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MUÑOZ, Yolanda Gloria Gamboa. Ainda Ideologia?. Revista Integração, São Paulo, Ano X, n. 39, p.357-365, Out/Nov/Dez, 2004.

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. ⁄ . ⁄ . ●  ●  , º  ● -  357
Ainda a ideologia?
   *
Resumo ● Este artigo constitui uma reflexão sobre a problemática da ideologia. Trata-se de mapear algumas
críticas atuais à constante utilização deste conceito, principalmente a do historiador-filósofo Paul Veyne.
Partindo do problema da “origem” da ideologia e de uma determinada pontualidade textual do 18
Brumário de Marx, percorremos as diversas críticas atuais, que se mostram diferenciais, perspectivísticas
e criadoras de matizes, mas não deixam de aludir ao “fato” assinalado por Marx mediante esta expressão.
Palavras-chave ● ideologia, usos, perspectivas.
Title ● Idealogy Again?
Abstract ●This article presents some considerations on the problem of ideology. In it we try to detect a
few crit icisms on the constant use of this concept, particularly the one by Paul Veyne, a historian and
philosopher. Leaving from the problem of the ‘origin’ of ideology and a certain textual punctuality of
Marx’s 18th Brumaire, we go through several present criticisms with different perspectives and undertones,
although referring to the ‘fact’ proposed by Marx.
Keywords ● ideologia, usos, perspectivas.
“Si las palabras son máscaras, ¿que hay detrás
de ellas?” (Octavio Paz)
Data de recebimento: 22/09/2003.
Data de aceitação: 31/10/2003.
* Doutora em Ética e Filosofia pela USP; professora da graduação e
do mestrado em Filosofia – USJT.
E-mail: prof.gloriagm@usjt.b r.

Como uma maneira de refletir em até que ponto,
hoje em dia, é pertinente perguntar-se pela ideolo-
gia, optarei por esboçar alguns direcionamentos
ou orientações que permanecem implícitos no
uso desse termo. Para tal propósito limitar-me-ei
a recolher determinadas indicações – que poste-
riormente se cristalizariam na chamada teoria
da ideologia – tendo como ponto de referência,
em um primeiro momento, o escrito-prático de
Marx sobre O 18 Brumário. A seguir, tentarei esta-
belecer uma relação entre essas indicações e a
ampliação atual da teoria da ideologia nos escritos
de Paul Veyne.
Sobre a co nstantemente citada origem do
conceito de ideologia minha referência pontual
será Georges Canguilhem, pois ele não se limita,
como se faz de hábito, aos nomes de Cabanis e
Destutt de Tracy. Diferencialmente, Canguilhem
mostra com cuidado como o projeto de uma
“ciência da gênese das idéias” consistia em tratar
as idéias como fenômenos naturais, exprimindo a
relação (“relation”) do homem (organismo vivo e
sensível) com seu meio natural de vida. Os ideó-
logos eram assim liberais, antiteólogos e antime-
tafísicos. É posteriormente1 que a ideologia passará
a ser denunciada como metafísica e pensamento
vazio (creuse). Marx conservará o conceito de uma
inversão (renversement) da relação (rapport) do
conhecimento à coisa. Dessa maneira, assinala
Canguilhem, houve um deslocamento do ponto
de aplicação de um estudo que designava “uma
ciência natural da aquisição [...] de idéias calcadas
sobre o real mesmo” até o que pode ser pensado
como seu contrário: “todo sistema de idéias pro-
duzido como efeito de uma situação condenada a
desconhecer sua relação real ao real” (CANGUILHEM,
1981, pp. 35 e 36).
Curiosamente, nos estudos sobre a ideologia,
encontramo-nos sempre com o problema da in-
versão, mesmo que em diversos níveis. Na Ideolo-
gia alemã Marx utilizará a metáfora da “câmera
358   ● Ainda a ideologia?
obscura”, para mostrar que em toda ideologia
os homens e suas relações surgem invertidos, seu
caminho (que teríamos que entender como não-
ideológico) será partir da atividade real dos homens,
e não daquilo que eles dizem, imaginam e pensam
(MARX, s.d./b, pp. 25 e 26). Cabe ressaltar que a
inversão deve-se ao fato de que certa produção dos
homens constitui, por si mesma, uma inversão.
É dessa maneira que Marx refere-se à religião; ela
não seria um exemplo de ideologia, mas a ideolo-
gia por excelência2.
No entanto, no 18 Brumário, a ideologia ainda
não será especificada claramente como uma inver-
são, mesmo que o referido escrito seja pertinente-
mente lido como desmontagem de aparências,
ajuste de contas com a transcendência e liquidação
da religiosidade (RIBEIRO , 1993, p. 123). Aliás, a
atenção que hoje se dá a um texto como esse3, não
especificamente conceitual, mas que se constitui
como uma interpretação sobre práticas, nos faz
pensar que os artigos que formam O 18 Brumário
são pertinentes à forma em que se desenha nossa
própria atualidade. Em outras palavras, é possível
vislumbrar, nessas constantes referências a O 18
Brumário, um sinal de transformação nas relações
atuais com a escrita, nas quais o peso dos textos
que trazem um compromisso com seu presente
seria maior. Nessa perspectiva de análise, o valor
e pertinência de um escrito não se mediria somente
pela sua coerência conceitual, mas pelo cruzamento
de práticas e interpretações que o constituem e de
cuja análise ele se faz eco.
Inseridos nessa via de leitura podemos destacar
uma passagem do item III do 18 Brumário, em que
Marx analisa a separação entre legitimistas e
orleanistas não como uma questão de princípios,
mas como a resultante das condições materiais de
existência. Nesse ponto, Marx mostra claramente
uma quebra com as interpretações aparentes, que
tratavam da separação dessas facções como dis-
tintos matizes do monarquismo. Diferentemente,
Marx destacará, como um solo determinante, as
duas espécies de propriedade que determinam a
separação das facções. Sob os Bourbons governara
a grande propriedade territorial e sob os Orléans o
capital (como finança, indústria e comércio). Ambas
as facções carregariam seus séquitos: “padres e
lacaios”, os primeiros, e “advogados, professores
e retóricos”, os segundos. Dessa maneira − e por
meio da análise dessa situação concreta, que pos-
teriormente seria provada pelos fatos, segundo o
dizer de Marx −, a união impossível das facções
seria a divergência de interesses, e não o que eles
pensavam que era a causa, ou seja, a lealdade às
duas casas reais.
É a partir da referida análise material que Marx
generalizará o que posteriormente diversos teóri-
cos utilizarão como una teoria da ideologia, di-
zendo textualmente: “Sobre las diversas formas de
propiedad y sobre las condiciones sociales de
existencia se levanta toda uma superestructura
de sentimientos, ilusiones, modos de pensar y
concepciones de vida diversos y plasmados de
un modo peculiar. La clase entera los crea y los
forma derivándolos de sus bases materiales y de
las relaciones sociales correspondientes” (s.d./a)4.
Distinguir torna-se assim uma importante ati-
vidade para realizar o desvendamento. Distinguir-
se-á na vida privada o que um homem pensa e diz
de si mesmo e o que ele realmente é e faz. O ho-
mem isolado, nos diz Marx, pelo peso da educação
e da tradição, às vezes acredita que os motivos e o
ponto de partida de sua conduta são “próprios”, mas
é a classe que cria aquelas ilusões e modos de pen-
sar; ele simplesmente não tem consciência disso.
No entanto, essa referida distinção não tem o peso
da diferenciação principal, que será a separação a
ser feita dentro das lutas históricas. Nelas, as frases
e o conceito que fazem de si os partidos deverão
ser distinguidos de sua formação e interesses reais.
Temos, portanto, um contínuo processo de distin-
ção, desmascaramento e manifestação do que está
aí. Para realizá-lo será necessária uma escavação
constante que traga à luz os interesses subjacentes
que naturalmente se mascaram.
No Prólogo à 2ª edição Marx rejeita uma aná-
lise do 18 Brumário como um ato de força de um
indivíduo,que pudesse levar a acreditar no “poder
pessoal de iniciativa”. Ao mesmo tempo, ele afasta-
se de uma análise do “acontecimento isolado”,
pois não se trata de “um raio caído de um céu
azul”. É curioso como a sua análise diferencial,
que ao mesmo tempo se pretende não-ideológica,
o faz manifestar os “conceitos gerais” com os quais
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opera sua interpretação. Interpretação esta que vai
inserindo cuidadosamente os diversos aconteci-
mentos históricos na totalidade de um processo
mais geral. E será precisamente para dar conta deste
processo que surgirão determinadas categorias
de análise não-tradicionais, como, por exemplo:
“luta de classes”, “interesses materiais”, “fisionomia
do período”, “modos de produção” e “modos de
vida”. São elas que, por se encontrarem inseridas
numa análise dialét ica, demandarão determina-
dos conceitos opostos que assim outorgarão vida à
própria interpretação proposta. Por isso não é
possível deixar de mencionar a peculiaridade desta
interpretação que se institui a si mesma como nova,
revolucionária e livre do passado que esmaga5. E será
na constituição de um certo território dialético que
surgirão os conceitos opostos, precisamente no
momento em que se explicitam as aparências que
eles encobrem: “princípios”, “ilusões”, “modos de
pensar”, “sentimentos”, “imaginação”, “enganos”,
“fantasias”, “milagres”, “venerações” e “superstições”.
Isso para recolher somente os termos com que,
efetivamente, movimenta-se a análise do 18 Brumá-
rio. Na comodidade e perigo de usar uma única
palavra, todos estes últimos conceitos podem ser
denominados A ideologia.

Já na tentativa de apontar algumas das questões
que hoje em dia circulam ao redor da ideologia,
cabe mencionar a pertinência das problemáticas
recolhidas por Terry Eagleton (ZIZEK, 1996, pp. 265-
78). Para este autor, que pode ser caracterizado
como um defensor do uso do termo ideologia, o
descrédito atual desta palavra deve-se à sua relação
com o conceito de representação. Assim, na medida
em que os modelos de representação têm sido
questionados, também o é a noção de ideologia6.
Por outra parte, e principalmente, tem sido esta-
belecida uma relação entre ideologia e a impos-
sibilidade de acesso a uma verdade absoluta.
Salientemos, portanto, que é a partir do afunda-
mento dessa verdade absoluta que se pensa também
na queda da noção de ideologia. Outros dos fatores
que contribuiriam para o descrédito atual seriam
a chamada “falsa consciência esclarecida” (que se
supõe simplista na “pós-modernidade”) e o fato
de que o capitalismo tardio tenha tido sua própria
repro dução, independentemente do passo
reavaliador pela consciência. Mas, ainda segundo
T. Eagleton, nenhuma dessas ligações seria sufi-
ciente para jogar no lixo a noção de ideologia...
No entanto, é no interior do que Eagleton
denomina “revisionismo” atual que seria possível,
pelo menos num primeiro momento, situar algu-
mas das alusões à problemática da ideologia
que encontramos nos escritos de Paul Veyne.
Entre elas cabe destacar a presença constante da
relação entre ideologia e verdade7. Considerando
essa relação, Veyne poderá rejeitar, por exemplo, a
concepção da ideologia como mentira interes-
seira, porque para mentir seria preciso conhecer
a verdade, que seria um fato primeiro. Mas a aber-
tura veyniana de uma espécie de leque de possibi-
lidades é perspectivística.
Assim, segundo uma dessas perspectivas, em
que é utilizado um certo cristal nietzschiano, a
ideologia poderia ser pensada como a indist inção
Bem-Verdade. De forma por demais esquemática
pode-se dizer que a não-diferenciação entre “Bem”
e “Verdade” assinala uma atitude primária, que diz
respeito ao uso que a humanidade faz do conheci-
mento. Instrumento precário, que não pode atingir
evidências, o conhecimento é feito para viver, e
não para conhecer. Por isso, é útil confundir
“Bem” e “Verdade”. A humanidade caracterizar-se-
ia pelo retardo em que começa essa separação. Um
dos mais “belos exemplos” dessa indistinção seria
justamente o marxismo... Para Veyne, Marx podia-
se permitir não ter moral, ou ironizar sobre a ética,
porque sua obra continha uma moral sem sabê-lo
(Veyne, 1977, p. 103) 8. Supondo, por meio deste
cristal nietzschiano, que a ideologia seja essa con-
fusão primeira, então, ela é, no dizer veyniano: “A
homenagem que os interesses mais diferentes (de
Platão a Marx) rendem à idéia de Bem e Verdade”.
Mas, conforme o pluralismo e o perspecti-
vismo, sempre ligados às análises de Paul Veyne, o
ângulo nietzschiano não será o único possível para
pensar a ideologia. Num texto que nos parece
vir a acentuar a invenção da trilogia Nietzsche,
Freud e Marx9 Veyne privilegiará uma possível
perspectiva freudiana da ideologia. Assim, no
360   ● Ainda a ideologia?
artigo titulado “L’idéologie selon Marx et selon
Nietzsche” − no que julgamos ser um lapsus propo-
sital e, ao mesmo tempo, “uma maneira de rir com”
(RIBEIRO, 1993) o leitor atento − Veyne não mencio-
nará o nome de Freud, mesmo que no interior
dessa análise ressalte esta perspectiva. Sim, porque,
segundo a interpretação veyniana, é Freud que, ao
apontar para o fenômeno da racionalização como
“conduta compulsiva”, teria modificado a trindade
clássica de verdade/erro/ideologia, constituindo a
variante verdade/erro/ilusão. A racionalização,
pensada como automistificação ingênua que se
orienta em torno de e ao próprio sujeito, mostrar-
se-ia, por exemplo, nas análises freudianas do
neurótico. Isso porque o neurótico racionalizaria
sua doença para melhorar as relações com o meio
e para se justificar diante da própria consciência.
Vislumbrada por este ângulo, a ideologia seria uma
conduta vital, que tentaria reduzir a ruptura entre
a realidade e nossos interesses. Veyne, num exemplo
cheio de humor, fará a habitual referência ao pri-
meiro ideólogo substituindo-o pela raposa (renard)
da fábula10. O exemplo não mostraria só astúcia,
nem a formação de uma mentira interesseira, mas
tornaria visível a angústia que há no fundo da ideo-
logia pensada como um fenômeno de racionali-
zação e compulsão. E será essa perspectiva a que
permitirá a Veyne trabalhar a ideologia como o uso
ou emprego justificador que fazemos de certas coisas.
Ela não será assim uma coisa, nem será possível
situá-la como uma entidade social (como seria o
caso de uma moral, uma filosofia reinante, um
cerimonial, uma sensibilidade coletiva). Aliás, em
Como se escreve a história, Veyne tentava reconduzir
a ideologia aos “sofismas de justificação” de Aris-
tóteles, e, ao mesmo tempo, à idéia kantiana da
existência de um certo horizonte das consciên-
cias; uma espécie de tribunal dos seres racionais
diante do qual teríamos que nos justificar.
É tendo presentes os referidos elementos que
poderemos aproximar-nos da terceira perspec-
tiva da ideologia esboçada, desta vez em pontos
textuais heterogêneos, por Veyne: a perspectiva
marxista. Em geral, pode-se dizer que nas diversas
alusões ela será apontada como inutilizável. Mas
isso não significará um desconhecimento de nossa
dívida para com Marx. Assim, por exemplo, Veyne
valorizará o legado de uma espécie de “espírito de
suspeita” na análise das aparências. Aliás, em Como
se escreve a história, Marx será mencionado como
o primeiro a tomar consciência da “cadeia monta-
nhosa” chamada ideologia. Isso mesmo supondo-
se que Marx só estivesse estendendo os sofismas
de justificação às idéias políticas. No entanto, segun-
do Veyne, o principal equívoco dos marxistas teria
sido considerar a ideologiauma coisa, ou, pelo
menos, um duplo da realidade (máscara ou espe-
lho). Assim, os marxistas trabalhariam necessaria-
mente com o dualismo entre ser e pensamento, e,
neste último, com a possibilidade de reflexo fiel ou
mentiroso. Acrescenta-se a esses problemas o fato
de que os marxistas oscilam entre duas interpre-
tações da ideologia: seja como produto (medíocre,
de situação de classe), seja como astúcia mentirosa
(que quer enganar socialmente).
Mas, se quisermos assinalar o inimigo declarado
das análises de Veyne sobre a temática ideológica,
teremos de dizer que ele não será propriamente o
ângulo marxista11, e sim o uso atual da ideologia
como uma espécie de “molho que está em todas
as salsas”. Segundo esse autor, haveria necessidade
de dist inguir os diversos empregos que dela são
feitos12, pois se trata, em cada caso, de eficácias dife-
rentes. Mesmo que haja, porém, esses diversos
empregos, a ideologia sempre reforçará relações
sociais reais. Na medida em que Veyne enfatiza a
“pluralidade”, haverá “numerosas realidades das
quais se poderá fazer um uso ideológico”; o
dualismo ideologia-realidade é substituído assim
por uma pluralidade concreta.
Na possibilidade de relacionar as várias pers-
pectivas das quais “L’idéologie selon Marx et selon
Nietzsche” se faz eco, poderíamos destacar o acento
que se dá em todas elas à ideologia como um fenô-
meno cultural e vital que nos atinge a todos, e cuja
finalidade seria um “justificar o que é”.
De maneira que, mesmo localizados na possibi-
lidade de ampliação perspectivista e pluralista
proposta por Veyne, permanece pertinente uma
referência matizada a Marx. Assim acontece até
mesmo nos limites do presente trabalho, em que
foi preciso destacar previamente uma alusão às
relações invertidas − próprias da ideologia, para
Marx − e um parágrafo do 18 Brumário, em que
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a possibilidade de desmascarar essas relações inver-
tidas estava em distingui-las das bases materiais
e das relações sociais que as criavam. Alusão que
não é contraditória com a análise perspectivista
realizada por Veyne; ela simplesmente abre o leque
de possibilidades ampliando o horizonte histórico
e filosófico em que se pensa a ideologia. De manei-
ra que a estratégica e antiplatônica fragmentação
veyniana não significaria deixar de tomar partido
contra determinados usos que se fazem atualmente
da ideologia.

No entanto, às diferenciações já salientadas nos
itens anteriores, teríamos de agregar uma separa-
ção não explicitada que diz respeito à relação entre
ideologia e ciência. Marx denunciava a ideologia
em nome da ciência que ele pretendia instituir: a
ciência dos homens que fazem sua própria histó-
ria (sem, por isso, fazê-la segundo seus desejos)
(CANGUILHEM, 1981, p. 35)13. E, neste ponto, haverá
um afastamento de “base” com o trabalho de Paul
Veyne. O referido “historiador do bloco greco-
romano” não só explicita que “não houve e nunca
haverá uma ciência da história” (o que estaria longe
de constituir uma blasfêmia) (VEYNE, 1982, p. 120),
mas também faz com que suas análises situem-se
no espaço de um certo “jogo” ou “tabuleiro histó-
rico”. Trata-se de um “tabuleiro” cujos peões seriam
as classes sociais, a religião, o ensino, etc., utilizados
para fins históricos variados.
Em outros aspectos, o trabalho de Veyne pode-
ria quase se inscrever na via desenhada por Marx
no 18 Brumário. Assim, por exemplo, a tarefa de
distinguir e desvendar (“tirar a veste drapeada”)
é constante; o uso do riso como procedimento
libertador (que de uma certa maneira estaria pre-
sente no 18 Brumário) (Ribeiro, 1993) constitui
uma espécie de marca diferencial dos escritos de
Veyne; o partir de situações concretas (que infor-
ma o 18 Brumário) materializa-se em seu trabalho
de mapeador das práticas definidas como “aquilo
que os homens fazem”. Finalmente, mesmo formu-
lando frases surpreendentes como “a ideologia não
existe”, ele não deixa de usar o conceito de ideologia.
Assim, em “O Império Romano”, ao se referir ao
segmento dos notáveis, dirá que eles constituíam
uma classe orgulhosa de si mesma, que cantava
sua própria glória, acrescentando que “isso é a ideo-
logia” (Veyne, 1989, p. 124)14.
E será ainda sob a perspectiva do uso do con-
ceito de ideologia que é possível recolher alguns
exemplos de usos mascarados e/ou matizados desta
expressão em outros pensadores contemporâ-
neos. Pierre Bourdieu, por exemplo, admitirá usar
outras palavras, para evitar a tão desgastada “ideo-
logia”. As palavras que ele declara utilizar como
substituições são: dominação, potência ou vio-
lência simbólica. Aliás, ele diz que usa doxa, justa-
mente porque o mundo social já não funciona em
termos de consciência, mas em termos de práticas
e mecanismos. De maneira que é a aceitação de
muitas coisas que não conhecemos (doxa) que
corresponderia à antiga ideologia (ZIZEK, 1996,
pp. 265-78)15. Por outra parte, Michel Foucault –
e sabemos quanto cuidado e distância ele mantém
com a palavra “ideologia” (1985, p. 7) – também
se utilizará dela. Assim, sob o nome de “institui-
ções disciplinares”, não faz senão utilizar o que
Althusser denominou “aparelhos ideológicos do
Estado” (organismos não repressores, mas produ-
tivos: escolas, hospitais etc.). Aliás, também os
mecanismos de exclusão discursiva – desvendados
por Foucault (1971) – poderiam ser pensados em
relação à antiga problemática ideológica.
Num primeiro momento assinalei que era a
atitude de continuar a usar ou não o conceito
de ideologia que deveria ser resgatada dentro das
críticas atuais. No entanto, o importante talvez
seja matizar que não é tanto o uso explícito da
palavra que se acabou mostrando relevante, mas
a valorização do fato ao qual ela alude16. É o “fato”
apontado pela ideologia, então, aquele que nos
parece continuar precisando dessa, ou de outras
palavras, que não só dão conta dele, mas que o
ampliam e matizam conforme as variações e pre-
cisões que demanda o tecido social.
Voltando a nossa pergunta inicial – ainda a ideo-
logia? –, talvez não seja pertinente dar uma
resposta, mas manter a pergunta como tal, de
maneira que nos permita avaliar até que ponto e
sob que forma hoje se continua a pensar a ideolo-
gia. Assim, supondo-se que a própria problemática
362   ● Ainda a ideologia?
da ideologia seja hoje um ponto de batalha, sua
forma relacional poder-nos-ia indicar os diversos
pensamentos e modos de vida que ela acentua.
É claro que, ao darmos essa ênfase, apostamos,
de alguma maneira, num certo diagnóstico que
considera as “batalhas ao redor do formal” um dos
grandes traços da cultura no século XX (FOUCAULT,
1994, IV, p. 220)17. Aliás, o formal seria inseparável
tanto da problemática relacional que o configura,
como de determinados usos, que são os que dese-
nham novas relações. Por isso, seria de alguma
maneira o também antigo problema do uso aquele
que atualmente precisaríamos pensar. Digamos
que o próprio 18 Brumário já se engata com esta
problemática na medida em que um certo uso
da história é pensado como ideológico e que, ao
mesmo tempo, esboça-se como libertador18. Mas,
para ficar, artificialmente, só no hoje, acrescen-
temos que talvez seja pertinente perguntar-nos
se o uso deve ser associado, ou não, a uma certa
ética. Em outras palavras, atualmente, precisa ser
reforçada uma espécie de kairós que direcione as
utilizações? É preciso novamente avaliar “a neces-
sidade”, e deixá-la operar como limitante dos usos?
O status que regia o uso nos gregos deve ser pen-
sado hoje como “modo devida”? Deixando esses
problemas em aberto, digamos simplesmente: o
uso definido como “um ajuste variado que deve
ter em conta elementos diferentes” (FOUCAULT ,
1984, p. 64) teria de ser pensado em conjunto
com uma reflexão ética sobre a atual circulação
de noções – mascaradas e/ou matizadas − de ideo-
logia... Mas sem esquecer que se trata de marcar
o “fato” a que a palavra simplesmente alude; “fato”
que, no entanto, também cai no âmbito da luta
interpretativa. Assinalemos algumas: “reforço
de relações sociais reais”, “justificação do que é”,
“cimento de determinado status quo”, “aparência
socialmente necessária”...
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. ⁄ . ⁄ . ●  ●  , º  ● -  363
1 Esses bonapar tistas, que posteriormente se tornariam
antinapoleônicos, serão chamados por Napoleão I de
ideólogos, mas invertendo a imagem que eles queriam dar
de si mesmos.
2 A respeito desse problema, ver R icœur, 1988, pp. 73-5.
Atualmente Derrida t em insistido e ampliado essa
problemát ica abrangendo o próprio marxismo em seu
aspecto religioso: “O religioso não é [...] um fenômeno
ideológico ou uma produção fantasmática entre outras
[...] ele confere sua forma originária à produção do
fantasma ou do fantasma ideológico. Por outro lado [...] o
religioso informa também [...] este ‘espírito’ do marxismo
emancipador” (1994, p. 221). Para Derrida, Marx nunca
deixou de se ocupar com o fantasma. Não se tratava de
falar com ele, mas de restituir-lhe a fala (em si, no outro,
no outro e em si). Os espectros estão sempre aí, mesmo
que eles não existam, mesmo que e les não sejam mais (se
eles não são mais), mesmo que e les não sejam ainda (se
eles não são ainda): “Eles nos dão a repensar o aí desde
que se abre a boca” (idem).
3 Assim, por exemplo, Deleuze analisará a repetição em O
18 Brumár io (1968, 123); Foucault proporá uma leitura de
O 18 Brumár io em que se vislumbrar ia a possibilidade de
outras interpretações (1994, pp. 575 e 576), e Derrida lhe
dará um lugar destacado (1994).
4 Usamos a referida edição porque, neste ponto (Marx,
1978), contém um erro de tradução. C laro que este
parágrafo não é o único que pode ser relacionado com o
problema da ideologia. Há uma outra alusão à ideologia
em O 18 Brumár io, quando Marx diz que a burguesia,
num certo momento, abandona seus ideais e se faz
monárquica, configurando-se uma certa “renúncia
ideológica” (RIBEIRO, 1993, p. 121).
5 Sobre as relações entre o novo e a revolução que podem ser
pensadas a partir de O 18 brumário, id., ibid., pp. 120-48.
6 É curioso que seja pelo descar te e críticas da
repres entação que, hoje em dia, se faça abandono da
ideologia; para Marx, as religiões eram cr iticadas
justamente enquanto repres entações enganosas.
7 Veyne chegará a afirmar que a única que merece o nome
de ideologia é a verdade. A ideologia teria, aliás, encoberto
o problema da verdade (1977, pp. 93-115).
8 Veyne exemplifica com a “indignidade do regime
capitalista” assinalada por Marx e, citando R. Aron, dirá
que a análise do real e a vontade revolucionária são
consideradas em unidade no marxismo. A posição de
junção do bem e do verdadeiro constitui uma perspectiva
diferente daquela que é objeto de análise por Robert
Tucker (1963, pp. 9-22), por intermédio da qual se mostra
que Marx não é um moralista em sentido tradicional,
mesmo que o clima em que se movimenta seu
pensamento seja moral.
9 Invenção althusseriana, renovada e apresentada por
Michel Foucault em 1964 no VII Col loque Nietzsche
(1994, I) e cuja análise da problemát ica da interpretação,
que é feita segundo a referida t rilogia de pensadores,
produz resistênc ias até hoje.
10 Veyne faz referência à fábula “A raposa e as uvas”, na
qual a impossibilidade de alcançar as uvas leva a um dizer
compensatór io: elas “estão muito verdes”. Pensamos que
na análise da ideologia, como just ificação angustiante,
percebe-se uma preocupação pela justificação, que é cara
às análises históricas de Veyne, e que, até mesmo, abrange
um certo plano coletivo. Poder-se-ia fazer um paralelo
diferencial com a fábula usada por Marx em O 18
Brumár io. Nela serão as próprias condições que impõem a
fábula, quando é impossível o retrocesso; assim, são as
circunstâncias que gritam: Hic Rhodus, hic salta! Também
a preferência por essa fábula poderia ser pensada em
relação às análises de Marx.
11 Veyne, talvez muito apesar dele, parece justificar-s e
diante de uma espécie de tr ibunal dos seres racionais
marxistas, quando nos diz que “ele não quer dizer que
tiranos e burgueses sejam inocentes”, mas ir além do uso
atual da ideologia.
12 Dever-se-ia diferenciar, por exemplo, quando ela é
dicção popular, falatór io acadêmico ou doutrina imposta
pelo aparelho de Estado (Veyne, 1976, IV, p. 7).
13 Aliás, como tem assinalado Deleuze (1968, p. 123), em
Marx há um ponto de vista superior, uma espécie de classe
não-ideológica, porque universal: o proletar iado.
14 Claro que teríamos de estabeleceros matizes
diferenciais, tanto da frase “a ideologia não existe” (que
parece aludir ao fato de que a ideologia não seja uma
coisa), como de “isso é a ideologia” (que supomos uma
alusão à primitiva indistinção Bem-Verdade).
15 Na relação entre democracia e doxa, deste ponto de
vista, estaríamos então nos reencontrando com o
problema ideológico.
16 Necessidade, portanto, de marcar o fenômeno da
“aparência socialmente necessária” ou do “cimento de
determinado status quo” (Ribeiro, 1993) ou, ainda, do
“reforço de relações sociais reais” ou da “justificação do
que é” (Veyne, 1977).
17 Expressão que utilizamos conscientemente em uma
relação diferencial.
18 Assim, diante do problema de por que, nos períodos
revolucionários, há auxilio dos espíritos do passado
(nomes, g ritos de guerra, roupagens, linguagem
emprestada), poderíamos ressaltar que, para Marx, nas
diversas conjurações de mortos há dif erenças radicais. Às
vezes, e aqui é importante distinguir, elas têm como
finalidade “glorificar as novas lutas, e não a de parodiar as
passadas”. Essa distinção vai unida a outras diferenciações:
engrandecer na imaginação a tarefa a cumprir (e não fug ir
de sua solução), encontrar novamente o espírito da
revolução (e não fazer o seu espectro caminhar). Assim
poderíamos, a cada momento, aplicar a pergunta Qual é a
Notas
364   ● Ainda a ideologia?
finalidade de de terminada repetição? Com isso, “a
revolução do século XIX deve deixar que os mortos
enterrem seus mortos” tem outro sentido; são os vivos,
que atuam como mortos (múmias), que devem ficar na
tarefa de continuar enterrando mortos. Os vivos, que
atuam como tais, devem-se despojar de “toda veneração
superst iciosa do passado”. Parece-nos importante trazer à
tona esta problemática das distinções, aplicada aos
espectros, porque ela parece ter sido ignorada, como tal,
na análise que Derrida realiza em Espectros de Marx.

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