTICA e CONHECIMENTO: o estudo jurídico entre
fundamentação (compreensão), justificação (entendimento) e aplicação.
Há relações, há atos e há fatos jurídicos. A existência de
diferentes elementos da razão jurídica faz com que exista ambiguidade
sobre as disciplinas voltadas ao estudo da aplicação racional do direito.
Nesse passo, a disciplina da hermenêutica jurídica expressa estudo
metódico a respeito do conteúdo objetivamente determinado com o
desenvolvimento do raciocínio jurídico para ser observado pelos sujeitos
no convívio social.
Alguns objetos próprios ao raciocínio jurídico são facilmente
identificáveis enquanto FATOS, por exemplo, se pode fundamentar a
existência de uma norma identificando-a com a manifestação da
autoridade soberana, ou seja, a partir desta perspectiva, uma norma existe
quando verificada a ocorrência da hipótese prevista para sua formação,
tal o registro escrito em um contrato, qual a imediata associação desta
norma com a prática corrente em dada sociedade.
A atividade de fundamentação é própria da perspectiva
descritiva, tal a desenvolvida por um “sociólogo” quando registra o
acontecimento social da publicação da sentença judicial. Quer se dizer, a
sociologia, geralmente, dirige-se para a identificação do fenômeno social
tal qual se apresenta, sem maiores indagações sobre o acerto (ou
desacerto) daquilo que identificou.
Vale indicar que, o núcleo da concepção sintático-formal revela
que o raciocínio de aplicação das normas jurídicas desenvolve os
postulados da lógica clássica. Dessa sorte, a “inferência”, ou o raciocínio
estabelecido por meio da subsunção (dedução – argumento do geral para
o particular), ou da adequação (indução - argumento do particular para
o geral - “meio x fim”), ou da ponderação (abdução – argumento de
probabilidade - representa o uso (como premissa) do enunciado jurídico
(ou regra de ação, ou regra de fim - valor, ou princípio - diretriz, meta a
ser obtida) para o fim de estabelecer o significado (a decisão) em função
desse).
Sob a concepção formal, o estudo da hermenêutica dos métodos
da aplicação das normas jurídicas se volta à investigação das premissas,
das razões extraídas das fontes formais, utilizadas para a resolução de
problemas teóricos ou práticos e, por vezes, o raciocínio jurídico alcança
argumentos “extra sistemáticos” (de fora do sistema). Sob a concepção
material/substancial, a identificação do uso de “razões” oriundas de
outros conjuntos (para além do formalmente definido) acarreta a
discussão da relevância ou do peso das razões externas e para a reflexão
sobre a relação entre as razões jurídicas e as razões morais.
Então, a fundamentação do direito em termos formais (ou
objetivos) aparenta ser simples, todavia, conseguir justificar a norma a
partir de considerações materiais se mostra mais difícil. Pois, em sentido
epistemológico/formal, a justificação da norma é reduzida à tarefa de se
identificar que essa corresponde aos interesses dos indivíduos que
integram o grupo social.
Para exemplificar a dificuldade substancial de seu justificar a
aplicação do direito veja o exemplo: é objetivamente verificável que o
artigo 5º. da Constituição Federal brasileira contém a seguinte inscrição:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes:”. Mas, à vista do texto
constitucional, se pergunta: A proteção jurídica aos direitos do
estrangeiro depende de que o mesmo comprove ser residente no
país? Sim ou não?
Enfrentando essa questão, o Supremo Tribunal Federal já decidiu
que não. Veja o enunciado do julgamento do mandado de segurança
(MS) n. 4.706/DF em 1958: “O estrangeiro, embora não residente no
Brasil, goza do direito de impetrar mandado de segurança”.
Dessa sorte, embora a literalidade do texto pareça sugerir que a
proteção aos direitos do estrangeiro somente se aperfeiçoa quando ele
demonstre ser residente no Brasil, porém, o entendimento assumido pelo
STF é no sentido de que não há a necessidade de o estrangeiro comprovar
a condição de residente para pleitear tal proteção.
A “compreensão” do texto jurídico, objetivamente verificável, é
o fundamento da decisão (ou seja, a decisão é referida ao artigo que
literalmente indica ser esta proteção para o estrangeiro residente), todavia
o “entendimento” expresso pelo STF revela a justificação da norma (o
pedido de proteção a direito do estrangeiro, não exige que ele comprove
a residência no país).
Nessa linha a decisão produzida pelo STF aparenta coincidir com
a explicação formulada, já no início do século XX, pelo positivista Hans
Kelsen que, com a obra “Teoria Pura do Direito”, assumiu que, de um
lado, a lei (a regra escrita) é fonte formal do direito que enunciada possui
conteúdo cujo significado pode ser situado além da pura vontade de quem
a escreveu (a norma). A norma jurídica é revelada quando da
interpretação da regra respeitados seus contornos semânticos.1
Por conseguinte, a despeito de ser possível resumir o raciocínio
jurídico ao aspecto formal, a importância da justificação (da afirmação
legítima do direito) é reconhecida inclusive pelo formalismo, o qual
também aceita que os conceitos de regra objetivamente identificada e
norma concretamente aplicada não se confundem. De modo coerente, tal
foi reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal em outras decisões como
quando expressou no julgamento do agravo regimental em recurso
extraordinário (ARE) 709212/DF: “Essa colocação coincide,
fundamentalmente, com a observação de Haberle, segundo a qual não
existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada”.
Vale recordar a divisão entre “ciência básica” e “ciência
aplicada”. A primeira trata do conhecimento do fato em si, da descrição
do objeto pensado sem a preocupação em se estabelecer seu uso, ou
utilidade, de outra sorte, a segunda, reflete o objetosob considerações de
seu uso ou utilidade. Enquanto os cursos de direito, na maioria das vezes,
voltam sua atenção para a identificação do fato (do registro da norma em
si), os tribunais aplicam o direito sob a referência da composição do
conflito lhes apresentado.
Tal dinâmica inspirou outro positivista, Herbert Hart, a
evidenciar que a postura dos cursos jurídicos expressa a postura de um
“observador”, que se contrapõe à visão da prática jurídica, a qual revela
postura de um “participante”. Em sua lição, a reflexão sobre a
cientificidade do estudo do direito informa que coexistem diversas
teorias ou movimentos sobre o significado do Direito, os quais
repercutem distintas metodologias que expressam diversos
entendimentos acerca do seu conceito (ou função), tal sob a perspectiva
do observador, qual sob a perspectiva do participante que debate sobre o
direito aplicado.
Então, tal no contexto da fundamentação, qual no contexto da
justificação, o objeto da hermenêutica aparece como a elucidação dos
métodos utilizados para a afirmação do sentido da norma concretamente
1 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: Introdução à problemática científica do direito. 3ª. ed.
Trad. J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, capítulo VI.
identificada, a da melhor interpretação, que pode ser desenvolvida de
modo descritivo ou prescritivo (expressando valores ou princípios). Daí
se identificar duas classes de problemas: 1).- da fundamentação ou da
compreensão (a identificação) do direito existente reduzida ao
formalmente definido; 2). da justificação ou entendimento do direito
existente sob considerações materiais2.
Daí que, ao lado da fundamentação sociológica, da concepção do
direito como força e descrito como manifestação do poder soberano, há
ainda o sentido político que expressa a justificação da norma estabelecida
pela vontade soberana, a qual, de modo prescritivo tem a pretensão de
impor suas regras ainda que diante da vontade de indivíduos
recalcitrantes em favor do atingimento dos interesses que informaram sua
instituição.
Sob esse primeiro conceito político, o entendimento resulta da
função do direito ser reconhecido como instrumento de estabilização da
conduta social. De outra sorte, a identificação da norma jurídica com a
vontade soberana que a institui, parece favorecer uma postura formalista,
segundo a qual há somente um resultado correto ao final da interpretação,
não conseguindo vislumbrar a possibilidade da incerteza (ou variação do
sentido atribuído).
A primeira operação da tarefa interpretativa consiste na eleição
da hipótese normativa, enquanto a segunda pode ser classificada pela
busca do seu conteúdo e extensão. Enquanto a compreensão visa
identificar a norma, o estudo do entendimento investiga a amplitude de
seu conteúdo. Da classe do entendimento resultam os quatro
procedimentos tradicionais: a interpretação gramatical (que se prende
ao significado das palavras), interpretação lógica (que valoriza a
adequação das proposições), interpretação histórica (que justifica sua
conclusão de modo tradicional) e interpretação sistemática (é orientada
para a garantia da coerência entre as normas do conjunto normativo). O
2 A divisão das perspectivas de fundamentação (da compreensão) e da justificação (do entendimento)
parece reproduzir a diferenciação da “ciência básica”, que desenvolve o estudo de certo objeto de
modo neutro e imparcial, e da “ciência aplicada”, a qual volta-se para a definição de certo objeto
com vistas ao atendimento de algum fim ou interesse prático. Porém, vale observar que tal divisão
não revela exatamente o mesmo fenômeno. Vez que, a divisão entre ciência básica e aplicada
manifesta distintos objetos de análise e não exatamente a diferenciação do método de estudo.
critério da extensão (ou quanto ao resultado), por sua vez, possibilita o
agrupamento dos procedimentos interpretativos em três tipos: a
interpretação declarativa, a restritiva e a extensiva3.
À vista da distinção entre as perspectivas de fundamentação e de
justificação, se fixou que o próprio formalismo jurídico pode conviver
com perspectivas críticas (que valorizam a eficácia ou legitimidade da
norma) evidenciam que “justiça”, “eficácia” (vigência) e “efetividade”
expressam distintos argumentos de justificação (que originam diversas
“teorias da justiça”):
a).- em um primeiro sentido “justiça” esclarece a
correspondência entre a norma afirmada e os valores que
orientam a sua afirmação;
b).- em outro conceito “justiça” remonta à eficácia, a qual trata
da adequação da norma ao sistema concretamente estabelecido
e, assim, vigência e eficácia alcançam o fenômeno da norma ser
exigível em dado tempo e lugar identificável facticamente; e
c).- a efetividade trata da orientação da aplicação da norma no
propósito da obtenção dos fins por essa almejados.
Cada perspectiva de estudo implica em distinto conceito de
direito, sob tais contornos Karl Larenz afirma:
3 Há ainda uma terceira classificação útil a esse estudo: quanto ao sujeito da interpretação. Nessa
classe a interpretação pode ser efetivada por um órgão público, isto é, oficialmente autorizado pela
ordem jurídica para a tarefa interpretativa, ou, pelos indivíduos em particular. Modo pelo qual, pode-
se dividir a interpretação quanto ao sujeito em pública e privada. Pode-se, com esforço, enxergar
que essa divisão contempla que alguns sujeitos (determinados no art. 103, da Constituição Federal)
possuem competência para iniciar uma ação direta de controle de constitucionalidade perante o
Supremo Tribunal Federal enquanto outros não. Porém, com apoio nos argumentos de Häberle,
segundo os quais “no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos
os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível
estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com "numerus clausus" de intérpretes da Constituição”
parece sem sentido tentar classificar o processo pelo sujeito que o desempenha (HÄBERLE, Peter.
Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da constituição – Contribuição
para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 13-14).
“Toda e qualquer metodologia do direito se funda numa teoria
do direito ou quando menos implica-a. Ela exibe
necessariamente um duplo rosto – um que está voltado para a
dogmática jurídica e para a aplicação prática dos seus métodos,
outro que se volta para a teoria do direito, e assim, em última
análise para a filosofia do direito...”4.
Assim, a ciência do direito pode “fundamentar” a proposição
normativa sob seus próprios termos (enquanto manifestação de um
poder), mas pode também a “justificar” sob a compreensão histórico-
cultural ou, ainda, de outra sorte, ainda sob a perspectiva prescritiva,
pode fazer uso da Constituição para conferir a legitimidade dessa regra
no momento de sua aplicação tendo por referência alguma “razão” ou
“princípio” (utilidade ou interesse social).
Ao lado das perspectivas de fundamentação e de justificação, que
repercutem a compreensão e o entendimento das normas, é conveniente
estabelecer o âmbito da reflexão sobre a sua qualidade, sobre o “bom
entendimento” desta. Se supõe que, em sentido racional, a norma
jurídica para além de ser identificável por igual deve ser acessível pela
consciência de modo reflexivo, seja enquanto algo concretamente vivido,
seja como algo posto a ser observado.
Por conseguinte, se tem que, a despeito de que os professores
de direito concordem com a afirmação de que a norma reflete sua
“fonte”, todavia, divergem quanto ao conceito de fonte ou quanto ao
método a ser adotado para a aplicação das normas jurídicas. Tais
divergências restam explícitas, ao tempo em que, as normas jurídicas
produzidas, a partir de procedimentos institucionalizados e socialmente
formalizados, tenhaperdido a proximidade com os cidadãos que antes
conseguiam relacionar as obrigações com a tradição, costumes ou mitos.
A institucionalização do “Estado de Direito” permitiu que esse
fosse compreendido como instrumento coercitivo e organizador da
sociedade e a incorporação do modelo jurídico democrático, exige que
sejamos capazes de além de identificar a ação juridicamente ordenada
também se deve poder entender o ordenamento como articulação entre
4 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983, p. XXIV.
convicções, normas e atos, enfim de argumentos. De tal modo que os
operadores profiram decisões justificáveis e legítimas.
No marco do estado democrático de direito, os agentes públicos
e os cidadãos não agem pura e simplesmente. Estão obrigados em termos
jurídicos, comunicativos e éticos a justificar sua conduta através de
motivações racionais no sentido de que são capazes de expor suas razões.
Vale dizer, argumentar.
Por conseguinte, as críticas estabelecidas para a aplicação do
direito em sentido formal conferiram nova importância ao problema
funcional da indeterminação cognitiva subjetiva (sobre qual deve ser o
conteúdo interpretado para o direito positivo? Quais são os fins do
direito? A quem se destina?).
Consoante a isso, agora, parte-se para refletir sobre os temas da
fundamentação, da justificação e da aplicação legítima do direito, das
condições a partir das quais uma decisão jurídica pode ser considerada
correta. Tal passa por questões a respeito de como a teoria do direito pode
valorizar sua origem na igualdade política e cumprir suas promessas de
equidade sem descuidar dos aspectos formais que garantem a pretensão
de igualdade de todos perante a lei.
O estudo da argumentação jurídica, em alguma medida, favorece
que se revisite o problema do “conceito do direito” com o propósito de
se identificar o melhor conceito para os estados de direito constitucionais.
Sob esta inspiração, nesse momento do curso se discutirá os
delineamentos por meio dos quais esse tema foi (e é) desenvolvido. Os
próximos pontos desenvolverão a sucessão dos modelos jurídicos com a
reflexão das possíveis relações entre direito e moral, que culmina com o
estabelecimento do “estado democrático de direito”.
Na sequência, a próxima seção estudará as exigências sistêmicas
de unidade, completude, coerência e consistência sobre organização do
ordenamento jurídico. De modo que, a compreensão da melhor aplicação
da norma resulta do processo de identificação que, embora imperfeito e
impreciso, existe para distinguir o correto do incorreto.
3 A ORGANIZAÇÃO DO DIREITO COMO SISTEMA RACIONAL
Uma norma, isoladamente considerada, pode existir (ou não), ser
obedecida (ou não), pode ser justa, eficaz ou efetiva, mas o estudo de sua
“validade” supõe o esclarecimento da relação estabelecida entre essa e
as outras normas. Enquanto a perspectiva de fundamentação identifica a
norma faticamente existente (ou a que deveria existir), a metodologia de
justificação trata do entendimento da norma aplicada, tal no aspecto da
eficácia (vigência), da efetividade (concretização dos seus objetivos) ou
das relações estabelecidas entre normas (sua validade).
O “estado de direito constitucional” se contrapõe à afirmação do
direito como puro ato de observância do “poder soberano” e a sociedade
contemporânea tem que a Constituição é o elemento central do
ordenamento jurídico. Isso porque o marco constitucional é estabelecido
com o objetivo de definir a origem (modo ou forma de elaboração) e a
orientação (os fins ou valores a serem atingidos pelo ordenamento) das
normas jurídicas.
Daí que, proposições normativas ou são afirmações a respeito da
existência da norma tal na perspectiva descritiva, ou são afirmações sobre
a justiça da norma qual na perspectiva prescritiva. Nesse quadro,
SISTEMA ou ORDENAMENTO é a concepção que identifica o
conjunto organizado a fim de garantir a “correta” aplicação da norma
jurídica e, o juízo da correção acarreta a investigação da adequação da
norma em relação às outras.
Por conseguinte, a possibilidade de indeterminação do direito (a
possibilidade da variação de julgamentos partindo das mesmas normas)
favorece a existência de discussões quanto a existência (ou não) de um
método próprio ao direito e as respostas trazem consigo o
questionamento quanto as características, ou métodos utilizados pelo
método de aplicação do direito. Nessa linha, a doutrina jurídica identifica
a existência de pelo menos três diferentes respostas sobre a racionalidade
do trabalho de aplicação do direito: da rejeição de que exista na
aplicação do direito a observância a um método (A); da existência de
método quando da aplicação do direito e que este não é autônomo,
posto que compartilhado com outras ciências (B); da existência de
método próprio para o trabalho de aplicação do direito e que este
expressa autonomia da ciência do direito frente à outras ciências (C).
(A) Da rejeição do método próprio ao direito (irracionalismo)
Quando se analisa a justificação da norma aplicada, ou seja, quando
se tem que entender os motivos que validam a decisão empregada, a
primeira perspectiva, embora radical, é importante para o estudo do tema,
pois força a reflexão sobre a existência do caráter científico do direito.
Dúvida da existência de qualquer método próprio ao direito em sentido
epistemológico ou a existência de valores ou ideias comuns que orientam
sua atuação em sentido substancial.
Os estudos sobre a racionalidade jurídica existem exatamente
para o esclarecimento da razão prática que orienta a compreensão do
direito. Sabe-se que, para se fomentar a segurança jurídica faz-se
necessário reconhecer a influência que as distintas perspectivas
históricas, culturais ou éticas desempenham nas decisões jurídicas e ter a
iniciativa de tratar as questões próprias à aplicação da norma jurídica em
termos argumentativos.
Então, para o reconhecimento (ou não) da organização como
sistema para um dado conjunto de normas obrigatórias existentes em um
território deve-se refletir a respeito da situação (frequente) da ocorrência
de julgamentos que embora julguem interesses similares aplicam a norma
em sentido distinto.
À vista dessa situação, os juristas chegam a duvidar de que o
conjunto de normas jurídicas possa ser entendido como sistema, ou
mesmo da possibilidade de se identificar racionalidade quando da
aplicação do ordenamento, e implica na pergunta: como se garantir a
legitimidade de julgamentos de casos similares que apresentam decisões
diferentes.
Nessa linha, um dos caminhos que fomentam a percepção do
irracionalismo do direito se apresenta com a constatação de que a
pluralidade de fontes leva a situações insólitas. Recorde-se o fenômeno
identificado nos idos de 2010: De acordo com a Portaria do Ministério
da Previdência Social n. 350 de 30/12/2009 o valor do auxílio reclusão a
ser pago para a família sem condições de prover seu sustento face a prisão
do seu arrimo é de R$.- 798,30 (setecentos e noventa e oito reais e trinta
centavos). Valor superior ao salário-mínimo federal somado ao benefício
do “bolsa família”. De sorte que, aparentemente para o pai de família
carente, naquele momento, afrontar a lei (e ser condenado) poderia levar
a aumento da renda familiar5.
Ou ainda, veja o voto proferido perante o Superior Tribunal de
Justiça (STJ) em julgamento do Agravo Regimental nos Embargos em
Recurso Especial (AgRg nos EREsp) 279.889/AL a seguir transcrito:
Sr. Presidente, li, com extremo agrado, o belíssimo texto em que
o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins expõe suas razões, mas
tenho velha convicção de que o art. 557 veio em boa hora, data
vênia de S. Exa.
Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for
Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da
minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros
deste Tribunal importa como orientação.
A eles, porém,não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de
Barbosa Moreira ou Athos Carneiro.
Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos
estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal
seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os
Srs. Ministros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ
decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como
esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de
Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental
expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos
aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal,
corajosamente assumimos a declaração de que temos notável
saber jurídico – uma imposição da Constituição Federal. Pode
não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para
efeitos constitucionais, minha investidura me obriga a pensar que
assim seja (...) (STJ – AgRg nos EREsp 279.889/AL – Primeira
Seção – j. em 14.08.2002).
5 fonte: Jornal de Londrina, disponível em
http://portal.rpc.com.br/jl/edicaododia/conteudo.phtml?id=972697 consultado em 11/02/2010.
A jurisprudência citada ilustra o fenômeno identificado pelo
movimento do “Critical Legal Studies” no sentido de que a aplicação do
direito pode consistir na decisão de um caso concreto através da
intuição, imaginação ou mesmo de modo emotivo.
Seguindo essa perspectiva, a publicação da sentença não
manifesta padrão racional porquanto cada caso concreto possui sua
própria resposta que aparece por meio do estímulo que o juiz recebe para
decidir. Sua fundamentação é intuitiva ou emocional, não sendo possível
sua reconstrução conforme algum método jurídico racional. Daí que o
espaço da cidadania resulta diminuído e não se pode estabelecer o
controle racional sobre a decisão.
Ao lado da denúncia empreendida por autores críticos, outras
perspectivas afirmam a existência da racionalidade do trabalho jurídico,
tal de modo externo (sob referência a padrão extraído de ciências afins),
qual de modo interno (sob referência à própria ciência do direito), como
a seguir expostos.
(B) Do método compartilhado com outras ciências (sistema externo)
De acordo com a segunda perspectiva, o trabalho de aplicação do
direito aproveita conteúdo extraído de outras disciplinas científicas (tal
matemática, lógica, física, biologia, linguística, sociologia ou até da
economia) ou ser referida à cultura, religião ou contexto ético. Sob esta
via, a ciência do direito mantém seu “status” como disciplina científica,
mas sem autonomia metodológica ou racionalidade própria, é organizada
de modo externo.
Vale desenvolver, segundo essa concepção, a ciência do direito
pode aproveitar não só os métodos de ciências sociais e humanas, mas
também dos desenvolvimentos da lógica e das ciências naturais de modo
lógico indutivo.
Desta sorte, se observa a adaptação dos métodos das outras
ciências às necessidades dos juristas, advogados e juízes (dos operadores
do direito) por meio das perspectivas da filosofia analítica (G. H. von
Wright, O. Becker, J. Kalinowski, Alf Ross, J. Wolenski, C. Alchourron
e E. Bulygin), do realismo jurídico (Holmes, Llewillyn, Frank e Moore),
da escola do direito livre (Geny), da análise psicológica do direito, da
sociologia jurídica (Pound), da análise sistêmica do direito (Niklas
Luhmann e Teubner), da análise econômica do direito (Richard Posner),
da teoria da argumentação jurídica (a tópica de Theodor Viehweg, a
retórica de Charles Perelman, Stephen Toulmin, Robert Alexy e Ronald
Dworkin) e o tridimensionalismo de Miguel Reale.
Jorge Luis Rodriguez explica que o juiz justifica internamente
sua decisão quando constrói argumento correto a partir das normas
aplicáveis do sistema jurídico relacionada aos fatos provados do caso.
Todavia, verifica que, muitas vezes, o conjunto normativo não oferece
uma resposta unívoca e clara para todos os casos, ou ainda se pode
verificar dificuldades para o estabelecimento do significado da premissa
fática. Frente aos “casos difíceis” os juízes deveriam justificar
externamente as premissas que empregaram como fundamento ou como
motivo de sua decisão6.
Enfim, sob a segunda via, o direito mantém sua autonomia
metodológica, mas aproveita conteúdo oriundo de outros sistemas. Ou
seja, se afirma a autonomia científica do direito com respeito aos
métodos, não quanto ao conteúdo. Diferente da perspectiva crítica (pós-
moderna) que não visualiza coerência nos sucessivos julgamentos
desenvolvidos pelos órgãos judiciários, os teóricos da racionalidade do
trabalho jurídico, sob a via externa, associam o trabalho jurídico à
orientação para o atingimento do interesse público apoiado nos dados
extraídos da economia, da psicologia, da política etc. Daí que,
estabelecem que o direito é ciência que compartilha seus postulados com
outras ciências, competindo às normas jurídicas conferir eficácia ou
garantir a tais interesses.
Na sequência, a terceira perspectiva (interna) desenvolve a
autonomia científica do direito, tal quanto ao método, qual quanto ao
conteúdo da norma jurídica.
(C) Da autonomia metodológica do direito (sistema interno)
6 RODRIGUEZ, Jorge Luis. Teoría Analítica del Derecho. Madrid: Marcial Pons, 2021. p. 701.
A terceira das perspectivas aqui consideradas, assume que o
trabalho de aplicação do direito, ao menos em certa medida, possui
autonomia de seus métodos e desenvolve por seus próprios elementos,
critério interno que a constitui como área do conhecimento autônoma.
Conforme este critério, a diferença entre justificação interna e
externa radicaria no conceito de justificação e no tipo de argumentação
(raciocínio) utilizado. Sob esses contornos, os teóricos da pureza
metodológica do direito afirmam a autonomia científica e a racionalidade
do direito de modo lógico-dedutivo, ou seja, consideram que o direito
possui em suas próprias formas o conteúdo que identifica sua origem e
existência e, nessa linha, se tem a declaração de uma “regra de
reconhecimento”.
O momento áureo da defesa da autonomia científica do direito se
deu com o “positivismo jurídico” de Hans Kelsen e de Herbert Hart. Mas,
atualmente, se questiona se o positivismo jurídico conseguiu demonstrar
que a ciência do direito é um caso especial de ciência social que possui
autonomia científica frente às demais7.
A despeito da potente defesa de Hans Kelsen, a “pureza
metodológica” própria da autonomia científica quase sempre resvala para
alguma autorização para o uso de métodos auxiliares oriundos de outras
ciências, tal como lógica, economia ou política. Ou seja, com frequência
a análise positivista rompe a barreira do direito que “é” (“Sein”) com
argumentos oriundos da esfera do que “deve ser” (“Sollen”).
(D) Crítica às formulações apresentadas
A linha divisória entre o racionalismo e o irracionalismo não é
tão clara como se pode supor à primeira vista. Autonomia não significa
isolamento metodológico. Os juristas não desconhecem a existência de
distintos métodos, ou ignoram suas técnicas. A controvérsia parece
consistir na pergunta quanto a possibilidade de se afirmar se o direito é
7 Pode-se incluir nessa perspectiva os autores que sustentam a existência do direito natural, como
também autores filiados ao positivismo jurídico. Vale esclarecer, para o jusnaturalismo dos romanos
a norma reflete a justiça que é objetivamente identificada pelo aplicador e para o positivismo
jurídico, a norma reflete um conceito reconhecido objetivamente a partir da “norma fundamental”.
ciência e sob qual método se encontra estruturado e, a partir destas
suposições, esclarecer: qual o espaço para controle racional do produto
do trabalho judiciário?
Para se responder este questionamento, se pode resgatar os
estudos da pragmática linguísticas desenvolvidos por Charles Sanders
Peirce. Vale observar que, os estudos do sentido da comunicação (a
semiótica) definiram que a análise da linguagem inicia de modo objetivo
sintático com a descrição do signoe passa para a compreensão semiótica
(da semântica subjetiva), ou seja, como uma teoria do uso desses signos,
segundo a qual a relação triádica do signo com o objeto designado e com
o intérprete constitui o ponto de partida. Essa relação já existe para
̈índices ̈ e ̈ícones ̈, mas apenas ̈símbolos ̈ ou sinais proposicionais têm
sentido autônomo ou completo. Uma proposição após pronunciada de
forma assertiva representa um fato para um intérprete, na medida em que
diz algo sobre um referente ̈indicado ̈ por meio da atribuição de um
predicado ̈icônico ̈8.
No mesmo sentido, dois importantes teóricos da linguagem, John
Langshaw Austin, em “How to do Things with Words” e John Searle em
“Speech Acts”, definiram que alguns verbos não apenas descrevem a
realidade (ato locucionário), mas também, ao mesmo tempo, realizariam
uma ação (ato ilocucionário) 9.
Por exemplo, quando alguém levanta o braço numa assembleia
de professores, isso pode indicar o desejo de iniciar uma greve por
reajuste salarial, assim, a comunicação expressa pelo ato de levantar o
braço não vem para informar, mas para praticar uma ação: a ação de
votar. Os atos de linguagem que revelam a realização de uma ação, são
chamados por Austin de performativos. São performativos porque além
8 HABERMAS, Jürgen. Da semântica formal à pragmática transcendental. ethic@, Florianópolis, v.
19, n. 3, p. 487-517. Dez. 2020, p. 499.
9 Para Austin os verbos: desculpar-se, criticar, censurar, aprovar, dar boas vindas, lamentar, culpar,
dar aprovação a, receber com prazer, arrepender-se, estar revoltado com, simpatizar com, declarar,
prometer, etc. (AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer: Palavras e ação. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1990, p. 77) Searle traz os seguintes verbos: pedir, declarar, perguntar, agradecer,
aconselhar, avisar, cumprimentar e congratular. (SEARLE, John R. Os actos de fala. Um ensaio de
filosofia da linguagem. Coimbra: Almedina, 1984, p. 88-90).
de comunicar algo (conteúdo locucionário), esses também realizam uma
ação diferente da mera comunicação (conteúdo ilocucionário)10.
O controle racional a respeito do acerto (ou desacerto) da
mensagem proferida é possível quando se associa a intenção do falante
ao contexto de proferimento. Ainda com a situação de alguém dizer
“sim”, se tal ocorre em cerimônia de casamento, isto pode significar a
alteração do estado jurídico da pessoa, em outro contexto, o mesmo
“sim”, pode significar uma demonstração de disponibilidade, como o
“pois não” dito pelo prestador de serviço.
É possível considerar que o sentido emprestado ao sim (ou ao
não) nos exemplos citados, não se trata de uma questão intersubjetiva,
mas de algo determinado pelo quadro normativo (de modo objetivo) ou
mesmo da percepção de um sentido próprio da fala (pelo sujeito, de modo
subjetivo). Mas não se pode ignorar que a linguagem (e suas mensagens)
possui sentido previamente estabelecido (princípio) que confere
significado aos objetos e as ações. Por conta disso, é possível falar da
compreensão do sistema jurídico (controle racional do resultado da
jurisdição) com recurso à “princípios” ou um elemento exterior à regra,
tal o conhecimento linguístico ou econômico por exemplo.
Neste momento, o mais significativo não é a identificação do
referencial, mas evidenciar que da afirmação da interpretação decorre
que os momentos da descoberta do sentido da norma refletem fases de
amplo processo cognitivo. Um processo construtivo e relacional que deve
ser passível de controle.
Por definição a argumentação é um jogo por meio do qual a
irracionalidade está proscrita. A racionalidade (a possibilidade do
controle social quanto a aplicação do direito) constitui um dos elementos
essenciais do Estado Democrático de Direito: o elemento racional, se
soma ao elemento coativo e ao institucional.
Para ilustrar, evoca-se o símbolo da justiça:
10 GALUPPO, Marcelo. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do
pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 111; HABERMAS, Jürgen.
Pensamento Pós-Metafísico. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1990, p. 111.
A mulher vendada trajando toga representa o aspecto
institucional do direito, por meio do qual, a atividade judiciária é
desenvolvida com certos atributos sociais. O aspecto coativo é
representado pela espada que a mulher empunha em sua mão direita. E o
aspecto racional é representado pela balança enquanto medida para a
atribuição criteriosa das obrigações sociais.
Enquanto os defensores da “irracionalidade” do direito negam o
caráter científico do direito e valorizam a questão da sua eficácia, o
resultado social de sua atuação, os apoiadores da racionalidade do direito
se dividem em pelo menos duas orientações:
- Segurança jurídica (sistema interno): objetiva estabilizar as
relações sociais de modo obrigatório, priorizando a
previsibilidade das decisões e condutas, seja por meio da leitura
literal das leis, seja por aplicação automática da jurisprudência
e manifesta o aspecto sintático do trabalho jurídico;
- Justiça (sistema externo): legitimação do poder social
exercido pelo Estado, priorizando a felicidade ou a obtenção de
algum ganho social, tal de modo político, qual de modo
econômico. O argumento da justiça quando definido sob
termos da validação “a priori” manifesta o caráter semântico do
direito. Enquanto, se houver a validação a partir do resultado
(“a posteriori”), o argumento da justiça favorece à perspectiva
pragmática.
Na sequência se estudará as perspectivas científico/racionais da
aplicação do direito: a sintática, a semântica e a pragmática.
3.1 O uso da norma jurídica: a sintática, a semântica e a pragmática
Como definido no início do texto, o ponto de partida para a
compreensão da existência, ou da atuação do direito contemporâneo
regulando a vida social, da relação jurídica, consiste na distinção entre
“norma” e “enunciado normativo”. Assim, quando da reflexão a
respeito da formação da decisão jurídica se pergunta: Qual (ou quais)
fundamentos podem ser utilizados pelo Poder Judiciário para
decidir um caso jurídico?
É certo que decisões jurídicas aplicam normas. O destaque do
direito frente a moral resultou que a norma jurídica fosse desligada da
explicação religiosa ou tradicional e fosse situada como expressão da
vontade político-social. Enquanto na Antiguidade não se conseguia
visualizar diferença entre a norma moral e a norma jurídica, posto que a
primeira era compreendida como fundamento da segunda, sob o “estado de
direito”, o ordenamento jurídico volta-se a regulação da conduta, de modo
geral e abstrato representando a vontade político-social apoiada em
consequências para garantir a sua observância, sob termos da igualdade
de todos.
Daí porque a pergunta presente no início desta seção tem sido
respondida pela aplicação das normas que expressam a vontade social,
ou simplesmente pelas “normas jurídicas”, mesmo entre os partidários da
autonomia científica do direito, há aqueles que concordam com o uso
eventual de algum método externo adaptado, sempre que esse uso possa
ser associado a algum argumento legal (por exemplo, quando autorizado
pela Constituição).
Recorde-se, no que respeita à discussão sobre a autonomia
científica do direito, a afirmação da “racionalidade interna” (da
autonomia científica) não é somente resolvido de modo técnico, mas se
abre para argumentos de justiça ou até da política. Assim, o estudo do
direito, enquanto sistema interno, confere destaque ao tema do conceito
da norma jurídica e sua utilização, pela reflexão quanto aos
procedimentos (de origem e de aplicação, enquanto o sistema orientado
de modo externo abre a reflexão para a análise da sua “correção” ou
“justiça”.
Os estudos sobre o conceito de norma revelam que essa pode ser
definida através de, pelo menos, dois caminhos: pela identificação ou
descoberta do objeto tal como se apresenta (estudo do “ser”,ou
ontológico); ou pela definição das condições de possibilidade que
autorizam ou permitem afirmar que o objeto é algo (estudo do “dever
ser”, ou epistemológico). Tal distinção é percebida, por exemplo, sob a
diferenciação entre leis da ciência as quais identificam, descrevem, um
“ser” ou acontecimento, tal a “lei da gravidade”, e normas jurídicas, as
quais determinam o que “deve ser”, ou as condições de possibilidade para
um acontecimento, qual o “código penal”.
Mas, importa recordar que, inicialmente, as normas jurídicas
também eram definidas de modo ontológico, isso ao tempo em que a
afirmação da proibição do homicídio se confundia com o reconhecimento
da “maldade” ou desvalor histórico da conduta. Sob o contexto da
“fundamentação” ontológica, poder-se-ia relacionar, por exemplo,
filiação em termos jurídicos ao conceito biológico, de modo que, só
poderia ser reconhecido como filho quem possuísse vínculo genético. Em
outros termos, no sentido de “justificação” social, filiação pode ser
definida de modo cultural, segundo o qual: “pai é quem cria”...
Situados os contornos do direito contemporâneo, os estudos da
teoria do direito revelam a existência de distintos caminhos para a análise
da aplicação das normas jurídicas: o estudo da interpretação segundo a
perspectiva descritiva possibilita a afirmação da verdade ou falsidade da
interpretação, enquanto, a perspectiva prescritiva expressa sua adequação
ou inadequação. Nessa linha, somente a afirmação descritiva é passível
de verdade ou falsidade, porquanto a afirmação prescritiva não é
verdadeira ou falsa, mas expressa valor, preferência ou desejo.
Então, com a instauração do “estado de direito”, as normas
jurídicas se desligaram da fundamentação ontológica (de matiz natural)
e passaram a ser entendidas de modo epistemológico (social). Ou seja, o
fenômeno da institucionalização do Estado sob as formas da
“Constituição”, revela a compreensão do direito a partir da vontade
política em substituição da “natureza”.
Nesse sentido, “estado de direito” (em sentido objetivo) consiste
na figura político-jurídica perante a qual os cidadãos conhecem de
antemão as estruturas formais que vinculam seus esforços na obtenção
dos seus próprios interesses.
À primeira vista o direito somente seria composto dos ditos
elementos formais aptos a garantir seus interesses, enquanto valores
ficariam associados às escolhas pessoais, as quais não poderiam ser
acessadas pela esfera pública e não seria lícito ao conjunto de cidadãos
influir no que respeita à intimidade pessoal.
Em síntese, norma, seja qual for sua espécie, sempre contém
juízo de certo e errado. Tal juízo pode ser originado de modo ontológico
(a exemplo do direito quando repete a norma moral) ou epistemológico
(a exemplo do ordenamento estabelecido por meio de procedimento
socialmente reconhecido que lhe confere origem), ou seja, o estudo do
conceito da norma jurídica pode ser desenvolvido através das formas ou
dos conteúdos que definem sua origem (fonte de produção – ou origem
material) ou que identificam sua existência (fonte de aplicação – ou
origem formal) e tais explicações são o objeto da teoria das fontes das
normas jurídicas.
Todavia, como evidenciado por estudos, como os desenvolvidos
por John Rawls e divulgados no livro “Uma teoria da justiça”, tal
percepção foi alargada para contemplar a perspectiva pragmática. A
partir de então, a Universidade por distintos caminhos passou a
considerar que a afirmação do “estado democrático de direito” contempla
a existência de certos princípios que necessariamente devem ser
observados na esfera pública.
De modo que, ao lado das concepções ontológica e
epistemológica, a semiótica apareceu como caminho para se estudar a
aplicação das normas jurídicas. A pragmática favorece que se enfrente a
questão de que a aplicação do direito, apresenta suas peculiaridades.
Como já declarado por Aristóteles na “Ética a Nicômaco”, o direito existe
como parte da “razão prática”, incidindo diretamente sobre os fins da
vida das pessoas e com isso afetando-a.
A semiótica linguística define três perspectivas para o estudo da
comunicação em geral: sintática, semântica e pragmática.
(A) Sob termos SINTÁTICOS, a norma jurídica declarada, o
texto legal por exemplo, ganha aplicação conforme a compreensão
expressa pelo juízo de interpretação. Então, a relação jurídica consiste
em situação da vida social regulada pelo direito em termos de obrigação
feita observar sob termos formais, inclusive sob o emprego de sanções.
Desta sorte, a compreensão de que o direito é produto humano
(em substituição da explicação anterior que o concebia como “cópia” da
moral divina ou natural), implica em reconhecer o direito como
linguagem formalizada e enquanto tal sua sintática é definida por três
elementos:
a) o vocabulário, ou o conjunto de símbolos que o compõe;
b) as regras de formação, conforme as quais os símbolos do
vocabulário teórico podem ser combinados em expressões bem
formadas (o método de legislação); e
c) as regras de transformação, que são o conjunto dos axiomas,
as regras e as leis lógicas que permitem a derivação de
expressões verdadeiras a partir de outras expressões
precedentemente aceitas como verdadeiras, porquanto já aceitas
como postulados ou definições, ou porque já foram declaradas
de modo análogo (os métodos de aplicação do direito, a
hermenêutica desenvolvida pela jurisdição).
Daí porque, estudar a sintaxe do ordenamento é identificar em
termos formais-objetivos, o vocabulário, as regras de formação e as de
transformação da linguagem em norma jurídica, sua validade em termos
de estrutura (ou forma):
(a) O vocabulário é o conjunto de símbolos da teoria. Tem o fim
de tornar possível o cálculo determinado por regras de transformação, os
signos são representados por símbolos. Vale ilustrar, a ideia de
“propriedade” é conhecida pela palavra “propriedade”, tal como é
estabelecida pelo texto legal ou reconhecida pela jurisprudência em
aplicação do texto legal.
(b) As regras de formação são as regras conforme as quais os
signos da teoria podem ser combinados para dar lugar a expressões
corretas (bem formadas). Nessa linha tem-se como uma “regra de
formação” a ideia de que a regra jurídica deve ser estabelecida em duas
partes: o tipo normativo (hipótese normativa) e a consequência que
garante seu cumprimento (sanção).
(c) As regras de transformação, ou regras lógicas, estabelecem o
conjunto das operações que podem ser realizadas sobre as expressões
formadas conforme a regra de formação. Em termos simples, as regras
jurídicas proíbem, permitem ou autorizam.
É de se indicar então que a teoria do direito pode estudar a sintaxe
da norma isolada e a sintaxe da norma em grupo. O estudo da norma
isolada se volta ao esclarecimento da sua estrutura, a qual comumente é
cindida em: preceito, “tipo” ou hipótese de aplicação; e sanção,
(comumente definida como “estrutura de regra”). Ao lado da figura da
regra, a sintática reconhece a estrutura de princípio enquanto modalidade
de norma que não enuncia sanção para seu descumprimento.
De outra sorte, o estudo da norma em grupo, por sua vez,
esclarece as relações entre as normas entre si consideradas. Instaura-se
assim a “dinâmica” jurídica, ou o estudo da norma em relação à outras
normas. Sob a linha da dinâmica jurídica, se identifica a existência de
normas que definem o modo de surgimento de outras normas e normas
que garantem (sancionam) a aplicação de outras normas. Então, regras e
princípios se diferenciam pelo escopo de sua existência, ou seja, regras
definem condutas sob o emprego de sanções, enquanto princípios
regulam a aplicação das regras.
Tome o exemplo da obrigação de se pagar impostos. Em termos
sintáticos, quando determinada regra enuncia a obrigação de pagar
impostos, simultaneamente prevê que o comportamento de deixar de
pagar determinado imposto deve ser sancionado com sanções punitivas
(multas, ...). Por essavia, se verifica a existência de duas normas a que
afirma a conduta esperada e a que estabelece punições para o
descumprimento.
Enfim, o estudo sintático esclarece que, nas sociedades
contemporâneas, o ordenamento jurídico se distingue dos outros
conjuntos normativos pelo modo através do qual obriga (a coerção que
exerce). Assim, a aplicação da sanção jurídica se dá por meio da coação
física, ou seja, pelo uso dos meios estatais de modo a constranger o
indivíduo a ajustar seu comportamento às determinações da norma
jurídica, independente da adesão íntima do indivíduo, o que por si só não
exclui a possibilidade de aplicação legítima do direito.
(B) Sob termos SEMÂNTICOS se reconhece que embora a
atuação conforme ao direito não exija a adesão interna (que sua
incidência é identificada com o desenvolvimento do comportamento
exterior), ainda assim, a realização do direito manifesta certa
compreensão (entendimento) do meio social . Tal modo de exigir a
aplicação da norma, ecoa coerção perante todos os cidadãos e define seu
peculiar modo de agir sob considerações de que todos são iguais
perante a lei.
A semântica evidencia a distinção entre “enunciado normativo”
(declarada) e “norma” concretamente aplicada. Identifica que a mesma
norma pode ser aplicada pela compreensão de diferentes enunciados
normativos. Assim, a norma segundo a qual alguém fica proibido de
matar outra pessoa também pode ser enunciada por: “Fica proibido
matar”, ou “Uma pessoa não pode eliminar a vida de outra pessoa”.
Quer se dizer, a partir da definição do comportamento esperado,
a submissão da vontade individual à regra do direito pode ser alcançada
pelo temor, ou emprego da força estatal, porém, a experiência
contemporânea informa que a formação do Estado de Direito se deu sob
promessas formais de garantias gerais e abstratas a serem conferidas a
todos e a cada um. Tal compreensão deixa extreme de dúvida que a
identificação concreta da conduta exigida é crucial para a correta atuação
desse mecanismo que reforça a autoridade do direito.
Vale desenvolver, inicialmente, se poderia supor que o propósito
de um julgamento seja descobrir se o réu cometeu o crime pelo qual está
sendo julgado. Mas isto está errado, há regras que proíbem o júri de ouvir
testemunhos obtidos de forma inadequada, mesmo que isso pudesse
ajudá-lo a determinar com exatidão a culpa do réu. O propósito de um
tribunal não é a verdade, mas a “justiça” própria ao ordenamento.
Quando se pergunta por que o homicídio é juridicamente
proibido, não se trata de saber se o ato de matar em si é bom ou mau, mas
de como a vontade política de uma determinada sociedade decidiu.
Para auxiliar a explicação, considere que um exemplo de
enunciado normativo é o que se lê no artigo 121 do Código Penal
brasileiro: “Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos”. Este
enunciado expressa a norma segundo a qual está proibido o homicídio,
sob pena de sanção. Uma norma é, pois, o significado do conteúdo de um
enunciado normativo.
É fácil identificar que a proibição do homicídio expressa norma
pois manifesta “regra de transformação” explicitadas de modo objetivo
pela sintática jurídica (as denominadas regras de transformação revelam
expressões tais como “proibido”, “não pode”). Mas as regras escritas, a
exemplo do citado artigo 121 do Código Penal, também podem ser
inferidas pelo contexto11. Tal destaca que o conceito de norma é o
conceito primário que definirá posteriormente enunciado normativo. Ou
seja, importa salientar que norma, em todas as modalidades de sua
enunciação, expressa obrigação (ou a definição de comportamento de
modo exterior e sujeito a consequência socialmente definida).
Enquanto a sintática valoriza o conhecimento da norma através
da identificação da sua estrutura, a perspectiva semântica confere
destaque a compreensão do conteúdo da norma sob referência do projeto
político socialmente estabelecido.
Desta sorte, no Brasil há a previsão de pena de morte para crimes
de guerra, mas um atirador de elite, no cumprimento de seu dever, não
será processado por homicídio quando acerta o alvo e mata um
criminoso. Tal não decorre de se acreditar que este comportamento de
matar alguém seja bom (ou mau), mas que a vontade política assim
11 Cumpre recordar que, as normas também podem ser expressas sem recorrer a enunciados, por
exemplo, através dos sinais luminosos de um semáforo ou placas de sinalização de trânsito.
escolheu, e, por isso, a despeito de que o texto defina a sanção para o ato
de matar, nem sempre esse comportamento é sancionado.
A explicação semântica tem por objetivo o entendimento do
objeto de modo referencial, ou seja, para além da explicação de caráter
descritivo, a qual volta-se para identificar o objeto, a explicação
semântica almeja compreender a utilidade ou função da coisa estudada.
Sob esses contornos, de um lado há o estudo que identifica o
direito que existe, ou apto a atuar concretamente, de outro lado, há o
estudo sobre qual o significado do direito, sua orientação ou finalidade.
Para exemplificar se pode recordar que a obrigação de pagar
impostos, além de ser afirmada em termos de obrigação determinada pela
sanção, também pode ser reconhecida como a devida contraprestação
(pagamento) que decorre de um costume (tradição) de se prestar tributo
as autoridades. A própria Bíblia já identificava: “Dê a César, o que é de
César”.
Enfim, à vista de que normas existem para regular as condutas,
quando alguém é declarado “culpado”, ele não foi reconhecido como
mau sujeito, mas como alguém que foi condenado por não agir conforme
certas normas. Inclusive, pode acontecer, e frequentemente acontece, que
alguns infratores saiam livres e inocentes sejam condenados.
Em termos simples, o estudo semântico é desenvolvido pela
“ciência do direito” quando da investigação sobre a correta aplicação das
normas. Por conseguinte, a semântica expressa o conhecimento do
conteúdo conforme já consolidado pelos aplicadores do direito e refletido
pelos doutores. Daí se dizer que é uma verdade contextual, pois, é o
entendimento do sentido da norma tal como percebido por aqueles que
com essa lidam através dos tempos.
(C) O terceiro caminho para que se investigue a “verdade” da
norma, a par da sintática e da semântica, é a “PRAGMÁTICA”. Pela via
da pragmática, o estudo da norma vai além da compreensão de seu
conteúdo (não se limita a justificar em termos tradicionais ou costumeiros
a interpretação empregada para o enunciado normativo). Esta dirige-se
ao “bom entendimento” da norma por referência a sua utilidade, ou aos
motivos que ensejaram seu estabelecimento ou instituição.
Então, voltando para os exemplos do pagamento de impostos, a
via pragmática reflete sua exigência com a existência de serviços
públicos. Ou, ainda a excludente de ilicitude para o atirador de elite que
mata em serviço, sob considerações de que isso ajuda a diminuir a
ocorrência de crimes.
Desta sorte, não basta ao jurista — nesse caso: Estado-juiz,
representado pelo magistrado — explicar sua decisão, sendo também
imperativo que ele a justifique de modo inteligível (que deixe explicito
os fins que pretende alcançar)12 e que essa decisão seja apreensível pelo
conjunto social. Em outras palavras, o entendimento social das decisões
jurídicas é exigência para que essa se revista de legitimidade, ou que se
consiga identificar sua racionalidade e possibilitar o controle social13.
Nas palavras de Neil MacCormick:
“Dizer que o juiz tomou essa decisão devido às suas fortes
crenças religiosas significa enunciar uma razão explicativa; dizer
que a decisão do juiz se baseou numa determinada interpretação
do artigo 15 da Constituição significa enunciar uma razão
justificadora. De modo geral os órgãos jurisdicionais ou
administrativos não precisam explicar suas decisões; o que
devem fazer é justificá-las” 14
Nesse passo, a pragmática jurídica favorece o estudo dos
métodos da interpretação do direitoaproveita os desenvolvimentos do
estudo da teoria da linguagem, de sorte a que, na sequência, são
apresentados alguns métodos utilizados pela hermenêutica jurídica na
reflexão sobre a aplicação do direito sob termos da “TEORIA DA
ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA”.
12 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica, Perelman, Toulmin,
MacCormick, Alexy e outros. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. 2ª ed. São Paulo: Landy,
2002, p. 22.
13 vd. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2ª ed. v. 1. – Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012. p. 248.
14; vd. MACCORMICK, Neil. Retórica e o estado de direito: uma teoria da argumentação jurídica.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 195-198.
4 TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: Entre formas da
lógica dedutiva, razões da lógica indutiva e princípios da lógica
abdutiva.
Os estudos anteriores já informaram que a discussão da razão
prática (a vivência do direito) é desenvolvida em pelo menos dois
grandes momentos: o da sua elaboração e o da aplicação. Sobre a criação
da norma, o estudo das fontes do direito esclarece que, no seu aspecto
formal, uma norma pode ser identificada em algumas estruturas
socialmente reconhecidas: lei, costume, jurisprudência e contrato. As
quais são originadas do processo legislativo, do convívio social, da
jurisdição e do poder negocial. Então, o estudo sobre a aplicação das
normas jurídicas incorporou as abordagens da semiótica da linguagem.
O estudo da cientificidade do direito organizou as perspectivas
de aplicação do direito identificando: (a).- por um lado, aqueles que
afirmam ser o direito irracional e o desenvolvimento do trabalho jurídico
de modo intuitivo ou emocional. (b).- De outro lado, aqueles que
afirmam que o direito é instrumento para a obtenção de certos fins,
devendo o intérprete descobrir seu conteúdo a partir da sua subjetividade
com o uso dos métodos da política, sociologia etc.; (c).- Outros supõem
ser o direito um dado da técnica jurídica identificável de modo objetivo
em decisões judiciais passadas.
A teoria geral do direito define que a determinação do significado
da norma é resultado da “interpretação” e o ato de interpretar é objeto de
estudo da HERMENÊUTICA, a “ciência do direito”. Nesse passo, a
hermenêutica alcança a reflexão sobre a metodologia jurídica,
enquanto parte do estudo do direito que trata, de um lado dos
modelos e técnicas de interpretação e de aplicação das fontes formais
concretamente identificadas e, de outro, das fontes materiais do
direito, que expressam a orientação a ser seguida, os fins a serem
alcançados no momento da aplicação do direito.
A hermenêutica pode ser desenvolvida sob método com
orientação descritiva (a partir de casos já decididos) ou com orientação
prescritiva – normativa (visando identificar como se deveria decidir).
Tal percepção estabelece pelo menos três perspectivas para a ciência do
direito: (a).- de FUNDAMENTAÇÃO: a compreensão descritiva do
direito que existe e que é aplicado em determinado tempo e lugar; (b).-
de JUSTIFICAÇÃO: a discussão sobre a justificação do entendimento
adotado, quanto ao significado do seu estabelecimento; (c).- de
APLICAÇÃO: o bom entendimento da interpretação é obtido pela
identificação de princípios normativos que definem os propósitos da
regra afirmada.
Na sequência, se apresenta que a partir das abordagens descritiva
e prescritiva distintos métodos recebem destaque.
Sob a primeira perspectiva, descritiva, pretende explicar como
de fato ocorre o processo interpretativo-compreensivo, ou seja, de que
forma o indivíduo realiza concretamente a interpretação e compreensão.
Seria essa, a própria relação sujeito-objeto, espraiando-se, assim, ao
campo da epistemologia (do estudo de sua cientificidade sob moldes
objetivos)15.
Destarte, a metodologia, em uma explicação tradicional com
caráter descritivo, primeiro se ocupa de descrever como ocorre a
interpretação e compreensão do texto (“Sein”), para depois recomendar
como esse processo realmente deveria ter se desdobrado (“Sollen”). Pode
se falar que a interpretação consiste em determinar a significação da lei
e desenvolver seu conteúdo em todas as direções, ou, em sentido amplo,
a interpretação pode compreender também a analogia, isto é, a
integração do direito por meio da incorporação de normas de casos
similares para casos não contemplados16.
De outra sorte, com a abordagem prescritiva, a
METODOLOGIA possui como objetivo precípuo, assentar critérios
(regras e métodos) que permitam reduzir os vícios interpretativo-
compreensivos, evidenciando, dessa forma, seu aspecto técnico-
subjetivo, que estabelece o entendimento da norma a ser aplicada.
Consoante ao exposto, seja quando do desenvolvimento do estudo
descritivo, tal com a perspectiva prescritiva-normativa, Stelmach e
Brozek sugerem como conceito de método: “o guia que determina
15 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. 11 ed. rev., atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2014. p. 261-262.
16 FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis. Trad. Manuel A. Domingues de
Andrade. 3 ed. Coimbra: Armênio Amado, 1978, p. 129.
quais condutas devem ser praticadas com o objetivo de alcançar
determinado fim”17.
A existência de diversas teorias sobre a interpretação indica que há
uma pluralidade de meios aptos a guiar o processo de interpretação do
direito. À luz de que interpretação se dirige ao esclarecimento do
conteúdo da norma, pode-se passar ao esclarecimento dos meios ou
técnicas que a definem. Luiz Fernando Coelho denomina como
procedimentos interpretativos os meios técnicos de que se serve o jurista
para realizar a interpretação. Sérgio Alves Gomes esclarece que a
expressão “meios”, refere-se a métodos que são caminhos, instrumentos,
utilizados na realização da interpretação jurídica18.
Assim, a metodologia jurídica é a parte do estudo da
hermenêutica que tem por objeto o estudo dos processos (da estruturação
dos argumentos que expressam fins), que devem ser utilizados para que
a interpretação seja realizada de modo adequado. Consoante a tal, a
metodologia do direito estuda os métodos do trabalho jurídico: da criação
(processo legislativo) e da aplicação (processo jurisdicional) e os
organiza em “modelos” ou “escolas de pensamento”.
Enfim, a identificação do método é útil para explicar o direito
conforme distintas abordagens semiológicas: (3.1) sintático-
DESCRITIVA: considera que a interpretação da lei reflete um fato
social, ou seja, uma instituição criada pelo humano e que tem poder sobre
a sua vida (pelo emprego de sanção) sob termos formais; ou, (3.2)
semântico-PRESCRITIVA: considera que, sob a regência do direito, é
possível a ação por dever. Age-se por dever quando, por exemplo, as
pessoas concordam com o conteúdo da lei (sob esta hipótese, diz-se que
a norma é legítima por reproduzir o modo de vida compartilhado)19; (3.3)
17 STELMACH, Jerzy; BROZEK, Bartosz. Methods of legal reasoning. Springer: The Netherlands,
2006, p. 10.
18 COELHO, Luiz Fernando. Lógica jurídica e interpretação das leis. Forense: Rio de Janeiro, 1981;
GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica jurídica e constituição no Estado de direito democrático.
Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 31.
19 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica, Perelman, Toulmin,
MacCormick, Alexy e outros. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. 2ª ed. São Paulo: Landy,
2002. p. 24.
pragmático-ARGUMENTATIVA: considera que a aplicação do direito
deve se dar para confirmar os princípios que justificaram sua instauração.
Assim, o estudo da aplicação do direito deve ser hábil para
identificar qual abordagem informou o juízo de interpretação da norma
foi praticado e simultaneamente ser hábil para avaliar sua correção. Quer
se dizer, a argumentação jurídica em moldes racionais pode ser
desenvolvida com