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. ⁄ . ⁄ . ● ● , º ● - 357 Ainda a ideologia? * Resumo ● Este artigo constitui uma reflexão sobre a problemática da ideologia. Trata-se de mapear algumas críticas atuais à constante utilização deste conceito, principalmente a do historiador-filósofo Paul Veyne. Partindo do problema da “origem” da ideologia e de uma determinada pontualidade textual do 18 Brumário de Marx, percorremos as diversas críticas atuais, que se mostram diferenciais, perspectivísticas e criadoras de matizes, mas não deixam de aludir ao “fato” assinalado por Marx mediante esta expressão. Palavras-chave ● ideologia, usos, perspectivas. Title ● Idealogy Again? Abstract ●This article presents some considerations on the problem of ideology. In it we try to detect a few crit icisms on the constant use of this concept, particularly the one by Paul Veyne, a historian and philosopher. Leaving from the problem of the ‘origin’ of ideology and a certain textual punctuality of Marx’s 18th Brumaire, we go through several present criticisms with different perspectives and undertones, although referring to the ‘fact’ proposed by Marx. Keywords ● ideologia, usos, perspectivas. “Si las palabras son máscaras, ¿que hay detrás de ellas?” (Octavio Paz) Data de recebimento: 22/09/2003. Data de aceitação: 31/10/2003. * Doutora em Ética e Filosofia pela USP; professora da graduação e do mestrado em Filosofia – USJT. E-mail: prof.gloriagm@usjt.b r. Como uma maneira de refletir em até que ponto, hoje em dia, é pertinente perguntar-se pela ideolo- gia, optarei por esboçar alguns direcionamentos ou orientações que permanecem implícitos no uso desse termo. Para tal propósito limitar-me-ei a recolher determinadas indicações – que poste- riormente se cristalizariam na chamada teoria da ideologia – tendo como ponto de referência, em um primeiro momento, o escrito-prático de Marx sobre O 18 Brumário. A seguir, tentarei esta- belecer uma relação entre essas indicações e a ampliação atual da teoria da ideologia nos escritos de Paul Veyne. Sobre a co nstantemente citada origem do conceito de ideologia minha referência pontual será Georges Canguilhem, pois ele não se limita, como se faz de hábito, aos nomes de Cabanis e Destutt de Tracy. Diferencialmente, Canguilhem mostra com cuidado como o projeto de uma “ciência da gênese das idéias” consistia em tratar as idéias como fenômenos naturais, exprimindo a relação (“relation”) do homem (organismo vivo e sensível) com seu meio natural de vida. Os ideó- logos eram assim liberais, antiteólogos e antime- tafísicos. É posteriormente1 que a ideologia passará a ser denunciada como metafísica e pensamento vazio (creuse). Marx conservará o conceito de uma inversão (renversement) da relação (rapport) do conhecimento à coisa. Dessa maneira, assinala Canguilhem, houve um deslocamento do ponto de aplicação de um estudo que designava “uma ciência natural da aquisição [...] de idéias calcadas sobre o real mesmo” até o que pode ser pensado como seu contrário: “todo sistema de idéias pro- duzido como efeito de uma situação condenada a desconhecer sua relação real ao real” (CANGUILHEM, 1981, pp. 35 e 36). Curiosamente, nos estudos sobre a ideologia, encontramo-nos sempre com o problema da in- versão, mesmo que em diversos níveis. Na Ideolo- gia alemã Marx utilizará a metáfora da “câmera 358 ● Ainda a ideologia? obscura”, para mostrar que em toda ideologia os homens e suas relações surgem invertidos, seu caminho (que teríamos que entender como não- ideológico) será partir da atividade real dos homens, e não daquilo que eles dizem, imaginam e pensam (MARX, s.d./b, pp. 25 e 26). Cabe ressaltar que a inversão deve-se ao fato de que certa produção dos homens constitui, por si mesma, uma inversão. É dessa maneira que Marx refere-se à religião; ela não seria um exemplo de ideologia, mas a ideolo- gia por excelência2. No entanto, no 18 Brumário, a ideologia ainda não será especificada claramente como uma inver- são, mesmo que o referido escrito seja pertinente- mente lido como desmontagem de aparências, ajuste de contas com a transcendência e liquidação da religiosidade (RIBEIRO , 1993, p. 123). Aliás, a atenção que hoje se dá a um texto como esse3, não especificamente conceitual, mas que se constitui como uma interpretação sobre práticas, nos faz pensar que os artigos que formam O 18 Brumário são pertinentes à forma em que se desenha nossa própria atualidade. Em outras palavras, é possível vislumbrar, nessas constantes referências a O 18 Brumário, um sinal de transformação nas relações atuais com a escrita, nas quais o peso dos textos que trazem um compromisso com seu presente seria maior. Nessa perspectiva de análise, o valor e pertinência de um escrito não se mediria somente pela sua coerência conceitual, mas pelo cruzamento de práticas e interpretações que o constituem e de cuja análise ele se faz eco. Inseridos nessa via de leitura podemos destacar uma passagem do item III do 18 Brumário, em que Marx analisa a separação entre legitimistas e orleanistas não como uma questão de princípios, mas como a resultante das condições materiais de existência. Nesse ponto, Marx mostra claramente uma quebra com as interpretações aparentes, que tratavam da separação dessas facções como dis- tintos matizes do monarquismo. Diferentemente, Marx destacará, como um solo determinante, as duas espécies de propriedade que determinam a separação das facções. Sob os Bourbons governara a grande propriedade territorial e sob os Orléans o capital (como finança, indústria e comércio). Ambas as facções carregariam seus séquitos: “padres e lacaios”, os primeiros, e “advogados, professores e retóricos”, os segundos. Dessa maneira − e por meio da análise dessa situação concreta, que pos- teriormente seria provada pelos fatos, segundo o dizer de Marx −, a união impossível das facções seria a divergência de interesses, e não o que eles pensavam que era a causa, ou seja, a lealdade às duas casas reais. É a partir da referida análise material que Marx generalizará o que posteriormente diversos teóri- cos utilizarão como una teoria da ideologia, di- zendo textualmente: “Sobre las diversas formas de propiedad y sobre las condiciones sociales de existencia se levanta toda uma superestructura de sentimientos, ilusiones, modos de pensar y concepciones de vida diversos y plasmados de un modo peculiar. La clase entera los crea y los forma derivándolos de sus bases materiales y de las relaciones sociales correspondientes” (s.d./a)4. Distinguir torna-se assim uma importante ati- vidade para realizar o desvendamento. Distinguir- se-á na vida privada o que um homem pensa e diz de si mesmo e o que ele realmente é e faz. O ho- mem isolado, nos diz Marx, pelo peso da educação e da tradição, às vezes acredita que os motivos e o ponto de partida de sua conduta são “próprios”, mas é a classe que cria aquelas ilusões e modos de pen- sar; ele simplesmente não tem consciência disso. No entanto, essa referida distinção não tem o peso da diferenciação principal, que será a separação a ser feita dentro das lutas históricas. Nelas, as frases e o conceito que fazem de si os partidos deverão ser distinguidos de sua formação e interesses reais. Temos, portanto, um contínuo processo de distin- ção, desmascaramento e manifestação do que está aí. Para realizá-lo será necessária uma escavação constante que traga à luz os interesses subjacentes que naturalmente se mascaram. No Prólogo à 2ª edição Marx rejeita uma aná- lise do 18 Brumário como um ato de força de um indivíduo,que pudesse levar a acreditar no “poder pessoal de iniciativa”. Ao mesmo tempo, ele afasta- se de uma análise do “acontecimento isolado”, pois não se trata de “um raio caído de um céu azul”. É curioso como a sua análise diferencial, que ao mesmo tempo se pretende não-ideológica, o faz manifestar os “conceitos gerais” com os quais . ⁄ . ⁄ . ● ● , º ● - 359 opera sua interpretação. Interpretação esta que vai inserindo cuidadosamente os diversos aconteci- mentos históricos na totalidade de um processo mais geral. E será precisamente para dar conta deste processo que surgirão determinadas categorias de análise não-tradicionais, como, por exemplo: “luta de classes”, “interesses materiais”, “fisionomia do período”, “modos de produção” e “modos de vida”. São elas que, por se encontrarem inseridas numa análise dialét ica, demandarão determina- dos conceitos opostos que assim outorgarão vida à própria interpretação proposta. Por isso não é possível deixar de mencionar a peculiaridade desta interpretação que se institui a si mesma como nova, revolucionária e livre do passado que esmaga5. E será na constituição de um certo território dialético que surgirão os conceitos opostos, precisamente no momento em que se explicitam as aparências que eles encobrem: “princípios”, “ilusões”, “modos de pensar”, “sentimentos”, “imaginação”, “enganos”, “fantasias”, “milagres”, “venerações” e “superstições”. Isso para recolher somente os termos com que, efetivamente, movimenta-se a análise do 18 Brumá- rio. Na comodidade e perigo de usar uma única palavra, todos estes últimos conceitos podem ser denominados A ideologia. Já na tentativa de apontar algumas das questões que hoje em dia circulam ao redor da ideologia, cabe mencionar a pertinência das problemáticas recolhidas por Terry Eagleton (ZIZEK, 1996, pp. 265- 78). Para este autor, que pode ser caracterizado como um defensor do uso do termo ideologia, o descrédito atual desta palavra deve-se à sua relação com o conceito de representação. Assim, na medida em que os modelos de representação têm sido questionados, também o é a noção de ideologia6. Por outra parte, e principalmente, tem sido esta- belecida uma relação entre ideologia e a impos- sibilidade de acesso a uma verdade absoluta. Salientemos, portanto, que é a partir do afunda- mento dessa verdade absoluta que se pensa também na queda da noção de ideologia. Outros dos fatores que contribuiriam para o descrédito atual seriam a chamada “falsa consciência esclarecida” (que se supõe simplista na “pós-modernidade”) e o fato de que o capitalismo tardio tenha tido sua própria repro dução, independentemente do passo reavaliador pela consciência. Mas, ainda segundo T. Eagleton, nenhuma dessas ligações seria sufi- ciente para jogar no lixo a noção de ideologia... No entanto, é no interior do que Eagleton denomina “revisionismo” atual que seria possível, pelo menos num primeiro momento, situar algu- mas das alusões à problemática da ideologia que encontramos nos escritos de Paul Veyne. Entre elas cabe destacar a presença constante da relação entre ideologia e verdade7. Considerando essa relação, Veyne poderá rejeitar, por exemplo, a concepção da ideologia como mentira interes- seira, porque para mentir seria preciso conhecer a verdade, que seria um fato primeiro. Mas a aber- tura veyniana de uma espécie de leque de possibi- lidades é perspectivística. Assim, segundo uma dessas perspectivas, em que é utilizado um certo cristal nietzschiano, a ideologia poderia ser pensada como a indist inção Bem-Verdade. De forma por demais esquemática pode-se dizer que a não-diferenciação entre “Bem” e “Verdade” assinala uma atitude primária, que diz respeito ao uso que a humanidade faz do conheci- mento. Instrumento precário, que não pode atingir evidências, o conhecimento é feito para viver, e não para conhecer. Por isso, é útil confundir “Bem” e “Verdade”. A humanidade caracterizar-se- ia pelo retardo em que começa essa separação. Um dos mais “belos exemplos” dessa indistinção seria justamente o marxismo... Para Veyne, Marx podia- se permitir não ter moral, ou ironizar sobre a ética, porque sua obra continha uma moral sem sabê-lo (Veyne, 1977, p. 103) 8. Supondo, por meio deste cristal nietzschiano, que a ideologia seja essa con- fusão primeira, então, ela é, no dizer veyniano: “A homenagem que os interesses mais diferentes (de Platão a Marx) rendem à idéia de Bem e Verdade”. Mas, conforme o pluralismo e o perspecti- vismo, sempre ligados às análises de Paul Veyne, o ângulo nietzschiano não será o único possível para pensar a ideologia. Num texto que nos parece vir a acentuar a invenção da trilogia Nietzsche, Freud e Marx9 Veyne privilegiará uma possível perspectiva freudiana da ideologia. Assim, no 360 ● Ainda a ideologia? artigo titulado “L’idéologie selon Marx et selon Nietzsche” − no que julgamos ser um lapsus propo- sital e, ao mesmo tempo, “uma maneira de rir com” (RIBEIRO, 1993) o leitor atento − Veyne não mencio- nará o nome de Freud, mesmo que no interior dessa análise ressalte esta perspectiva. Sim, porque, segundo a interpretação veyniana, é Freud que, ao apontar para o fenômeno da racionalização como “conduta compulsiva”, teria modificado a trindade clássica de verdade/erro/ideologia, constituindo a variante verdade/erro/ilusão. A racionalização, pensada como automistificação ingênua que se orienta em torno de e ao próprio sujeito, mostrar- se-ia, por exemplo, nas análises freudianas do neurótico. Isso porque o neurótico racionalizaria sua doença para melhorar as relações com o meio e para se justificar diante da própria consciência. Vislumbrada por este ângulo, a ideologia seria uma conduta vital, que tentaria reduzir a ruptura entre a realidade e nossos interesses. Veyne, num exemplo cheio de humor, fará a habitual referência ao pri- meiro ideólogo substituindo-o pela raposa (renard) da fábula10. O exemplo não mostraria só astúcia, nem a formação de uma mentira interesseira, mas tornaria visível a angústia que há no fundo da ideo- logia pensada como um fenômeno de racionali- zação e compulsão. E será essa perspectiva a que permitirá a Veyne trabalhar a ideologia como o uso ou emprego justificador que fazemos de certas coisas. Ela não será assim uma coisa, nem será possível situá-la como uma entidade social (como seria o caso de uma moral, uma filosofia reinante, um cerimonial, uma sensibilidade coletiva). Aliás, em Como se escreve a história, Veyne tentava reconduzir a ideologia aos “sofismas de justificação” de Aris- tóteles, e, ao mesmo tempo, à idéia kantiana da existência de um certo horizonte das consciên- cias; uma espécie de tribunal dos seres racionais diante do qual teríamos que nos justificar. É tendo presentes os referidos elementos que poderemos aproximar-nos da terceira perspec- tiva da ideologia esboçada, desta vez em pontos textuais heterogêneos, por Veyne: a perspectiva marxista. Em geral, pode-se dizer que nas diversas alusões ela será apontada como inutilizável. Mas isso não significará um desconhecimento de nossa dívida para com Marx. Assim, por exemplo, Veyne valorizará o legado de uma espécie de “espírito de suspeita” na análise das aparências. Aliás, em Como se escreve a história, Marx será mencionado como o primeiro a tomar consciência da “cadeia monta- nhosa” chamada ideologia. Isso mesmo supondo- se que Marx só estivesse estendendo os sofismas de justificação às idéias políticas. No entanto, segun- do Veyne, o principal equívoco dos marxistas teria sido considerar a ideologiauma coisa, ou, pelo menos, um duplo da realidade (máscara ou espe- lho). Assim, os marxistas trabalhariam necessaria- mente com o dualismo entre ser e pensamento, e, neste último, com a possibilidade de reflexo fiel ou mentiroso. Acrescenta-se a esses problemas o fato de que os marxistas oscilam entre duas interpre- tações da ideologia: seja como produto (medíocre, de situação de classe), seja como astúcia mentirosa (que quer enganar socialmente). Mas, se quisermos assinalar o inimigo declarado das análises de Veyne sobre a temática ideológica, teremos de dizer que ele não será propriamente o ângulo marxista11, e sim o uso atual da ideologia como uma espécie de “molho que está em todas as salsas”. Segundo esse autor, haveria necessidade de dist inguir os diversos empregos que dela são feitos12, pois se trata, em cada caso, de eficácias dife- rentes. Mesmo que haja, porém, esses diversos empregos, a ideologia sempre reforçará relações sociais reais. Na medida em que Veyne enfatiza a “pluralidade”, haverá “numerosas realidades das quais se poderá fazer um uso ideológico”; o dualismo ideologia-realidade é substituído assim por uma pluralidade concreta. Na possibilidade de relacionar as várias pers- pectivas das quais “L’idéologie selon Marx et selon Nietzsche” se faz eco, poderíamos destacar o acento que se dá em todas elas à ideologia como um fenô- meno cultural e vital que nos atinge a todos, e cuja finalidade seria um “justificar o que é”. De maneira que, mesmo localizados na possibi- lidade de ampliação perspectivista e pluralista proposta por Veyne, permanece pertinente uma referência matizada a Marx. Assim acontece até mesmo nos limites do presente trabalho, em que foi preciso destacar previamente uma alusão às relações invertidas − próprias da ideologia, para Marx − e um parágrafo do 18 Brumário, em que . ⁄ . ⁄ . ● ● , º ● - 361 a possibilidade de desmascarar essas relações inver- tidas estava em distingui-las das bases materiais e das relações sociais que as criavam. Alusão que não é contraditória com a análise perspectivista realizada por Veyne; ela simplesmente abre o leque de possibilidades ampliando o horizonte histórico e filosófico em que se pensa a ideologia. De manei- ra que a estratégica e antiplatônica fragmentação veyniana não significaria deixar de tomar partido contra determinados usos que se fazem atualmente da ideologia. No entanto, às diferenciações já salientadas nos itens anteriores, teríamos de agregar uma separa- ção não explicitada que diz respeito à relação entre ideologia e ciência. Marx denunciava a ideologia em nome da ciência que ele pretendia instituir: a ciência dos homens que fazem sua própria histó- ria (sem, por isso, fazê-la segundo seus desejos) (CANGUILHEM, 1981, p. 35)13. E, neste ponto, haverá um afastamento de “base” com o trabalho de Paul Veyne. O referido “historiador do bloco greco- romano” não só explicita que “não houve e nunca haverá uma ciência da história” (o que estaria longe de constituir uma blasfêmia) (VEYNE, 1982, p. 120), mas também faz com que suas análises situem-se no espaço de um certo “jogo” ou “tabuleiro histó- rico”. Trata-se de um “tabuleiro” cujos peões seriam as classes sociais, a religião, o ensino, etc., utilizados para fins históricos variados. Em outros aspectos, o trabalho de Veyne pode- ria quase se inscrever na via desenhada por Marx no 18 Brumário. Assim, por exemplo, a tarefa de distinguir e desvendar (“tirar a veste drapeada”) é constante; o uso do riso como procedimento libertador (que de uma certa maneira estaria pre- sente no 18 Brumário) (Ribeiro, 1993) constitui uma espécie de marca diferencial dos escritos de Veyne; o partir de situações concretas (que infor- ma o 18 Brumário) materializa-se em seu trabalho de mapeador das práticas definidas como “aquilo que os homens fazem”. Finalmente, mesmo formu- lando frases surpreendentes como “a ideologia não existe”, ele não deixa de usar o conceito de ideologia. Assim, em “O Império Romano”, ao se referir ao segmento dos notáveis, dirá que eles constituíam uma classe orgulhosa de si mesma, que cantava sua própria glória, acrescentando que “isso é a ideo- logia” (Veyne, 1989, p. 124)14. E será ainda sob a perspectiva do uso do con- ceito de ideologia que é possível recolher alguns exemplos de usos mascarados e/ou matizados desta expressão em outros pensadores contemporâ- neos. Pierre Bourdieu, por exemplo, admitirá usar outras palavras, para evitar a tão desgastada “ideo- logia”. As palavras que ele declara utilizar como substituições são: dominação, potência ou vio- lência simbólica. Aliás, ele diz que usa doxa, justa- mente porque o mundo social já não funciona em termos de consciência, mas em termos de práticas e mecanismos. De maneira que é a aceitação de muitas coisas que não conhecemos (doxa) que corresponderia à antiga ideologia (ZIZEK, 1996, pp. 265-78)15. Por outra parte, Michel Foucault – e sabemos quanto cuidado e distância ele mantém com a palavra “ideologia” (1985, p. 7) – também se utilizará dela. Assim, sob o nome de “institui- ções disciplinares”, não faz senão utilizar o que Althusser denominou “aparelhos ideológicos do Estado” (organismos não repressores, mas produ- tivos: escolas, hospitais etc.). Aliás, também os mecanismos de exclusão discursiva – desvendados por Foucault (1971) – poderiam ser pensados em relação à antiga problemática ideológica. Num primeiro momento assinalei que era a atitude de continuar a usar ou não o conceito de ideologia que deveria ser resgatada dentro das críticas atuais. No entanto, o importante talvez seja matizar que não é tanto o uso explícito da palavra que se acabou mostrando relevante, mas a valorização do fato ao qual ela alude16. É o “fato” apontado pela ideologia, então, aquele que nos parece continuar precisando dessa, ou de outras palavras, que não só dão conta dele, mas que o ampliam e matizam conforme as variações e pre- cisões que demanda o tecido social. Voltando a nossa pergunta inicial – ainda a ideo- logia? –, talvez não seja pertinente dar uma resposta, mas manter a pergunta como tal, de maneira que nos permita avaliar até que ponto e sob que forma hoje se continua a pensar a ideolo- gia. Assim, supondo-se que a própria problemática 362 ● Ainda a ideologia? da ideologia seja hoje um ponto de batalha, sua forma relacional poder-nos-ia indicar os diversos pensamentos e modos de vida que ela acentua. É claro que, ao darmos essa ênfase, apostamos, de alguma maneira, num certo diagnóstico que considera as “batalhas ao redor do formal” um dos grandes traços da cultura no século XX (FOUCAULT, 1994, IV, p. 220)17. Aliás, o formal seria inseparável tanto da problemática relacional que o configura, como de determinados usos, que são os que dese- nham novas relações. Por isso, seria de alguma maneira o também antigo problema do uso aquele que atualmente precisaríamos pensar. Digamos que o próprio 18 Brumário já se engata com esta problemática na medida em que um certo uso da história é pensado como ideológico e que, ao mesmo tempo, esboça-se como libertador18. Mas, para ficar, artificialmente, só no hoje, acrescen- temos que talvez seja pertinente perguntar-nos se o uso deve ser associado, ou não, a uma certa ética. Em outras palavras, atualmente, precisa ser reforçada uma espécie de kairós que direcione as utilizações? É preciso novamente avaliar “a neces- sidade”, e deixá-la operar como limitante dos usos? O status que regia o uso nos gregos deve ser pen- sado hoje como “modo devida”? Deixando esses problemas em aberto, digamos simplesmente: o uso definido como “um ajuste variado que deve ter em conta elementos diferentes” (FOUCAULT , 1984, p. 64) teria de ser pensado em conjunto com uma reflexão ética sobre a atual circulação de noções – mascaradas e/ou matizadas − de ideo- logia... Mas sem esquecer que se trata de marcar o “fato” a que a palavra simplesmente alude; “fato” que, no entanto, também cai no âmbito da luta interpretativa. Assinalemos algumas: “reforço de relações sociais reais”, “justificação do que é”, “cimento de determinado status quo”, “aparência socialmente necessária”... Referências bibliográficas AGULHÃO, M. 1848 – O aprendizado da República. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. BEAUNE, J.-C. Les spectres mécaniques. Par is: Champ Val lon, 1988. BOBBIO, N. As ideologias e o poder em cris e. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1994, 3ª ed. CANGUILHEM, G. Idéologie e t rationalité dans l’histoire des sciences de la vie. Paris: J. Vrin, 1981. DELEUZE, G. Différence et répétition. Paris: PUF, 1968, 5ª ed. DERRIDA, J. Espectros de Marx. O estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internac ional. Trad. de A. Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. FOUCAULT, M. L’ordre du dis cours – Leçon inaugurale du Collège de France, 2 décembre 1970. Paris: Gallimard, 1971. __________. L’usage des plaisirs. Histoire de la sexualité II. Paris: Gallimard, 1984. __________. Microfísica do poder. 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Os espectros estão sempre aí, mesmo que eles não existam, mesmo que e les não sejam mais (se eles não são mais), mesmo que e les não sejam ainda (se eles não são ainda): “Eles nos dão a repensar o aí desde que se abre a boca” (idem). 3 Assim, por exemplo, Deleuze analisará a repetição em O 18 Brumár io (1968, 123); Foucault proporá uma leitura de O 18 Brumár io em que se vislumbrar ia a possibilidade de outras interpretações (1994, pp. 575 e 576), e Derrida lhe dará um lugar destacado (1994). 4 Usamos a referida edição porque, neste ponto (Marx, 1978), contém um erro de tradução. C laro que este parágrafo não é o único que pode ser relacionado com o problema da ideologia. Há uma outra alusão à ideologia em O 18 Brumár io, quando Marx diz que a burguesia, num certo momento, abandona seus ideais e se faz monárquica, configurando-se uma certa “renúncia ideológica” (RIBEIRO, 1993, p. 121). 5 Sobre as relações entre o novo e a revolução que podem ser pensadas a partir de O 18 brumário, id., ibid., pp. 120-48. 6 É curioso que seja pelo descar te e críticas da repres entação que, hoje em dia, se faça abandono da ideologia; para Marx, as religiões eram cr iticadas justamente enquanto repres entações enganosas. 7 Veyne chegará a afirmar que a única que merece o nome de ideologia é a verdade. A ideologia teria, aliás, encoberto o problema da verdade (1977, pp. 93-115). 8 Veyne exemplifica com a “indignidade do regime capitalista” assinalada por Marx e, citando R. Aron, dirá que a análise do real e a vontade revolucionária são consideradas em unidade no marxismo. A posição de junção do bem e do verdadeiro constitui uma perspectiva diferente daquela que é objeto de análise por Robert Tucker (1963, pp. 9-22), por intermédio da qual se mostra que Marx não é um moralista em sentido tradicional, mesmo que o clima em que se movimenta seu pensamento seja moral. 9 Invenção althusseriana, renovada e apresentada por Michel Foucault em 1964 no VII Col loque Nietzsche (1994, I) e cuja análise da problemát ica da interpretação, que é feita segundo a referida t rilogia de pensadores, produz resistênc ias até hoje. 10 Veyne faz referência à fábula “A raposa e as uvas”, na qual a impossibilidade de alcançar as uvas leva a um dizer compensatór io: elas “estão muito verdes”. Pensamos que na análise da ideologia, como just ificação angustiante, percebe-se uma preocupação pela justificação, que é cara às análises históricas de Veyne, e que, até mesmo, abrange um certo plano coletivo. Poder-se-ia fazer um paralelo diferencial com a fábula usada por Marx em O 18 Brumár io. Nela serão as próprias condições que impõem a fábula, quando é impossível o retrocesso; assim, são as circunstâncias que gritam: Hic Rhodus, hic salta! Também a preferência por essa fábula poderia ser pensada em relação às análises de Marx. 11 Veyne, talvez muito apesar dele, parece justificar-s e diante de uma espécie de tr ibunal dos seres racionais marxistas, quando nos diz que “ele não quer dizer que tiranos e burgueses sejam inocentes”, mas ir além do uso atual da ideologia. 12 Dever-se-ia diferenciar, por exemplo, quando ela é dicção popular, falatór io acadêmico ou doutrina imposta pelo aparelho de Estado (Veyne, 1976, IV, p. 7). 13 Aliás, como tem assinalado Deleuze (1968, p. 123), em Marx há um ponto de vista superior, uma espécie de classe não-ideológica, porque universal: o proletar iado. 14 Claro que teríamos de estabeleceros matizes diferenciais, tanto da frase “a ideologia não existe” (que parece aludir ao fato de que a ideologia não seja uma coisa), como de “isso é a ideologia” (que supomos uma alusão à primitiva indistinção Bem-Verdade). 15 Na relação entre democracia e doxa, deste ponto de vista, estaríamos então nos reencontrando com o problema ideológico. 16 Necessidade, portanto, de marcar o fenômeno da “aparência socialmente necessária” ou do “cimento de determinado status quo” (Ribeiro, 1993) ou, ainda, do “reforço de relações sociais reais” ou da “justificação do que é” (Veyne, 1977). 17 Expressão que utilizamos conscientemente em uma relação diferencial. 18 Assim, diante do problema de por que, nos períodos revolucionários, há auxilio dos espíritos do passado (nomes, g ritos de guerra, roupagens, linguagem emprestada), poderíamos ressaltar que, para Marx, nas diversas conjurações de mortos há dif erenças radicais. Às vezes, e aqui é importante distinguir, elas têm como finalidade “glorificar as novas lutas, e não a de parodiar as passadas”. Essa distinção vai unida a outras diferenciações: engrandecer na imaginação a tarefa a cumprir (e não fug ir de sua solução), encontrar novamente o espírito da revolução (e não fazer o seu espectro caminhar). Assim poderíamos, a cada momento, aplicar a pergunta Qual é a Notas 364 ● Ainda a ideologia? finalidade de de terminada repetição? Com isso, “a revolução do século XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos” tem outro sentido; são os vivos, que atuam como mortos (múmias), que devem ficar na tarefa de continuar enterrando mortos. Os vivos, que atuam como tais, devem-se despojar de “toda veneração superst iciosa do passado”. Parece-nos importante trazer à tona esta problemática das distinções, aplicada aos espectros, porque ela parece ter sido ignorada, como tal, na análise que Derrida realiza em Espectros de Marx.
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